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2⁰ Simpósio Internacional de História das Religiões
XV Simpósio Nacional de História das Religiões
ABHR 2016
A experiência religiosa: uma visão daquele que observa
Maria Goretti Lanna1
Uma dificuldade se apresentou na pesquisa que realizei durante o curso de
mestrado em Ciência da Religião, em um povoado denominado Santa Montanha, no
município de Guiricema, no interior de Minas Gerais, a partir das diversas entrevistas
com os moradores: uma grande quantidade de relatos sobre experiências vividas no
contato com o sagrado. Transcrevo abaixo parte de uma das entrevistas em que uma
moradora da montanha diz ter recebido um sinal, enviado por Nossa Senhora, para
que ela soubesse que foi escolhida como um de seus apóstolos:
Orlandina: Eu estava na minha casa, estava olhando o sol. O sol ia sair às sete horas.
Só eu que deu curiosidade de olhar. Mais ninguém. Eu fui ver se via o sinal no sol.
Começou o sol a sair, formou uma bola azul. Desceu uma nuvem vermelha,
avermelhada até a terra. E eu no meio daquela nuvem. Neste instante, eu tomei um
arranco, que eu estava na porta da sala e eu fui parar lá dentro da cozinha. As
meninas me perguntaram: - “Mãe, o que a senhora viu?” Elas sentiu eu diferente. Aí
eu não falei nada, que eu estava toda descontrolada. Eu não podia falar. Perdi a fala.
Você acredita, menina, que aquele calor ficou dentro do meu coração? Quase que eu
morri. Não é do sol, era uma nuvem vermelha que desceu. O sol virou uma bola azul
e desceu aquela nuvem de fogo, fogo, fogo. Eu estava no meio da nuvem, a nuvem
me pegou. Me pegou o coração, não queimou o corpo, não. Desceu no mundo todo.
Lá perto da minha casa todinha. Naquela vargem toda. Não é nuvem, é como nuvem,
1 Mestra e doutoranda em Ciência da Religião. Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: [email protected]. Orientador: Prof. Dr. Volney J. Berkenbrock.
mas não pegou fogo em nada. Só eu senti. Entendeu? Da minha casa tem o outro
lado, não tem? A gente enxergava só a porteira da casa da Efigênia. Aquela nuvem
desceu assim igual a uma fumaça. Aí eu vi o sinal que estava no sol. Eu, quando eu vi
aquilo, gritei: - “Me valha, minha Nossa Senhora da Aparecida!” Este calor, o calor do
sol ficou dentro do meu coração, queimava igual fogo.
Na análise destes relatos, me perguntava qual visão sobre o mundo que
pesquisava deveria prevalecer, uma vez que diversas abordagens mostravam
diferenças significativas e muitas vezes uma se mostrava contraposta à outra. Mas, ao
aprofundar minhas leituras sobre diversos autores, percebi que esta era uma questão
que fazia parte do pensamento de vários antropólogos. E pude constatar que muitos
deles se preocupavam com a visão daquele que vive a experiência como uma questão
que necessitava ser abordada de frente e não apenas relativizada como algo que
pudesse ser enquadrado em uma explicação racional de fatos não corriqueiros à luz da
ciência.
Um texto de Rita Segato, em que problematiza o que chama de paradoxo do
relativismo e discute o discurso racional da antropologia frente ao sagrado (SEGATO,
1992, p. 114-15), me chamou especialmente a atenção. Para Segato, há um paradoxo
quando afirmamos que a relativização pretende compreender de dentro e em seus
próprios termos uma crença nativa que nos é estranha, enquanto o nativo adere de
maneira absoluta a esta crença e não considera a possibilidade de que ela possa ser
colocada em termos relativos. O relativismo, segundo diz, encontra sua fronteira mais
intransponível na maneira em que o nativo experimenta o seu absoluto, não enquanto
proposição, mas enquanto experiência vivida na interioridade. Uma excessiva
antropologização do mundo, que leva a optar por aspectos que lhe interessam, tirando
a visibilidade de outros e ocultando-lhes seu status essencial, distorce os dados, “como
se os elementos não cobertos pela pergunta antropológica não existissem” (SEGATO,
1992, p. 126). Ao citar Durkheim, esta autora diz que para ele sagrado e profano são as
dimensões da experiência mutuamente mais intransponíveis, mais irredutíveis, mas
que, apesar de reconhecer este fato, este autor dá início a um programa de exorcizar a
intransponibilidade destas categorias, que, segundo ele, é idiossincrática. Conforme diz
Segato, isto ocorre como um movimento natural da cultura, da impossibilidade
humana de lidar com o único, com a singularidade irredutível da experiência.
