2. processos da globalização: contextualizando a emigração

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2. Processos da Globalização: Contextualizando a emigração brasileira Neste capítulo, as visões de globalização dos sociólogos Saskia Sassen, Boaventura de Sousa Santos, Manuel Castells, do geógrafo David Harvey e do antropólogo e teórico cultural Stuart Hall foram reunidas com a finalidade de construir uma base teórica multidisciplinar de onde partirão os estudos acerca da relação entre o Estado brasileiro e sua diáspora, para melhor preparar o terreno para a análise empírica presente nos próximos capítulos. As teorias analisadas representam meios de pensar a globalização que vão além do escopo das teorias tradicionais de Relações Internacionais. Incorporamos em nosso estudo diversos termos para tratar do tema: a lógica de redes na estrutura informacional desenvolvida Castells; a noção de compressão espaço- tempo e pós-modernidade de Harvey; o sistema mundial em transição (SMET) e cosmopolitismo das comunidades brasileiras no exterior desenvolvido por Sousa Santos; assim como o duplo deslocamento das identidades nacionais e do sujeito moderno de Stuart Hall e a desnacionalização parcial de Saskia Sassen. Esses autores têm como fio condutor a ideia de que a globalização é uma reestruturação do capitalismo que não se limita somente à transação entre atores mais poderosos, como Estados, multinacionais e instituições internacionais, mas que engloba práticas de atores informais (Sassen) como imigrantes e redes de ativistas numa relação de bidirecionalidade.

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2.

Processos da Globalização: Contextualizando a emigração

brasileira

Neste capítulo, as visões de globalização dos sociólogos Saskia Sassen,

Boaventura de Sousa Santos, Manuel Castells, do geógrafo David Harvey e do

antropólogo e teórico cultural Stuart Hall foram reunidas com a finalidade de

construir uma base teórica multidisciplinar de onde partirão os estudos acerca da

relação entre o Estado brasileiro e sua diáspora, para melhor preparar o terreno

para a análise empírica presente nos próximos capítulos.

As teorias analisadas representam meios de pensar a globalização que vão

além do escopo das teorias tradicionais de Relações Internacionais. Incorporamos

em nosso estudo diversos termos para tratar do tema: a lógica de redes na

estrutura informacional desenvolvida Castells; a noção de compressão espaço-

tempo e pós-modernidade de Harvey; o sistema mundial em transição (SMET) e

cosmopolitismo das comunidades brasileiras no exterior desenvolvido por Sousa

Santos; assim como o duplo deslocamento das identidades nacionais e do sujeito

moderno de Stuart Hall e a desnacionalização parcial de Saskia Sassen. Esses

autores têm como fio condutor a ideia de que a globalização é uma reestruturação

do capitalismo que não se limita somente à transação entre atores mais poderosos,

como Estados, multinacionais e instituições internacionais, mas que engloba

práticas de atores informais (Sassen) como imigrantes e redes de ativistas numa

relação de bidirecionalidade.

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2.1. A Globalização e suas novas fronteiras

2.1.1. Redes e fluxos numa infraestrutura informacional

Os autores estudados se referem à globalização como parte de um “novo

paradigma” estrutural advindo de um período de crises do capitalismo no final do

século XX. Para Manuel Castells, a revolução nas tecnologias de informação é

vista como propulsora do processo de reestruturação — a revolução tecnológica

representa uma ‘transformação fundamental’, um evento histórico da ‘mesma

importância da Revolução Industrial do século XVIII’, devido a sua

penetrabilidade em todos os ‘domínios da atividade humana’ (CASTELLS, 1999,

p. 68). As tecnologias que agem sobre a informação e a penetrabilidade dos

efeitos das novas tecnologias transformam qualquer conjunto de relações numa

lógica de redes (CASTELLS, 1999, p. 108). Diferentemente, Sassen as enxergam

como resultados da globalização (SASSEN, 2003).

A globalização, sob a ótica de Castells, pode ser concebida como a

mudança para um modo de desenvolvimento informacional que representa uma

revolução estrutural por transformar a lógica do desenvolvimento e pesquisa

tecnológica, sendo assim um rompimento com o modo de desenvolvimento

industrial que determinou a acumulação de meados no século XIX e metade do

século XX. Esse modo de produção informacional forma um ciclo de crescimento

exponencial que se baseia na capacidade humana de expandir conhecimento sobre

a maneira de produzir conhecimento. Esse capitalismo informacional se manifesta

de formas diferentes nas sociedades e regiões ao redor do mundo. O fato de ser

informacional implica uma forma organizacional em que a geração,

processamento e transmissão de informação são fontes cruciais de produtividade e

poder (CASTELLS, 1999, p. 64 [n30]).

Do mesmo modo que a economia industrial requereu algumas

transformações, tais como: uma nova forma de reprodução social do espaço, uma

indústria cultural, a divisão social e técnica do trabalho e o consumo em massas

— o surgimento da economia informacional precisou reestruturar a sociedade

como um todo para poder dar conta das novas dinâmicas mediadas

tecnologicamente. Desse modo, embora a economia informacional/global seja

diferente da economia industrial, ela não se opõe à sua lógica. A indústria

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continua sendo importante, porém agora se desenvolve em redes transnacionais,

incorporando os processos industriais dentro da lógica de produção informacional.

A economia informacional é global, pois “é uma economia com capacidade de

funcionar como uma unidade em tempo real, em escala planetária” (CASTELLS,

1999, p. 119).

A globalização dos mercados financeiros é vista como ‘espinha dorsal’ da

nova economia global (CASTELLS, 1999). O valor das transações financeiras é

mais alto do que da produção industrial. Esse crescimento exponencial dos

mercados financeiros se deve à criação da infraestrutura de tecnologia,

principalmente nos anos oitenta, e tornou possível separar a economia real

daquela dos mercados financeiros, na medida em que o valor dos derivados das

bolsas supera o PIB global e a especulação financeira proporciona rotatividade

bem maior do que o volume de exportações. Assim, só é possível atingir números

tão elevados através da infraestrutura informacional instalada ao redor do mundo,

o que tem como resultado o aumento da concentração e geração de valor na esfera

financeira, “numa rede global de fluxos de capital administrados por redes de

sistemas de informática, e de seus serviços auxiliares” (CASTELLS, 1999, p.

