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20 2 SOMOS OS FILHOS DA REVOLUÇÃO: LEGIÃO URBANA E O BRASIL DOS ANOS 1980 Se você prestar atenção no discurso punk,você percebe que eles falavam a mesma coisa que o pessoal dos 60.O Sex Pistols falava a mesma coisa,só que com toda aquela agressividade dos 70, tipo my generation.Era outro jeito de falar de amor ,porque é algo de que o ser humano não pode escapar.Alguém pode passar o resto de sua vida martelando a sua guitarra e dizendo que odeia todo mundo,mas não esqueça:quando Johnny Rotten cantava And I don‟t care, ele era a pessoa que mais se importava. E se não tivesse se importado tanto tanto,não berraria daquele jeito.Isso eu sei porque o Legião Urbana usou o mesmo discurso punk no inicio.Uma coisa totalmente niilista,destrutiva e anarquista,mas que no fundo estava falando que queria paz e harmonia no mundo.Aconteceu que na nossa cabeça,as pessoas dos 60 tinham falado disso da maneira mais clara possível,através de flores e de amor.Não deu certo,então vamos falar de outra maneira,mais dura. 1 Este relato é de um jovem que viveu intensamente os anos 1980 no Brasil e ajuda a entender um pouco da mentalidade dos jovens no país que estavam ligados a movimentos contraculturais e eram divulgadores de seus pensamentos e ideias através do grito estridente do rock´n roll. A contracultura era um movimento marginal que se propunha a questionar a cultura dita oficial e já vinha, desde meados dos anos 1960, influenciando uma grande parcela de jovens ocidentais que se rebelavam contra as sociedades tecnocratas, tendo como principal centro divulgador de idéias os Estados Unidos da América, mas deve-se ressaltar que a Europa também deu as suas devidas contribuições para que o movimento se propagasse pelo mundo. 2 No Brasil, a contracultura foi mais evidente a partir dos anos 1970, quando houve um aumento do número de jovens da classe média entrando nas universidades, pois segundo os estudiosos da contracultura esse jovem, ao ter contato com o ensino superior, acabava conhecendo a cultura dominante e tinha conhecimento suficiente da mesma para poder criticá-la de dentro. Ao analisarmos com maior interesse o relato de Renato Russo, percebemos o quanto esse jovem que fala num outro contexto histórico, os anos 1980, carrega a permanência dessa luta contracultural e sente na pele o mal-estar da modernidade, deixando evidenciar o sentimento de estranheza de um sujeito histórico jovem perante a sociedade tecnocrata. 1 RUSSO, Renato. Conversações com Renato Russo. Campo Grande: Letra Livre, 1996. p.78. 2 PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é contracultura? 8. ed.São Paulo: Brasiliense, 1992.

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20

2 SOMOS OS FILHOS DA REVOLUÇÃO: LEGIÃO URBANA E O BRASIL DOS ANOS

1980

Se você prestar atenção no discurso punk,você percebe que eles falavam a

mesma coisa que o pessoal dos 60.O Sex Pistols falava a mesma coisa,só que com toda aquela agressividade dos 70, tipo my generation.Era outro

jeito de falar de amor ,porque é algo de que o ser humano não pode

escapar.Alguém pode passar o resto de sua vida martelando a sua guitarra e dizendo que odeia todo mundo,mas não esqueça:quando Johnny Rotten

cantava And I don‟t care, ele era a pessoa que mais se importava. E se não

tivesse se importado tanto tanto,não berraria daquele jeito.Isso eu sei porque o Legião Urbana usou o mesmo discurso punk no inicio.Uma coisa

totalmente niilista,destrutiva e anarquista,mas que no fundo estava falando

que queria paz e harmonia no mundo.Aconteceu que na nossa cabeça,as

pessoas dos 60 tinham falado disso da maneira mais clara possível,através de flores e de amor.Não deu certo,então vamos falar de outra maneira,mais

dura.1

Este relato é de um jovem que viveu intensamente os anos 1980 no Brasil e ajuda a

entender um pouco da mentalidade dos jovens no país que estavam ligados a movimentos

contraculturais e eram divulgadores de seus pensamentos e ideias através do grito estridente

do rock´n roll. A contracultura era um movimento marginal que se propunha a questionar a

cultura dita oficial e já vinha, desde meados dos anos 1960, influenciando uma grande

parcela de jovens ocidentais que se rebelavam contra as sociedades tecnocratas, tendo como

principal centro divulgador de idéias os Estados Unidos da América, mas deve-se ressaltar

que a Europa também deu as suas devidas contribuições para que o movimento se

propagasse pelo mundo.2

No Brasil, a contracultura foi mais evidente a partir dos anos 1970, quando houve um

aumento do número de jovens da classe média entrando nas universidades, pois segundo os

estudiosos da contracultura esse jovem, ao ter contato com o ensino superior, acabava

conhecendo a cultura dominante e tinha conhecimento suficiente da mesma para poder

criticá-la de dentro.

Ao analisarmos com maior interesse o relato de Renato Russo, percebemos o quanto

esse jovem que fala num outro contexto histórico, os anos 1980, carrega a permanência dessa

luta contracultural e sente na pele o mal-estar da modernidade, deixando evidenciar o

sentimento de estranheza de um sujeito histórico jovem perante a sociedade tecnocrata.

1 RUSSO, Renato. Conversações com Renato Russo. Campo Grande: Letra Livre, 1996. p.78.

2 PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é contracultura? 8. ed.São Paulo: Brasiliense, 1992.

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Luciano Carneiro nos ajuda a entender como foi criada a noção do “ser jovem”

associada à música gênero rock, quando nos diz que:

[...] Em outros termos,uma determinada noção de juventude tendo como

referência uma parcela específica de jovens,acabou sendo tomada e difundida pelos meios de comunicação de massa enquanto sinônimo do

„ser jovem‟ num processo no qual cristalizou-se um modelo de juventude

fundamentado em símbolo de alta carga de positividade na sociedade de consumo[...]Enfim,um momento em que se admite muito do que deve ser

restringido na vida adulta,no qual tolera-se atitudes inadmissíveis „ao pai

de família‟(atitudes perdulárias, por exemplo) [...]3

E continua: “[...]É precisamente esta imagem de juventude que acabou sendo associada

a partir da indústria cultural ao rock,na seguinte lógica: a música do prazer para a fase do

prazer.4

Essa parcela da juventude associada ao rock é urbana e tentava aproveitar essa fase

áurea da vida ao máximo, antes que a mesma termine, pois para muitos desses jovens a

passagem para a vida adulta seria um rito de passagem dramático5, por isso atitudes radicais

são até permitidas nessa fase, pois como já vimos seria a fase mais prazerosa da vida desse

sujeito social.

