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2.º SEMESTRE 2015 | NÚMERO 2

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REVISTA DO CEJ, II, 2015:201-236

REPERCUSSÕES DO NOVO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVONA REVISÃO DO DIREITO PROCESSUAL ADMINISTRATIVO1

Ana Celeste CarvalhoJuíza Desembargadora no Tribunal Central Administrativo Sul

Coordenadora de Jurisdição Administrativa e Fiscal e Docente do Centro de Estudos

Jurídiciários

RESUMO: No contexto de reforma do Direito Administrativo, são apresentadas as repercussões

do novo Código de Procedimento Administrativo na revisão do Direito Processual Administra-

tivo, operada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, revelando o modo como as

opções assumidas no direito substantivo influenciaram e se repercutem no Código de Processo

nos Tribunais Administrativos revisto. Com isto, dar-se-ão igualmente nota das principais novi-

dades ou alterações introduzidas em ambos os Códigos, num diálogo entre normas materiais e

processuais, relevante para os tribunais administrativos, que não poderão deixar de conhecer o

direito substantivo na interpretação e aplicação do direito adjectivo.

SUMÁRIO: 1. Considerações introdutórias. 2. Um novo CPTA? 3. Repercussões do novo CPA

no CPTA revisto. 3.1. Alterações ao nível do alargamento e clarificação da competência mate-

rial dos tribunais administrativos. 3.2. Aspectos do regime substantivo previstos no CPA com

reflexos nos poderes dos tribunais administrativos. a. Maior densificação dos princípios gerais

da actividade administrativa. b. Alargamento dos princípios gerais da actividade administrativa.

3.3. Regime substantivo de invalidade e de ratificação, reforma e conversão dos actos administra-

tivos e regime processual do objecto da acção administrativa. a. Inexistência jurídica. b. Regime

da nulidade. c. Regime da anulabilidade e o princípio do aproveitamento do acto administrativo.

d. Regime da ratificação, reforma e conversão dos actos administrativos. 3.4. Regime substantivo

da revogação e da anulação administrativa e o regime processual da modificação do objecto da ac-

ção administrativa (vicissitudes da instância). 3.5. Alargamento da tutela executiva jurisdicional.

Palavras-chave: Código de Procedimento Administrativo, Código de Processo nos Tribunais

Administrativos, Direito Administrativo, Direito Processual Administrativo, princípios gerais

da actividade administrativa, poderes dos tribunais administrativos, revogação e anulação admi-

nistrativa, execução de actos administrativos e execução de sentenças.

1 O presente texto corresponde, em traços gerais, à comunicação intitulada “Repercussões do novo

Código de Procedimento Administrativo no Direito Processual Administrativo”, proferida no I e no II Curso Breve sobre “A Revisão do ETAF e do CPTA”, organizados pela Universidade Nova de Lisboa, Auditório da Universidade Nova, em 26 de Outubro e em 16 de Novembro de 2015.

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1. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

No contexto de reforma do Direito Administrativo, pretendemos apre-sentar as repercussões do novo Código de Procedimento Administrati-vo (CPA)2 na revisão do Direito Processual Administrativo, operada pelo De creto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, revelando de que modo as opções assumidas no Direito substantivo influenciaram e se repercutem no Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) revisto3.

Com isto, dar-se-ão igualmente nota das principais novidades ou altera-ções introduzidas em ambos os Códigos, num diálogo entre normas mate-riais e processuais.

O Direito processual reflecte as opções assumidas no Direito material, integrando um conjunto de normas garantísticas que dão satisfação às pre-tensões materiais dos administrados, emergidas no contexto de relações jurídico-administrativas, reguladas por normas substantivas de Direito Ad-ministrativo.

Constitui finalidade do Direito Processual Administrativo, através dos tri-bunais administrativos, assegurar as posições jurídicas subjectivas constituí-das sob a égide do Direito material, constituindo a via por excelência de de-fesa dos direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.

Para além do binómio Direito substantivo/processual e sem que hoje se possa mais falar na supremacia do Direito substantivo sobre o Direito pro-cessual, afirma-se a autonomia e a propriedade do Direito Processual Admi-nistrativo, não só em relação ao Direito Administrativo material, como em relação ao Direito Processual Civil4.

Sem prejuízo, existem influências notórias entre o substantivo e o adjec-tivo, para mais na actual reforma do Direito Administrativo, ao existir na mesma legislatura, por parte da mesma Comissão, a revisão conjunta, pri-meiro do Direito material-procedimental, ao aprovar-se um novo CPA, e depois do Direito Processual Administrativo, por via da revisão do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e do CPTA.

2 Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro de 2015.3 Sobre o tema, CARLOS CADILHA, “Implicações do novo regime do CPA no direito processual admi-

nistrativo”, JULGAR, n.º 26, Mai./Ago. 2015, pp. 11-39 e MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, “Circulando entre o

substantivo e o adjectivo – brevíssimas notas sobre a articulação entre a(s) reforma(s) do CPA e do CPTA”,

in “O Anteprojecto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos

Tribunais Administrativos e Fiscais em Debate”, AAFDL, 2014, pp. 269-296.4 Neste sentido, ANA CELESTE CARVALHO, “O regime processual da nova acção administrativa: aproximações

e distanciamentos ao Código de Processo Civil”, Cadernos de Justiça Administrativa (CJA), n.º 113,

Set./Out. 2015, pp. 13-15.

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Esta lógica relacional entre o Direito substantivo e o processual assume, por isso, grande relevância na actualidade, por a reforma da parte mais expressiva do Direito Administrativo ocorrer no mesmo tempo histórico, ditando o interesse pela análise dos respectivos regimes substantivo e adjec-tivo e o entrecruzar dos respectivos regimes.

Por este motivo, não pode ser inteiramente compreendido o Direito Pro-cessual Administrativo sem se conhecerem as soluções normativas materiais, previstas e reguladas no novo CPA.

No século XXI, assiste-se como nunca antes no passado, ao protagonismo do poder judicial, como expressão máxima de tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, com a particularidade de no caso dos tribunais administrativos, caber ao juiz administrativo assegurar a dialéctica e o equilíbrio entre o interesse público e a tutela da pretensão material do interessado que se relaciona com a Administração.

Em paralelo à tutela administrativa, há a dimensão da tutela judicial, numa relação que não é de subsidiariedade ou subalternidade, mas de autonomia, sob a lógica global do ordenamento jurídico.

O presente texto pretende proceder não a uma apresentação do CPTA revisto, nem tão pouco a uma análise meramente estática, antes procurando obter uma visão dinâmica ou diacrónica, isto é, o CPTA em acção, no que mais de relevante representará para o cidadão, utente da Justiça Adminis-trativa.

2. UM NOVO CPTA?

Tendo a revisão operada ao procedimento administrativo dado origem à opção política de aprovar um novo CPA, foi seguida a opção inversa em relação ao processo administrativo, por estar em causa apenas uma revisão do CPTA.

Importa analisar o que se deve interpretar da revisão ora empreendida ao ETAF e ao CPTA e a sua amplitude, na perspectiva da evolução e desenvol-vimento do Direito Processual Administrativo.

Sendo adquirida a necessidade de revisão do CPTA, não só por se encon-trar há muito decorrido o prazo legal previsto para a sua revisão, como pela desadequação de algumas soluções normativas processuais, que já não cor-respondiam inteiramente às finalidades do processo administrativo, orienta-das para a realização do direito e da justiça e instrumentais à realização dos direitos materiais, essa necessidade ganhou ainda mais relevo com a aprova-ção e entrada em vigor dos novos Código de Processo Civil (CPC) e CPA.

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A entrada em vigor de um novo CPC não foi indiferente ao processo administrativo, considerando a sua aplicação directa a uma das formas pro-cessuais administrativas, a então acção administrativa comum, e a aplicação subsidiária, mas com forte influência sobre os demais meios processuais.

Assim, desde a entrada em vigor do novo CPC, em Setembro de 2013, que existia a aplicação de um novo regime processual ao contencioso admi-nistrativo, mas sem que o seu código processual reflectisse esse novo regime, gerando dificuldades sobre o regime processual em cada caso aplicável.

Por esse motivo, era premente a necessidade de adequar a lei processual administrativa ao regime previsto no novo CPC5.

Sem prejuízo, mesmo antes da aprovação do novo CPC e do novo CPA já estavam identificadas as normas processuais que careciam de revisão, umas no sentido de uma mera clarificação de regime, que assumisse em letra de lei a interpretação que a seu propósito foi sendo elaborada pela doutrina e pela jurisprudência administrativas, e outras que reclamavam uma reformulação mais profunda, por se questionar a sua regulação.

Por conseguinte, apesar de o ordenamento jurídico contar com um bom Código de Processo Administrativo, estavam já detectadas várias situações que careciam de clarificação de regime ou que, de todo, já não se ajustavam às opções dominantes do contencioso administrativo, nos termos que foram assinaladas na Lei de Autorização Legislativa n.º 100/2015, de 19 de Agosto e no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro.

A revisão operada por este diploma satisfaz estes dois objectivos, pois não transmuta uma revisão legislativa, normal no contexto de um Código cuja revisão estava prevista ocorrer após três anos a sua vigência, num novo Código, nem rompe com a maioria das soluções processuais vigentes.

Por outro lado, algumas soluções de Direito comparado, sobretudo do Direito italiano e do Direito alemão, mas também do Direito espanhol e anglo-saxónico, e a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Euro-peia, aconselhavam esta revisão.

Perante estes imperativos, existia receio que esta reforma se viesse a tra-duzir a final num novo CPTA ou numa sua descaracterização, indo para além do necessário, mas veio a traduzir-se numa reforma que global mente tem a medida certa, adoptando soluções que, na sua grande maioria, já eram reclamadas.

5 Analisando a aplicação do CPC à nova acção administrativa, emergida após a reforma do Direito

Processual Administrativo, ANA CELESTE CARVALHO, “O regime processual…”, obra cit., pp. 13-24.

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Sem prejuízo, são introduzidas soluções sem tradição no contencioso administrativo português, algumas das quais questionáveis, para além de soluções normativas que têm natureza eminentemente político-legislativa.

Assim, apesar de muitas alterações e algumas novidades, não iremos ana-lisar uma nova lei processual administrativa, mas apenas uma revisão do CPTA vigente.

3. REPERCUSSÕES DO NOVO CPA NO CPTA REVISTO

O novo CPA não é só um diploma legal com importância para a Admi-nistração Pública, como é um dos mais importantes para os tribunais ad-ministrativos, já que nele se encontram previstos e regulados os principais institutos do Direito Administrativo material ou substantivo, no qual assenta o julgamento de direito.

O CPTA está para o Direito adjectivo, como o CPA está para o Direito substantivo, sendo notória a influência que o novo CPA teve em certas solu-ções concretas do CPTA revisto.

Sobre estas repercussões elegemos um conjunto de áreas onde a influên-cia do CPA no CPTA revisto é mais marcante ou acentuada, sem o intuito de esgotar este diálogo entre o Direito material e o processual, que perpassa o presente texto.