O cosmos, até agora misterioso, sagrado, incompreensível, vedado ao olhar humano
direto e irreverente, passa a ser visto como recortado pelas mesmas linhas que
organizam e delimitam a vida em sociedade. Um se transforma em mapa, espelho,
metáfora, transposição, significado da outra. (SEGATO, 1992, p. 129)
Para Goody, atos simbólicos são definidos “em oposição aos atos racionais e
constituem uma categoria residual à qual é atribuído um significado pelo observador a
fim de fazer sentido de um comportamento que, se não fosse isso, seria irracional,
pseudorracional, ou não racional” (GOODY, 2012). Mas Segato diz que da mesma
forma que só se enxerga coerência onde há uma relação significativa entre o universo
da interação social e o universo do sagrado, deixando de levar em consideração
aspectos que não possam ser traduzidos desta forma, diz também que estes aspectos
que não se adequam à razão ocidental podem passar despercebidos ou mesmo
esquecidos, levando a desprezar detalhes que não se enquadram na análise das
ciências sociais, com a finalidade de instaurar um sentido ao ato irracional de crer.
Campos leva em consideração que
A investigação da verdadeira consciência nativa pode ser impossível de ser
investigada, mas, por outro lado, toda a dinâmica do processo criativo pelo qual os
indivíduos praticam a consciência de si continua e deve ser investigada pelos
antropólogos. É nesse sentido que a atenção à negociação dos significados e do que é
verdadeiro em relatos sobre aparições tornam-se relevantes. (CAMPOS, 2003, p. 56)
Esta autora diz que uma versão é considerada correta ou verdadeira não
porque é apenas verdadeira, mas porque ela nos fornece muito mais: compreensão,
informação e ordenação para todo um sistema. Citando Goodman, ela considera que a
verdade é composta por metáforas, representações, modelos e expressões e que a
construção da realidade, em uma situação de conflito, pode ter os seus significados
negociados. Mas Segato, ao discorrer sobre o mito, se refere à mudança de valor que
este termo representa ao longo do tempo, quando da época arcaica para a helenística
passa a significar um relato que não se sabe verdadeiro, ou pelo menos, de verdade
duvidosa, obrigando à tentativa de descobrir qual a porção de verdade ele encerra. A
partir desta época, surge uma pluralidade de programas de verdade que reflete o
sentimento de desconforto e insatisfação conhecida dos gregos. O mito passa a ser
definido não como aquilo que é falso, mas como uma verdade que foi deformada,
enquanto que para os filósofos é considerado como a verdade em sentido figurado,
como alegoria. Segundo diz, os variados âmbitos enfrentados pela razão ocidental
frente à experiência do sagrado, no mundo onde domina a intelecção, leva a
experiência a ser interpretada em um processo de simulação que a substitui por uma
estrutura de ideias, tornando o vivido redundante e desnecessário, retirando sua
vitalidade em troca de sua inteligibilidade.
