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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS 1ª Oficina de Filosofia das Ciências Humanas e Sociais CENTRO DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa 27 de Maio de 2008 Organização Marta Filipe Alexandre INSTITUTO DE LINGUÍSTICA TEÓRICA E COMPUTACIONAL Nuno Miguel Proença CENTRO DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA 1

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

1ª Oficina de Filosofia das

Ciências Humanas e Sociais

CENTRO DE FILOSOFIA

DAS CIÊNCIAS DA

UNIVERSIDADE DE LISBOA

Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa27 de Maio de 2008

Organização

Marta Filipe Alexandre INSTITUTO DE LINGUÍSTICA TEÓRICA E COMPUTACIONAL

Nuno Miguel Proença CENTRO DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

1

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Índice

Reflexão epistemológica sobre a investigação em ciências da linguagem

em Portugal: aspectos da apresentação e da avaliação das unidades de

investigação..

Marta Filipe Alexandre……………………………………………….4

As Ciências Humanas – o caso da Psicologia.

Isabel Oliveira da Silva Coentro……………………………………..18

Agentes e ações na criação de uma disciplina: o caso dos Estudos da

Tradução no Brasil.

Roberto Carlos de Assis……………………………………………………..38

A glória de uns e o domínio de outros: sobre relações de poder na prática

da linguística.

Carlos A. M. Gouveia………………………………………………..59

Espaços de verdade. A partir de Michel Foucault.

Ricardo Julião………………………………………………………...75

Pensar para além da verdade. A ficção na história, na sociedade, na

filosofia.

Eduardo Pellejero…………………………………………………….85

Proust e os Signos: as Categorias, a Lei, a Loucura.

Catarina Pombo Nabais……………………………………………..100

Merleau-Ponty e a experiência da afectividade na criança.

Irene Pinto Pardelha………………………………………………...116

2

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Afinal o que significa o inconsciente? Michel Henry leitor de Freud.

Nuno Miguel Proença……………………………………………....125

3

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Reflexão epistemológica sobre a investigação em

ciências da linguagem em Portugal: aspectos da

apresentação e da avaliação das unidades de investigação.

Marta Filipe Alexandre1

[email protected]

Introdução2

Permita-se-me que comece por algumas das interessantes

questões que foram colocadas à minha comunicação e tente esclarecer

aspectos cruciais para a compreensão e discussão do meu trabalho. Na

verdade, este pequeno texto não se fica pelo resumo da apresentação que

fiz na Oficina: o meu projecto inicial fermentou com as ideias dos outros,

com o seu entusiasmo e inteligência, e seria tanto desonesto como

labiríntico tentar recuperar a forma inicial, dando passos para trás e

procurando essa miragem que sempre me parecem ser as “minhas” ideias.

Ouçamos uma das perguntas formuladas depois da minha

intervenção: Discurso, espaço semiótico, conhecimento partilhado... e

onde está a análise linguística propriamente dita? Esta pergunta mostra

que a investigação em análise crítica do discurso significa, para muitos,

estar a milhas da linguística. Isto prende-se sobretudo com o facto de ser

um trabalho fora do “mainstream” do estudo científico da linguagem, para

1 Investigadora do Grupo Discurso e Literacia do Instituto de Linguística Teórica e Computacional e Doutoranda em Linguística Aplicada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

2 Gostava de agradecer o amável convite do Nuno Proença para participar na organização da Oficina, bem como o apoio amigo da Professora Olga Pombo e do meu orientador, o Professor Carlos A. M. Gouveia. Uma nota ainda de apreço aos meus amigos e colegas investigadores Roberto Carlos, Sílvia Barbosa e Fausto Caels pela disponibilidade ao lerem e comentarem. atentamente este texto. Todos os erros e omissões são da minha inteira responsabilidade.

4

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

usar um conceito desenvolvido na comunicação de Vítor Neves,

apresentada nesta mesma Oficina. Não sendo agora o momento para refutar

essa distância, direi apenas que a análise crítica do discurso tem, para mim

e para as minhas principais referências de trabalho (cf. Fairclough 2003;

Martin & Rose 2002), como ferramenta fundamental de análise textual a

linguística sistémico-funcional de Michael A. K. Halliday (cf. Halliday

2004).

Por outras palavras, ao analisar o discurso criticamente recorro a

conceitos como, por exemplo, Escala de níveis, Complexo oracional,

Oração, Sistema de Transitividade, Processo Material, Actor ou Campo,

conceitos tão linguísticos quanto os tradicionais Frase, Nome, Verbo,

Oração subordinada, Oração interrogativa ou Voz passiva (tudo palavras

escritas com maiúscula por uma questão de convenção). Os dois grupos de

termos, escolhidos um pouco ao acaso, parecerão, porventura, contrastar

em linguisticidade. Na verdade, o conjunto de termos tradicionais parece

evocar conceitos naturalmente linguísticos e os termos do primeiro

conjunto não. A razão desta diferença é que os conceitos da linguística

sistémico-funcional, evocados no primeiro conjunto de termos, têm, para

além da dimensão estrutural tradicionalmente associada à descrição de

língua, uma dimensão funcional e uma dimensão sistémica. A dimensão

funcional reflecte uma abordagem que tem presentes a função da língua e

do seu uso, o contexto de situação e de cultura, e a dimensão sistémica,

inter-relacionada com a anterior, reflecte uma concepção da língua como

rede de sistemas de opções que produzem significados necessariamente

distintos.

Quero com isto mostrar que, sim, fazer análise crítica do discurso

envolve fazer análise linguística propriamente dita e, mais ainda, que existe

uma ferramenta teórica adequada para concretizá-lo. Numa Oficina em que

se propõe a oferta de várias reflexões sobre a filosofia de diferentes

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

ciências sociais e humanas, afigura-se pertinente falar aprofundadamente

sobre este enquadramento teórico e metodológico. Com efeito, a linguística

sistémico-funcional, ou melhor a análise crítica do discurso com

fundamento linguístico, é um tipo de trabalho pouco representativo no

nosso país, quer em termos de equipas e instituições de investigação, quer

em termos de produção científica propriamente dita. De facto, eu, enquanto

bolseira de doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia

(doravante FCT), entidade governamental de financiamento e apoio ao

trabalho científico, sou uma das afortunadas excepções no panorama de

investigação em ciências da linguagem, onde predominam os estudos de

fundamento formalista e mentalista e, como se terá visto com a

comunicação de Carlos A. M. Gouveia, apresentada nesta mesma Oficina,

é muito difícil obter financiamento para projectos de fundamento

funcionalista e social.

Em termos gerais, pode dizer-se que a análise crítica do discurso é

um projecto social constituído e reconhecido como ciência (cf. Resende &

Ramalho 2006; Luke 2002) que, na formulação de Fairclough (cf.

Fairclough 2003), se concretiza através de um trabalho assumidamente

dialógico, processual, reflexivo, transdisciplinar, socialmente

comprometido e emancipatório. São pressupostos teóricos essenciais desta

disciplina (i) a concepção da linguagem como uma prática social e (ii) a

existência de uma relação dialéctica entre o uso da linguagem e os

processos e estruturas sociais em que ela é usada. O objecto de estudo é o

discurso, entendido, numa acepção desenvolvida a partir do pensamento de

Foucault, como construção social pela qual se representa, se significa e se

constrói a realidade (cf. Fairclough 2003; Wodak 2001). E o objectivo final

desta análise é compreender a natureza dos conhecimentos socialmente

partilhados.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Assim, e para ser mais concreta, o analista crítico do discurso

interessa-se por instanciações discursivas, que podem ser textos escritos,

orais ou até multimodais, encarando-as como representações, significações

e construções sociais. Os sujeitos são concebidos não como entidades

sociais e linguísticas relativamente autónomas, mas enquanto entidades em

representação, significação e construção nos e pelos próprios processos

discursivos e respectivas práticas sociais, daí decorrendo o interesse em

esclarecer e desconstruir estes mesmos processos e práticas.

Para a componente linguística do seu trabalho o analista crítico do discurso

pode recorrer, como eu faço, à linguística sistémico-funcional. A relevância

desta teoria linguística reside no facto de combinar três perspectivas

analíticas complementares, a representacional, a interpessoal e a textual, e,

deste modo, permitir, manter a consciência do poder modelador semiótico e

social da linguagem. Dito isto, apresento-me aqui como uma linguista que,

seguindo a sugestão de Fairclough (2003), trabalha de forma

transdisciplinar, utilizando conceitos teóricos e metodologias de diferentes

disciplinas científicas: a teoria social, a linguística e, como veremos mais

adiante, a filosofia da ciência.

Os textos analisados

Aproveito agora uma outra pergunta formulada na Oficina para

falar sobre os textos escolhidos para a presente análise. Co-orientação de

dissertações, contactos já estabelecidos, preocupação predominante da

investigação... para quê analisar clichês há tantas décadas perpetuados

pelas instituições académicas? Em primeiro lugar, a análise de textos que

foram produzidos no âmbito institucional faz parte das pesquisas

preliminares à minha dissertação de doutoramento. Tenho como objectivo

estudar criticamente a representação no discurso da ciência, em particular,

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

como é que os cientistas se representam a si próprios e aos outros. Neste

âmbito, estou a procurar formar uma perspectiva sócio-cultural mais

compreensiva da prática da ciência em Portugal para melhor determinar o

escopo do que entendo por discurso da ciência e para delimitar as áreas

mais interessantes. Até agora parece-me evidente que textos como

regulamentos, formulários em linha, currículos ou sítios em linha de

centros de investigação são instanciações discursivas de práticas sociais

fundamentais para esta pesquisa. Por outro lado, qualquer texto, com

clichês ou sem eles, é fruto de escolhas (não só lexicais, mas também

estruturais) e, como tal, tem significado.

Na sequência de um lento périplo pelos imensos textos

disponíveis no sítio em linha da FCT, um dos elementos mais importantes

do actual sistema científico português, acabei por focar a minha atenção no

sistema de financiamento plurianual garantido pela FCT e nas unidades de

investigação e desenvolvimento sujeitas a esse mesmo financiamento.

Rapidamente decidi ficar pela área das ciências da linguagem, em que se

encontra enquadrada a minha instituição de acolhimento. Primeiro, detive-

me nos relatórios de avaliação elaborados pelo painel de avaliação em

2003, procurando outros documentos que estivessem de alguma forma

relacionados com essas oito unidades da área de ciências da linguagem.

Todas as unidades em questão, melhor conhecidas (e doravante aqui

referidas) como centros de investigação, têm o seu sítio em linha e

interessei-me também pelos textos apresentados nesses sítios.

A presente reflexão constitui, pois, apenas uma das jornadas do

dito périplo. Nesta reuni os textos de apresentação dos centros de

investigação de ciências da linguagem disponibilizados nos seus sítios em

linha e os oito relatórios do painel de avaliação da FCT elaborados sobre

essas mesmas oito unidades em 2003. Obviamente que são tipos de textos

bastante diferentes e isto, de resto, levou a que fossem considerados

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

separadamente noutros contextos de análise. Aqui, porém, são considerados

como um todo, como instâncias discursivas de instituições, ou melhor, de

práticas discursivas de natureza institucional.

A análise linguística crítica e a reflexão filosófica

Se, como vimos, a reunião dos textos teve uma motivação

essencialmente sócio-cultural e, para a sua análise discursiva crítica,

disponho de uma ferramenta de análise linguística de fundamento

igualmente social, acrescentei a todo este processo de pesquisa uma outra

perspectiva, a perspectiva da filosofia da ciência. Pareceu-me que, neste

cenário de inexistência de estudos críticos sobre o discurso da ciência em

Portugal, a minha pesquisa só poderia beneficiar com a construção de uma

perspectiva filosófica sobre a ciência. Assim, a par da perspectiva

sociológica sobre a ciência portuguesa, em particular uma reflexão sobre a

representação dos cientistas no sistema científico português e suas

instituições, senti necessidade de conceitos e problematizações

epistemológicas, de questionar o que é uma disciplina científica, um

paradigma, o conhecimento científico ou a descoberta. Com isto se

confirma que o trabalho de análise crítica do discurso é de facto um

trabalho transdisciplinar, em que o objecto de estudo e a motivação da

análise ditam as áreas disciplinares a percorrer.

Para a presente oficina proponho, pois, uma análise crítica do

discurso sobre a representação dos cientistas. Cruzando a análise linguística

e a reflexão filosófica, vou formular interrogações de ordem filosófica, bem

como interrogações de natureza social e procurar possibilidades de resposta

na interpretação da análise linguística. E, neste processo de pergunta-

resposta aos textos, estou a assumir como premissa uma equação

fundamental em análise crítica do discurso: a representação construída nos

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

textos seleccionados constitui uma prática partilhada pela comunidade onde

são produzidos. Não me interessa, pois, comparar a representação de cada

um dos textos, mas esclarecer a representação partilhada pela comunidade

em que estes foram produzidos: a representação dos cientistas no âmbito

das práticas institucionais portuguesas.

As perguntas

Vista a natureza da presente Oficina, formulei um conjunto de

interrogações epistemológicas que têm que ver com a representação da

actividade dos cientistas: O que é que os cientistas da linguagem fazem?

Qual é o seu método de trabalho? Como concebem e definem o seu objecto

de estudo? Formulam hipóteses? Descobrem coisas novas? Fazem

demonstrações experimentais? Lidam com modelos teóricos concorrentes?

Se sim, como? O seu trabalho é (mais) processual ou resultativo?

A análise linguística

Considerando o objectivo e a dimensão do trabalho, o estudo da

representação, abordei os textos adoptando apenas uma das perspectivas

disponibilizadas pela linguística sistémico-funcional: a perspectiva

representacional. Esta perspectiva situa-se no âmbito da função ideacional

da linguagem e no modo como a linguagem permite criar representações

que envolvem eventos, entidades e circunstâncias. Recorro, assim, a

categorias do sistema de Transitividade, o mecanismo léxico-gramatical

que constrói a experiência como um mundo de Processos, Participantes e

Circunstâncias. Estas categorias semânticas servem como ferramentas para

analisar o significado construído nos textos, sendo implícito que o texto é

entendido como uma escolha de representação.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

O ponto de partida foi a segmentação dos textos em orações – já

que a oração é a unidade pertinente para a análise do sistema de

Transitividade – e a classificação dos constituintes dessas mesmas orações

segundo a sua função ideacional. Assim, para cada oração, identifiquei o

Processo gramaticalizado pela forma verbal, o(s) Participante(s)

gramaticalizado(s) pelo(s) grupo(s) nominal/ais e a(s) Circunstância(s)

gramaticalizadas pelo(s) grupo(s) adverbial/ais. Partindo destes elementos,

foi-me possível compreender alguns aspectos curiosos sobre a

representação. Desses seleccionei a distribuição dos tipos de Processos no

conjunto dos textos e as instâncias de um tipo específico de Participante, o

Actor.

Comecemos, pois, pelos tipos de Processos. A tipologia de

Processos seguida (cf. Halliday 2004) distingue três tipos básicos e três

secundários que podem ser concretizados com o uso dos seguintes verbos

prototípicos. Os Processos básicos são os Materiais (verbos como fazer,

mudar, acontecer), Relacionais (ser, simbolizar, possuir) e Mentais

(pensar, sentir, ver). Os Processos secundários são os Existenciais (existir,

haver), Verbais (falar, responder) e Comportamentais (respirar, rir). Os

Processos básicos correspondem às formas mais elementares de

experiência. Como se vê pelos exemplos, os Processos Materiais

representam tipicamente a experiência como uma transformação ou

mudança no mundo físico, na sua dimensão exterior, portanto. Os

Processos Relacionais representam relações entre entidades e entre

entidades e atributos, uma dimensão mais abstracta. Os Processos Mentais

representam a experiência interior, a dimensão da consciência. Quanto aos

processos secundários são literalmente categorias intermédias em termos

daquilo que representam. Os Processos Existenciais estão entre os

Materiais e os Relacionais. Os Processos Verbais entre os Relacionais e os

Mentais. Os Comportamentais entre os Mentais e os Materiais.

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Ao observar o tipo de Processos concretizados nos textos

reunidos, na sua predominância ou residualidade, cheguei a algumas

constatações. Primeiramente, constatei uma predominância de Processos

Relacionais (em 55% das orações), como o do seguinte exemplo: “O [nome

da unidade] é uma associação privada sem fins lucrativos cujos

associados são a [nome de instituição], a [nome de instituição] e a [nome

de instituição] (Unidade de I&D da FCT com o número [número]).” (texto

07a). Esta predominância é secundada por uma fatia significativa de

Processos Materiais (em 35% das orações), como o do seguinte exemplo:

“Além de desenvolver investigação em linguística fundamental, o [nome

da unidade] aposta na produção de aplicações linguísticas em diversas

áreas: descrição do léxico, análise do discurso e ensino da língua

portuguesa, particularmente numa perspectiva de língua não materna.”

(texto 07a).

Os Processos residualmente instanciados nos textos são, por

ordem de proporção: os Mentais (6%), os Existenciais (3%) e os Verbais

(1%). A outra escolha disponível no espaço semiótico, a dos Processos

Comportamentais, não se encontra instanciada nos textos, isto é, não foi

escolhida, passe a redundância.

Esta distribuição de Processos, mostra que nas práticas institucionais

se representa um mundo essencialmente dual, feito de ser e de fazer, e

exteriorizado, que só muito residualmente aponta para uma vivência

interiorizada (pensar, sentir, gostar, etc.). Sabendo, ainda, que os Processos

Relacionais representam relações de caracterização, classificação ou

identificação entre duas entidades autónomas, a sua predominância mostra

que no mundo institucional predomina precisamente esse tipo de relações,

de definição e classificação, e que as entidades desse mundo são tidas como

entes finitos e autónomos, definíveis e classificáveis. Este predomínio

mostra, por fim, que se trata de um mundo estabilizado e pouco dinâmico.

12

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Paralelamente, considerando que os Processos Materiais

representam os eventos como mudanças ou acontecimentos do mundo

físico ou material, a sua predominância relativa mostra que no mundo

institucional também se fazem coisas materiais e que existem agentes e

entidades sobre as quais esses agentes operam transformações.

Em parte esperáveis, estas primeiras constatações parecem não

dizer nada sobre a representação dos cientistas propriamente ditos. É

necessário focar as entidades envolvidas em cada um dos tipos de

Processos identificados. Partindo da natureza das perguntas acima

formuladas, sobre a representação da actividade dos cientistas, optei por

focar os Participantes envolvidos nos Processos Materiais e observar quais

os agentes que operam as mudanças, os Actores. Seria interessante

compará-los com as entidades que sofrem as mudanças, as Metas, porém,

por limitações óbvias, deixemos a comparação para outra altura e vejamos,

sim, quem é representado como Actor no mundo institucional das ciências

da linguagem.

Ao recensear os grupos nominais gramaticalizados como Actor,

constata-se que os Actores dos textos são maioritariamente as instituições

(50% dos Actores), o que contrasta claramente com a pequena fatia

instanciada pelos investigadores (14,5%).

Seria de esperar, dir-se-ia, o predomínio das instituições como

entidades em destaque nos textos, ou talvez não. Ao falarmos em Actores

estamos a olhar para um tipo específico: as entidades que fazem coisas

propriamente ditas, aqueles que operam transformações. Ora, se no mundo

institucional são sobretudo as instituições e não tanto os investigadores

quem “faz”, então estamos perante um mundo tendencialmente

impessoalizado e perante investigadores desprovidos de agência individual.

Por outro lado, a procura de resposta às perguntas formuladas é defraudada:

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

não podemos saber o que é que os cientistas fazem, porque eles não

“fazem” ou, pelos menos, “fazem” muito pouco.

Entre os restantes Actores instanciados nos textos, temos um

conjunto significativo, mais representativo até que os investigadores, o das

entidades abstractas (16,1%), como no seguinte excerto: “A escolha de

outras línguas (dialectos)-objecto é orientada por diferentes factores...”

(texto 08a). Um carácter semelhantemente abstracto é representado por

uma outra fatia de grupos nominais, igualmente significativa, a dos nomes

eventivos (14,5%), como o do seguinte exemplo: “vários contactos

nacionais e internacionais já estabelecidos deverão dar lugar, no futuro

próximo, à assinatura de protocolos de cooperação com o [nome de

instituição]” (texto 01a). À natureza abstracta daquelas entidades

acrescenta-se um segundo nível de abstracção: os nomes eventivos

representam uma autonomização semiótica daquilo que seria a

representação de um evento, ou seja, em vez de um Processo estamos

perante o seu resultado tido como entidade autónoma. Em ambos os casos,

a impessoalidade deste mundo parece uma tendência flagrante.

Por fim, os restantes Actores são entidades não-humanas concretas

(1,6%), nomes predicadores (1,6%) e nominalizações (1,6%), todos

instanciações igualmente residuais, mas com significado relevante, uma

vez que vêm adicionar ainda mais impessoalidade ao mundo

discursivamente representado.

A investigação sobre a linguagem no contexto institucional é...

Como vimos, a análise linguística, na perspectiva ideacional,

evidencia que a investigação sobre a linguagem no contexto institucional

português é predominantemente um mundo impessoalizado, mundo de

relações de classificação e controlo entre entidades e que envolve pouca

14

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

transformação material, sendo os agentes dessa transformação entidades

abstractas. Dificilmente se compreende o que fazem os cientistas enquanto

indivíduos e muito mais dificilmente o que são os cientistas. A

representação dos cientistas e da sua actividade não parece ter lugar nas

práticas institucionais, onde se lida antes com abstracções, seja na forma de

instituições, de nomes eventivos e outros nomes abstractos.

Alegar que isto será apenas constatar o óbvio parece-me

limitador, porque as práticas institucionais envolvem naturalmente tanto

instituições quanto os próprios cientistas. E o que a análise da

representação dos cientistas (ou, no caso, da sua ausência ou exclusão)

pode indiciar é que as práticas de manutenção do poder das instituições e

de assimilação dos indivíduos em grupos são consensuais na comunidade,

não parecendo haver quaisquer indícios de resistência ou contestação.

Se abordássemos, agora, os textos segundo as outras dimensões

analíticas, a interpessoal e a textual, chegaríamos provavelmente a outras

constatações que nos permitiriam formar uma perspectiva geral mais

apurada e completa dos textos e encontrar outras formas de responder às

perguntas epistemológicas inicialmente colocadas. Todavia, não querendo

dar por encerrada esta contribuição com mais desculpas (bastante reiteradas

já ao longo da redacção) sobre as suas limitações, gostaria, pois, de

sintetizar algumas notas de leitura que ajudariam a caminhar para essa

perspectiva geral.

Na sua dimensão institucional, tanto a prática da investigação

como os investigadores se tornam abstracções, entidades estáveis e

uniformes, com estatuto definido e delimitado. Não temos pessoas, temos

grupos de pessoas, e o que está a ser representado são as suas acções

enquanto tal: os textos constroem a actividade científica como

colaboração, cooperação, parceria e trabalho em rede, para usar

expressões frequentes nos textos.

15

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Por outro lado, procurando determinar aspectos mais específicos

dessa actividade de investigação, a sua forma de experimentação e

avaliação da pesquisa é a publicação e o critério valorizador máximo é o

impacto na comunidade científica. Este é, de facto, o aspecto mais

reforçado nos textos: trata-se de uma actividade essencialmente

comunitária e comunicativa.

Por fim, na representação da actividade de investigação podem

ser ainda encontradas evidências de uma mudança em curso, a saber: uma

tendência para a mercantilização do conhecimento e da produção de

conhecimento. Esta tendência torna-se evidente na construção do processo

de avaliação, em que o conhecimento científico é construído como um bem

de consumo e os cientistas como produtores profissionais de conhecimento

científico.

Referências

Fairclough, Norman, 2003. Analysing Discourse - Textual

analysis for social research. London: Routledge.

Halliday, Michael A. K., 2004. An Introduction to Functional

Grammar. London, New York: Hodder Arnold.

Luke, Allan, 2002. «Beyond science and ideology critique:

developments in critical discourse analysis». Annual Review of Applied

Linguistics 22: 96-110. Cambridge: Cambridge University Press.

Martin, J. R. & Rose, D., 2002. Working with Discourse:

Meaning beyond the clause. London: Continuum.

