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Questões preliminares
Este capítulo, conforme prometido na Introdução, destina-se a abordar três
questões preliminares que nos parecem úteis à discussão de fundo a ser travada
nos capítulos seguintes. Por seu caráter preliminar, ou seja, servindo apenas para
preparar caminhos, não tem a mínima pretensão de ser exaustivo. São elas:
1) Tentativa de contextualização instrumental, ad hoc, para os propósitos
deste trabalho, do ambiente político e “literário” da Atenas do século V
a.C.
2) A questão socrática: perplexidades do exame das quatro fontes –
Aristófanes, Xenofonte, Platão e Aristóteles.
3) O Sócrates dos diálogos de Platão – visão evolutiva contra visão
unitária.
2.1
Tentativa de contextualização instrumental, ad hoc, para os propósitos deste trabalho, do ambiente político e “literário” da Atenas do século V a.C.
É impossível enfatizar o suficiente a relevância de uma contextualização
prévia à leitura de qualquer texto clássico de literatura ou filosofia, dado o abismo
de milênios que nos separam de sua cultura e problemas, sobretudo se o autor é da
complexidade de Platão, que reúne, como ninguém antes ou depois, duas
condições: a de filósofo e a de literato.
É como resume Michael Stokes (1992, p.28): “A verdade é que o texto de
Platão fica mais difícil cada vez que se retorna a ele e as dificuldades não são as
de seguir o significado, no sentido estrito, mas de entender exatamente o que está
acontecendo.”
Além disso, ao nosso ver, a importância de alguns esclarecimentos desse
tipo se deve, sobretudo, à dificuldade ou resistência observada no meio filosófico
à contextualização adequada de pensamentos e pensadores da Antiguidade, o que
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tem dado margem ao recalque ou à secundarização de aspectos cruciais na
interpretação de Platão: a forte motivação político-literária de seu impulso
originário a fazer filosofia, por exemplo.
Costumeiramente, esse tema é tratado, quando muito, em nível de
anedotário, através das historietas provenientes de Diógenes de Laércio e outros
cronistas da Antiguidade14.
Embora sugestivas, pitorescas e até verossímeis, por compatíveis com
referências autobiográficas do próprio Platão, a exemplo da fornecida na Carta
VII15, pouca ou nenhuma consequência se tem tirado, seja dessas referências
lendárias, seja das autobiográficas, em termos de tomá-las em conta, de algum
modo, no esforço interpretativo dos propósitos temáticos e literários dos diálogos,
e dos eventuais nexos entre estes.
Nesta dissertação, pretende-se dar um pouco mais de destaque e algum valor
operativo aos elementos políticos e literários na interpretação da obra platônica,
sobretudo a inicial16, e também tentar esclarecer as razões de sua íntima
articulação – articulação que faz com que o último livro da República, “obra
central para a qual convergem todas as linhas dos escritos anteriores” (JAEGER,
1995, p.749), culminância das preocupações platônicas com a téchne politiké, seja
reservado como arena do combate final entre filósofo e poeta.
Ou, nas palavras de Jaeger (Ibid., p.588):
“Para o homem cujas obras fundamentais são a República e as Leis, a política era não só o conteúdo de certas fases de sua vida, durante as quais se sentia impelido à ação, mas também o fundamento vivo de toda a sua vida espiritual.”
E não se trata aqui de uma idiossincrasia de Platão: para começar, a ideia
prevalente até a Grécia clássica é a da indissociabilidade entre a função estética, a
político-moral-religiosa e a educativa da poesia.
É essa também a opinião de Marrou (1990, p.27):
14 A mais famosa anedota de Diógenes de Laércio sobre a vocação literária de Platão reza o seguinte: “Quando se preparava para participar de um concurso de comédias, ele passou a ouvir Sócrates em frente ao teatro de Dionisos, e então jogou às chamas seus poemas... (...) Dizem que a partir de então, aos vinte anos, tornou-se discípulo de Sócrates.” 15 “Quando eu era jovem, minha experiência foi a mesma de muitos outros. Eu pensava que tão logo me tornasse senhor de mim mesmo, eu me encaminharia imediatamente para os assuntos públicos da pólis”, in Carta VII, passo 324b8-10. 16 Pela proximidade com a sua suposta motivação político-literária para escrever.
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“Porque a ética cavalheiresca que permanecia no centro do ideal grego é que Homero, intérprete eminente desse ideal, foi escolhido e conservado como texto de base na educação. É necessário, com efeito, reagir contra uma apreciação puramente estética de sua longa primazia: não foi sobretudo por ser obra-prima literária que a epopeia foi estudada, mas porque seu conteúdo fazia dela um manual ético, um tratado do ideal.”
Jaeger vai ainda além (op.cit., p.18, 19, 61-62):
“A ‘literatura’ grega clássica se eleva acima da esfera do puramente estético, onde a quiseram em vão encerrar, e exerce um influxo incomensurável através dos séculos.
A história da educação grega coincide substancialmente com a da literatura. (...) A não-separação entre estética e ética é característica do pensamento grego
primitivo. Homero, e como ele todos os grandes poetas da Grécia, deve ser considerado
como o primeiro e maior criador e modelador da humanidade grega.”
Não obstante, é exatamente esse pretendido nexo da poesia com a educação
moral que é questionado e atacado por Platão.
A crítica platônica visa à pretensão educativa da poesia, às vezes satirizada
(como no Íon, por exemplo), outras, desafiada pelo princípio de especialização,
em que a cada téchne corresponderia um só e determinado objeto (como no
próprio Íon, 537c4-541c), embora o próprio Platão cuide de preservar essa mesma
unidade estético-ética no interior de sua filosofia, vazada em diálogos e, portanto,
também poética, no sentido de mimética e ficcional.
Mas aqui cabe uma pergunta contextualizadora: o que se entendia por
“literatura” no século V a.C. grego?
A resposta, numa palavra, seria: educação, e educação por modelos, fixados
na poesia, de homens extraordinários, mantendo vivos na memória da humanidade
futura “os feitos e ditos memoráveis de heróis e deuses”.
Seja como for, pertença a disputada prerrogativa de educação moral à
filosofia platônica ou à tradição poética, o certo é que resta sempre um certo grau
de anacronismo no uso dessa palavra – literatura –, para exprimir hoje um
conceito ainda incipiente então. Não havia disso nenhum equivalente na época.
O próprio Aristóteles, numa obra tardia, a Poética, bem posterior à morte de
Platão, não encontra, no léxico grego de seu tempo, palavra para designar o que
hoje entendemos por isso. Diz ele (1447b): “Mas a arte que imita só com a
linguagem, em prosa ou em verso, e, neste caso, com versos diferentes
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combinados entre si ou com um só gênero deles, permanece até agora inominada
(anónymos).” (grifo meu)
De toda sorte, a poesia era vista como a única produção humana capaz de
fornecer uma visão unitária do real em todos os seus aspectos mais importantes.
Era assim uma téchne especial, uma supertéchne. E, para substituí-la em seu
governo espiritual sobre a cidade, a filosofia teria de preencher melhor que ela
essas funções.
Tendo como “objeto” o real em sua inteireza, o poeta, de certa forma, “sabe
tudo”, tem um tipo de conhecimento “transversal”, sem um objeto específico, em
relação a vários campos de saber. O poeta faz no real um recorte significativo,
edita o real, tornando-o representativo do que deseja comunicar.
Assim, não é à toa que após os dois presumíveis primeiros diálogos,
Apologia e Críton, de apresentação de seu personagem Sócrates, os dois diálogos
provavelmente seguintes17 – Íon e Hípias Menor – enfrentem tanto a pretensão de
ser o conhecimento poético confiável (uma téchne) quanto a de ser um
conhecimento total (daí a caricatura do polímata Hípias).
O próprio Kahn (1996b, p.102) chega perto desse tipo de observação,
quando identifica uma continuidade temática entre esses dois diálogos, centrada
na discussão da téchne.
De todo modo, cabe insistir na pergunta: no ambiente cultural da Atenas do
século V a.C., pode-se falar em “literatura”, no mesmo sentido em que
empregamos esse termo em nossos dias?
Segundo o Webster’s Ninth New Collegiate Dictionary, o que se encontra
no verbete “literatura” é o seguinte:
“Literatura n [ME, fr. L Litteratura escrita, gramática, aprendizado, fr. Litteratus] (14 c) 1. arcaico: cultura literária 2. a produção de trabalho literário esp. como ocupação 3 a: escritos em prosa ou verso, esp. escritos tendo excelência de forma ou expressão e expressando ideias de interesse permanente e universal; b: o corpo de obras escritas sobre um assunto particular <literatura científica>; d: matéria impressa (como folhetos ou circulares) <literatura de campanha> 4. agregado de composições musicais <literatura para piano de Brahms>.” (grifos meus)
O elemento comum a essas definições de literatura é o seu caráter escrito.
Sabe-se que a escrita só se teria disseminado em Atenas perto do final do século V
17 Essa cronologia é de Kahn, e está detalhada a partir da p.69 desta dissertação.
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a.C. e, ainda assim, o hábito prevalente continuava o da leitura pública, em voz
alta, de textos poéticos, como no caso do rapsodo Íon do diálogo homônimo de
Platão, conforme veremos a seguir na lição de Havelock a respeito.
Por outro lado, a questão da formação moral e política é considerada, na
chamada “educação antiga”, o mais remoto e o mais importante aspecto da poesia
(MARROU, op.cit., p.27-28).
No Protágoras, o sofista apresenta noção similar, em 339a:
“Protágoras – “Sou do parecer, Sócrates, que, para qualquer pessoa, um dos pontos fundamentais da educação é o conhecimento a fundo da poesia, a saber, a capacidade de discernir nas obra dos poetas o que foi dito com acerto e o que não foi, bem como a de explicá-las e de saber fundamentar, quando interrogado, suas conclusões.”
E são indissociáveis, ao se falar em poesia na Grécia, o seu aspecto mais
direta e propriamente “técnico” de manipular pensamentos, emoções e ações dos
personagens e esse aspecto paidêutico mais geral. Exemplos significativos não
faltam.
Os tragediógrafos eram conhecidos como “didáskalos” (educadores, de
“didásko”, educar) e um dos maiores deles, Ésquilo, costumava dizer que suas
tragédias tinham a função precípua de “educar pelo sofrimento”18 (páthei máthos,
educação pelo sofrimento).
Por outro lado, também a comédia reivindicava a mesma prerrogativa
educativa (por outros caminhos, claro). Em As rãs, peça que tematiza um agón
travado no Hades entre Eurípides e Ésquilo pela coroa de maior poeta grego e
portanto pelo título de mais qualificado para ser resgatado da morte, por Dioniso,
de volta a uma Atenas que se ressentia da falta de sucessores à altura, discute-se o
principal critério a ser apurado nessa avaliação. E o critério fundamental por que
se inicia o confronto não é o “artístico”, o da medida dos recursos poetológicos
dos contendores, mas o da influência de cada um no aperfeiçoamento moral e
político dos concidadãos.
É assim que Ésquilo pergunta ao seu rival Eurípides:
“Ésquilo – Responde-me: em que é que devemos admirar um poeta?
18 Ver Coro do Agamêmnon, v.160: “(Zeus) que rasgou aos mortais o caminho dos conhecimentos, com esta lei: pela dor à sabedoria”, in Jaeger, eia2003, p.313.
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Eurípedes – Pela sua inteligência e bom conselho, porque tornamos melhores os homens na cidade. Ésquilo – Portanto, se não fizeste isso, mas de bons e nobres os tornaste os piores patifes, que pena dirás tu que deves sofrer? Dioniso – A morte.” (As rãs, 1010).
Para Platão, homem de seu tempo, essas não são também, em princípio,
questões distintas (ou seja, expressão “literária” e formação moral), pelo menos
no que concerne ao objetivo final de sua produção literária, os seus diálogos:
tornar melhores os cidadãos.
Mas há uma ruptura do Sócrates platônico com essa articulação: ele nega
qualquer papel de formação moral à poesia, confiando tal papel à sua própria
oralidade dialética.
Ocorre que Platão, embora pareça negá-la teoricamente como paideia, usa,
por outro lado, um sucedâneo seu, purificado de emoções e racionalizado,
inventado por ele, na forma de seus próprios diálogos socráticos19.
Mas, mesmo admitindo-se que é com a formação do homem grego que a
poesia sempre esteve envolvida, será que isso a credencia a ter o monopólio da
educação moral e política? Afinal, é esse seu objeto, como téchne que pretende
ser? Ou teria tido, e desde sempre, como alvo imediato a mobilização das
emoções em concerto com certa reflexão sobre seu significado, resultando em
algo difícil de definir, a que se pode vagamente chamar de “prazer estético”?
Não seria seu produto final uma afecção que não tem nem a unidade e o
nível de abstração teórica do pensamento conceitual (próprio da filosofia moral)
nem a multiplicidade e rebeldia à universalização da experiência viva (como é
próprio de nossas emoções cotidianas), mas que participa tanto da vivacidade
desta como da lucidez daquela?
No fundo, aquilo para o que essas questões apontam é para a diferença, em
termos de seus respectivos objetos imediatos, entre poesia e literatura, de um lado,
e a filosofia moral, de outro, pelo menos como nós as conhecemos.
Sem dúvida que a literatura, em nossos dias, tem importante papel em nossa
formação moral, mas tem ao lado (ou acima) disso outros objetivos mais próprios
do que esse, e, de qualquer modo, exerce esse papel de maneira indireta, pela
ficção, contando uma história, por exemplo.
19 Em última análise, trata-se aqui da noção, aplicada não só a conceitos, mas também aos gêneros discursivos vigentes, de “transposição” platônica, aventada por A. Diés (1972, p.400-449).
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A ninguém, portanto, ocorreria sugerir hoje como objeto próprio, exclusivo
ou essencial da literatura, do fazer poético, enfim, prover a educação moral e
política dos leitores. Mas era exatamente essa a pretensão da poesia desde Homero
até os dias de Platão. E é precisamente ou precipuamente por lhe ser reconhecido
esse papel formador, talvez mais que por sua habilidade em produzir beleza, que
Homero e os poetas gozavam de enorme prestígio entre os gregos.
Só que a tradição poética veiculava uma visão de mundo mitológica a que
estava umbelicalmente associada, além de uma certa concepção teológica, de
pontos de vista sobre as virtudes humanas e a sua hierarquia, de uma escala de
valores, modos de pensar e dizer o mundo muitas vezes incompatíveis com as
necessidades do pensamento racional e abstrato que se ia consolidando na Grécia
desde o século VI a.C.
Daí a chamada querela entre filosofia e poesia denunciada por Platão na
República, 607b2-c2, no que foi precedido pelo menos por Xenófanes e Heráclito.
Por outro lado, a política no século V a.C., pelo menos a política interna de
Atenas, resume-se ao confronto público de discursos para apurar o mais
convincente, e, por isso, capaz de conferir poder a seu detentor.
E Platão encontra um nexo essencial entre poetas, sofistas, retóricos e
políticos, pondo-os no mesmo balaio de opositores de Sócrates, o filósofo: o poeta
é um sofista disfarçado.
É isso que fez Protágoras no diálogo homônimo (316d-e), ao dizer que os
antigos poetas (como Homero, Hesíodo e Simônides) eram, na verdade, sofistas,
que disfarçavam suas opiniões (através de personagens e mûthos) por medo de
provocar hostilidades.
De todo modo, a pólis grega se organizou tendo como inspiração moral e
intelectual a tradição poética iniciada por Homero.
Desalojar Homero e sua descendência espiritual (aí incluído o movimento
sofístico e retórico20 do século V a.C.) da direção política e moral da pólis era a
gigantesca tarefa a que se impôs Platão quando se lançou a filosofar, pretendendo
nada mais nada menos que oferecer a filosofia como esteio intelectual e ético de
um ambicioso projeto de reconstrução da polis, que conhece seu primeiro ponto
de chegada com a República (e o último com as Leis).
20 Em O elogio de Helena, Górgias define poesia como “retórica sem metro”.
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Desse modo, pode-se talvez pensar, e este é o principal ponto nesta
dissertação – a prolepse ampliada que propõe em aditamento à de Kahn –, que
Platão, desde que se decidiu à elaboração de uma obra filosófica, tivesse em vista
essa meta estratégica: o embate sistemático com a tradição poética até sua derrota
final e a introdução da filosofia em seu lugar.
Para tanto, desde um de seus primeiros diálogos propriamente temáticos21
(já que Apologia e Críton visam mais à apresentação do personagem Sócrates) – o
Íon –, questiona o lugar da poesia na cidade, isto é, na formação moral e política
da cidadania, inicialmente em sua pretensão a ser uma téchne.
No Hípias Menor, em seguida, o mesmo tema é percutido, agora do ponto
de vista da complexa relação entre o âmbito moral e o âmbito técnico e da
impossibilidade de se transitar livremente, sem grandes qualificações e ressalvas,
entre ambos.
As discussões dos diálogos que imediatamente se seguem nada mais seriam
que desdobramentos dessa questão, da natureza da virtude (areté) e de sua
ensinabilidade.
O próprio embate com os sofistas não é um desvio desse rumo original,
antes uma reafirmação, já que esses são considerados por Platão legítimos
descendentes dos poetas22, que davam suas aulas e encaminhavam seus
argumentos a partir de textos poéticos (Hípias Menor e Protágoras).
É assim, sempre norteados, ou pelo menos inspirados, ora direta ora
indiretamente, pela mesma ideia inicial de destituição dos poetas da hegemonia
espiritual na polis, que se sucedem os diálogos até o desfecho natural do Livro X
da República.
Aí será a tradição poética (Homero como seu corifeu e paradigma)
desmascarada como ilegítima enquanto téchne, trivial (frívola) e desorientadora
do ponto de vista cognitivo e perigosa para a alma do ponto de vista de seus
efeitos sobre as emoções e de seu necessário controle.