Tudo se passa como se, a partir da grande divisão platônica, a vontade de verdade
tivesse sua própria história, que não é a das verdades que constrangem: história das
funções e posições do sujeito cognoscente, história dos investimentos materiais,
técnicos, instrumentais do conhecimento. (FOUCAULT, 2012, p. 16)
Foucault diz que a vontade de verdade, que considera um dos sistemas de
exclusão do discurso, mascara o discurso verdadeiro e que a divisão entre discurso
verdadeiro e falso, que surgiu entre Hesíodo e Platão, fez com que a verdade se
deslocasse do ato ritualizado, de enunciação, para o próprio enunciado. Desta forma, a
vontade de verdade é reforçada e reconduzida pelo modo como o saber é aplicado,
distribuído, valorizado, repartido e mesmo atribuído. “No interior de seus limites, cada
disciplina reconhece proposições verdadeiras e falsas; mas ela repele, para fora de
suas margens, toda uma teratologia do saber” (FOUCAULT, 2012, p. 30), pois nem
todas as regiões do discurso são igualmente abertas e penetráveis, sendo algumas
altamente proibidas. Segundo Segato, enquanto o mito fixa as experiências
projetando-as a um cosmos animado e vivo e o rito leva a reviver o acordo misterioso
entre a experiência humana e a experiência do cosmos, a ciência transforma o cosmos
em significante “instaurando a compreensão, entendida meramente como intelecção,
como o modo que relaciona o contingente ao permanente” SEGATO, 1992, p. 130).
Para Foucault, há em nossa sociedade uma logofobia, um temor surdo de
acontecimentos que mostram o que há de violento, descontínuo, de desordem, de
perigoso, do grande zumbido incessante e desordenado do discurso, temor que poderá
ser apagado pela análise de suas condições, seus jogos e seus efeitos. Assim, diz que é
necessário optar por três grandes decisões, quais sejam: “questionar nossa vontade de
verdade; restituir ao discurso seu caráter de acontecimento; suspender, enfim a
soberania do significante” (FOUCAULT, 2012, p. 48).
O que Segato problematiza sobre o discurso racional da antropologia frente ao
sagrado e que encontra correspondência no pensamento de Foucault, é a necessidade
de afirmar a diferença e não exorcizá-la; não pretender resolvê-la, mas reconhecer a
existência do exótico, do irredutível, “voltando ao assombro radical e à literalidade das
descrições”, o que não significa, ressalta, uma volta ao pré-racional, mas um
reconhecimento ativo do caráter inesgotável e material dos símbolos, em uma opção
que “reconheça as dimensões da diferença justamente porque esgota a compreensão
e passa pela reflexão”. (SEGATO, 1992, p. 133). Entre as duas maneiras de se enfrentar
a diferença, uma levando em consideração sua afirmação, o que implicaria
simplesmente em “reconhecer a possibilidade de cada grupo humano de aderir a um
conjunto e valores particulares e habitar um mundo construído com base nas
representações que lhe são próprias” (SEGATO, 1992, p. 118) e o outro sentido que
seria o de transformar a diferença em elaboração racional, em uma atitude intelectual
para resolver o problema que a diferença coloca, esta autora levanta uma terceira
possibilidade que se situaria entre as duas, baseando-se em um texto de Luiz Eduardo
Soares. Assim, entre a focalização científica no permanente, no invariável, no regular,
no não-esperado e a incontrolável contingência dos eventos (SOARES, 1998, p. 9))
estaria o reconhecimento da impossibilidade objetiva de obter uma resposta ou uma
conclusão à diferença entre a razão e a experiência, deixando de esvaziar esta última
em nossa vida cotidiana, evitando substituí-la por uma símile ideacional que torna a
experiência redundante e assim desnecessária. (SEGATO, 1992)
... o próprio reconhecimento das diferenças já pressupõe a identificação de um
horizonte universal humano, de maneira que oscilamos permanentemente entre
ambas as constatações. O caráter relativo das verdades e a existência de universais
se constituem, assim, em polos de uma aporia que coexistem numa relação
agonística. Reconhecer esta aporia nos permitiria, então, lidar com a diferença com a
devida consciência da qualidade provisória e precária de nossos patamares de
compreensão. (SEGATO, 1992, p. 118)
Esta necessidade de se admitir a experiência sem tentar explicá-la ou
enquadrá-la em algum paradigma à luz das ciências sociais é reconhecida por Foucault
quando diz que os códigos fundamentais de uma cultura, que regem também a sua
linguagem, fixam, de um lado, as ordens empíricas com que ela terá de lidar e em que
se há de encontrar; de outro, as teorias científicas e as teorias de alguns filósofos
explicam porque há, em geral, uma ordem, qual sua lei e princípio e porque esta
ordem é estabelecida em preferência a qualquer outra. Mas, diz ele, entre estes dois
lados, há uma zona intermediária, mais obscura, menos suscetível à análise, que
liberta-se para mostrar que essas ordens talvez não sejam as melhores e nem as únicas
possíveis.