147).

A dinâmica e forma de concorrência entre empresas, países e regiões nessa

nova economia global são determinadas por quatro fatores: a capacidade

tecnológica, o acesso a um grande e afluente mercado integrado, as diferenças

entre custos de produção no local e os preços no mercado de destino e a

capacidade política de instituições supranacionais e nacionais para promover a

estratégia de crescimento de tais regiões e países. Nesse âmbito, cria-se um novo

modelo de divisão de trabalho no final do século XX que não coincide com países,

mas que é “...organizado em redes e fluxos, utilizando a infraestrutura tecnológica

da economia informacional” (CASTELLS, 1999, p. 160). Como veremos adiante,

é nesse contexto que surge a emigração brasileira analisada neste trabalho.

A produção informacional precisa da geração de conhecimento e

processamento de dados para manter-se competitiva. A ciência, tecnologia e

informação são organizadas em redes globais com estrutura assimétrica, no

sentido em que há uma alta concentração de pesquisa e desenvolvimento (P&D)

num número menor de países da OCDE. Dessa forma, a conexão entre a ciência, a

tecnologia e o setor empresarial com as políticas nacionais e internacionais é

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necessária para que ocorra o desenvolvimento tecnológico global (CASTELLS,

1999, p. 165). O novo sistema conta com o conjunto de alianças estratégicas e a

cooperação ad hoc entre redes de empresas grandes e médias, operando numa

produção e distribuição localizadas em vários locais, o que torna necessário uma

forma nova e mais flexível de gerenciamento, em visão compartilhada por David

Harvey, como veremos adiante (CASTELLS, 1999, p. 164).

As empresas multinacionais e suas redes de produção servem como

instrumentos de domínio tecnológico e canais de difusão seletiva da tecnologia, na

medida em que utilizam o conhecimento como bem para concorrência para

penetrar em mercados e conseguir apoio governamental (CASTELLS, 1999, p.

167). No entanto, o processo de geração e difusão de conhecimento tecnológico

organizado em redes transnacionais de produção depende muito da política

governamental no fornecimento de recursos humanos através da educação e infra-

estrutura tecnológica (CASTELLS, 1999, p. 168). Os mercados de bens e serviços

se tornam cada vez mais globalizados apesar das medidas protecionistas.

Dessa maneira, para Castells, a nova ordem econômica e social está

centrada nas tecnologias da informação e das comunicações. Estas tecnologias

envolvem a reestruturação do capitalismo, a queda do estadismo, a crescente

concorrência econômica global e integração dos mercados financeiros através da

revolução digital e do crescimento de redes de computadores, transformando o

desenho da economia em todo o mundo. Essa reestruturação do capitalismo que

ocasionou tal mudança de paradigma de um capitalismo industrial para o modelo

informacional seria uma resposta às incertezas e aumento de competitividade

ocasionados pela crise de 1973-74. A resposta seria uma série de estratégias para

aumentar lucros num ambiente de alta concorrência, como a redução de custos de

produção, aumento de produtividade, ampliação de mercado e aceleração de giro

do capital. Tais estratégias foram colocadas em funcionamento no momento de

reestruturação dos Estados nos anos 80 e 90 através do Consenso de Washington.

Nesse processo, é possível perceber um movimento dual de liberalização e

degradação do trabalho e do estado do bem-estar social a partir da década de 70

(CASTELLS, 1999, pp. 184-185).

Na década de 1980, os fluxos financeiros aumentaram de forma

significativa, abrindo espaço para a globalização da mão de obra especializada. As

empresas se localizaram em diversos lugares, solicitando trabalhadores de

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diversas partes do mundo, formando uma ‘elite profissional global’, similar à

noção de ‘elite transnacional global’ desenvolvida por Saskia Sassen. Ao mesmo

tempo, a entrada de mão de obra não especializada é restringida por barreiras

nacionais, mantendo a maior parte do contingente de mão de obra ‘local’. Desse

modo, surge uma grande quantidade de imigrantes não documentados e em status

irregular que também participam do fluxo de transações globais de produção,

pessoas e dinheiro através de remessas, informações e cultura. (CASTELLS,

1999, pp. 171-172). É nessa infra-estrutura informacional que os emigrantes

brasileiros, em sua maioria em status ‘ilegal’, atuaram nas décadas de oitenta e

noventa, analisadas nos próximos capítulos.

Castells afirma que a resistência a este modelo ocorreu de forma paralela,

como a crítica ao patriarcalismo, a deslegitimação dos sistemas políticos, a

fragmentação de movimentos sociais e a nova consciência ambiental. Tais

movimentos de crítica caracterizam um momento de mudanças que confundem e

não podem ser controladas, e assim como veremos na visão de Stuart Hall,

indivíduos são agrupados de acordo com suas identidades primárias, que seriam as

étnicas, territoriais, religiosas e nacionais: “Em um mundo de fluxos globais de

riqueza, poder e imagens, a busca pela identidade, coletiva ou individual, atribuída

ou construída, torna-se a fonte básica de significado social” (CASTELLS, 1999, p.

41).

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2.1.2. Sistema Mundial em Transição (SMET) e cosmopolitismo

Boaventura de Sousa Santos, por sua vez, enxerga o aspecto

‘multifacetado’ da globalização, descrevendo-a com “dimensões econômicas,

sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas, interligados de forma complexa”

(SOUSA SANTOS, 2002). Tal processo une o universal e o particular, ligados ao

mesmo tempo a questões complexas que envolvem desigualdades e conflitos

externos e internos, onde interesses hegemônicos e subalternos se opõem. Assim,

a globalização pode ser vista como um intenso campo de conflitos entre diversos

grupos sociais, Estados e interesses hegemônicos de um lado, e Estados e

interesses subalternos de outro; além de outras subdivisões (SOUSA SANTOS,

2002).

