2000 08 - arquitextos esp 008 - a preservação do patrimônio

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    TEXTO ESPECIAL 008

    agosto 2000

    A preservao do patrimnio e o tecido urbanoCristina Meneguello

    Cristina Meneguello doutora emHistria, e professora do IFCHUnicamp (cursos de histria earquitetura)

    2. Manchester, Dublin e So Paulo: reflexes a partir de trs estratgias paraa recuperao do passado urbano (*)

    Diferentes estratgias de recuperao do passado e da materialidade urbanaocorrem em diferentes pases, obviamente moldadas por especificidadesculturais, geogrficas e pelo desenvolvimento histrico da regio. Os imperativosda indstria do turismo e do consumo so acusados de causar, nas regies maisantigas das cidades (as mais carregadas de significados), o processo degentrificao dos espaos que implica o deslocamento das populaes em funodaqueles mais aptos a um consumo diferenciado. O progresso acelerado quealtera os traos da cidade sentido em diferentes realidades, e soluesdefinitivas ou paliativas so apresentadas.

    No caso ingls, h um movimento duplo de apreenso do passado. De um lado, o

    perodo vitoriano organiza a preservao do patrimnio, na arte, na recuperaodos estilos do passado como o clssico e o gtico. A escavao de runas, aevocao de lendas medievais (como, na Inglaterra, a revitalizao dopersonagem Rei Arthur) indicam um prezar no tanto dos valores do passado,mas de sua "atmosfera". Em outro movimento, a partir dos anos 60, aamaldioada cidade industrial vitoriana que passa a ser prezada, pois durante oscaptulos iniciais da desindustrializao britnica o passado de afluncia e osprprios horrores do espao da habitao surgem como "glamourizados" (commuseus dos esgotos ou da casa operria, por exemplo).

    A cidade de Manchester no Reino Unido, mais conhecida como a primeira cidadeindustrial, funciona como o paradigma da cidade industrial, construdocuidadosamente pela literatura e academia ao longo dos sculos dezenove evinte. Um olhar para a documentao do perodo, entretanto, traz novasinformaes do olhar que se volta para o passado no momento desta rpidatransformao.

    De um lado, surgem as vrias "Histrias de Manchester" escritas durante asegunda metade do sculo dezenove e primeira metade do sculo vinte,comparveis produo dos memorialistas paulistanos em suas crnicas aopassado em rpida desapario da cidade. Tais "histrias" oferecem umainteressante imagem no apenas da cidade em si, mas das maneiras pelas quaiso passado de Manchester foi reconstrudo atravs do discurso histrico paraestabelecer sua antigidade e importncia. Os memorialistas registram os traosdo passado sendo destrudos e estabelecem que, simultaneamente, esta era asina do progresso, imposto desde as suas origens. Assim, a industriosidade doshabitantes de Manchester j estaria dada pela atuao dos conquistadoresromanas, e a destruio se justificaria pois "all has been swept away to make wayfor more modern requirements and improvements". (1)

    Do mesmo modo que a industriosidade dos paulistas pode ser recuada at seupassado remoto, ou seja, para a epopia dos bandeirantes com seu espritoempreendedor (2), as razes da cidade de Manchester, certamente mais remotasque as de So Paulo, tornam-se um problema para os historiadores positivistas dosculo dezenove. Mesmo que insistissem que essa razes fossem "to antigasquanto as parisienses", Manchester no possua a continuidade das instituiesromanas ou runas do passado fsicas e observveis. Conforme E.V. Walter, aspequenas runas de um forte romano (a cidade foi um entreposto entre as maisimportantes ento cidades de Chester e York) tm uma importncia subjetivaenquanto fundao da cidade. (3)Elas fornecem um sentido de locuscontinuamente explorado durante as transformaes e demolies dos anos 70, eno muito diverso do que alimenta a revitalizao do centro paulistano.