Assim como Renato Russo, esses jovens que nasceram no final dos anos 1950 e início

dos anos 1960 cresceram num ambiente de repressão, os anos escuros dos porões ditatoriais,

estes foram chamados pelos estudiosos de os filhos da ditadura.6

Estamos falando dos anos 1980, do período em que um jovem que se considera

contestador das normas e padrões vigentes já possuía uma relativa liberdade no Brasil para

poder se expressar, mas essa liberdade não era total. Essa juventude dos anos 80 ainda

experimentou alguns resquícios da opressão do período militar. Seria incoerente afirmar que

os jovens ligados aos movimentos artísticos nos anos 80 receberam o mesmo tratamento de

choque que os jovens dos anos 60. O certo é que esse jovem, quando atingiu a maioridade nos

80, tinha muito a falar e a vontade de se expressar contra a sociedade que lhe era imposta. Às

3 ALVES, Luciano Carmelo. Flores no deserto: a Legião Urbana em seu próprio tempo. Dissertação

(Mestrado em História) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2002. 4 ALVES, 2002.

5 NERY, Emilia Saraiva. Juventude, ansiedade e a história: um estudo a partir de letras de música

rock. Monografia (Curso de Licenciatura Plena em História) – Universidade Federal do Piauí,

Teresina, 2005. 6 CARVALHO, José Murilo de. O Brasil de Noel a Gabriel. In: CALVACANTE, Berenice;

ELSENBERG. (Orgs.) Decantando a republica: inventário histórico e político da canção popular

moderna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.

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vezes essa vontade é tão grande que ele usa não apenas a voz ou seus escritos para exacerbar

sua condição de “ser jovem”, ele também usa o corpo para protestar. Como exemplo basta

lembrarmos do lendário episódio em que Renato Russo corta os pulsos num momento de crise

existencial7ou pensarmos nos jovens adeptos do movimento punk que usavam pedaços de

ferro fixados no corpo (nariz, orelha, lábio) e cabelos diferentes, tudo com a intenção de

chocar a sociedade que os oprimia.8

É perceptível que essa nova geração dos 1980, no período da chamada

redemocratização no Brasil “[...] já não era tão cativada pela música popular brasileira,que

muitas vezes,se expressava com letras carregadas de denúncia social e lançando mão de

metáfora para driblar a censura da década anterior.”9

A forma com que os artistas da MPB faziam suas canções já não encontrava tanta

compatibilidade com o que esse jovem dos anos 1980 sentia, até porque as canções críticas

dos anos 60 eram tão metaforizadas, para evidentemente passar pela crítica que, quando a

canção chegava ao receptor, no caso o público, já não tinha o sentido original que o emissor

da canção protesto havia imaginado. Nos anos 1980 uma canção de protesto já tinha uma

certa liberdade para ser direta, por exemplo ao ouvir a canção “Que país é esse?” era mais

fácil entender o que o compositor estava sentindo naquele momento em relação ao que

acontecia no país.

Nesse contexto de maior liberdade de expressão é que surge o grupo Legião Urbana. Os

integrantes dessa banda de rock acreditavam estar fazendo um som altamente influenciado

pelo movimento punk que, no Brasil, ganha maior visibilidade nos anos 1980.

O punk é um fenômeno que surgiu basicamente em meados da segunda metade dos

anos 70, mesmo sabendo que não se pode descartar a possibilidade de o mesmo já acontecer

antes. O movimento teve como centro irradiador a Inglaterra e os Estados Unidos da América;

espalhando-se logo depois por outros países. O termo punk, em inglês, tem vários

significados, mais o comumente usado é de “pessoa desqualificada, inútil, sem valor” e era

assim que se sentiam os jovens adeptos do movimento punk, que em sua maioria eram filhos

de operários e sentiam dificuldade para entrar no mercado de trabalho, mas usavam essa

condição desfavorecida como uma motivação para se rebelarem contra o “sistema” que os

oprimia, chegando a ter uma postura anarquista. Ser radical, aproveitar ao máximo o presente

7 DAPIEVE, Arthur. Renato Russo: o trovador solitário. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

8 ALEXANDRE, Ricardo. Punk. In: ALEXANDRE, Ricardo. Dias de luta: o rock e o Brasil dos anos

80. São Paulo: DB&A, 2002. p.19. 9 CARMO, Paulo Sérgio do. Os 80: o rock balança a MPB. In: CARMO, Paulo Sérgio do. Culturas da

rebeldia: a juventude em questão. São Paulo: SENAC-SP, 2003. p. 139.

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23

pois o futuro era incerto compunham o “ser jovem” punk. Os jovens acreditavam no slogan

do movimento do it your self ou “faça você mesmo”.10

Em termos musicais surge o punk rock atrelado aos punks essa vertente do rock surge

com a intenção de simplificar uma música; contando com apenas três acordes, era uma música

rápida e agressiva, cuja ênfase estava nas letras carregadas de denúncia social. O punk rock

era o lado oposto da vertente considerada “bom exemplo de rock”11

. Estamos falando do rock

progressivo, feito por músicos que em sua maioria eram adeptos da música erudita. Nesse tipo

de rock a ênfase era na sonoridade e a letra da música era um mero complemento dos enormes

solos de guitarra ou outro instrumento. Dessa forma, qualquer um podia se aventurar a fazer

punk rock já que este não necessitava de muito conhecimento de técnica musical para ser

feito.12

Paulo Sérgio do Carmo afirma que “nesse processo, é importante assinalar que no Brasil

não houve uma cópia importada, mas uma identificação adaptada a nossa realidade”13

e que se

deve ter em mente que o movimento punk passa por uma resignificação ao adentrar o país e

acaba por se tornar um movimento de gangue. Os jovens que viviam no maior estado

industrial brasileiro (São Paulo) tornam-se os pioneiros no estilo musical punk rock; havendo

ainda atritos entre as gangues de cidades vizinhas à capital paulista, caso das cidades do ABC

paulista (Santo André, São Bernardo e São Caetano).

Esse jovem brasileiro que vivia a margem da industrialização se identificava como

proletário e se sentia excluído do acesso à diversão e à cultura, mas via através do raivoso

som punk rock uma alternativa para externalizar sua condição de jovem, falar de sua realidade

periférica e muitas vezes manifestando orgulho de não ser adepto do padrão de vida

burguês.14

Nesse contexto fica evidente que eram jovens, pregando aquilo que os artistas

profissionais que se consolidaram nos anos 1970 na MPB não tinham mais como pregar, já

que, agora, a situação jovem era totalmente diferente nos anos 1980.15

10

ALVES, Luciano Carmelo. Flores no deserto: a Legião Urbana em seu próprio tempo. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2002. f. 150. 11

ALVES, 2002. 12

ALVES, 2002. 13

CARMO, 2003. 14

Muitas vezes os grupos de punk rock se deslocavam para os shows através do transporte público, o

que, na visão do jovem punk era o máximo. Seria uma forma de vivenciar-se na própria pele a

condição de ser proletário e de negar a sociedade consumista ao não possuir um meio de transporte próprio. ALEXANDRE, 2002. 15

ALEXANDRE, 2002.