Nesse ponto de nossa tentativa de contextualizar a questão da literatura e
suas pretensões educativas, e a posição contrária de Platão, vale a pena levar em
conta as considerações de Havelock a respeito, expostas em seu livro Prefácio a
21 Sempre levando em conta a especulação “cronológica” de ordenação dos diálogos sugerida por Kahn. 22 Cf. Protágoras, 316d-e, onde o poeta é descrito como um sofista disfarçado.
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Platão (1996, caps.3, 4 e 8), que introduz nesse debate teses originais sobre as
consequências psicoculturais do secular regime de oralidade desde a Grécia
arcaica até a Grécia clássica.
Tais teses, ao nosso ver, têm impacto decisivo no entendimento de aspectos
das obras dos dois maiores gênios da civilização antiga – Homero e Platão –, tidos
por paradoxais e de difícil assimilação para um leitor moderno.
Com essa teoria ou conjunto de hipóteses, desfazem-se as perplexidades
modernas, por um lado, em relação aos procedimentos que, de outra forma,
poderiam ser considerados excessos digressivos homéricos em suas narrativas23,
e, por outro, em relação ao que choca o nosso gosto como um intolerável e
impertinente “reacionarismo” platônico, em sua exacerbada querela com os
poetas, ainda mais que apresentada numa obra primordialmente política como a
República.
Segundo Havelock e muitos outros, talvez nem mesmo Homero tivesse se
servido do alfabeto24 para sua composição poética, embora haja vestígios da
escrita nos poemas que nos chegaram, descontadas as muitas prováveis
interpolações.
De Hesíodo em diante, porém, a tradição é a de semioralidade apontada, em
que os poetas já eram escritores, mas a alfabetização era seletiva, “profissional”, e
a comunicação, ou seja, a transmissão dos poemas era, e continuou por cerca de
três séculos, inteiramente oral. Por volta do início da guerra do Peloponeso
começa o período de alfabetização de massa, da chamada “prosa efetiva”
(Havelock, op.cit., p.56-57).
Por essa época, na Grécia, como se vê, o que hoje chamamos “literatura”
nem sequer tinha seu traço definicional mais elementar e dicionarizado: a escrita.
23 Em suas epopeias magistrais, Homero costuma suspender a ação (geralmente bélica) em seu clímax para introduzir pacientemente as mais variadas informações, seja sobre a genealogia dos heróis em confronto, seja sobre temas técnicos como a arte guerreira, construção de navios, modos corretos de fazer sacrifícios etc. 24 Como é sabido, a situação cultural pré-homérica é de pré-alfabetização, pela inexistência mesma de um alfabeto fonético, que só vai ser derivado e adaptado do alfabeto fenício a partir de meados do século VIII a.C. Pode-se, grosso modo, dividir a história da cultura grega em três períodos: o primeiro, que vai da Idade das Trevas grega até a primeira metade do séc. VIII (750/720 a.C.), de estrita e absoluta oralidade; o segundo, indo até o terço final do séc. V a.C., representou um regime de semioralidade, ou seja de poetas letrados em sua maioria, mas de público quase inteiramente iletrado; e o terceiro, do terço final do séc. V a.C. em diante, de alfabetização generalizada.
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Assim, nesse sentido, tanto Homero como Platão foram, cada um em sua
época, criaturas de dois mundos, testemunhas vivas de uma transição cultural
importante em sua sociedade. O primeiro, testemunha da chegada do alfabeto na
Grécia, e o último, de sua massificação.
Refletindo sobre essa lenta evolução cultural, Havelock chama a atenção
para o fato de que, numa sociedade não letrada, toda a transmissão cultural
possível – costumes, leis, mitos etc. –, se dá através de um arquétipo linguístico.
É, então, linguístico o conteúdo da organização da sociedade, e é a memória
viva a responsável pela conservação desses elementos, o que constitui coisa
bastante difícil para nós, modernos, admitirmos, assimilarmos e disso extrairmos
todas as consequências.
Na época de Sócrates e talvez na da juventude de Platão (427 a.C./347 a.C.),
como nos séculos anteriores, os raros livros existentes eram lidos em voz alta para
o grande público e os oradores costumavam redigir seus textos e depois decorá-los
para expô-los nas assembleias ou tribunais: eram os denominados “logógrafos”.
Podemos ver, então, com apoio em Havelock (Ibid., cap.3) e Marrou (op.cit.,
p.66 ss.), que as letras não estavam de modo algum universalizadas nem a escrita
socializada no século V a.C., e que o público culto grego só se tornou uma
comunidade de leitores no século IV a.C. Tanto que numa das votações mais
típicas, e até mesmo experiência exclusiva do século V a.C. – a do instituto do
ostracismo –, era comum encontrarem-se (as escavações o demonstram) muitas
óstrakas (votos) preenchidas com a mesma grafia, o que, num regime de voto
uninominal, de voto por cabeça, revela baixo índice de alfabetização, e que pessoas
votavam por outras, no nosso familiar “voto de cabresto”.
A pergunta é, então: como teria se conservado a organização dessa
civilização iletrada, suas leis públicas e costumes privados, suas propriedades e
tradições, seu sentido histórico e suas habilidades técnicas?
Sabe-se que a tradição cultural de qualquer povo, a manutenção de uma
identidade coletiva mínima, requer um arquétipo verbal, enunciando o que fazer e
como se comportar. Numa sociedade pré-alfabetizada, esses enunciados se
conservam na memória viva das pessoas. Mas como garantir que esses enunciados
linguísticos tão complexos pudessem ser preservados intactos, mantendo sua
fixidez e sua autoridade de pessoa para pessoa e de geração para geração?
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A conservação em prosa deve ser descartada, de pronto, por ser altamente
insuficiente para a fidelidade da transmissão: é notório que até mesmo uma ordem
e um pequeno recado passado oralmente de pessoa a pessoa costumam se
desnaturar completamente em poucas versões: “quem conta um conto, aumenta um
ponto”.
A única tecnologia verbal possível e disponível à época para tal missão era a
da fala rítmica, muitas vezes musicada, em padrões verbais habilmente
organizados.
Nesse sentido, a poesia é funcional para transmitir a cultura tribal25, e, então,
seus agentes (personagens) devem realizar ações que envolvam a lei pública e a
doméstica do grupo, para que a comunicação poética as veicule como um
paradigma eficaz da lei e dos costumes sociais.
Esse é, enfim, o contexto histórico do fenômeno da poesia grega, e essa é a
prática cultural que desfrutava na época de Platão do monopólio sobre a instrução
cívica.
Por isso, a noção de mímesis de Platão confunde intencionalmente, num
mesmo amálgama, a situação do poeta, compondo, com a do ator, representando, e
ambas com a do estudante, instruindo-se, e com a do adulto, espectador de teatro,
em sua recreação: todos estão, de fato, compartilhando rigorosamente uma mesma
experiência26.
Quer se estivesse discutindo sobre a construção de navios de guerra ou de
muralhas, ou sobre a melhor forma de governar o estado ou o rito correto a seguir
num sacrifício a Apolo, a primeira lembrança a ser acionada pela memória afetiva
são alguns versos de Homero, aprendidos e repetidos desde a infância.
A posição do educando nesse processo equivale à do ator em suas falas, que
não pensa sobre elas, apenas se identifica com o personagem e repete o que diz.
A poesia, como vimos, veicula a tradição.
E, insiste Havelock, o mecanismo psicológico dessa transmissão é o da
identificação afetiva do memorizador com o conteúdo do que se deve memorizar.
Assim, a fala rítmica, isto é, a poesia, detém, por primeiro, o conteúdo cultural
dessa civilização iletrada. De tal modo que, quando alguém quer falar sobre algo,
25 Termo cunhado por Havelock. 26 O conteúdo dos sete últimos parágrafos é, basicamente, uma paráfrase do cap.3 do livro citado de Havelock.
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mesmo que de natureza geral e abstrata, como a justiça, por exemplo, a primeira
coisa que lhe vem à mente é uma passagem de Homero, de Hesíodo ou de Ésquilo,
associados a personagens familiares, com os quais já estabeleceu um dia uma
identificação empática. Essa recordação vem em forma de um ritmo agradável e
disponibiliza um conceito ou uma ideia prontos e acabados, que absorveu de modo
inebriante, prazeroso e em atitude passiva.
Até a língua grega se aprendia através da obra de Homero.
Portanto, tanto o processo de aprendizado quanto a situação do ator e mesmo
a do adulto discutindo um tema ou assistindo a uma representação teatral
constituem instâncias de um mesmo fenômeno de memorização e evocação
embelezadas e ritmadas, o que, por si só, aliás, já distrai a atenção do seu conteúdo,
além de tratar-se de um conhecimento à base de respostas prontas, o que, por sua
vez, obstrui de algum modo o ato de pensar por conta própria27.
De fato, seja o poeta, seja o rapsodo, seja o estudante, todos, enfim, ao
pensar, não têm saída senão fazê-lo a partir de Homero, e, portanto, fazê-lo numa
situação ou atitude de passividade, que dá à educação uma característica de mero
transplante mecânico de saberes.
Assim, as frequentes digressões homéricas que paralisam, a todo momento, a
dinâmica das ações narradas destinam-se precipuamente a fornecer o conhecimento
necessário à vida dos cidadãos acerca de uma variedade de assuntos, seja de ordem
moral, religiosa, política ou técnica.
Então, no século V a.C., não só Platão mas todo o mundo culto de Atenas
reage a essa situação, desde os sofistas, que, bem ou mal, convidam a pensar em
prosa, e de um modo antitradicional, por paradoxos, até os tragediógrafos, que
colocam o passado épico na berlinda e, até mesmo, os próprios oradores e políticos
democráticos, que combatem a organização aristocrática da sociedade (cantada nas
epopeias homéricas).
O problema da Grécia clássica era o que fazer da herança homérica e de seu
repertório cultural, sua visão do mundo, dos deuses e dos homens, e até de sua
sintaxe paratática, a serviço do ritmo e da ação, mas inibidora do pensamento
lógico e abstrato.
27 Este parágrafo é também uma paráfrase de Havelock.
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Pode-se então dizer, como o faz Havelock, que os poemas épicos homéricos
constituíam um conjunto de escritos invisíveis impressos no cérebro da
comunidade. Até mesmo os festivais, numa cultura oral, eram necessários como
momento solene da transmissão oral, e essa solenidade era funcional nesse
processo.
Assim, o séc. V a.C. é um século em que, para se compreender o mundo e a
vida humana com mais precisão e em esquemas lógico-demonstrativos abstratos,
se teve de aprender a pensar não só sem Homero, mas também contra Homero.
De todo modo, o mecanismo psicológico a ser acionado para assegurar a
transmissão do patrimônio cultural grego até o fim do século V a.C. era o da
memorização de porções extensas dos poemas monumentais homéricos, o que
exigia um estado de completo envolvimento pessoal e identificação empática e
emotiva com a essência dos enunciados poetizados que se devem guardar na
memória.
A esse respeito, vale reproduzir as palavras de Havelock (op.cit., p.61),
principal teórico da tese da oralidade tardia da civilização grega e suas
implicações:
“E, por conseguinte, também quando Platão parece confundir os gêneros épico e dramático, o que está dizendo é que qualquer enunciado poetizado deve ser planejado e recitado de maneira tal que se transforme numa espécie de drama dentro da alma tanto do recitador quanto, consequentemente, do público. Essa espécie de drama, essa maneira de reviver a experiência na memória, em vez de analisá-la e compreendê-la, constitui para ele ‘o inimigo’.” (grifos meus)
Vê-se, daí, que se aprendia e absorvia conteúdos por um processo de total
empatia, de identificação afetiva. Qualquer enunciado poético, ao ser evocado,
devia ser recitado de modo a reviver dramaticamente essa experiência na memória,
em vez de analisá-la e compreendê-la racionalmente (Id., ibid., p.61 ss.). A
compreensão, nesse ambiente cultural de inteligência acústica a partir da
declamação poética, acontece, sobretudo, por via da emoção. É uma paideia
através dos sentidos e não da razão, um aprendizado pela passividade sensual.
O lema esquiliniano da tragédia como o aprendizado pelo sofrimento – que
se diz em grego páthei máthos – não se restringia, como se vê, apenas à tragédia,
mas permeava toda a vida cultural ateniense, em que vigia um aprendizado pela
emoção, o que, em grego, também se diz “páthei máthos”.
34
Contra isso, bate-se não só Platão, como também quem quer que quisesse ou
tentasse pensar criticamente, não passivamente, e com objetividade.
O que Platão quer, ao expulsar os poetas de sua república pedagógica é, além
de pôr fim às suas representações falsas do mundo, libertar a cidade desse ritmo
entorpecedor e desalojar a poesia de seu monopólio educacional, a ponto de ter-se
constituído na própria memória e identidade afetiva do cidadão.
Daí por que Platão só admite rediscutir o papel da poesia mimética na cidade
em prosa e tendo a utilidade social e educativa por critério:
“Concederemos certamente a seus defensores, que não forem poetas, mas forem amantes de poesia, que falem em prosa, em sua defesa, mostrando como é não só agradável, como útil, para os Estados e a vida humana.
E escutá-los-emos benevolamente, por que só teremos vantagem, se se vir que ela é não só agradável, como também útil.” (República, 607d4-e1)
Nesse quadro, o gênero épico, sendo inteiramente moldado por um ritmo,
gera essa inteligência acústica, passiva, tendente a repetir noções e saberes
tradicionais.
Assim, antes da época de Platão, as produções poéticas não eram tanto
literatura, mas tinham a função social de “enciclopédia tribal”28, responsável não
só pela transmissão de noções morais e técnicas mas pelas disposições mentais
dessa tradição iletrada, oral e acústica.
Desse modo, quando Platão expulsa, com veemência, a poesia, está
expulsando parte se si mesmo, de sua própria experiência pessoal como aprendiz,
idêntica, aliás, à de seus contemporâneos (HAVELOCK, op.cit., p.78, n.23). E está
combatendo séculos de experiência rítmica memorizada, inoculadora de conteúdos
agradáveis, mas acríticos. Porque para Platão, quem imita não pensa, não analisa,
não é capaz de avaliar.
Para ele, a própria democracia seria filha dessa sociedade escravizada pelo
ritmo prazeroso, em que o pensamento crítico não pode ser mobilizado, sendo,
antes, anestesiado.
É preciso ressalvar aqui que o ataque de Platão é contra Homero, enquanto
arquétipo épico da palavra conservada, transmissora de uma Paideia discutível em
muitos elementos de seu conteúdo, mas, também, por ser transmitida de modo a
28 Expressão cunhada por Havelock, op.cit., p.110.
35
embotar a crítica e o pensamento independente. Isso porque, como se viu na
advertência de Havelock (op.cit., caps.3 e 4), o conteúdo poético está intimamente
ligado, numa cultura oral, às condições concretas de sua transmissão.
Assim, é contra o uso e o efeito da obra homérica, gerando uma determinada
atitude de recepção acrítica das informações e saberes e um modo de vida
educacional, social e cultural correspondentes a tal atitude, que ele se rebela. E
também contra certas noções de justiça, de compreensão trágica da vida, e certa
visão do papel da divindade na vida humana, mas não contra o inteiro conjunto de
valores éticos defendidos na epopeia, a muitos dos quais Platão adere, como, por
exemplo, a coragem heroica, indiferente à morte física, e a busca ativa e resoluta
da excelência física e moral29.
Em suma, a lição de Havelock que nos interessa aqui dá conta de que a
poesia, antes de ser avaliada por um critério “estético” como “literatura”, era
pensada tanto por Platão como por Aristófanes em função de seu papel na
formação moral e política dos cidadãos e de sua capacitação técnica e preparação
cívico-religiosa.
Poesia (e retórica, seu sucedâneo), portanto, representa na Grécia clássica o
domínio mais aproximado da noção de “autoridade” (auctoritas), como
concebida, por exemplo, por Hannah Arendt (2000), noção que ela nega ter
chegado a assumir qualquer forma estrutural ou institucional na história da Grécia
arcaica e clássica, depois da queda dos reinados micênicos, em que a autoridade
religiosa e política recai numa única pessoa – o rei.
A comparação que ela faz, por contraste, é com a Roma imperial, onde, aí
sim, a seu ver, o Senado tinha esse papel de contrabalançar o poder (potestas)
investido no César.
Nossa impressão, porém, é de que a poesia, embora não seja uma instituição
formalizada politicamente, acumula as características inerentes à autoridade na
formulação arendtiana, já que não deixa de ser fonte de autoridade cognitiva30,
29 Na Apologia (28b5-d8), Sócrates se identifica em coragem e firmeza moral com Aquiles. 30 “Os grandes autores gregos tornaram-se autoridades nas mãos dos romanos e não dos gregos.” (ARENDT, 2000, p.167)
36
que legitima o exercício do poder31, traduz um certo tipo de obediência que
preserva a liberdade32 e tem origem no respeito ao passado33.
O único senão para a identificação da tradição poética com o conceito de
autoridade em Arendt seria sua afirmação de que “os grandes autores gregos” só
foram tomados como autoridades pelos romanos e não pelos próprios gregos.
Mas, de fato, nada mais falacioso, à vista de toda a argumentação desenvolvida
por Havelock e Marrou e reproduzida aqui.
Por outro lado, poder-se-ia argumentar, a favor de Arendt, quanto à questão
de a autoridade ser uma força superior e externa ao poder, que ela restringia essa
observação ao caso dos “governos autoritários”, e que o regime político vigente
na Grécia clássica era democrático.
Porém, nada menos exato, pelo menos a acreditar na autoridade de
Tucídides, para quem, mesmo no auge da experiência democrática ateniense, a
cidade vivia, na prática, sob o governo de um só34.