De maneira que esta região mediana, na medida em que manifesta os modos de ser
da ordem, pode apresentar-se-nos como a mais fundamental: anterior às palavras, às
percepções e aos gestos que são dados como capazes de traduzirem com maior ou
menor exatidão ou felicidade (eis porque esta experiência da ordem, no seu ser
maciço e primeiro desempenha sempre um papel crítico); mais sólida, mais arcaica,
menos duvidosa, sempre mais verdadeira do que as teorias que tentam dar-lhes uma
forma explícita, uma aplicação exaustiva ou pensamento filosófico. Assim, em toda a
cultura, entre o uso do que se poderia chamar os códigos ordenadores e as reflexões
sobre a ordem, há a experiência pura da ordem e dos seus modos de ser.
(FOUCAULT, 1966, p. 8)
Radcliffe-Brown, citando Boas, diz que, ao se comparar a vida social de diversos
povos constata-se que os fundamentos do desenvolvimento cultural são notadamente
uniformes e que a mesma ideia coexiste em povos que não possuem qualquer conexão
histórica. Esta uniformidade é uma das tarefas importantes da etnologia, qual seja, a
investigação das leis que governam a vida social, pois o estudo destes fenômenos
mostra que “a mente humana se desenvolve de acordo com as mesmas leis por toda
parte” (RADCLIFFE-BROWN). Ele propõe usar dois métodos, combinados e ajustados, a
história e o método comparativo, para que se possa alcançar a compreensão real do
desenvolvimento da sociedade humana: a história, como relato autêntico de uma
determinada região e durante certo período de tempo e que não fornece
generalizações e o método comparativo, que não fornece histórias particulares,
“sendo um estudo generalizador das características das sociedades humanas”. Mas
Levi-Strauss se contrapõe ao método comparativo de Radcliffe-Brown ao dizer que
comparar dados tão próximos no plano da história ou da geografia não permite a
certeza de se lidar com fenômenos distintos, ou “são demasiadamente heterogêneos e
o confronto se torna ilegítimo, porque aproxima coisas que não se podem comparar”
(LÉVI-STRAUSS, 1980, p. 215). Para responder à questão da universalidade das regras
existentes nas sociedades humanas, Lévi-Strauss se pergunta se os etnólogos, à sua
maneira, não interpretam os costumes e as instituições das culturas ditas primitivas
segundo seus próprios valores. Cita como exemplo o problema do totemismo, cuja
interpretação diz surgir da projeção negativa de um medo incontrolável do sagrado do
qual o observador não conseguiu se desligar: “Assim, a teoria do totemismo constituiu-
se para nós e não em si, e nada garante que, em suas formas atuais, não proceda ainda
de uma ilusão semelhante” (LÉVI-STRAUSS, 1980, p. 221). Evans-Pritchard também
alerta para o fato de que o antropólogo, ao interpretar as culturas que observa, está
sempre comparando-as com a sua própria. Assim, diz que não se pode interpretar
civilizações primitivas a partir da mentalidade do pesquisador civilizado, pois sua
mentalidade é produto de diferentes circunstâncias.