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24

Nesse cenário do punk rock brasileiro os grupos desse estilo levaram muito a sério o

“faça você mesmo”, pois os jovens divulgavam o show através dos fanzines16

e muitas vezes

tocavam apenas por diversão ou bebida, desde que muitos dos integrantes desses grupos

musicais já exerciam alguma atividade profissional e podiam manter os equipamentos

necessários para os shows. Muitos grupos se tornaram pioneiros nesse estilo musical no

país,17

indo tocar com a cara e a coragem em porões de casas antigas ou bares alternativos das

cidades.

Segundo Paulo Sérgio do Carmo, os grupos que aderiram à ideologia do movimento:

Os punks não se interessavam pela MPB por tratar-se, muitas vezes, de canções de protesto composta por artistas oriundos da classe media,que se

tornaram ‟burgueses‟ com o sucesso e ganharam dinheiro às custas da

romantização da pobreza ou com melosas canções sobre desencontros amorosos. Essas eram músicas com temas distantes da realidade urbana da

moçada[...].18

Percebemos ao ter contato com estudiosos da história do rock mundial19

que nos anos

1980 explode o estilo musical denominado new wave e pós-punk. O primeiro tinha como

característica fundamental o casamento do áudio com o vídeo que tanto foi carimbado na

mente dos jovens dos anos 80 pela (Music Television) MTV nos Estados Unidos da América

e que foi criado para rotular todos os grupos musicais surgidos no fim da euforia do

movimento punk. Musicalmente a new wave superava em partes as limitações sonoras do

punk-rock, mas, ao mesmo tempo, bebia na mesma fonte, devorando-o e o ressignificando e

às vezes chegando à conclusão de que um pop-rock alegre e bobinho não tinha a

agressividade que o movimento punk descarregava na sociedade. A banda símbolo desse

estilo no rock mundial era o The Police20

. Já o pós-punk era musicalmente mais vanguardista

com um som que mesclava ruídos de guitarra, sons de microfonia e experimentos de timbres

esquisitos. Essa vertente não usava os meios massivos de comunicação para fazer a

16

Uma forma de divulgar os shows que iram acontecer, consistia no envio de mensagens ou gravuras

desenhadas ou pintadas no papel e depois reproduzidas em máquinas de xérox para baratear e

aumentar a produção dos mesmos. 17

Dentre os principais grupos podemos citar: Cólera, Inocentes, Verminoses e outros. Ricardo

Alexandre (Dias de luta: o rock e o Brasil dos anos 80) e Arthur Dapieve (BRock: o rock brasileiro

dos anos 1980 no Brasil) apontam características e entrevistas dos principais grupos de música rock que surgiram nos anos 1980 no Brasil. 18

CARMO, 2003, p.148. 19

FRIEDLANDER, 2002, p. 370. 20

O The Police era uma banda formada por 3 jovens na Inglaterra em meados de 1977 mesclando reggae, ska em melodias pop e que tinha no vocal o cantor Sting que mesmo com o fim da banda

continuou ganhando fãs na sua carreira solo. ALEXANDRE, 2002.

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25

divulgação. Os grupos musicais adeptos do pós-punk contavam com os circuitos alternativos

de música para alavancar sua arte21

.

O grupo Legião Urbana talvez já estivesse nesse cosmopolitismo sonoro, já que

percebemos canções do grupo tendenciando para new wave e outras mais vanguardistas

sonoramente chegando ao pós-punk. Ao termos contato com a biografia do compositor e líder

do Legião Urbana22

, percebemos que a maior parte dos integrantes eram filhos de classe

média23

e não eram tão proletários como pregava-se o movimento punk. O próprio Renato

Russo afirma que esses jovens que se reuniam para falar de música, beber e fumar eram punks

de fim de semana24

. Ao pensarmos no jovem punk brasileiro e em todas as características que

lhe eram atribuídas, realmente ser punk para esses jovens de classe média de Brasília era um

paradoxo.

Do ponto de vista da sonoridade percebemos muito da influência do punk rock no grupo

pesquisado. Como exemplo justificativo dessa aproximação do grupo Legião Urbana com a

proposta do punk-rock, basta lembrarmos da música Que país é esse, onde esta canção

harmonicamente composta por “3 acordes”, bem no estilo punk-rock de ser e de se fazer,

mostrando-se uma canção com guitarras carregadas de som distorcido e agressividade na

letra, incorporando bem o estilo do do-it-yourself (faça você mesmo).

Mas na nossa pesquisa não queremos sustentar como verdade absoluta que todas as

canções do Legião Urbana constantes nos quatro primeiros álbuns mantinham aproximação

apenas com a proposta do punk-rock. Aqui também percebemos que o próprio compositor já

assumia sua ligação com o pós-punk, new wave e até mesmo com artistas emblemáticos dos

anos 1960: “[...]Eu queria cantar que nem Iggy Pop,David Bowie,Jim Morrison,diferenciava.

E eu estava tentando escrever como Bob Dylan e John Lydon.Referências,referências[...]”25

Ao observar os referenciais musicais de Renato Russo, fica menos complexo entender

como esse modo de ser jovem cosmopolita vai se constituindo, quando se fala de uma cultura

musical nos anos 1980, pois percebe-se que esse jovem consumia tanto compositores

clássicos dos anos 1960 como Bob Dylan, que alavancou toda uma geração com seu rock

folk, e “David Bowie”, que é considerado no cenário do rock mundial como o “camaleão do

21

ALAXANDRE, 2002. 22

DAPIEVE, Arthur. Renato Russo: o trovador solitário. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. 23

Com exceção de Renato Rocha, que era filho de sargento militar, os demais integrantes pertenciam à

família de classe média, como é o caso de Dado Villa-Lobos que era filho de diplomata e Renato

Russo, filho de economista do Banco do Brasil, tendo os dois morado fora do Brasil e uma grande

bagagem cultural para os jovens que frequentavam a chamada “turma da Colina”. 24

ALEXANDRE, 2002. 25

DAPIEVE, 2006.

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26

rock” por possuir uma grande capacidade de se adaptar em diferentes estilos de música rock e

em diferentes contextos temporais.

Um instrumento de repressão que foi amplamente usado durante o período ditatorial

continuava sendo nos anos 80 o principal inimigo da juventude ligada aos movimentos

culturais: a policia. Aqui cabe duas canções do grupo por nós analisado: Baader-Meinhof

Blues (1985) e Faroeste Caboclo (1978-1987).

A violência é tão fascinante

E nossas vidas são tão normais E você passa dia e noite e sempre vê

Apartamentos acesos. Tudo parece ser tão real

Mas já vimos esse filme também.26

[...] Já no primeiro roubo ele dançou

E pro inferno ele foi pela primeira vez, Violência e estupro do seu corpo

Vocês vão ver, eu vou pegar vocês [...]