De todo modo, dois traços caracterizam a conduta mais geral dos poetas da
era clássica:
1) Despreocupação com o critério da originalidade absoluta de seus temas,
personagens e tramas.
2) Intenso uso de intertextualidade com os demais escritores
contemporâneos ou anteriores e de metalinguagem.
Os diálogos de Platão não são exceção: são diálogos não só entre os
personagens, mas também entre Platão e os leitores, entre Platão e Sócrates (como
veremos no Capítulo 4) e entre Platão e os mais diversos escritores do tempo de
Sócrates.
Não se pode, pois, negar a natureza poético-mimética, no melhor sentido
aristotélico da produção exotérica de Platão: goste-se ou não, os diálogos são, na
mais pura acepção, obras ficcionais.35
31 “A origem da autoridade no governo autoritário é sempre uma força externa e superior a seu próprio poder; é sempre dessa fonte, dessa fonte externa que transcende a esfera política, que as autoridades derivam sua autoridade.” (Id., ibid., p.134) 32 “A autoridade implica uma obediência na qual os homens retêm sua liberdade.” (Id., ibid., p.144) 33 “[Em Roma] A autoridade, em contraposição ao poder (potestas), tinha suas raízes no passado, mas esse passado não era menos presente na vida real da cidade que o poder e a força dos vivos.” (Id., ibid., p.164) 34 Ver Tucídides (1928, Livro II, LXV, p.10-12): “E assim Atenas, embora nominalmente uma democracia, gradualmente se tornou, de fato, o governo de seu primeiro cidadão”, Péricles.
37
É o decreto de Aristóteles (Poética, 1447b):
“Com efeito, não temos denominação comum que designe os mimos de Sófron e de Xenarco, os diálogos socráticos e quaisquer composições imitativas, executadas mediante trímetros iâmbicos ou versos elegíacos ou outros versos semelhantes.” (grifos meus)
Os diálogos platônicos nada mais são que prosa ficcional, uma poesia sem
ritmo, sem música e outros adornos teatrais, mas retendo da poesia o seu
essencial: o caráter mimético.
Só que, como veremos no Capítulo 4, trata-se de um tipo especial de
mímesis, que visa a combater (invertendo ou transpondo em certo sentido) sua
acepção tradicional.
2.2
A questão socrática: perplexidades do exame das quatro fontes – Aristófanes, Xenofonte, Platão e Aristóteles
Feita até aqui a tentativa de esclarecimento da natureza político-literária36
originária dos escritos platônicos, resta-nos outro trabalho preliminar, de
elucidação sobre as perplexidades que cercam o exame das chamadas quatro
fontes disponíveis de reconstituição do que haveria de histórico por trás do
personagem Sócrates, no que se refere à sua conduta, mas, sobretudo, ao seu
pensamento.
A bem da verdade, deve-se admitir, como muito oportunamente lembra
Kahn (op.cit., p.18-29), a existência de uma quinta fonte: Ésquines, um dos
chamados “socráticos menores”, que escreveu diálogos socráticos; infelizmente,
só nos restam poucos fragmentos de dois deles: Aspásia e Alcebíades.
35 Kahn é bastante claro a respeito (op.cit., p.36): “Ao que parece, após a morte de Sócrates ou talvez até mesmo em seus últimos anos de vida, um novo gênero literário despontava em Atenas e foi apropriado e levado à sua perfeição e posto à disposição de objetivos filosóficos: o diálogo socrático ou conversações com Sócrates. As composições dramáticas dialogadas de Platão geraram um imenso sucesso literário, embora por outro lado, o fato de o próprio autor não aparecer cria formidável dificuldade para a interpretação de seu pensamento porque nunca se sabe onde e em que medida o que Sócrates diz representa o que Platão pensa.” 36 Daqui em diante, por comodidade, usaremos com mais liberdade o termo “literatura” (sem aspas), por considerar já fixado suficientemente o anacronismo que tal uso comporta.
38
Aliás, nessa notícia a ser dada tanto sobre o debate das fontes, quanto,
especialmente, na próxima questão preliminar acerca do que poderia ser
propriamente socrático nos diálogos, daremos destaque às opiniões de Kahn, até
porque, no Capítulo 3, é com ele que estabeleceremos controvérsia, senão no
essencial de suas teses prolépticas, pelo menos em dois aspectos importantes, que
constituem o cerne desta dissertação.37
Dito isto, e já entrando no tema desta segunda questão preliminar, iniciamos
com uma consideração desse autor sobre a fidedignidade ou não da primeira
dessas fontes, levando-se em conta o que aporta sobre o caráter e a conduta de
Sócrates, mas acima de tudo sobre seu pensamento.
Em ordem cronológica, a primeira delas seria indiscutivelmente Aristófanes,
contemporâneo de um lapso de vida e produção oral do filósofo muito maior do
que o foram Xenofonte e Platão ou qualquer outro socrático menor e, obviamente,
do que Aristóteles, que sequer conheceu Sócrates, tendo nascido 15 anos após sua
morte.
Mas, como apontamos na Introdução, Kahn se recusa taxativamente a
procurar nas comédias de Aristófanes qualquer informação relevante sobre
Sócrates, e ainda menos acerca de seu pensamento, classificando essa obra e esse
autor como indignos de serem levados a sério, não tendo seu testemunho valor
algum, senão o de elaborar uma caricatura, com exclusivo objetivo de fazer rir.
Essa postura equivale à interdição pura e simples de qualquer pesquisa sobre
eventual influência aristofânica na composição dos diálogos de Platão. Tal
opinião de Kahn será objeto de confronto no próximo capítulo deste trabalho.
De qualquer modo, então, o segundo testemunho sobre Sócrates em ordem
cronológica, ao menos quanto à idade do seu autor, é Xenofonte.
E, como adverte Kahn, sabe-se bastante sobre o caráter de Sócrates,
retratado de modo assemelhado e consistente tanto nas obras de Xenofonte
37 Esses dois aspectos foram sublinhados já no início de nossa Introdução.
39
(Hellenicas, 1.7.15 e Anábase III, 1.5.7)38 como nos diálogos Apologia, Críton,
Banquete e Fèdon39.
Mas é sobretudo às Memoráveis – em que a presença de Sócrates é mais
longa e marcante – que é preciso estender essa análise de eventuais coincidências
e discrepâncias de conduta e pensamento com as demais fontes, sobretudo com os
diálogos. Sempre “cum grano salis”, no entanto.
O formato de crônicas apresentado pelas Memoráveis de Xenofonte, o fato
de seu próprio título indicar um tom de reminiscências e a despretensão filosófica
do autor podem levar o leitor menos avisado a emprestar aos fatos ali referidos
maior veracidade histórica que aos diálogos platônicos, que, como se sabe,
conferem ao seu protagonista, Sócrates, muito maior ambição especulativa.
Além disso, a forma dialogada (“socratikoí lógoi”), mais evidente em Platão
que em Xenofonte, constituiu um gênero literário bastante popular à época40,
conhecido por sua despreocupação com a verdade histórica, inscrevendo-se
abertamente como escrito de ficção, ou, pelo menos, nas palavras de Aristóteles,
como um tipo de literatura “fronteiriça entre a verdade e a ficção”41.
Mas essa pretensa “maior historicidade” do perfil socrático composto por
Xenofonte não poderia, porém, ser mais enganosa: as Memoráveis exibem uma
estrutura desorganizada e pouquíssima preocupação com a mínima
verossimilhança, ao contrário do que ocorre com os diálogos de Platão, onde, ao
menos, os acontecimentos, o lugar e a data dramática dos encontros, embora
inventados, poderiam, em tese, ter ocorrido como descritos. Assim, nas
Memoráveis, é possível encontrar episódios nos quais Xenofonte reivindica ter
estado presente quando nem ao menos era nascido.
A própria biografia de Xenofonte mostra seu maior distanciamento dos
momentos críticos da vida de seu mestre que a maioria dos outros discípulos
deste. Xenofonte viveu fora de Atenas entre 401 e 394 a.C., tendo retornado,
38 Kahn não refere a ocorrência em Anábase III, 1.4, de um episódio da vivência pessoal de Xenofonte com Sócrates, relativo a uma importante decisão a ser tomada por Xenofonte, em que Sócrates lhe sugere uma consulta ao Oráculo de Delfos. A significação desse episódio do oráculo será explorada neste trabalho quando da interpretação da Apologia, no Capítulo 5. 39 Kahn bem poderia acrescentar a essa homogeneidade de interpretações de traços de caráter de Sócrates o depoimento de Aristófanes em As nuvens, que tem elementos de concordância com as demais fontes, nesse particular, como esperamos demonstrar no Capítulo 3. 40 Noção constante de nossa Introdução. 41 In “Sobre os poetas”, frg.72, Rose.
40
então, por breve período, para ser em seguida exilado para o Peloponeso até 370
a.C., onde teria iniciado a redação das Memoráveis.
Assim, segundo Charles Kahn (op.cit., p.76), já estava disponível nesse
momento uma extensa literatura sobre Sócrates, que certamente serviu de matéria-
prima para Xenofonte, além, é claro, de suas próprias evocações de juventude
sobre os ensinamentos socráticos.
Seja como for, os relatos de Xenofonte e de Platão sobre Sócrates coincidem
muito mais na descrição do ser humano e suas práticas que na do filósofo
propriamente e suas eventuais ideias.
Isso se explica em função das circunstâncias biográficas mencionadas:
Xenofonte estava certamente menos informado desses assuntos que os outros
discípulos de Sócrates mais constantes, como Antístenes, Ésquines e Platão, por
exemplo42.
Portanto, não por acaso, há evidências de que Xenofonte teria usado
material escrito por estes para compor o retrato do mestre, sobretudo os da lavra
de Platão, fato explicativo, talvez, de tais pontos de convergência entre os
respectivos relatos serem exatamente as passagens menos insossas filosoficamente
de sua obra.
Isso não invalida, fique claro, sua interpretação pessoal do tempo em que
conviveu com Sócrates, cuja figura parece tê-lo impressionado muito mais como
modelo de um modo de vida temperante e justa, voltado a uma prática de cidadão
modelar, que como um teórico, ou um lógico sistemático como quer Aristóteles,
ou como um livre pensador que teria aberto caminho à metafísica de Platão.
Assim, os depoimentos de Xenofonte sobre Sócrates são, muitas vezes,
meramente circunscritos ao regime de conduta do mestre, enquanto outras vezes
parecem ser uma desajeitada imitação dos argumentos socráticos reportados por
Platão.
Mas alguns pontos dessa aparente mímesis correspondem a uma
interpretação diversa da de Platão sobre a figura e o pensamento do mestre, e,
portanto contêm uma intencionalidade distinta.
42 Xenofonte passou exilado, acompanhando as campanhas de Ciro, os quatro ou cinco últimos anos de vida de Sócrates, só tendo voltado a Atenas quase 30 anos após sua execução, quando já devia estar produzida grande parte da literatura sobre Sócrates na forma de sokratikoí lógoi.
41
Exemplos das coincidências entre o relato das Memoráveis e os diálogos
platônicos são numerosos. No Livro I de sua obra, Xenofonte descreve Sócrates
aconselhando os amigos à ação ou à abstenção de ação, conforme indicações de
seu próprio daímon (é preciso relativizar esse ponto, pois não há nenhuma
indicação em Platão de que esse daímon pudesse servir a alguém, além do próprio
Sócrates). Além disso, insiste na certeza socrática da verdade provinda da crença
no divino.
Segundo Xenofonte, Sócrates costumaria mandar consultar oráculos nas
coisas duvidosas, sempre que, para ele, parecesse útil seja na gestão privada seja
na do Estado43. Haveria, para esse Sócrates de Xenofonte, conhecimentos vedados
aos homens e só disponíveis aos deuses. No entanto, sobre aquilo em que os
homens foram contemplados com a faculdade de conhecer, seria impiedade
consultar os deuses (Memoráveis, I, I, 9). Isso significa que caberia a cada um
tentar esgotar as possibilidades cognitivas abertas ao homem (arte intelectual).
Xenofonte transmite também a ideia de que Sócrates se punha sempre
acessível a quem quisesse com ele conversar nos lugares de maior frequência
popular: ginásios, ágora, palestras etc. (Memoráveis, I, I, 10).
De todo modo, a sondagem da natureza implicaria, então, para ele, esse
conhecimento de alçada divina em que o homem intervém indevidamente,
descuidando do que está a seu alcance: o cuidado de si mesmo, de sua alma.
Assim, do ponto de vista socrático, a busca desse tipo de conhecimento
representaria uma inutilidade em comparação ao estudo, a seu ver muito mais
premente, das coisas humanas, como as excelências (virtudes) pessoais e políticas
(Memoráveis, I, I, 12).
Esses aspectos do Sócrates de Xenofonte parecem coincidir no essencial
com o de Platão, sobretudo no Fédon, quando o filósofo parece desprezar a
pesquisa conduzida pelos fisiólogos, isto é, os depois chamados pré-socráticos,
em seu afã de encontrar apenas causas naturais para os fenômenos, sem nenhuma
consideração por um princípio geral inteligente, fundado no Bem final de cada
coisa (Fédon, 96a -99e).
43 Um exame mais acurado dessa relação entre Sócrates e consultas a oráculos será feito no Capítulo 5, na análise desse aspecto da Apologia.
42
É bom ter presente desde já que essa negação do passado de fisiólogo do
Sócrates da maturidade é passível de controvérsia no relato de Platão, como se vai
ver no Capítulo 3 deste trabalho.
Em Xenofonte, registra-se também referência ao legalismo de Sócrates, tão
decantado na Apologia e no Críton: aqui, igualmente, aparece fiel ao
cumprimento de suas funções públicas e respeitoso às leis da cidade, na alusão
implícita ao famoso episódio das Arginusas, já constante da Apologia, em que se
revela a opção socrática pelo juramento de submissão às leis sem nunca ceder às
paixões populares (Memoráveis, IV, 4, 1-5).
Como parte do testemunho de Xenofonte sobre a irrestrita piedade de
Sócrates, cite-se ainda a crença que lhe é atribuída na onisciência e ubiquidade
divinas e no pretenso interesse da divindade por todas as ações e pensamentos
humanos (Memoráveis I, I, 19).
Nesse mesmo Livro I, Xenofonte tenta defender seu mestre da acusação de
corrupção da juventude. Pergunta: como poderia corromper a juventude
justamente o mais temperante e espartano dos homens?
Pelo contrário, Xenofonte tenta mostrar que Sócrates teria contribuído para
afastar muitos homens dos vícios da indolência, libertinagem e impiedade,
chamando-lhes a atenção para importância da “fiscalização de si mesmos”
(Memoráveis, I, II, 2).
Mostra também, na esteira de Platão, que seu mestre não solicitava paga por
seus ensinamentos nem se disse jamais detentor de qualquer sabedoria, julgando
que o pagamento escraviza por impor a obrigação de conversar com os pagantes e
nenhum pagamento superaria a aquisição de um amigo virtuoso (Memoráveis, I,
6, 5 e I, 6, 13-14).
Imputa a Sócrates, além disso, fazendo, nesse particular, coro com Platão,
uma crítica à escolha casual e arbitrária dos exercentes de cargos públicos por
comparação com a escolha dos “technítes” (qualquer “técnico”, como médico,
arquiteto, professor), sempre mediada pelo critério racional da habilidade e
competência, mesmo considerando-se que seus erros eventuais no desempenho da
função serão sempre de menor gravidade (Memoráveis, IV, 2, 6).
Há, porém, ainda no Livro I das Memoráveis (I, 1, 6), a narração de um
encontro de Sócrates como um sofista (Antifonte), centrado na pretensão deste de
“roubar alunos” de Sócrates.
43
Isso, como se sabe, vai frontalmente de encontro à peremptória negação do
Sócrates platônico, de acordo com a qual jamais teve a pretensão de ensinar algo a
alguém (Apologia, 33a8-b8).
Taylor (1932, p.72 ss.) aventa uma interessante hipótese, a ser discutida em
detalhe no Capítulo 3 desta dissertação, de que Sócrates pode muito bem ter sido,
por volta de seus 45 anos (época aproximada da exibição de As nuvens), uma
espécie de diretor espiritual (expressão minha) de um grupo de associados
(hetaíros), função exercida gratuitamente, não tendo tais associados o caráter de
mathetés, no sentido de alunos pagantes, e onde poderia discutir assuntos
diversos, inclusive o estado atual das pesquisa cosmológicas.
Isso explicaria, por exemplo, não só a existência do “pensatório”
(phrontistérion) na peça cômica, como também a referência imprecisa de
Xenofonte, aludida há pouco, a eventuais alunos (mathetai) de Sócrates, quando
deveria referir-se a hetairoí, associados, companheiros.44
De qualquer forma, quanto à figura humana de Sócrates, seu caráter e suas
crenças mais gerais, predominam coincidências entre os relatos de Xenofonte e de
Platão, excetuada a passagem agora mencionada, que vai nos interessar
particularmente mais adiante.
Mas e o que nos diz Xenofonte sobre Sócrates como filósofo, quanto a seu
modo de argumentar e seus pensamentos propriamente ditos?
Ao lado dessas coincidências nos relatos de Xenofonte e Platão, quando o
assunto é a conduta do mestre, surgem também, na obra do primeiro, importantes
discrepâncias com os diálogos platônicos se se envereda para discussões mais
sutis e de conteúdo do pensamento.