O conceito de sistema mundial em transição, (SMET) procura dar conta

desta mudança ao ampliar o escopo do sistema mundial moderno (SMM). “O

sistema mundial em transição (SMET) é constituído por três constelações de

práticas coletivas: a constelação de práticas interestatais, a constelação de práticas

capitalistas globais e a constelação de práticas sociais, culturais e transnacionais.”

A partir deste ponto de vista, as duas primeiras constelações de práticas

correspondem ao universo do SMM – a primeira diz respeito ao protagonismo do

Estado-nação nas relações hierárquicas que se estabelecem no sistema-mundo

como: centro, periferia e semi-periferia. A segunda são as “práticas dos agentes

econômicos cuja unidade espaço-temporal de atuação real ou potencial é o

planeta” (Sousa Santos, 2002, p.21). Essas se referem aos fluxos de capital que

transcendem as barreiras do Estado e do sistema internacional. Sem dúvida, as

duas constelações de práticas descritas são relacionadas de forma não excludente.

Portanto, os fluxos de capitais e as práticas transnacionais seguem caminhos

abertos pelas constelações de práticas interestatais. As constelações de práticas se

mantêm com ganhos obtidos pelos fluxos desiguais do sistema mundial. A ideia

principal, o que define a contradição latente do SMET, é que “as tensões e

contradições no interior de cada uma das constelações e nas relações entre elas

decorrem das formas e das desigualdades na distribuição do poder” (Sousa Santos,

2002, p.23).

Nesse sentido, no SMET, os grupos de práticas interestatais e capitalistas

globais anteriores são transcorridos pelas práticas sociais e culturais, como as

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organizações não governamentais, movimentos sociais, redes e fluxos. As

relações entre os grupos de práticas supramencionadas iluminam os diferentes

processos de globalização, como a ‘globalização localizada’ e a ‘localização

globalizada’. Em contrapartida, o ‘cosmopolitismo’ e o ‘patrimônio mundial da

humanidade’ constituem resistências aos processos da globalização ‘de cima para

baixo’. Como será explorada nos capítulos seguintes, a emigração brasileira pode

ser vista sob esta ótica, como práticas sociais e culturais que transcorrem as

práticas interestatais e capitalistas globais e a sua relação com o Estado, uma

forma de contra-hegemonia.

Os localismos são impostos para o mundo pelas demandas da

globalização, e a resistência a esses localismos geram formas inéditas de contra-

hegemonia. O localismo globalizado “consiste no processo pelo qual determinado

fenômeno é globalizado com sucesso” (SOUSA SANTOS, 2002, p. 26). Por

exemplo, a difusão da língua inglesa e o fast-food americano tornaram-se globais,

porém levando consigo o seu localismo original. Ainda agindo ‘de cima para

baixo’ o globalismo localizado tem impacto direto sobre as condições dos demais

locais. A devastação de culturas locais, do pequeno comércio e meio ambiente são

exemplos desses globalizados localizados que se reestruturam para abastecer uma

cadeia global, onde práticas locais são consideradas periféricas ou

complementares.

As práticas de resistência e contra-hegemonia cuidam da ‘organização

transnacional’ da resistência de Estados-nação, regiões, classes, ou grupos sociais

vitimizados pelas trocas desiguais de que se alimentam os localismos globalizados

e os globalismos localizados. Essas práticas utilizam em seu favor a facilidade de

comunicação e de dispersão de informações permitidas pelas novas tecnologias,

abrindo o caminho para o ‘cosmopolitismo’, uma forma de resistência que reúne

vários grupos sociais articulados globalmente; indo além das lutas de classes

embora ainda as englobe. “As atividades cosmopolitas incluem movimentos e

organizações no interior das periferias do sistema mundial; redes de solidariedade

transnacional (...)” (SOUSA SANTOS, 2002, p. 26).

Ou seja, as atividades cosmopolitas da globalização não se restringem aos

proletários, mas incluem lutas de outros grupos tradicionalmente excluídos como

as mulheres, os negros, homossexuais, índios, etc. As atividades dos que lutam

pela proteção do patrimônio comum da humanidade estão incluídas na mesma

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chave de resistência, pois se preocupam com a desmercantilização de “recursos,

artefatos, ambiente considerados essenciais para a sobrevivência digna da

humanidade e cuja sustentabilidade só pode ser garantida à escala planetária”

(Sousa Santos, 2002, p.29). Desse modo, a globalização não é um movimento

unidirecional e irresistível, mas o contrário, ela permite o surgimento de novas

resistências.

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2.1.3. Compressão espaço-tempo e o deslocamento de

identidades nacionais na pós-modernidade

O geógrafo David Harvey argumenta que as mudanças nas práticas

políticas, econômicas e culturais ocorridas a partir de 1972 são relacionadas à

“ascensão de formas culturais pós-modernas, a emergência de modos mais

flexíveis de acumulação do capital e um novo ciclo de compressão tempo-espaço

na organização do capitalismo” (HARVEY, 2011, p. 7). De acordo com este

ponto de vista, a globalização é vista como a compressão do espaço pelo tempo,

ou seja, o processo social onde ocorre uma aceleração e difusão dos fenômenos

pelo planeta. A profunda reconfiguração do tempo e do espaço caracterizada pela

‘aceleração do ritmo da vida’ ocorre em virtude das crises do capitalismo. É um

processo altamente diversificado em seus efeitos e condições, por isso que é

imprescindível analisar as relações de poder que respondem pelas diferentes

formas de mobilidade temporal e espacial (HARVEY, 2011, pp. 7, 210, 257). Há

uma crescente sensação de que o mundo ‘encolheu’ (HARVEY, 2011, p. 219).