[...] Agora santo cristo era bandido

Destemido e temido no Distrito Federal Não tinha nenhum medo de polícia

Capitão ou traficante, playboy ou general[...]27

Percebemos, nas letras, como esse jovem se expressava sobre a institucionalização da

violência através do órgão repressor policial. Essas canções expressam um sentimento de

descontentamento com esse órgão policial que ao invés de proteger o cidadão acaba é por

generalizar a violência, ao ponto de ser considerada normal a violência institucionalizada

pelo estado. Essas canções são compostas numa fase em que a banda Legião Urbana

acreditava no ideal punk e nada mais correto para um jovem que se diz punk do que botar em

prática o lema do movimento “faça você mesmo” e enfrentar, mesmo que muitas vezes

apanhando, o inimigo de frente. Quando revisitamos as histórias de vida desses jovens vimos

que confrontos de jovens punks contra a polícia eram algo comum. Vimos em parágrafos

anteriores que punk no Brasil acaba se tornando sinônimo de movimento de gangue e muitas

vezes a violência era estimulada não apenas contra a policia, mas também contra gangues

punks rivais. Nesse contexto, outra canção emblemática contribui com versos expressivos:

26

VILLA-LOBOS, Daddo; RUSSO, Renato; BONFÁ, Marcelo. Baader-Meinhof Blues. Intérprete:

Legião Urbana. Legião Urbana. São Paulo: EMI, 1986. 27

RUSSO, Renato. Faroeste Caboclo. Intérprete: Legião Urbana. Que país é esse (1978-1987). São

Paulo: EMI, 1987.

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27

Tenho medo e eu sei porquê:

Estamos esperando

Quem é o inimigo? Quem é você?

Nos defendemos tanto tanto sem saber

Porque lutar[...]28

Apesar de o cantor-compositor afirmar que essa era sua primeira música com uma

sensibilidade mais gay29

, concordamos com Adalberto Paranhos ao tentar perceber as distintas

faces do mesmo e não tomar a opinião do emissor da mensagem como verdade absoluta, pois

essa mensagem original pode ser resignificada pelo ouvinte.30

No âmbito da economia, o Brasil nos anos 80, sobretudo após a medida adotada pelo

presidente José Sarney de implantar um novo plano econômico, o Plano Cruzado, começa a

apresentar o que era uma falsa prosperidade econômica, pois:

[...]congelava os preços e o câmbio e recalculava os salários à média do

último trimestre, acrescida de um bônus de 8%. O decreto extinguia a

correção monetaria e criava o seguro-desemprego e o gatilho salarial,que reajustaria automaticamente os salários toda vez que a inflação chegasse a

20%[...]31

Esse novo plano econômico era uma tentativa de reparar os danos que a economia

brasileira sofreu quando houve a transição do regime militar para um regime civil, havendo,

nesse contexto, uma recessão econômica resultado da falência daquilo que entrou para a

historiografia brasileira dos anos 1970 com o nome de “milagre econômico”32

.Vale ressaltar

que essa prosperidade, mesmo falsa, foi algo bom para os grupos de rock que estouraram no

Brasil anos 80: “Com a inflação domada na marra,veio o aumento do poder de compra e uma

injeção de novos consumidores no mercado. Até julho,a indústria de discos no Brasil já

crescera 30% em relação ao mesmo período de 1985.”33

28

BONFÁ, Marcelo; RUSSO, Renato. Soldados. Intérprete: Legião Urbana.Legião Urbana. São

Paulo: EMI, 1985. 29

DAPIEVE, 2006. 30

PARANHOS, Adalberto. A música popular e a dança dos sentidos: distintas faces do mesmo.

Artcultura: Revista de História, Cultura e Arte, Uberlândia, n. 9, 2004. 31

ALEXANDRE, Ricardo. O plano cruzado. In: ALEXANDRE, 2002, p.239. 32

ALVES, Luciano Carneiro. As quatro estações da Legião Urbana. In: ALVES, 2002. 33

ALVES, 2002.

Page 9: 1o CAPITULO

28

E ainda: “o plano cruzado e sua aparente estabilidade monetária foram um anabolizante

e tanto para a indústria brasileira. A reboque, a música pop nacional viveu seus tempos de

maior prosperidade”34

.

O grande exemplo de que o Plano Cruzado alavancou o mercado fonográfico brasileiro

aconteceu com o grupo musical RPM, que bateu recordes de venda no seu albúm Rádio

Pirata, lançado em 1986, alcançando a incrível marca de 2,2 milhões de cópias vendidas35

, o

que revelava a sede de consumo desse jovem dos anos 1980. Vale ressaltar que esse novo

mercado fonográfico era bem imprevisível, a ponto de o próprio grupo musical RPM acabar

alguns anos depois e entrar para a historiografia do pop-rock nacional como grande exemplo

de “ir do céu ao inferno” em um curto espaço de tempo na cena rock do país.

A respeito da produção fonográfica nos anos 1980 e toda as caracteristicas que a

indústria da referida época marcou na música, Eduardo Vicente afirma:

[...]Ao final da década de 1970, porém, prenunciava-se a crise que iria

interromper a trajetória ascendente da indústria já a partir de

1980,determinando mudanças significativas no cenário.Elas implicariam numa maior racionalização das atividades das empresas que reduziram seus

elencos e passaram a atuar mais decisivamente na exploração de novos

mercados e no desenvolvimento de produtos destinados a nichos

específicos.Em relação à redução dos elencos,entendo que ela atingiu fortmente a presença da indústria em segmentos de consumo mais restrito,

como a música instrumental e a MPB de caráter mais experimental,por

exemplo,o que acabou favorecendo o surgimento de uma significativa cena independente representada por nomes como Antonio Adolfo,Boca Livre e os

artistas da Lira Paulistana, entre outros.Quanto à exploração de novos

mercados, a década de 80 foi fortemente marcada pela busca de novas faixas etárias de consumidores, refletida especialmente na explosão da música

infantil e do rock. Em relação ao rock, isso implicou, em alguma medida,na

prospecção de novos artistas e na sua preparação para o mercado

fonográfico. Já em relação à musica infantil,a cena foi inteiramente construida pela indústria e totalmente apoiada,como veremos mais adiante,

nos programas televisivos desenvolvidos para esse público.[...]36

Em relação ao último ponto tratado por Eduardo Vicente, quando ele se refere à

construção do cenário música infantil nos anos 1980 e a relação desta cena com os programas

televisivos, Paulo Sérgio do Carmo nos diz:

34

ALVES, 2002. 35

DAPIEVE, Arthur.BRock. O rock brasileiro dos anos 80. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. 36

VICENTE, Eduardo. Segmentação e consumo: a produção fonográfica brasileira: 1965-1999.

Artcultura: Revista de História, Cultura e Arte, Uberlândia, v. 10, n. 16, 2008, p. 102.