Nos estudos comparativos o que se compara não são coisas em si, mas algumas de
suas características particulares. Caso se deseje realizar uma comparação sociológica
de cultos aos ancestrais em um determinado número de sociedades distintas, o que
se compara são conjuntos de relações estruturais entre pessoas. Começa-se
necessariamente, portanto, por abstrair essas relações em cada sociedade dos seus
modos particulares de expressão cultural. De outro modo, não se poderia fazer a
comparação. O que se está fazendo é isolar certos problemas de um determinado
tipo para estudo. Ao fazê-lo não se estabelece uma distinção entre dois tipos
diferentes de coisas – sociedade e cultura não são entidades – mas tipos diferentes
de abstração. (EVANS-PRITCHARD, 1980, p. 223)
Para Bohannan, o maior problema do etnógrafo consiste na tradução exata dos
dados de um contexto cultural para outro sem que haja deturpações de fatos ou
interpretações, enquanto o antropólogo social necessita, mais que compreender as
concepções coletivas das sociedades que pesquisa, criar uma teoria analítica de forma
a proporcionar uma compreensão tanto de teorias coletivas como dos fatos sociais
observados. A Antropologia, segundo ele, possui dois tipos de significados:
De um lado coleta, classifica e analisa o conhecimento acerca dos seres humanos,
como vivem e o que fazem. De outro lado, questiona algumas das ideias mais
fundamentais do mundo contemporâneo, proporciona uma visão comparativa na
qual se apoia e nos torna mais conscientes do que somos através do confronto com o
que não somos. (BOHANNAN, 1980)
Segato diz que, em geral, o relativismo trata destas duas dimensões da
diferença, uma que se refere ao conceito, outra à atividade do conhecer. A primeira
delas permite reconhecer a possibilidade de cada grupo humano de aderir a um
conjunto de valores particulares com representações próprias; a outra, atitude
intelectual, consiste na elaboração de um método que visa resolver o problema que a
diferença coloca. O que esta autora diz, ao citar diversos autores, entre eles Geertz e
Malinowski, é que, apesar da linguagem e estratégias interpretativas diferentes,
“atribuir significados ao comportamento nativo constitui a base da prática dos
antropólogos das mais diversas posturas” (SEGATO, 1992, p. 120). Assim, cita Leach,
que contrapõe a crença do nascimento virgem entre os melanésios à mesma crença no
mito cristão e Spiro, que afirma que esta crença decorre do fato de que os melanésios
desconhecem o fundamento biológico da procriação. Para Segato, ambos os autores
resolvem o problema apontando para algo que está fora da experiência vivida, neste
caso, a crença a ser interpretada. “Algo que está fora quer dizer algo que, sem ser
alheio ao mundo cognoscitivo do nativo, deve pertencer a outra ordem fatual que a
ação a ser interpretada, justamente por gozar de valor interpretativo”. (SEGATO, 1992,
p. 120)
O pensamento de Bohannan se aproxima dos antropólogos citados por Segato,
quando diz que a essência da antropologia, além da auto-investigação, visa à
investigação do outro, dos povos diferentes e que há muito é considerada uma ciência
unificada, unificação que advém das outras disciplinas que definem
antropologicamente o homem. À medida em que as outras ciências se tornam mais
complexas, a antropologia necessita desenvolver um conjunto de ideias de longo
alcance, mas simplificadoras, pois a vida moderna é plena de ideias simplificadoras. A
história da ciência social, ao contrário da história da ciência física (que diz ser assunto
que pode ser encarado sem paixão), é a história da crença a respeito da família, do
crime, da emoção e uma vez entendida torna-se banal: uma vez superada, parece
boba. Bohannan diz que Tocqueville, pensador, político e historiador francês, jamais
poderia ter escrito sobre a América se fosse americano. “Dificilmente seria um peixe
que descobriria sobre a existência da água”. Assim, ele define a antropologia como
uma atitude que consiste em desenvolver uma visão estereoscópica das atividades e
ideias humanas de forma a traduzir ideias chaves organizadoras “de um idioma cultural