As mudanças ocorridas a partir do início dos anos setenta assinalam o

surgimento de um novo regime de acumulação, acumulação flexível, uma fase

tardia do capitalismo que rompe com a ‘rigidez’ do fordismo em resposta à crise

(HARVEY, 2011, p. 135). Tal como defendido por Castells, para Harvey,

diferentemente do modelo de acumulação fordista, no qual trabalhadores eram

concentrados em um tempo e espaço determinado, a ‘acumulação flexível’ pós-

fordista das novas tecnologias, como de informação, puseram fim à antiga ordem

espaço-temporal, reestruturando seu processo produtivo. A emergência de setores

de produção novos, como “as novas maneiras de fornecimento de serviços

financeiros, novos mercados e, sobretudo, as taxas altamente intensificadas de

inovação comercial, tecnológica e organizacional”, é uma característica do novo

modelo de produção pós-fordista, o qual ‘se apoia na flexibilidade dos processos

de trabalho, dos produtos, e dos padrões de consumo (HARVEY, 2011, p. 140).

Atualmente, “a explosão de novos instrumentos e mercados financeiros”

são os mesmos elementos que permitiram a “flexibilidade geográfica e temporal

da acumulação capitalista” (HARVEY, 2011, p. 7). No entanto, as crises

sistêmicas surgem na medida em que há oposição entre a aceleração de ciclos e a

necessidade de investimentos em capitais, “porque os investimentos fixos em

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instalações e equipamentos, bem como as formas organizacionais e habilidades de

trabalho, não podem ser modificados com facilidade” (HARVEY, 2011, p. 210).

Tal oposição significa que o tempo de giro afetado pelas modernizações,

como as estradas de ferro, telégrafo, cabos de fibra ótica, satélites, é implantado

de forma não uniforme. Logo, ao longo do tempo, o capital precisaria da crise

para gerar uma nova onda de modernizações para modificar novos espaços e criar

condições para a maior aceleração dos ciclos. Exemplos dessas tendências são

encontrados nas constantes inovações tecnológicas, na linha de montagem

fordista, na obsolescência programada, no papel central da propaganda e da moda,

no desenvolvimento dos mercados financeiros, os quais estão cada vez mais

interligados por redes de comunicação instantâneas e na ‘flexibilização’ do

trabalho.

De acordo com esta visão, para o melhor funcionamento do capitalismo, é

necessário que o capital percorra o ciclo da produção e consumo. O que está

acontecendo, portanto, é que esses ciclos, esse tempo de giro, estão cada vez mais

aceleradas. “Há um incentivo onipresente para a aceleração, por parte de

capitalistas individuais, do seu tempo de giro com relação à média social, e para

fazê-lo de modo a promover uma tendência social na direção de tempos médios de

giro mais rápidos”. A natureza competitiva e voraz do capitalismo causa esse

incentivo (HARVEY, 2011, p. 209).

Dessa forma uma característica marcante da globalização é a aceleração da

vida como processo social com a compressão espaço-temporal, possibilitada pela

redução do tempo do giro do capital. A velocidade em que os capitais se deslocam

em torno do planeta, buscando as melhores condições para o lucro, ajuda a

construir um mercado financeiro que não precisa lidar com o tempo natural da

vida. O trabalhador representa a resistência a este processo, “ainda hoje, as

tentativas de acelerar ou intensificar os processos de trabalho produzem algumas

das mais fortes e duras lutas entre os trabalhadores e administração”. O

capitalismo é então desenvolvido num ritmo diário que é “fixado pela obtenção de

lucros, e não pela elaboração de escalas de trabalho humano” (HARVEY, 2011, p.

211). O emigrante brasileiro está inserido nesta lógica enquanto trabalhadores

imigrantes num mercado de trabalho ‘flexível’ da produção pós-fordista.

Segundo os estudos culturais de Stuart Hall, as identidades nacionais são

produtos da era moderna, comunidades simbólicas capazes de gerar sentimento de

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lealdade e identidade. Elas representam uma tentativa de enquadrar diferentes

culturas sob o mesmo ‘teto político’ do Estado, tornando-se uma fonte importante

de significados. A ‘Nação’ seria “uma entidade política que produz sentidos, um

sistema de representação cultural” (HALL, 2003, p. 48) cultivada por políticas de

alfabetização universal e uma língua como meio de comunicação, que criaram

uma cultura homogênea e mantiveram instituições culturais nacionais através do

sistema de educação nacional. Assim, a cultura nacional se torna um ‘dispositivo

para a modernidade’ na medida em que mobiliza um grande número de pessoas

em torno do Estado, uma ‘comunidade imaginada’. Agora, no entanto, essas

identidades nacionais centradas, coerentes e inteiras estão sendo deslocadas pelos

processos de globalização (HALL, 2003, p. 49).

Dessa forma, a globalização agrava uma ‘crise na identidade’, na qual

“(...) paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e

nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como

indivíduos sociais” estão se fragmentando em um ‘duplo deslocamento’ (HALL,

2003, p. 9). Ou seja, está ocorrendo um duplo deslocamento das identidades e

descentralização do sujeito, tanto no âmbito sociocultural quanto no pessoal. A

identidade individual, única, racional do homem, que surge na era moderna está

em crise, sinalizando uma nova era pós-moderna, cujas identidades são

fragmentadas e duplamente deslocadas/descentradas, superando qualquer noção

“essencialista ou fixa de identidade” (HALL, 2003, p.10).

Hall aponta três consequências possíveis para as identidades na

globalização — a primeira sendo a desintegração de identidades nacionais devido

à crescente homogeneização cultural na era pós-moderna. As identidades se

tornariam cada vez mais mediadas pelo mercado global, desvinculadas de tempos,

tradições, histórias e lugares específicos, contribuindo para um efeito de

‘supermercado global’ (HALL, 2003, p.75). Uma segunda possibilidade seria o

reforço das identidades nacionais e locais como resistência à globalização. A

terceira consequência seria o declínio das identidades nacionais, ocasionando o

surgimento de novas identidades híbridas.