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29

Na televisão, Xuxa explode com a erotização da programação infantil. Está

em toda parte: cinema, publicidade, discos, shows. Nessa época de abertura

política, o grupo musical Os Menudos incitavam as adolescentes a cantar, dançar e gritar, sem parar, com a palavra de ordem: „Não se reprima,não se

reprima!‟.37

Em relação a essa explosão de grupos musicais que incitavam a erotização do corpo

adolescente, o grupo Os Menudos saía na frente, já que a maioria dos integrantes levava as

fãs ao delírio ao exibir sua dança e seu corpo; o próprio Renato Russo chega a gravar uma

música do grupo, a famosa Hoje a noite não tem luar; versão do grupo Legião Urbana gravada

no albúm MTV acústico do referido grupo.

Ainda no âmbito da indústria fonográfica brasileira dos anos 1980 a autora Rita de

Cássia Morelli trata das questões de constituição e desconstituição da MPB e da implantação

do mercado moderno de música brasileira, sustentando o argumento que mesmo após essa

modernização a MPB continuou com conteúdo de origem nacional-popular e não

internacional-popular, conceito defendido por Renato Ortiz, e vai além:

Inspirando-me em Eduardo Vicente,poderia dizer que o que determinava a

maior ou a menor penetração popular dessas diferentes expressões do rock

era na verdade o pertencimento ao campo restrito da música popular brasileira que o sotaque inerente à primeira delas revelava. Mas isto me leva

a explorar a hipótese de que o próprio BRock dos anos 1980,a despeito da

ausência do sotaque ,não representou uma retomada pura e simples desse

rock mais urbano e de maior sucesso dos anos de 1970, e não se constituiu, desse modo, em expressões direta do internacional-popular no campo da

música-popular brasileira,na medida em que também retomou,a seu modo,a

tradição poética e política da MPB, engajando-se também ele no processo de construção da nação. Entretanto, segundo essa minha hipótese, o BRock

teria retomado a tradição MPB justamente para massificá-la, para ampliar o

circuito de sua circulação e de seu consumo, ao mesmo tempo, em que a mobilização política também se tornava massiva, com o acirramento das

campanhas pela redemocratização do país.

Nesse sentido, o BRock teria oferecido à indústria fonográfica o produto

capaz de modernizar o mercado de música popular no país,tornando-o jovem, não porque não tivesse sotaque,mas porque,compartilhando, na maior

parte das vezes, o prestigio da MPB, tornava massivo o apelo ao

engajamento no processo político, ao mesmo tempo em que o fazia na linguagem musical das massas jovens internacionais. De fato, como

observou Vicente,enquanto LPs e compactos dominavam o mercado de

música popular,havia uma hierarquia entre esses suportes que não deixava de estar associada à maior ou menor consagração no campo musical, já que

o Lp vendia os próprios artistas,enquanto os compactos vendiam apenas

música.E se nos lembrarmos de que nos anos de 1970 a música estrangeira

era a mais consumida em compactos simples ou duplos pela massa dos

37

CARMO, 2003, p.141.

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30

jovens urbanos, teremos que reconhecer que a transformação e a

modernização do mercado brasileiro de música tinham mesmo que passar

pela consagração como artistas de uma geração de músicos brasileiros que se dispuseram a fazer no Brasil a música internacionalizada que antes era

consumida em compactos, e que a consagração desses músicos como artistas

só podia passar naquele momento pela retomada poética e política da MPB.38

Nesse Brasil do Plano Cruzado vale a pena comentar que não apenas discos vendiam

muito, mas:

[...] Faltava carne e leite em todas as grandes cidades do Brasil.Tornou-se

comum a cobrança de ágio para garantir ao consumidor uma porção deste ou daquela artigo. Algo precisava ser feito,mas o PMDB não queria mexer no

Plano Cruzado antes das eleições. Em 21 de novembro poucas horas após o

partido do governo ter elegido 22 governadores em 23 estados, José Sarney

anunciou o descongelamento dos preços. Sentindo-se traída, a nação se mobilizou com furia.Logo em dezembro, fizeram dezenas de feridos num

choque entre a PM e manifestantes na capital federal.39

Percebemos no nosso estudo que a canção Metrópole ajuda a entender esse caos e o

sentimento de estranheza em relação às grandes cidades e tudo o que vinha junto com a

modernidade: burocracia, espetacularização da violência na TV e padronização do tempo.

É sangue mesmo,não é mertiolate

E todos querem ver

E comentar a novidade.

É tão emocionante um acidente de verdade Estão todos satisfeitos com o sucesso do desastre:

Vai passar na televisão Por gentileza,aguarde um momento

Sem carteirinha não tem atendimento

Carteira de trabalho assinada,sim senhor. Olha o tumulto:façam fila por favor.

Todos com a documentação.

Quem não tem senha não tem lugar marcado. Eu sinto muito mas,já passa do horário.

Entendo seu problema mas não posso resolver:

È contra o regulamento,está bem aqui,pode ver. Ordens são ordens.

38

MORELLI, Rita de Cássia Lahoz. O campo da MPB e o mercado moderno de música no Brasil: do

nacional-popular à segmentação contemporânea. Artcultura: Revista de História, Cultura e Arte, Uberlândia, v. 10, n. 16, 2008, p. 93. 39

ALEXANDRE, 2002, p. 282.

Page 12: 1o CAPITULO

31

Em todo caso já temos sua ficha.

Só falta o recibo comprovando residência.

Pra limpar todo esse sangue,chamei a faxineira- E agora eu vou indo senão perco a novela

E eu não quero ficar na mão.40

Percebe-se na referida canção o claro mal-estar que a modernidade causava nesse

jovem, quando se referia a ligação deste com a cidade. O ser jovem desse período não se

reconhecia com um lugar que não lhe pertencia. Mas para evidenciarmos isso de fato, vamos

mostrar o lugar de fala41

desse sujeito histórico ou seja, vamos falar de Brasília, cidade onde

as histórias de vida dos integrantes da banda Legião Urbana, se cruzaram:

[...] Enquanto uma cidade criada para ser fundamentalmente administrativa,

Brasília tem na sociabilidade um problema crônico.Em estudo publicado no final dos anos 60, José Pastore já ressaltava que uma das queixas mais

frequentes em Brasilia refere-se à falta de oportunidade para lazer. Sendo

uma cidade nova, Brasilia parece ter negligenciado até o momento, o desenvolvimento das condições de lazer. E a existência de opções de lazer é

fator fundamental para criação de laços de sociabilidade numa cidade cuja

população tem tantos imigrantes como Brasília[...]. 42

E continua:

[...]Esta carência de opções de lazer também foi sentida pelos filhos da

classe média na segunda metade dos anos 70, Renato Russo entre eles,

que não tinha afeição a opções como sessões cinematográficas

promovidas pelas embaixadas ou outros eventos cultos [...].43

É perceptível não apenas na canção Metrópole44

mas em várias outras45

, o mal-estar e o

estranhamento desse jovem com a cidade. A respeito disso, Renato Russo afirma:

40

RUSSO, Renato. Metrópole. Intérprete: Legião Urbana. Dois. São Paulo: EMI, 1986. 41

CERTEAU, Michel de. Fazer historia e a operação historiográfica. In: CERTEAU, Michel. A escrita

da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p.31-119. 42

O autor Luciano Carneiro Alves utiliza o livro Brasília: a cidade e o homem do autor José Pastore

para mostrar a pequena possibilidade de sociabilidade na cidade. ALVES, 2002, f.108. 43

ALVES, 2002. 44

RUSSO, Renato Metrópole. Intérprete: Legião Urbana. Dois. São Paulo: EMI, 1986. 45

Canções como Tédio com um “T” bem grande pra você, química, a dança, todas canções

emblemáticas na relação de amor e ódio desses jovens com a cidade de Brasília e com a falta de lazer.