3.1. Alterações ao nível do alargamento e clarificação da competência material

dos tribunais administrativos

É sabido que o ETAF veio alargar a jurisdição dos tribunais adminis-trativos, com reflexo nas normas de competência previstas no CPTA, as quais umas e outras são influenciadas pelas soluções de regime consagradas no CPA6.

Em consequência das alterações introduzidas no CPA ao regime da revo-gação e da anulação administrativa, são previstas modificações objectivas da instância, assim como novas indemnizações, cuja fixação cabe na esfera de jurisdição e competência dos tribunais administrativos.

Também é sabido que a Administração Pública não actua sempre sob as vestes de um acto jurídico, seja ele acto administrativo, contrato ou norma,

6 Cfr. LICÍNIO LOPES MARTINS, “Âmbito da jurisdição administrativa no Estatuto dos Tribunais Adminis-trativos e Fiscais”, CJA n.º 106, Jul./Ago. 2014, pp. 7-25; ANA FERNANDA NEVES, “Alargamento do âmbito da jurisdição administrativa”, in “Anteprojecto de Revisão”, obra cit., pp. 431-457 e SANDRA GUERREIRO, “O âmbito da jurisdição administrativa na revisão do estatuto dos tribunais administrativos e fiscais”, in “Anteprojecto de Revisão”, obra cit., pp. 459-474.

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mas também através de operações materiais de facto ou actos de execução,

algumas vezes, sem lhes que anteceda qualquer procedimento ou qualquer

actuação jurídica que suporte essa actuação de facto.

Estes regimes que se encontram regulados pelo novo CPA acabam por se

reflectir no ETAF e no CPTA, no que se traduz, em alguns casos, no alar-

gamento de competência material dos tribunais administrativos e noutros

casos, em meras clarificações.

Destacamos as seguintes alíneas do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF7:

– Alínea d) – fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídi-

cos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natu-

reza, no exercício de poderes públicos, ficando abrangidas todas as entida-

des, incluindo as não administrativas, desde que a sua actuação se funde no

exercício de poderes públicos;

– Alínea e) – apreciação da validade de actos pré-contratuais e da inter-

pretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer

outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pú-

blica, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudi-

cantes, o que abrange os contratos públicos, os contratos de direito privado

celebrados pela Administração e alguns contratos celebrados por entida-

des privadas que sejam entidades adjudicantes. Traduz um alargamento da

jurisdição administrativa, por lhe ficarem submetidos o universo dos contra-

tos da Administração Pública, pondo termo à dualidade de jurisdições para

apreciar contratos em que intervenha um ente público;

– Alíneas f) e h) – responsabilidade civil extracontratual das pessoas

colectivas de direito público e dos demais sujeitos aos quais seja aplicável

o regime específico da responsabilidade civil extracontratual do Estado e

demais pessoas colectivas de direito público (RRCEE)8, destacando-se as

seguintes indemnizações previstas no CPA:

– Artigo 167.º, n.º 5 – indemnização devida a beneficiários de boa-fé,

ao abrigo do regime da indemnização pelo sacrifício, prevista no arti-

go 16.º do RRCEE, por eliminação ou restrição do conteúdo essencial

do direito, por revogação do acto administrativo com fundamento na

7 Sobre a matéria do alargamento do âmbito da competência material dos tribunais administrativos, à

luz do objecto da nova acção administrativa, cfr. ANA CELESTE CARVALHO, “O objecto e a modificação do

objecto da nova acção administrativa”, CJA n.º 114, Nov./Dez. 2015, pp. 3-15.8 Aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro.

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superveniência de conhecimentos técnicos e científicos ou alteração objectiva das circunstâncias de facto, em face das quais, num e noutro caso, o acto não poderia ter sido praticado;

– Artigo 168.º, n.º 6 – direito à indemnização pelos danos anormais, se-gundo o artigo 16.º do RRCEE, pela anulação administrativa de actos constitutivos de direitos;

– Artigo 172.º, n.º 3 – direito a indemnização dos beneficiários de boa--fé pela anulação administrativa dos actos consequentes praticados há mais de um ano;

– Alínea i) – condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime. Está em causa uma norma clarificadora quanto à competência dos tribunais administrativos para conhecer da lega-lidade das operações materiais de facto ou das “vias de facto”, integradas na jurisdição administrativa desde a reforma do contencioso administrativo, de 2002/2004. Este regime conjuga-se com o disposto no n.º 1 do artigo 177.º do CPA, segundo o qual os órgãos da Administração Pública não podem praticar qualquer acto jurídico ou operação material de execução sem terem praticado previamente o acto administrativo exequendo, assim como com o disposto no n.º 1 do artigo 182.º do CPA, que assegura as garantias dos exe-cutados, para impugnar administrativa e contenciosamente o acto exequen-do e, por vícios próprios, a decisão de proceder à execução administrativa ou outros actos administrativos praticados no âmbito do procedimento de execução, ou para requerer a suspensão contenciosa dos respectivos efei-tos9. O n.º 3 do artigo 182.º do CPA remete para os meios processuais da acção administrativa e das providências cautelares, como forma de prevenir a adopção de operações materiais de execução ou promover a remoção das respectivas consequências, quando tais operações sejam ilegais. Por outro lado, o artigo 183.º do CPA constitui uma norma processual incluída na lei substantiva, ao prever a execução pela via jurisdicional e remetendo para o disposto na lei processual administrativa, sempre que a Administração não possa impor coercivamente a sua declaração do direito;

– Alínea j) – relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de Direito Administra-

9 Assinala-se no n.º 3 do artigo 182.º do CPA a referência à acção administrativa comum, tendo sido desejável que o legislador, conhecedor da reforma do Direito Processual Administrativo em curso, se tivesse referido à acção administrativa, em consequência da opção consensual de unificação das acções administrativas, comum e especial.

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tivo e Fiscal10. Esta disposição remete-nos para todas as formas de relação entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos administrativos da mesma pessoa colectiva pública11, ou seja, quer para os litígios inter-sub-jectivos, quer para os litígios intra-subjectivos. Ficam abrangidos os novos institutos previstos no CPA, como o auxílio administrativo12 e as conferên-cias procedimentais13, designadamente as de natureza deliberativa, em que existe o exercício conjunto das competências decisórias dos órgãos adminis-trativos participantes, através da prática de um único acto de conteúdo com-plexo, que substitui a prática, por cada um deles, de actos administrativos autónomos.

– Alínea k) – prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas. Esta disposição deve ser conjugada com o n.º 2 do artigo 68.º do CPA, que prevê a legitimidade procedimental para a protecção de interesses difusos, nela se prevendo, além dos interesses enunciados no ETAF e no n.º 2 do artigo 9.º do CPTA, o consumo de bens e serviços. Apesar de este interesse difuso não estar expressamente acolhido no ETAF, consideramos que deve ser considerado para efeitos de legitimidade processual activa, se-gundo um princípio de equivalência, de que, quem tem legitimidade proce-dimental, tem legitimidade processual14. Releva ainda o disposto no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição, assim como a diferenciação dogmática entre interesses difusos e interesses individuais homogéneos.

– Alínea l) – impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de Direito Administrativo em matéria de urba nismo.

10 Cfr. PEDRO COSTA GONÇALVES, “A justificabilidade dos litígios entre órgãos da mesma pessoa colectiva

pública”, CJA n.º 35, Set./Out. 2002, pp. 9-23.11 Cfr. n.º 8 do artigo 10.º do CPTA.12 Previsto no artigo 66.º do CPA.13 Cfr. artigo 77.º do CPA.14 É duvidoso que a tutela e defesa do interesse difuso do consumo se bens e serviços se inclua no Direito material administrativo e na competência dos tribunais administrativos, já que tenderá a emergir de relações de consumo, de natureza jurídica privatística. Por esse motivo, a sua defesa tem ocorrido nos tribunais judiciais, não tendo até hoje os tribunais administrativos dirimido litígios relacionados com o consumo de bens e serviços. Alguns casos conhecidos de questões relativas ao consumo no Direito Administrativo tendem a ser associados à saúde pública, como acontecerá no caso de produtos alimentares adulterados ou sem condições para consumo humano.

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Esta norma é uma consequência dos actos administrativos praticados pelas entidades públicas em matéria de procedimento de mera ordenação social. Como já antes salientámos15, poderão incluir-se na competência dos tribu-nais administrativos a apreciação da impugnação judicial das decisões admi-nistrativas de aplicação de coimas por violação de normas do ordenamento do território, por força do artigo 75.º-A da Lei Quadro das Contraorde-nações Ambientais16, designadamente, no caso de o mesmo facto dar ori-gem à aplicação, pela mesma entidade, de decisão por contraordenação do ordenamento do território e por contraordenação por violação de normas constantes do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação17, o que traduz o alargamento da competência material dos tribunais administrativos para a impugnação das decisões de contraordenações por lei avulsa, para além do que o ETAF e o CPTA prevêem.

– Alínea n) – execução da satisfação de obrigações ou respeito por limi-tações decorrentes de actos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração. Esta norma deverá ser conjugada com o disposto no n.º 2 do artigo 176.º do CPA, que em matéria de execução do acto administrativo aponta para a transição de um modelo de Admi-nistração executiva para um modelo de Administração judiciária mitigado, depen dente da aprovação de lei que concretize os casos em que a Admi-nistração dispõe de autotutela executiva, em que pode pelos seus próprios meios impor coercivamente os actos administrativos praticados segundo o princípio da autotutela declarativa.

Prevê ainda o n.º 2 do artigo 4.º do ETAF que pertence à jurisdição admi-nistrativa a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjun-tamente demandadas entidades públicas e particulares, entre si ligadas por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade18.

Todos estes regimes têm tradução na reforma do Direito Processual Admi-nistrativo, reflectindo o diálogo entre o Direito material e o Direito pro cessual.

15 Vide, ANA CELESTE CARVALHO, “O objecto e a modificação do objecto…”, obra cit., p. 5-6.16 Aprovada pela Lei n.º 50/2006, de 29/8, alterada e republicada pela Lei n.º 114/2015, de 28/8, estabe-

lece o regime aplicável às contraordenações ambientais e do ordenamento do território.17 Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16/12.18 Cfr. CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, “Competência dos tribunais administrativos para acção de

regresso fundada em contrato de seguro – Ac. do TCA Norte de 13.1.2012, P. 47/10.9BEAVR", CJA n.º 104,

Mar./Abr. 2014, pp. 26-37.

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3.2. Aspectos do regime substantivo previstos no CPA com reflexos nos poderes

dos tribunais administrativos

Nos últimos tempos tem-se acentuado a crise da legalidade estrita, carac-terizando-se o novo CPA pela consagração de regimes que traduzem uma compressão do princípio da legalidade, designadamente, quanto ao respeito pelas formas e pelo procedimento19.

Tal acarreta em algumas áreas uma mudança do papel do juiz administra-tivo e das suas formas de decidir, interferindo com as formas de controlo do poder judicial sobre as actuações dos órgãos administrativos.

O novo CPA umas vezes amplia o papel do juiz administrativo e os seus poderes de controlo jurisdicional da actuação dos poderes públicos, outras vezes reduz esse papel, restringindo ou limitando o âmbito do controlo juris-dicional por parte dos tribunais administrativos.