Resende, Viviane de Melo & Ramalho, Viviane, 2006. Análise

de discurso crítica. São Paulo: Editora Contexto.

16

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Wodak, Ruth & Meyer, Michael, 2001. Methods of Critical

Discourse Analysis. London, Thousand Oaks, New Delhi: Sage

Publications.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

As Ciências Humanas – o caso da Psicologia.Isabel Oliveira da Silva Coentro3

[email protected]

Palavras Chave: Ciências da Natureza, Física, Ciência, Psicologia,

Homem

A Psicologia é uma das ciências humanas que aparece ainda no

século XVIII, mas que só se constitui como ciência apenas no século XIX e

mesmo assim com uma aproximação ao saber da Física e à constituição das

suas leis. Tal acontece, por exemplo com Freud no século XIX, que tinha

relacionado o conceito de “energia psíquica” presente na sua concepção de

Psiquismo com os conceitos de energia presentes no 2º Princípio da

Termodinâmica. Assim o aparelho psíquico terá tendência a manter a sua

quantidade de excitação o mais baixa possível e a um nível o mais

constante possível. Para Freud as forças presentes nas pulsões de Vida e de

Morte têm uma relação de organização e desorganização com semelhança

com as forças universais de atracção e repulsão. O primeiro princípio da

termodinâmica ou princípio da conservação da energia envia-nos, para a

existência duma quantidade de energia presente nas diferentes

transformações, químicas, mecânicas e térmicas. O segundo princípio a que

já aludi, afirma a existência de uma transformação qualitativa e irreversível

dessa mesma energia. Este princípio traduz-se pelo facto de a Entropia em

todos os sistemas fechados tender a aumentar ou a ficar constante mas

nunca a diminuir. O mesmo acontece no Psiquismo com as pulsões

presentes e na luta constante entre Eros e Thanatos que mantém em

constância o dinamismo psíquico.

3 Mestrado em História e Filosofia das Ciências, Universidade de Lisboa.

18

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

No entanto a palavra Psicologia existia já desde o século XVI na

escolástica luterana na Alemanha, mas apenas designa uma aproximação à

perspectiva aristotélica da “Alma”.

Parece haver com esta introdução uma relação entre o mental e o

físico que serviu de base a algumas das teorias que estiveram no início da

constituição da Psicologia como ciência, mas antes do desenvolvimento

deste tema seguindo este caminho, deverá ser analisada uma outra

concepção contrária à anterior. Assim se tentarmos entender as ideias

principais de um autor americano falecido há poucos anos, discípulo de

Quine, chamado Donald Davidson e que em relação ao conhecimento é

adepto do Coerentismo,4 afirmando que o conhecimento se deve basear em

crenças justificadas e que estas o são pela coerência e consistência existente

entre as mesmas. “ Todas as crenças são justificadas neste sentido: são

suportadas por inúmeras, outras crenças (de outro modo não seriam as

crenças que são), e têm uma presunção a favor da sua verdade. A presunção

aumenta quanto mais significativo for o corpo de crenças com o qual a

crença é coerente, e uma vez que uma crença isolada é coisa que não existe,

não existe qualquer crença sem presunção alguma a seu favor.”5 Este autor

defende nos seus livros “Ensaio sobre a Verdade” e o “Anomalismo do

Mental” que “ (…) os factos mentais são físicos, mas isso não nos permite

aplicar as leis físicas ao mental”.

Donald Davidson é assim um defensor do fisicalismo e afirmava que

a causalidade e a relação a esta subjacente só se dão entre eventos físicos.

Ao contrário do seu mentor, Quine, Davidson afirma no entanto, que os

termos mentais não podem ser reduzidos a termos físicos. Isto significa

que, se aquilo que é descrito como acontecimento mental está envolvido

numa relação de causalidade, o acontecimento deve ser físico, embora a sua 4 Aplica-se enquanto teoria da justificação e afirma que todas as crenças são justificadas, por intermédio

das suas relações com as outras crenças. As crenças são justificadas pela forma como são coerentes entre si e como se integram num determinado conjunto de outras crenças.

5 Donald Davidson – “Uma Teoria Coerencial da Verdade e do Conhecimento” – página 359.

19

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

descrição mental não possa ser reduzida a uma descrição física. Esta

consideração conduziu-o à defesa de que as descrições mentais não podem

figurar nas leis científicas e que não há leis científicas (dos acontecimentos

descritos como mentais) que possam ser explicados e previstos. Para

Davidson o homem é constituído por um monismo anómalo, ao contrário

do que já foi referido anteriormente no caso de Descartes em que o homem

é visto como um ser dualista. O monismo implica a não divisão entre corpo

e alma como duas entidades separadas e que comunicam entre si ao

contrário do que é referido por Descartes que fala de dualismo

antropológico, mas o Homem tem na sua constituição uma parte física e

uma mental que funciona como um todo, mas as leis físicas aplicam-se

apenas à parte física ou seja ao corpo e nunca ao mental. Este monismo

anómalo, leva-o a afirmar que as descrições mentais não podem ser

explicadas em termos de lei, pois por exemplo posso explicar uma acção

humana como um “evento” que é intencional sob alguma descrição; a

contracção de certos músculos, o movimento de uma faca, o barrar de uma

fatia de pão – todos são o mesmo acontecimento, que pode ser descrito de

maneira diferente, mas é sempre a mesma acção e não existe mais nenhuma

causa mental para essa acção. Assim todas as descrições mentais podem ser

entendidas a partir das leis naturais científicas já existentes sem

necessidade de nenhuma outra explicação. O mental pode ter as suas

próprias leis mas estas serão sempre e só normativas e nunca permitirão a

previsão. Não há leis que expliquem por exemplo o “meu desejo de ler um

livro” com uma particular actividade cerebral. Contudo para Davidson o

mental não é reduzível ao físico, mas os acontecimentos mentais podem ser

relacionados com alguns acontecimentos físicos, isto é, qualquer descrição

mental de um acontecimento pode ser relacionado com uma descrição

física do mesmo acontecimento. O monismo anómalo explica-se pela

concepção do Homem como um todo, em que as leis físicas se aplicam ao

20

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

corpo e às acções e comportamentos do homem enquanto realização do

corpo, mas não considerando a existência de leis mentais que expliquem o

nosso comportamento.

Deixando Davidson e voltando para a Psicologia, podemos então

considerar esta actualmente como a ciência do comportamento e dos

objectos mentais e o seu objecto de estudo pode ser traduzido pela fórmula

(R=S P)⇄ .6 Como ciência os psicólogos pretendem que o conhecimento

psicológico esteja também ele baseado em princípios de explicação

científica.

É isso mesmo que podemos verificar quando falamos de Gustav

Theodor Fechner, físico de profissão, que em (1860) escreveu um livro que

se chamava “Elementos de Psicofísica” em que concebeu uma ciência que

pretendia abranger a física e a psicologia que designou de psicofísica e esta

não era mais do que a ciência das relações constantes entre os estímulos e

as sensações. Prova que existe uma relação quantificável entre a

intensidade da sensação e a do estímulo e o desenvolvimento desta relação

originou a lei de Weber-Fechner. São assim conhecidas as leis do campo

perceptivo que explicam a forma como se dá a percepção e a consequente

representação mental, bem como os fenómenos de ilusão perceptiva.

O mesmo se passou com Francis Galton7 que em 1884 construiu um

laboratório antropométrico, onde estudou as imagens mentais e as

associações de ideias com a preocupação da quantificação dos fenómenos

psíquicos.

Fisiólogos, médicos e anátomo-patologistas como por exemplo

Broca deram, por seu lado, importante contribuição para o estudo científico

dos fenómenos psíquicos, quando pela sua análise dos órgãos dos sentidos,

do funcionamento geral do sistema nervoso, das funções do Encéfalo,

6 A resposta é dada em função da interacção que se estabelece entre a Situação e Personalidade do Indivíduo particular e que por isso mesmo vai reagir de forma diferenciada em determinada situação.

7 Antropólogo e Geógrafo Inglês.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

assim como do desenvolvimento da linguagem e da patologia mental,

foram levados a abordar experimentalmente o estudo dos processos

mentais. A eles se devem as primeiras tentativas para estabelecer relações

entre os fenómenos físicos, fisiológicos e psicológicos. Não esquecer que

são as preocupações e a curiosidade de Broca que levam a que este guarde

o cérebro de Phineas Gage cujo acidente e consequentes alterações

comportamentais tanto o influenciaram, procurando na sua vida tentar com

os seus estudos explicar o que tinha sucedido e quais as razões que

eventualmente poderiam explicar as alterações comportamentais

verificadas. Não conseguindo encontrar uma solução preservou o cérebro,

para que ainda hoje este possa ser analisado, permitindo assim os estudos

de António e Hanna Damásio. Estes com os meios tecnológicos disponíveis

actualmente, conseguiram criar um programa de computador que de forma

exacta estabeleceu o percurso da barra de ferro pela caixa craniana de

Phineas Gage, explicando as alterações no comportamento que tinham sido

detectadas e possibilitando a descoberta de um centro das emoções no

córtex pré-frontal, responsável também ele pelas capacidades superiores do

Homem, nomeadamente as que dizem respeito ao pensamento.

É com Wundt8 que em 1873 escreveu o livro “Elementos de

Psicologia Fisiológica”, que a Psicologia como ciência tem a sua criação. É

Wundt que afirma que “(…) Há uma só experiência que contém

sentimentos, volições, ideias, juízos, representações, etc. Todo este

conjunto estudado no seu carácter imediato (como via mental de um

sujeito) é a Psicologia.” Se consideramos então a parte da representação

não no seu carácter imediato como representação, mas no seu aspecto

imediato de objecto independente de nós, cuja existência nós inferimos da

representação, temos o estudo das ciências da Natureza. Concluí-se então

8 Psicólogo e Filósofo Alemão, doutorou-se em Medicina. Não satisfeito com a lei psicofísica de Weber, reconhece que é preciso ir mais fundo, já que os fenómenos fisiológicos e psicológicos aparecem como dois pontos de vista duma idêntica experiência.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

que para Wundt as expressões “experiência externa” e “experiência

interna” não designam diferentes objectos, mas diferentes pontos de vista,

porque pode ser realizada a análise científica de uma expressão unitária. É

também isso que nos diz Magalhães Vilhena9 em 1977 no seu livro

“Pequeno Manual de Filosofia”, “ (…) A Psicologia define-se como a

ciência da vida mental; é o estudo concreto dos fenómenos psíquicos e suas

leis – fenómenos tão reais e observáveis e susceptíveis de investigação

científica como os que pertencem ao mundo externo.” O mesmo autor

refere que:

“(…) Negar à psicologia a possibilidade de formular leis e de

reivindicar até certo ponto, a legitimidade da medida numérica, é

afirmar a impossibilidade de reduzir a realidade psíquica à precisão

científica. Tal negação, segundo a maioria dos psicólogos

contemporâneos, não é hoje já aceite. A psicotécnica, por exemplo

demonstrou já o valor científico e prático das medidas numéricas, ao

estudar nomeadamente as funções gerais da atenção, da memória, da

inteligência e das suas variedades.”

Como é também referido por Gilles Gaston Granger,10 em (1975) no

seu livro “Pensamento Formal e Ciências do Homem”:

“A dificuldade radical das ciências do Homem resulta justamente

desta necessidade que o cientista encontra em se referir a factos

dotados de sentido, mas de a eles chegar através de uma elaboração de

dados que são já significações ao nível da apreensão imediata. A dupla

tentação que o espreita é então a de se cingir simplesmente aos

acontecimentos vividos, ou então a de, num esforço mal adaptado para

atingir a positividade das ciências naturais, liquidar toda a

significação, para reduzir o facto humano ao modelo dos fenómenos

físicos. O problema constitutivo das ciências do homem pode,

9 Filósofo.10 Tradução de Miguel Serras Pereira, editorial Presença, em 1975.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

portanto, ser descrito como transmutação das significações vividas

num universo de significações objectivas.”

É aquilo que está presente na constituição da Psicologia como

ciência e a forma como foi abordada esta constituição, que hoje é referido

pelas ciências humanas como sendo a necessidade de mudança dos

modelos que se devem aplicar a estas. Estes parecem cada vez mais serem

os modelos cibernéticos já que a troca da informação é o mais importante

quando falamos de ciências humanas inclusive da psicologia e não os

modelos energéticos que as ciências da Natureza aplicam. Karl Popper no

seu livro de (1996), “O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente” diz

que:

“(…) Ao nível humano, aquilo que designei por mundo 2 – o mundo

da mente – transforma-se cada vez mais no elo de ligação entre o

primeiro e o terceiro mundos. Todos os actos executados no mundo 1

sofrem a influência da maneira como o mundo 2 compreende o mundo

3. Por isso, é impossível compreender a mente e o eu humano sem

entender o mundo 3, e também não se pode interpretar este mundo 3

como mera expressão do segundo, ou este último como um simples

reflexo do terceiro”.

O que afirma Karl Popper é aquilo que poderemos pensar que nos

leva a procurar compreender o mundo 2, “o mundo da mente”, para

entendermos o mundo 3 e o mundo 1. É esse o papel da Psicologia. Popper

diferencia a realidade e a relação que se estabelece entre o Homem e essa

realidade em 3 Mundos. O Mundo 1 é o mundo dos fenómenos existentes,

naquilo que podemos considerar a realidade física. Por outro lado o Mundo

2 é o Mundo da mente, que permite a ligação entre o mundo 1 e o mundo 3.

Este último é constituído pelas produções humanas que constituem o tal

mundo autónomo separado das realidades físicas. É neste que estão as

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

teorias que o Homem entretanto criou sobre a realidade presente no mundo

1. Mas tal como diz Popper, “as teorias são como os filhos” e por isso

mesmo, autonomizam-se relativamente ao seu autor e conseguem

sobreviver sem este.

Já foi anteriormente considerado a forma como na história na

Psicologia nos podemos entender quanto ao facto da sua criação enquanto

ciência. Já também foi referido o facto de Fechner ter criado a psicofísica e

o facto de Wundt ter criado o primeiro designado laboratório de Psicologia

em Leipzig. Já foi mencionado anteriormente a relação que Freud tentou

estabelecer com o segundo princípio da Termodinâmica na sua concepção

de “energia psíquica” presente no seu dinamismo psíquico e a que obedecia

a noção de Psiquismo. É no entanto com Watson11 em 1913 que partindo

das descobertas feitas por Ivan Pavlov12 em 1903, sobre o reflexo

condicionado, que a Psicologia pode ser considerada uma ciência. Assim a

Psicologia passa com a corrente Behaviorista a considerar que o seu

objecto de estudo é o comportamento, já que este é observável e por isso

mesmo pode ser explicado e relacionado de forma matematizável

permitindo a previsão – ideia mais importante no campo da ciência. Com

os estudos de Watson existe a ideia de que o comportamento humano

explicitado na base de uma relação Causa-Efeito pode ser moldado desde

que as alterações se verifiquem ao nível da situação que provoca

determinado comportamento. Sabemos que tal forma de explicar o

comportamento humano é extremamente redutora e por isso mesmo

correntes posteriores como a de Freud ou a de Piaget13 entram com um 11 Psicólogo norte-americano, criador do Behaviorismo. Valoriza o comportamento – “Behaviour”,

como sendo o objecto da Psicologia.12 Médico e professor de farmacologia, estudou os reflexos condicionados, a partir de experiências

realizadas com cães. Através delas demonstrou que qualquer estímulo próprio se pode associar a outro não adequado e gerar idênticos reflexos, desde que se repita suficiente número de vezes, juntamente com os seus evocadores característicos.

13 Biólogo, psicólogo e epistemólogo, nasceu na Suíça. A contribuição para a psicologia contemporânea é decisiva. Piaget mostra de que modo o universo mental do indivíduo se constrói dialecticamente, num equilíbrio estrutural sempre posto em causa: a inteligência modela e assimila o mundo que, por seu lado, através da resistência que opõe, desencadeia um processo de acomodação, preparando desse

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

novo factor que influencia as nossas acções, o Eu individual e a sua história

pessoal. Mas tal só é possível na actualidade com o desenvolvimento das

ciências cognitivas e das neurociências. Hoje entende-se cada vez mais a

noção de Homem e dos seus processos mentais à luz de um cada vez maior

entendimento do funcionamento do cérebro humano e da sua relação com

todo o nosso sistema nervoso. As noções que temos hoje, ligada a estas

concepções são a de “plasticidade” e “auto-organização” mental. Como é

afirmado por Jean-Pierre Changeux 14(2002) no seu livro “A Verdade e o

Cérebro - O Homem da Verdade”:

“(…) Para além da abertura do sistema nervoso, o cérebro caracteriza-

se pelo que chamei a sua motivação.” Ele não funciona como uma

máquina que trata passivamente informações vindas do exterior. Actua

igualmente no sentido inverso, como um produtor de representações

que projecta para o mundo exterior. A actividade espontânea de

conjuntos especializados de neurónios leva o organismo a

continuamente explorar e testar o meio ambiente físico, social e

cultural a apoderar-se de respostas e a confrontá-las com o que ele

possui em memória. Em consequência o cérebro desenvolve

capacidades de “auto-activação” e com isso de auto-organização. É

neste sentido que aplico o termo “motivação” a uma rede de

neurónios. Sistema aberto e motivado, o cérebro funciona em

permanência no modo de exploração organizada.”

Segundo o mesmo autor, a sua preocupação é a partir desta noção de

“Homem neuronal” e do seu funcionamento cerebral saber como é possível

estabelecer uma relação com a noção de “verdade”. Considera que o

desenvolvimento das neurociências vai permitir identificar as

“arquitecturas neuronais” que permitem a consciência da aquisição de

conhecimentos e de que forma estas podem contribuir para que o Homem

modo, um novo trabalho de assimilação e assim sucessivamente.14 Professor do Collége de France e do Instituto Pasteur, membro da Academia das Ciências de França.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

faça sobre as mesmas um exame à sua veracidade. Considera que se o

espaço consciente é capaz de “produzir, de seleccionar e de reter

representações e conhecimentos”, pode também em princípio “efectuar

operações sobre estes objectos mentais, avaliá-las e ligá-los numa melodia

constantemente posta à prova por comparações entre os mundos interior e

exterior e pela realidade dos eventos, presentes, passados e futuros com

uma referência constante ao eu neuronal.”

A “consciência” integra as informações e os conhecimentos no

quotidiano e as memórias sociais e culturais próprias do indivíduo com

comportamentos fundamentais da espécie enquadrados pelo seu

“envolvimento genético”. A consciência permite então ao Homem em cada

momento uma avaliação de cada comportamento tendo em vista a verdade

e a sobrevivência da espécie. Diz o mesmo autor que:

“(…) O facto de o organismo conseguir internamente pôr à prova a

realidade dos conhecimentos actualmente “em linha” com

conhecimentos conservados na memória ou até mesmo entre objectos

de memória torna possíveis simulações tácitas de comportamentos e

de tomadas de decisão sobre acções a ocorrer em termos psicológicos

particularmente breves.”

A consciência permite ao Homem uma considerável economia no

número de comportamentos a realizar (muitos deles perigosos) e conduz a

uma aquisição que fica presente na herança genética da espécie de vários

tipos de conhecimentos e a sua consequente validação. A verificação da

validade dos conhecimentos recorre a símbolos presentes na comunicação

entre os indivíduos, daí que os modelos que devem ser aplicados ao estudo

das Ciências do Homem, serem os modelos cibernéticos e não os

energéticos como já referi anteriormente. O mesmo autor refere ainda,

fazendo uma analogia entre as concepções que se tem de teoria e usando a

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

frase de Kant – “Conceitos sem intuições são vazios, intuições sem

conceitos são cegas” – que os nossos sentidos são aquilo que permite ao

homem a sua mediação com o mundo, mas que nada poderíamos conhecer

sem quadros mentais já existentes, ou seja sem representações (conceitos)

que servem para ordenar e organizar as características dos objectos que

captamos do meio. Poderemos assim afirmar que se partirmos dos

conceitos é a teoria que antecipa a observação e que a orienta, mas se

partirmos das intuições, a teoria só pode ser deduzida das observações

empíricas. A analogia quanto a estes modos de apreensão do mundo

exterior é feita com os “processos ascendentes e descendentes que se

desenvolvem no cérebro”, quando o ser humano entra em contacto com o

mundo e o tenta primeiro captar num processo de assimilação e

acomodação às estruturas já existentes como é referido por Piaget. Diz

Jean-Pierre Changeux que vamos assim “(…) dos órgãos sensoriais aos

processadores, depois ao espaço de trabalho consciente e no processo

contrário do espaço de trabalho consciente aos processadores.” No primeiro

caso a prioridade é dada aos sentidos, no segundo a teoria domina o

processo. Em ambos os casos existem problemas que devem ser

perspectivados, o problema das “ilusões sensoriais” e o problema do

“imaginário incontrolado e dogmático.”

Jean-Pierre Changeux considera que a ciência é o caminho para

aquilo que pode ou não ser considerado verdadeiro e que se situa “no

equilíbrio instável” entre estas duas perspectivas. Diz-nos ainda que esta

procura de verdade e esta exigência de validade não tem equivalente em

nenhuma outra actividade humana a não ser na ciência, mas está na base da

adaptação do Homem ao Meio enquanto espécie e por isso a evolução da

espécie e a sua epigénese demonstra ao mesmo tempo esta procura de

validade e veracidade mesmo em muitos dos aspectos de desenvolvimento

biológico e refere que:

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

“(…) Resta afirmar que a convergência de diferentes abordagens

teóricas e experimentais visando um objectivo comum, bem como a

capacidade para modificar ou abandonar uma representação e

substituí-la por outra mostram que não somos prisioneiros das nossas

estruturas cognitivas. Bem pelo contrário: nos debates que se

desenvolvem na agora planetária, as teorias e os factos são postos à

prova sem misericórdia. Uma vez validadas, cedo ou tarde estas

representações escapam ao seu inventor, tornam-se independentes,

ganham uma espécie de autonomia.”

Jean-Pierre Changeux ao fazer esta afirmação pode-se relacionar

com Karl Popper no seu livro “O Conhecimento e o Problema Corpo-

Mente”, já referido anteriormente. Ao tentar provar a existência de um

mundo 3 constituído pelas produções humanas e independente do mundo 2

– o mundo da mente -, mas directamente relacionado com o mundo 1 e 2,

em que o mundo 2 é o intermediário entre ambos. Mundo, este que em

Jean-Pierre Changeux está escrito na “epigénese” da espécie humana e

permite fornecer ao Homem a evolução que tem tido. Diz Popper, no seu

livro, “O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente”, 1996, página 164,

“(…) Com as teorias sucede o mesmo que com os filhos também elas

tendem a tornar-se independentes dos seus autores. E tal como pode

suceder com os filhos também assim acontecerá com as teorias:

receberemos delas uma dose de conhecimento maior do que o que

investimos nelas originariamente.” Mas podemos fazer um paralelo com a

afirmação anterior com a afirmação de Changuex no livro que já foi

referido e que diz:

“ (…) O melhor modelo científico não dará jamais uma descrição

exaustiva da realidade. A física interna das nossas representações

mentais apresenta sob uma forma reduzida e simplificada, apenas uma

selecção de características da física externa. Como já os Gregos

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

sugeriram mesmo múltiplas concepções da verdade científica. Assim

o combate pelo conhecimento objectivo oferece-nos visões do mundo

coerentes, sólidas e de grande alcance, que geram antecipações e

previsões eficazes. Depois de se decifrar o genoma humano, a

pesquisa científica permite-nos hoje esperar compreender melhor o

cérebro e as suas funções tanto ao nível do indivíduo como ao da

sociedade. Tudo o que pertence ao domínio do espiritual, do

transcendente e do imaterial está em vias de se materializar, de se

naturalizar e digamo-lo, simplesmente de se humanizar.”