Page 13: 1o CAPITULO

32

[...] A gente fazia rock por necessidade lá. Além de ser uma

necessidade de você ir contra o tédio da cidade é uma necessidade

física mesmo, de você expressar. Ao passo que, se eu estivesse aqui

no Rio, ia à praia,ia comer um sanduiche natural,e não teria tanta

necessidade assim [...]. 46

Além das características já enfatizadas sobre a referida canção ainda cabe destacar que o

trecho “olha o tumulto façam fila por favor”47

caberia na nossa análise para mostrar o poder

que a multidão, esse fenômeno tipico da modernidade, possui48

.

Quando se busca a visão dos estudiosos dos movimentos juvenis no Brasil dos anos

1980 percebe-se que eles constroem uma certa analogia entre o percurso desses jovens e a

questão da desilusão de estarem perdidos em busca de se encontrar. Ao tentar refutar essa

ideia o autor Luciano Carneiro afirma que:

[...]O cotidiano identificado a partir das letras, fruto de uma análise

baseada na constatação descrição, sem maiores relações entre as

canções e o contexto, salvo no tocante à angústia causada pela vida na

cidade. Nesse sentido, a análise passa a ser estritamente temática,

confluindo apenas para a fundamentação de uma dada leitura sobre o

cotidiano dos jovens, marcado pelo descompromisso com o mundo e

pela deambulação, o vagar pela cidade. Tal cotidiano é urbano,

angustiante, violento, contraditorio, tecnológico e vazio, alimentando

um desejo de viajar (escapar dele). Enfim, é um cotidiano que não é

vivido, com sentido positivo. E, para Almerinda Guerreiro, as canções

não materializam alternativas a ela. [...]49

Luciano Carneiro, na sua pesquisa sobre o Legião Urbana desvincula o compositor

Renato Russo do rótulo de “poeta da desilusão” e vai ainda mais longe com as críticas ao

trabalho sobre as tribos urbanas dos anos 1980 no Brasil, de Almerinda Guerreiro, afirmando

que:

[...] Por issso, entendemos que as representações nas quais Almerinda

Guerreiro sustenta sua leitura de desesperança e despreocupação em relação

ao cotidiano urbano precisam ser melhor contextualizadas, nelas também é

46

ASSAD, Simone (Coord). Renato Russo de A a Z: as ideias do líder da Legião Urbana. Campo Grande(MS): Letra livre, 2000. p.41. 47

RUSSO, Metrópole, 1986. 48

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. 3.ed. São Paulo:

Brasiliense, 1994. 49

Luciano Carneiro critica as análises superficiais de Almerinda de Sales Guerreiro sobre as canções e

tribos jovens no Brasil anos 1980. ALVES, 2002, p. 87.

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33

possível perceber que quem as produziu enquanto artistas e com eles

compactuou. Uma tarefa ainda a se realizar é delinear melhor as fronteiras

entre os grupos juvenis e os percursos dos jovens ao transitarem por eles, estando isso implicado numa análise mais particular das concepções de

mundo tanto de artistas quanto de seus respectivos públicos. Isso pode levar

à conclusão que de fato as fronteiras não existem (hipótese de dificil

comprovação no nossso entender), mas se não for feito, continuaremos a conjecturar sobre os jovens do período[...]

50

Sobre o final dos anos 80, Ricardo Alexandre afirma que “em dezembro, quando a

inflação acumulada no ano chegou a 65,9%, a Legião Urbana registrou em disco uma velha

canção dos tempos de aborto elétrico: Que país é este?”51

Essa canção não teria melhor momento para ser lançada, pois externalizava para o

âmbito público toda a sujeira do âmbito privado no país. Mesmo após Renato Russo já cantar

essa canção, antes mesmo dos 80, e relutar em gravá-la por acreditar que um dia a situação no

país iria melhorar e essa canção fosse ficar anacrônica.52

Nas favelas no senado

Sujeira pra todo lado

Ninguem respeita a constituição Mas todos acreditam no futuro da nação

Que país é esse? Que país é esse?

Que país é esse?

No Amazonas,no Araguaia iá,iá,

Na baixada Fluminense

Mato Grosso,nas Gerais e no

Nordeste tudo em paz Na morte eu descanso,mas o sangue anda solto

Manchando os papéis e documentos fiéis

Ao descanso do patrão

Que país é esse?

Que país é esse? Que país é esse?

Que país é esse?

Terceiro mundo ,se for Piada no exterior

Mas o Brasil vai ficar rico

Vamos faturar um milhão Quando vendermos todas as almas

50

ALVES, 2002, p. 87. 51

ALEXANDRE, 2002, p.282. 52

DAPIEVE, 2006.

Page 15: 1o CAPITULO

34

Dos nossos índios no leilão

Que país é esse? Que país é esse?

Que país é esse?”53

No âmbito de uma cultura juvenil, em 1981 surge nos Estados Unidos da América a

MTV o que ajudou amplamente a divulgar a nova música new wave que tinha como ponto

forte o casamento da música com o vídeo.

Nos primeiros anos da MTV, os artistas mais ecléticos eram os que mais

produziam vídeos. Asssim, a MTV, apresentava a seus telespectadores uma série de músicas da new wave. No entanto,as rádios encaravam a MtV como

uma ameaça e fizeram de tudo para denegrir o novo formato[...]54

A partir do momento em que surge uma outra via de comunicação do artista com o

jovem, no caso a MTV, os programas de rádio que até então eram predominantes na difusão

da música jovem passam a sentir a concorrência da televisão que disputava, agora, a atenção

desse jovem. A resistência das rádios era grande, mas eles não possuiam o trunfo das imagens

que tanto conquistavam o jovem, já que isso era algo novo e tudo que é novo causa

estranhamento e curiosidade.