É sabido que o Direito Administrativo, tem na sua génese a marca de ser-vir de Direito especial da Administração Pública, que regula a sua forma de organização e funcionamento, regulando o exercício do poder administra-tivo, tendo depois evoluído como forma de condicionamento e limitação à actuação da Administração Pública, como garantia dos particulares. Assim, o Direito Administrativo regula a actuação da Administração, ora conce-dendo poderes, ora estabelecendo limites.

O Direito procedimental assume-se como forma de garantir o direito substantivo e material, sendo essencial para a protecção dos direitos, liber-dades e garantias, cujo respeito é assegurado pelo poder judicial.

Neste contexto, os princípios gerais de direito administrativo são muito importantes, atenta a sua forma, capacidade e força normativa de servir de guião à acção administrativa, limitando-a ou condicionando-a.

Identificam-se, entre outras, as causas para a maior fluidez do princípio da legalidade:

i) a relevância primacial das normas constitucionais, internacionais e de direito europeu directamente aplicáveis, que são hierarquicamente superiores ou têm preferência aplicativa sobre os actos, legislativos e administrativos, nacionais;

ii) a importância acrescida dos princípios gerais de direito, na interpre-tação, aplicação e fiscalização da legitimidade das opções legislativas e administrativas, por parte do poder judicial;

19 Cfr. ISABEL CELESTE DA FONSECA, “Tramitação e formalidades: (proposta de) golpes às garantias proce-

dimentais fundamentais dos interessados?”, CJA n.º 100, Jul./Ago. 2013, pp. 87-97.

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Repercussões do Novo Cód. de Proced. Adm. na Revisão do Direito Proc. Administrativo 211

iii) a proliferação de directivas, orientações ou padrões de natureza téc-nico-científica, de origem privada, europeia e internacional, mas tam-bém de origem pública e nacional, que, ainda que adoptem forma legal ou regulamentar, regulam a actividade administrativa e, por se caracterizarem pelo seu conteúdo amplo e aberto, ampliam a margem da discricionariedade administrativa, reduzindo a intensidade da vin-culação administrativa, com reflexo no nível de controlo jurisdicional;

iv) tendência para a redução ou desvalorização da relevância invalidató-ria por incumprimento do direito das formas e do procedimento e de preceitos substanciais de menor relevo, em homenagem a uma eficácia e eficiência de resultados na realização do interesse público, embora a par ou em contraposição à formulação europeia e agora consagrada no artigo 5.º do CPA, de um direito a uma boa administração;

v) desvalorização dos procedimentos administrativos de controlo pré-vio e valorização dos procedimentos de controlo a posteriori ou sem assentarem na prática de qualquer acto administrativo procedimen-talizado20.

São várias as matérias em que o CPA interfere ou influencia os poderes de controlo dos tribunais administrativos.

a. Maior densificação dos princípios gerais da actividade administrativa

A circunstância de os princípios gerais da actividade administrativa não terem todos a mesma densidade normativa foi assumida pelo legislador do novo CPA, que reconheceu no ponto 5 do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro, que o novo CPA conferiu “maior densidade aos princípios da igualdade (artigo 6.º), da proporcionalidade (artigo 7.º)21, da im-parcialidade (artigo 9.º), da boa-fé (artigo 10.º) e da colaboração com os parti-culares (artigo 11.º).”, em comparação com o CPA/91.

Além dos princípios expressamente referidos, essa maior densidade tam-bém ocorre no artigo 8.º do CPA, por associação dos princípios da justiça e da razoabilidade.

No geral, a densificação dos princípios gerais da actividade administrativa previstos nos artigos 3.º a 19.º do CPA foi reforçada no novo CPA, sendo

20 Veja-se o caso, agora previsto no artigo 134.º do CPA, das comunicações prévias.21 O princípio da proporcionalidade passa a prever expressamente a proibição de excesso.

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ampliado o quadro normativo material e a importância dos princípios gerais no julgamento de direito pelos tribunais administrativos22.

Por via da ampliação da densidade ou concretização de alguns princípios, é alargado o âmbito do controlo judicial da actuação dos poderes públicos, o que vem reforçar a tutela dos direitos e valores fundamentais dos cidadãos, traduzindo-se num ganho, por permitir ampliar o controlo da legalidade administrativa pelo poder judicial, designadamente, dos actos praticados no exercício de poderes discricionários.

Os princípios jurídicos fundamentais materiais, substanciais ou valorati-vos, como concretizações do princípio da juridicidade, regem duplamente de forma directa a actividade administrativa: quer autonomamente, como padrões de validade, quer influenciando a interpretação e aplicação, admi-nistrativa e judicial, das leis (interpretação conforme os princípios).

É sabido que os princípios jurídicos têm formas diferentes de concretiza-ção. Alguns têm maior densificação, que permite que sobre eles recaia um amplo controlo judicial, mas outros, tendo elevado grau de abstracção ou de indeterminação, impedem o controlo judicial ou permitem que ele ocorra apenas em situações específicas.

Enquanto parâmetros de normatividade, os princípios gerais de direito, em regra, podem servir de controlo judicial da actividade administrativa, dependendo a amplitude desse controlo da densidade normativa que o le-gislador, em cada caso, conferir ao princípio geral23.

O limite que o princípio da separação de poderes representa para o âm bito do controlo do poder judicial assume grande centralidade na interpretação de muitas normas de Direito Administrativo, onde se inclui o novo CPA.

Assim, nem todos os princípios têm aptidão para fundar o controlo de le-galidade da actuação dos poderes públicos, considerando que o princípio da separação de poderes limita o controlo judicial dos tribunais administrativos ao controlo de legalidade, excluindo o controlo do mérito, assente em juízos de oportunidade ou discricionariedade administrativa.

22 Analisando “Os princípios gerais da actividade administrativa no Código de Procedimento Admi-

nistrativo depois da sua revisão”, FAUSTO DE QUADROS, in Estudos em Homenagem a Rui Machete, Almedina, 2015, pp. 263-281 e antes, JOÃO PACHECO DE AMORIM, “Os princípios gerais da activi-

dade administrativa no projecto de revisão do Código de Procedimento Administrativo”, CJA n.º 100, Jul./Ago. 2013, pp. 17-26.23 Sobre o tema, ANTÓNIO CORTÊS, “Jurisprudência dos Princípios. Ensaio sobre os fundamentos da decisão

jurisdicional”, Universidade Católica Editora, 2010.

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Repercussões do Novo Cód. de Proced. Adm. na Revisão do Direito Proc. Administrativo 213

Sendo claro que a discricionariedade administrativa não é uma escolha livre do Direito, entre uma série de soluções, todas elas igualmente legítimas, mas implica a procura da melhor solução para a satisfação, no caso con creto, dos interesses públicos legalmente definidos, são os princípios jurídicos que orientam essa escolha. Daí a sua crescente importância como forma, por excelência, para o controlo do exercício do poder discricionário.

Resultando do ordenamento jurídico a admissibilidade da concessão de poderes discricionários através de conceitos legais imprecisos, no quadro das relações tripolares entre a Lei-Administração-Juiz, que não se reconduz apenas à relação entre a actividade administrativa e a lei, relevam os princí-pios gerais de direito e no caso do Direito Administrativo, muito particular-mente os princípios gerais por que se rege a actividade administrativa, com consagração na Constituição e no CPA.

Esta questão insere-se no tema mais vasto da discricionariedade adminis-trativa, a qual não deve ser analisada exclusivamente a partir de um enten-dimento do princípio do Estado de Direito que preconize a máxima deter-minação legislativa e a máxima fiscalização judicial possíveis, mas no quadro do respeito pelo princípio da separação e interdependência dos poderes, em que cabe aos tribunais administrativos o julgamento do cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua actuação, segundo o n.º 1 do artigo 3.º do CPTA24.

24 Vide os Acórdãos do TCA Norte, de 27/05/2010, P. 00240/08.4BEPNF, “(…) VII. Os poderes dos

tribunais administrativos abarcam apenas as vinculações da Administração por normas e princípios jurídicos,

ficando de fora da sua esfera de sindicabilidade o ajuizar sobre a conveniência e oportunidade da actuação

da Administração, mormente o controlo actuação ao abrigo de regras técnicas ou as escolhas/opções feitas

pela mesma na e para a prossecução do interesse público, salvo ofensa dos princípios jurídicos enunciados

no art. 266.º, n.º 2 da CRP. VIII. Não haverá invasão dos espaços de valoração próprios do exercício da

função administrativa ou sequer violação do princípio da separação de poderes quando os tribunais, no

exercício da sua função, apreciem da conformidade dos requisitos formais dos actos administrativos,

inclusivamente da competência do ente que decidiu, ou se foi observado o procedimento legal adequado,

ou se ainda correspondem à realidade os pressupostos de facto em que os mesmos assentaram, bem como se

ocorreu desvio de poder ou violação dos princípios gerais de direito (v.g., da justiça, da proporcionalidade, da

igualdade, da imparcialidade, etc.). IX. Também não se nos afigura ocorrer qualquer ilegalidade/invasão no

controlo feito pelo tribunal relativamente aos actos administrativos praticados ou omitidos na sequência ou

ao abrigo de regras/princípios definidos pela Administração, no uso dos seus poderes, em concretização ou

explicitação dos espaços de discricionariedade de que goza ou mesmo de conceitos indeterminados legalmente

fixados.” e de 01/10/2010, P. 00514/08.4BEPNF, “I. O princípio da divisão ou da separação de poderes não

implica hoje uma proibição absoluta ou sequer uma proibição-regra do juiz condenar, dirigir injunções ou

orientações, intimar, sancionar, proibir ou impor comportamentos à Administração. II. Tal princípio implica

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214 Ana Celeste Carvalho

A relevância do princípio da separação dos poderes no contencioso ad-ministrativo implica o reconhecimento de uma certa autonomia e responsa-bilidade próprias da Administração no exercício da função administrativa, assim como a admissão do poder de criar e concretizar o Direito, no quadro da manutenção do princípio da autotutela declarativa, quer perante o legis-lador, em face da existência de uma reserva administrativa dos casos concre-tos, quer em face do juiz, no âmbito de uma justiça administrativa erigida segundo a proibição de dupla Administração, no contexto de um Estado de Direito equilibrado quanto aos poderes do Legislador, do Administrador e do Juiz.

Pelo que antecede, quer o novo CPA, quer a revisão do CPTA, consti-tuem um desafio importante não só para a Administração, que tem de se modernizar na sua forma de actuação e de organização, e dar cumprimento aos comandos da lei na sua forma relacional com o cidadão, como para os tribunais administrativos, que têm de interpretar e aplicar a lei de modo a dela extrair a vontade do legislador e a exercer o poder jurisdicional de acor-do com os parâmetros definidos na Constituição e na lei, designadamente, no tocante ao respeito pelos limites decorrentes do princípio da separação de poderes.