Na segunda possibilidade mencionada, observa-se a também forte

tendência de resgatar identidades puras, para constituir ‘coesão’, exemplificadas

pelo “ressurgimento do nacionalismo na Europa Oriental e o crescimento do

fundamentalismo,” um efeito inesperado num contexto de globalização (HALL,

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2003, p. 92). Ou seja, os deslocamentos causados pela globalização têm efeitos

contraditórios sobre as identidades, gerando um empate entre o ‘global e ‘local’, o

que sugere que a globalização pode ser parte de um processo de descentralização

gradual do próprio Ocidente (HALL, 2003, p. 73). Para o nosso estudo,

observamos que as identidades nacionais, no entanto, ainda têm sua força através

dos direitos garantidos por cidadania. O Estado brasileiro conseguiu formalizar as

comunidades brasileiras no exterior através da mobilização da identidade nacional

vinculada aos direitos de cidadania brasileira, num contexto de crescimento da

importância das identidades locais, regionais e comunitárias.

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2.1.4. Desnacionalização parcial na lógica organizadora

nacional global

Saskia Sassen compreende a globalização a partir de duas dinâmicas

distintas: das instituições e processos que operam na escala explicitamente global,

como as organizações internacionais, e as dinâmicas que atuam na escala tida

como nacional, práticas que ocorrem dentro do território e instituições no domínio

do nacional e subnacional. Essas dinâmicas formam redes de transferências,

ligando processos e atores locais e nacionais numa recorrência de dinâmicas em

um crescente número de países. As comunidades brasileiras no exterior seriam

exemplos dessas dinâmicas por formarem redes de ativismo, envolvidos em

conflitos localizados com agendas globais. Outros exemplos das dinâmicas de

globalização presentes no objeto estudado são aspectos da atuação do Estado (a

aproximação do Estado brasileiro com os emigrantes), assim como o uso de

instrumentos internacionais (no caso do Estado brasileiro, a questão global dos

direitos humanos) em cortes nacionais, práticas que constituem o global de forma

não reconhecida (SASSEN, 2003ª, pp.1-2).

Sassen procura desafiar o que denomina ‘nacionalismo metodológico’, que

atribui ao Estado o papel de contentor de processos sociais e o que ocorre no

território nacional é de fato, nacional. Para ela, essas condições estão sendo

desarticuladas parcialmente de maneiras divergentes, tanto na forma como a

globalização está ocorrendo, quanto em nível de articulação. Segundo este

raciocínio, o Estado não perde a sua função na globalização, ao contrário,

desempenha papel estratégico para a sua promoção (SASSEN, 2006). Portanto, é

dentro do Estado que a globalização “... se torna o lugar para as transformações

fundamentais na relação entre os domínios do privado e público, no equilíbrio

interno de poder do estado e nos campos mais amplos das forças nacionais e

globais onde o Estado agora deve funcionar” (SASSEN, 2006, p. 43).

A autora inclui dentre os processos da globalização a desestabilização de

antigas hierarquias de escala, que colocavam o global, nacional e subnacional em

níveis hierárquicos. Não estamos presenciando o fim desta hierarquia, mas o fim

da exclusividade do Estado no estudo do global, na medida em que esse opera de

forma não ascendente entre escalas, não somente para cima (SASSEN, 2003a,

pp.6-7). No caso estudado, o que vemos é uma reconceituação do local na medida

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em que o Estado procura atender as necessidades de sua população que reside fora

do país, reconceituando os emigrantes como cidadãos, sujeitos políticos.

Nessa visão, o global opera sobre elementos antigos como o Estado, as

classes, as migrações, forçando-os a funcionar de outras maneiras, mostrando

como o próprio Estado opera a dinâmica de desnacionalização parcial.

Argumentamos que a emigração brasileira e o Estado brasileiro se inserem nesta

dinâmica, na medida em que o ativismo das comunidades brasileiras no exterior

constituíram mudanças para o Estado, o qual se inseriu diretamente na

organização e formalização dessas comunidades. O papel do Estado varia de

forma significativa dependendo tanto do poder tanto interno quanto externo. Essa

dinâmica contém uma dialética em que novas participações do estado dão forças a

formas que desestabilizam o que fora construído historicamente como poder

estatal (SASSEN, 2003b, p. 14).

Nesse contexto, esta reorientação do poder do Estado para uma maior

concentração de poder no executivo é reforçada através de duas tendências:

primeiro, a crescente importância de componentes particulares da administração,

como os ministérios de finanças e bancos centrais, para a implementação de uma

economia corporativa global, cujos elementos ganham poder devido à

globalização; e segundo, as agências reguladoras globais só lidam com o

executivo, o que fortalece a adoção de lógicas globais exclusivamente com este

setor. Essa desnacionalização consiste em vários processos específicos, inclusive a

reorientação de agendas nacionais para globais, e a circulação de agendas privadas

disfarçadas de política pública dentro do Estado (SASSEN, 2006, p. 73). Como

veremos adiante, o fato de que a relação entre o Estado brasileiro e as

comunidades brasileiras no exterior seja partir do executivo, ao invés do

legislativo mostra uma estratégia de política externa que reflete a dinâmica

desnacionalizante de reorientação do trabalho do Estado. Os estados nacionais

agora funcionam num campo de poder que é constituído não somente pela

comunidade de estados, mas também pela formação de uma nova ordem

institucional privada ligada à economia global e pela ascensão de ordens

institucionais, englobando ONG’s e organizações de direitos humanos (SASSEN,

2006, p. 146).

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Conforme será visto no próximo capítulo, comparado ao contexto de

maior fluxo de imigração para o Brasil, no final do século XIX e início do século

XX, a era global atual é diferente do internacionalismo praticado naquela época.

A era hipernacional do final do século XIX continuou no século XX e era um

resultado complexo de dinâmicas de construção de capitalismos nacionais num

mundo de grandes poderes que tanto competiam quanto interagiam na economia

emergente do século XX (SASSEN, 2006, p. 140). Os diversos esforços

colonizadores ocorreram sob o contexto de expansão imperial e doméstica de

capitalismos nacionais. O Brasil não foi diferente. Veremos no próximo capítulo

que, as políticas de imigração e de política externa brasileira naquela época

tinham um claro projeto de Estado-nação brasileiro, iniciado na época do Império

com objetivo colonizador, tornando-se política de Estado no final do século XIX.

A imigração europeia foi subsidiada naquela época como parte de uma política de

desenvolvimento cujo intuito era miscigenar os europeus com a população

brasileira para o seu ‘branqueamento’ (SANTOS, 2002).