É o que ocorre, por exemplo, quando Xenofonte parece revelar notável
incompreensão sobre os efeitos da persuasão socrática, que ele os opõe de modo
mecânico e dicotômico aos da violência. Assim, Xenofonte põe na boca de
Sócrates (Memoráveis, I, I, 10-11) o seguinte:
44 Deve-se observar, em defesa de Aristófanes, que seu pensatório parece ser tudo menos uma escola convencional, dada a sua natureza de “thíasos”, frequentado por iniciados (passagens). E seria uma forma elegante de harmonizar as três fontes de Sócrates (Platão, Xenofonte e Aristófanes) nesse ponto, compondo-se, de um lado, a negativa do Sócrates de ter exercido magistério profissional, e, de outro, a compreensível confusão entre o que seria uma “hetairía” liderada pelo filósofo e uma escola convencional.
44
“De mim, penso que os que praticam a sabedoria e se creem capazes de dar conselhos úteis a seus concidadãos de modo nenhum são violentos, visto saberem que a violência atiça o ódio e acarreta perigo, enquanto a persuasão elimina os riscos e não prejudica a perfeição. De fato, o homem a quem constrangemos nos odeia como se o houvéssemos lesado. Aquele a quem persuadimos nos preza como se lhe tivéssemos feito um benefício.”
Essa opinião, envolvendo uma oposição irredutível entre violência e
persuasão, nada tem a ver com o método socrático de condução dos diálogos
aludido por Platão, que, implicitamente, apresenta esse exercício dialético como
uma engenhosa e singular combinação entre violência e persuasão.
Isso porque, se, por um lado, Xenofonte tem razão, e o diálogo socrático é
de fato persuasivo porque o interlocutor se rende aos argumentos, expressando sua
concordância com eles, por outro, esse final aparentemente pacífico só se dá ao
cabo de luta encarniçada, em que o antagonista do filósofo é constrangido, pela
força lógica da argumentação, a aceitar as teses socráticas, e, portanto, a abrir mão
das suas, muitas vezes contra sua própria vontade e interesse.
Não há, assim, para este, propriamente uma escolha ou adoção espontânea
do resultado do argumento, diversamente do caso das deliberações tomadas no
espaço público, na assembleia popular, por exemplo, em que os retóricos induzem
a multidão ao assentimento a suas propostas não exatamente por inevitabilidade
lógica, mas muito mais pelo seu poder arrebatador, embriagador, seja graças à
beleza extrínseca dos discursos, seja pela oportunidade das propostas,
apresentadas como materialmente mais vantajosas ao interesse do ouvinte.
Sócrates, ao nosso ver, diferentemente da visão ingênua de Xenofonte, teria,
em seu ensino oral, usado a seu modo, mas sempre conjunta e harmoniosamente,
esses dois princípios balizadores do comportamento político dos cidadãos –
violência e persuasão –, não se sentindo comprometido com a propaganda
democrática de, por um lado, recorrer sempre à persuasão na relação dos
atenienses entre si no espaço público interno, e, por outro, de reservar a violência
(guerras) apenas às relações com outros Estados.
Ora, ocorre que o próprio modo de vida democrático, baseado nesse tipo de
polaridade e endossado por Xenofonte na presente passagem, mostra-se em total
descompasso com a reflexão do Sócrates platônico da Apologia, que reconhece
explicitamente como causa mais geral de sua condenação os inúmeros inimigos
que teria granjeado com seus insistentes questionamentos dos conceitos, juízos e
45
práticas de seus contemporâneos, levando ao desmascaramento da pretensa
sabedoria de cada um.
O motivo ou o pretexto alegado, talvez irônica ou até comicamente45, por
Sócrates para seus interrogatórios dialogados era decifrar o sentido do oráculo de
Apolo, que o teria identificado certa feita como o mais sábio dos gregos.
Teria dito então Sócrates a esse respeito em 21c3 da Apologia, verbis:
“Fui ter com um dos que se passam por sábios... (...) Submeti a exame essa pessoa – é escusado dizer seu nome; era um dos políticos. Eis, atenienses, a impressão que me ficou do exame e da conversa que tive com ele; achei que ele passava por sábio aos olhos de muita gente, principalmente aos seus próprios, mas não o era. Meti-me, então, a explicar-lhe que supunha ser sábio, mas não o era. A consequência foi tornar-me odiado ele e muitos dos circunstantes.
(...) Daí, fui ter com outro, um dos que se passam por ainda mais sábios, e tive a mesma impressão; também ali me tornei odiado dele e de muitos outros. Depois disso, não parei, embora sentisse, com mágoa e apreensões, que me ia tornando odiado...”
Sócrates evidentemente sabia do risco que corria com sua conduta e com
seus diálogos, mas, na qualidade de herói inaugural da filosofia, estava disposto a
corrê-lo, tal qual Aquiles sabia que ia morrer se matasse Heitor, mas, ainda assim,
preferiu morrer com glória. E, não por acaso, Sócrates na própria Apologia se
compara nesse particular ao pelida dos pés ligeiros (Apologia, 28b2-d8).
Isso significa que os grandes princípios éticos devem ser, para o Sócrates de
Platão, defendidos a qualquer custo, mesmo em situações-limite (sejam elas
guerras, caso de Aquiles, sejam ressentimentos letais gerados pela dicção de
verdades incômodas, caso de Sócrates). Enquanto isso, a versão de Xenofonte
sobre a eficácia e a utilidade da persuasão tem um viés de mundanismo naïve ou
de utilitarismo sinalagmático (princípio da troca, “do ut des”) de contar com a
gratidão do “beneficiário” da persuasão, estranhos a toda filosofia com um
mínimo de aspiração à transcendência.
No mesmo diapasão de dissintonia entre o Sócrates de Xenofonte e o de
Platão, o capítulo IV de Memoráveis, Livro II, apresenta um discurso do tipo
autoajuda acerca da importância de se adquirir e conservar amigos. Parece até
uma primeira versão grega resumida do best-seller Como fazer amigos e
influenciar pessoas.
45 Distinção feita no Capítulo 5 desta dissertação.
46
Insistindo no tema do cultivo da philía, esse Sócrates de Xenofonte enuncia
no cap. VI que “a virtude consiste em vencer os amigos em benefícios e os
inimigos em ultrajes” (Memoráveis, II, 6, 35).
Não é demais reiterar o quanto tal ideia é antagônica ao pensamento do
Sócrates platônico, cuja grande preocupação moral é com o “cuidado da alma”,
que é comprometido sempre que se faça mal a alguém (República, Livro I).
Em nenhum ponto das Memoráveis, porém, o Sócrates apresentado por
Xenofonte é tão díspar do de Platão em seu modo de pensar como no capítulo VII
do Livro III. Sócrates aqui aparece estimulando Cármides, homem superior e de
maior mérito que todos os políticos de seu tempo, mas avesso a participar das
reuniões públicas, a engajar-se nas discussões da assembleia, mostrando ali,
diante da multidão inculta, seu talento em derrotar as teses dos homens mais
ilustres.
Ora, tal recomendação é tudo o que o Sócrates de Platão jamais faria. Ao
contrário, Sócrates desdenha da vida pública como é praticada em sua cidade,
através da demagogia e da retórica vazia, tão bem denunciada por ele no Górgias,
e propõe-se a dialogar em particular com as pessoas interessadas em sua dialética.
Mas, se esses exemplos de descompasso entre o Sócrates de Xenofonte e o
de Platão são úteis por revelar certa independência em relação à obra platônica e
poderiam, em tese, pretender prevalecer, em termos de fidelidade à história do
filósofo, sobre os diálogos socráticos, numa tentativa de reconstrução de seu
pensamento, na realidade, essa hipótese dificilmente poderia ser levada a sério,
pelo menos como regra.
Isso porque esse tipo de discrepância não poderia, em geral, ser valorizado,
a menos que se queira atribuir ao Sócrates histórico pensamentos tão
convencionais e argumentos tão banais como os expostos, incompatíveis com a
figura certamente influente e polêmica que acabou sendo injustamente condenada
por crimes de opinião numa Atenas considerada “democrática”.
Como diz Reale (1992, p.250): “Seria certamente impossível que os
atenienses tivessem motivos para mandar à morte um homem tal como Xenofonte
pretende que tenha sido Sócrates.”
Ou como reforça Taylor (op.cit., p.22):
47
“Se Sócrates tivesse sido o que Xenofonte quer que acreditemos, ele nunca teria sido processado. O propósito apologético de Xenofonte requer absolutamente que ele suprima, tanto quanto possível, qualquer traço no caráter de seu herói que seja original, e portanto, desconcertante para o leitor obtuso e convencional.”
De todo modo, não se pode negar que a versão socrática de Xenofonte é
muito mais voltada para o elogio de Sócrates que a de Platão, que parece dirigir-se
mais à crítica e à exortação à virtude de seus acusadores e a uma defesa da vida
filosófica do que propriamente da pessoa de Sócrates46, que, como veremos no
Capítulo 4, merece do autor dos diálogos até mesmo críticas veladas.
Vejamos a configuração socrática dada por Xenofonte e Platão quanto à
phrónesis (sensatez, temperança) de Sócrates. Tome-se esta passagem de um
artigo de Donald R. Morrison (1994, p.184) sobre o Sócrates de Xenofonte:
“Segundo Xenofonte, Sócrates usava diferentes estratégias para educar os jovens, dependendo de seu tipo de alma (Memoráveis, 4.1.3). Na primeira linha do Livro 4, Xenofonte afirma que nada é mais benéfico que estar com Sócrates e passar o tempo com ele. Mas Sócrates não desejava passar o tempo com qualquer um. Quando dizia que amava alguém, isso indicava uma alma bem disposta para a virtude.”
Com isso, queria Xenofonte reforçar o tirocínio didático e a seletividade de
Sócrates como mestre, um aspecto importante de sua phrónesis, uma das três
grandes virtudes socráticas reconhecidas pelo oráculo na versão de Xenofonte47.
Ora, em contrapartida, o Sócrates de Platão claramente não utilizava tal
critério, pelo menos não o dos primeiros diálogos, haja visto o caráter de gente
como Hípias, Íon, Górgias, Pólo, Cálicles, Dionisodoro, Cármides e mesmo
Trasímaco. Nem Mênon nem Fedro são também caracteres distintos. Mas seria até
possível verificar a progressiva melhora no caráter dos interlocutores e uma
diminuição de sua faixa etária conforme se progrida numa cronologia plausível
das primeiras até as últimas obras de Platão.
Parece, assim, que esse atributo da prudência (phrônesis), entendida numa
acepção tradicional como a de Xenofonte, não era mesmo, pelo menos para
Platão, um predicado de seu Sócrates. 46 Embora, é claro, os diálogos platônicos busquem sempre uma reabilitação da memória de Sócrates, essa apologia é feita tendo em vista, sobretudo, o elogio da filosofia que o mestre representa. 47 Segundo o relato de Xenofonte em Memoráveis, 14-15, o oráculo distinguiu em Sócrates três virtudes: a liberdade de espírito (eleuthería), a justiça (díke) e a prudência ou saber prático (phrónesis).
48
E isso parece sugerir que a lição dada por Sócrates no Fedro (271d1-d8)
sobre a importância de o bom retórico selecionar bem as almas dos interlocutores
que se apresentam é, na verdade, uma lição (e admoestação) de Platão ao próprio
Sócrates, que na Apologia proclamava-se inteiramente democrático nesse
particular48.
É bom também notar que esse último Sócrates (da Apologia) é mais
semelhante que o do Fedro com o retratado em As nuvens, falando e tentando
ensinar a um bronco de caráter duvidoso (Strepsíades), com péssimos resultados.
Por outro lado, não obstante essas discrepâncias dessa versão de Sócrates
oferecida por Xenofonte nos Livros II e III das Memoráveis e a de Platão nos
diálogos, há também coincidências dignas de registro.
E o exame dessas nos é essencial, uma vez que a visão tradicional, objeto,
como veremos a seguir, da crítica de Kahn, tende, segundo este, a se basear no
princípio de que as informações filosóficas dos diálogos de Platão poderiam ser
tidas como historicamente socráticas quando confirmadas por informações
paralelas de Xenofonte e Aristóteles.
Tal confirmação, porém, deve se limitar, é claro, ao que nesses autores seja
comprovadamente independente dos textos platônicos correspondentes.
O Livro IV é, de longe, o que apresenta maiores coincidências entre as
versões socráticas de Xenofonte e de Platão, sobretudo o capítulo VI, considerado
por Kahn como prova da marcante influência platônica sobre os escritos do
primeiro.
Assim, aparece pela primeira vez nas Memoráveis, no capítulo II, um
exemplo de elenco socrático similar ao do Hípias Menor em 20 ss.: “Quem
conhece a justiça: quem mente e engana por querer ou quem o faz sem querer?”
Nesse capítulo aflora também, embora tênue, um certo gosto de Sócrates
pelo paradoxo, o que parece ter sido, de fato, um traço característico.
O capítulo termina com a menção ao vezo socrático de ridicularizar, com
seu elenco cômico, os que lhe pareciam convictos de uma sabedoria que realmente
não detinham (passo 40), o que se coaduna com a versão socrática dos diálogos
pré-aporéticos.
48 É o que proclama o filósofo em 29e1-30a3 e 23b3-7: “Por isso, não parei essa investigação até hoje, vagueando e interrogando, de acordo com o deus, a quem, seja cidadão, seja forasteiro, eu tiver na conta de sábio...”
49
No capítulo VI, ressalta-se igualmente outro aspecto importantíssimo do
perfil socrático fornecido por Platão, qual seja, o caráter profundamente legalista
de Sócrates (objeto, a meu ver, até de uma certa crítica platônica49), que teria
preferido “morrer dentro da lei que transgredi-la para viver”.
Teriam essas observações de Xenofonte aparentadas à versão dos diálogos
de Platão sido escritas de modo independente dos próprios escritos platônicos, ou,
pelo seu próprio caráter mais superficial e avulso, não estariam a indicar um
resumo do que Xenofonte teria lido na fonte platônica?
A pesquisa de Kahn tem algo de mais convincente a oferecer no que
concerne ao reforço da probabilidade desses prováveis “empréstimos” de
Xenofonte, extraídos por ele dos diálogos platônicos, dada sua patente limitação
filosófica.
A passagem-chave das Memoráveis para esse efeito estaria, conforme Kahn
(1996b, p.76-77), no final do capítulo IV, onde
“Xenofonte introduz a noção de dialética (dialégesthai) de um modo que revela tanto sua familiaridade com o material platônico quanto sua inabilidade de dominar a concepção de Platão. O Sócrates de Xenofonte costuma louvar a virtude do autocontrole (enkráteia). Somente aqueles com autocontrole, ele diz, ‘são capazes de considerar assuntos da maior importância e, mediante distingui-los segundo suas espécies (dialégontas katà géne) em palavras e ações, são capazes de escolher o que é bom e abster-se do que é mau’ (Memoráveis, IV, 5.11).
‘E deste modo, ele disse, os homens se tornam os mais excelentes, os mais felizes e mais capazes de discussão (dialégesthai). Ele disse que a discussão (dialégesthai) extraiu seu nome do juntar-se para deliberar em comum mediante distinguir coisas segundo sua espécie (dialégontas katà gene). Portanto, deve-se fazer todo esforço para se preparar para isso e para ter um cuidado com isso. Pois dessa fonte os homens se tornam os mais excelentes, os melhores líderes, e mais hábeis na discussão (dialektikótatoi)’ (IV, 5.12).
Chegando como chega no fim de uma longa relação das vantagens da sophrosyne e autocontrole (enkráteia), e das desvantagens da akrasía ou falta de autocontrole, essa passagem claramente entende que habilidade em ‘dialégesthai’ consiste numa prudente deliberação a respeito do que é bom e do que é mau, de forma que a pessoa que é ‘dialektikótatos’ é a única que é mais hábil em escolher o que é bom, evitando o que é mau.
Isto é como Xenofonte entende a noção de ‘distinguir coisas de acordo com sua espécie’ em IV, 5.11. Assim, Xenofonte conseguiu converter uma noção técnica da filosofia platônica (dialética como a capacidade de distinguir coisas segundo suas espécies naturais) numa concepção mundana de sabedoria prática, por meio de uma etimologia não platônica, tomando ‘dialégein’ como significando ‘distinguir as coisas’.
No próximo capítulo de Memoráveis (IV, 6) Xenofonte expande a noção do ‘dialégesthai’ socrático aplicando-a na busca de definições.
49 No Capítulo 3, voltaremos ao assunto das possíveis alusões críticas de Platão a Sócrates.
50
Ele começa como segue: ‘Eu tentarei também dizer como ele (Sócrates) fez seus associados mais versados em discussão (dialektikóteroi).’
Essa terminologia não tem precedentes em Xenofonte nem em outros autores gregos, mas é, naturalmente, familiar a partir de Platão. Como foi notado no capítulo 2, no Mênon Platão introduz a forma comparativa ‘dialektikóteron’, que é provavelmente sua invenção (o comparativo é usado de novo em Político 285d6 e 287a3). A noção de um ‘dialétikos’, um dialético ou alguém versado em conversação, é mencionada no Eutidemo e no Crátilo. Mas é somente na República que o conceito de dialética é explicado como a mais alta forma de treinamento para os filósofos-reis.
Xenofonte foi aparentemente impressionado pela concepção de dialética como o treinamento para a elite política. É algo dessa noção platônica (junto com a nova terminologia de ‘dialétikos’ na forma comparativa e superlativa) que ele absorveu. Além disso, Xenofonte apreendeu de Platão que somente o dialético é capaz de dar uma explicação de essências ou de “que uma coisa é” (Rep., 531e4, 532a6, 534b3). Daí ele segue para ilustrar o treinamento socrático em “dialética” pela busca de definições, embora Xenofonte entenda esse treinamento em termos puramente práticos.”
Segue-se aí um pequeno diálogo entre Sócrates e Eutidemo, relatado por
Xenofonte em termos filosóficos tão rasos que nem vale a pena reproduzi-lo,
embora Kahn o faça (ibid., p.76).