Nesse sentido se apela no preâmbulo da lei ao exercício de responsabili-dades, entendido por nós como um exercício partilhado de responsabilida-des, entre os cidadãos e a Administração e entre esta e os tribunais adminis-trativos.

b. Alargamento dos princípios gerais da actividade administrativa

A par da maior densificação de alguns princípios da actividade adminis-trativa, o novo CPA alargou o núcleo dos princípios, prevendo princípios novos: da boa administração (artigo 5.º), da razoabilidade (artigo 8.º), da Administração electrónica (artigo 14.º), da responsabilidade (artigo 16.º), da Administração aberta (artigo 17.º), da protecção de dados pessoais (artigo 18.º) e da cooperação leal com a União Europeia (artigo 19.º).

A consagração de mais princípios no CPA traduz-se num alargamento do controlo jurisdicional por parte dos tribunais administrativos, ampliando-se

tão-só uma proibição funcional do juiz afectar a essência do sistema de administração executiva, ou seja, não

pode ofender a autonomia do poder administrativo [o núcleo essencial da sua discricionariedade], enquanto

medida definida pela lei daquilo que são os poderes próprios de apreciação ou decisão conferidos aos órgãos

da Administração. (…)”.

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Repercussões do Novo Cód. de Proced. Adm. na Revisão do Direito Proc. Administrativo 215

o quando normativo pelo qual estes tribunais julgam a actuação da Admi-nistração, potenciando a efectividade da tutela da justiça administrativa em face dos poderes públicos.

Embora seja ampliado o quadro normativo principiológico, que integra o parâmetro da vinculatividade administrativa, não deixam de se colocar algumas questões sobre o real alcance do controlo judicial25.

Assinalando-se diferenças no tocante à densidade normativa dos princí-pios jurídicos, essa diferenciação tem repercussão directa na maior ou menor amplitude dos poderes dos tribunais administrativos no julgamento do cum-primento pela Administração das vinculações a que se encontra sujeita.

Neste contexto, merece questionar-se qual é o alcance do controlo jurisdi-cional realizado pelos tribunais administrativos em relação a dois dos novos princípios gerais da actividade administrativa, da boa administração e da razoabilidade.

A Constituição nada diz explicitamente sobre estes princípios, não os consagrando como princípios gerais da actividade administrativa, nem como deveres para a Administração.

O novo princípio da boa administração, previsto no artigo 5.º e que tem a sua fonte no direito comparado, já que outros ordenamentos o consagram, com esta ou outra designação, apela a uma ideia de bom andamento da Ad-ministração e de bom funcionamento dos serviços, próxima da ideia anglo--saxónica de good governance.

Para FREITAS DO AMARAL26, a boa administração estava ligada à própria noção de interesse público, prevista no n.º 2 do artigo 266.º da Constituição, pois quando a Administração prossegue o interesse público, deve exercer a boa administração.

A consagração deste novo princípio no ordenamento jurídico nacional deve ser vista à luz da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, no seu artigo 41.º27, o qual adopta um conjunto de dimensões, como o prin-cípio da imparcialidade, o direito de participação procedimental, o direito

25 Cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “Os poderes de cognição e de decisão do juiz no quadro do actual

processo administrativo de plena jurisdição”, Homenagem ao Professor Doutor António Cândido de

Oliveira, CJA n.º 101, Set./Out. 2013, pp. 37-44 e MARIANA MELO EGÍDIO, “Discricionariedade judicial e

interesse público no Contencioso Administrativo português”, in Estudos de Homenagem a Rui Machete,

Almedina, 2015, pp. 645-677.26 In “Curso de Direito Administrativo”, Vol. II, Almedina, Abril 2002, pp. 38-40.27 O art.º 41.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, com a epígrafe “Direito a uma boa

administração”, adopta o seguinte teor:

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de acesso aos documentos administrativos, o dever de fundamentação, o dever de decisão em prazo razoável e o dever de reparação por danos, tão caros ao Direito Administrativo português e aos litígios que são dirimidos nos tribunais administrativos.

Todas estas dimensões do princípio da boa administração se mostram acolhidas no ordenamento nacional, tendo consagração constitucional, quer como princípios fundamentais, como seja o princípio da responsabili-dade civil dos poderes públicos, com consagração no artigo 22.º da Cons-tituição, quer como princípios gerais da actividade administrativa, no que respeita ao princípio da imparcialidade, consagrado no n.º 2 do seu artigo 266.º ou ainda, como direitos procedimentais fundamentais, previstos no artigo 268.º, no que se refere à participação dos interessados, ao acesso à informação, à fundamentação e ao patrocínio judiciário no procedimento administrativo.

O ordenamento jurídico nacional acolhe, por isso, de forma autónoma, todas as dimensões previstas no artigo 41.º da Carta dos Direitos Fundamen-tais da União Europeia, não só na Constituição, como na lei, ora sob a forma de princípio jurídico, ora sob a forma de regra jurídica.

Segundo o artigo 5.º do novo CPA, integram-se no princípio da boa ad-ministração os princípios constitucionais da eficiência, da aproximação dos serviços das populações e da desburocratização, que apelam a uma Admi-nistração Pública organizada e não burocratizada, mas também a critérios como os da celeridade e da economicidade.

Está em causa um princípio de organização e de actuação da Administra-ção Pública, que regula a forma como a Administração deve agir e relacio-nar-se com os cidadãos.

“1. Todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições, órgãos e organismos

da União Europeia de forma imparcial, equilibrada e num prazo razoável.

2. Este direito compreende, nomeadamente:

a) O direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual

que a afecte desfavoravelmente;

b) O direito de qualquer pessoa a ter acesso aos processos que se lhe refiram, no respeito pelos legítimos

interesses da confidencialidade e do segredo profissional e comercial;

c) A obrigação, por parte da administração, de fundamentar as suas decisões.

3. Todas as pessoas têm direito à reparação, por parte da União, dos danos causados pelas suas instituições

ou pelos seus agentes no exercício das respectivas funções, de acordo com os princípios gerais comuns às

legislações dos Estados-Membros.

4. Todas as pessoas têm a possibilidade de se dirigir às instituições da União numa das línguas dos Tratados,

devendo obter uma resposta na mesma língua.”.

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Repercussões do Novo Cód. de Proced. Adm. na Revisão do Direito Proc. Administrativo 217

Tendo o legislador introduzido este novo princípio geral da actividade administrativa, significa que pretende acrescentar algo ao ordenamento ju-rídico nacional.

Tal deve ser questionado em face do que se traduz o princípio da boa administração à luz da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e do que o nosso ordenamento consagra, temporalmente muito antes deste instrumento jurídico de direito europeu.

O artigo 5.º do novo CPA traduz-se num indirizzo dirigido à Administra-ção Pública, que indica os critérios que devem orientar a sua actuação, isto é, por critérios de eficiência, economicidade e celeridade (n.º 1), devendo estar organizada, de modo a aproximar os serviços das populações e de forma não burocratizada (n.º 2).

A questão que se coloca é se o princípio da boa administração apresenta densidade normativa suficiente para permitir aos cidadãos sindicar a legali-dade de um acto administrativo ou de qualquer outra forma de actuação dos poderes públicos, com fundamento na sua violação.

Isto é, poderão os cidadãos demandar a Administração Pública, pedindo o controlo judicial de legalidade da sua actuação com base na violação do princípio da boa administração e poderá o juiz administrativo realizar esse controlo e, julgando a sua violação, anular um acto administrativo com esse fundamento?

Nem todos os princípios de actuação, como o da boa administração, são princípios de controlo judicial ou permitem um controlo judicial.

Sendo algumas das dimensões do princípio da boa administração a efi-ciência e a economicidade, não será de conceder que possam os tribunais administrativos anular um acto, uma norma ou um contrato administrativo com fundamento de que viola o parâmetro da economicidade ou da efi-ciência, por não se traduzir na actuação ou escolha mais eficiente ou mais económica.

Ressalvado o Tribunal de Contas, cremos que o princípio da boa admi-nistração não apresenta densidade normativa suficiente a habilitar o poder judicial administrativo a fazer esse tipo de controlo, já que se traduziria em entrar na apreciação de opções que respeitam ao mérito ou oportunidade, que cabem ao poder administrativo.

Não temos dúvidas de que o controlo de legalidade financeira que o Tribunal de Contas exerce deverá permitir o controlo do princípio da boa administração para efeitos de controlo da legalidade financeira pública, po-dendo controlar as várias dimensões do princípio, como a eficiência e a eco-nomicidade, mas não os tribunais administrativos.

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218 Ana Celeste Carvalho

Da leitura que fazemos da Constituição e da lei, o juiz administrativo não pode ser administrador, pelo que, só em casos pontuais, porventura de tal modo flagrantes ou manifestos, ou em certos procedimentos administrativos especiais, podem os tribunais administrativos controlar os critérios da efi-ciência e economicidade, ou seja, controlar a actuação administrativa com fundamento no princípio da boa administração.

Assim o aponta um outro princípio estruturante do nosso ordenamento constitucional, o princípio da separação de poderes, que constitui um limite ao âmbito do controlo do poder judicial.

O conteúdo do princípio da boa administração apresenta reduzida den-sificação para os tribunais administrativos, pelo que existirá menor capaci-dade do juiz administrativo para proceder ao seu controlo judicial.

Porventura, concorrendo com outros princípios ou normas jurídicas, de-signadamente os que, de forma autónoma, consagram no ordenamento jurí-dico as várias dimensões do princípio da boa administração, poderá o artigo 5.º do novo CPA obter maior alcance e assumir um relevo próximo ao de ou-tros princípios gerais da actividade administrativa, pois caso contrário, terá uma dimensão reduzida, não habilitando o poder judicial administrativo à sua aplicação como forma de controlo da actuação dos poderes públicos.

Do mesmo modo se considera em relação ao novo princípio da razoa-bilidade, consagrado no artigo 8.º, juntamente com o princípio da justiça, por também este princípio, de influência anglo-saxónica, não se apresentar suficientemente concretizado para permitir o controlo judicial por parte dos tribunais administrativos.

O legislador prescreve que a Administração deve “rejeitar as soluções ma-nifestamente desrazoáveis ou incompatíveis com a ideia de Direito”, o que nos remete para a questão da densificação dos conceitos indeterminados do que seja «manifestamente desrazoável» e «incompatível com a ideia de Direito».

Será a doutrina, mas também de forma muito relevante, a jurisprudência que concretizarão o conteúdo do preceito.

Além disso o preceito ao remeter para as soluções incompatíveis com a ideia de Direito, apela à interpretação das normas jurídicas e das valorações próprias do exercício da função administrativa.

Se este princípio tem a sua razão de ser em ordenamentos do tipo anglo--saxónico, em que, por não existir ou existir em muito menor escala a pré--ordenação legal, tem a aptidão de ampliar o controlo judicial, em ordena-mentos como o nosso, em que os poderes públicos se encontram submetidos ao princípio da legalidade e em que a norma positiva enforma todo o orde-

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Repercussões do Novo Cód. de Proced. Adm. na Revisão do Direito Proc. Administrativo 219

namento jurídico, embora com as limitações anteriormente referidas, decor-rentes de novos padrões normativos, este princípio assume menor relevo.

Será duvidoso que o juiz administrativo possa controlar certa política pú-blica, designadamente, em áreas técnicas de controlo de políticas públicas, com fundamento de que se assume como desrazoável. Apenas quando a solução escolhida pela Administração se apresente, no caso concreto, como manifestamente desrazoável ou contrária à ideia de Direito, estará o juiz administrativo habilitado a controlar a sua legalidade.