    Quando o passado mtico recebe uma importncia histrica, regenera-se velhosprdios e reas ao mesmo tempo em que se busca negar o carter ativo dacidade como centro comercial e financeiro, buscando um passado de mododomesticado. O passado industrial adquire os novos tons de passado desejadonostlgico, exatamente no momento em que a cidade de Manchester entra em umprocesso de desindustrializao; ento seu patrimnio vitoriano adquire a fora,pois o mais evidente de seu traado urbano.(4)

    Matadouro Municipal da Vila Mariana, So Paulo. Foto Nels

    Catedral e Praa da S, So Paulo. Foto Nelson Kon

    Estao Julio Prestes, So Paulo. Foto Nelson Kon

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    A riqueza visual da construo arquitetural da cidade, com o exemplo dograndioso arquitetural fazem com que os contemporneos vitorianos afirmem que,desde Veneza, nada semelhante fra construdo. Somente um vitoriano poderiater feito tal afirmativa. (5)A produo arquitetural de ento toda baseada norevivalgtico e clssico, sendo que o conhecimento do passado vem comoustificativa para que seja reproduzido buscando um estilo que faa jus ao queocorreu, e pode ser superado apenas tecnologicamente mas nunca em termosartsticos; assim, enquanto as cincias olham para a frente (engenharia,manufatura) as artes lanam para trs seu olhar, assim como a educao e areligio, tendo no passado recriado pela arte e pela literatura seu refgio, umpassado que no estava em contradio com a modernizao experenciada poisera j inexistente, assumido por uma elite que via no crescimento das massasuma fora assustadora.

    Durante os anos 70, a admirao pela vitoriana, (artefatos, prdios e roupas emmeno ao quase um sculo de domnio da Rainha Vitria) torna-se parte dogosto e das polticas urbanas oficiais inglesas. O progresso significava adestruio dos cenrios do passado. A cidade desde ento vivenciou um usointegrado dos prdios do passado, para alm do mero fachadismo. No momentoatual, enfrenta novo desafio, aps a exploso de uma bomba por ao do IRA(Exrcito revolucionrio da Irlanda) em 1996: novamente o centro da cidade foco de um planejamento que envolve o poder pblico e o capital particular, sendoque as decises, atentamente acompanhadas pela populao em debatespblicos televisionados, levou a um concurso oficial para determinar como seriamfeitos os futuros trabalhos de reparao, e por quem. Desta vez, os imperativoscomerciais que argumentavam pela construo de shopping-centerse prdios de

    escritrios que descaracterizavam antigos edifcios como Hall foram combatidaspor sociedades civis e grupos de historiadores locais.

    A cidade de Dublin, capital do Eire, traz um novo elemento a esse quadro. Trata-se de um exemplo de eficiente revitalizao de uma rea at ento ameaada dedestruio. Dublin busca na administrao de seu espao pblico prezar aindependncia que goza no apenas do domnio ingls, mas ligar-se amovimentos internacionalizados experenciados nas cidades americanas.

    O centro desta cidade, regio conhecida com "Temple Bar" (um quarteiro decerca de 900m), era uma rea centenria cujas caractersticas mais marcantesdatam dos sculos dezessete e dezoito, sobrepondo-se a camadas de construoanteriores. No final dos anos 1980, a rea fra destinada demolio pois sualocalizao central permitiria que fosse utilizada como um terminal de transporte

    ferrovirio e rodovirio. Esta determinao teve um efeito imprevisto: a queda nospreos dos aluguis da rea assim condenada atraiu a instalao de estdios deartistas, gravadoras independentes, galpes de ensaios para msicos,pubs,galerias, brechs, livrarias e lojas de discos, etc. Os arquitetos responsveis peloplanejamento de revitalizao da rea souberam usar esta vitalidade insuspeita eprogressivamente transformaram a regio em um quarteiro cultural ehabitacional. Atualmente, o fluxo proporcionado pelo comrcio, pela freqncia deturistas e pela circulao das pessoas fez com que a regio fosse considerada umdos centros mais dinmicos dentre as cidades europias.

    A rea de Temple Bar parece ser um exemplo evidente de que no apenas ascidades fornecem o fluxo de mercados e pessoas necessrios para sustentar aproduo cultural, mas de como a cultura possui capacidade de gerar esta fora.Tal cultura no necessariamente aquela chamada "alta cultura" (vista como um

    item de qualidade de vida para as elites urbanas), mas igualmente a cultura doconsumo de livros, de clubes noturnos, de restaurantes, de msica popular.Distante do negativismo contido no processo denominado "gentrificao", com aexpulso das populaes locais em benefcio de uma elite com capacidade deconsumo elevada (6), este conceito prev uma cultura que no se d apenas demodo institucionalizado, mas acontece dentro do existir cotidiano.