É este processo de conhecimento das neurociências que nos leva até

ao autor português, António Damásio que nos seus livros relaciona os

estudos actuais do cérebro humano e as descobertas que existem com

algumas das teorias anteriores. Não é difícil provar que Descartes estava

errado quando nos fala das “Paixões da Alma” se soubermos como

funciona o sistema nervoso e qual o papel desempenhado pelo Encéfalo no

mesmo. Para compreender como o nosso cérebro reage e o papel da

emoção na decisão, uma equipa de investigadores chefiada por António

Damásio, submeteu algumas pessoas com lesões cerebrais particulares a

dilemas. Damásio defende que, os pacientes cujo córtex ventromediano –

zona do cérebro situada em cima dos olhos – se encontra lesionado têm

geralmente menores reacções emocionais de dimensão social – como a

compaixão, a vergonha, a culpabilidade, etc. - (esta zona faz parte dos

circuitos “emocionais” do cerébro), sem que a sua inteligência e a sua

lógica sejam afectadas. Juntamente com Ralph Adolphs e outros

especialistas em neurociências, colocou 30 pessoas, seis das quais tinham

esta lesão cerebral, perante escolhas morais difíceis, implicando sacrificar

uma pessoa para salvar outras. Foi usado como cenário proposto, por

exemplo a seguinte situação descrita: “No teu laboratório foram preparadas

duas substâncias – um líquido tóxico e uma vacina contra um perigoso

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

vírus mortal que se propaga. A única forma de identificar a vacina é testar

estas substâncias em dois pacientes. Estarias pronto a matar um deles para

salvar muitas outras vidas? “. Confrontados com este tipo de dilemas, os

pacientes com o córtex frontal ventroniano lesado responderam muito mais

frequentemente que “sim”, sem hesitações, do que os outros voluntários –

doze com outros tipos de lesões e doze sem lesões neurológicas. Damásio

explica que em tais circunstâncias, a maioria das pessoas sem lesões

cerebrais específicas ver-se-ia confrontada com um conflito interior.

Normalmente, um sentimento de aversão, mistura a recusa do acto com

emoções de dimensão social e compaixão pela pessoa envolvida,

impedindo um Homem de fazer mal a outro. Mas estes pacientes

particulares parecem não experimentar esse conflito. Ficam tristes se

perdem, contentes se ganham, mas estes pacientes não modelam o seu

contentamento nem tristeza em função do que poderiam ter ganho. Face a

outras escolhas mais simples, como por exemplo guardar ou não um porta-

moedas encontrado na rua, poucas diferenças de reacções foram observadas

entre os grupos de participantes nesta experiência. Alguns cientistas

consideram que este trabalho prova directamente o papel das emoções nos

julgamentos morais. Damásio afirma mesmo que a razão humana precisa

de emoções para funcionar: não há escolha racional acertada na vida real

sem participação das emoções, da intuição, das nossas vísceras. As

emoções desempenham, portanto, um papel essencial no nosso

desempenho moral; sem elas, o nosso juízo moral não funcionaria. Assim,

defende-se que o córtex pré-frontal ventromediano tem um papel essencial

na expressão do remorso, mostrando que os pacientes que têm esta

estrutura lesada não o exprimem face às consequências das suas escolhas.

"É a região que modula as emoções em função do contexto".

Segundo António Damásio, a concepção de que a mente (entendida

como um conjunto de processos cerebrais) é algo separado e independente

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

do corpo tem levado alguns pesquisadores a suporem que serão capazes de

compreender o que somos biologicamente através de uma simulação de

processos biológicos com computadores que só possuem “mente”. Nesta

abordagem não há espaço à ideia de um corpo modificável em certas

circunstâncias que chamamos emoções e à apreciação do estado deste

corpo e da mente durante as emoções (sentimentos). Segundo Damásio, é

justamente este o Erro de Descartes: separar os processos cognitivos dos

afectivos, como se pudesse existir uma mente separada do corpo e

considerar a existência de uma racionalidade pura no Homem, não podendo

esta ser articulada sem a emoção. Pode-se dizer que os resultados que

foram obtidos mostram que os seres humanos não são biologicamente aptos

a terem raciocínios puramente utilitários. Este facto está ligado à produção

de emoções sociais. “Penso que esta forma mista de juízo moral, que alia a

razão à emoção, é a manifestação de uma sabedoria lentamente acumulada

ao longo da evolução (tanto biológica como cultural)”. Os juízos mais

simples não exigem estas combinações, sendo possível lidar com eles ou

somente com a razão ou somente com as reacções emocionais.

As emoções tiveram origem na história evolutiva do Homem,

trazendo vantagens de sobrevivência, na medida em que diante de

determinada situação, accionavam respostas de rápido processamento, de

maneira automática. Dependem dos mecanismos cerebrais que foram sendo

construídos ao longo da história do Homem, sendo processos determinados

biologicamente e de modo inato, podendo a cultura e a aprendizagem lhes

conferir apenas novos significados. Não conseguimos impedir as emoções

de acontecerem; no máximo, o que podemos fazer é adquirir a capacidade

de disfarçar as suas manifestações exteriores.

Tentar explicar de forma neurológica a “consciência de si” ou as

“emoções humanas” com o postular de noções como as de uma existência

de “marcadores somáticos” é o que pode demonstrar a beleza de uma

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

espécie racional preocupada em explicar o que a rodeia, a si própria e ao

próprio racional, como se continuadamente nos questionássemos sobre os

mistérios da criação continuamente escondidos sobre os véus de Maya,

cada vez mais desvelados por esse conhecimento a que o próprio Homem

chama de Ciência, não as Ciências da Natureza ou as Ciências Humanas,

mas esse processo de conhecimento continuado do Mundo e de si mesmo.

As ciências exactas, tentam a determinada altura do desenvolvimento

do conhecimento e numa ânsia de objectividade, só considerar como

ciência as ciências naturais, onde essa objectividade para os adeptos desta

posição era possível de ser alcançada e assim era eliminada a complexidade

do Humano inerente às ciências Humanas. Estas no entanto foram

encontrando modelos diferentes de funcionamento enquanto ciências e a

complexidade do Humano, não deixou de ser estudada e entendida. É o que

fazem os cientistas que no caso da Psicologia tentam construir uma ciência

objectiva, apesar de alguns dos seus objectos serem eles próprios

subjectivos, como é o caso do estudo das emoções.

A preocupação central da filosofia da mente é o entendimento

humano da mente e o seu lugar no mundo físico. Os dois principais tipos de

abordagem como vimos anteriormente são o dualismo que afirma que a

mente e o corpo são tipos diferentes de coisas, com propriedades diferentes

e o monismo que afirma a existência de um único tipo de coisa e de

propriedade.

Para Platão, a mente era a nossa parte imortal; em contraste com a

matéria, tinha afinidades com o eterno e o imutável e transportava as

verdades eternas. Aristóteles tentou uma explicação naturalista da psyche

ou da alma, em termos das suas diferentes faculdades, considerando que o

distinguia o homem do resto do reino animal era o nous, ou intelecto.

Também Descartes, como já foi referido considera o dualismo na separação

entre res cogitans e res extensa.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Por outro lado a tese de Espinoza acerca da mente é considerada

como uma tese monista, já que a mente e o corpo não eram substâncias

individuais. Donal Davidson refere-se, na continuação desta perspectiva da

existência de um monismo anómalo como foi explicitado.

Estabelecidas contra as teses dualistas, aparecem teses da mente

materialistas/fisicalistas. Na viragem do século XX encontramos a tese do

Behaviourismo, que afirmava que ter uma mente não é nada mais do que

ter a disposição para se comportar de determinada maneira. Este foi

ultrapassado pelo fisicalismo, com a tese de que os fenómenos conscientes

ou mentais são fenómenos físicos de algum sistema biológico ou físico

como o cérebro.

O fisicalismo é a doutrina que predomina hoje, mas que surge de

variadas formas: o fisicalismo não redutivo, por exemplo, afirma que

embora exista apenas um tipo de coisa, ou seja o cérebro, os termos que

usamos para o descrever não se reduzem um ao outro. Então por exemplo,

o termo dor e a expressão processo cerebral, referem-se à mesma coisa e

sendo assim as descrições físicas e mentais são governadas por normas

diferentes. A mente pode ser individualizada e por isso mesmo ser

separada, pelo papel funcional que desempenha na rede de inputs e outputs

e a sua realização múltipla, seja no sistema biológico ou num sistema

complexo de chips de silicone.

A Psicologia com a ajuda das neurociências e da cibernética tenta

explicar a complexidade inerente a um sujeito, ele próprio objecto de um

determinado conhecimento, mas por vezes numa perspectiva redutora do

próprio Humano. Se tentarmos explicar as emoções por exemplo

recorrendo apenas a uma explicação neurobiológica do facto, parece-nos

reduzir o Homem a algo indiferenciado e robótico, o que parece não se

coadunar com os individualismos e criatividade que nos é permitido

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

observar na espécie Humana. Criatividade que podemos afirmar, está na

base da produção da Ciência.

Não é então de estranhar o facto de ser hoje entendido por todos no

domínio do conhecimento que existe uma complexidade e que esta não

pode ser esquecida nem reduzida. Hoje esta mensagem começou a ser

entendida no domínio da Física e são os cientistas físicos que a partir da

concepção de Leis e Teorias para a mecânica quântica reclamam para si

esta mesma complexidade. Parece então que por vezes os próprios

fenómenos físicos que se pretendiam objectivos, reclamam parte da

complexidade existente e agora não apenas no Ser Humano.

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(Editorial Estampa)

- Kuhn, Thomas S., “A Estrutura das Revoluções Científicas” – tradução

de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira – Editora Perspectiva – São

Paulo, Brasil - 2007

- Parrochia, Daniel (1997), “Sciences Exactes et Sciences de L’Homme: les

Grandes Étapes” (Ellipses/edition marketing S.A. – Paris)

- Platão, “Six Great Dialogues – Apology, Crito, Phaedo, Phaedrus,

Symposium, and the Republic” – translated by Benjamin Jowett – Dover

publications, inc -2007

- Platão, Théététe, - traduction, notices e notes par Émile Chambry –

Garnier Flammarion - 1967

- Pasternak, Guitta Pessis (1991) “Será Preciso Queimar Descartes? Do

caos à inteligência artificial: quando os cientistas se interrogam” –

tradução de Manuel Alberto (Relógio D’Água – 1993)

- Popper, Karl R., (1963) “ Conjectures and Refutations – The Growth of

Scientific Knowledge” – Routledge Classics, London and New York

36

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

- Popper, Karl R. (1996) “O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente”-

tradução de Joaquim Alberto Ferreira Gomes (Edições 70)

- Vilhena, V. de Magalhães (1977) “Pequeno Manual de Filosofia”

(Livraria Sá da Costa Editora)

37

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Agentes e ações na criação de uma disciplina: o caso dos Estudos da Tradução no Brasil.

Roberto Carlos de Assis15

(UFMG / FLUL)

0- Introdução

Embora comentários sobre traduções remontem a Cícero (46 a.C),

passando por São Jerônimo (340 d.C.), tradutor da Bíblia para o latim,

Lutero (1530), Tytler (1792), Scheleimacher (1813), entre outros, somente

a partir da segunda metade do século XX é que a tradução desponta como

uma disciplina autônoma no cenário internacional. Em Holmes (1972), tido

como marco epistemológico, o autor demonstra sua insatisfação com as

respostas elaboradas por paradigmas e modelos de disciplinas, como a

Linguística, Literatura e Lógica. Para ele, essas disciplinas não davam

conta da complexidade da área e, em seu trabalho, elabora um mapa

descrevendo o campo, define seu objeto (a tradução enquanto processo e

produto) e aponta possibilidades de estudos e de diálogo com outras

disciplinas.

Algumas ações evidenciam sua consolidação a partir da década de

1990: o lançamento de seu reader: The translation studies reader

(VENUTI, 2000); a criação de cursos em níveis de graduação e pós-

graduação em 45 países, conforme apresentados em

http://www.lexicool.com/courses.asp; e a elaboração de vários manuais

introdutórios à disciplina emergente (BAKER, 1992; MUNDAY, 2001;

ROBINSON, 2003; HATIM e MUNDAY, 2004; MALMKJAER, 2005) e

de enciclopédias da área (BAKER, 1998; KITTEL, 2004).

15 Doutorando da Universidade Federal de Minas Gerais e da Faculdade de Letras da U. de Lisboa.

38

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Embora, para alguns, sua posição como disciplina esteja de fato

consolidada, haja vista sua apresentação em algumas das obras acima

citadas com o artigo definido the (Translation Studies is the new academic

discipline related to the study of the theory and phenomena of translation

(MUNDAY, 2001, por exemplo, meu grifo), esta posição é questionada por

Arroyo (1998), que desconstrói essa posição alegando que a motivação dos

defensores de uma disciplina autônoma “é um certo impulso imperialista

em que o que está realmente em jogo é o prestígio e o poder das tendências

em nome das quais se pretende disciplinar a tarefa do tradutor”

(ARROYO,1998).

No contexto brasileiro, conforme constatado em artigos de cunho

explorador e histórico (PAGANO e VASCONCELLOS, 2003; FROTA,

2007, por exemplo), apesar de pesquisas na área remontarem a 1952

(RÓNAI, 1952), a disciplina não está consolidada como autônoma e tem

um caráter nômade, abrigando-se principalmente sob o guarda-chuva da

Linguística Aplicada, Letras ou dos Estudos Literários. Há interesses

manifestos de que a autonomia da área seja reconhecida, nomeadamente

dos pesquisadores agrupados em torno do GT de Tradução da ANPOLL -

Grupo de Trabalho de Tradução da Associação Nacional de Pós-Graduação

e Pesquisa em Letras e Linguística, doravante GTTRAD. Esse grupo de

trabalho foi criado em 1986 e, a partir de então, chama para si o embate da

conquista de um espaço próprio para os Estudos da Tradução no meio

acadêmico brasileiro, conforme explicitado em um retrospecto das

atividades do grupo:

O ano de 1986 foi auspicioso para a área de tradução. Primeiro,

porque a sua presença entre os vinte e um grupos de trabalho da

ANPOLL veio a contribuir para seu reconhecimento institucional,

além de proporcionar um espaço para o intercâmbio entre seus

39

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

pesquisadores. Segundo, porque foi criada, em nível de

pós-graduação, a primeira área de concentração em tradução do

país, no Programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada da

UNICAMP. Esses dois fatos foram fundamentais para o

enfrentamento de um poderoso obstáculo ao avanço dos estudos

sobre tradução: a inexistência de um lugar claramente demarcado

nas instituições acadêmicas, levando-os a realizarem-se às

margens da pesquisa que se desenvolve nas áreas de Letras e de

Lingüística. (FROTA et al: 1994, meus grifos)

Apesar de o primeiro encontro formal do GTTRAD ter ocorrido

apenas em 1987, ressalta-se, na citação acima, a importância dada à

presença do GT na reunião da ANPOLL como promotor de

reconhecimento institucional. Ressalta-se também que os pesquisadores

percebem o processo de criação de uma disciplina como um enfrentamento,

porquanto exista um “poderoso obstáculo” que se coloca contra o avanço

da disciplina, sendo esse obstáculo a inexistência do reconhecimento de um

território estabelecido. Percebe-se que o embate ainda persiste na

atualidade sem alcançar a meta inicial, pois um dos objetivos da atual

coordenação do GTTRAD, conforme descrito em seu plano de trabalho

2006-2008, é “continuar as injunções pela inclusão, como sub-área, da

Tradução no elenco de rubricas da CAPES e do CNPq”. Vale lembrar que

o não reconhecimento por essas instituições de fomento de pesquisa limita

o financiamento e direciona pesquisas, cujos projetos apresentados devem

contemplar abordagens das rubricas reconhecidas por tais órgãos. Além de

negar que os Estudos da Tradução tenham um escopo e métodos próprios,

essa prática confina os resultados a visões parciais e fragmentadas de um

todo complexo.

40

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Entre as diversas atividades realizadas pelo GT visando o

estabelecimento do território, estão as publicações de artigos que mapeiam

e traçam o percurso histórico da disciplina (PAGANO e

VASCONCELLOS, 2003; AZENHA JR, 2006; FROTA, 2007;

MARTINS, 2007). Ao reunir pesquisas dispersas temporal e

geograficamente, esses artigos revelam a robustês da disciplina e

apresentam as ações e os atores envolvidos no processo de reconhecimento

da disciplina.

É nessa apresentação de ações e atores que este trabalho se insere,

descrevendo de que forma os Estudos da Tradução vêm tentando se

estabelecer como disciplina no Brasil, utilizando para tal o arcabouço

teórico de representação dos atores sociais (VAN-LEEUWEN, 1996) e de

ações sociais (VAN-LEEUWEN, 1995).

O artigo tem quatro seções que seguem essa introdução. Na primeira

seção, é apresentado o arcabouço teórico; na segunda, o corpus e a

metodologia; na terceira, a apresentação e a discussão dos dados; e,

finalmente, na quarta seção, são apresentadas as conclusões. Apesar da

indeterminação da consolidação dos Estudos da Tradução como disciplina,

optou-se pelo uso desse termo neste trabalho, uma vez que o objetivo aqui

não é a argumentação pro ou contra a posição dessa área no cenário

acadêmico, tampouco a polemização da validade do termo na organização

do conhecimento, mas, como apontado no parágrafo anterior, investigar o

processo de busca de reconhecimento impetrado por um grupo de pessoas

em um determinado contexto.

1- Arcabouço Teórico

41

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

As seções 1.1 e 1.2 apresentam brevemente o suporte teórico para as

análises deste trabalho. Nessas seções, são apresentadas as categorias mais

amplas do sistema desenvolvido por van-Leeuwen e, para conveniência e

proximidade entre a teoria e os dados, aquelas com traços mais distintos

são explicitadas no decorrer da análise, quando mencionadas pela primeira

vez.

1.1 Representação dos atores sociais

Van Leeuwen (1996), traduzido para o português em 1997, elenca os

modos sócio-semânticos de representação dos atores sociais no discurso em

inglês bem como as suas realizações lingüísticas, ou seja, o autor descreve

as escolhas que a língua inglesa proporciona aos seus usuários para fazer

referências às pessoas. Para tanto, é utilizada “uma série de sistemas

lingüísticos distintos, tanto ao nível léxico-gramatical como ao nível do

discurso, da transitividade, da referência, do grupo nominal, das figuras

retóricas, etc.” (VAN LEEUWEN, 1997:216). Sistemas que, segundo o

autor, os lingüistas tendem a separar, mas que estão envolvidos na

representação dos atores sociais. Mais amplamente aplicada ao inglês, essa

abordagem vem se mostrando produtiva também para análises de textos em

português (GOUVEIA,1997; ASSIS, no prelo, por exemplo).

Na rede de sistemas elaborada por van Leeuwen, estão escolhas entre

categorias maiores, como Exclusão e Inclusão, que apresentam outros

níveis de distinção (delicacy). A Exclusão tem como traços (features) a

Supressão e o Encobrimento, realizadas por elementos lingüísticos

distintos. Já a Inclusão se desdobra por outros traços, como Ativação e

Passivação, Participação, Circunstancialização e Possessivação,

Personalização e Impersonalização, cada traço com outros níveis de

distinção.

42

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

A análise de escolhas lexicais referentes a atores sociais incluídos

revela de que forma essa inclusão ocorre, ou seja, os atores sociais podem

ser personalizados (Personalização) através de pronomes pessoais,

possessivos adjetivos, nomes próprios ou substantivos cujos significados

incluem a característica humana, entre outros recursos; podem também ser

impersonalizados (Impersonalização) através da escolha de substantivos

abstratos ou concretos cujo significado não inclui essa característica.

1.2 Representação de ações sociais

Semelhante à representação de atores sociais, em van Leeuwen

(1995), o autor elenca os modos como as ações sociais podem ser

representadas no discurso em inglês. Seu sistema apresenta distinção entre

Ação/Reação, traço ligado ao sistema de Transitividade da gramática

sistêmico-funcional, sendo que as ações estão relacionadas aos processos

materiais, comportamentais e verbais e as reações aos processos mentais.

Entre outras formas, as ações e as reações podem ser Dinamicizadas

(activated), representadas dinamicamente como processos, ou Estaticizadas

(de-activated), representadas estaticamente, como se fossem entidades ou

qualidades. Se Estaticizadas, elas podem ser Reificadas (objectivated), ou

seja, realizadas por nominalizações com função de sujeito ou objeto na

oração ou como parte de um sintagma preposicionado, entre outras formas,

ou Descriptivadas (descriptivization), representadas como qualidades mais

ou menos permanentes dos atores sociais ou de outros elementos

representados na prática social.

Formas de representação de ações e reações podem revelar as

atribuições de poder ao ator social representado pelo produtor do texto.

Construída a partir de van Leeuwen (1995), a FIG. 1 lista as diferentes

realizações de atribuições de poder aos atores sociais:

43

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

maior poder←-----------------------------------

menor poder-----------------------------------→

reação cognitiva reação afetiva e perceptiva

ação semiótica ação material

ação material transacional ação material não transacional

ação transacional interacional ação transacional instrumental

ação semiótica citação direta (quote) ação semiótica citação indireta (rendition)

comportamentalização da ação semiótica

dinamicização da ação estaticização da ação

agenteficação não-agenteficação

FIGURA 1: Realização de atribuições poder na representação das ações de atores sociais

Leiam-se os itens da FIG. 1 horizontalmente como extremos de

continua, sendo aqueles do lado esquerdo usados na representação de

atores sociais com maior poder, enquanto aqueles do lado direito são

reservados para a representação de atores sociais com menor poder.

2- O Corpus e Metodologia

O QUADRO 1 abaixo mostra a composição do corpus, doravante

ETBRASIL, que totaliza 40.734 palavras. Os oito textos foram reunidos

seguindo dois critérios. O primeiro foi sua disponibilidade em formato

eletrônico na internet e o segundo o fato de tratarem-se de textos que

propõem mapear os Estudos da Tradução, quer em nível nacional, quer

local.

44

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

QUADRO 1Componentes do corpus ETBRASIL

Referência Referência / No. de palavras

AZENHA JR., João “Apresentação”. In: AZENHA JR., João (Org.) Os caminhos da institucionalização dos Estudos da Tradução no Brasil. Disponível em <http://www.letras.ufmg.br/gttrad/Os%20Caminhos%20da%20Institucionalização%20dos%20Estudos%20da%20Tradução%20no%20Brasil.pdf>, 2006. Último acesso 25 fev. 2008.

CAM2482

MARTINS, Márcia A. P “Quatro décadas de tradução na PUC-Rio: 1968-2006” In: AZENHA JR., João (Org.) Os caminhos da institucionalização dos Estudos da Tradução no Brasil. Disponível em <http://www.letras.ufmg.br/gttrad/Os%20Caminhos%20da%20Institucionalização%20dos%20Estudos%20da%20Tradução%20no%20Brasil.pdf>, 2006. último acesso 25 fev. 2008.

CAM11.504

BREZOLIN, Adauri “A institucionalização dos Estudos da Tradução no Brasil: o curso de Letras, Tradutores e Intérpretes do Unibero” In: AZENHA JR., João (Org.) Os caminhos da institucionalização dos Estudos da Tradução no Brasil. Disponível em <http://www.letras.ufmg.br/gttrad/Os%20Caminhos%20da%20Institucionalização%20dos%20Estudos%20da%20Tradução%20no%20Brasil.pdf>, 2006. Último acesso 25 fev. 2008.

CAM31.281

AZENHA JR., João “O Curso de Tradução na Universidade de São Paulo: algumas reflexões sobre seu momento fundador”. In: AZENHA JR., João (Org.) Os caminhos da institucionalização dos Estudos da Tradução no Brasil. Disponível em <http://www.letras.ufmg.br/gttrad/Os%20Caminhos%20da%20Institucionalização%20dos%20Estudos%20da%20Tradução%20no%20Brasil.pdf>, 2006. Último acesso 25 fev. 2008.

CAM44.138

FROTA, Maria Paula “O GT de Tradução da ANPOLL: história e perspectivas” In: AZENHA JR., João (Org.) Os caminhos da institucionalização dos Estudos da Tradução no Brasil. Disponível em <http://www.letras.ufmg.br/gttrad/Os%20Caminhos%20da%20Institucionalização%20dos%20Estudos%20da%20Tradução%20no%20Brasil.pdf>, 2006. Último acesso 25 fev. 2008.

CAM511.892

FROTA, Maria Paula “Um balanço dos Estudos da Tradução no Brasil”. In: Cadernos de Tradução v. 19 – 2007/1. Disponível em:<http://www.cadernos.ufsc.br/online/cadernos19/maria_paula_bastos.pdf>. Último acesso 25 fev 2008.