Mas, continua Kahn, no fim dessa reprodução:
“Como uma explicação da religião socrática, isso é banal e convencional. Se Xenofonte leu o Eutífron, ele não aprendeu nada de seu conteúdo. A argumentação aqui é mais bem entendida como uma desajeitada imitação dos argumentos socráticos em, por exemplo, o Protágoras; e a implícita conclusão (de que piedade é uma forma de conhecimento) é o que um leitor do Protágoras esperaria que Sócrates dissesse.
De outros textos, sabemos que Xenofonte é familiar com o Protágoras.”
Sobre esse ponto, Kahn comenta, já no apêndice de seu livro (ibid., p.394-
395), a passagem crítica (Memoráveis, III, 9.1-6) que o induz a concluir pela
familiaridade de Xenofonte com o Protágoras:
“Esta é talvez a mais importante passagem nas Memoráveis para um detalhado uso de um diálogo platônico, nomeadamente o Protágoras.
Memoráveis, III.9 começa com a questão de se a coragem é ensinável ou natural (no Protágoras a questão da ensinabilidade é levantada para a virtude em geral, mas a discussão final foca na coragem). Depois de atribuir uma resposta razoável a Sócrates ‘os homens diferem por natureza, mas treinamento e prática podem ser decisivos’50, Xenofonte prossegue:
‘Ele não fez nenhuma distinção entre sabedoria (sophía) e temperança (sophrosýne), mas considerou que saber o que é bom e nobre e fazê-lo, e saber o que é vergonhoso e evitá-lo, é tanto sábio como temperante’ (III.9.4).
50 Cf. Protágoras, 351b1-2.
51
Esta é uma variação livre e levemente confusa de Protágoras 332a-333b, onde Sócrates defende a identidade entre sophía e sophrosýne ao mostrar que elas têm o mesmo oposto, nomeadamente a loucura (aphrosýne). Parece ser um eco deste argumento a partir do oposto na sequela de Xenofonte em III. 9.6:
‘Ele disse que a loucura (manía) era o oposto de sabedoria, mas ele não identificou loucura com falta de conhecimento (anepistemosyne).’
A preocupação primária de Xenofonte, entretanto, é com uma tentativa algo malsucedida de interpretar a tese central do Protágoras:
‘Ele disse que justiça e todo o resto da virtude era sabedoria. E que os homens que sabem essas coisas não escolherão nada em seu lugar, e que os homens que não têm esse conhecimento são incapazes de agir [virtuosamente], mas mesmo que eles tentem, eles falham [ou cometem erros, hamartanein]’ (III. 9.5).
Parece que a teoria da motivação aqui é tomada como sendo a teoria da escolha racional (todos preferem o que é melhor, e de dois males ninguém escolhe o maior) que Sócrates desenvolve no Protágoras 358c7-d4. Esta é a grande tentativa de Xenofonte de apresentar sua própria versão da conexão socrática entre virtude e conhecimento, mas ele não conduz o pensamento muito longe.”
Seja como for, Kahn conclui, a partir desses prováveis empréstimos mal
interpretados dos diálogos de Platão, que Xenofonte não serve mesmo como prova
independente para a prática do Sócrates histórico.
De todo modo, não é possível ocultar que cada uma das duas versões do
discurso de Sócrates no tribunal – a de Sócrates e a de Xenofonte – obedece a
propósitos diferentes, e que a de Xenofonte, sendo quase puramente apologética,
serve de contraponto para se valorizar os aspectos distintivos e essenciais do
relato platônico, quais sejam seu lado protréptico de defesa de uma vida filosófica,
e a reafirmação, num registro irônico e numa estrutura cômica, de sua condenação
ao modo de vida e à conduta dos cidadãos das Polis, seu caráter de diálogo com a
cidade (e a posteridade) e seu pastiche da retórica.
Agora, antes de examinarmos a fonte aristotélica, é bom dizer algumas
palavras sobre uma outra fonte, também explorada e valorizada, com razão, por
Kahn no livro que vimos discutindo.
Kahn (op.cit., p.18) constata que Ésquines de Sphetos é o único socrático
além de Platão e Xenofonte de que nos resta um legado literário razoável.
Informa-nos Kahn que Ésquines deixou diálogos que foram bastante lidos
até a época de Plutarco (46-127 d.C.), de modo que as citações de seu Alcebíades
e de Aspásia são extensas o bastante para se ter uma boa noção desses dois
diálogos, sobretudo, no que respeita à noção socrática de Eros, que teve nele e em
Platão um desenvolvimento literário específico e relevante, tema que não é,
porém, o foco deste nosso presente trabalho.
52
Platão o cita como membro do círculo socrático na Apologia (33e3) e no
Fédon (59b7).
Sabe-se o nome de sete de seus diálogos e pode-se, segundo Kahn (op.cit.,
p.19), “detectar uma forte interação literária entre os dois mais bem conhecidos
trabalhos de Ésquines e muitos dos primeiros diálogos de Platão”.
Pode-se, ainda na opinião de Kahn (op.cit., p.20), depreender que no diálogo
Alcebíades o Sócrates de Ésquines deve ter-se referido, nas partes perdidas, ao
esforço necessário da autoaperfeiçoamento ou cuidado de si (epimeleia heautoû),
quando elogia as qualidades intelectuais de Temístocles, de quem achava que
Alcebíades tinha inveja (SSR, VI A50, linhas 34-41).
A seção final desse diálogo é importante pelo número de “coincidências”
com temas e expressões de diálogos platônicos, e, especialmente, pelo fato de
Ésquines e Platão terem sido contemporâneos e fiéis seguidores de Sócrates,
tendo-lhe acompanhado os movimentos desde aproximadamente os 60 anos do
filósofo, ao contrário de Xenofonte, que pouco privou com o mestre, exilando-se
em 401 a.C., antes da morte daquele.
Por isso, vale a pena citar o texto:
“Sócrates – Se eu pensasse que era por alguma arte (téchne) que eu era capaz de beneficiá-lo, acharia a mim mesmo culpado de grande loucura. Mas, de fato, pensei que foi por concessão divina (theía moira) que isso me foi dado no caso de Alcebíades, e que nada havia nisso o que espantar.
Pois muitas pessoas doentes ficam bem por arte humana, mas algumas por concessão divina. Os primeiros são curados por médicos; e quanto aos outros, é seu próprio desejo (epithumía) que os leva a se recuperar. Eles têm urgência em vomitar quando é de seu interesse fazer isso, e desejam ir caçar quando é bom para eles praticar exercício.
Por causa do amor (Eros) que eu tenho por Alcebíades tenho a mesma experiência das bacantes. Porque quando as bacantes são possuídas (èntheoi), elas bebem leite e mel de poços de onde outros não podem sequer extrair água. Assim, embora eu não conheça nenhuma ciência ou habilidade (mathéma) que possa ensinar a alguém para beneficiá-lo, apesar disso penso que ao fazer-lhe companhia poderia, pelo poder do amor (dià tò erân) torná-lo melhor” (frag.11 Dittmar= SSR VI a 53).
A seguir, Kahn comenta a passagem:
“No Sócrates deste trecho, que nega possuir qualquer téchne que torne melhores os homens mediante ensinar-lhes algo, nós imediatamente reconhecemos o Sócrates da Apologia de Platão, que fala com admiração ambígua da arte de educar pessoas na virtude do homem e do cidadão, mas que também nega firmemente deter tal arte
53
(19e-20c). Podemos plausivelmente tomar isso como uma atitude bem documentada da parte do Sócrates histórico, distanciando-se deliberadamente dos sofistas como professores profissionais.”
Quanto a Antístenes, embora também pareça ter desenvolvido questões
relativas ao amor em seu diálogo Aspásia, não há muito em seus raros fragmentos
que interesse ao nosso atual objeto de estudo, a não ser a referência de um deles
(de outra obra) a um dos paradoxos socráticos.
Do ponto de vista da interlocução tanto com Ésquines quanto com Platão, há
bem maior probabilidade de seus testemunhos serem relativamente independentes
dos desses últimos; no caso de Ésquines, pelas razões que acabamos de expor, e,
no de Antístenes, por ser ele 15 anos mais velho que Platão e por ter começado
antes sua carreira literária.
Agora, passemos ao exame de Aristóteles como fonte para uma possível
reconstrução do Sócrates histórico.
Salta aos olhos, à primeira vista, o fato de que a versão de Aristóteles sobre
Sócrates parece incluída neste rol de depoimentos de contemporâneos sobre o
mestre de Platão de modo indevido e anacrônico, uma vez que Aristóteles, tendo
vivido de 384 a 322 a.C., e Sócrates morrido em 399 a.C., sequer conheceu o
protagonista dos diálogos – para ele, já uma figura histórica.
Ainda assim, em virtude da intimidade de Aristóteles com os relatos e o
pensamento de Platão, e de ser este o principal testemunho de que dispomos
acerca de Sócrates, aliada ao fato inegável da posição aristotélica como doxógrafo
dos primórdios da filosofia, não é possível ignorar sua versão.
Convém, no entanto, nunca esquecer a notória tendência do estagirita de
apreciar toda a produção filosófica que lhe é anterior como se se tratasse de um
cortejo de precursores de seu próprio pensamento, na qualidade (ou falta) de
anunciadores ainda toscos e inacabados de um sistema de filosofia que só
encontraria pleno desenvolvimento e perfeição com a sua Metafísica.
Assim, seus antecessores teriam, ao seu ver, apenas iniciado as pesquisas,
completadas por ele, sobre a teoria das quatro causas explicativas da realidade: a
formal, a eficiente, a material e a final.
Segundo ele, os pré-socráticos, tateando, teriam dado somente com uma
delas, a causa material, e imaginaram a essência de tudo como o ar, a água, o fogo
etc.
54
Platão, por sua vez, teria acrescentado a esta tão somente a noção de causa
formal, embora a tenha tematizado de forma equivocada, a seu ver, como algo
transcendente e “separado”, portanto, indevidamente, dos fenômenos sensíveis a
que visavam explicar.
Finalmente, ele mesmo, Aristóteles, é que viria a corrigir o desvio idealista
platônico e a divisar as duas causas restantes, omitidas por todos até então; a
causa eficiente, sobretudo, a causa final.
Tudo somado, pois, se não é possível deixar inteiramente de lado a posição
aristotélica sobre a questão socrática, deve-se analisá-la com muito cuidado, “cum
grano salis”, tendo em vista a natureza reconhecidamente tendenciosa de sua
reconstituição, não só de Sócrates, mas de todo o passado da filosofia.
Assim, em sua Metafísica, 987b, Aristóteles afirma que Sócrates buscava o
universal no âmbito das questões éticas e não na natureza em sua totalidade, tendo
por isso sido o primeiro a se fixar nas definições. Em 1078b23-34, vai além e
acrescenta como legado de Sócrates os raciocínios indutivos, que, ao lado das
definições universais, seriam a base das ciências.
A Platão, Aristóteles apenas atribui a ontologização dos universais do plano
lógico descoberto por Sócrates para um plano metafísico, hipostasiando e
duplicando desnecessariamente, a seu juízo, os conceitos universais.
O Sócrates de Aristóteles é, pois, um lógico, descobridor do conceito
universal, fundador da lógica ocidental. Há, porém, pouca historicidade nisso.
Como aponta Reale (op.cit., p.318-319 e 321):
“O método dialógico socrático tem, com efeito, um fim essencialmente ético-pedagógico e até mesmo religioso (dado que Sócrates afirma praticá-lo por ordem de deus), e a peculiar valência lógica, que ele inegavelmente tem, não é posta por Sócrates em primeiro plano.
(...) Ora, a fonte em que se basearam estes intérpretes que, forçando ulteriormente a questão, fizeram de Sócrates o fundador da cultura racionalista e o pai do moderno racionalismo foi Aristóteles.
Ora, a fonte na qual se basearam estes intérpretes, que veem em Sócrates o descobridor do conceito e da lógica ocidental, é oferecida por algumas passagens da Metafísica de Aristóteles, que convém ler: ‘Sócrates ocupava-se de questões éticas e não da natureza na sua totalidade, mas no âmbito daquelas buscava o universal, tendo por primeiro fixado a atenção sobre as definições’ (Metafísica, 987b1).
E ainda: ‘Sócrates (...) buscava a essência das coisas e a reta razão: de fato ele tentava seguir o procedimento silogístico, e o princípio dos silogismos é, justamente, a essência (...). Com efeito, duas são as descobertas que com razão
55
podem ser atribuídas a Sócrates: os raciocínios indutivos e a definição universal; e estas descobertas constituem a base da ciência (Metafísica, 1078b 23-30).
(...) [E]m particular, nas passagens que lemos, Aristóteles diz duas coisas que são exatas e que são observações objetivas, isto é, que Sócrates ocupou-se das questões éticas e que a doutrina das Ideias é de Platão e não de Sócrates. Mas a terceira coisa que Aristóteles diz, a que qualifica Sócrates com o descobridor do universal, da definição e do procedimento indutivo, não pode ser de modo algum verdadeira, pelo simples motivo de que tais descobertas postulavam toda uma série de categorias lógicas e metafísicas (universal-particular, essência-conceito, dedução-indução) que não só não estavam à disposição de Sócrates, mas nem sequer do primeiro Platão [até a República].
(...) Em conclusão, Sócrates foi uma excelente mente lógica, mas não elaborou uma lógica em nível teórico; na sua dialética encontram-se os germes que levarão a futuras e importantes descobertas lógicas, mas não descobertas lógicas conscientemente formuladas.”
De todo modo, para Aristóteles, Sócrates seria um precursor da ideia de
ciência, segundo a qual nada se pode afirmar de um objeto antes de se conhecer
dele o conceito, sua essência universal permanente.
Ou, ainda nas palavras de Reale (op.cit., p.321): “O procedimento seguido
por Sócrates para alcançar o conhecimento seria o da indução, a passagem lógica
dos casos particulares ao universal.”
Não muito distante dessa apreciação de Reale, Kahn (1996b, p.83-86) assim
se manifesta sobre a versão aristotélica de Sócrates:
“À parte o uso de argumentos indutivos ou analógicos (epagogé), que é bem documentado na literatura socrática, há três pontos principais na avaliação de Aristóteles sobre Sócrates: 1- A busca de definições universais. 2- A identificação da virtude com conhecimento. 3- A negação da ‘akrasía’. (...)
1- O relato de Aristóteles sobre a pesquisa de Sócrates pelas definições universais, em Metafísica A.6 (987b1-4), tem paralelo num texto mais completo em Metafísica M.4. Aqui, de novo, Aristóteles está descrevendo a origem da Teoria das Formas.
Ele começa mais uma vez referindo-se ao fluxo heraclíteo, e agora torna explícito o argumento que é vislumbrado no Crátilo e implicado no Teeteto: ‘se é preciso haver conhecimento e sabedoria (phrónesis), deve haver naturezas diferentes e imutáveis além das sensíveis’ (1178b15).
Podemos ver aqui que o motivo atribuído a Sócrates para seu interesse em definições pressupõe a própria teoria de Aristóteles de ciência e dialética, de acordo com a qual os primeiros princípios são fornecidos pelas definições, enquanto (a aristotélica) dialética pode funcionar hipoteticamente com base em opiniões alternativas. (...) Assim resulta que a aceitação por Aristóteles dos diálogos de definição como evidência histórica para Sócrates é essencial não somente para sua explicação das origens da Teoria das Formas, mas também para uma crítica dessa teoria.
56
(...) 2- A tese de que a virtude em geral, e a coragem em particular, é uma forma de
conhecimento é repetidamente atribuída a Sócrates por Aristóteles (Ética a Nicômaco, 1144b14-21, 1116b3-4). (...) Entretanto, no Laques, onde a definição de coragem como conhecimento é proposta por Nícias (e aparentemente refutada por Sócrates), o que Nícias atribui a Sócrates é algo muito menos categórico: ‘Eu tenho muitas vezes ouvido tu dizeres que cada um de nós é bom naquilo em que é sábio (sophós), e mau naquilo em que é ignorante’ (Laques, 194d).
Ora, essa conexão regular entre sabedoria e excelência fica muito aquém de uma identidade definicional entre as duas. Isso é compatível com a alegação de que o conhecimento moral ‘causa’ que alguém seja virtuoso, como a ignorância moral é causa de vício. E essa é a visão que se encontrará representada na Apologia, onde não há nenhuma questão de definição.
(...) 3- A dependência de Aristóteles de Platão é mais óbvia para a negação da
akrasía. Aristóteles está literalmente citando o texto do Protágoras onde este reporta que Sócrates achou estranho que ‘se o conhecimento está presente em alguém, outra coisa qualquer possa dominá-lo e arrastá-lo como um escravo’ (Ética a Nicômaco, 1145b23, de Protágoras, 352b5-c2).
(...) Tem sido há muito reconhecido que quase tudo que Aristóteles nos conta sobre Sócrates pode ser derivado dos diálogos de Platão.51
2.3
O Sócrates dos diálogos de Platão – visão evolutiva contra visão unitária
Finalmente chegamos à fonte platônica do Sócrates histórico. Esta última
fonte a ser examinada é a mais complexa, pela dificuldade de interpretação
inerente à natureza ficcional dos diálogos de Platão.
A reconstituição do Sócrates histórico é sumamente difícil, senão
impossível, já que, como aponta Reale (op.cit., p.251), “as fontes nas quais se
inspiram são, cada uma, não objetiva descrição, mas interpretação”.