Poderá existir o controlo judicial pelos tribunais administrativos com base noutras normas jurídicas ou com apelo a outros princípios gerais da actividade administrativa, que não exclusivamente a invocação dos princí-pios da boa administração e da razoabilidade, com a convicção de que “cabe seguramente ao Direito a garantia da ideia axiológica de justiça em toda a actuação administrativa”28.

Do mesmo modo, também muito dificilmente o princípio da colaboração com os particulares, previsto no artigo 11.º do novo CPA, será um princípio de controlo para o juiz administrativo.

3.3. Regime substantivo de invalidade e de ratificação, reforma e conversão dos

actos administrativos e regime processual do objecto da acção administrativa

No âmbito do CPA é significativamente alterado o regime de invalidade dos actos administrativos29, sendo eliminada a inexistência jurídica, alterado o regime da nulidade e da anulabilidade e consagrado pela primeira vez o princípio do aproveitamento do acto administrativo.

Também é alterado o regime da ratificação, reforma e conversão dos actos administrativos, em especial, no tocante aos actos nulos.

Estas mudanças consagradas no CPA acabam por se repercutir no CPTA revisto, no referente ao objecto da acção administrativa30.

Interessa por isso, analisar as disposições de Direito material que assu-mem reflexos no Direito Processual Administrativo, que os tribunais admi-nistrativos são chamados a aplicar.

28 Cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, obra cit., pp. 41.29 Cfr. ANDRÉ SALGADO MATOS, “A invalidade do acto administrativo no projecto de revisão do novo CPA”,

CJA n.º 100, Jul./Ago. 2013, pp. 46-69 e “A invalidade do acto administrativo no Código do Procedimento

Administrativo de 2015”, in Estudos de Homenagem a Rui Machete, Almedina, 2015, pp. 87-121.30 Vide, ANA CELESTE CARVALHO, “O objecto e a modificação do objecto ”, obra cit., pp. 3-15.

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220 Ana Celeste Carvalho

a. Inexistência jurídica

Embora não expressamente regulada no CPA/91, a inexistência jurídica era admitida no âmbito do regime de invalidade dos actos administrativos, integrando o objecto da acção administrativa especial de impugnação de acto administrativo, que incluía quer a anulação, quer a declaração de nuli-dade e de inexistência jurídica de actos administrativos.

O novo CPA ao eliminar a inexistência jurídica do regime substantivo de in-validade dos actos administrativos, acarretou alterações no regime processual.

Embora a declaração de inexistência jurídica já não integre o objecto da acção impugnatória de acto administrativo, nos termos do n.º 1 do artigo 50.º do CPTA, que se refere apenas à declaração de nulidade e à anulação, não deixa de ter relevância no contencioso administrativo, como o demons-tra o disposto na alínea a), do n.º 2 do artigo 2.º do CPTA, que continua a referir-se à inexistência de actos administrativos.

A diferença introduzida no Direito Processual Administrativo radica na di-ferente pretensão judicial a deduzir em juízo, deixando de ser a impugnação de acto administrativo, para passar a ser o pedido de simples apreciação, à luz do disposto no n.º 1 do artigo 39.º e do n.º 4 do artigo 50.º, ambos do CPTA.

Assim, perante a incerteza da prática do acto administrativo ou quanto à afirmação pela Administração da prática de um acto administrativo, o par-ticular deve pedir ao tribunal que declare (pedido de simples apreciação) a inexistência do acto administrativo ao invés de pedir a sua impugnação.

b. Regime da nulidade

No novo CPA acentua-se a possibilidade de os tribunais reconhecerem efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos, de harmonia com os princípios da boa-fé, protecção da confiança e da proporcionali-dade ou outros princípios constitucionais, designadamente, associados ao de curso do tempo, segundo o n.º 3 do artigo 162.º.

Embora esta solução não seja nova, por já antes o juiz, por razões de justiça material, poder ressalvar certos efeitos de facto decorrentes de actos nulos, é agora reforçada, nos termos em que está regulada no CPA.

O regime jurídico da nulidade do acto administrativo é alterado, apelando para um papel mais activo do juiz administrativo na aferição dos pressupos-tos legais que determinam o reconhecimento de efeitos jurídicos decorrentes de situações de facto constituídas sob a égide de actos nulos, exigindo uma actuação mais ampla e conformadora da legalidade pelos tribunais adminis-trativos.

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Repercussões do Novo Cód. de Proced. Adm. na Revisão do Direito Proc. Administrativo 221

A ideia de legalidade administrativa deixa de estar submetida cada vez mais ao binómio de legalidade-validade/ilegalidade-invalidade, qual ciência exacta que define sem qualquer margem de conformação a solução do caso concreto, admitindo-se com muito maior abrangência os casos em que a ilegalidade não se reconduz à invalidade.

Esta alteração irá exigir que no âmbito da acção administrativa de im-pugnação de acto administrativo o juiz administrativo proceda a juízos de ponderação de interesses quanto à manutenção na ordem jurídica de efeitos de facto decorrentes de actos nulos.

Por aplicação de um conjunto de princípios jurídicos, enunciados no n.º 3 do artigo 162.º do CPA, consente-se que o acto administrativo ilegal se mantenha na ordem jurídica.

Seguindo esta linha de entendimento, foi eliminada a anterior alínea i), do n.º 2 do artigo 133.º do CPA/91, desaparecendo do ordenamento jurídico a nulidade dos actos consequentes dos actos anteriormente anulados jurisdi-cionalmente, que se apresentava como uma solução excessivamente rígida e com efeitos muito gravosos, em alguns casos, desproporcionalmente gravo-sos, designadamente, para os contra-interessados de boa-fé.

Neste âmbito relevam igualmente as disposições dos n.ºs 3 e 4 dos artigos 172.º do CPA e 173.º do CPTA, similares entre si quanto ao regime substan-tivo e adjectivo.

c. Regime da anulabilidade e o princípio do aproveitamento do acto

administrativo

No que respeita ao regime de anulabilidade, estabelece o n.º 3 do art.º 163.º um importante regime, cuja aplicação se fará quer pela Administração, quer pelos tribunais administrativos31.

Essa disposição prevê que não se produz o efeito anulatório do acto admi-nistrativo em três situações distintas, as quais constituem as causas da restri-ção dos efeitos da invalidade administrativa.

Está em causa a assumpção em letra de lei do princípio do aproveita mento do acto administrativo, que começou por ser de aplicação jurisprudencial, sendo acolhidos os contributos doutrinários e jurisprudências produzidos.

31 Sobre o tema, ANA CELESTE CARVALHO, “Os vários caminhos da jurisprudência administrativa na aplica-

ção do princípio do aproveitamento do acto administrativo”, in Estudos em Homenagem a Rui Machete,

Almedina, 2015, pp. 9-44 e PEDRO MACHETE, “Os limites do aproveitamento do ato administrativo”, CJA

n.º 101, Set./Out. 2013, pp. 64-67 e “O aproveitamento de atos administrativos ilegais”, in Estudos em

Homenagem a Rui Machete, Almedina, 2015, pp. 821-833.

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222 Ana Celeste Carvalho

O princípio do aproveitamento do acto administrativo conjuga um con-junto de temas próprios do âmago do Direito Administrativo, perpassando a matéria do regime de invalidade, da relevância da substância, do procedi-mento e da forma, do exercício dos poderes vinculados e dos actos discricio-nários e fazendo apelo a diversa ordem de considerações, como o princípio da celeridade, o princípio da utilidade na anulação de actos administrativos ou o princípio da economia processual ou de meios, de modo a extrair-se da anulação os seus efeitos típicos.

Tendo a reforma do processo administrativo de 2002/2004 introduzido uma crescente dimensão da defesa das posições subjectivas dos particulares, com expressão processual na nova acção de condenação à prática do acto devido, tal forma de processo permite assinalar as diferenças ao nível da tutela do direito das formas e formalidades, consoante o meio processual usado pelo particular.

Por a acção administrativa de condenação à prática do acto devido ser centrada na pretensão do interessado, os vícios formais ou de procedimento, reconduzíveis ao regime da anulabilidade, não são directamente tutelados, não constituindo fundamento para a procedência do pedido.

Assim, como a jurisprudência tem decidido32, deduzida pretensão mate-rial cuja tutela processual seja assegurada através da acção de condenação à prática do acto devido, prevalece a dimensão substantiva do direito do autor, pelo que não relevam as eventuais invalidades formais ou procedi-mentais, as quais, em regra, não são aptas a obter a condenação da entidade competente à prática de um acto ilegalmente omitido ou recusado.

Deste modo, na actualidade, tal como no passado, a maior relevância, quer teórica, quer prática, dos vícios formais e procedimentais, ocorre, so-bretudo, por via da acção impugnatória de acto administrativo, dirigidas à invalidade de actos de conteúdo positivo, cujo conteúdo não se esgote na mera recusa na emissão de acto administrativo33.

Por este motivo, a reforma de 2002/2004 e a do CPA de 2015 assumem relevância para a discussão do tema da aplicação do princípio do apro-veitamento do acto administrativo pelos tribunais administrativos, já que,

32 Cfr. Acórdãos, do STA, de 16/01/2013, P. 0232/12; do TCA Sul, de 02/02/2012, P. 04275/08 e de

20/06/2013, P. 06421/10, e do TCA Norte, de 12/10/2012, P. 00045/05.4BECBR.33 Visto não caber a possibilidade ao interessado de poder lançar mão de uma acção impugnatória para

obter a anulação de um acto administrativo de indeferimento, segundo o n.º 4 do artigo 51.º e os n.ºs 1

e 2 do artigo 66.º, do CPTA.

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Repercussões do Novo Cód. de Proced. Adm. na Revisão do Direito Proc. Administrativo 223

primeiro ao ampliar-se a natureza subjectiva do processo administrativo e depois, pela positivação do princípio do aproveitamento do acto adminis-trativo, limita-se a relevância processual dos vícios formais e procedimentais em relação aos vícios substanciais.

Ficam reguladas em lei as situações que habilitam o poder judicial ad-ministrativo a conformar a legalidade administrativa, não anulando o acto administrativo impugnado, não obstante se encontrar enfermado de algum vício.

Está em causa um princípio que habilita o juiz administrativo a proceder a juízos ponderativos relativos à irrelevância de ilegalidade cometida pela Administração, por apelo a valores e interesses relativos a eficácia, eficiência, racionalidade, celeridade, poupança de tempo e de recursos ou economia de meios, globalmente considerados, quer na vertente da Administração, quer do particular que com ela se relaciona ou até de terceiros, os contra--interessados de boa-fé.

Deste modo, é exigido ao poder judicial administrativo que proceda à formulação de valorações que vão em muito para além da aplicação da mera literalidade da lei, mediante a formulação de ponderações decisórias.

O princípio do aproveitamento do acto administrativo tem sido aplicado, sobretudo, a propósito de vícios formais e procedimentais, como a prete-rição da forma legal prescrita e a preterição de formalidades anteriores ou concomitantes à prática do acto, colocando-se, com maior incidência, na preterição de audiência prévia e na falta de fundamentação.