CT110.074

MARTINS, Márcia A. P “A institucionalização da tradução no Brasil: o caso da PUC-Rio”. In: Cadernos de Tradução v. 19 – 2007/1. Disponível em:<http://www.cadernos.ufsc.br/online/cadernos19/maria_paula_bastos.pdf>. Último acesso 25 fev 2008.

CT25.945

45

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Referência Referência / No. de palavras

PAGANO, Adriana; Vasconcellos, Maria Lúcia “Estudos da tradução no Brasil: reflexões sobre teses e dissertações elaboradas por pesquisadores brasileiros nas décadas de 1980 e 1990.” DELTA vol.19 no.spe São Paulo 2003 Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-44502003000300003&lng=en&nrm=iso> último acesso 25 fev 2008.

PAGVASC5.418

Total de palavras 40.734

Os textos foram explorados com as ferramentas do WordSmith

Tools®, especialmente as ferramentas Wordlist e Concord.

Foi feito um recorte nos sistemas apresentados em van-Leeuwen

(1995, 1996). Do sistema de representação de atores sociais, utilizou-se

apenas a Inclusão e dessa, o traço Personalização / Impersonalização. Do

sistema de representação de ações sociais, utilizaram-se os traços de

Ação/Reação e Dinamização/Estaticização.

Para a classificação da forma de representação dos atores sociais

(Personalização / Impersonalização), foram considerados os itens lexicais

com dez ou mais ocorrências levantados através do Wordlist, devidamente

contextualizados através das linhas de concordância geradas pelo Concord.

Para o levantamento das ações sociais, foram considerados os itens lexicais

identificados como mais representativos dos atores sociais que se colocam

ou são colocados na posição de liderança, a saber: professores,

pesquisadores e tradutores.

3- Apresentação e Análise dos Dados

A lista de freqüência do Wordlist apresenta dados interessantes sobre

os Estudos da Tradução no Brasil. O nome da disciplina se consolidou

como Estudos da Tradução (27 vezes), em oposição à Tradutologia (7

46

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

vezes), designação dada por alguns na década de 1980 e presente no corpus

apenas como referência a algumas obras publicadas nesse período.

“Estudos da Tradução” é usado principalmente em CT1 (20 vezes), mas

também em CAM5 (1 vez), CT2 (2 vezes) e em PAGVASC (4 vezes).

Há um discurso de guerra presente nos textos, revelado pela escolha

de itens lexicais como luta, batalha, enfrentamento, tropas, desfraldar

bandeira, vítima, revolução, como no exemplo 1:

Exemplo 1:

O corpo de pesquisadores, à época ainda incipiente como a própria

disciplina, parecia dividir-se entre duas tropas adversárias: os contra e

os a favor do pós-estruturalismo; caso se desfraldasse a bandeira da

desconstrução, mais acirrado ainda ficava o embate. Como de

costume, talvez uns poucos tenham preferido apenas observar, sem

filiar-se a nenhum dos dois grupos. Aparentemente sem qualquer

vítima fatal, a revolução chegou ao fim, vitoriosa, em meio ao

decênio aqui em foco. Mesmo os mais ingênuos ou empedernidos

essencialistas mudaram, uns mais outros menos, suas concepções

(CT1)

PUC-Rio (76), USP (42), UFMG (30), UFRJ (28), UNIBERO (26),

UFSC (24), UNICAMP (23) e UFRGS (12) são as principais instituições

de afiliação dos atores sociais responsáveis pelo processo de

reconhecimento da disciplina. Os nomes dessas entidades são usados para

identificação da origem dos atores sociais analisados, através de posposição

(exemplo 2) ou pós-modificação (exemplo 3); como circunstância de

localização (exemplo 4); ou como forma de Objetificação, representação

47

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

por meio de uma referência a um local ou coisa diretamente associada ao

ator social representado (Exemplo 5).

Exemplo 2:

..., foram apresentados os já referidos trabalhos de Tania Carvalhal

(UFRGS) e de Lucinda Brito (UFRJ), além de uma exposição de ...

(CAM5)

Exemplo 3:

... , outra integrante do grupo da UFMG, e sucedido pelo volume

organizado por Alves (2001) e intitulado ... (CAM5)

Exemplo 4:

... que foi apresentado por ocasião do XXI ENANPOLL, realizado na

PUC-SP em julho de 2006. A proposta da então Coordenação do

(CAM2)

Exemplo 5

... de outras instituições, brasileiras e estrangeiras, com as quais a

PUC-Rio mantém um produtivo intercâmbio acadêmico. Para o

futuro, (CT2)

A principal forma de representação dos atores sociais é a

Personalização através da Nomeação, referência através de nome próprio,

ou da Funcionalização, referência através do cargo que ocupam. Na

Nomeação, destaca-se, por não ser comum no gênero acadêmico, a

referência ao primeiro nome de pessoas. Entre aqueles com mais de nove

referências estão: Rosemary (19), José (18), Márcia (17), Fábio (15),

48

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Adriana (15), John (13), Célia (11), João (11). Na Funcionalização,

destacam-se os lemas tradutor* (185), professor* (75), pesquisador* (67),

autor* (39) aluno* (34), intérprete* (31), docente* (30), coordenador* (20),

estudios* (15).

Dentre as formas de impersonalização, exemplos 6 e 7, destacam-se

os itens lexicais que compõem os lemas GT* (162, GTS e GTTRAD),

trabalho* (13), grupo* (5), e estudo* (2), além des formas de referência

acadêmica (31), conforme discutido abaixo.Exemplo 6:

s resultados alcançados nesse primeiro biênio, além da decisão do grupo de

manter para o biênio seguinte, 1992-1994, a mesma estrut (CAM5)

Exemplo 7:

ia Paula Frota, nós duas da PUC/RJ. Para dar uma idéia dos temas que

tais trabalhos abordaram, apresento-os a seguir, respectivamente aos

docentes (CAM5)

mais propriamente concernente ao mercado profissional, mesmo

porque os trabalhos acadêmicos, ao refletirem sobre a atividade tradutória

e (CAM5)

Van Leeuwen (1996) não inclui as formas de referência acadêmicas

em seu inventário sócio-semântico, especialmente pelo fato de seu corpus

não incluir textos acadêmicos, portanto decisão nesse sentido teve de ser

tomada, uma vez que esta é uma forma de representação recorrente nos

textos que compõem o corpus desta pesquisa. Conforme a prática no

gênero, a forma mais comum de referência a trabalhos acadêmicos é

através do sobrenome do autor seguido do ano de sua publicação, apesar de

outras formas serem possíveis. Nesta pesquisa, a forma mais comum foi

considerada impersonalização, enquanto aquelas referências com nome

49

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

completo foram consideradas personalização, como nos exemplos 8 e 9

respectivamente:

Exemplo 8:

... pesquisadores brasileiros nas décadas de 1980 e 1990 – ou, como

fez Martins (2005), optar por traçar um ... (CT1)

Exemplo 9

... sugiro a leitura do trabalho de Marcia A. P. Martins (2005), em

particular a seção ‘Os Estu (CT1)

O GRAF. 1 apresenta os dados referentes à Personalização e à

Impersonalização dos atores sociais no corpus ETBRASIL, revelando a

prevalência da primeira como principal forma de representação (79%).

Representação atores sociais em ETBRASIL

76179%

20621%

PersonalizaçãoImpersonalização

50

Gráfico 1: Representação de atores sociais no corpus ETBRASIL

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Dentre as formas de representação dos atores sociais que despontam

como atuantes para o reconhecimento disciplinar, destacam-se GT*,

pesquisador*, e professor*. Vale lembrar que esses são itens lexicais para

referir freqüentemente aos mesmos atores sociais, revelando papéis

desempenhados por eles em momentos distintos, ora como membros do

GT, ora como pesquisadores e ora como professores. Destaca-se também o

lema tradutor*, mas, como discutido mais a frente, eles não desempenham

papel ativo na construção da disciplina, são antes aqueles que se

beneficiarão do seu reconhecimento.

Os pesquisadores e os tradutores são principalmente representados

em grupos (Coletivização), exemplos 10 e 11, em oposição à representação

individual (Individualização), exemplo 12. Os primeiros são coletivizados

em todas as ocorrências; os últimos são coletivizados em 61,6% e

individualizados em 38,4% dos casos. Os professores são coletivizados em

49,3% e individualizados em 50,7%. Esses dados revelam que os atores

sociais na posição de professor ou de professora atuam individualmente,

entretanto prevalece a necessidade de atuação em grupo para alcançarem o

objetivo, especialmente com a formação do GTTRAD, que responde pela

principal forma de representação dos atores sociais em ETBRASIL (162

ocorrências), exemplos 13 e 14.

Exemplo 10:

... o no Brasil, entendida esta releitura do passado como a tentativa de

oferecer aos pesquisadores elementos que possibilitassem uma

melhor visualização das tran... (CAM2)

Exemplo 11:

51

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

... cursos de tradução no Brasil. Os cursos destinados a preparar

tradutores, que começaram a surgir no Brasil a partir do final dos ...

(CT2)

Exemplo 12:

57 onstrar quão importante é a interpretação correta do texto

original pelo tradutor, para que o mesmo possa ser devidamente

compreendido pelo (CAM4)

Exemplo 13:

... o qual, como já era tradição, trazia a programação da reunião de

cada GT e os resumos dos trabalhos a serem apresentados, eram

esperad (CAM5)

Exemplo 14:

... ridade, de modo que o seu lançamento constituiu um êxito. Além

dela, o GT passou a ter uma secretaria com e-mail próprio, o que

também repre (CAM5)

A análise das ações sociais concentrou-se nos lemas pesquisador*,

professor* e tradutor* com o objetivo de analisar que tipo de ação esses

atores sociais desempenham em seus diferentes papéis. Os resultados são

apresentados no GRAF. 2:

52

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Os dados do GRAF. 2 incluem ações/reações dinamicizadas e

estaticizadas e mostram que os professores são aqueles que estão

envolvidos em mais ações ou reações (84), seguidos dos pesquisadores (60)

e dos tradutores (38). Na distribuição de suas ações e reações, os

professores são mais agentes (67), ou seja, Ator, Experienciador,

Comportante, do que pacientes (13), ou seja, Meta, Beneficiário,

Fenômeno, e estão envolvidos em processos de reação (4), exemplos 15, 16

e 17; os pesquisadores são mais agentes (51) do que pacientes (9) e não

estão envolvidos em processos de reação; os tradutores são mais pacientes

(22) do que agentes (14) e estão envolvidos em processos de reação (2).

53

Pesquisadores Professores Tradutores0

51015

202530

354045

5055

606570

758085

Ação e Reação em ETBRASIL

ReaçãoAção: PacienteAção: Agente

Gráfico 2: Ações e reações em ETBRASIL

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Exemplo 15: Professor-Agente

... de e sistemática produção das grandes universidades; no entanto,

vários professores desenvolvem projetos de investigação científica,

individualm... (CAM3)

Exemplo 16: Professor- Ação: Paciente

... lato e stricto sensu está não só formando pesquisadores como

capacitando professores, que muitas vezes vêm atuar nos diferentes

cursos de tradução (CT2)

Exemplo 17: Professor: Reação

... de trabalho, fundarem firmas de tradução” (1996: 431). A

preocupação dos professores do curso em oferecer uma formação

adequada levou a uma nova ... (CT2)

A TAB. 1 demonstra que tanto pesquisadores quanto professores

estão envolvidos em mais ações materiais do que semióticas, exemplos 18

e 19, respectivamente. 98% das ações dos pesquisadores são materiais e 2%

semióticas; 95,5% das ações dos professores são materiais e 4,5% são

semióticas.

Exemplo 18:

... o tradutor e professor Paulo Rónai e foi, mais uma vez, organizado

pela professora Maria Candida Bordenave e demais docentes da

área de tradução (CT2)

Exemplo 19

... contando com pesquisadores de outras áreas que haviam sido

convidados pela professora Candida. Devido a uma orientação da

diretoria da Anpoll, que não (CAM5)

54

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

As ações materiais subdividem-se em transacional e não-

transacional. No primeiro tipo, a ação do processo é estendida a outro

participante (exemplo 20), enquanto no segundo a ação fica restrita ao

processo (exemplo 21). Das ações materiais dos pesquisadores, 70% são

transacionais e 30% não-transacionais; das ações materiais dos professores,

76,6% são transacionais e 23,4% não transacionais.

Exemplo 20

... no mapeamento publicado e a fragmentação dos critérios que

cada pesquisador parece ter utilizado para fazer sua indicação

revelam ... (PAGVASC)

Exemplo 21

... avanço relativo de nossa área, pôde contar com várias dezenas de

pesquisadores que se reuniram durante três dias para discutir a

situação... (CAM5)

TABELA 1Tipos de ação em ETBRASIL

Tipos de açãoSemiótica Material

Pesq. Prof. Pesq. Prof.2% (1)

4,5% (3)

98% (50) 95,5% (64)

Transacional Não Transacional

Transacional Não Transacional

70% (35) 30% (15) 76,6% (49) 23,4% (15)

Intera-cional

Instru-mental

5,8% (2)

94,2%(33)

Intera-cional

Instru-mental

0 100%(49)

55

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

As ações transacionais subdividem-se em interacional e instrumental.

A ação do processo é estendida a um participante humano no primeiro tipo

(exemplo 22) e a um participante não-humano no segundo (exemplo 20,

acima). Das ações transacionais dos pesquisadores, 94,2% são

instrumentais e 5,8% interacionais; todas as ações transacionais dos

professores são instrumentais.

Exemplo 22:

... da professora Maria Cândida Bordenave, que, com sua equipe, ...,

foi coordenadora da área durante quase 30 anos, formou várias

gerações de tradutores e teve... (CAM1)

4 – Conclusões

Não é possível afirmar se a forma que professores

/pesquisadores/tradutores atuam, se auto representam e são representados

na busca de reconhecimento dos Estudos da Tradução como disciplina no

contexto brasileiro é adequada ou não, mas pode-se dizer que há interesses

tanto no reconhecimento da disciplina quanto dos seus próprios esforços,

haja vista a opção pela inclusão através da nomeação. A adoção do discurso

de guerra indica a escolha pelo enfrentamento, mas chama a atenção que os

opositores são excluídos. Seguindo a forma de realização da distribuição de

poder aos representados, é interessante notar que as ações dos professores-

pesquisadores são daqueles com menor poder, não estendendo suas ações

às pessoas.

56

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Espera-se que este trabalho contribua para reflexão e sirva como base

de avaliação do percurso daqueles em posição de liderança na criação da

disciplina.

5- Referências

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

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VENUTI, Lawrence (Ed.) The translation studies reader. New York: Routledge, 2000.

58

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

A glória de uns e o domínio de outros: sobre relações de poder na prática da linguística.

Carlos A. M. Gouveia16

(FLUL/ILTEC)

“When we study human language, we are approaching what some might call the "human essence," the distinctive qualities of mind that are, so far as we know, unique to man.”

Noam Chomsky, Language and Mind

“Language serves essentially for the expression of thought.”

Noam Chomsky, Language and Responsibility

1. Introdução

De base discursiva, foucauldiana e faircloughiana (Foucault, 1971 e

1980; Fairclough 1992 e 2003), esta comunicação busca desconstruir

analiticamente processos de naturalização de práticas de produção de

significados hegemónicos no discurso da ciência linguística, aqui visto não

só como locus de poder e de dominação, mas também como um discurso de

silenciamento de teorias e de paradigmas de conhecimento.

O carácter histórico e material do discurso encontra-se amplamente

debatido, descrito e documentado em publicações que, por exemplo, vão

desde a sociologia até à análise do discurso, passando pela filosofia e a

psicologia sociais. Embora esta seja uma comunicação que, pessoalmente,

gostaria de classificar como de linguística, o que acabo de afirmar sobre o

objecto de estudo que a mesma convoca - o discurso - confirma que este

não é, como tal, exclusivo da linguística, sendo que, para alguns linguistas,

todavia, não será sequer objecto de estudo da ciência que praticam. Matéria

interessante esta, mas, em abono da verdade, nem a questão das relações

16 Professor assistente da FLUL, coordenador de investigação e investigador do ILTEC.

59

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

disciplinares difíceis entre diferentes áreas do saber é nova, nem a

linguística detém o exclusivo de ser a única ciência a considerar fora da sua

definição disciplinar essencial tudo o que se situa nas margens do núcleo

fundamental do corpo de conhecimentos que tradicionalmente invoca.

Ainda assim, veja-se, a título de exemplo, a definição de linguística na

Wikipedia (http://en.wikipedia.org/wiki/Linguistics):

Linguistics is the scientific study of language. General (or theoretical) linguistics encompasses a number of sub-fields, such as the study of language structure (grammar) and meaning (semantics). The study of grammar encompasses morphology (formation and alteration of words) and syntax (the rules that determine the way words combine into phrases and sentences). Also part of this field are phonology, the study of sound systems and abstract sound units, and phonetics, which is concerned with the actual properties of speech sounds (phones), non-speech sounds, and how they are produced and perceived.Linguistics compares languages (comparative linguistics) and explores their histories to find universal properties of language and to account for its development and origins (historical linguistics). Applied linguistics puts linguistic theories into practice in areas such as foreign language teaching, speech therapy, translation, and speech pathology. Someone who engages in this study is called a linguist.

O que é relevante nesta definição é, em primeiro lugar, a

caracterização da disciplina como ciência - “linguistics is the scientific

study of language” -, e a pressuposição de que estudos não científicos não

serão linguística; em segundo, a indistinção entre linguística geral e

linguística teórica - “General (or theoretical) linguistics encompasses...”;

em terceiro, a afirmação de que a linguística engloba pelo menos duas sub-

áreas, o estudo da estrutura e o estudo do significado - “encompasses a

number of sub-fields, such as the study of language structure (grammar)

and meaning (semantics)” -, sendo que apenas as sub-áreas da sub-área

estudo da estrutura são referidas: morfologia, sintaxe, fonologia e fonética;

e, em quarto lugar, a implicitação de que o estudo da estrutura é linguística

(geral ou teórica) e o resto ou é linguística comparada, linguística histórica

60

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

ou linguística aplicada - “Linguistics compares languages (comparative

linguistics)...”; “explores their histories to find universal properties of

language... (historical linguistics)”; “Applied linguistics puts linguistic

theories into practice...”.

O que o exercício do olhar sobre a realidade definidora desta

disciplina permite justificar, seja essa realidade a da Wikipedia, seja a de

um qualquer instrumento definidor produzido por e valorizado no mundo

académico e científico, é que nenhum discurso pode advogar a produção de

verdades independentemente das contingências do momento histórico e da

estrutura ideológica que motivam a sua produção. Daí que o discurso,

enquanto objecto de estudo científico, não seja também ele independente e

isento das influências e contingências da produção de verdades próprias do

discurso da disciplina que como tal, i. e., como objecto de estudo, o

constitui. Ou seja, todo o discurso, seja ele prática sócio-institucional e

material, seja ele objecto de estudo e idealização abstracta, é fenómeno

potenciador da criação, instauração e manutenção dos chamados regimes

de verdade.

2. A supremacia mentalista

Os regimes de verdade, no dizer foucauldiano, sistemas de poder

alimentados por mecanismos de produção e de manutenção de “verdades”,

são regimes fundamentalmente discursivos que configuram todo o discurso

como sendo um regime de verdade em si mesmo. A verdade, enquanto

produto de tal política regimental, é, para Foucault, caracterizada por cinco

traços fundamentais (Foucault, 1980: 131):

In societies like ours, the "political economy" of truth is characterised by five important traits. "Truth" is centred on the form of scientific discourse and the institutions which produce it; it is subject to constant economic and political incitement (the demand for truth, as much for economic production as for political power); it is the object, under

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

diverse forms, of immense diffusion and consumption (circulating throughout apparatuses of education and information whose extent is relatively broad in the social body, notwithstanding certain strict limitations); it is produced and transmitted under the control, dominant if not exclusive, of a few great political and economic apparatuses (university, army, writing, media); lastly, it is the issue of a whole political debate and social confrontation ("ideological" struggles).

Acresce a estas características apontadas por Foucault o facto de a

verdade ter um cunho fundamentalmente discursivo que não se reestringe à

sua caracterização como estando centrada na forma de discurso científico.

A estimulação económica e política, a difusão e o consumo, o controlo

político e económico, o confronto político e social, enquanto factores de

caracterização da “verdade”, são também de natureza discursiva.

No caso do discurso científico da linguística moderna, o regime de

verdade instaurado pela insistentemente chamada revolução chomskyana

(Searle, 1972; Smith & Wilson, 1979) tem sobrevalorizado a realidade

mental da língua por oposição à sua realidade social e material como um

pressuposto teórico fundamental. Como afirma Beaugrande (1998: 765):

“In the discourse of 'modern' linguistics, the question of whether the

'reality' of language is mental, material, or social has been evaded by a

performative campaign to replace real language with ideal language and to

short-circuit mental with material whilst bypassing the social basis of

language.” No dizer de Chomsky (1965: 4), “linguistic theory is

mentalistic, since it is concerned with discovering a mental reality

underlying actual behaviour.” Nesse sentido, explicita Chomsky,

“mentalistic linguistics is simply theoretical linguistics that uses

performance as data (along with other data, for example, the data provided

by introspection) for the determination of competence, the latter being

taken as the primary object of its investigation.” (idem: 193).

62

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Ao longo de toda a segunda metade do século XX e até hoje, a

linguística chomskiana tem descurado o facto inquestionável da conexão

essencial entre a linguagem e a comunicação e a hipótese teórica de que na

evolução da pré-história e da história humana as necessidades da

comunicação influenciaram e determinaram a estrutura da linguagem. É

óbvio que a teoria linguística chomskiana não é hoje o que era há

cinquenta, quarenta ou até mesmo dez anos atrás. Podemos, como faz John

Searle (2002), achar que a revolução não teve sucesso, a julgar pela

constante redefinição e alteração de alguns dos pressupostos e dos

objectivos da teoria inicial e dos programas sucessivos, mas o que é certo é

que a influência original se mantém e o silenciamento de outras

perspectivas de entendimento da linguagem human continua activo:

Judged by the objectives stated in the original manifestoes, the revolution has not succeeded. Something else may have succeeded, or may eventually succeed, but the goals of the original revolution have been altered and in a sense abandoned. I think Chomsky would say that this shows not a failure of the original project but a redefinition of its goals in ways dictated by new discoveries, and that such redefinitions are typical of ongoing scientific research projects.

É no mínimo curioso que Searle use a expressão projecto de

investigação em curso para designar aquilo que vem acontecendo na

ciência linguística há mais de cinquenta anos e que tem sistematicamente

impossibilitado o acesso aos mecanismos de produção, difusão e consumo

de “verdades” de toda e qualquer teoria contrária aos princípios

mentalistas. A revolução aconteceu e por muito que se alterem

pressupostos ou objectivos, a filosofia da mesma mantém-se, como se

mantém o regime de verdade que caracteriza a língua como uma realidade

meramente mental e a linguística como um ramo da psicologia, como

defende Chomsky em várias publicações, nomeadamente em Language

and responsibility (1979: 43): “In my opinion one should not speak of a

63

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

"relationship" between linguistics and psychology, because linguistics is

part of psychology”, ou a sua caracterização como uma área fundamental

da ciência cognitiva, a par com ciências tão diversas como a referida

psicologia, a filosofia, a neurociência, a antropologia, a ciência da

computação ou a biologia.

3. Processos de naturalização

O discurso científico encontra-se abundantemente estudado e várias

são as características que lhe têm sido apontadas, desde o elevado teor de

nominalizações e de metáforas gramaticais, a elevada densidade lexical,

por vezes associada a um reduzido intrincamento gramatical, o elevado teor

de especialização terminológica, o pendor abstracto dos processos de

transitividade, até ao elevado grau de estruturas impessoais ou

impessoalizantes, como a passiva sem agente, orações não-ergativas ou

orações de sujeito indeterminado ou impessoal. São precisamente muitas

dessas estruturas, características fundamentais do registo escrito do

discurso científico, que servem muitas vezes o silenciamento de teorias e

de paradigmas de conhecimento.