Não há como evitar, na interpretação dos textos de Platão, a discussão,
sempre especulativa, sobre a partilha nos diálogos entre o que seria de origem
socrática e o que corresponderia ao pensamento de Platão, já que se trata de
composições dramático-narrativas e, portanto, literárias, com um personagem
principal, constante de quase todos os diálogos, de existência historicamente
assegurada, que se sabe ter tido considerável influência no ambiente moral e
político do século V. 51 A única exceção é que Sócrates não teria, conforme Aristóteles, feito a separação das Formas, o que torna o Sócrates do Fédon e da República não histórico, como observa Kahn em nota à p.87, op.cit.
57
E, verificadas tensões e mesmo contradições entre doutrinas e teses expostas
ao longo dos diálogos52, é razoável supor que tal conflito em alguma medida,
decorra de um conflito real de posições ou de visões diferentes entre criatura e
criador, personagem e autor, entre os dois filósofos, enfim, sob pena de ter de
admitir que qualquer deles mudava de opinião em questões importantes com
surpreendente frequência.
O problema todo é saber o que pertenceria a cada um, sobretudo porque
nem todas as mudanças de pensamento tendem ao antagonismo com o
anteriormente pensado ou com sua negação, mas, frequentemente, importam
apenas em pequenas correções de rumo, revisões pontuais e até novas maneiras de
propor essencialmente as mesmas coisas.
A questão socrática pode, então, se resumir a esse preceito milenar de
justiça retributiva, criticado no Livro I da República pelo Sócrates platônico: dar a
cada um o que é seu, dar a Sócrates o que é de Sócrates e a Platão o que é de
Platão.
É preciso primeiro descartar a posição evolutivista, para, no próximo
capítulo, estabelecermos um debate com a posição unitarista, que adotamos, no
essencial, e, sobretudo, com Kahn, representante de uma versão unitarista muito
original e convincente, por proporcionar um entendimento conjunto da obra
platônica, desde os diálogos de definição até a República, e capaz de explicar a
maioria das aparentes contradições ou revisões inesperadas de teses anteriores do
filósofo: a interpretação proléptica dos diálogos platônicos.
Embora adeptos do unitarismo e da visão proléptica de Kahn, acreditamos
ter razões para não aceitar dois elementos das teses desse autor:
1) A subestimação de Aristófanes como fonte para a reconstrução
platônica do caráter e pensamento de Sócrates.
2) A interpretação da Apologia como fundamentalmente um documento
histórico e não uma obra de ficção53.
52 A propósito, diz Kahn (op.cit., p.38): “As posições constantes de um diálogo são não só diferentes das de outro, mas parecem mesmo incompatíveis, como é o caso do Górgias, em que Sócrates nega a identidade entre prazer e bem, e do Protágoras, que parece afirmá-la. Platão mudou seu modo de pensar ou, se não, qual a razão de fazer Sócrates defender em certos diálogos posições opostas às suas próprias?” 53 Essas objeções serão examinadas no Capítulo 2 deste trabalho.
58
Assim, como o debate do próximo capítulo será com o próprio Kahn,
preferimos que ele mesmo nos guie com sua compreensão pessoal sobre o que, a
seu ver, separa seu unitarismo das posições interpretativas de tipo evolutivista, no
que ele chama de “duas leituras alternativas dos diálogos”:
a) A visão unitarista, remontando a Schleiermacher.
b) A visão evolutiva, introduzida por K.F. Hermann.
A interpretação de Kahn, contrastando com a tendência evolutiva,54 em suas
palavras, “vai enfatizar os elementos de continuidade no pensamento de Platão, e
rejeitar a noção de qualquer corte brusco entre os diálogos iniciais e a doutrina
metafísica do Fédon e da República” (op.cit., p.39).
O que Kahn nega é que a evidente influência de Sócrates sobre o
pensamento de Platão seja interpretada como uma presunção biográfica que
localiza essa influência no período inicial da produção platônica.
No que se refere à tentativa de reconstrução do Sócrates histórico nos
diálogos, Kahn chama sua perspectiva de “minimal view” e a de seus opositores
de “maximal view”, no sentido, respectivamente, de a primeira atribuir o mínimo
indispensável das teses expostas e defendidas nos diálogos ao próprio Sócrates, e
a segunda, o máximo possível delas ao filósofo-protagonista dos diálogos,
havendo quem lhe credite até mesmo a Teoria das Formas (Taylor)55.
Reproduzimos então, aqui, sua abordagem do assunto (KAHN, op.cit., p.73
ss), lembrando sempre que, para ele, as fontes para pesquisas do pensamento do
Sócrates histórico se reduzem a três – Platão, Aristóteles e Xenofonte (e
secundariamente, Ésquines) –, descredenciando qualquer pretensão de Aristófanes
a esse estatuto.
Eis, então, uma súmula das duas principais respostas à chamada “questão
socrática”, segundo a perspectiva de Charles Kahn, que faz coincidir a postura
evolutivista ao que denomina “maximal view” e o ponto de vista unitarista ao que
convencionou chamar “minimal view”.
O Sócrates histórico: uma visão máxima (“maximal view”) 54 Para nossos propósitos, a caracterização básica dessa tendência já foi dada na Introdução deste trabalho e será detalhada um pouco mais adiante. 55 Sobre esse assunto, eis um extrato da posição de A.E. Taylor (1932, p.29): “A menos que o Fédon seja uma mistificação, segue-se imediatamente que sua doutrina central, a assim chamada ‘Teoria das Ideias’, que é representada como adotada por Sócrates em sua juventude e familiar a todos os seus auditores, era realmente uma opinião socrática, e não uma descoberta de Platão.”
59
Eis o pensamento de Kahn (1996a, p.236-241) sobre os maximalistas ou
adeptos da interpretação evolutiva de Platão:
“Uma vez que o retrato de Platão sobre Sócrates é de longe o mais rico em conteúdo intelectual, muitos scholars têm se baseado nos diálogos iniciais, e em particular no Protágoras e nos diálogos de definição (Laques, Cármides, Eutífron e Mênon) para uma reconstrução da própria posição filosófica de Sócrates. Por meio de limitar-se a si mesmos aos diálogos em que a Teoria das Formas não aparece, scholars como Zeller e Guthrie têm sido capazes de reconhecer um conjunto de doutrinas que podem aparentemente ser confirmadas como historicamente socráticas por evidência paralela a partir de Xenofonte e Aristóteles.
Essa concepção tradicional da filosofia socrática inclui as seguintes visões: 1) que virtude (areté) é algum tipo de conhecimento ou sabedoria, de modo que
o entendimento moral é não só necessário mas suficiente para a ação virtuosa; 2) que nesse sentido todas as virtudes são uma, nomeadamente, algo como
conhecimento do que é bom e mau; 3) em consequência, ninguém age mal (busca o que é mau) voluntariamente,
mas somente a partir da ignorância, e 4) akrasía, ou agir contra seu melhor julgamento, é impossível: o que parece
como sendo vencido pela paixão ou prazer é, de fato, um erro intelectual. São esses pontos de vista que chegaram a ser conhecidos como
‘intelectualismo’ socrático, uma psicologia moral puramente cognitiva que ignora ou nega o papel da emoção como uma causa explanatória da ação humana.
A suprema importância atribuída ao conhecimento moral explica a urgência da missão elênctica socrática, examinando interlocutores que se passam por sábios e expondo falsas reivindicações ao conhecimento da parte daqueles que dele carecem.
Sua própria modesta alegação é simplesmente o reconhecimento da própria ignorância; e seu interesse na discussão com outros é para ajudá-los a alcançar o mesmo reconhecimento.
Esta é uma parte essencial do que Sócrates quer dizer com ‘cuidado pela própria alma’: chegar ao autoconhecimento mediante o reconhecimento da própria falta de sabedoria.
Mas o cuidado-de-si socrático também envolve uma dimensão moral mais positiva: tornar a alma de alguém tão boa quanto possível (Apologia, 30b).
Parece ser essa concepção de ‘areté’ como excelência psíquica que está atrás da insistência de Sócrates em que não se deve sob nenhuma circunstância agir injustamente. O compromisso pessoal de Sócrates com esse princípio de evitar a ação injusta é manifestada por sua ação no julgamento dos generais das Arginusas, sua recusa de prender León de Salamina sob os Trinta tiranos, e sua recusa de escapar da prisão quando condenado à morte.
A visão tradicional também aceita a avaliação de Aristóteles do método filosófico de Sócrates como incluindo tanto a ‘epagogé’, ou inferência indutiva a partir de casos similares, e a definição universal como a pesquisa pelas essências. O argumento a partir da analogia é de fato encontrado em todo lugar na literatura socrática, e não parece haver razão de duvidar de sua autenticidade como uma prática do Sócrates histórico. A questão da definição é mais complicada, como veremos.
Tal é o terreno comum para muitos relatos sobre Sócrates. Um importante e recente estudo de Gregory Vlastos (1991) vai além, e
reivindica como historicamente socrática toda uma série de ideias filosóficas, teses
60
e métodos de argumentar ilustrada nos primeiros oito ou dez escritos platônicos, até e inclusive a primeira seção do Mênon, antes de ser introduzida a doutrina da reminiscência. Segundo essa visão, os primeiros diálogos dependem não somente da memória de Platão das palavras de Sócrates, mas também de sua continuação imaginativa das linhas socráticas de pensamento. Mas essa continuação é tão fidedigna ao pensamento do mestre que podemos com segurança tratar os primeiros diálogos de Platão como documentos confiáveis para a filosofia de Sócrates.
Eu já argumentei, em outro lugar, contra essa leitura histórica dos diálogos.
Kahn opõe à tal leitura três objeções principais:
1) A implausibilidade de um filósofo tão criativo como Platão permanecer
fixado na posição do mestre por 12 ou mais anos depois de sua
morte56.
2) O mal-entendido de ver nos escritos socráticos a intenção platônica de
retratar o Sócrates histórico, quando se sabe que tais escritos
constituem um gênero ficcional, e, como tal – com a possível exceção
da Apologia de Platão –, não têm a natureza de documentos históricos.
3) Finalmente, há uma boa razão para duvidar do testemunho de
Aristóteles para reconstituir o Sócrates histórico.
E arremata Kahn (1996b, p.75):
“Essas duas últimas considerações – a inadequação dos escritos sobre Sócrates do século IV como uma fonte histórica para o filósofo do século V, e a natureza problemática do testemunho de Aristóteles – falarão não apenas contra uma interpretação máxima, como a de Vlastos, mas também contra tentativas mais tradicionais de reconstruir a filosofia de Sócrates, como nas histórias (da filosofia) de Zeller e Guthrie.”
O Sócrates histórico: uma visão mínima (“minimal view”)
56 Sobre as posições de Taylor e Burnet acerca do Sócrates histórico, assim as resume I.M. Crombie (1988, p.39): “(...) [eles têm] a opinião de que, nos diálogos nos quais Sócrates é o principal interlocutor, as doutrinas que se propõem são, mais ou menos, as doutrinas do Sócrates histórico; e que somente nos diálogos em que se perde Sócrates de vista é onde estão os próprios pensamentos de Platão.” Como nos alerta Crombie, seria estranho “que uma mente tão ativa filosoficamente como a de Platão pudesse ter dedicado tantos anos escrevendo nada mais que uma biografia” (ibid., p.40). Magalhães-Vilhena, no mesmo sentido, declara que seria mesmo um “absurdo emitir a hipótese de um Platão repórter ou até biógrafo, durante a metade de sua vida, antes de se tornar o prodigioso gênio filosófico que a humanidade admira” (1998, p.340).
61
Se, de fato, Platão, amálgama de grande filósofo e escritor criativo, é a única
fonte57 de qualquer tentativa de reconstrução da filosofia socrática, a pergunta de
Kahn é: como distinguir em seus diálogos o que é história do que é arte? Onde
termina o relato dos ensinamentos do mestre e onde começa o desenvolvimento e
transformação platônica desse ensinamento?
Se pesquisarmos os escritos de Platão com essa questão em mente, Kahn
(1996b, p.88) nos garante que nos impressionaremos com o fato de haver um
“contraste fundamental entre a Apologia e as demais obras de Platão”.
Eis seus argumentos para justificar tal assertiva:
1) Uma aguda diferença de forma literária.
A Apologia pertenceria a um gênero tradicional, “o discurso forense revisto
para publicação, enquanto todos os diálogos58 pertencem ao novo gênero
‘conversas com Sócrates’” (id., ibid.).
2) O segundo argumento de Kahn decorre do primeiro, na medida em que
encara a Apologia como um não diálogo, e, nitidamente, um outro gênero
discursivo.
Daí ser uma espécie de rememoração do “evento público”59 do julgamento
de Sócrates e não uma “conversa privada” “quase sempre fictícia” como os
demais escritos platônicos.
Kahn (ibid., p.89) acrescenta que “mesmo admitindo o grande papel
desempenhado aqui pela elaboração literária de Platão, há constrangimentos
externos que fazem sua Apologia o mais confiável de nossos testemunhos acerca
de Sócrates”.
E, portanto, conclui (id., ibid.):
“Se podemos saber algo com razoável probabilidade em relação à própria concepção de Sócrates de filosofia, devemos encontrar isso na Apologia. (...) É tentador, e talvez legítimo, suplementar esta informação apoiando-se também no Críton. Porque o Críton se apresenta como uma espécie de sequela em relação à
57 Por imposição de coerência com o que afirmou antes sobre esse assunto, Kahn, de novo, omite Aristófanes como fonte inspiradora de Platão. 58 É preciso notar aqui um curioso lapso no uso do termo “diálogos” por Kahn, idêntico ao que ele mesmo censura em Aristóteles em Política, 1256a11, apontado logo no início do capítulo 3 deste seu livro: “Na obra de Platão, a presença de Sócrates é esmagadora. De 25 ou mais diálogos, Sócrates está ausente de apenas um: Leis (e isso é tão excepcional que Aristóteles, num lapso, se refere às Leis com um dos ‘discursos de Sócrates’, Política, 1256a11).” Aqui, Kahn repete o mesmo erro que impugna e atribui ao estagirita. 59 Ou uma “versão literária de um evento público composto por um membro da audiência e, portanto, um documento ‘quasi-histórico’” (KAHN, op.cit., p.88).
62
Apologia, destinado a explicar e justificar para o mundo a decisão de Sócrates de não escapar da prisão.”
Assim, para ele (op.cit., p.89), “a ‘minimal view’ deve se limitar à Apologia,
tanto quanto possível”.
A posição de Kahn de avaliar, como históricos ou quase, a Apologia e o
Críton tem precursor em H. Maier, que, segundo nos informa Jaeger (op.cit.,
p.509, n.26), considera esses mesmos diálogos como “escritos pessoais” de Platão
e, nessa qualidade, perfeitamente verídicos.
Em seguida, Kahn (op.cit., p.89-92) alinha oito fortes argumentos em favor
da reconstituição do pensamento de Sócrates a partir da Apologia, secundada no
máximo pelo Críton, dado o vínculo natural entre esses dois escritos. Ei-los, na
íntegra:
“1. A filosofia é a busca da sabedoria (sophía). Sócrates está devotado à busca, mas não consegue encontrar nenhuma. Ou antes, ele conclui que a sabedoria relativa às ‘coisas mais importantes’ (como tornar os homens melhores, o que constitui uma vida boa, o que espera por nós depois da morte e coisas do tipo) não está disponível aos seres humanos de modo algum, mas é uma possessão dos deuses apenas (23a-b). Ele não exclui a possibilidade de genuíno conhecimento acerca do mundo da natureza. Mas ele pessoalmente não o possui, e implica que o que geralmente passa por conhecimento nesse domínio provavelmente não seja de modo algum conhecimento (19c). Acima de tudo, o próprio Sócrates não possui nem téchne (20c1), nem mathéma (33b5), nem qualquer espécie de conhecimento que lhe permitiria ensinar os outros60. Sua sabedoria é, na melhor hipótese, a ‘sabedoria humana’ de reconhecer sua própria ignorância, de se dar conta de que ‘é realmente deficiente com respeito à sabedoria’ (23b3). 2. Sócrates representa a si mesmo não como um mestre, mas como um pesquisador, e sua pesquisa consiste em examinar-se a si mesmo e aos outros acerca da sabedoria e da excelência. O exame (exétasis) e o teste (élenkhos) é amplamente negativo no seu resultado imediato. Sócrates procura trazer o interlocutor para um sentido adequado de sua própria inadequação, em consequência, de sua necessidade ‘de cuidar de si mesmo’ (epimélesthai heutoû) ou ‘de cuidar de sua alma (psikhé), que deve ser tão boa quanto possível’ (29e-30b)61. O momento positivo é, assim, a convocação ao autoexame e ao autoaperfeiçoamento, com o conceito de excelência (areté) internalizado como o caráter intrínseco da própria pessoa ou, o que é equivalente, de sua alma. Isso representa uma quebra radical (se não inteiramente sem precedente) com as visões tradicionais, que consideram areté como dependente de nascimento, fortuna, ou sucesso externo. 3. Cuidado pela excelência da alma inclui a persecução da inteligência prática ou entendimento (phrónesis, 29e1, phronimótatos, 36c7). Assim, no Alcebíades de Ésquines encontramos Sócrates tentando fazer o jovem aristocrata cônscio de sua
60 Apologia, 33a-b. Kahn, a propósito, aponta que este ponto é explicitamente confirmado na conclusão do Alcebíades de Ésquines (fr.11, Dittmar= SSR VI a 53, 61). 61 Kahn, em nota, diz que “a expressão ‘epimélesthai heautoû’ ocorre na Apologia 36c e em Ésquines fr. 8 (Dittmar= SSR VI A 50, linha 42); Platão prefere a expresão ‘epimélesthai tês psikhés’ (Apologia, 29e2, 30b2)”.