    A produo cultural pde fortalecer a prpria economia da cidade e de certamaneira atuou at mesmo na melhora da imagem da cidade e do orgulho cvico aela associado. O arquiteto John Montgomery, um dos responsveis pelaimplantao da regenerao desta rea, indica na aliana entre uma renovaoculturalmente dirigida, que alia desenvolvimento econmico e urbanismo, a chavepara este bem sucedido experimento urbano. (7)

    Dentre os pontos por ele estabelecidos para este resultado estavam amanuteno de parte das caractersticas da rea, para que esta no valorizasserepentinamente; o estabelecimento da diversidade de usos e freqncias namoradia, compras, lazer e cultura, para atrair atividades comerciais e culturais queno precisassem de muito dinheiro para serem consumidas; a unio de umacultura popular jovem com a atrao de turistas e visitantes (os centros quebuscam expurgar os interesses medianos acabam por se esvaziar devido a seu

    Estao da Luz e imediaes, So Paulo, 1900. Foto Acerv

    Avenida Paulista, So Paulo, 1911. Foto Acervo FPHESP

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    especfico, uma educao especfica aliada ao tempo de lazer para tal fruio.(11)Em suma, se o patrimnio produzido coletivamente, necessrio garantirque haja igualmente uma fruio coletiva dele.

    Em meio a todas estas consideraes, importante lembrar que os prdios eimveis tombados pelo patrimnio tm importncia no estabelecimento de marcasdo passado e de imagens que se busca a ele associar. O passado porm nopode se manterper seou como um valor intrnseco, ainda mais se no houverreferncia de que histria est sendo abordada e sim uma mera recuperao deprdios e fachadas. A criao de lugares de memria deve convidar tambm osgrupos minoritrios a reivindicar o reconhecimento de seus passados e tradies,

    sem esquecer que as polticas oficiais culturais podem manipular a memriacoletiva que elas afirmam preservar.

    Consideraes finais

    As "relquias" do passado que chegam at ns, sejam artefatos, sejam edifcios,so um dos modos de conhecimento do passado (paralelo histria e memria). Mas as relquias so resduos de processos , mais permanentes doque a atividade que as produziu, um modo a ser revivido de um passado que nopode ser observado ou experenciado. Pases cuja prtica de preservao bemestabelecida (como nos pases da Europa e os EUA) vivenciam hoje o "revisitar opassado" quase que habitual, em que a nostalgia d o carter constante, em queos prdios antigos conferem credibilidade (e valor econmico) a reas da cidade.Na re-apresentao do passado, existe no apenas a afirmao de uma

    continuidade ou identidade entre momentos dspares, mas tambm esta busca deuma passado tangvel. Deste modo, este movimento oscila entre a domesticaodo diferente e a reinterpretao para dentro dos prprios valores e a "fruio" dopassado como intangvel e imutvel, numa compreenso paralisada e a-histricado passado.

    O objetivo em brevemente retratar estes trs locais (Manchester, Dublin e SoPaulo) no o de sugerir uma adaptabilidade dos esquemas estrangeiros para osesquemas nacionais. Uma regio no pode servir de exemplo imediato para outra,e os historiadores e urbanistas esto cientes que procurar adaptar a qualquercusto idias estrangeiras resultou em parte nos danos que por ora buscamcontrolar. No obstante, h um aprendizado nas experincias de uma realidadedas cidades em tempos de globalizao que no pode ser negado. Alm disso,experincias urbanas bem sucedidas no tendem, necessariamente,

    paralisao das transformaes, como se definitivamente acabadas. Evitar aestagnao fundamental, pois a contnua adaptao pr-requisito para que elese mantenha em "funcionamento".

    Exatamente por isso exige-se um tratamento mais racional e informado dopassado histrico para que este no seja substitudo por outros imperativos doconsumo e da museificao turstica, e nos vejamos dentro de duas ou trsdcadas em meio a uma nova onda de demolies em nome de um novoconceito, que substitua o de "histrico" em seu altar. O sucesso da preservao insitu, assim, depende de perceber que o espao urbano, se apreendido do pontode vista museogrfico, deve ser este passado dinmico, em que o novo uso noelimina o testemunho do antigo uso.