Veremos no terceiro capítulo que a política externa, desde a época da

República, busca firmar o Brasil como ‘potência natural’, e fazê-lo exercer papel

de protagonista autônomo no cenário mundial (HIRST & LIMA, 2005). Ou seja, a

internacionalização econômica de convenções e mercados, apoiada pela

coordenação interestatal, foi direcionada para a construção de capitalismos

nacionais. Desse modo, o nacionalismo centrado na geografia imperial é utilizado

para argumentar que a economia global atual representa um projeto distinto, pois

as rivalidades intercapitalistas são abordadas no domínio econômico em vez do

militar, e através de mecanismos públicos e privados cada vez mais formalizados.

Diferente das outras visões, no entanto, para Sassen a ascensão de

empresas e bancos transnacionais em meados da década de setenta não é vista

como um resultado da mudança do movimento em direção à era global. Nessa

visão, a crise no sistema bancário internacional forneceu elementos críticos para a

evacuação parcial desse tipo de sistema bancário dos mercados de capitais dos

EUA e de sistemas financeiros internacionais durante a crise da dívida do terceiro

mundo do início da década de oitenta. Isso abriu amplo espaço global para novos

tipos de atores e novos alinhamentos correspondentes na relação entre o Estado e

os bancos/sistemas financeiros. Assim, a crise dos bancos transnacionais para um

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contexto mais amplo de estagnação econômica criou espaço operacional para as

finanças e contribuiu para a rápida propagação da ‘financialização’ de um número

crescente de setores econômicos, construindo as capacidades para as mudanças na

década seguinte (SASSEN, 2006, p. 157).

Esta nova lógica organizadora global se tornou visível a partir da década

de oitenta, o ponto de inflexão das mudanças (SEWELL apud SASSEN, 2006, p.

148). Diferentemente de muitos teóricos da globalização que atribuem ao sistema

de Bretton Woods o início da era global, adotamos a visão de que o mesmo foi um

sistema de governança global que tinha como objetivo manter uma autonomia

relativa entre estados nacionais e forças globais. A era global é vista como um

sistema que visa abrir países para formas globais e implantar novas lógicas

organizadoras para substituir elementos específicos do Estado. Dessa maneira, o

período Bretton Woods não é visto como virada para era global, porque o sistema

foi concebido como internacional; era dirigido para a construção de economias

nacionais e proteção de interesses nacionais, não globais (SASSEN, 2006).

Nos primeiros 12 anos o sistema tinha como objetivo a governança global

para o bem comum, porém os EUA, participante relutante, utilizou o seu poder

hegemônico para utilizar o sistema para o desenvolvimento de capacidades

estatais para a atuação dos atores privados, as empresas americanas, já dominantes

na época em que os outros grandes poderes lidavam com a destruição da guerra.

Os poderes europeus estavam muito mais dispostos a pensar em termos de sistema

internacional que assegurava o equilíbrio. A acomodação de tais interesses

implicou numa negociação na direção da desnacionalização de instituições e

componentes nacionais altamente especializados. As instituições estatais são

reorientadas em suas políticas e agendas para as demandas do capital global, não

mais do Estado do bem-estar social (SASSEN, 2003a, p.8).

O que vemos é um desenvolvimento chave, o crescimento de várias

formas de autoridade privada que, juntas, estão construindo ordens institucionais

que funcionam fora do sistema interestatal; o que tem acontecido em graus

diversos no Estado, mesmo se seu aparato institucional continua sem mudar,

estabelecendo assim novas dimensões políticas de espacialidade do nacional e

global (SASSEN, 2003a, pp.9-10). Assim, ao contrário do que houve na era do

New Deal, quando o poder federal dos EUA ganhou força, principalmente o

legislativo, desde os anos oitenta ocorre um movimento para um executivo

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privatizado, que reinterpretam antigas leis e com menos participação do

legislativo na formulação daquelas novas. Já que o legislativo é o canal de

representação da população, há menos espaço para a participação popular na

formação de novas leis (SASSEN, 2006).

Desse modo, a autoridade e leis do Estado fazem uma interseção com o

espaço digital privado dos interesses financeiros na medida em que introduz novos

tipos de normas que “... refletem a lógica operacional do mercado global de

capitais nas políticas nacionais” (SASSEN, 2006, p.78). Os mercados financeiros

informatizados são inseridos em centros financeiros localizados em territórios

nacionais, o que parcialmente devolve as finanças globais aos governos nacionais.

Logo, a autoridade nacional não é anulada, mas desnacionalizada parcialmente;

transformada para melhor atender aos interesses das finanças globais (SASSEN,

2010).

Essas tendências apontam para uma privatização parcial, porém aguda de

aspectos chaves do executivo, que produz um realinhamento dentro do estado e

uma erosão de direitos de privacidade entre os cidadãos. O auge desses

realinhamentos recorrentes ocorreu durante a administração de George W. Bush.

Com o Patriot Act. Nesse contexto, houve uma reconstrução da divisão do

público e privado, em parte através dessas dinâmicas e de políticas de

desregulamentação, privatização e mercadorização, que também contribuiu para a

mudança na posição do executivo (SASSEN, 2006, pp.184, 410). Através desse

novo tipo de segmentação dentro do aparelho estatal, é possível constatar uma

desnacionalização também ocorrendo na instituição da cidadania. A erosão dos

direitos de privacidade é uma mudança histórica da divisão público-privada que

está no centro do estado liberal (SASSEN, 2006, p. 72).

Como apontaremos nos próximos capítulos, é neste contexto de

desnacionalização do Estado brasileiro que há maior saída de seus cidadãos, pois a

expansão do investimento global está ligada a rupturas nas comunidades locais e à

explosão da migração internacional. Podemos observar então que a globalização

abriu as fronteiras para o fluxo de capitais, informação, mercadorias e

terceirização, através da atuação do Estado na regulação e legislação sob esses

fluxos. A ação do Estado também criou novas fronteiras em relação ao segundo

grupo, de imigrantes e refugiados, que encontram fronteiras fechadas, abrindo

espaço para a emergência de classes transnacionais globais. Ou seja, os fluxos de

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capitais e bens, serviços e informação não foram seguidos por um fluxo maior de

pessoas, exceto por aqueles seletos pertencentes à privilegiada classe

transnacional, lógica não aplicada aos fluxos de trabalhadores ‘não’ ou ‘semi-

qualificados, frequentemente barrados e detidos nas fronteiras (CASTELLS 1999;

Sassen, 2003)1.