Veja-se, a título de exemplo, no fragmento seguinte, retirado da

página de apresentação de uma unidade de Investigação e Desenvolvimento

da área da Línguística, o uso de duas construções com um Comentário

Tematizado nominalizado cada, isto é, com uma inversão na ordem natural,

não-marcada, dos constituintes funcionais da oração, por forma a colocar

em posição proeminente o comentário (normalmente um processo de

adjectivação, mas neste caso uma nominalização) que se pretende veicular

e que naturalmente ocorreria no final da oração:

Constituem preocupações estruturantes da investigação desenvolvida a exploração de abordagens experimentais e a aplicação do conhecimento fundamental em vários domínios, designadamente em

64

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

domínios interdisciplinares como a Linguística Educacional, a Linguística Clínica, a Linguística Computacional, a Linguística Forense e a Aquisição e Desenvolvimento da Língua. É igualmente preocupação fundamental de [nome de Unidade de I&D] a utilização dos resultados da investigação linguística na produção de instrumentos de normalização linguística.

Note-se que em ambas as construções, em que são usadas sessenta e

quatro palavras, estamos perante apenas duas orações, uma por

construção/período, o que corresponde uma forte densidade lexical, e que o

Sujeito de cada uma das orações é o constituinte que surge em último lugar

(“”a exploração de abordagens... desenvolvimento da Língua”, no primeiro

caso, e “ a utilização dos resultados da investigação linguística na produção

de instrumentos de normalização linguística”, no segundo). Os valores de

densidade lexical elevados devem-se sobretudo à complexidade dos quatro

constituintes funcionais que orbitam em torno dos dois verbos usados

(constituir e ser), todos eles tendo na origem estruturas verbais (processos)

submetidas a princípios de nominalização. Note-se ainda o alto pendor

asbstracto das quatro nominalizações: “preocupações estruturantes da

investigação desenvolvida”; “a exploração de abordagens experimentais e a

aplicação do conhecimento fundamental...”; “preocupação fundamental

de...”; “a utilização dos resultados da investigação...”.

A nominalização, na perspectiva que aqui estou a considerar, é a

conversão, em Nome e Sujeito de uma oração (ou Complemento, por

vezes), de uma estrutura extremamente complexa em que várias processos

são compactados e naturalizados, e, como tal, tornados inquestionáveis.

Este último aspecto da nominalização é por demais visível no exemplo a

seguir, retirado de um texto publicado num semanário nacional: “A

gravidade de atitudes como a do [nome de pessoa], pesporrentas,

desinformadas e alheias a qualquer reflexão sobre o ensino da língua

materna e a formação de professores no contexto das novas exigências da

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

sociedade do conhecimento e do estado actual de conhecimentos sobre o

processo de aquisição e desenvolvimento da língua materna e sobre as

bases neurobiológicas e os processos psico-linguísticos que suportam os

seus usos”. Repare-se que o que temos aqui é apenas o Sujeito de uma

oração cujo verbo vem a seguir: “reside em pretenderem abrir clivagens

artificiais entre especialistas com formações cuja complementaridade na

formação inicial e contínua de professores de Português ninguém nega (a

não ser o [nome de pessoa]).”

Tal nominalização contém em si vários processos em que o carácter

mental da língua é naturalizado, sendo que o mais determinante deles

afirma não a importância do conhecimento sobre os usos da língua

(conhecimento por demais importante para o ensino da língua materna,

matéria em causa na asserção) mas a importância do conhecimento sobre as

bases neurobiológicas e os processos psico-linguísticos que suportam os

usos da língua materna. Uma construção como esta não deixa espaço para

contra-argumentação, isto é, enquanto interlocutores temos apenas a

possibilidade de contradizer a afirmação “reside em pretenderem abrir

clivagens” e não a possibilidade de questionar a existência, a qualidade e a

validade do conhecimento invocado na nominalização.

Não deixa de ser estranho que neste exemplo de nominalização sejam

invocadas as “novas exigências da sociedade do conhecimento” e que do

ponto de vista da produção de conhecimento científico em linguística nada

seja dito sobre o conhecimento de e a investigação sobre as novas literacias

que tais exigências potenciam e sobre as questões sociais do uso da língua,

e se valorize ao invés o conhecimento das estruturas da mente, isto é, as

bases neurobiológicas e os processos psico-linguísticos.

Poderemos dizer que o que motiva esta leitura é apenas o despeito ou

o complexo de inferioridade de alguém que vê no paradigma de

conhecimento dominante em linguística algo que ele paradigma dominante

66

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

não tem, mas isso é o mesmo que um lisboeta dizer que quando as pessoas

do Porto se queixam do centrismo das pessoas de Lisboa tudo não passa de

despeito e de complexo de inferioridade. É preciso ser-se do Porto (e eu

não sou do Porto, frise-se) para se perceber o que está em causa na

“disputa” Lisboa vs. Porto. De facto, nessa disputa só as pessoas do Porto é

que têm sotaque, as pessoas de Lisboa não têm; só o Futebol Clube do

Porto e o Boavistas é que são regionais, isto é, do Porto, o Benfica, o

Sporting ou o Belenenses são nacionais; o magnífico dia de sol do Porto é

irrelevante face aos chuviscos de Lisboa transformados em “nacionais”

pela rádio e a televisão, cuja estações de emissão se encontram em Lisboa.

Para um Lisboeta nada disto faz sentido, porque nada disto é relevante, de

tão naturalizado que está, mas para uma pessoa do Porto isto faz parte do

seu quotidiano, da sua realidade identitária. Daí que classificar esta disputa

como “síndrome da segunda cidade do país” seja no mínimo ofensivo e que

só as pessoas de Lisboa a classifiquem como tal.

O mesmo se passa na linguística e em tantas outras ciências em que

dois pontos de vista distintos sobre o mesmo objecto de estudo possibilitem

diferentes sistemas de procedimentos ordenados para a produção,

regulação, distribuição, circulação e operação de asserções fundamentais

(Foucault, 1980). Por exemplo, dizer que o paradigma dominante nos

estudos linguísticos não nega o carácter social e material da língua não é

argumento contra uma qualquer acusação de domínio de uma visão

mentalista ou cognitivista. Dizer que o paradigma dominante nos estudos

linguísticos reconhece a validade do conhecimento produzido noutras áreas

com as quais não partilha metodologias de constituição e leitura do objecto

de estudo não é argumento contra uma qualquer acusação de discriminação.

Como em todas as relações estruturais de dominação, discriminação, poder

e controlo, o que urge trazer à luz do dia não são apenas as suas

manifestações transparentes e eventualmente assumidas como tal, são as

67

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

suas manifestações naturalizadas, ou seja, aquelas que são dadas como

fazendo parte da natureza intrínseca da realidade e que, como tal, são

relativamente opacas nessa sua manifestação. Em função de tais

pressupostos, urge, portanto, descrever tanto os processos e estruturas

sociais (universidades, cursos, centros de investigação, editoras) que levam

à produção de conhecimento linguístico e à sua disseminação, como dos

processos e estruturas sociais em que os indivíduos ou grupos, enquanto

cientistas, indivíduos históricos, na sua interacção com textos, criam

significado (publicações, congressos, resultados de investigação, etc.).

Como já tive oportunidade de referir em outro contexto (Gouveia,

2006), os encontros nacionais da APL-Associação Portuguesa de

Linguística, assim como as duas únicas licenciaturas de linguística

existentes no nosso país têm servido a manipulação e o controlo, tal o

domínio da linguística mentalista ou cognitiva, sendo que “os linguistas

portugueses pouco ou nada têm contribuído para o verdadeiro ensino da

Linguística no nosso país, se por Linguística entendermos, como eu

entendo, multiplicidade disciplinar e diversidade teórico-metodológica.”

(idem: 430). No panorama de desenvolvimento da linguística em Portugal,

o domínio do Departamento de Linguística Geral e Românica (DLGR) da

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde a influência das

ideias de Chomsky primeiro se fez sentir e se tem mantido constante, tem

sido determinante para a difusão e hegemonização do paradigma

mentalista, ao contribuir para a formação, nos diferentes níveis, de um

vasto número de linguistas. Para além de ser, no país, o departamento que

mais linguistas congrega e que, portanto, maior produtividade apresenta em

termos de produção de dissertações de mestrado e de doutoramento, o

DLGR tem ainda tido papel activo na Associação Portuguesa de

Linguística, ao nível da sua direcção. Sintomaticamente, a produção que

em linguística se tem vindo a registar nas áreas da análise do discurso, da

68

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

pragmática, da linguística textual ou de teorias funcionalistas de descrição

gramatical tem sido feita à margem da investigação produzida pelo DLGR,

em departamentos da Universidade do Porto, da Universidade de Aveiro,

da Universidade Nova de Lisboa, ou até em outros departamentos da

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, como o Departamento de

Estudos Anglísticos e o Departamento de Estudos Germanísticos. Nestes

dois últimos casos, temos um modelo relacional de saberes semelhante ao

que encontramos um pouco por toda a Europa, em que o paradigma de

conhecimento mentalista ou cognitivo é fundamentalmente dominante em

departamentos de linguística da língua materna, mas não necessariamente

em departamentos de línguas estrangeiras.

Do ponto de vista da investigação e da apresentação de resultados de

investigação, os encontros nacionais da APL têm sido ao longos dos anos

uma importante fonte de disseminação e hegemonização do conhecimento

linguístico de cariz cognitivo. Isso foi sempre patente não só nas sessões de

comunicações seleccionadas, mas fundamentalmente nas sessões plenárias,

a cargo de linguistas convidados. Para a questão que me interessa aqui é

fundamentalmente importante a conferência plenária final do XIX

Encontro Nacional, em 2003, intitulada “O problema da unificação em

Linguística: a resposta generativista”, da autoria de Inês Duarte, em que se

constrói como divergência o que é convergência e como crítica o que é

resultado de “redefinitions” e “new discoveries”, para usar as palavras de

Searle de há pouco (Searle, 2002). Curiosamente, o que está em causa neste

texto não é o problema da unificação da linguística, isto é, da unificação

numa só disciplina, num só paradigma de conhecimento, de uma visão da

língua tanto como realidade mental como realidade social. Não é, portanto,

a problemática da unificação da linguística, mas da unificação em

linguística, querendo com isso dizer que “o programa de investigação

generativista, em particular na formulação iniciada nas Rules and

69

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Representations, de 1980, e nas Lectures on Government and Binding, de

1981, bem como nas sucessivas reformulações teóricas sofridas desde

então, constitui a primeira resposta promissora ao problema da unificação

interna ao campo da Linguística.” (Duarte, 2004: 27).

A unificação é, neste caso, a unificação de uma teoria, de um

paradigma, de um regime de verdade, esquecendo que outros existem e

reforçando o carácter mental da língua: “A trave-mestra da resposta

unificada proposta pelo programa generativista é a teoria selectiva da

aquisição a que já me referi, a qual, de resto, só é possível pela mudança do

foco da investigação para o sistema mental que subjaz à nossa actividade

de falantes, mudança que caracterizou o programa desde quase o seu

início.” (idem: 31).

4. Implicações

Repare-se que o que está aqui em causa não é a contestação ou a

negação da validade do conhecimento produzido naquele que se apresenta

como paradigma dominante nos estudos linguísticos, como não está em

causa a qualidade do trabalho dos linguistas, portugueses ou de outras

nacionalidades, que têm contribuído para o seu desenvolvimento. Como

refere John Searle num dos artigos que já citei (Searle, 1972), não há

dúvida de que o trabalho de Noam Chomsky sobre a natureza da linguagem

humana produziu um avanço ímpar no desenvolvimento do conhecimento

em linguística. Não é essa asserção e outras com ela relacionadas que está

em causa; o que está em causa é o silenciamento e a discriminação que o

trabalho nesse paradigma tem potenciado, pela imposição, ainda que não

consciente em alguns casos, mas premeditada em outros, de um regime de

verdade nas várias estruturas da vida institucional, académica e de

investigação, de que é exemplo e, nesta apresentação, exemplo final, o

70

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

financiamento de projectos de investigação pelas agências financiadoras,

como é o caso da Fundação para a Ciência e Tecnologia, em Portugal.

No Concurso Para Projectos de Investigação em todos os Domínios

Científicos – 2006, o último que a FCT abriu, foram submetidos para

avaliação 26 projectos no domínio científico da linguística. Desses foram

propostos para financiamento 12 projectos, e recusados 14, por um júri

internacional coordenado por Greg Carlson (“Professor, Linguistics, Brain

& Cognitive Sciences and Philosophy”, como o próprio se identifica na sua

página pessoal) e composto ainda por Louise McNally e Georg A. Kaiser.

Como se diz no edital do concurso

(http://alfa.fct.mctes.pt/apoios/projectos/#como_sao_avaliadas): “A

avaliação das candidaturas a projectos de investigação é efectuada por

painéis de avaliadores independentes, envolvendo peritos nacionais e

estrangeiros de reconhecido mérito e idoneidade, constituídos para cada

concurso, por área científica, e compostos por um mínimo de três

elementos.”

Quais os critérios que levaram a que a constituição de um júri

supostamente independente apenas contemplasse linguistas do mesmo

paradigma de conhecimento e da mesma área disciplinar, sintaxe e

semântica, é algo de difícil compreensão para quem favorece princípios de

isenção e transparência neste tipo de avaliações. Sem qualquer comentário

relativamente a este concurso, à qualidade dos projectos submetidos, ao

teor desses mesmos projectos ou aos investigadores e às instituições

responsáveis pelas suas candidaturas, deixem-me só listar os títulos de cada

um dos projectos incluídos nos dois grupos, os 12 propostos para

financiamento e os 14 recusados. Note-se como, para além do denominador

comum aprovados, num caso, e reprovados, no outro, os projectos de cada

um dos grupos parecem ter outros denominadores comuns: com excepção

do projecto CARDS-Cartas Desconhecidas, do primeiro grupo, e dos

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projectos Dicionário de Sufixos do Português (DISPOR) e Formalização

do Português, do segundo grupo, todos os restantes projectos se enquadram

ou nos pressupostos de uma linguística de cariz formalizante, sistémico e

de pendor cognitivo, ou nos pressupostos de uma linguística de cariz

antropológico e social, de descrição do uso. Nos termos chomskianos, os

projectos aprovados favorecem o estudo da língua-I, os recusados o da

lingua-E. Ao serviço da separação entre os projectos e, consequentemente,

à glória de uns e ao infortúnio dos outros encontra-se uma das

características fundamentais do discurso científico atrás referidas: o

elevado teor de especialização terminológica e o pendor abstracto das

formulações dos títulos dos projectos aprovados.

Projectos AprovadosAnalisador Morfológico SemânticoAquisição do Português Europeu: recursos e resultados linguísticosCARDS-Cartas DesconhecidasCompreensão na leitura. Processamento de palavras, frases e textos.Constituintes Silenciosos na Gramática do PortuguêsDicionário ortográfico e de pronúncias do português europeuDUPLEX - Duplos e Expletivos na Sintaxe Dialectal do Português EuropeuLEXICON - Dicionário de Grego-PortuguêsO tempo e o modo em portuguêsPadrões de Frequência na Fonologia do Português - Investigação e AplicaçõesPredicados complexos: tipologia e anotação de corpus (PREPLEXOS)TAPA-PE - Teste de Avaliação da Produção Articulatória em Português Europeu

Projectos RecusadosA Estrutura Idiomática da Língua PortuguesaBibliotecas e literacia, imaginários e identidades em sociedades de fronteira: Guarda e Castelo BrancoConvergência e Divergência entre o Português Europeu e o Português BrasileiroDesenvolvimento de competências linguísticas e metalinguísticas em contexto multiculturalDicionário de Sufixos do Português (DISPOR)Ex-votos do Alentejo: um estudo linguístico, portal para o cidadão

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Formalização do PortuguêsFormas de tratamento em português europeuMudanças Linguísticas em curso em Alunos do Ensino SuperiorNomes vulgares da fauna e flora dos AçoresObservatório de Neologia do Português – ONPOs repertórios de gestos emblemáticos nas comunidades de língua portuguesa: Portugal e PALOPPastiGe - Pastiche (d)e Géneros de textoTextos, Turistas e interculturalidade na experiência turística em Portugal

5. Conclusão

Como é óbvio, qualquer princípio de categorização tem por detrás

uma ideologia do assunto que gera essa categorização. Para alguns

linguistas, colegas meus, a enunciação da existência de uma dualidade

paradigmática no seio da linguística, assimetricamente constituída no

acesso aos sistemas de oportunidade e de poder, será algo que está longe de

corresponder a uma descrição factual da panorama da ciência linguística, e

apenas motivações ideológicas poderão explicar a insistência com que falo

deste assunto, esquecendo eles e elas que a sua própria posição sobre o

assunto também é ideologicamente motivada. Mas motivação ideológica

por motivação ideológica, eu pessoalmente prefiro a ideologia da

pluralidade e da diferença, pois considero que o conhecimento progride

mais por diferenciação e confronto do que por hegemonização de práticas e

pressupostos.

Nesse sentido, com o exemplo dos projectos de investigação, como,

aliás, com o exemplo dos cursos de licenciatura e das publicações, o que

prentendi demonstrar foi o modo como, uma vez instaurado, um regime de

verdade se encontra em constante exercício de hegemonização e de

controlo, mesmo que muitas vezes esse controlo esteja fora do seu domínio

directo. Mas aí, mais do que teórica, a questão é política, ou melhor, é do

domínio das políticas das teorias, e sobre isso já falei num outro contexto.

73

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

ReferênciasBeaugrande, R. de (1998): Performative speech acts in linguistic theory: The rationality

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Press.Chomsky, N. (1968): Language and Mind. New York: Harcourt Brace Jovanovich, Inc.Chomsky, N. (1979): Language and Responsibility. New York: Pantheon Books.Duarte, I. (2004): O problema da unificação em Linguística: a resposta generativista.

Actas do XIX Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, Lisboa, 2003. Lisboa: APL, pp. 25- 44.

Fairclough, N. (1992): Discourse and Social Change. Cambridge: Polity press.Fairclough, N. (2003): Analysing Discourse: Textual Analysis for Social Research.

London: Routledge.Foucault, M. (1971): L’ordre du discours: Leçon inaugurale au Collège de France

prononcée de 2 décembre 1970. Paris: Gallimard.Foucault, M. (1980): Power/Knowledge: Selected Interviews and Other Writings, 1972-

1977. Ed. by C. Gordon. New York: Pantheon Books.Gouveia, C. A. M. (2006): A linguística e o consumidor: teoria, política e política da

teoria. Actas do XXI Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, Porto, 2005. Lisboa: APL, pp. 427- 433.

Searle, John R. (1972): Chomsky Revolution in Linguistics. New York Review of Books, 18 (12 ), 29 de Junho.

Searle, John R. (2002): End of the Revolution. New York Review of Books, 49 (3 ), 28 de Fevereiro.

Smith, N. & Wilson, D. (1972): Modern Linguistics The Results of Chomsky's Revolution.Harmondsworth: Penguin Books.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Espaços de verdade. A partir de Michel Foucault.Ricardo Julião

No ano lectivo de 1973-1974 Foucault ministra um curso no Collège

de France com o título Le Pouvoir Psychiatrique durante o qual procura

executar uma arqueologia do saber psiquiátrico e uma genealogia tanto da

prática disciplinar, quanto da instituição hospitalar psiquiátrica. No decurso

dessa análise, mais precisamente na aula de 23 de Janeiro de 1974,

Foucault faz um desvio no seu excurso para realizar uma pequena história

da noção de verdade, “Alors, là, je voudrais ouvrir une parenthèse et insérer

une petite histoire de la vérité en général”.17 É sobre o conteúdo

apresentado nesse parêntesis que o nosso texto irá incidir. Gostaríamos de

apresentar como hipótese de trabalho que a distinção realizada pelo autor

entre verdade-demonstração e verdade-acontecimento poderá ter um papel

operativo para a filosofia da ciência ao realizar uma genealogia e

arqueologia das modalidades, espaços e actores legitimamente

reconhecidos para proferirem enunciados científicos verdadeiros.

Com este desvio, Foucault procurou inventariar duas séries da

história da verdade no pensamento ocidental de modo a tornar visível a

trama, e espessura, existente entre um regime de investigação científico,

anónimo e universal, e por outro lado, um regime experiencial, singular e

contextual, caracterizado por rituais específicos de produção de verdade.

De modo a melhor visualizar o seu contributo para a epistemologia e

história da ciência, começaremos por ilustrar quais as correntes

epistemológicas contemporâneas mais significativas na abordagem ao

problema do conhecimento e da verdade.

17 Foucault, Michel; Le Pouvoir Psychiatrique; Cours au Collège de France. 1973-1974, p. 233, Paris, ed. Seuil/Gallimard, 2003.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

O problema do conhecimento é um tema central no pensamento

filosófico. A tradição filosófica considera o desejo de conhecer uma

característica constitutiva do ser humano, Aristóteles enuncia-o logo no

primeiro livro da sua Metafísica. Esse desejo não é um problema, o

problema surge quanto ao estatuto do conhecimento e no modo correcto de

o adquirir. A partir dessa problemática diferentes questões se levantam. Por

um lado a questão do estado cognitivo adequado ao estatuto do

conhecimento, por outro a questão do conteúdo do que é conhecido. Em

ambas atitudes existe a pressuposição de base de uma correlação natural

entre o sujeito e o conhecimento. No primeiro caso é colocado na primeira

linha de investigação a questão da crença e convicção do estado cognitivo

do sujeito, no segundo é trazido para a linha da frente a questão do

conteúdo de verdade: depende este do estado cognitivo do sujeito ou é uma

característica objectiva independente do sujeito? Dentro destas duas

grandes linhas de investigação vários matizes foram surgindo, dos quais

podemos salientar como centrais na epistemologia contemporânea sobre a

questão da verdade, os seguintes: uma linha de investigação comummente

designada de teoria da verdade como correspondência, uma outra definida

como coerentista e uma última de orientação pragmática. Sintetizemos um

pouco cada uma delas. De salientar que nenhuma destas posições coloca

em causa a natural adequação entre o sujeito de conhecimento e o próprio

conhecimento, isto é, a existência de um desejo e intimidade natural entre

sujeito e conhecimento.

A posição epistemológica que considera a verdade como

correspondência parte do suposto da existência de um mundo independente

do sujeito ao qual se pode ter acesso através de juízos que ligam os

conceitos à realidade. A actividade central nesta concepção é o juízo. A

rectidão do juízo na relação que este estabelece entre os conceitos e o

mundo determina o conteúdo de verdade do que é conhecido. Por outro

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

lado, na concepção de verdade coerentista o elemento central é a estrutura

lógica dos enunciados e a relação que é estabelecida entre cada enunciado

de uma proposição, ou conjunto de proposições, de cariz científico. A

coerência e consistência interna do conjunto de enunciados geram a

verdade das proposições. Por último, a versão pragmatista da verdade

caracteriza-se pela capacidade operativa e utilitária desta: são verdadeiros

os conteúdos, ou enunciados, que satisfação as expectativas que se

encontrem em apreço numa determinada linha de investigação. Tanto na

posição coerentista quanto pragmatista da verdade, a existência de uma

realidade independente do sujeito não é um problema central, visto o

conteúdo de verdade do conhecimento não depender da independência

desta relativamente a este.18

Por outro lado, e numa direcção distinta, Foucault distingue o desejo

natural de conhecimento da vontade de saber. Recuperando algumas das

afirmações de Nietzsche, onde este considera o conhecimento não tanto um

instinto natural do ser humano assente numa afinidade electiva entre sujeito

e conhecimento, mas antes como um epifenómeno resultante do confronto

entre diferentes instintos humanos que visam estabilizar e controlar a

realidade caótica do mundo, Foucault analisa a história do conhecimento e

da verdade a partir das categorias políticas do poder, da estratégia e das

tácticas, pois considera que o conhecimento não é desejado por si mesmo,

mas antes, deriva de elementos extra-cognitivos, mais precisamente, de

elementos jurídico-políticos de exercício de poder. Nesta linha de

interpretação, Foucault apresenta uma leitura da história da verdade neste

curso de 1973-1974 assente em duas tecnologias de produção de verdade: a

verdade-demonstração e a verdade-acontecimento.