    O patrimnio urbano tende a reduzir a memria memria da histria oficial, no

    levando em conta a experincia de fruio dos espaos urbanos que tm a vercom a histrica local ou mesmo com a vivncia pessoal do habitante da cidadeque confere outros significados aos espaos em questo. necessrio atingireste "espao imaginado" que vem justamente para desobjetificar este espaoturstico pensado com homogeneizao do passado - e do presente.

    Falar em "revitalizar e "revalorizar" o espao pblico eqivale a acreditar que esteespao um dado meramente fsico. Ao procurar investir em monumentos paracelebrar seu valor histrico muitas vezes declarado como indiscutvel (quando naverdade est se fazendo referncia apenas a um valor esttico) se est lidando,muitas vezes, com a verso institucionalizada da histria e do acontecimentoenquanto mdulo em si. (12)Assim o perigo da revitalizao justificada pelahistria no est na historia no estar mais presente (e assim se estaria usandoum passado morto), mas em atribuir a este passado um carter de verdade quefunciona como justificativa em si. Apenas o exerccio do passado reconhecidocomo construo pode, efetivamente, levar a uma definio complexa depatrimnio e devolver histria e ao trabalho com o passado fora motriz que eleno deixou de ter.

    O patrimnio tem sido historicizado com uma tradio cultural; como um discursodos projetos polticos das instituies por ele responsveis. Poulot advoga que a

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    idia de patrimnio seja vista tambm como a construo de um saber, que lidacom representaes que visam ser legtimas. Assim, o patrimnio para este autorno seria uma "coisa", mas uma relao; apenas porque o passado em si existeno significa que tenhamos a possibilidade de nele nos reconhecermos. Opatrimnio urbano , igualmente, esta relao entre os indcios do passado (seusobjetos e artefatos) e a vida social, sendo que a representao de uma culturaassim dada vital para sua relao com o futuro.

    Notas

    (*)O presente texto a segunda parte de artigo iniciado em "Texto Especial 007"

    (1)SWINDELLS, T. Manchester Streets and Manchester men. Manchester: J.E. Cornish Ltd., 1906

    (2)BREFE, Ana Claudia F. Discurso memorialista em So Paulo. Tese mestrado. Campinas, Unicamp, 1993

    (3)WALTER, E V. The sense of ruins. Manchester: University of Manchester, 1976

    (4) no perodo vitoriano que esta cidade se projeta para o mundo, poderosa e ativa, e simultaneamente acidade industrial da poluio, das pssimas condies de habitao da populao operria, da imigraoe do crescimento urbano desordenados, em que o traado urbano, conforme disse ENGELS (1958), podeapresentar prdios pblicos como signos de riqueza (como nos grandes armazns para produtos

    atingindo 6 andares) e do comrcio rico atrs dos quais se escondem os "cortios

    (5)STEWART, 1956

    (6)ZUKIN, S. Loft Living: culture and capital in urban change, London: Radius,1988

    (7)MONTGOMERY, John "The Story of Temple Bar: creating Dublins cultural quarter"; Planning Practiceand Research, vol 10, n 2, 1995

    (8)JACOBS, Jane. The Death and Life of Great American Cities, London: Pelican Books, 1959

    (9)RODRIGUES, Marly.Alegorias do Passado - a instituio do patrimnio em So Paulo, 1969-1987, tesedoutorado, Campinas, Unicamp, 1994

    (10)"Programa de requalificao urbana e funcional do centro de So Paulo; Pr-Centro", Dirio Oficial domunicpio de So Paulo, 15.07.1993, suplemento.

    (11)ARANTES, Antonio Augusto (org.). Produzindo o Passado. So Paulo: Brasiliense, 1984

    (12)MENEGUELLO, Cristina. "Cidade sofisticada ou cidade impossvel? Impasses no diagnstico dosespaos urbanos ps-modernos". Cadernos de Metodologia e Tcnica de Pesquisa, n 5, UniversidadeEstadual de Maring, 1994

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