Os rádios começam a alertar o público para falsa verdade que a MTV poderia estar

passando para seu público. O argumento era o de que nem todo artista que tinha clipe no

programa era realmente o mais querido pelo público, pois esse artista poderia ter usado

recursos financeiros da gravadora para comprar um espaço no programa, o que é comumente

conhecido como “jabá”, apesar dessa prática ser geralmente negada por empresários,

produtores, artistas ou gravadoras em geral. Apesar de os programas de rádio que começaram

a divulgar a música rock no final dos anos 1950 terem passado pelos mesmos escândalos, na

tentativa desesperada de recuperar território faziam acusações similares à que havia recebido

no passado.

Ao mesmo tempo que a MTV ajudava a fomentar nos jovens que estavam sedentos por

informações o interesse por bandas e artistas preferidos, começa-se a questionar o impacto

dessa TV na vida do agente político jovem pois: “[...] Muitos críticos tinham a impressão de

53

RUSSO, Renato. Que país é esse? Intérprete: Legião Urbana. Que país é esse (1978-1987). São Paulo: EMI, 1987. 54

FRIEDLANDER, 2002, p. 370.

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35

que os videoclipes reforçavam tendências negativas que ainda ocorriam na sociedade. Os

adolescentes sentavam-se passivamente em frente a uma caixa esperando por uma resposta”55

.

Sobre essa questão, Paulo Sérgio do Carmo nos diz:

No videoclipe os atrativos são o movimento,o ritmo frenético e a rapidez das

imagens:nenhum plano dura mais que cinco minutos.Muitas vezes não há

enredo,tudo se move pela estimulação de efeitos visuais.Isso explica uma sensibilidade nova do jovem contemporâneo,cada vez mais incapaz de viver

sem estímulos sonoros e visuais.Como consequência,sua visão da realidade é

fragmentada e se valorizam o transitório e o fugidio. Um jovem acostumado ao ritmo frenético das imagens estranha a lentidão dos filmes das décadas

passadas,como foi observado pelos educadores.56

Ao analisarmos o contexto em que a MTV foi criada e a forma de atuação desta para

com seu público alvo observaremos a talvez gênese da ideia de que o jovem dos anos 1980

era alienado e passivo diante do mundo ao seu redor. Devemos compreender que os críticos

que atribuem a esse jovem dos anos 1980 o status de alienado se esquece de que nem todos os

jovens tinham acesso ao referido canal de televisão, já que a MTV surge em 1º de agosto de

198157

como um canal de televisão a cabo. Cabe ressaltar que nem toda familia tinha

condição financeira para pagar assinatura de televisão a cabo, consequentemente o jovem

menos favorecido economicamente ficava quase à margem desse novo produto da mídia que

ganhava a confiança desse seu público alvo, no caso, a juventude. Em nossa perspectiva a

MTV alienava o jovem que recebia passivamente o conteúdo passado pela televisão, mas que

não podemos generalizar isso a ponto de aceitarmos que o jovem dos anos 1980 de maneira

geral, era alienado. Ressaltamos aqui que esse era outro “modo de ser jovem” dos 1980, o

jovem que se deixou levar pelas maravilhas midiáticas.

Esse uso da TV é constatado por nós nos seguintes versos da canção Metrópole, de

1986:

[...] Estão todos satisfeitos

Com o sucesso do desastre:

Vai passar na televisão[...]

[...]E agora eu vou indo se

Não perco a novela

55

FRIEDLANDER, 2002, p.371. 56

CARMO, 2003, p.156. 57

FRIEDLANDER, 2002.

Page 17: 1o CAPITULO

36

E eu não quero ficar na mão.58

Em alguns trechos da canção Faroeste Caboclo também se evidencia essa ideia:

[...]E o Santo Cristo não sabia o que fazer

Quando viu o reporter da televisão

Que deu noticia do duelo na TV Dizendo a hora o local e a razão[...]

[...]E olhou pro sorveteiro e pras câmeras e

A gente da TV que filmava tudo ali[...]59

Na década de 1980, os megaeventos viram febre no mundo musical. Os debates em

torno das questões sociais também estavam na mira dos grandes artistas.

Na verdade, artistas e promotores de shows escolheram ligar estas causas a

grandes eventos de forma a divulgar questões políticas, levantar fundos, envolver mais artistas e ajudar a promover os negócios do rock. Estes

„megaeventos‟- as turnês Live Aid,Farm Aid e pelos direitos humanos da

anistia internacional foram as maiores-esperavam redirecionar temas como sexo, drogas e rock and roll, para uma discusssão de responsabilidade

social[...]60

Os megaeventos logo suscitaram questionamentos sobre seu impacto perante o público

alvo, ou seja, a juventude fanática por seus ídolos pop, pois os temas típicos do cotidiano dos

jovens ligados aos movimentos culturais dos anos 1970 eram o “sexo, drogas e rock and roll”

estava agora dividindo espaço de debates com a nova iniciativa. Os agentes históricos

estavam transformando da sua condição de porta-voz da juventude e os questionamentos eram

se esse artista estava realmente sendo um mediador simbólico das questões sociais e politicos

ou se simplesmente estava utilizando esse jovem como massa de manobra.

[...] Os pesquisadores discordam sobre o impacto cumulativo destes e outros

eventos.Alguns consideram que eles serviam para cooptar as intenções

oposicionistas do público,transformando-as em lucros para as empresas,enquanto forneciam uma segura válvula de escape para fãs que

desejassem expressar sua insatisfação.Outros,como Dave Marsh,acreditavam

58

RUSSO, Metrópole, 1986. 59

RUSSO, Renato. Faroeste Caboclo. Intérprete: Legião Urbana. Que país é esse (1978-1987). São Paulo: EMI, 1987. 60

FRIEDLANDER, 2002, p.373.

Page 18: 1o CAPITULO

37

que eles promoviam „um novo despertar de um segmento do público do rock

para seu próprio potencial social e um salto qualitativo na consciência do

público a respeito dos terríveis problemas da pobreza,fome,dos sem-teto e do racismo‟[...].

61

E ainda, para o mesmo autor:

[...] Outras organizações também perceberam um aumento no interesse e

ativismo.Assim,o envolvimento de artistas foi o fator diferencial:ele expôs seus fãs a importntes debates,estimulando-os a pensar e agir. Ao mesmo

tempo,entretanto,também era óbvio que a indústria da música,embora

sempre cuidadosa em passar uma imagem de liberal,tomava decisões no mercado,um status quo favorável às poderosas corporações

multinacionais,mantendo um controle crescente sobre as vendas da cultura

popular.As controvérsias políticas eram perigosas para este tipo de controle e não vendiam discos tão bem quanto outros temas como sexo e

rebeldia (segura) [...].62

Percebe-se então que muitos desses megaeventos organizados no mundo que uniam

músicas e causas sociais, tinham todo um carácter ideólogico e muitas vezes eram motivados

pela ânsia da indústria cultural que consome tudo que pode gerar lucro. Nesse caso, as

grandes empresas patrocinadores desses megaeventos viam na massa jovem o seu poder de

consumo e investiam pesado em propaganda e em comerciais que induzissem esse jovem

fanático por seu ídolo a comparecer aos grandes espetáculos, tudo sob o argumento de estar

lutando por causas sociais, o que às vezes rendia frutos63

, mas também escondia grandes

interesses corporativos. Nesse processo, a MTV ajuda a propagar esses megaeventos

musicais, mesmo que ao seu modo e quando os shows eram reprisados no referido canal,

havia toda uma edição de imagens que desviava parte do conteúdo do evento, a causa socio-

politica para mostrar apenas as apresentações artísticas.64

61

FRIEDLANDER, 2002, p.374. 62

FRIEDLANDER, 2002, p.376.