A verdade-demonstração é um conhecimento assente na figura

formal do inquérito e da investigação, enquanto a verdade-acontecimento é 18 Para um aprofundamento destas diferentes linhas de investigação epistemológicas, ver Jonathan

Dancy, Epistemologia Contemporânea, Edições 70, tradução de Tereza Louro Pérez, Lisboa, 1990.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

uma verdade experiencial, uma prova pela qual o sujeito passa de modo a

se produzir a verdade sobre ele próprio ou o tema em apreço.19 A primeira

destas duas séries encontra-se associada ao conhecimento científico e a

segunda ao conhecimento das ciências do homem. É precisamente sobre a

função do conhecimento, e por conseguinte sobre o conteúdo de verdade do

mesmo na história do pensamento ocidental, que Foucault se distancia da

interpretação tradicional. Na série verdade-demonstração, a verdade

encontra-se por todo o lado aguardando ser descoberta ou revelada. O

factor essencial nesta tecnologia de acesso à verdade é o sujeito possuir os

instrumentos correctos para investigá-la, as categorias necessárias para

pensá-la e a linguagem adequada para enunciá-la. Possuindo o sujeito estes

requisitos, a verdade pode ser alcançada. O sujeito desta verdade é, por

conseguinte, universal e anónimo, ahistórico e totalmente racional, assim

como a verdade que aguarda em todo o lado ser descoberta. Deste modo,

nenhuma realidade, assim como nenhuma verdade sobre a mesma, se

encontra excluída a priori da investigação científica. Por conseguinte, a

principal característica do conhecimento científico, e da noção de verdade a

ele associada, na leitura de Foucault é a geografia deste ser global.

...um saber como aquele que denominamos ciência, é um saber

que supõe a existência por todo o lado, em todos os lugares e tempos,

da verdade... para o saber científico existe, com certeza, momentos

onde a verdade se capta mais facilmente, pontos de vista que

permitem aperceber mais facilmente, ou com mais firmeza, a verdade;

existem instrumentos para a descobrir onde ela se esconde, onde ela

se recolhe. Mas em geral, para a prática científica, existe sempre a

verdade: a verdade encontra-se sempre presente em todas as coisas, 19 Estas duas séries da história da verdade encontram-se temazatizados de um modo mais desenvolvido, e usando uma terminologia um pouco diferente, num conjunto de conferências proferidas por Foucault na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro entre 21 e 25 de Maio de 1973, com o título A verdade e as formas jurídicas. Utilizámos a tradução realizada por Roberto Machado e Eduardo Morais para a Nau Editora, 3ª edição, Rio de Janeiro, 2002.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

ou sob todas as coisas; podemos colocar a questão da verdade a

propósito de tudo e mais alguma coisa.20

Por outro lado, a tecnologia de verdade-demonstração encontra de

modo mais premente, segundo Foucault, o seu campo de aplicação a partir

do século XII com a estatização dos modos de inquérito e investigação

levados a cabo nos processos disciplinares contra hereges, criminosos e

todo o tipo de suspeitos transgressores da normalidade. Esses processos de

investigação tinham como condição de possibilidade a ausência de prova

concreta ou testemunha ocular do acontecimento em litígio, pelo que todo

um mecanismo de fiscalização e de recolha de informação politicamente

orientado se foi insidiosamente instituindo. Este procedimento determinou

uma certa forma de saber e da verdade, permitiu a formulação de regras de

investigação precisas e um alargamento geográfico totalizante na procura

da verdade. Trata-se de uma metodologia antiga assente na demonstração

necessária, de raiz aristotélica, e alegadamente desinteressada quanto a aos

seus objectivos, que acabou por ser absorvida por tácticas e estratégias de

poder jurídico-político. Ao invés de se encontrar ao serviço do amor pelo

conhecimento, a tecnologia da verdade-demonstração encontra-se ao

serviço de uma racionalidade política de longo alcance, sem projecto

absolutamente definido, mas amplamente produtivo de dispositivos de

inquérito e investigação.

Ao contrário da verdade-demonstração, a verdade-acontecimento não

se caracteriza por ser uma verdade universal, disponível em toda a

realidade, sempre à mão, passível de ser descoberta em qualquer objecto e

20 “... un savoir comme celui que nous appelons scientifique, c'est un savoir qui suppose, au fond, qu'il y a partout, en tout lieu et le temps, de la vérité... c'est que pour le savoir scientifique il y a bien sûr des moments où la vérité se saisit plus facilement, des points de vue qui permettent d'apercevoir plus aisément ou plus sûrement la vérité; il y a des instruments pour la découvrir là où elle se cache, là où elle est reculée ou enfouie. Mais, de toute façon, pour la pratique scientifique en général, il y a toujours de la vérité; la vérité est toujours présente en toute chose ou sous toute chose, à propos de tout et de n'importe quoi l'on peut poser la question de la vérité.” Le Pouvoir..., p. 235; tradução minha

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

por qualquer sujeito apetrechado com os requisitos acima indicados; é, pelo

contrário, uma verdade contextualizada e local, à qual o acesso é restrito e

onde apenas um pequeno grupo de iniciados numa tecnologia precisa e com

treinos específicos, tanto éticos quanto técnicos, pode aceder. Podemos

afirmar que nesta série da verdade, a sua geografia é local, a sua

metodologia assenta num ritual, e a verdade apresentada é mais provocada

do que encontrada. De modo a captá-la é necessário criar em seu redor uma

atmosfera específica que, segundo Foucault, é da ordem da guerra, e onde a

relação estabelecida entre sujeito e objecto não é da ordem do

conhecimento, mas de poder, de dominação, de controlo. Ao ser, idêntico e

universal da verdade-demonstração, contrapõe Foucault o acontecer,

descontínuo, plural e local, da verdade-acontecimento.

Podemos denominar essa verdade descontínua, verdade-

relâmpago, por oposição à verdade-céu que se encontra presente

universalmente sob a aparência das nuvens. Temos então duas séries

na história ocidental da verdade. A série da verdade-descoberta,

constante, constituída, demonstrada, e uma outra série que é a série

da verdade que não é da ordem daquilo que é, mas da ordem daquilo

que aparece, uma verdade dada, não na forma da descoberta mas, na

forma do acontecimento, uma verdade que não é constatada, mas que

é suscitada, perseguida: mais produzida do que apofântica; uma

verdade que não se dá pela mediação de instrumentos, mas que se

provoca por rituais, que se capta através de manhas, que se apreende

segundo as ocasiões. Não se trata para esta [tecnologia de] verdade

de um método, mas de estratégia. Entre esta verdade-acontecimento e

aquilo que ela apreende, a relação não é da ordem sujeito/objecto.

Por conseguinte não é uma relação de conhecimento, é antes uma

relação de choque, é uma relação da ordem do relâmpago, do clarão.

É uma relação da ordem da caça, uma relação em todo o caso

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

arriscada, reversível, belicosa; é uma relação de dominação e de

vitória, uma relação não de conhecimento, mas de poder.21

É a história da trama que se constituiu entre estas duas séries que

Foucault diagnostica neste pequeno parêntesis. Como a série da verdade-

demonstração sedimentou-se e foi adoptada pelo pensamento ocidental

como o valor cognitivo central no pensamento ocidental, Foucault

direcciona o olhar para a série verdade-acontecimento levantando os

elementos arcaicos que esta mantém na tecnologia da verdade-

demonstração. A sua tarefa consiste, por conseguinte, em

Mostrar que a demonstração científica no fundo não é senão

um ritual, que o suposto sujeito universal de conhecimento na

realidade não passa de um indivíduo historicamente qualificado

segundo um certo número de modalidades e que, na realidade, a

descoberta da verdade é uma certa modalidade de produção de

verdade; rebater, deste modo, aquilo que se dá como uma verdade de

constatação ou como uma verdade de demonstração, sobre o solo dos

rituais, o solo das qualificações do indivíduo cognoscente, sobre o

sistema da verdade-acontecimento; é isto que designo arqueologia do

saber.

Por outro lado, existe um outro movimento a realizar, o de

mostrar como, no decurso da nossa história,..., e de um modo cada 21 Cette vérité discontinue, on pourrait l'appeler la vérité-foudre par opposition à la vérité-ciel qui, elle,

est universellement présent sou l'apparence des nuages. L'on a donc deux séries dans l'histoire occidentale de la vérité. La série de la vérité découverte, constante, constituée, démontrée, et puis une autre série, qui est la série de la vérité qui n'est pas de l'ordre de ce qui est, mais qui est de l'ordre de ce qui arrive, une vérité, non pas donnée dans la forme de la découverte mais dans la forme de l'événement, une vérité qui n'est pas constatée mais qui est suscitée, traquée: production plutôt qu'apophantique; une vérité qui ne se donne pas par la médiation d'instruments, mais qui se provoque par de rituels, qui se capte par des ruses, qui se saisit selon des occasions. Il ne sera donc pas question pour cette vérité-là de méthode, mais de stratégie. Entre cette vérité événement et celui qui en est saisit, qui la saisit ou qui en est frappé, le rapport n'est pas de l'ordre de l'objet au sujet. Ce n'est pas, par conséquent, un rapport de connaissance; c'est plutôt un rapport de choc; c'est un rapport de l'ordre de la foudre ou de l'éclair; c'est un rapport de l'ordre de la chasse, un rapport en tous cas risqué, réversible, belliqueux; c'est un rapport de domination et de victoire, un rapport, donc, non pas de connaissance, mais de pouvoir. Le Pouvoir..., p. 237; tradução minha.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

vez mais acelerado depois da Renascença, a verdade-conhecimento

adquiriu as dimensões que sabemos e que podemos hoje verificar;

mostrar como é que ela colonizou e parasitou a verdade-

acontecimento, como é que acabou por exercer sobre esta uma

relação de poder que é provavelmente irreversível, que é neste

momento, em todo caso, um poder dominante e tirânico; como é que

essa tecnologia da verdade demonstrativa colonizou efectivamente, e

exerce actualmente, uma relação de poder sobre a verdade que se

caracteriza por uma tecnologia ligada ao acontecimento, à estratégia,

à caça. É a isto que podemos denominar genealogia do conhecimento,

o reverso histórico indispensável à arqueologia do saber. 22

Podemos afirmar que Foucault considera como categoria

fundamental na produção da verdade não tanto o sujeito portador de

categorias universais, mas antes o espaço de luta onde o sujeito se encontra,

mais concretamente, os espaços que esse sujeito habita e por onde circula.

É o espaço que determina a verdade e não o sujeito. De certo modo a

verdade é um atributo espacial, local. Diferentes espaços, diferentes

verdades, e por conseguinte, diferentes sujeitos. Não é o olhar do sujeito

sem espaço e tempo, fora da história e das suas contingências, mas antes o

espaço temporalmente determinante, aberto a ocasiões propícias, saturado

de estratégias e manhas que configura a produção de uma verdade exterior

22 Montrer que la démonstration scientifique n'est au fond qu'un rituel, montrer que le sujet supposé universel de la connaissance n'est en réalité qu'un individu historiquement qualifié selon un certain nombre de modalités, montrer que la découverte de la vérité est en réalité une certaine modalité de production de la vérité; rebattre ainsi ce qui se donne comme vérité de constatation ou comme vérité de démonstration, sur le socle des rituels, le socle des qualifications de l'individu connaissant, sur le système de la vérité-événement, c'est cela que j'appellerai l'archéologie du savoir. Et puis, il y a un autre mouvement à faire, qui serait de montrer comment précisément, au cours de notre histoire, au cours de notre civilisation, et d'une manière de plus en plus accélérée depuis la Renaissance, la vérité-événement, comment elle a fini par exercer sur elle un rapport de pouvoir dominant et tyrannique, comment cette technologie de la vérité démonstrative a effectivement colonisé et exerce maintenant un rapport de pouvoir sur cette vérité dont la technologie est liée à l'événement, à la stratégie, à la chasse. C'est cela que l'on pourrait appeler la généalogie de la connaissance, envers historique indispensable à l'archéologie du savoir. Le Pouvoir..., pp. 238 – 239.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

ao próprio sujeito. Esse olhar necessita de um treino23 específico para a

captar, de estratégias para a apreender, de um local para a receber, de

tácticas para a circunscrever e produzir. Existe, por conseguinte, uma co-

pertença entre sujeito e verdade: tanto a verdade é produzida por um

conjunto de tácticas e estratégias, quanto o sujeito é determinado por estas.

Se a tradição filosófica pensou o sujeito como intrinsecamente capaz de

verdade, Foucault considera a verdade intrinsecamente produtora de

sujeitos. Desse modo o local onde a verdade é enunciada, ou visualizada, o

sujeito que a enuncia e os modos de a tornar visível, isto é, as técnicas,

estratégias e encenações para a apresentar, são os momentos centrais na

constituição da verdade. Como exemplo desta relação, Foucault apresenta o

caso da histeria e da loucura. Por um lado, estas duas patologias surgem

cientificamente determináveis a partir do momento em que se constrói um

espaço específico onde possam ser visualizadas, por outro o sujeito

científico (o médico) que as enuncia como verdadeiras doenças possui um

treino específico do “olhar” para as enunciar e as apreender, assim como o

sujeito patológico (o paciente) vê agregada a si uma verdade construída e

encenada. Nesta relação de poder vai-se construindo uma subjectividade, a

do paciente, que vê “colada” a si uma patologia, um desvio, cientificamente

justificada. Desse modo passa a reconhecer-se como portador de uma

doença que o identifica no mais íntimo de si mesmo. Subjectividade

científica e patológica. Objectividade da doença e do sujeito patológico.

Com esta análise Foucault tenta apresentar que a loucura, tal como a

conhecemos e apreendemos, surgiu num determinado espaço que se

encontra temporalmente determinado. Sem a construção desse espaço,

assim como do sujeito que o habita erraticamente e do sujeito que sabe a

23 de virtudes epistémicas, como Lorraine Daston e Peter Galison denominam o treino e actividade do cientista de modo a objectivar um conhecimento verdadeiro. vide Lorraine Daston & Peter Galison, Objectivity, pp. 39-42. Zone Books, New York, 2007.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

verdade dessa errância, não haveria um conteúdo de verdade científico,

justificação necessária para futuras acções políticas de terapia globalizada.

Como conclusão podemos afirmar que, para Foucault, a verdade

científica não se encontra arredada das relações de poder, antes é um

produto destas:

a “verdade não existe fora do poder ou sem o poder... A

verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas

coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada

sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de

verdade: isto é, o tipo de discursos que ela acolhe e faz funcionar

como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem

distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se

sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são

valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm

o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”24

24 Foucault, Michel, Verdade e Poder, in Microfísica do Poder; tradução de Lilian Holzmeister e AngelaLoureiro de Souza. Organização, Introdução e Revisão Técnica de Roberto Machado, Edições Graal, Rio de Janeiro, 1979.

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Pensar para além da verdade. A ficção na história, na sociedade, na filosofia.

Eduardo Pellejero25

Não, este mau gosto, esta vontade de verdade, de «verdade a qualquer preço», esta loucura juvenil no amor pela verdade desgosta-nos: somos demasiado experimentados para tal, demasiado sérios, demasiado alegres, demasiado escaldados, demasiado profundos... Já não acreditamos que a verdade continue a ser verdade quando se correm os véus; vivemos demasiado para acreditar nisto.

Nietzsche

A sobredeterminação da filosofia pela vontade de verdade remonta a

Platão. No livro X da República tem lugar a cena originária de uma história

de exclusões, que começa com a expulsão dos falsários da cidade. O

carácter ficcional ou mimético da poesia, ameaça causar estragos nas

almas dos homens e induzir a desagregação do corpo social. A ficção está

longe da verdade, e isso para Platão não pode pressagiar nada de bom.

O filósofo teme nos falsários um inimigo poderoso, e na ficção uma

força subversiva irredutível. A fundação da cidade pelo filósofo,

portanto, implica, em nome da verdade, a excomunhão dos poetas e dessa

potência do falso que Platão não entende, ou não quer entender, mas que

certamente não menospreza do ponto de vista da sua potência política.

E assim começa esta história.

O questionamento da verdade como valor, contudo, e muito

especialmente como valor filosófico, não desconhece um lugar importante

no pensamento contemporâneo. Prolongamento inevitável do projecto

25 Pós-doutorando, CFCUL.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

crítico da modernidade, devemos a Nietzsche o haver assentado as bases

dessa problematização, que remete a verdade à vida, invertendo a escala de

valores e desfazendo a subordinação acostumada da vontade e do

pensamento ao verdadeiro.

Depois de Nietzsche, continuarão a existir a posteriori o verdadeiro

e o falso, mas já não como valores absolutos, senão apenas como

expressões de uma vida mais ou menos intensa, mais ou menos gregária,

mais ou menos artística. Isto é, a verdade deixará de ser algo em si, algo

incondicionado, absoluto ou universal; estará a partir de então sujeita ao

devir.

Neste sentido, por exemplo, Foucault vai propor uma história da

verdade, indicando dos níveis de instauração desta como valor: 1) em

primeiro lugar, a vontade de verdade impõe sistemas de exclusão

(históricos)26, apoiando-se sobre suportes institucionais (práticas

pedagógicas, sistemas de edição, bibliotecas, laboratórios)27; e 2) em

segundo lugar, a vontade de verdade é elevada, pelo discurso filosófico, a

um ideal transcendente ou transcendental (como lei do discurso),

fortalecendo as formas de controlo discursivo historicamente determinadas

pelas formas de exclusão28. Isto é, a verdade, como produto de uma relação

de forças, dá lugar – de facto – a um discurso que a legitima – de direito –,

num círculo vicioso mas efectivo, que projecta os seus efeitos ao longo da

história material e intelectual do ocidente.

Independentemente das problematizações, reavaliações e

desconstruções da própria ideia de verdade às quais há dado lugar29, a

crítica abre assim o caminho para um novo paradigma de pensamento

conceptual, que alenta, não a procura da verdade, senão a produção de

26 Foucault, L’ordre du discours, París, Gallimard, 1986; p. 15.27 Ibidem., pp. 20-21.28 Ibidem., pp. 47-48.29 Cf. Jaspers, Nietzsche, trad. castellana de Emilio Estiú, Buenos Aires, Sudamericana, 1963; pp. 257-

339.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

ficções (regulativas, heurísticas, críticas, vinculadoras, etc.). Nietzsche não

põe em questão as noções tradicionais de verdade e racionalidade sem pôr

ao mesmo tempo em questão a própria concepção da filosofia na sua

tradição histórica.

Para além da verdade enquanto horizonte insuperável, as categorias

do pensamento aparecem como enganos necessários para a vida, metáforas

sedimentadas – cunhadas face a uma necessidade – que têm (ou tiveram)

utilidade, e constituem (ou constituíram) instrumentos para se apoderar de

algo. De repente, a filosofia já não trata da verdade, senão de ficções (cito

Nietzsche): «Parménides disse “que não se pensa no que não é”; nós

estamos no outro extremo, e dizemos: “o que se pode pensar, com

segurança, terá que ser uma ficção”»30.

Deste modo, o filósofo reconhece em si o poeta que expulsara

outrora da cidade e procura desfazer esse caminho sem angústias; retorna à

aparência, mas na aparência já não há nada que lamentar (nenhuma

ausência, nenhuma carência, nenhuma negatividade). A ilusão referencial

desfez-se e já não dispõe, no exercício da filosofia, de mais critério que a

intensificação e o debilitamento da vida que as ficções produzidas possam

vir a propiciar.

Neste mesmo sentido, a filosofia devém mais autónoma que nunca,

mais afirmativa que nunca, mais alegre, se é possível, por isso mesmo,

também.

Talvez pudéssemos ver (enviesadamente) um novo avatar desta

crítica da vontade de verdade no anúncio do fim dos grandes relatos que

Lyotard realizava em 1984. De repente, tanto os enunciados científicos

como as instituições que regem o laço social viam oscilar o solo sobre o

30 Nietzsche, KSA 6, 22 (Jaspers, op. cit., p. 318).

87

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

qual se levantavam há alguns séculos, reconhecendo nos meta-relatos que

as diferentes filosofias da história lhes ofereciam apenas uma forma

privilegiada da ficção. Na mesma medida, a verdade e a justiça viam

dissolver-se as suas referências fundamentais em nuvens de jogos

narrativos incomensuráveis.

Tal como o anúncio da morte do homem por Michel Foucault,

porém, isto não significava o fim destes relatos enquanto que tais, nem o do

seu funcionamento efectivo dentro das sociedades contemporâneas, senão

apenas o fim da validade destes relatos como princípios imediatos de

legitimação, isto é, como reguladores universais da acção e do pensamento.

Lyotard notava que, no meio da crise e contra o movimento de

desregulação que a mesma comportava, o poder tentava a qualquer custo

forçar «a comensurabilidade dos elementos e a determinabilidade do todo».

Os grandes relatos não só não iriam deixar pacificamente o campo de

batalha, senão que, pelo contrário, iriam ganhar uma força inesperada nos

anos seguintes (da elevação a «paradigma insuperável do capitalismo

reinante» à declaração de uma «guerra de civilizações», passando muito

especialmente pelo renovado projecto da «unificação europeia»).

Algo, contudo, tinha mudado para sempre. Os novos relatos de

legitimação já não iriam poder reclamar-se da necessidade (e da

veracidade) da que gozavam no contexto das filosofias da história. Isto é,

poderiam reger uma sociedade de facto, mas nunca por direito.

A crítica dos grandes relatos, contudo, não implica o

desconhecimento da importância do trabalho da expressão para a

intensificação e a estilização da vida. O pensamento em geral e a filosofia

em particular encontrarão um espaço para a luta sobre este preciso terreno,

propondo ficções alternativas às ficções hegemónicas.

88

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Quero dizer que o pensamento apontará a partir de certo momento à

construção de um universo antagónico a esse universo de ficções maiores

que o poder produz e reproduz para governar.

Longe de constituir uma prática a-política ou um discurso errado, a

ficção trava uma relação complexa com a verdade e atravessa a realidade

no seu conjunto, determinando aspectos centrais das nossas sociedades

contemporâneas.

Neste sentido, Jacques Rancière chega a falar de uma «política-

ficção», e recorda que, entre as causas que produzem o movimento do

corpo político, Hobbes colocava em primeiro lugar frases como «há que

escutar a voz da consciência antes que a da autoridade» ou «é justo

suprimir os tiranos», expressões que não designam propriamente nada, mas

que armam, por exemplo, as mãos dos tiranicidas31. Indo mais longe,

Rancière chega a afirmar que só há história (acontecimentos políticos,

revoltas, revoluções) porque os homens se reúnem e dividem de acordo a

nomes, porque se chamam a si próprios e chamam os outros com nomes

que não têm «a menor relação» com os conjuntos de propriedades que

supostamente designam, isto é, porque procedem a actuar politicamente

guiando-se por ficções32.

Trata-se de uma ideia que nos lembra com alguma felicidade o

conceito bergsoniano de fabulação. Bergson via no fundamento das

sociedades humanas, com efeito, não uma ideia racional ou uma

representação adequada, senão uma série de representações fictícias

(deuses da cidade, antepassados familiares, etc.), que pela sua intensidade

31 Cf. Jacques Rancière, Les noms de l’histoire: Essai de poétique du savoir, Paris, Seuil, 1992; pp. 43-46.32 Ibidem., p. 74.

89

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

teriam levado os indivíduos a pensar noutra coisa que em si próprios e a

agenciar-se como grupo.

Oportunamente, Deleuze extrairá da lição antropológica de Bergson

todos os corolários políticos. Livre da sua sujeição à verdade, o pensamento

redescobre a ficção como uma força entre outras, e, ainda melhor, na ficção

reconhece a sua própria potência expressiva, para além da representação

objectiva do real.

Do que se trata então é de trabalhar pela emergência de

agenciamentos colectivos inéditos, que respondam a novas possibilidades

de vida, das quais o pensamento desejaria ser a expressão. Trata-se de

propiciar a aparição de forças sociais concretas, correspondentes a uma

nova sensibilidade e inspiradas por esta. E trata-se de fazê-lo, já não através

da consciencialização de um povo ou de uma classe mais ou menos

comprometida, senão trabalhando directamente, através dos conceitos, na

construção de novas formas de agenciamento da multidão, das que se

espera que comportem mudanças a todos os níveis.