Algumas mudanças trazidas pela globalização foram às transformações

de atores antes confinados ao doméstico em atores globais, sem terem que sair de

seus papéis nas comunidades localizadas em circuitos globais (SASSEN, 2003a,

p. 13). A consequência disso é que as cidades emergem como lugares estratégicos

para importantes processos econômicos e para novos tipos de atores. Ao

desagregar a nacionalidade e cidadania, uma vez que a sensação de pertencimento

não esteja submissa ao nacional, é possível sinalizar a possibilidade de uma

política transnacional que esteja centrada em localidades concretas (SASSEN,

2005, p. 92).

A crescente articulação da globalização com as economias nacionais e a

retirada associada do Estado de vários aspectos/ esferas de direitos de cidadania

aumentam a possibilidade de diluição da autoridade do estado correspondente

(Sassen, 2003b, p.18). Reificada como parte do nacional, a cidadania na verdade é

um agrupamento de diversos elementos. As dinâmicas atuais da globalização e

digitalização, e a variedade de práticas políticas que envolvem grupos e

organizações silenciadas, como os emigrantes brasileiros, estão desestabilizando

esses agrupamentos, trazendo à tona suas particularidades (Sassen, 2003b, p.19).

A desestabilização das hierarquias de poder e alianças legítimas possibilitou uma

multiplicação de dinâmicas e atores não formalizados, ou parcialmente

formalizados, como os imigrantes brasileiros. A extensão em que as

transformações serão formalizadas e institucionalizadas variam bastante. Esses

são marcadores de um terreno analítico expandido para entender a cidadania.

Neste contexto, o sentido de cidadania é pluralizado pelas expansões

formais do seu status legal e através da institucionalização do regime de direitos

humanos. Isto está contribuindo hoje para uma maior exploração de fronteiras

desses status legais, como o fortalecimento da constitucionalização de direitos

1 Do artigo “Saskia Sassen and the Sociology of Globalization: A Critical Appraisal” de William I

Robinson. Publicado em Sociological Analyysis Vol. 3 No. 1 Spring 2009. Disponível em

http://www.soc.ucsb.edu/faculty/robinson/Assets/pdf/Saskia%20Sassen.pdf

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civis, que permitem reivindicações contra estados, aumentando a distância entre o

aparato formal do Estado e a instituição da cidadania e a garantia de direitos para

atores estrangeiros, como atores econômicos (SASSEN, 2006, pp. 88).

No entanto, os direitos formais de uma instituição da cidadania evidenciam

a mudança e sinalizam que esta é uma instituição incompleta (SASSEN, 2003b, p.

21). A cidadania legal nem sempre traz direitos completos ou iguais, ela é afetada

pela posição de grupos diferentes num Estado-nação, mas a posição desses grupos

também gerou as práticas e lutas que forçaram mudanças na instituição da própria

cidadania em si. Dois pressupostos importantes para esse argumento são:

primeiro, a cidadania é produzida em parte através das práticas dos excluídos, e

segundo, ao expandir a inclusão de aspectos formais da cidadania, o Estado

nacional contribuiu para algumas condições que facilitaram aspectos chaves de

cidadania pós-nacional e desnacionalizada (SASSEN, 2003b, p. 22). As

consequências são a ausência de progressão linear na evolução da instituição, uma

progressão chave em muita literatura de cidadania. Para muitos, ela está se

tornando um projeto normativo, enquanto o pertencimento social se torna cada

vez mais compreensivo e aberto. A globalização e os regimes de direitos humanos

relativizaram as hierarquias políticas de poder e aliança, legítimos na última

década (SASSEN, 2003b, p. 23).

Portanto, a globalização de uma série de atores e processos econômicos

traz consigo um aumento na desigualdade de poder em diferentes partes do

governo, aumentando quaisquer desigualdades pré-existentes. Embora cada estado

seja diferente, a redistribuição do poder do legislativo para o executivo é evidente

em numero crescente de países (SASSEN, 2006, p. 145). O Consenso de

Washington não foi somente uma decisão, também implicou em novas práticas

estatais que mudaram o papel do Estado, resultando ironicamente na

desestabilização de aspectos do poder do próprio Estado.

A desnacionalização pode abrir espaço para agendas políticas não

corporativas, pois conforme os estados participam da implementação de regimes

de direitos humanos, eles sofrem transformações significativas porque essa

acomodação envolve negociações, como no caso do Estado brasileiro (SASSEN,

2008, p. 73). No caso da economia global, essas negociações implicam no

desenvolvimento de determinados comportamentos dentro de estados nacionais,

através de atos legislativos, julgamentos nas cortes, ordens executivas e políticas

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dos mecanismos necessários para a reconstituição de certos aspectos do capital

nacional em 'capital global' (SASSEN, 2003b, pp. 11-12).

Dessa maneira, o papel do Estado no processo de desregulamentação

envolve a produção de novos tipos de regulamentações, itens legislativos e

decisões da corte - a produção de uma série de legalidades. O papel do Estado é

evidente na proliferação de redes transfronteiriças e agências regulatórias

especializadas. Ele continua sendo o elemento que garante direitos, porém pode

ser visto como representante de uma capacidade técnico-administrativa que nesse

tempo não pode ser replicada por qualquer outro arranjo institucional, uma

capacidade protegida pelo poder militar (SASSEN, 2003b, p. 13).