para a linguagem de uma outra cultura, usualmente a nossa, tornando-as, até certo
ponto, inteligíveis a todos” (BOHANNAN, 1980, p. 256-257). Esta mesma imagem de
um peixe em um aquário é também usada pelos físicos Stephen Hawking e Leonard
Mlodinow em artigo em que contam que a Câmara Municipal de Monza, na Itália,
proibiu aos donos de peixes-dourados de mantê-los em aquários curvos. Esta proibição
se fundamentaria no fato de que o lado curvo dos aquários daria uma visão distorcida
da realidade, sendo, por isto, cruel. A ideia desenvolvida por estes físicos, ao contrário
do que diz Bohannan, abre a possibilidade a um universo misterioso e apaixonante e
nunca banal, e começa com a pergunta:
... como sabemos que a realidade percebida é verdadeira? O peixe-dourado vê uma
versão da realidade diferente da nossa, mas de que forma vamos saber se é menos
real? Até onde sabemos, também temos a possibilidade de passar toda a nossa vida
olhando para o mundo através de uma lente distorcida. (HAWKING & MLODINOW,
2010, p. 25)
Ao falar sobre a famosa Teoria do Tudo, estes cientistas dizem que a busca por
uma teoria unificada que explica cada aspecto da realidade em um conjunto completo
e consistente de leis fundamentais da Natureza parece levar não a uma teoria única,
mas “a uma família de teorias interconectadas; cada uma delas descreve a própria
versão da realidade, como se visse o Universo através do próprio aquário” (HAWKING &
MLODINOW, 2010, p. 25). Da mesma forma que Berger e Luckmann, em sua teoria da
construção social da realidade, compreendem que o conceito de realidade depende da
mente da pessoa que a percebe. O mundo conhecido é construído pela mente humana
e moldado pela estrutura interpretativa do nosso cérebro: “Este ponto de vista talvez
pareça difícil de aceitar, mas não de entender. Não há maneira de retirar o observador
– ou seja, nós mesmos – da nossa percepção do mundo.” (HAWKING & MLODINOW,
2010, p. 26) Com o avanço da física quântica, dizem, partículas não têm posição
definida, objetos individuais não têm sequer uma posição independente, passado e
futuro são indefinidos e existem como um espectro de possibilidades e nem mesmo o
Universo como um todo tem história ou passado únicos. Assim, concluem não existir
nem quadro nem conceito que seja independente de uma teoria da realidade.
Em vez disso, adotamos a visão que chamamos de realismo dependente de modelo:
a ideia de que uma teoria física ou representação do mundo é um modelo
(geralmente de natureza matemática) e um conjunto de regras que conectam os
elementos do modelo a observações. De acordo com o realismo dependente de
modelo, não faz sentido perguntar se um modelo é real, e sim apenas se ele está de
acordo com a observação. Se dois modelos estiverem de acordo com a observação,
nenhum deles será considerado mais real que o outro. Uma pessoa pode usar
qualquer modelo que seja mais conveniente na situação considerada. (HAWKING &
MLODINOW, 2010, p. 26)
Desta forma, o realismo dependente do modelo pode ser aplicado não só a
modelos científicos, mas também aos modelos mentais, conscientes e subconscientes
que criamos para interpretar e compreender o mundo em que vivemos no dia a dia.
O que Segato propõe como um terceiro caminho para a antropologia, que
parece coincidir em vários aspectos com a teoria destes físicos, levaria a reconhecer e
afirmar a diferença sem exorcizá-la, descrevendo-a de modo a entendê-la sob a via
analítica e racional, mas tendo como finalidade mostrar a variedade do mundo e os
aspectos impossíveis de convertibilidade, os componentes que se mostram irredutíveis
ao nosso olhar. Uma etnografia, segundo diz, necessita, frente à diferença, não
resolvê-la, mas exibi-la, evitando “transformar o ato em significado senão que saiba
permanecer no não resolvido, no nível literal”.
Buber diz que “o experimentador não participa do mundo: a experiência se
realiza nele e não entre ele e o mundo. O mundo não toma parte da experiência”.
(BUBER, 1974. p. 6) Como mostra Orlandina quando se viu envolvida pelo fogo vindo
do sol: “Só eu que vi, só eu que senti. Era para mim. Para quem você acha que era?