Não é questão de escapar do mundo que existe (nem pela destruição

da verdade da qual se reclama nem pela postulação de uma verdade

superior), senão de criar as condições para a expressão de outros mundos

possíveis, os quais, pela introdução de novas variáveis, venham a

desencadear a transformação do mundo existente. Como uma

materialização privilegiada do pensamento político, a filosofia aparece

assim como um agenciamento de enunciação colectiva, com relação a um

povo que está ausente, que falta, isto é, para uma congregação da multidão

segundo novas linhas e novos objectivos.

É neste mesmo sentido que o problema da ficção se torna tão

importante para a redefinição do que significa pensar na filosofia de

90

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Foucault. Com efeito, o próprio Foucault assume de bom grado que na sua

vida não escreveu outra coisa que ficções. Mas com isto não pretende dizer

que tenha estado sempre fora da verdade, que tenha errado

sistematicamente, senão que fez trabalhar de certo modo a ficção na

verdade, que tratou de induzir efeitos de verdade com um discurso de

ficção, ou seja, com um discurso que não se regia pelos critérios do

verdadeiro de uma época dada.

Isto é, Foucault procura suscitar, no meio dos discursos que se

reclamam da verdade, Foucault procura ficcionar algo que não existe ainda.

Por exemplo, ficciona-se a história a partir de uma realidade política que a

torna verdadeira. Ou ficciona-se uma política que não existe ainda a partir

de uma verdade histórica. Nesta medida, mesmo fazendo história, mesmo

fazendo filosofia, Foucault sente que o que faz implica uma ruptura

fundamental, não se reconhecendo nem na tradição da história, nem na

tradição da filosofia. Foucault dizia: «não me gabo de fazer uma filosofia

verdadeira (...) eu estaria antes no simulacro da filosofia»33.

Agora, isto não significa que Foucault se considere um literato.

Digamos que pratica uma espécie de ficção-filosófica, uma espécie de

ficção-histórica ou de ficção-crítica (assim como Deleuze dizia praticar

uma espécie de ficção-científica) (cito Foucault): «De certa maneira, eu sei

muito bem que o que eu digo não é verdade. Mas o meu livro teve um

efeito sobre a maneira na qual as pessoas percebiam a loucura. E, então, o

meu livro e a tese que desenvolvi têm uma verdade na realidade de hoje”34.33 Foucault, Langage et littérature, Conférence à l’Université Saint-Louis, Bruxelles, 1964, 23 pp. (Texto inédito): «Or, cet épaississement, cette multiplication des actes critiques s’est accompagné d’un phénomène qui est un phénomène presque contraire. Ce phénomène c’est, je crois, celui-ci: le personnage du critique, de «l’homo criticus», qui a été inventé à peu près au XIXe siècle, entre Laharpe et Sainte-Beuve, est en train de s’effacer au moment même où se multiplient les actes de critique. C’est-à-dire que les actes de critique, en proliférant, en se dispersant, s’égaillent en quelque sorte, et vont se loger, non plus dans des textes qui sont préposés à la critique, mais dans des romans, dans des poèmes, dans des réflexions, éventuellement dans des philosophies. Les vrais actes de la critique, il faut les trouver de nos jours dans des poèmes de Char, ou dans des fragments de Blanchot, dans des textes de Ponge, beaucoup plus que dans telle ou telle parcelle de langage qui aurait été, explicitement, et par le nom de leur auteur, destinés à être des actes critiques».34 Foucault, Dits et Écrits III, p. 801.

91

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Como víamos, a verdade não era, para Nietzsche, algo dado que

bastaria descobrir, senão algo que tem que ser criado e que proporciona

nome a um processo que, em si mesmo, não tem fim. Ficcionar uma

verdade constitui, neste sentido, uma determinação activa do pensamento

(ao contrário da tomada de consciência de algo que em si mesmo seria fixo

e determinado).

E não é outro o sentido que o trabalho crítico e filosófico tem para

Foucault (cito): «Eu trato de provocar uma interferência entre a nossa

realidade e o que sabemos da nossa história passada. Se resulta, esta

interferência produzirá efeitos reais sobre a nossa história presente. A

minha esperança é que os meus livros ganhem a sua verdade uma vez

escritos, e não antes. Exemplo. «Escrevi um livro sobre as prisões. Tratei

de pôr em evidência certas tendências na história das prisões. “Uma

tendência apenas”, poderiam repreender-me: “Logo, o que diz não é

completamente verdade”. Está bem. (...) Mas faz dois anos, na França,

houve uma agitação nas prisões, os detidos revoltaram-se. Em duas destas

prisões, os prisioneiros liam o meu livro. Da sua cela, alguns detidos

gritavam o texto do meu livro aos seus camaradas. Eu sei que pode soar

pretensioso, mas isto é uma prova de verdade – de verdade política,

tangível, de uma verdade que só começou a ser tal uma vez que o livro foi

escrito»35.

O risco da ficção volta a assombrar o trabalho historiográfico na obra

de Michel de Certeau. Considerando a historiografia como um misto de

ciência e de ficção, Certeau está interessado (como no caso de Rancière)

em reinscrever a historiografia num género, ou, melhor, numa actividade

genérica mais ampla: a «dos relatos que explicam o-que-passa». Deste

35 Foucault, Dits et Écrits III, p. 807.

92

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

ponto de vista, a ficção e a historiografia comungam numa actividade

social comum: reparar os desgarros entre o passado e o presente, assegurar

um sentido que supere as violências e as divisões do tempo, isto é, “criar

um teatro de referências e de valores comuns que garantam ao grupo uma

unidade e uma comunicabilidade simbólicas”36. Repolitização da

historiografia, então (logo, das ciências em geral), que apostando à

confrontação da historiografia com a sua própria história, procura desfazer

o caminho de progressiva diferenciação que, a partir do século XVIII, veio

separar as «letras» das «ciências», vendo-se cindida «entre os dois

continentes aos quais estava ligado o seu papel tradicional de ciência

“global” e de conjunção simbólica social»37 (ruptura institucionalizada pela

organização universitária no século XIX).

Mas ao mesmo tempo reivindicação da ficção, que sendo

reconhecida como a parte reprimida deste discurso, vê recuperar certa

legitimidade no campo da historiografia que assombrava até então.

Os nomes que demarcam este duplo movimento, que deita abaixo a

muralha «que as ciências positivas estabeleceram entre o “objectivo” e o

imaginário, ou seja, entre o que controlavam e o “resto”»38, são para

Certeau os de Bentham, Freud e Foucault.

Já falamos de Foucault. Jeremy Bentham, por seu lado, pertence a

uma das linhas mais prolíferas da tematização filosófica da ficção (linha

que Wolfgan Iser remonta ao empirismo de Bacon, de Locke e de Hume, e

à que darão consistência e continuidade – já sobre outros horizontes

filosóficos – os trabalhos de Hans Vaihinger e de Nelson Goodman).

36 Michel de Certeau, Histoire et psychanalyse: entre science et fiction, Paris, Gallimard, 2002; p. 60.37 Ibidem., p. 81.38 Ibidem., p. 107.

93

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Desta perspectiva, há uma inversão na atitude da ciência em direcção

às ficções: de uma forma de decepção passa a ser um constituinte básico do

conhecimento 39. E, se até finais do século XVIII a crítica da ficção era um

mecanismo de defesa próprio de toda a epistemologia empírica (Bacon), e

em geral a ficção era vista como «um devir louco do princípio de

associação» (Locke), a ficção jogava porém um papel prático nos sistemas

filosóficos, mesmo que negativo, contribuindo para solidificar a

normalidade por confrontação com o que era considerado uma patologia40.

Mais positivo é o papel que a ficção jogava em Hume, para quem, na

medida em que constituem formas de conhecimento que poderiam

plausivelmente ser postuladas mas não satisfatoriamente provadas, as

premissas epistemológicas aparecem como «ficções da mente» (o princípio

de causalidade, por exemplo), o que lhe permite pôr em causa o empirismo

epistemológico da sua época.

Um papel não menos importante tem a ficção para Bentham, para

quem a crítica das ficções (legais) é dirigida, menos contra a ficção em si,

que contra certos modos nos quais esta é usada (pelos advogados, por

exemplo). Em si mesma, a ficção não só não é estranha ao real , senão que

o sobredetermina sobre o plano da praxis, na medida em que, primeiro, os

corpos reais nunca são dados de modo puro, mas sempre em estado de

condicionalidade (condições que Bentham denomina entidades fictícias), e,

segundo, a ficção inclui também todas as formas da modalidade (para

Bentham, mesmo a existência é «uma entidade fictícia; está em qualquer

entidade real; e qualquer entidade real está nela»)41.

39 Iser, The fictive and the Imaginary. Charting Literary Anthropology, The Johns Hopkins University Press, Baltimore – London, 1993; p. 87

40 Ibidem., p. 111.41 Ibidem., p. 126: “O que acontece no curso da realização é que a realidade é gradualmente substituída

pelo mundo. A realidade é dada; o mundo é feito. O mundo vem ao ser por obra das obras, numa unidade coerente que envolve a realidade física dos corpos”.

94

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

O direito de cidadania da ficção na república filosófica, em todo o

caso, volta a ser reclamado pela filosofia de Hans Vaihinger, para quem,

longe de se opor à realidade, a ficção interfere com a realidade, em ordem a

servir um propósito que, por sua vez, não é parte da realidade; isto é, as

ficções «de um ponto de vista teorético, são vistas directamente como

falsas, mas são justificadas e podem ser consideradas ‘praticamente

verdadeiras’ porque realizam certos serviços para nós». Vaihinger abre a

sua Filosofia do como se postulando a origem das ideias nas necessidades

éticas e intelectuais, «como ficções úteis e valiosas para a humanidade» e,

neste sentido, propõe uma «fenomenologia» da consciência idealizante ou

ficcionalizante

Vaihinger propõe, de facto, uma lei de deslocamentos eidéticos que

dão conta do funcionamento da razão, onde a ficção joga as vezes de

elemento desestabilizador dos dogmas assim como de espaço de variação

das hipóteses, permitindo uma partilha graduada da estrutura da ideia para

além qualquer ossificação possível.

Em resumo, vemos que do «como se» kantiano aos múltiplos usos de

«entidades fictícias» em Bentham, passando pela proliferação

vaihingeriana de tipos e modelos, a ficção assume cada vez mais

importância no pensamento: «A ficção devém o camaleão do

conhecimento, o que quer dizer que, como uma espécie de kit de reparação

da conceptualização, deve transcender inevitavelmente os conceitos que

procura envolver. Compensando a debilidade dos conceitos, a tematização

da ficção diagnostica as deficiências que estão na base da respectiva teoria,

e, neste sentido, a indeterminabilidade da ficção tematizada pode reclamar

a sua verdade. Esta verdade, contudo, parece ser inacessível ao

conhecimento e, consequentemente, a ficção é sempre identificada com a

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

mentira, pelo menos enquanto o conhecimento permanece incontestado

como marco de referência»42.

As tradições de Vaihinger e Bentham, em todo o caso, virão

alimentar a outra grande linha que Certeau assinalava no seu trabalho sobre

a ficção: a psicanálise. O próprio Freud, com efeito, reclama-se de um certo

pragmatismo vaihingeriano, e, como assinala Certeau, «volta sobre as

configurações simbólicas que articulavam as práticas sociais nas

sociedades tradicionais. O sonho, a fábula, o mito: estes discursos

excluídos pela razão esclarecida devêm o próprio espaço onde se elabora a

crítica da sociedade ».

O efeito imediato do freudismo, deste ponto de vista, seria colocar

em questão a distribuição estabelecida do espaço epistemológico, esta

configuração que rege, há três séculos, as relações da história e da

literatura. As ficções teóricas ou as novelas com função teórica (mitos43)

que propõe a psicanálise, mostram que «no discurso freudiano, com efeito,

é a ficção que retorna na seriedade científica, não só enquanto objecto de

análise, senão enquanto forma»44.

Lacan, por seu lado, se reclama de Bentham. Nessa tradição, Lacan

procura livrar a ficção de qualquer conotação de engano ou ilusão, para

afirmar – «de modo aforístico» – que a verdade revela um ordenamento ou,

42 Ibidem., pp. 165-166.43 Lacan dizia que Freud era um dos poucos autores contemporâneos capazes de criar mitos. Jacques

Lacan, Séminaire sur l'«éthique de la psychanalyse», 1959-1960, Paris, Seuil, 1986.44 Cf. Certeau, op. cit., p. 110: “Freud fala ironicamente dos seus Estudos sobre a histeria como de

histórias de doentes (Krankengeschichten) que se lêem como romances (Novellen) desprovidos do carácter sério da cientificidade (Wissenschaftlichkeit), e designa como romance o seu Moisés (Der Mann Moses). Cf. Sigmund Freud et Arnold Zweig, Correspondance, Paris, Gallimard, 1973, p. 162 (21 février 1936), etc.”.

96

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

melhor, uma estrutura de ficção (isto é, ganha forma para além dos critérios

que definem o verdadeiro e o falso num momento histórico dado).

Esta ideia surge pela primeira vez no Seminário sobre «A Carta

roubada» e atravessa todos os seminários de Lacan, marcando

profundamente o seu discurso sobre a ética da psicanálise, e fazendo

balançar a oposição entre ficção e realidade (dando continuidade, nisto, à

experiência freudiana) (cito Lacan): «É em relação a esta oposição entre o

fictício e o real, que a experiência freudiana vem ocupar o seu lugar, mas

para mostrar-nos que uma vez feita esta divisão, esta separação, operada

esta clivagem, as coisas não se situam de nenhuma maneira aí onde se

poderia esperar; que a característica do prazer, a dimensão do que o

encadeia ao homem, encontra-se inteiramente do lado do fictício enquanto

o fictício não é por essência o que é enganoso, senão que é, falando

propriamente, isso a que chamamos o simbólico».

Em todo o caso, para além dos diversos valores epistemológicos que

a ficção possa ter chegado a investir, assistimos a um deslocamento

historicamente observável da ficção enquanto representação à ficção

enquanto intervenção (cito Iser): «Em lugar de reparar a epistemologia, a

ficção – na história da sua afirmação – devém uma precondição para a

acção pragmática»45.

Noutras palavras: ao mesmo tempo que o conhecimento (e a

referencialidade) encontra os seus limites na ficção, o conhecimento

começa a revelar (a descobrir) necessidades antropológicas46.

Neste sentido, já não só de um ponto de vista teorético, senão sobre o

horizonte amplo da praxis, o modelo do verdadeiro é substituído por uma

certa potência do falso, da qual ainda não tomamos a medida. E não se trata 45 Iser, op. cit., p. 168.46 Ibidem., p. 170.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

de uma fantasia, de um mero devaneio da razão, senão de um verdadeiro

programa filosófico-político, que pondo a referencialidade em causa não

pressupõe nenhuma forma de idealismo.

Evidentemente, a dos falsários é uma corporação vasta e desigual.

Do plagiário ao artista, a distância é longa e está graduada por uma

verdadeira multidão de personagens singulares. Pior ainda: entre estas

personagens as fronteiras são lábeis; como bons falsários gostam de vestir

disfarces, pôr máscaras, viver todas as vidas.

A esta altura, como poderão ver, a cena do reencontro do filósofo

com o poeta, numa cidade que durante séculos se amuralhou por detrás da

fábula de um mundo objectivo, verídico e necessário (quando na realidade

descansava «nos seus sonhos sobre o lombo de um tigre»), não tem a forma

reconciliadora de Ulisses regressando à sua Ítaca natal, desmascarando

metodicamente os pretendentes, reinstaurando a ordem das coisas , e

revelando finalmente o seu verdadeiro ser.

Digamos que é, antes, como no mais estranho dos filmes de Orson

Welles47. Noutra ilha (na Ibiza) alguém («um charlatão») promete-nos a

verdade (mesmo quando se trata de «um filme sobre enganos, fraudes e

mentiras»), a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade durante

dez páginas. Ficção sobre a verdade da ficção, então.

Como filósofo (como charlatão, dirão vocês) o meu trabalho consiste

em tratar de fazê-la real. Não que a realidade tenha algo que ver com essa

ficção (como diz Welles, «a realidade é a escova de dentes que nos espera

em casa, um bilhete de autocarro, um cheque... e a sepultura»).

Pelo contrário, aquilo com o que Nietzsche e Bergson, Rancière e

Lyotard, Deleuze e Foucault, Certeau, Freud, Lacan, e os seus honráveis 47 F for Fake (1976). Dirección: Orson Welles. Producción: François Reichenbach. Con: Orson Welles,

Oja Kodar, Joseph Cotten, Elmyr de Hory, Clifford Irving, François Reichenbach, Gary Graver.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

antepassados empiristas e neokantianos, e nós próprios, claro, «mentirosos

profissionais», aquilo com que nós trabalhamos, digo, é a aparência, a

mentira, a ilusão.

A arte e a filosofia, o poeta e o rei, reencontram-se neste ponto cego

da razão, e procuram controlar os seus efeitos sobre a sociedade e as

ciências, sobre o saber e o poder, sobre os corpos e a linguagem. Os nomes

pomposos com que falamos destas coisas não chegam para ocultar a sua

íntima natureza.

O próprio Picasso disse-o: a arte, disse, é uma mentira. O próprio

Nietzsche disse-o: a filosofia, disse, é uma mentira. Só que se estas

mentiras são penduradas num museu o tempo suficiente, se estas mentiras

são abraçadas pelas pessoas ou propagadas de boca em boca, como um

rumor, ou como uma conjura, podem chegar a tornar-se realidade.

99

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Proust e os Signos: as Categorias, a Lei, a Loucura.Catarina Pombo Nabais48

Proust e os Signos é o primeiro livro que Deleuze dedica à

literatura e a um autor literário. É talvez por essa razão que ele regressa

duas vezes a este texto. À primeira edição de 1964, ele acrescenta, em

1970, a Segunda Parte «A Máquina Literária», e, em 1973, a Conclusão

«Presença e Função da Loucura, a Aranha», a qual, antes, tinha sido

publicada separadamente num volume colectivo em Itália49. É importante

sublinhar que a primeira edição era constituída por um único texto e que as

edições posteriores são acrescentos não só de uma «Segunda Parte» mas

também de uma «Conclusão» que, não fazendo sistema entre si, foram no

entanto publicadas como um todo homogéneo. Este processo de reescrita

de Proust e os Signos era quase inevitável. Tratava-se do seu primeiro livro

sobre literatura e cada deslocamento nos outros territórios do pensamento

obrigava Deleuze a reformular a sua aproximação primitiva a Proust.

O facto de se encontrarem neste livro três aproximações

completamente diferentes de À Procura do Tempo Perdido, faz de Proust

e os Signos um laboratório único para acompanhar as metamorfoses no

pensamento deleuziano50. O próprio Deleuze reconhece o regime não

homogéneo no movimento do seu pensamento. Em resposta à questão se se

deveria considerar a sua obra como um todo ou como rupturas, Deleuze

declara : «três períodos, já seria bom. De facto, comecei por livros de

história da filosofia (...). Eu e Félix Guattari tentámos fazer uma filosofia, 48 Pós-doutoranda, CFCUL.49 Sagi e Ricerche di Letteratura Francese, XII, Bulzoni ed., 1973. 50 Pensamos evidentemente também em Crítica e Clínica como sendo um outro exemplo de um livro

sobre a literatura que deixa ver estas mudanças. No entanto, Crítica e Clínica é um conjunto de textos de assuntos muito diferentes que estão agrupados depois de uma primeira publicação em revistas, prefácios, etc., enquanto que Proust e os Signos é uma obra que pensa sempre o mesmo objecto: À Procura do Tempo Perdido.

100

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

em Anti-Édipo e Mil Planaltos, sobretudo em Mil Planaltos (...). Uma

filosofia, foi portanto para mim como um segundo período que nunca teria

começado ou terminado sem Félix. De seguida, suponhamos que foi um

terceiro período onde se tratava para mim de pintura e de cinema, de

imagens em aparência»51. No momento desta entrevista, já existiam

diversas leituras que consideravam a sua obra como dividida em dois

períodos : antes e depois de Anti-Édipo. Mas eis que Deleuze acrescenta

um terceiro período aos dois grandes períodos que ele sabia estarem

estabelecidos: «finalmente, todos esses períodos se prolongam e se

misturam, vejo agora melhor nesse livro sobre Leibniz ou sobre a Dobra»52

. Deleuze reconhece descontinuidades. Ele relaciona-as sobretudo a

encontros, com Félix Guattari, com o cinema ou com a pintura de Bacon.

O seu espinozismo fundamental, isto é a sua ética da imanência e dos

encontros felizes, impede-o de explicar as suas rupturas internas como

mudanças teóricas, como fracturas paradigmáticas. E, no entanto, a nossa

leitura do pensamento da literatura em Deleuze não só supõe mas torna

também visíveis muito mais diferenças no interior dos seus textos. O que

pretendemos é sublinhar ainda mais essas descontinuidades.

Apesar da aparência de uma simples amplificação em progresso

que se prolonga por quase dez anos, as três edições do livro de Deleuze

sobre Proust exprimem três universos quase não comunicantes. É como se

Proust e os Signos condensasse, nessas três partes, quase todas as grandes

rupturas do pensamento de Deleuze dos anos sessenta e do início dos anos

setenta. A partir de um único e mesmo objecto, À Procura do Tempo

Perdido, Deleuze propõe, em três edições distintas, conceitos, modelos,

categorias completamente diferentes. Essas descontinuidades tornam

manifestas diferenças muito subtis, distanciamentos microscópicos, os

51 PP, pp. 185/7.52 PP, p. 188.

101

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

quais são o efeito de revoluções enormes no conjunto da obra de Deleuze.

Existem diferentes abordagens do conceito de signo, diferentes

classificações das faculdades, diferentes explicações do processo de

fabulação, de composição, da própria escrita. Proust e os signos é uma

verdadeira obra de formação, um livro-vida, uma quase repetição de À

Procura do Tempo Perdido. Marcel Proust é o monumento cumprido de

uma fusão absoluta entre a experiência da escrita e uma forma de vida. Era

necessário repensar À Procura do Tempo Perdido cada vez que o modo de

compreender essa fusão mudava no pensamento de Deleuze. É como se, na

qualidade de ponto de partida, Proust e os Signos devesse ser reescrito para

que Deleuze pudesse acreditar na densidade e na continuidade do seu

próprio desenvolvimento.

Proust e os Signos é portanto uma obra exemplar. Ela torna visível

a existência de enormes descontinuidades no pensamento de Deleuze,

diferentes modos de ler a obra de arte literária, e, ao mesmo tempo, a

aparência de uma continuidade harmoniosa. Se pensarmos, por exemplo,

na própria definição do livro escrito por Proust, vemos imediatamente

surgir três concepções diferentes. Em primeiro lugar, À Procura do Tempo

Perdido é apresentado como uma narrativa de aprendizagem, onde a tarefa

do narrador é a de explicar os conteúdos escondidos nos signos, até à

revelação da essência, que ele descobre ao longo de uma aprendizagem ;

num segundo momento, na edição de 1970, ele é definido como uma

máquina de produção da verdade, que funciona na base de uma série de

transgressões das leis do desejo ; finalmente, na terceira parte, este livro é

pensado pela figura de uma teia feita pelo Narrador-aranha, enquanto

corpo-sem-órgãos.

Mas o lugar onde a descontinuidade em Proust e os Signos é mais

flagrante, e, ao mesmo tempo, mais sintomática, é a tipologia dos signos –

centro fundamental de todo o livro. Nas três partes de Proust e os Signos o

102

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

sistema de signos é sempre um elemento de uma constelação mais ampla.