Até agora a maioria da jurisprudência tem excluído a aplicação do princí-pio no caso de verificação de vícios materiais ou de violação de lei.

Pensamos, porém, que as ilegalidades procedimentais e formais não esgo-tam o âmbito de aplicação do princípio do aproveitamento do acto adminis-trativo, como consideramos que o legislador vem agora reconhecer.

Excluindo a alínea b), do n.º 5, do artigo 163.º do CPA, que se refere expressamente aos vícios formais e procedimentais, as alíneas a) e c) consen-tem que o princípio do aproveitamento seja aplicado a actos que enfermem de vícios de outra natureza, conquanto se verifiquem os pressupostos legais previstos34.

34 Tratando-se de um acto estritamente vinculado ou que se encontre reduzida a zero a sua discricio-

nariedade, poderá verificar-se um vício material do acto, que não determine a produção dos seus efeitos

anulatórios, segundo a alínea a), do n.º 5 do artigo 163.º do CPA, assim em como em relação à sua alínea

c).

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224 Ana Celeste Carvalho

Perante a possibilidade de aplicação do princípio para além dos vícios formais ou procedimentais, significa que a ordem jurídica habilita o poder judicial a modular os efeitos decorrentes de uma qualquer invalidade admi-nistrativa.

Ocorrendo uma ilegalidade formal, procedimental ou também material ou substantiva, decorrente da violação de normas ou de princípios que regu lam a forma de organização, funcionamento e actuação da Adminis-tração, está o juiz habilitado, em determinados casos e sob certos condi-cionalismos, agora previstos nas alíneas do n.º 5, do artigo 163.º, do novo CPA, a permitir que certo acto administrativo continue a produzir os seus efeitos jurídicos.

Não se trata de algo inovatório no ordenamento jurídico ou sequer de uma especificidade do Direito Administrativo, por a ordem jurídica habilitar o poder judicial a modelar os efeitos decorrentes da invalidade normativa, decorrente da inconstitucionalidade ou ilegalidade de uma norma jurídica35. Em ambos os casos está em causa o tomar em consideração ponderativa va-lores que ultrapassam a estrita legalidade, restringindo, limitando ou mesmo evitando a destruição do acto ou da norma ilegal36.

No caso do acto administrativo, considerando a natureza instrumental das formas e formalidades, permite-se a irrelevância invalidante deste tipo de vícios, quando a preterição ou a omissão tenham permitido a verificação do objectivo previsto na lei, ou porque outras circunstâncias tornaram inútil a renovação do acto, por o conteúdo do acto não poder ser outro ou porque sem o vício, o acto teria sido praticado com o mesmo conteúdo, pelo que, desse modo, tornaram igualmente inútil a anulação judicial desse acto.

Verifica-se nestes casos a irrelevância do vício ou uma degradação ou des-valorização das formalidades essenciais (porque prescritas na lei) em forma-lidades não essenciais, permitindo-se que em honra de considerações pon-derativas de economia, celeridade, racionalidade e eficiência, o acto não seja destruído, apesar de ilegal.

35 Cfr. PAULO OTERO, “Manual de Direito Administrativo”, Vol. I, Almedina, pp. 555 e segs.36 Não obstante a sujeição da Administração a uma normação material e formal intensa e ao seu subse-

quente controlo jurisdicional, destinado a controlar a conformidade dessa actuação com a lei, é hoje

substancialmente diferente, quer o controlo da lei ou do legislador, em face da legalidade administrativa

e ao nível do papel e significado da lei, quer o controlo jurisdicional ou do juiz, ao nível do tipo, âmbito

e conteúdo do controlo jurisdicional, mantendo-se os imperativos de realização do interesse público a

cargo da Administração e a necessidade de salvaguardar os direitos dos particulares.

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Repercussões do Novo Cód. de Proced. Adm. na Revisão do Direito Proc. Administrativo 225

Não obstante a ilegalidade de que enferma, o acto administrativo não é anulado, permitindo-se que se mantenha na ordem jurídica, por aplicação do princípio do aproveitamento do acto administrativo.

Segundo a jurisprudência, “não se justifica a anulação de um acto, mesmo que enferme de um vício de violação de lei ou de forma, quando a existência desse vício não se veio a traduzir numa lesão em concreto para o interessado cuja protecção a norma visa, designadamente, no caso de um vício procedi-mental, quando a sua ocorrência não teve qualquer reflexo no procedimento administrativo”37.

Por isso, nos casos em que o princípio do aproveitamento do acto admi-nistrativo tem aplicação, ocorre uma contracção do princípio da legalidade, já que a ilegalidade do acto não obsta ao reconhecimento da sua produção de efeitos, tudo se passando como se o acto não se mostrasse eivado de inva-lidade ou como se o vício nunca tivesse existido.

Num balanço entre o princípio da legalidade e os valores que emergem do princípio do aproveitamento do acto administrativo, sobrepõem-se o peso das considerações decorrentes da eficácia, do custo-benefício e da celerida-de, eficiência, economia, decorrentes da ponderação dos interesses públicos e privados em presença.

Em face do ordenamento jurídico, o princípio do aproveitamento do acto administrativo constitui uma das vias possíveis de «modular os efeitos “destrutivos” da retroactividade decorrente da procedência de acção judicial impugnatória»38.

Como princípio de aplicação jurisprudencial, o princípio do aproveita-mento do acto administrativo permite evidenciar a relevância do papel do juiz na realização do Direito, mediante não apenas a aplicação da lei escrita, mas mediante a formulação de juízos de ponderação dos interesses e valores em presença.

O cerne da questão consiste em saber se certo vício, que não teve influên-cia no acto administrativo praticado, deve conduzir necessariamente à anu-lação do acto pelo tribunal ou se assiste a este o poder e, porventura, o dever de recusar essa anulação, por considerar o vício irrelevante, por aplicação do princípio do aproveitamento do acto administrativo.

37 Cfr. Acórdão do STA, de 22/05/2007, P. 0161/07.38 PAULO OTERO, “Manual …”, Almedina, pág. 564.

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226 Ana Celeste Carvalho

Subjaz a consideração ponderativa de que no caso de se poder afirmar, “sem margem para dúvidas”39, que não obstante o vício em que o acto in-correu, não houve lesão do interesse público, nem prejuízo relevante para o impugnante porque, embora através de outra via, se alcançaram, no caso concreto, os fins que se visavam atingir ou porque o conteúdo do acto não pode ser outro ou se comprova que o acto teria sido praticado com o mesmo conteúdo, não deve ser destruído o acto administrativo.

Se não existem vantagens para o interesse público na anulação, nem van-tagens para os particulares, onde se incluem os contra-interessados titulares de interesses legítimos na manutenção do acto, seja até para o próprio im-pugnante, por não lhe aproveitar os efeitos típicos da anulação, não existem razões que imponham a anulação judicial.

A anteceder esse juízo, deve o juiz analisar se a Administração, perante as circunstâncias do caso concreto e no quadro legal definido, iria decidir do mesmo modo ou se renovaria o acto, caso este fosse anulado, devendo esta questão ser respondida do ponto de vista jurídico, como questão de direito e não como uma prognose fáctica ou como uma questão de facto.

No caso de se considerar, no caso concreto, que o conteúdo do acto não pode ser outro ou que aquele concreto vício em que o acto incorreu não teve qualquer influência no sentido ou no conteúdo da decisão, então o tribunal não anula o acto administrativo40.

A expressão “sem margem para dúvidas”, referida apenas na alínea c), do n.º 5 do artigo 163.º, apela a uma ideia de forte convicção do julgador, que afasta qualquer margem de incerteza ou dúvida.

O regime delineado determina que quer o tribunal, quer a própria Admi-nistração Pública vêm delimitadas as circunstâncias em que não podem anu-lar o acto administrativo, devendo mantê-lo na ordem jurídica apesar de enfermar de algum vício.

Por este motivo, ao invés da dimensão processual, acentua-se agora a dimensão material ou substantiva do princípio do aproveitamento do acto administrativo.

39 A expressão é referida na alínea c), do n.º 5, do artigo 163.º, devendo aplicar-se às demais alíneas, por

quanto a elas valer o mesmo grau de exigência e de certeza.40 A solução assumida pelo legislador, permitindo que o juiz não retire consequências dos vícios de

forma ou do procedimento, é vista por ISABEL CELESTE FONSECA como “uma verdadeira desvalorização da

preterição dessas formalidades pelos entes administrativos”, obra cit., pág. 88.

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Repercussões do Novo Cód. de Proced. Adm. na Revisão do Direito Proc. Administrativo 227

d. Regime da ratificação, reforma e conversão dos actos administrativos

No que respeita ao regime de invalidade dos actos administrativos há ainda a salientar o regime previsto no artigo 164.º do CPA, referente à ratifi-cação41, reforma42 e conversão43 dos actos administrativos.

Tratam-se em todos os casos de possibilidade de sanação do acto adminis-trativo, em que não ocorre a destruição dos efeitos do acto inválido, como sucederia no caso da anulação administrativa ou da revogação.

É importante o disposto no n.º 5, do artigo 164.º, do CPA que determina que desde que não tenha havido alteração ao regime legal, a regra é a de a ratificação, reforma e conversão reatroagirem os seus efeitos à data dos actos a que respeitam, o que tem por consequência que tudo se passa como se os actos fossem válidos desde o momento em que foram praticados.

Quanto ao momento em que os actos de ratificação, reforma e conversão podem ser praticados, disciplina o n.º 1, do artigo 164.º, que se aplica a estes actos o regime de tempestividade que vale para a anulação administrativa, logo, até ao encerramento da discussão, nos termos do n.º 3, do artigo 168.º, do CPA.

Também releva no n.º 5, do artigo 164.º, do CPA, a possibilidade de anu-lação dos efeitos lesivos produzidos durante o período de tempo que tiver precedido esses actos, quando ocorrerem na pendência do processo impug-natório.

Ou seja, permite-se que o processo prossiga em relação aos efeitos pro-duzidos, à semelhança do previsto no n.º 1, do artigo 65.º, do CPTA, para a revogação sem efeitos retroactivos.

Este efeito permite que o autor obtenha a reconstituição da situação que deveria existir, permitindo obter o reconhecimento da ilegalidade do acto originário que foi objecto de sanação, mas apenas em relação aos efeitos já produzidos, pois o novo acto tem eficácia retroactiva44, com a consequência de eliminar os prejuízos entretanto causados pelo acto anterior e que foi impugnado contenciosamente.

41 A ratificação opera a convalidação do acto através da supressão da ilegalidade.42 Na reforma há a conservação da parte do acto anterior não afectada de ilegalidade.43 A conversão traduz-se na transformação do acto num outro acto através do aproveitamento dos elementos válidos do acto anterior.44 Cfr. n.º 5, do artigo 164.º, do CPA.

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228 Ana Celeste Carvalho

3.4. Regime substantivo da revogação e da anulação administrativa

e o regime processual da modificação do objecto da acção administrativa

(vicissitudes da instância)

Sendo uma das novidades introduzidas no novo CPA a distinção entre a revogação e a anulação administrativa, sendo regulados em termos subs-tantivamente diferentes esses regimes no artigo 165.º e seguintes, existem repercussões directas dessa regulação no processo judicial administrativo, designadamente, na modificação do objecto da acção administrativa.