Mas para quê você acha que era?”, o mundo da experiência só pode ser observado de
maneira a ser compreendido como uma realidade própria e aceito em igualdade de
condições se se admitir que nenhuma teoria consegue descrever cada aspecto da
realidade, e que talvez precisemos empregar diferentes teorias em diferentes
situações, cada uma vista através de sua própria lente, de seu próprio aquário. Como
dizem Hawking e Mlodinow, que reconhecem a impossibilidade do observador de se
retirar do mundo de onde observa, Segato também propõe uma terceira possibilidade,
a de admitir a visão de mundo sob a perspectiva do nativo, daquele que vive a
experiência, como uma diversidade aceitável, uma realidade com sua própria versão
em que nenhuma delas seja mais real que qualquer outra.
Contudo, não se trata de dar uma volta ao fenomenismo cru dos folcloristas do
passado nem do exotismo obscurantista dos cronistas e exploradores, mas de uma
terceira saída em direção a uma etnografia que reconheça as dimensões da diferença
justamente porque esgota a compreensão e passa pela reflexão. Devemos propiciar
uma volta ao assombro, ao estranhamento radical, que só se consegue se nós
mesmos permanecemos e nos reconhecemos nativos. Não é a nossa tarefa, como
antropólogos, fazer cair os mitos por terra senão, justamente, mitologizar, dar o seu
lugar insubstituível ao mito, reencantar o mundo. (SEGATO, 1992, p. 133)
A universalidade dos mesmos temas, das mesmas estruturas, dos mesmos
rituais que acompanham as histórias das religiões, as tradições literárias e as
mitologias que recobrem territórios da África à América, passando pela Europa e Ásia,
diz Durand, eram compreendidas como difusão pelas conquistas e correntes
comerciais, mas este pensamento não mais se mantém. Os pontos de concordância do
“homem tradicional ocidental com o homem tradicional indiano, mongol, africano ou
bérbere [...] escapam à história ou mesmo à arqueologia do saber”, sendo idênticos e
nunca progridem. (DURAND, 2008, p. 63)
Assim, o que dava a ilusão de ter sido transmitido em uma tradição a todo o gênero
humano, se revelava, em última análise, como que ligado à materialidade – e não
somente às estruturas racionais e vazias – do homem primordial. (DURAND, 2008, p.
63)
Este autor diz que nos últimos séculos ocorreu um progresso da coisificação em
que o pensamento ocidental se desvia da figura do homem e se volta para o mundo
das coisas, o que vem a provocar sua limitação ou redução ao universo dos
fenômenos. Segundo diz, o conhecimento do homem tradicional difere do saber
ocidental. Enquanto este último passou a se subordinar pouco a pouco aos objetos,
separando o mundo sagrado do mundo profano, o corpo da alma, o eu penso das
coisas pensadas, fragmentando o universo no nível do seu saber, o saber do homem
tradicional é uno, o homem é um antropocosmo a quem nada do cósmico é estranho.
Aqui ainda se manifesta o grande princípio de separação ao qual o pensamento
ocidental é basicamente sujeito: fazemos um corte entre um mundo múltiplo e um
eu modelo do um. Unificamos o saber do mundo sobre a forma vazia do cogito, mas
a multiplicidade do primeiro passa sempre por meio da unidade fictícia e inútil do
segundo. (DURAND, 2008, p. 63)
O saber tradicional, diz, ao contrário, não separa o múltiplo do um e o homem
se apresenta como múltiplo, diverso, contrapõe a atividade simbólica do pensamento
e do universo pensado à unificação formal que desemboca no método; “a unidade
simbólica indicada no mundo é que se reverbera em um eu sentido como diverso”.