63

Em junho de 1988, houve uma grande mobilização entre os artistas para libertar Nelson Mandela da prisão. Cf: FRIEDLANDER, 2002. 64

FRIEDLANDER, 2002.

Page 19: 1o CAPITULO

38

Figura 1: Palco do Rock in Rio sendo desmontado, depois da ordem do governador Leonel

Brizola. Fonte: CIDADE-FANTASMA. Veja, São Paulo, 20 fev. 1985.

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39

Figura 2: Reportagem sobre a cidade do Rock que agora era uma cidade fantasma.

Fonte: CIDADE-FANTASMA. Veja, São Paulo, 20 fev. 1985.

É importante ressaltar que essa onda de megaeventos também influenciou o movimento

rock no Brasil, pois de 11 a 20 de janeiro de 1985 ocorreu no país o primeiro Rock in Rio,

trazendo atrações internacionais de grande porte e fazendo com que as bandas brasileiras

aumentassem o grau de profissionalismo, mas associando a ideia já enfatizada por nós de que

esses megaeventos também tinham um duplo sentido ideológico. Para Ricardo Alexandre:

[...] De forma oportuna ou oportunista, o rock se instalou como o herói de

mais um verão. Dessa vez, com a habilidade para vender revistas, camisas,

chaveiros ou toalhas de mesa. O próprio Rock in Rio, por trás do slogan (dez dias de música e paz), disfarçava um bem engendrado evento de marketing.

Ainda que o festival tenha de fato aberto as portas do show biz mundial,

ninguém parecia acreditar no empresário Roberto Medina quando este dizia

Page 21: 1o CAPITULO

40

que seu maior intuito era ver „um brasileiro,uma inglesa e um argentino

dançando e cantando lado a lado[...]‟65

O certo é que o festival Rock in Rio (sendo ou não um produto de marketing para

conquistar a massa) acaba dando força a esta juventude que no Brasil também estava sedenta

por informações de seus artistas preferidos, fossem eles nacionais ou internacionais, no caso

dos últimos com a oportunidade de estar frente à frente, ao vivo e a cores com grandes ícones

da música rock mundial. Além disso, o festival coloca na mídia brasileira esse novo mercado

de consumo, mostrando aos grandes empresários a sua rentabilidade.

No final dos conturbados anos 80 os impactos ambientais no Brasil eram enormes, “a

Amazônia arde em chamas com as queimadas na mata e o líder seringueiro Chico Mendes,

um dos defensores da floresta, é assassinado”66

. Nesse contexto seriam mais que apropriados

os seguintes versos da canção Fábrica:

O céu já foi azul,mas agora é cinza

O que era verde aqui,já não existe mais.

Quem me dera acreditar Que não acontece nada

De tanto brincar com fogo,

Que venha o fogo então, Esse ar deixou minha vista cansada,

Nada demais67

Nos anos 1980 estourava “o samba” como objeto de estudo entre os historiadores da

música. Sobre isso, Marcos Napolitano nos fala:

Se as reflexóes sobre o tropicalismo e a „moderna‟ MPB dominaram o

debate,desde meados dos anos 1970,na década seguinte assistiu-se à

consolidação de uma literatura de peso sobre um outro tema crucial na formação da música popular no Brasil:o samba urbano carioca.Nota-se,de

1974 em diante,a crescente edição de livros sobre essa temática,quase

sempre abordando o fenômeno da escolas de samba como universo social

estruturado e complexo.68

65

ALEXANDRE, 2002, p.193. 66

CARMO, 2003, p.158. 67

RUSSO, Renato. Fábrica. Intérprete: Legião Urbana. Dois. São Paulo: EMI, 1986. 68

NAPOLITANO, Marcos. A historiografia da música popular brasileira (1970-1990): síntese bibliográfica e desafios atuais da pesquisa histórica. Artcultura: Revista de História, Cultura e Arte,

Uberlândia, v. 8, n. 13, 2006, p.145.

Page 22: 1o CAPITULO

41

Algo bastante recorrente nas produções acadêmicas dos anos 1980 eram as biografias

dos grandes expoentes do samba, ainda conforme Marcos Napolitano:

No geral,tais biografias oferecem,na melhor das hipóteses,perfis

sociológicos, dados biográficos e psicológicos, panoramas de épocas,além de mapear a obra dos biografados. Neste sentido,servem como ponte para

outros ensaios temáticos mais verticalizados.Foram e são valiosas como

elementos de referência, cobrindo lacunas informativas que permitem aprofundar temas conexos.

69

E ainda:

Também no início dos anos 1980 esboçou-se um certo boom de pesquisas na área de letras sobre música popular brasileira. Além de MPB stricto sensu,o

samba passou a ser objeto de análise poético-musical. Desfeitos junto à

PUC-Rio. São desse momento ainda as obras igualmente pioneiras de Adélia

Meneses, uma análise literária sobre Chico Buarque,e de Antonio Pedro, sobre o samba durante o Estado Novo. Em todos esses trabalhos a ênfase no

exame das letras, isoladas de outros parâmetros estéticos e culturais da

canção, constitui um primeiro olhar metodológico mais sistemático sobre o sentido histórico e cultural das canções. Com o tempo, tal abordagem passou

a ser criticada pelo campo de estudos da música popular, sem prejuízo do

impacto que essas obras tiveram em sua época, junto a programas universitários até então refratários ao tema. De qualquer forma, certas

perspectivas desses trabalhos determinaram alguns eixos de discussão. Por

exemplo, a tipologia de canções que conformam a obra de Chico Buarque,

proposta por Adélia, ainda não foi superada significativamente por nenhum outro trabalho sobre o compositor (lirismo nostálgico, canções de

repressão,variante utópica,vertente crítica), bem como a importância da

música popular para o projeto ideológico do estado novo,tantas vezes retomada na pesquisa acadêmica. Nos anos 80, surgiria um outro viés de

análise, que passou a examinar as tensas relações entre „erudito‟ e „popular‟

na música brasileira, merecendo menção a obra de fôlego de Arnaldo Contier sobre a modernidade musical em Villa-Lobos, concluída em 1988,

mas nunca publicada na íntegra.70

69

NAPOLITANO, 2006, p-147. 70

NAPOLITANO, 2006, p-147.