Quer a revogação, quer a anulação administrativa45 podem ser de inicia-tiva oficiosa da Administração ou a pedido dos interessados, neste caso, através da reclamação ou do recurso hierárquico, segundo o n.º 1, do ar-tigo 169.º do CPA e têm por objecto os efeitos dos actos administrativos, incidindo sobre os actos que sejam susceptíveis de produzir ainda efeitos jurídicos46.

Estes regimes apresentam-se delineados em função de diferentes catego-rias, distinguindo-se em função:

i) do conteúdo dos actos administrativos – actos favoráveis/desfavorá-veis

ii) dos seus efeitos – efeitos instantâneos/duradourosiii) das posições jurídicas dos destinatários e de terceiros – direitos sub-

jectivos/interesses legalmente protegidos/posições precárias.

Além disso, há o apelo a ponderações de interesses e valores por parte da Administração, permitindo-se que os actos administrativos sejam permeá-veis às mudanças da realidade e à evolução do conhecimento.

As repercussões no plano processual ocorrem quando tiver sido impug-nado contenciosamente um acto administrativo e na pendência do processo ele vier a ser revogado ou anulado administrativamente.

Também relevam as situações em que tenham sido praticados novos actos administrativos, quer nos casos em que exista substituição do acto anterior, primitivamente impugnado, quer nos casos em que sejam praticados novos actos, mantendo-se o acto impugnado jurisdicionalmente.

45 Cfr. ROBIN DE ANDRADE, “O regime da revogação e da anulação administrativa no projecto do novo

CPA”, CJA n.º 100, Jul./Ago. 2013, pp. 70-79 e MARCO CALDEIRA, “A figura da “Anulação Administrativa”

no novo Código do Procedimento Administrativo de 2015”, in Comentários ao Novo Código do

Procedimento Administrativo, Coordenação de Carla Amado Gomes, Ana Fernanda Neves e Tiago

Serrão, AAFDL, 2015, pp. 641-678.46 Cfr. n.ºs 1 e 2, do artigo 166.º, do CPA.

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Repercussões do Novo Cód. de Proced. Adm. na Revisão do Direito Proc. Administrativo 229

Vejamos estas situações. O artigo 63.º do CPTA regula a ampliação da instância, no âmbito das

acções de impugnação de acto administrativo, permitindo que até ao encer-ramento da discussão em primeira instância, o objecto do processo possa ser ampliado à impugnação de actos que venham a surgir no âmbito ou na sequência do procedimento em que o acto impugnado se insere.

No mesmo sentido, estabelece o n.º 3, do artigo 168.º, do CPA, prevendo que quando o acto tenha sido impugnado jurisdicionalmente, a anulação administrativa só pode ter lugar até ao encerramento da discussão47.

Quanto a esse momento processual, deve entender-se por encerramento da discussão a fase de apresentação de alegações finais orais em audiência pública ou o termo do prazo para as alegações finais escritas, quando as partes não tenham renunciado à sua apresentação, haja ou não audiência de julgamento, segundo o artigo 604.º, n.º 3, alínea e) do CPC e os artigos 91.º, n.º 3, alínea e) e 91.º-A, n.º 5, do CPTA ou, no caso de as partes terem dispensado as alegações finais e o estado do processo o permita sem mais indagações conhecer do mérito da causa, o termo da fase dos articulados ou da audiência prévia, se a ela houver lugar, nos termos dos artigos 87.º, 87.º-A e 87.º-B, do CPTA.

Por outro lado, estipula o n.º 5 do artigo 168.º, do CPA que quando, nos casos previstos nos n.ºs 1 e 4, do artigo 168.º, do mesmo Código quando o acto se tenha tornado inimpugnável por via jurisdicional, só pode ser anula-do administrativamente e de forma oficiosa.

Esta norma pretende abranger as várias situações de anulação administra-tiva, em que são previstos diversos prazos, permitindo que a anulação possa ocorrer até ao prazo máximo de 5 anos, a contar da emissão do acto, ou seja, indo muito para além dos prazos de impugnação jurisdicional, previstos no artigo 58.º do CPTA, de 3 meses e de 1 ano, não podendo, neste caso, exce-der um ano.

Pretende o n.º 5 do artigo 168.º, do CPA dizer que quando já tenha decor-rido o prazo de impugnação jurisdicional, que está à mercê dos interessados, só pode existir a anulação administrativa de iniciativa oficiosa da Adminis-tração, pois estando já esgotado o prazo de impugnação jurisdicional, tam-bém já se terá esgotado o prazo para a reclamação e o recurso hierárquico, que permitiriam a anulação administrativa a pedido dos interessados.

47 O CPA/91 previa que a revogação de actos inválidos ocorresse até à resposta da entidade recorrida,

sendo este prazo hoje mais dilatado, podendo ocorrer numa fase mais adiantada do processo.

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230 Ana Celeste Carvalho

Esta norma tem um efeito disciplinador, pretendo evitar que os actos que judicialmente já se tenham constituído como casos decididos ou consolida-dos possam voltar a ser reapreciados administrativamente, por impulso ou iniciativa dos interessados, contornando artificialmente o regime dos prazos de impugnação contenciosa, assim como a inimpugnabilidade dos actos por decurso do prazo.

Por este motivo, no caso de o interessado, depois de decorrido o prazo de impugnação contenciosa, requerer a sua anulação administrativa, a de-cisão que venha a ser proferida nunca constituirá um acto administrativo impugnável, para o efeito de reabrir o prazo de impugnação contenciosa já esgotado, por dever ser considerada como um acto confirmativo do acto administrativo anterior.

No que se refere ao direito de indemnização como consequência da anu-lação administrativa de actos constitutivos de direitos importa atender aos artigos 168.º, n.º 6, do CPA e 173.º, n.º 3, do CPTA.

Segundo o artigo 172.º, do CPA, em consequência da anulação adminis-trativa de um acto administrativo há a faculdade de poder praticar novo acto administrativo, tanto mais que a anulação administrativa constitui a Admi-nistração no dever de reconstituir a situação que existiria se o acto anulado não tivesse sido praticado.

Estabelece o n.º 2, do artigo 172.º, do CPA, que a Administração pode ficar constituída no dever de praticar actos dotados de eficácia retroactiva, desde que não envolvam a imposição de deveres, encargos, ónus e sujeições, a aplicação de sanções ou a restrição de direitos ou interesses legalmente protegidos, assim como, no dever de anular, reformar ou substituir os actos consequentes sem dependência de prazo e alterar as situações de facto en-tretanto constituídas, cuja manutenção seja incompatível com a necessidade de reconstituir a situação que existiria se o acto anulado não tivesse sido praticado.

No mesmo sentido e com redacção idêntica, prevêem os n.ºs 1 e 2 do artigo 173.º, do CPTA, no âmbito do regime de execução de sentenças de anulação de actos administrativos, ao impor à Administração, no respeito pelos limites do caso julgado, o dever de reconstituir a situação que existiria se o acto anulado não tivesse sido praticado, podendo ficar constituída no dever de praticar actos dotados de eficácia retroactiva.

Por outro lado, segundo o n.º 1, do artigo 173.º, do CPA, são aplicáveis à alteração e substituição de actos administrativos, as normas reguladoras da revogação.

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Repercussões do Novo Cód. de Proced. Adm. na Revisão do Direito Proc. Administrativo 231

Nos termos do n.º 2, do artigo 173.º, do CPTA, a substituição de um acto administrativo anulável ainda que na pendência do processo jurisdicional, por um acto válido com o mesmo conteúdo sana os efeitos por ele produzi-dos, assim como os actos consequentes.

Considerando o regime traçado para a anulação e revogação, isto é, a possibilidade de na pendência do processo serem praticados novos actos administrativos e de forma a permitir ao autor ampliar o objecto da acção, impõe-se na própria norma que regula a ampliação da instância, no n.º 3, do artigo 63.º, do CPTA, que deve a Administração trazer ao processo a infor-mação da existência de eventuais actos conexos com o acto impugnado, que venham a ser praticados na pendência do mesmo.

O artigo 63.º do CPTA, relativo à ampliação da instância, aplica-se às situa-ções em que na pendência da acção de impugnação de acto administrativo é praticado um novo acto administrativo que se insere no procedimento do acto impugnado, permitindo a impugnação desse novo acto e a formulação de novas pretensões que possam ser cumuladas com a impugnação do acto administrativo, incluindo as situações em que o acto impugnado se insira num procedimento pré-contratual, relativo à formação de um contrato e o contrato vir a ser celebrado na pendência da instância.

Doutro modo regula o artigo 64.º do CPTA o regime da alteração da ins-tância, reflectindo na instância as repercussões substantivas da anulação administrativa, da sanação e da revogação do acto impugnado com efeitos retroactivos.

Este preceito respeita à situação em que não ocorre apenas a prática de novo acto jurídico na pendência da instância, mas a prática de novo acto jurídico acompanhada ou sucedida de nova regulação, que determina a ces-sação dos efeitos jurídicos produzidos pelo acto impugnado.

Sendo a consequência normal, a extinção da instância, por impossibili-dade superveniente da lide, por perda de objecto, permite-se que a instância seja aproveitada para impugnar essa nova regulação, desde que o funda-mento consista na reincidência nas mesmas ilegalidades48.

Isso significa que a possibilidade de alteração da instância a que se refere o artigo 64.º ficou diminuída, já que apenas se poderá aproveitar a primitiva instância, assim como a prova aí produzida, no caso de o novo acto reincidir nas mesmas ilegalidades.

48 Comparando a versão inicial do CPTA e a sua versão revista, verifica-se a alteração da redacção do

artigo 64.º, substituindo-se nos n.ºs 1 e 4, “outras ilegalidades” pelas “mesmas ilegalidades”.

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232 Ana Celeste Carvalho

A prática tem ditado que nestes casos a Administração tenderá a não in-

correr na mesma ilegalidade, mas em ilegalidades diferentes, o que não se

apresenta coberto pela previsão da norma do artigo 64.º, resultando num

âmbito de aplicação mais restrito.

Assim, a possibilidade de pedir a alteração ou substituição do objecto do

processo, nos termos regulados no artigo 64.º incidirá apenas sobre os novos

actos jurídicos que incidam na mesma ilegalidade.

O prazo temporal é igualmente distinto em ambos os preceitos, pois no

caso do artigo 63.º, a ampliação da instância pode ocorrer até ao encerra-

mento da discussão em primeira instância, quando segundo o artigo 64.º o

prazo para a substituição do objecto do processo é mais extenso, podendo

ocorrer até ao trânsito em julgado da decisão que julgue extinta a instância.

Essa diferença quanto ao prazo radica nas diferentes implicações pro-

cessuais das situações em causa, pois no caso da ampliação da instância o

processo tem objecto, o qual é ampliado, ao passo que no caso da alteração

do objecto, o processo perdeu o seu objecto, ficou sem objecto, visando a

alteração dotar a lide de um objecto novo, que substitui o primitivo, que

deixou de existir.