(DURAND, 2008, p. 39)
Para o homem tradicional, de acordo com Durand, as coisas tem um sentido,
uma qualidade escondida que não pode ser visualizada pelo pensamento direto
(racional, mental, ou corporal). Enquanto a ciência quer deliberadamente ignorar que
as coisas tenham um contrário e que o invisível atrás do visível contenha uma razão, o
pensamento simbólico quer decifrar, penetrar o segredo. Para o pensamento dito
científico e filosófico, cada fato é transparente, nada foi deixado opaco; para o
pensamento simbólico, tradicional, “toda representação é ambígua: é passível de ser
lida em vários registros” (DURAND, 2008, p. 45-46)
Os físicos têm se mostrado bastante humildes em sua busca pela compreensão
do universo ao dizerem que a confusão entre suas propriedades e sua descrição
envolvendo o que se chama de realidade objetiva tem criado dificuldades. Isto se dá,
segundo diz Novello, “porque a representação da realidade em seus diferentes níveis
de processos físicos não se identifica com a versão a que os homens têm acesso direto
com o uso de seus sentidos”. Ao identificarem acontecimentos no mundo, os físicos
são levados a descrevê-los em um sistema de coordenadas, mas que diferentes
coordenadas são possíveis e um sistema não se apresenta mais realista que outro. “Ou
seja: sistemas de coordenadas são modos de descrever ocorrências que existem no
mundo. Não se trata de adotar um realismo ingênuo, mas simplesmente aceitar a
matéria com que a ciência trabalha, o mundo-que-aí-está.”(NOVELLO, 2010, p. 29)
O que ocorreu com a física, que a partir da metade do século 20 passou a
enfatizar a epistemologia em seu processo de medida entre o sujeito indagativo e o
objeto que se pretende estudar e não a ontologia, que estuda os fenômenos tal como
são e não com base nos fatos ou nas propriedades particulares que se obtêm dos
mesmos, não os corpos, mas sua observação, parece ter atingido também as outras
ciências e mostram uma proposta que trouxe um grande problema: a realidade é
definida a partir do observador, ela requer um observador externo e a descrição da
realidade se constrói somente após a medida. (NOVELLO, 2010, p. 30)
As várias interpretações e teorias citadas sobre a experiência religiosa mostram
que o que temos são partes do conhecimento sobre o ser humano, visões de mundo
daquele que observa, não do individuo que vive a experiência. A própria descrição da
experiência traduzida pelo experimentador ao observador em termos passíveis de ser
compreendida por este já significa uma descrição de segunda mão, pois é uma versão
para ser compreendida pelo observador. O relato apresentado mostra que o nativo
compreende a dificuldade de traduzir a experiência e a tentativa de trazer uma
explicação é a forma com que ele próprio relativiza a experiência para que ela possa
ser compreendida pelo observador.
Da mesma forma que os físicos, antropólogos e cientistas da religião
encontram, na definição da experiência religiosa, dificuldade em sua análise do
fenômeno que pretende descrever envolvendo o que se chama de realidade objetiva.
Como diz o físico Novello
Como estamos no interior desse movimento, suas consequências não são ainda
percebidas. Mas certamente, já se fazem notar as mudanças de orientação e dos
paradigmas que os cientistas terão de realizar. É nessa situação de crise que
podemos aqui e ali entrever a novidade do pensamento cósmico. Ou seja, parece que
estamos redescobrindo aquilo que muitos já afirmaram no passado: a
inesgotabilidade do real. (NOVELLO, 2010, p. 30)
As várias teorias, cada uma projetada a partir de um observador em sua própria
visão do mundo, mostram aspectos da experiência vistas em uma realidade fora do ser
que experimenta, projeções da mente humana a partir da compreensão de si mesmo e
do mundo nos rodeia. Mas, apesar de serem teorias baseadas em modelos, parecem
indicar, sobre o ser humano, o que a física vem descobrindo sobre o Universo: estas
teorias não significam que estejamos atingindo a realidade objetiva, mas que a
estamos definindo e que há mais mistério no ser humano que podemos compreender
até agora e é possível que ele seja inesgotável. Talvez tenhamos que adotar a postura
dos físicos e esperar que o mistério se revele e, ao mesmo tempo, que não deixemos
de procurar por ele.
Referências
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