É possível observar dinâmicas desnacionalizantes na maneira em que o

Estado se relaciona com os emigrantes brasileiros na era global: como cidadãos

detentores de direito e fonte de investimento externo, e como protetor dos direitos

humanos dos imigrantes em geral. Se tomarmos como pressuposto que a

cidadania e Estado-nação são categorias que evoluíram de forma agrupada

historicamente, e que as dinâmicas atuais estão desestabilizando tais ligações, e

trazendo-as à tona, é possível pensar em novas aberturas operacionais e retóricas

para a emergência de novos tipos de sujeitos políticos e novas espacialidades para

a política através desses efeitos desestabilizadores, como imigrantes não

documentados, que são sujeitos não autorizados que têm a possibilidade de

desenvolver estratégias informais, extraestatais, assim como redes que os ligam

com comunidades dos países de origem, exercendo uma espécie cidadania

informal, como no caso brasileiro.

A ‘ressonância’ institucional feita neste trabalho pretende reposicionar os

cidadãos, ainda em sua maioria baseados na nação, como participantes em

domínios emergentes de governança global. A cidadania descreve um número de

elementos relacionados entre o indivíduo e a política em um espaço político

(SASSEN, 2003b, p. 16). Os desenvolvimentos atuais trazem à tona tensões entre

a cidadania como status formalizado legal e como projeto ou aspiração normativa.

Na medida em que a cidadania seja um status que articule direitos e

responsabilidades legais, os mecanismos através dos quais essa articulação é

moldada e implementada podem ser analiticamente distinguidos do próprio status

(SASSEN, 2003b, p. 17).

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A migração brasileira e a atuação do Estado em relação a esta realidade

podem ser analisadas a partir das visões estudadas, principalmente em relação ao

poder transformador das práticas de atores informais. Através dessa visão, as

comunidades brasileiras no exterior são atores políticos ativistas que reivindicam

direitos tanto dos países onde residem, quanto no Brasil. Na medida em que essas

reivindicações são atendidas pelo Estado, em nome dos direitos humanos,

formam-se políticas públicas que tornaram o brasileiro no exterior um sujeito

político. Dessa maneira, é possível observar que as práticas dos atores informais

(comunidades brasileiras) foram capazes de transformar institucionalmente o ator

formal (o Estado) que por sua vez, formaliza a relação com as comunidades. Esta

relação é um exemplo do poder do imaginário construído pela globalização, que

permite aspirações à prática política transfronteiriça, gerando políticas centradas

em múltiplas localidades ligadas digitalmente (SASSEN, 2003a, pp. 10-11).

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2.2. Vocabulário conceitual para análise da mudança

Para o nosso estudo, levaremos em conta a lógica de redes de emigração

brasileira na estrutura informacional, pois tal estrutura faz com que haja maior

mobilidade bidirecional de fluxos de capital e pessoas e várias direções, maior

flexibilidade nas relações de trabalho devido ao encurtamento do espaço causado

pela compressão espaço-tempo, além do efeito do duplo deslocamento das

identidades nacionais na nova forma cultural chamada pós-modernidade. Este

sistema mundial em transição (SMET) permite o cosmopolitismo das

comunidades brasileiras no exterior, obtendo sucesso com seu ativismo global de

atores informais de tal forma que foi institucionalizada pelo Estado numa

dinâmica de desnacionalização parcial. Para melhor abordar o processo de

mudança em questão, tomamos emprestados os termos construção de

capacidades, lógicas organizadoras e ponto de inflexão, adotados por Sassen

(SASSEN, 2006).

Seguimos a tipologia de Sassen utilizada em sua obra Novas Assembleias

de Território, Autoridade e Direitos para descrever os momentos de mudança na

postura do Estado brasileiro em relação aos seus cidadãos no exterior. Sua análise

consiste em destacar três elementos constitutivos: construção de capacidades,

pontos de inflexão e lógicas organizadoras. É importante destacar que: primeiro,

o estado nacional não sofre desnacionalização em sua totalidade, mas somente em

alguns componentes; e segundo, as capacidades particulares encontram o seu

valor na lógica organizadora dentro da qual estão inseridas. Olhar para as

capacidades significa focar nas dinâmicas intermediárias entre as novas e velhas

ordens, pois no processo de mudança, tais ordens podem se tornar constitutivas da

nova ordem sem parecer que sofreram alguma mudança (SASSEN, 2006).

Adotamos a visão de nova conjuntura é imbricada com o passado através

de uma dinâmica de inflexão, um tipping point que obscura tais conexões

(SEWELL apud SASSEN, 2006). A análise desses pontos de inflexão enquanto

dinâmicas particulares envolvidas em sistemas relacionais foca no evento da

mudança ao invés do resultado, nas lógicas organizadoras cujas capacidades se

encontram em mutação. Para detectar tais ‘pontos’, é preciso analisar a história

com o objetivo de capturar a transição de uma ordem para outra e acomodar a

possibilidade de atores e práticas informais, na medida em que os excluídos

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também fazem história no processo de construção de capacidades. Os chamados

‘imigrantes irregulares’ servem como exemplo na medida em que, através de

práticas informais podem desestabilizar e embaçar significados formalizados de

pertencimento político como definido no estado moderno de hoje.

A interação entre o Estado brasileiro e os migrantes internacionais é vista

de maneira diferente quando se trata de imigrantes e emigrantes, por isso que este

olhar poderá ajudar a detectar os pontos de inflexão e traçar paralelos entre

capacidades em formação nas duas fases. Uma análise das lógicas organizadoras

envolvidas também requer um olhar para a história com o intuito de detectar e

deduzir o caráter de tais lógicas. Levando em conta as escalas centrífugas, (poder

desagregador, fragmentador) da ordem medieval e global, e a escala centrípeta

(agregadora e centralizadora) da ordem nacional, é possível afirmar que o global é

novo no sentido em que, diferente da escala centrífuga medieval, ele também

desagrega a normatividade em assembleias parciais múltiplas e as remonta em

subassembleias especializadas (SASSEN, 2006).

Este capítulo foi uma tentativa de construir um vocabulário conceitual para

embasar o objeto estudado. Nos próximos dois capítulos, apresentamos a pesquisa

empírica para explorar de que forma as dinâmicas desnacionalizantes da

globalização se faz presente na relação entre o Estado e as comunidades

brasileiras no exterior.

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