63
necessidade de conhecimento e treinamento62. Assim, a concepção socrática de areté certamente inclui um elemento cognitivo e intelectual. Mas nada na Apologia sugere que a virtude seja simplesmente uma espécie de conhecimento, ou idêntico à sabedoria. Ao contrário, Sócrates nega a posse de um genuíno conhecimento ou sabedoria do que é mais importante, mas ele nunca nega ter bom senso prático (phrónesis) e excelência moral (areté). De fato, ele torna bastante claro que considera a si mesmo como moralmente superior a Meleto e Ânito (30d1), e que, como um homem bom, é protegido do mal pelos deuses (41d1). 4. O cuidado da alma também acarreta uma recusa de fazer qualquer coisa injusta ou vergonhosa. A concepção de justiça como a condição saudável da alma, e injustiça como sua doença e corrupção, é expressa no Críton (47d-e), não na Apologia. Mas a Apologia torna claro que, para Sócrates, uma pessoa que valha algo não calculará os riscos de perigo ou morte, mas ‘quando age, vai considerar somente se a ação é justa ou injusta, obra de um homem bom ou de um mau’ (28b6-9). Sua narração de seu próprio comportamento sob a democracia radical e sob a oligarquia dos Trinta é destinada a mostrar que sua preocupação primordial era ‘não fazer nada injusto ou ímpio’ (32d): como no caso de julgamentos ilegais e prisões que se recusou a coonestar ou efetuar, bem como mais tarde sua recusa de escapar da prisão antes de sua execução. 5. No Críton, a recusa de agir injustamente sob qualquer circunstância inclui uma recusa de causar prejuízo ou dano a quem quer que seja, mesmo a alguém que previamente lhe tenha feito mal.
Diz-se que isso decorre do princípio, com que Sócrates muitas vezes concordou no passado, de que ninguém deve agir injustamente, desde que ‘agir injustamente é, de qualquer ângulo, tanto mau quanto vergonhoso para o agente’ (49a-b6).
Essa ruptura dramática com o princípio tradicional da retaliação, de devolver o mal com o mal e o prejuízo com prejuízo, é mais cabalmente atestada apenas no Críton (e ecoado na República, 335b-e). Entretanto, sua origem socrática autêntica é fortemente sugerida por sua introdução no Críton como parte do que ‘temos tantas vezes concordado em ocasiões prévias’ (49b6). E isso parece ser confirmado pelo argumento, contra Meleto, de que não é razoável alguém querer prejudicar seus vizinhos (Apologia, 25d-e). 6. O teste de si próprio e de outros à luz desses princípios normativos é descrito como ‘o maior bem para um ser humano’, uma vez que uma vida não examinada não vale a pena viver (38a). Na persecução desse teste negativo e dessa exortação positiva ao autoaperfeiçoamento, Sócrates se vê como um benfeitor de seus concidadãos, uma vez que seu objetivo é fazer deles melhores homens e melhores cidadãos, a despeito do fato de não ter nenhuma tékhne para isso (Apologia, 20b4-c3). 7. A prática socrática desse elenco é concebida por ele como uma tarefa cometida pelos deuses, o exercício de uma capacidade que é sua ‘concessão divina’ (theía moira)63. A incumbência pessoal de Sócrates, que consiste em ‘viver a vida da filosofia, perseguindo a busca pela sabedoria, examinado a mim mesmo e aos outros’ (28e5), foi confirmada pelo oráculo délfico, por sonhos, pelo próprio daímon de Sócrates ou sinal divino pessoal, ‘e de toda maneira por qualquer outra comissão divina (theía moira) que comandou um ser humano a executar qualquer ação’ (33c).
62 Em outra nota, Kahn remete o leitor às referências a phroneîn e epistéme nos fragmentos de Ésquines SSR VI A 50, linhas 30, 31, 45. E ainda prossegue: é possível que Sócrates considerasse a competência em governar a cidade como uma téchne, por analogia com as artes e ofícios. Mas não há nada na Apologia para indicar que o pensamento de si mesmo como possuidor da politiké tékhne, como concebida por Platão no Górgias, Eutidemo e em outros lugares. 63 Em nova nota, Kahn remete, para o uso por Sócrates da expressão theía moira em referência a sua capacidade de ajudar Alcebíades, a Ésquines, fr.11 a Dittmar= SSR VI a 53, linha 6.
64
8. E o que dizer do mais famoso de todos os paradoxos socráticos, de que ninguém faz o mal voluntariamente ou que ninguém é voluntariamente mau? Não encontramos nenhuma afirmação explícita desse paradoxo nem na Apologia nem no Críton. Mas muitas passagens na Apologia parecem aludir a tal tese. A afirmação de Sócrates no segundo discurso, ‘Estou convencido de que não tenho voluntariamente (hékon) feito mal a ninguém’ (37a5), pode mas não precisa implicar o paradoxo. Mais revelador é o argumento de Sócrates contra Meleto de que, uma vez que ‘ninguém quer ser prejudicado’, seria o cúmulo da loucura alguém corromper voluntariamente (hékon) um de seus concidadãos’. Pois corrompê-los é fazê-los maus, e ‘pessoas más farão coisas más àqueles em sua volta’ (25d-e). ‘Ora, se os corrompo involuntariamente’, diz Sócrates, ‘o que eu necessito não é punição, mas instrução. Claramente, se eu aprender, deixarei de fazer o que faço involuntariamente (ákon)’ (26 a). Isso fica aquém de uma alegação geral de que ninguém comete más ações voluntariamente. Mas sugere que a ignorância é a causa da ação viciosa, e que o conhecimento moral, a causa da virtude. Mais especificamente, o argumento de Sócrates aqui pode ser visto como uma instância do paradoxo moral (ninguém faz o mal voluntariamente) defendido por um apelo ao paradoxo prudencial (ninguém voluntariamente faz algo mau para si mesmo, isto é, algo desvantajoso64)”.
Kahn (ibid., p.92) conclui que:
“[A] pesquisa da filosofia socrática como representada na Apologia (com alguns pontos do Críton) não confirma os três princípios atribuídos a Sócrates por Aristóteles:
1) A definição de virtude como conhecimento ou sabedoria. 2) A negação da akrasía. 3) A busca de definições universais, ou essências.
É certo, porém, que 1) e 2) podem ser naturalmente vistos como parte de um desenvolvimento do paradoxo de que ninguém faz o mal intencionalmente. Se alguém realiza atos errados involuntariamente, por ignorância, então o conhecimento do que é bom deve garantir que ele agirá corretamente (‘Claramente, se eu aprender, eu pararei de fazer o que eu faço involuntariamente’, Apologia, 26a4).
O que se chama “akrasía” deve ser realmente um resultado da ignorância. Um desenvolvimento teórico nessa direção é precisamente o que encontramos
no Protágoras. A visão máxima (‘maximal view’) atribuirá essa doutrina a Sócrates. Na leitura mais cautelosa proposta aqui essa é a própria elaboração por Platão
de uma possível resposta ao paradoxo socrático. Isso nos deixa com a questão da definição, de que não há traço nem na Apologia
nem no Críton nem nos outros diálogos curtos que razoavelmente podem ser considerados como entre os primeiros escritos de Platão: o Íon e o Hípias Menor.
Na ausência de documentação apropriada, temos alguma razão para seguir Aristóteles em imputar essa prática a Sócrates? Ou devemos encarar a questão ‘o que é X’ do Laques, Eutífron e Mênon como uma inovação platônica?”
64 Em nota muito significativa, Kahn aduz que “o paradoxo prudencial é bem claramente implicado em Apologia, 25c5-d3, e a versão moral é sugerida em 25e2 (mochtéron)”. Afirma ainda “que o paradoxo é genuinamente socrático e é confirmado pela alegação em Odysseus de Antístenes de que ignorância (amathía) é involuntária, uma vez que é o pior dos males (SSR v A54, linhas 22 e 78).
65
Kahn acha que a resposta à última pergunta que formula deva ser sim.
Embora o argumento do silêncio não seja decisivo, é preciso reconhecer a
enorme diferença entre o relato de Aristóteles sobre o tema, por um lado, e a
prática dialética de Sócrates na Apologia e em três dos primeiros diálogos, por
outro.
Essa discrepância, segundo Kahn, pode ser suavizada se distinguirmos dois
tipos de demanda por definição: uma que corresponde à exigência de clareza
semântica do interlocutor e equivale a “o que tu queres dizer com X”?
Outra, que se inicia no Laques, diz respeito ao princípio conhecido pelos
estudiosos como o da Prioridade de Definição, em busca da natureza ou essência
de algo.
Kahn sugere que a busca de definição por Sócrates nos diálogos de
definição prefigura o que o Fédon descreve como “deûteros ploûs”.
Argumenta Kahn que “se a Apologia é nossa medida para o Sócrates
histórico, então a atribuição aristotélica a ele de uma pesquisa por definições
essenciais não pode ser historicamente correta”.
Pois “a pesquisa que Platão inicia no Laques é algo novo e mais ambicioso,
ligado desde o início a aspirações epistêmicas e metafóricas, que são
distintamente não socráticas” (op.cit., p.95).
Num texto magistral – Vlastos’ Sócrates –, Kahn contesta a “maximal view”
apresentada e representada por Vlastos (1991), tanto no que concerne à questão
socrática (reconstituição do pensamento do filósofo) quanto à sua versão evolutiva
do pensamento platônico.
Assim, Kahn (1996a) resume suas discordâncias com as posições de
Vlastos:
“O que Vlastos nos oferece é essencialmente sua própria solução para o velho problema do Sócrates histórico. Vlastos argumenta a favor de duas teses principais a serem examinadas aqui em detalhe. A primeira é que duas filosofias distintas e mesmo antitéticas são apresentadas por Sócrates nos diálogos. A segunda é que a mais antiga dessas duas filosofias – aquela apresentada por Sócrates nos primeiros diálogos – é, de fato, a filosofia do Sócrates histórico, enquanto que os últimos diálogos apresentam as próprias ideias de Platão.”
Kahn se diz em “fundamental desacordo com essas afirmações” (op.cit.,
p.234).
66
Diz ele, citando Vlastos:
“As duas filosofias das quais Sócrates seria o porta-voz literário ‘são não apenas diferentes, mas, em importantes aspectos, antitéticas’ (Vlastos, op.cit., p.81).
No capítulo 3, Vlastos argumenta em favor da segunda tese: ‘O pensamento da primeira dessas duas filosofias é fiel ao do Sócrates histórico, enquanto que no segundo, Platão inicia novas linhas não socráticas de sua autoria.’
Assim, Vlastos localiza sua solução para o problema socrático numa versão extremada da visão evolutiva da obra de Platão.
O pensamento de Platão não simplesmente evoluiu, ele inverteu-se, e essa inversão toma a forma de uma rejeição crítica da filosofia socrática.
Começando pela tese histórica sobre Sócrates, Vlastos, no capítulo 3 (‘A evidência (testemunho) de Aristóteles e Xenofonte’), vai além dos escritos de Platão em busca do Sócrates histórico, e defende dois argumentos:
1) Que, quando Platão e Xenofonte diferem em sua descrição de Sócrates, Platão é o mais confiável.
2) Que está certo quem segue Aristóteles quando este identifica o Sócrates histórico com as doutrinas dos primeiros diálogos, sobretudo com as do Protágoras e as dos diálogos de definição.
(...) Se distinguirmos aqui entre um crédito máximo e um crédito mínimo na historicidade do retrato platônico, Vlastos é um maximalista e Aristóteles, sua testemunha-chave.” (op.cit., p.235)
Essa fidedignidade do relato aristotélico sobre Sócrates tem sido dada
frequentemente como certa, mas precisa, para Kahn, ser reconsiderada, inclusive
por ser esse relato dependente demais dos próprios diálogos, como já discutimos
no Capítulo 2.
A esse propósito, já vimos o quanto essa atribuição de fidedignidade ao
relato aristotélico pode ser enganosa.
O próprio Vlastos (op.cit., p.97, n.69) reconhece que a dependência direta
de diálogos como Protágoras para sua versão de Sócrates é inquestionável
(KAHN, op.cit., p.236, n.1).
Mas prossegue Kahn (ibid., p.239-240):
“Em suma, há três objeções substanciais à confiança de Vlastos em Aristóteles ao nos guiar do primeiro Sócrates ao Sócrates histórico:
1) Os defeitos de Aristóteles como historiador da filosofia. 2) O problema hermenêutico de usar textos literários do século V para a história
intelectual do século IV. 3) A suposição, requerida pelo argumento de Vlastos, de que um filósofo tão
criativo como Platão poderia produzir um rico corpo de trabalho filosófico por 12 ou mais anos sem se afastar significativamente do pensamento de seu mestre.”
67
A inferência da figura literária de Sócrates ao pensador de carne e osso do
século V é tão problemática que quaisquer alegações (pretensões) históricas sobre
a filosofia de Sócrates – quaisquer alegações que vão além de um punhado de
paradoxos familiares – destinam-se a ser inconclusivos.
Sabemos, ou podemos razoavelmente supor, muitas coisas sobre o caráter, a
aparência pessoal e o comportamento público de Sócrates. Mas, na ausência de
documentação relevante a respeito de seu ensino e prática, todo leitor de Platão
terá de compor (estruturar) sua própria visão de Sócrates como filósofo.
Nossa evidência é tal que, na minha opinião, a filosofia de Sócrates mesmo,
distinta de seu impacto em seus seguidores, não está ao alcance da pesquisa
histórica.
Pode-se excluir posições extremas: a negativa de tratar Sócrates como uma
figura lendária sobre a qual nada é conhecido e o extremo positivo de atribuir-lhe
a doutrina das Formas.
Entre esses extremos há um minimum razoável (essencialmente o Sócrates
da Apologia) e o maximum razoável (como apresentado por Vlastos). O
argumento contra Vlastos é, de fato, um argumento pela visão mínima. (“minimal
view”).
A seguir, Kahn (ibid., p.241) propõe que:
“Antes de examinar o argumento de Vlastos, deve-se distinguir o que é controverso nas suas alegações do que será terreno comum em qualquer interpretação responsável.
Por exemplo, não há dúvida sobre a ausência da clássica Teoria das Formas nos chamados diálogos socráticos.
Epistemologia aparece pela primeira vez no Mênon, na doutrina da anamnese. A concepção metafísica das Formas é exposta no Banquete, Fédon e Crátilo. A psicologia tripartite é adicionada na República. Nada dessas doutrinas tipicamente platônicas se encontra antes do Mênon. Qualquer visão unitarista razoável deve conceder um mínimo de “evolução”:
Platão primeiro escreveu a Apologia e uns dez diálogos65 em que Sócrates aparece essencialmente como filósofo moral; mais tarde ele escreveu os cinco diálogos há pouco mencionados em que essas teorias mais ambiciosas são introduzidas.
A controvérsia começa quando procuramos explicações desta mudança no conteúdo dos diálogos.
Platão já tinha as doutrinas mais tardias em mente desde o começo, mas evitou, por razões pedagógicas, apresentá-las por escrito até que as aporias que elas visam resolver estivessem inteiramente exploradas?
65 Esses dez, como esclarece Kahn em nota, são os oito do grupo “elênctico” de Vlastos (Cármides, Críton, Eutífron, Górgias, Hípías Menor, Íon, Laques e Protágoras), lista à qual Kahn acrescenta o Lísis e o Menexeno, além do Livro I da República.
68
Esta seria a visão unitária no espírito de Schleiermacher. Ou Platão desenvolveu as doutrinas dos diálogos intermediários precisamente
para reforçar a defesa da ética socrática que foi sua principal preocupação nos trabalhos iniciais?
Esse seria o tipo de acabamento e extensão aludida por Zeller: a construção de um rico sistema em volta de um cerne socrático.
Costuma-se conciliar assim continuidade e evolução. Mas Vlastos nesse ponto é um iconoclasta. Ele enfatiza tanto a descontinuidade entre diálogos iniciais e intermediários que
seria preciso uma conversão filosófica de Platão para justificá-la. E o ímpeto para essa transformação teria vindo da matemática, que ‘arrancou
Platão das amarras socráticas’ e o colocou ‘na jornada do Sócrates dos diálogos elêncticos, em que discípulo e mestre tinham pensado como um só’, para o Sócrates de seu período intermediário, desenvolvendo projetos não socráticos no sentido de conclusões antissocráticas (VLASTOS, op.cit., p.131)”.
A prolepse de Kahn e sua consequente proposta de “cronologia”
De todo modo, a interpretação proléptica proposta por Kahn, por ser mais
aberta a razões literárias e pedagógicas, torna, ao nosso ver, mais simples e clara a
compreensão da figura socrática dos primeiros diálogos: “É possível entender
melhor os primeiros diálogos se os olharmos não como reflexões de um Sócrates
histórico, mas como prefigurações de um Platão maduro.” (KAHN, 1996a)
E acrescenta o autor (1996b, p.60-62):
“Platão não teria mudado de ideia em nenhum aspecto fundamental, entre o Laques e o Protágoras, de um lado, e o Fédon e a República, de outro.
O problema é: que suposições nos propiciam a melhor interpretação dos textos? A exposição “ingressiva” é uma hipótese segundo a qual os sete diálogos de
limiar são concebidos para preparar o leitor para as visões apresentadas no Banquete, Fédon e República, e só podem ser adequadamente entendidos da perspectiva dessas obras intermediárias.
As provas disso serão de duas espécies. Por um lado, existem passagens nos diálogos de limiar que são enigmáticas,
problemáticas, para as quais a solução ou clarificação será dada por um texto ou doutrina dos diálogos intermediários.
(...) Exemplo: a gradual emergência da terminologia para dialética66. Por outro lado, há textos nos diálogos intermediários que deliberadamente
enfatizam sua continuidade com ideias e formulações familiares das primeiras obras.
Exemplo: a fórmula para as Formas do Fédon e República ecoam a questão ‘o que é X?’ dos diálogos de definição.