Porém, clarifica o n.º 3, do artigo 64.º, do CPTA, que a perda de objecto

não tem de ser total, podendo ser meramente parcial, no caso de o acto ter

sido total ou parcialmente alterado ou substituído por outro.

E é nesta norma que se compreende verdadeiramente qual o âmbito de

aplicação do artigo 64.º, permitindo-nos discordar da sua epígrafe.

Ao passo que o artigo 63.º se refere às consequências processuais decor-

rentes da actuação dos órgãos administrativos, visando conformar a instân-

cia com a prática de novos actos, permitindo a sua ampliação, a epígrafe do

artigo 64.º não reflecte as repercussões processuais da actividade administra-

tiva decorrentes da anulação administrativa, sanação e revogação do acto,

por antes se referir à própria actuação material.

Todas estas figuras são figuras de Direito material ou substantivo, previs-

tas e reguladas no CPA quando o que se pretende regular na lei processual

são os efeitos processuais dessa actuação material administrativa.

Deste modo, deveria ser outra a epígrafe do artigo 64.º, que prevesse a

realidade processual que visa regular, ou seja, a alteração ou substituição

da instância.

Por conseguinte, o artigo 63.º regula a ampliação da instância e o artigo

64.º regula a alteração ou substituição da instância.

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Repercussões do Novo Cód. de Proced. Adm. na Revisão do Direito Proc. Administrativo 233

Um aspecto particular do regime regulado no n.º 4, do artigo 64.º, e que nos merece questionamento consiste a possibilidade de reabertura de uma instância já extinta e transitada em julgado, traduzida na sua novação. Tra-duz essa possibilidade em estender o princípio do inquisitório no processo administrativo, com perigo para as finalidades do princípio da igualdade das partes e do processo equitativo.

Neste âmbito, consagra-se um outro prazo para a impugnação no novo acto administrativo, para além do previsto para a ampliação da instância, no n.º 1, do artigo 63.º (até ao encerramento da discussão em primeira instân-cia) e para a alteração ou substituição da instância, no n.º 2 do artigo 64.º (até ao trânsito em julgado da decisão que põe fim à instância), que consiste o prazo de impugnação contenciosa.

Significa que nas circunstâncias do n.º 4, do artigo 64.º, do CPTA, mesmo que tenha ocorrido o trânsito em julgado da extinção da lide, o autor pode pedir a reabertura da instância para a impugnação de novos actos, com fun-damento na reincidência nas mesmas ilegalidades, conquanto o faça dentro do prazo legal da sua impugnação contenciosa.

Esta solução não se apresenta linear considerando as desvantagens que existem na reabertura de um processo findo e transitado em julgado e con-siderando os prazos previstos no artigo 58.º para a impugnação, designada-mente, as situações previstas nas várias alíneas do seu n.º 3, que permitem a impugnação de actos administrativos para além do prazo de três meses, podendo ocorrer a novação da instância decorridos longos meses ou até mais de um ano após a extinção da instância.

O regime delineado no artigo 64.º do CPTA, aplica-se quer à anulação administra tiva, quer à revogação, desde que, em ambos os casos, a nova regulação tenha eficácia retroactiva.

Quanto ao artigo 65.º do CPTA, o que o distingue em relação ao artigo 64.º é de ter o seu âmbito de aplicação limitado à revogação, ou seja, à cessa-ção dos efeitos jurídicos dos actos discricionários, com efeitos apenas para o futuro, ou seja, no caso da revogação sem efeitos retroactivos, não destruin-do os efeitos do acto já produzidos ou que se tenham verificado entre a data da sua prática e a sua revogação.

Neste caso, ocorrendo a revogação do acto sem eficácia retroactiva na pendência do processo, prevê-se que a acção prossiga apenas em relação aos efeitos produzidos, de forma a permitir ao autor obter a integralidade da reconstituição da situação que deveria existir caso não tivesse sido praticado o acto revogado.

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Assim, a situação prevista no artigo 65.º ocorre quando existiu a revoga-ção do acto impugnado sem efeitos retroactivos, sem substituição do acto, porque não se lhe seguiu a prática de novo acto, pois se tiver sido praticado novo acto, o n.º 3, do artigo 65.º, remete para o regime do artigo anterior, o artigo 64.º.

Está em causa a assumpção da regra prevista no artigo 171.º do CPA, segundo a qual, por regra, a revogação apenas produz efeitos para o futuro, sem prejuízo de o autor da revogação poder no próprio acto atribuir-lhe eficácia retroactiva, quando esta seja favorável aos interessados ou quan-do estes concordem expressamente com a retroactividade e não estejam em causa direitos ou interesses disponíveis.

Por sua vez, o n.º 2, do artigo 171.º, do CPA, estabelece que, salvo dis-posição especial, a anulação administrativa produz efeitos retroactivos, po-dendo o autor da anulação atribuir eficácia para o futuro, quando o acto se tenha tornado inimpugnável contenciosamente.

Concluindo, em regra, a revogação produz efeitos apenas para o futuro e a anulação efeitos retroactivos, podendo num caso e no outro órgão admi-nistrativo fixar os efeitos de modo diferente.

No que respeita à acção de condenação à prática de acto devido, o artigo 70.º do CPTA, regula a alteração da instância, permitindo que na pendência instância e dentro do prazo de 30 dias, contados desde a notificação do novo acto, o autor peticione a anulação parcial do novo acto ou a condenação à prática do acto necessário à satisfação integral da sua pretensão, quando na pendência do processo, a pretensão do interessado seja indeferida ou recusada.

Do ponto de vista do Direito material, importa o disposto no artigo 173.º, do CPA, relativo à alteração e substituição dos actos administrativos, ao qual se aplica o regime previsto para a revogação.

Se a alteração ou substituição de um acto administrativo anulável ocor-rer na pendência de um processo jurisdicional, por um acto válido com o mesmo conteúdo, ficam sanados os efeitos por ele produzidos, assim como os actos consequentes, segundo o n.º 2, do artigo 173.º, do CPA.

À semelhança do previsto noutros preceitos, o n.º 3 do artigo 173.º do CPA vem prever que se o acto substituído tiver por objecto a imposição de deveres, encargos, ónus ou sujeições, a aplicação de sanções ou a restrição de direitos ou interesses legalmente protegidos, a renovação não prejudica a possibilidade de anulação dos efeitos lesivos produzidos durante o período de tempo que precedeu a substituição do acto.

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Repercussões do Novo Cód. de Proced. Adm. na Revisão do Direito Proc. Administrativo 235

O artigo 173.º, do CPTA, está previsto para os casos em que a Administra-ção não pode lançar mão da ratificação, reforma ou conversão, previstas no artigo 164., do CPA, por não ser possível a convalidação de um acto ilegal, por falta dos seus requisitos materiais, mas pode lançar mão de um acto reno-vatório que não reincida nas mesmas ilegalidades cometidas no acto anterior.

No caso do artigo 173.º está em causa possibilitar à Administração que pratique um acto com o mesmo conteúdo, ou seja, renovar o acto, não se confundindo com a sanação do artigo 164.º, nem com a anulação adminis-trativa do artigo 168.º, pois não existe a convalidação do acto anterior, nem ocorre a destruição dos efeitos do acto anterior pela sua anulação, assim como não ocorre uma nova regulação da situação jurídica através da anula-ção por substituição, antes existindo a substituição de um acto anterior por outro com os mesmos efeitos de direito.

Dos regimes expostos, extrai-se a ligação que hoje existe entre o regime substantivo da revogação e da anulação administrativa e o regime pro cessual da modificação do processo, da ampliação e da alteração da instância, tor-nando-se exigível interpretar e aplicar o regime processual à luz do regime substantivo.

3.5. Alargamento da tutela executiva jurisdicional

No âmbito do regime de execução releva quer a execução de sentenças, quer a execução jurisdicional de actos administrativos de que a Administra-ção não disponha do poder de auto tutela executiva49.

Em consequência da opção prevista no CPA, mas ainda não concretizada, de alterar o regime de execução administrativa, será alterado o regime da execução jurisdicional, a realizar pelos tribunais administrativos.

Neste sentido, dispõe o artigo 183.º do CPA ao prever a execução pela via jurisdicional, perante o tribunal administrativo competente, sempre que nos termos do CPA e demais legislação aplicável, a satisfação de obrigações ou o respeito por limitações decorrentes de actos administrativos não possa ser imposto coercivamente pela Administração.

Esta disposição articula-se com a alínea n), do artigo 4.º, do ETAF, segundo a qual cabe na esfera de jurisdição dos tribunais administrativos a execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de actos admi-nistrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração.

49 Cfr. RUI GUERRA DA FONSECA, “O procedimento de execução dos actos administrativos no novo Código do

Procedimento Administrativo”, in Estudos de Homenagem a Rui Machete, Almedina, 2015, pp. 905-930.

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Tal constitui uma consequência do previsto no n.º 1, do artigo 176.º, do CPA, nos termos da qual a satisfação de obrigações e o respeito por limita-ções decorrentes de actos administrativos só podem ser impostos coerciva-mente pela Administração nos casos e segundo as formas e termos expres-samente previstos na lei, remetendo para lei a aprovar o regime de execução dos actos administrativos.

Por esse motivo, os artigos 6.º e 8.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro, que aprova o novo CPA, prevêem que o n.º 2, do artigo 149.º, do CPA/91 se mantém em vigor e que o n.º 1, do artigo 176.º, do novo CPA se aplica a partir da data da entrada em vigor do diploma que define os casos, as formas e os termos em que os actos administrativos podem ser impostos coercivamente pela Administração, a aprovar no prazo de 60 dias a contar da data da entrada em vigor do presente decreto-lei.

Como decorrido esse prazo essa legislação não foi aprovada, significa que o regime de execução dos actos administrativos se encontra incompleto e inacabado.

No que se refere à execução de sentenças anulatórias, à semelhança do que se encontra regulado no artigo 172.º do CPA, o artigo 173.º do CPTA, estabelece o dever de executar a sentença anulatória e regula os efeitos da anulação de actos administrativos, numa inteira sintonia entre o regime pro-cedimental e o processual.

O regime delineado, embora ainda não completo, determina quanto à tutela executiva jurisdicional, que se rompeu com o paradigma do privilé-gio da execução prévia da Administração, pois embora a entrada em vigor deste regime esteja dependente de um diploma legal a aprovar, o legislador já regulou de forma inovatória e substancialmente diferente o instituto da execução dos actos administrativos.

Com efeito, no tocante ao regime da execução dos actos administrativos, exige-se expressamente que seja praticado o acto administrativo exequendo, a anteceder qualquer acto jurídico ou operação material, segundo o artigo 177.º do CPA e prevê-se que a execução coerciva só pode ser realizada pela Administração nos casos expressamente previstos na lei ou em situações de urgente necessidade pública.

Caberá ao poder judicial densificar e concretizar, em cada caso, o que se deve entender por «urgência pública», de forma a habilitar a Administração a executar o acto administrativo, salvo nos casos de obrigações pecuniárias.

Em suma, sem esgotar o diálogo entre normas administrativas, são apre-sentadas algumas repercussões do novo CPA no Direito Processual Admi-nistrativo.