66 Comparar essa aparição gradual e diferida nos diálogos de cognatos de “dialética”, assunto que será explicitado mais à frente, com a técnica proléptica similar da Odisseia de retardar o desvelamento e a completa exposição à luz do herói Odisseu, tema também a ser abordado oportunamente.
69
E quando Sócrates introduz a Forma do Bem como supremo objeto do conhecimento, ele repetidamente assevera que ‘tu ouviste isso muitas vezes antes’ (VI, 504e8, 505a3), o que é talvez o mais perto que Platão já chegou de comentar sobre seu próprio uso de composição proléptica.
O contexto todo de 505a-c ressoa com ecos dos diálogos anteriores: Protágoras, Eutidemo, Mênon, Eutífron e Górgias67.
Sobre o tema da Teoria das Formas, é bem conhecido que a questão ‘o que é X?’ dos diálogos de definição serve como um antecedente direto para tal teoria.”
E prossegue Kahn (op.cit., p.305), interrogando-se sobre a razão de Platão
ter optado pela forma dialógica, se histórica – transcrição o mais exata possível do
ensino do mestre – ou literário-filosófica – como estratégia proléptica de
apresentação de seu próprio pensamento:
“Os intérpretes deviam pensar mais frequentemente sobre questões como: por que Platão escreveu diálogos, afinal?
A visão que quero desafiar tende a assumir que a motivação de Platão em tais diálogos foi primariamente histórica: preservar e defender a memória de Sócrates através de representá-lo tão fielmente quanto possível.
Daí parece seguir-se que o conteúdo filosófico desses diálogos deve ser a própria filosofia socrática, que Platão piamente conservou.
A presunção complementar tende a ser que quando Platão cessa de escrever como historiador, ele escreve como qualquer outro filósofo: usando Sócrates como porta-voz para expressar seja qual for a doutrina que Platão venha a sustentar no tempo em que escreve.
Ambas as suposições têm sua cota de verdade, mas não levam na devida conta o fato de que os diálogos são obras de arte dramática e, na maioria dos casos, de ficção dramática. Como obras de arte, produzem um efeito de ‘distanciamento’ literário entre autor e audiência que nos impede de simplesmente ler os pensamentos do autor de uma forma direta a partir do que é dito por algum personagem nos diálogos.
O Sócrates dos diálogos é uma figura ambígua, ao mesmo tempo o mestre histórico de Platão e seu fantoche literário.
O diálogo é, ele mesmo, uma forma de arte única, uma peça de rigorosa discussão filosófica envolvida numa ambientação dramática pessoal e projetada no passado histórico. A tal habilidade artística da parte do escritor deve corresponder um grau de sutileza hermenêutica da parte do leitor.
A visão standard sobre a cronologia das obras, exposta por Guthrie (1975, p.236), é de que as obras mais precoces formam um grupo ‘socrático’ em que Platão está, de modo imaginativo, evocando, em forma e substância, as conversações de seu mestre sem ainda adicionar a elas nenhuma doutrina distintamente sua.
Incluem-se nesse grupo: Apologia, Críton, Eutífron, Laques, Lísis, Cármides, Hípias Maior, Hípias Menor e Íon.
67 Kahn insere nesse ponto a seguinte nota: “Em relação a isso, Adam (1902, II, 51) comenta que a alegação de que, sem conhecimento do bem, nada mais tem qualquer utilidade, é ‘um dos lugares-comuns’ de Platão e ele cita como paralelos Cármides, 173 ss., Laques, 199c, Eutidemo, 280 ss., 289a ss., 291, Lísis, 219b ss. Adam acrescenta: ‘O Eutidemo e Cármides já antecipam a cidade do filósofo-rei, em que Conhecimento e Bem ‘se sentarão sozinhos no leme do Estado’ (Eutidemo, 219d).”
70
No fim desse grupo, segundo ele, viria Protágoras, e o Górgias já seria mais tardio, portanto, mais platônico.
‘Sócrates, o questionador ignorante, se transforma num homem de convicções positivas e expressas com firmeza’, e surge ‘o primeiro dos grandes mitos escatológicos’ (GUTHRIE, op.cit., p.284)”.
De todo modo, a ordem proposta por Kahn é Apologia, Críton, Íon e Hípias
Menor. Depois, Górgias. E os três primeiros talvez tivessem sido compostos entre
399 e 390 a.C.
Em seguida aos dois diálogos dramaticamente conexos sobre o julgamento e
prisão de Sócrates, Kahn posiciona o Íon, por alusões históricas feitas no
diálogo68, e o Hípias Menor, que “lembra o Íon por sua brevidade, sua
simplicidade formal, seu uso abundante de material homérico”. Ambos ilustrariam
a “missão” socrática de expor pretendentes ao conhecimento, e ambos buscam
caracterizar o tipo de conhecimento que se qualifica como “téchne”.
Para Kahn, “somente depois da ruptura com a vida política ateniense é que
Platão se torna um escritor sistemático e surgem os típicos diálogos socráticos
como uma busca infrutífera por definição”.
Depois da esporádica69 composição do Íon, Hípias Menor, Menexeno e
Górgias, “os diálogos agora parecem ser planejados em grupos coerentes e foram
provavelmente escritos em rápida sucessão” (KAHN, op.cit., p.308-309).
Assim, a cronologia dos diálogos proposta por Kahn até a República é a
seguinte:
I- Diálogos mais precoces ou pré-sistemáticos
Apologia (depois de 399 a.C.)
Críton
Íon
Hípias Menor
Górgias (390-386 a.C.)
Menexeno (386-385 a.C.), referência à Paz do Rei
68 A data de composição do Íon se situaria em 394-393 a.C. pelas alusões ao domínio ateniense sobre Éfeso, terra do rapsodo. Ver H. Flashdar, “Der Dialog Íon as Zeugnis Platonischer Philosophie” (Berlim, 1958, p.96-100). 69 Esse adjetivo aparentemente ingênuo denota um implícito importante, qual seja, o da dificuldade de Kahn de classificar esses primeiros diálogos numa categoria única, dando a impressão de um início bastante errático da carreira de Platão, compondo obras um tanto avulsas. A minha hipótese teria a finalidade de inseri-las prolepticamente num projeto político-literário preordenado, como veremos no item deste trabalho logo a seguir.
71
II- Pré-intermediários ou “socráticos”
A- Laques
Cármides
Lísis
Eutífron
B- Protágoras
Eutidemo
Mênon
III- Intermediários (doutrina das Ideias)
Banquete (depois de 385 a.C., antes de 378 a.C.)
Fédon
Crátilo
República
Fedro
Depois do Górgias, sugere Kahn, teria começado algo novo: o diálogo
aporético.
A preocupação de Kahn (op.cit., p.98) com os diálogos de definição é com
seu papel na transformação do elenco negativo da Apologia no método positivo
pelo qual Sócrates desenvolverá teorias sistemáticas nos diálogos
intermediários70:
“Os diálogos de definição são todos caracterizados por uma tensão entre a conclusão abertamente negativa e certa tese positiva implícita sobre a virtude em questão. Essas ideias construtivas já se encontravam incipientemente (ou prolepticamente) nesses diálogos.”
E exemplifica:
“No caso do Laques e Cármides a tese implícita tem a ver com o conhecimento do bom e do mau. No Eutífron, refere-se à potencial definição de piedade com a parte da justiça relativa aos deuses. No Lísis se desenvolve uma tese positiva sobre amizade (philía) que é ignorada na conclusão do diálogo. E no Mênon é clara a
70 Kahn, “Plato and the Socratic Dialogue”, op.cit. p.98.
72
introdução de várias ideias construtivas: o aprendizado como anamnese, o método de hipótese, a distinção entre conhecimento e opinião verdadeira.”
Kahn (op.cit., p.98-100) defende que essas iniciativas positivas do Mênon e
Lísis são concebidas para preparar o caminho para as doutrinas centrais dos
diálogos intermediários:
“O momento de transição para a fase mais positiva é o Mênon e sua lição de geometria, em que Sócrates mostra a importância da aporia no aprendizado (80ab, 84b6-c8).
A técnica aporética traz o estudante ao primeiro estágio da clarificação filosófica: o reconhecimento de um problema cuja importância e dificuldade ele não tinha entendido.
Platão reconhece (Sofista, 230a-231b) o elenco negativo como uma preliminar necessária, preparando, mas não constituindo a pesquisa construtiva do conhecimento.
A aporia é um recurso literário para reinterpretar o elenco socrático como a preparação para uma filosofia construtiva.”71
Qual a significação de tal revisão cronológica que, fundamentalmente,
desloca o Protágoras e os quatro diálogos de definição para depois do Górgias?
“Sobretudo aproximar mais esses cinco diálogos da Teoria das Ideias.” (op.cit.,
p.310)
Mais importante, para o autor, é como se deve entender os diálogos.
“O fulcro dessa cronologia não standard é sugerir a leitura desses cinco trabalhos prolepticamente, olhando para a frente mais do que para trás em busca de seu sentido: lê-los não para descobrir o que Sócrates disse há tanto tempo mas para ver como Platão procederá em seus caminhos de pesquisa de um diálogo para outro, e finalmente na direção das doutrinas dos diálogos intermediários.”
Se o autor está certo, “os intérpretes que consideram esses diálogos como
essencialmente socráticos em conteúdo foram iludidos por uma espécie de ilusão
de ótica, a medida do sucesso de Platão em recriar a atmosfera do século V e
tornar Sócrates tão real”.72
Assim, a tese que Kahn defende “não é sobre a unidade do pensamento de
Platão, mas sobre a unidade de seu projeto em 12 diálogos, do Laques até a
71 Portanto, parece que, para Kahn, nos primeiros seis diálogos haveria elenco socrático, mas não aporia, daí os chamarmos (Kahn não o faz, mas poderia tê-lo feito) diálogos pré-aporéticos. 72 O primeiro a ser iludido foi Aristóteles (KAHN, op.cit., p.310, n.13)
73
República. O Górgias, como a Apologia e o Críton, se situam fora desse projeto, e
a segunda parte do Fedro aponta para algo mais”73.
Finalmente, para deixar claras suas razões para uma leitura proléptica do
grupo de diálogos que precedem a República, nosso autor diz o seguinte:
“A proposta não é simplesmente mais uma hipótese verossímil a respeito de um tema cronológico ou biográfico, mas antes uma escolha entre dois conjuntos de pressupostos hermenêuticos (o dele e o convencional), duas diferentes formas de ler os diálogos: o proléptico e o retrospectivo.
A escolha de uma presunção hermenêutica só pode ser justificada pelos seus frutos: seu sucesso em tornar possível uma interpretação mais adequada dos textos.” (KAHN, 1981, p.311-312)
E, para exemplificar essa utilidade de sua interpretação proléptica, tendo
como critério a antecipação, desde o Laques, da Teoria das Formas, Kahn toma
como casos paradigmáticos, os diálogos Lísis, Eutidemo e Crátilo.
Assim, acerca do Lísis, referindo-se à passagem a seu ver de índole
proléptica, diz Kahn:
“Duvido que qualquer sentido razoável possa ser extraído de ‘o primeiro phílon’, em virtude do qual todas as outras coisas são queridas (219d), sem olhar para a frente, para a forma da Beleza no Banquete e a forma do Bem na República, ‘que toda alma persegue, e em virtude do que faz o que faz’ (República, 505d11).
A referência às outras coisas desejadas como ‘imagens’ do primeiro objeto de afeição é uma antecipação da terminologia técnica da doutrina das Formas, não usada até o Banquete 211c (eídola) e generalizada no Fédon 75a.
A linguagem do Lísis é toda enigmática, se não for interpretada como indicações de coisas por vir (219c8-d5).”
A seguir, descobre prolepse também no Eutidemo e Crátilo:
“A extensão em que o Eutidemo é dominado pela caricatura da dialética torna mais notável que, num contexto anterior, os dialéticos (hoí dialéktikoí) tenham sido apresentados como praticantes de uma arte superior, a quem os matemáticos confiam as verdades (Tá ónta) que eles descobriram mas não sabem como usar: os dialéticos estão para os matemáticos como o político ou o rei estão para o general (290c-d; 291c).
Quando essa doutrina é atribuída ao jovem Clínias, Críton expressa descrédito; Sócrates não está seguro quanto a de quem ele teria ouvido isso, mas sabe que não foi dos irmãos eristicos: talvez fosse enunciado por algum poder superior ou divindade presente? (290e-291a).
73 Essas considerações de Kahn são importantíssimas para a minha própria tese, na medida em que visa a incluir esses diálogos num projeto proléptico de maior alcance temporal e natureza mais genérica.
74
Essa passagem é assim francamente rotulada de mistério, e é difícil ver como esse mistério possa ser desvelado por quem não tenha lido a explicação de dialética da República 6 e7, ou ouvido Platão dar uma explicação comparável.
Há um paralelo a esta deliberada provocação no Crátilo, onde uma explicação parcialmente similar é introduzida por um sumário dessa passagem do Eutidemo, incluindo a mesma ilustração: o tocador de cítara como juiz da arte do fabricante de liras (Crátilo, 390b5-10, ecoando Eutidemo, 289b10-c4).
O Crátilo define dialético como o que sabe perguntar e responder questões, na linha do Górgias e Mênon; mas aqui sua arte é descrita como ocupando o papel de juiz do trabalho doador-de-nomes ou elaborador-de-lei, uma vez que o dialético é o usuário do produto – isto é, palavras – de que o nomothétes é o fabricante (390cd).
E desde que a correta atribuição de nomes requer insight da forma (eidos) e essência (ousía) da coisa nomeada, essa passagem do Crátilo se conecta com uma concepção mais elevada de dialética da doutrina das Formas (390e; 386e, 389b-390a).
Mas o Crátilo não explica por que o dialético é estabelecido como uma autoridade sobre matemática. Para uma explanação desse ponto, e para um entendimento completo de ambas as passagens, não há realmente substituto para os livros centrais da República.
De todo modo, temos dois claros exemplos de escrita deliberadamente proléptica nos diálogos pré-intermediários (“socráticos”): a antecipação da forma da Beleza e da forma do Bem no Lísis e a antecipação da teoria da dialética como meta-matemática no Eutidemo.” (KAHN, op.cit., p.318)
Motivos de Platão para evasividade, segundo Kahn
Kahn apresenta considerações de tipo geral e de tipo específico para a
revelação gradual por Platão de seu pensamento ao longo dos diálogos.
Considerações gerais:
1) Aversão, por temperamento, às declarações diretas, sugerida pela sua
extrema fidelidade à forma dialógica.
2) Descrença na possibilidade de comunicação de insights filosóficos.
Considerações específicas:
1) Vantagem pedagógica da aporia como estímulo ao desejo e à
capacidade de investigação a partir do “choque de perplexidade”.
2) A percepção da enorme distância entre sua visão de mundo de
“visionário metafísico” e aquela da sua audiência: “Essa discrepância
radical é um fator fundamental na concepção do diálogo platônico. Ela
explica, naturalmente, o uso do mito por Platão: o mito propicia o
necessário distanciamento literário que permite a Platão articular sua
visão fora-de-lugar de significado e verdade” (op.cit., p.66).
75
Assim, esquivar-se deliberadamente de uma aberta apresentação desses
estranhos conteúdos diante de uma “audiência exotérica” é uma estratégia
expositiva de Platão.
“É no Banquete que a junção delicada entre a visão de Platão e a sua audiência contemporânea é efetuada pelo artifício sagaz da Diotima. Mas Diotima é cuidadosa de nunca mencionar seja reencarnação ou qualquer concepção de imortalidade que pudesse ser ridicularizada pelos civilizados convivas do jantar festivo de Agatão.” (KAHN, op.cit., p.69)
Os versos órfico-pitagóricos de Eurípedes74, citados com respeito no
Górgias (429e10), são reiteradamente satirizados por Aristófanes em As rãs
(1082, 1477).
O abismo entre a mundivisão do Sócrates platônico e de seus
contemporâneos é brilhantemente dramatizada pela absoluta incapacidade de
Alcebíades de entender o filósofo. Assim, o modo proléptico de expor é um traço
típico do artista consumado para gradualmente familiarizar seus leitores com uma
forma de ver a realidade inteiramente nova.
De fato, o risco de cair no vazio ou de gerar graves incompreensões de uma
abordagem direta da metafísica a ouvintes acostumados ao mundanismo retórico e
às lutas concretas pelo poder é imenso.
Pode-se exemplificar isso, mutatis mutandis, com o episódio de Saulo Tarso
no Novo Testamento. Dirigindo-se a um público de cidadãos coríntios a quem
estava cativando ao pé de um altar “ao deus desconhecido”, com os feitos de sua
nova divindade, viu sua audiência debandar quando se pôs a falar sobre a
ressurreição prometida à humanidade.
Além disso, o uso da forma dialogada e ficcional permite a Platão não ter a
obrigação de, como observa Jaeger, “colocar em cada diálogo tudo o que pensa no
momento da escrita”, mas agenciar a administração de seus conteúdos filosóficos
ao leitor, na medida de sua conveniência literária ou pedagógica.
Por que ele abriria mão dessa imensa vantagem sobre os filósofos
tradicionais de expressão tratadística?
Seu silêncio sobre certos aspectos de seu próprio pensamento seria, pois,
significativo, na opinião de Kahn, fruto de uma deliberada omissão, seja por suas
74 “Quem sabe se a vida é morte, ou se, de fato, a morte é vida.”
76
implicações pedagógicas, de apresentar um pensamento em todo seu percurso de
elaboração, incluindo dificuldades e aporias e sem ignorar a limitada capacidade
de absorção pelos leitores de formulações tão contrárias à opinião comum, seja,
como acredito, até mesmo por motivos de ordem “dramática”, com um efeito,
desse ponto de vista, similar aos famosos e longos silêncios das peças de Ésquilo.