Os signos não se deixam pensar senão em articulação com o sistema das

faculdades, as dimensões do tempo, os graus de verdade e os modos de

incarnação da essência. Essa constelação, no entanto, não se faz sempre da

mesma maneira. E o que é mais estridente é o facto de que a classificação

dos signos, ou mais ainda, a sua simples enumeração, mudar como um

movimento de redução das entidades. Em 1964, a exposição do sistema

dos signos, das formas do tempo, do jogo das faculdades e dos tipos de

incarnação da essência faz-se segundo um regime a quatro termos. Já não é

o caso na segunda parte – «A Máquina Literária», de 1970. Aqui, Deleuze

segue um modelo ternário. Finalmente, a Conclusão, de 1973, está

construída sobre um regime a dois termos, isto é, segundo um modelo

binário. Sem que nunca Deleuze o reconheça, existe uma evidente redução

do número dos signos a considerar, à medida que passamos da primeira à

terceira edição. Deleuze apresenta quatro tipos de signos na primeira parte

(mundanos, amorosos, sensíveis e artísticos). Na segunda parte,

acrescentada na edição de 1970, já só existem três tipos, os quais ele

denomina por «ordens de signos». Deleuze não recusa os tipos anteriores.

Ele reagrupa os quatro tipos da edição de 1964 em duas ordens (a primeira,

composta de signos naturais e artísticos, a segunda de signos mundanos e

amorosos), para acrescentar uma terceira ordem (designada «a universal

alteração»), à qual correspondem os signos de envelhecimento, de doença

e de morte. Ele passa, em 1970, de quatro tipos a três ordens de signos.

Finalmente, na Conclusão, acrescentada em 1973, Deleuze já só fala de

duas ordens de signos, ou melhor, de dois tipos de delírio de signos –

interpretação de tipo paranóia, e reivindicação do tipo erotomania ou

ciúmes.

Poderemos dizer que é a forma dos objectos pensados que

determina os regimes da sua pensabilidade? Será que, à medida que os

103

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

domínios analisados se reduzem nos seus elementos, Deleuze é ele mesmo

forçado a reduzir o número de categorias necessárias à análise desses

mesmos domínios? Estas hipóteses, apesar de sedutoras, não têm qualquer

verosimilhança. O objecto fundamental é sempre o mesmo : À Procura do

Tempo Perdido. Os domínios analisados são sempre os mesmos : os

signos, as faculdades, os graus de verdade, os modos da essência, as

dimensões do tempo. Trata-se sempre de uma tentativa visando desenhar o

mapa completo dos signos e fazer o sistema da semiologia de Proust.

Não se trata portanto de uma correspondência entre o objecto e o

seu modelo de pensabilidade. Porquê então apresentar esse sistema,

primeiro a quatro, depois a três e, finalmente, a dois termos? Tratar-se-á de

um procedimento de simplificação progressiva, de depuração, até a uma

fórmula final condensada? Não, nós não acreditamos nesta solução. Não se

trata nem de uma relação directa entre o objecto e o seu modelo, nem de

uma purificação da estrutura dessa descrição. Não é uma questão nem de

dimensão do domínio analisado, nem de simplificação do pensamento. Não

pode ser senão uma questão de ponto de vista, de modelo de representação

do pensamento na sua relação signos-faculdades. De facto, a primeira

parte, escrita logo depois do livro sobre Kant e da sua doutrina das

faculdades, segue, no seu sistema de signos a quatro tempos, o sistema das

faculdades de Kant. Não nos devemos surpreender de encontrar assim essa

correspondência entre os quatro tipos de signos e as faculdades da

sensibilidade, da imaginação, da memória e do pensamento. A segunda

parte, de 1970, reproduz com as suas três ordens de signos a estrutura

triádica de Lacan (a divisão entre o simbólico, o real e o imaginário); e a

terceira, de 1973, na distinção entre signos de tipo paranóia e do tipo

erotomania ou ciúmes, retoma o modelo binário da esquizoanálise

apresentada pela primeira vez em Anti-Édipo (loucura/delírio ;

paranóia/esquizofrenia ; molar/molecular).

104

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Acreditamos que é assim que se explica que, na primeira edição, os

signos sejam referidos sobretudo às faculdades e aos modos de incarnação

da essência, que, na segunda edição, os signos sejam derivados de

diferentes figuras da lei na sua relação com o desejo, e, finalmente, na

terceira edição, que os signos reproduzam a oposição

esquizofrenia/paranóia, enquanto delírio não-édipiano dos signos.

Enunciemos brevemente essa transformação de paradigmas ou de modelos

da relação signos-faculdades.

Na primeira parte de Proust e os Signos, há uma correspondência

perfeita entre os quatro tipos de signos e o sistema das faculdades, as

dimensões do tempo, as formas de incarnação da essência e os graus de

verdade. Assim, há dois grupos de signos, os materiais (mundanos,

amorosos e sensíveis), e os imateriais ou desmaterializados (artísticos).

Eles reenviam a quatro faculdades distintas (inteligência para os signos

mundanos e amorosos, memória involuntária e imaginação para os signos

sensíveis, e pensamento puro para os signos artísticos) bem como a quatro

dimensões do tempo (tempo que perdemos, tempo perdido, tempo que

reencontramos e tempo reencontrado). Cada tipo de signo implica, por sua

vez, quatro tipos de verdade (verdade do vazio, da estupidez e do

esquecimento dos signos mundanos ; verdade múltipla, aproximativa e

equívoca dos signos amorosos – as leis da mentira e os segredos da

homossexualidade ; verdade do nada e da eternidade dos signos sensíveis e

verdade da eternidade absoluta e espiritual dos signos artísticos). Cada

verdade, por sua vez, corresponde a quatro relações de essência aos signos

(implicação, explicação, envolvimento e desenvolvimento). A cada tipo de

signo corresponde ainda uma modalidade, a qual exprime o grau de

individualidade da incarnação de essência (de um lado, a contingência :

generalidade do grupo para os signos mundanos, generalidade serial para

os signos amorosos ; de outro lado, a necessidade : a individualidade

105

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

específica para os signos sensíveis, individualidade singular para os signos

artísticos). É uma verdadeira tábua dos signos que se apresenta, construída

pedaço a pedaço como uma equivalência da tábua das categorias da

Crítica da Razão Pura de Kant53 lida segundo o modelo estruturalista em

Ciências Humanas dominante nos anos sessenta.

Podemos dizer que um sistema transcendental da experiência

estética organiza esta primeira versão de Proust e os Signos. Quatro tipos

de signos, quatro faculdades, quatro formas do tempo, quatro momentos do

sentido para a essência. Não é possível determinar qual destas dimensões

da experiência – semiótica, epistemológica, fenomenológica, ontológica –

é a condição final, o fundamento da arte. Há uma génese comum e

simultânea dos objectos conhecidos, dos modos de apreensão, das

temporalidades vividas e das essências descobertas.

Na segunda edição, de 1970, que corresponde à Segunda Parte sob

o título geral de «A Máquina Literária», as correspondências são ainda

visíveis, apesar dos seus elementos terem mudado. A própria estrutura da

divisão também mudou. Os signos, as faculdades, o tempo, a verdade, a

essência, já não são divisíveis em materiais ou imateriais, mais um

elemento decisivo foi introduzido : a morte. A estrutura binária

(material/imaterial) que suportava o regime a quatro tempos incorporou

este terceiro elemento, na forma daquilo que Deleuze designa como o

envelhecimento e o caminho vertiginoso em direcção ao fim. Este

elemento obriga portanto a repensar todo o sistema a três tempos. Existem

agora cinco tipos de signos (o quinto é o do envelhecimento, de morte e de

doença), que correspondem a três ordens de signos (materiais, imateriais e

de morte). Os signos estão em relação, já não com as faculdades, mas com

três tipos de máquinas (produção de objectos parciais, produção de

53 Na primeira parte, precisamente, Deleuze deixa surpreender este paralelismo com Kant : «implicação e explicação, envolvimento e desenvolvimento: tais são as categorias de À Procura do Tempo Perdido» (PS, p. 109).

106

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

ressonâncias e produção da alteração universal e de morte), as quais são

produção de verdade. Assim, existem três ordens de verdades: verdade das

leis gerais dos prazeres e das dores, verdade singular das reminiscências e

das essências, verdade da universal alteração, da morte e da produção de

catástrofe. Existem também três dimensões do tempo – tempo perdido,

tempo reencontrado e tempo da alteração universal. Quanto às faculdades,

elas são projectadas sobre os planos do real (sensibilidade), do simbólico

(percepção) e do imaginário (imaginação e pensamento). Não podemos

deixar de ver a presença de Lacan nessa arquitectónica a três termos, assim

como no papel que tem aí a relação entre o desejo e a lei manifesta nos

novos signos – os de morte, de envelhecimento, de doença.

A segunda parte de Proust e os Signos, acrescentada na edição de

1970, é um momento único no movimento do pensamento de Deleuze. É

quase um texto impossível, construído sobre planos teóricos pouco

comunicantes. Ele contém os grandes temas psicanalíticos que tinha

adoptado nos livros escritos exactamente antes, e trabalha já dentro dos

conceitos que vão produzir a ruptura teórica que encontraremos em Anti-

Édipo dois anos depois. Vemos aí, lado a lado, mundos que se vão separar

cada vez mais. Por um lado, encontra-se a trindade lacaniana do simbólico-

imaginário-real. Encontra-se também o conceito de «instinto de morte»

como princípio transcendental, tal como ele organiza a análise dos

dispositivos de denegação e de suspense em Apresentação de Sacher-

Masoch e as três sínteses do tempo em Diferença e Repetição. Por outro

lado, tudo se organiza em redor dos conceitos de «máquina» e de

«transversalidade» os quais, em 1972, se vão tornar o fundamento do

vitalismo do desejo de Anti-Édipo.

O ponto mais extremo desta descontinuidade diferida, desta

clivagem em suspenso, deixa-se ver no conceito central desta segunda

edição do livro sobre Proust: o conceito de «lei». A lei funciona aí em

107

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

vários planos. Ela é, ao mesmo tempo, o modo de unidade dos vários

estratos de À Procura do Tempo Perdido, o lugar de engendramento do

sistema dos signos, e ainda o princípio real das sínteses do tempo. Em cada

um dos planos, uma única e mesma tese: a lei é vazia, é pura forma. A lei

determina aquilo que unifica, aquilo que engendra ou aquilo que funde sem

nunca se dar enquanto tal54. A lei produz ligações, produz repetição,

produz apagamento, mas não tem uma matéria que possa ser conhecida, ela

não é causa de nada. É para pensar este carácter paradoxal da lei que

Deleuze a define ao mesmo tempo como instinto de morte e como

máquina. A lei é movimento forçado sem matéria, e, ao mesmo tempo,

repetição pura sem conteúdo. Ela pune, produz sofrimento, inscreve nos

corpos a sua vontade de nada. Em cada um dos casos, se funciona em

vazio, ela aplica mesmo assim aos corpos as mais duras das sanções55. A

lei existe primeiro no supliciado. Ela é a sua culpabilidade, a sua dor.

Deleuze retoma assim a tese lacaniana sobre o paradoxo da lei. O

estrato simbólico, que se opõe ao imaginário e ao real, é herdeiro do

instinto de morte. E toda a segunda parte Proust e os Signos será uma

meditação sobre esta relação entre lei e morte, entre a ordem e o instinto de

morte.

Máquina e instinto de morte tornam-se os dois lados do simbólico.

Esta mesma relação entre máquina e instinto é retomada para as duas

outras dimensões da trindade lacaniana. O real é a máquina Hábito, o

imaginário é a máquina Éros-Mnémosine. Basta rebater esta trindade sobre

as três sínteses do tempo, como Deleuze as formula em Diferença e

54 «Enquanto rege um mundo de fragmentos não totalizáveis e não totalizados, a lei torna-se potência primeira. A lei já não diz o que é bem; mas é bem o que diz a lei. Ela adquire uma unidade formidável : já não há leis específicas de tal ou tal maneira, mas a lei, sem outras especificações. É verdade que essa unidade formidável é absolutamente vazia, unicamente formal, uma vez que não nos faz conhecer nenhum objecto distinto, nenhuma totalidade, nenhum Bem de referência» (PS, p. 158).

55 «Não nos fazendo nada, ela (a lei) só nos ensina aquilo que ela é marcando a nossa carne, aplicando desde logo em nós a sanção ; e eis o fantástico paradoxo, não sabemos o que a lei queria antes de receber a punição, não podemos portanto obedecer à lei senão sendo culpados (...). Incognoscível, a lei só se faz conhecer aplicando as mais duras sanções ao nosso corpo supliciado» (PS, p. 159).

108

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Repetição, para reescrever toda a leitura de Proust. O tempo a quatro

modos, da edição de 1964, torna-se um sistema ternário. O Hábito constitui

o fluxo contínuo do passado puro, o Éros é a fundação do tempo sobre um

presente vivo, o Thanatos é a terceira síntese, é o tempo como forma pura.

Thanatos adquire um papel central. Thanatos é apenas uma das máquinas,

a máquina que apaga. O instinto de morte é, assim, apenas uma das três

sínteses do tempo, a da forma pura do tempo. Mas, porque ele é o sem

fundo, ele reúne os outros dois como a sua verdade incondicionada.

Thanatos fá-lo funcionar na pura forma56. Thanatos é por conseguinte a lei

última, onde todas as outras leis convergem. E é a lei final porque é puro

forma, pura máquina.

É sempre Lacan quem inspira o mais fundamental: a estrutura

triádica das máquinas. Há três máquinas, a máquina do real fragmentado, a

máquina do desejo quem põe em ressonância estas partes parceladas, e a

máquina do simbólico, que produz o movimento forçado pela ideia de

morte. Deleuze chama a primeira, sob a inspiração de Mélanie Klein,

«máquina dos objectos parciais», a que produz fragmentos sem totalidade,

vasos sem comunicações e cenas compartimentadas. Ao segundo tipo de

máquina, ele chama «máquina de ressonâncias»57. A terceira é a mais

complexa. Deleuze não tem nome simples para a designar. É anunciada por

toda a parte como o ponto de resolução das duas outras máquinas, das duas

outras ordens do tempo58. É a ideia de morte quem se vem revelar como

56 «A primeira síntese exprime a fundação do tempo sobre um presente vivo, fundação que dá ao prazer o seu valor de princípio empírico em geral, ao qual é submetido o conteúdo da vida psíquica no Id. A segunda síntese exprime o fundamento do tempo por um passado puro, fundamento que condiciona a aplicação do princípio de prazer aos conteúdos do Moi. Mas a terceira síntese designa o sem-fundo, onde o fundamento ele mesmo nos precipita : Thanatos é descoberto em terceiro lugar como esse sem-fundo para lá do fundamento de Éros e da fundação do Hábito. (…) De uma certa maneira a terceira síntese reúne todas as dimensões do tempo, passado, presente, futuro, e fá-las jogar agora na pura forma» (DR, p. 151).

57 «As mais célebres são as da memória involuntária, que fazem ressoar dois momentos, um actual e um antigo» (PS, p.181).

58 «A contradição aparece aqui sob a sua forma mais aguda : as duas primeiras ordens eram produtivas, e era por isso que a sua conciliação não colocava qualquer problema em particular ; mas a terceira, dominada pela ideia de morte, parece absolutamente catastrófica e improdutiva. Podemos conceber uma máquina capaz de extrair qualquer coisa a partir deste tipo de impressão dolorosa, e de produzir certas

109

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

uma terceira máquina. Thanatos é a máquina última e primeira. Deleuze

termina assim o seu sistema das máquinas de Proust. Retoma, termo a

termo, a trindade de Lacan.

A equivalência entre, de um lado, a forma pura e vazia do tempo e,

do outro, o instinto de morte, ocupa já o centro de Diferença e Repetição59.

É apenas a ideia de máquina que não estava ainda presente neste livro de

1968. Ela aparece pela primeira vez em Lógica do Sentido para pensar a

relação entre o inconsciente e o sentido como produção60. Mas a sua

introdução no texto de 1970 sobre Proust vai dar ao conceito de instinto de

morte na sua relação com a lei incognoscível o papel de um novo centro de

À Procura do Tempo Perdido. Da edição de 1964 a esta segunda parte

acrescentada em 1970, de um regime a quatro tempos a uma trindade

generalizada, Deleuze desloca o seu empirismo transcendental para um

vitalismo das máquinas. Este texto é efectivamente o anúncio de Anti-

Édipo e de toda a sua política das máquinas desejantes.

Vejamos agora a terceira edição. Recordemos que esta terceira

edição se reduz às poucas páginas de um texto que Deleuze tinha

publicado em Itália e que acrescenta como sendo a «Conclusão» de todo o

livro. Tomemos em consideração, em primeiro lugar, o tema das

faculdades. A percepção, a imaginação, a inteligência e o pensamento

cruzam-se com os signos segundo o tipo de delírio. De facto, o pensamento

é a faculdade do delírio de interpretação, enquanto que a percepção e a

imaginação são as faculdades do delírio de reivindicação do tipo

erotomania ou ciúmes. O terceiro Proust e os Signos caracteriza-se por

dois regimes de signos : discursivo ou lógico; e não discursivo ou

verdades? Enquanto não a concebermos, a obra de arte reencontra a mais grave das objecções» (PS, p.190).

59 «A fórmula proustiana ‘um pouco de tempo em estado puro’ designa primeiro o passado puro, o ser em si do passado, ou seja a síntese erótica do tempo, mas designa mais profundamente a forma pura e vazia do tempo, a síntese última, a do instinto de morte que conduz à eternidade do retorno no tempo» (DR, p.160).

60 Em Lógica do Sentido, Deleuze diz que Freud é «o prodigioso descobridor da maquinaria do inconsciente através do qual o sentido é produzido (...). Produzir o sentido é a tarefa de hoje» (LS, p. 91).

110

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

patológico. A diferença faz-se, assim, no interior dos dois níveis da

realidade, de um lado, a superfície da normalidade, onde o discurso é

possível, e, de um outro lado, a profundidade da loucura, onde não há

senão não-linguagem. Os primeiros dividem-se entre voluntários e

involuntários, e estes dividem-se por seu turno entre signos de violência e

signos de loucura. Os últimos reenviam seja ao delírio de interpretação,

seja ao delírio de reivindicação do tipo erotomania ou de ciúmes. O tempo,

em 1973, diz respeito ao discurso e varia segundo a intensidade, a

velocidade e o ritmo (tempo de denegação e tempo de distanciação para

um discurso ainda do logos, e tempo inesperado da loucura). A verdade, tal

como a essência, já não é problematizada, mas podemos dizer que, se há

verdade e essência, elas são as do delírio, do discurso da loucura, do

Narrador-aranha que faz a sua teia.

A singularidade da terceira edição Proust e os Signos é por

conseguinte a aplicação da teoria da esquizofrenia de Anti-Édipo à teoria

dos signos que Deleuze crê encontrar na obra de Proust. O regresso à

pergunta dos signos faz-se à luz da teoria da esquizoanálise de 1972, a qual

pensa a relação do indivíduo ao real como se fazendo pelo delírio61. A

partir da teoria do delírio de Anti-Édipo, Deleuze pergunta se, em À

Procura do Tempo Perdido, não há também um delírio, neste caso um

delírio dos signos. A resposta é afirmativa. Para compreender esta

dicotomia, Deleuze retoma a distinção presente em Anti-Édipo entre

esquizofrenia e paranóia. É assim que Deleuze propõe dois delírios de

signos: os interpretativos de tipo paranóia, e os reivindicativos do tipo

erotomania ou ciúme62. A distinção dos dois tipos de delírio de signos faz-61 As grandes linhas da terceira parte de Proust e os Signos encontram-se já nas referências a Proust em O

Anti-Édipo. Os temas da homossexualidade sem relação à lei, a teoria dos signos do delírio, o conceito do narrador como teia de aranha e corpo-sem-órgãos são pensados pela primeira vez no capítulo « Psicanálise e Familiarismo », sobretudo pp. 80-84.

62 «Nos finais do século XIX e princípio do século XX, a psiquiatria estabelecia uma distinção muito interessante entre dois tipos de delírio dos signos (...). Não dizemos que Proust aplica aos seus personagens uma distinção psiquiátrica que se elaborava no seu tempo. Mas Charlus e Albertine, respectivamente, traçam caminhos em À Procura do Tempo Perdido que correspondem a esta distinção

111

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

se então entre paranóia, enquanto perseguição por um outro, e erotomania

e ciúme, enquanto perseguição de outro. Na última edição de Proust e os

Signos, em 1973, encontramo-nos completamente mergulhados na

apoteose do delírio. Deleuze já só fala agora de esquizofrenia, dos

signos da loucura, dos dois regimes do pensamento (discursivos e lógicos/

não discursivos e patológicos) e de uma comunicação tornada

«aberrante»63.

É o próprio Deleuze, já em 1972, em Anti-Édipo, quem nos revela

o leitmotiv de toda esta enorme mudança teórica que se descobre em 1973

com a terceira parte de Proust e os Signos: «estamos na idade dos objectos

parciais, dos tijolos e dos restos (...). E é impressionante, na

máquina literária de À Procura do Tempo Perdido, a que ponto todas as

partes são produzidas como lados dissimétricos, direcções quebradas,

caixas fechadas, vasos não comunicantes, compartimentações, onde

mesmo as contiguidades são distâncias (...). É a obra esquizóide por

excelência»64. Abruptamente, À Procura do Tempo Perdido é apresentado

como o próprio monumento de um objecto literário esquizóide. Vemos

bem em que medida, para compreender a terceira (e última) edição do livro

sobre Proust, devemos passar pelo programa de uma

esquizoanálise formulado neste livro de 1972.

Deleuze e Guattari já nos tinham explicado, em Anti-Édipo, que a

esquizofrenia era a própria realidade do desejo e que o desejo era

produção. O desejo é primeiro máquina, produção de desejo não como

falta mas como superabundância de desejo. A máquina literária que

constitui À Procura do Tempo Perdido é, por conseguinte, a loucura e

responde a um funcionalismo onde o sentido, o signo e a interpretação são

menos importantes que o seu uso, a sua função e a sua distribuição.

de um modo muito preciso» (PS, p. 215). 63 Cf. PS, p. 210.64 AO, pp. 50-1.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Semiologia funcionalista à escala molecular. Signo investido do interior,

na sua cadeia genética: signo económico, social, político, histórico,

cultural, religioso. Signo do fora. Signo desejante, signo delirante. A

pergunta de Anti-Édipo: «como começa um delírio?», serve portanto na

perfeição para compreender o enredo de Proust e os Signos de 1973, ou

seja, o enredo do delírio dos signos, o delírio de interpretação do Narrador-

aranha. Uma vez mais, o regresso a Proust e os Signos em 1973 desenha-se

como a exemplificação literária da teoria do desejo e da esquizofrenia de

Anti-Édipo.

Na pergunta «que presença da loucura em À Procura do Tempo

Perdido?» já não se trata, nem do tema da aprendizagem e da verdade,

como na primeira parte, nem do tema da lei do mundo fragmentário, como

na segunda parte. Estamos de facto face a uma teoria intensiva das

faculdades, as quais já não dizem respeito à semelhança como actividade

racional por excelência da consciência. Trata-se agora de faculdades

delirantes que entram em devir com a matéria de que são portadoras. As

faculdades tornam-se assim não-discursivas, e a sua função mecânica é

impessoal: já não as faculdades de um eu, mesmo sem consciência

(segunda parte do livro sobre Proust), mas o acontecimento «faculdades»

que fazem multiplicidades com a matéria de um «fora» que elas

percepcionam.

Podemos então concluir que, depois da primeira edição, em que se

percebe uma profunda leitura estruturalista de Kant, segue-se uma segunda

edição em que o universo édipiano explica não só a tonalidade lacaniana da

segunda edição de Proust mas também a violência anti-psicanalítica que

atravessa toda a sua terceira edição. É portanto todo um conjunto de

paradigmas literários diferentes que se manifesta nestas diversas maneiras

de explicar a unidade da obra de Proust. Na primeira edição em 1964,

inspirada pelo universo de Saussure e Barthes, À Procura do Tempo

113

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Perdido é visto do interior de uma perspectiva kantiana. Este livro é a

consequência dessa harmonia discordante entre as faculdades e o seu

reenvio estruturalista aos signos que define a própria experiência da arte,

tal como é apresentada em Nietzsche e a Filosofia e A Filosofia Crítica de

Kant. Na segunda edição, o olhar psicanalítico impõe a explicação da

unidade da obra pela sua relação à lei, ao interdito. É o horizonte de

Apresentação de Sacher-Masoch, de Diferença e Repetição e de Lógica do

Sentido, que o faz regressar a Proust em 1970, fazendo da segunda edição

de Proust e os Signos um caso limite de uma aproximação édipiana à

natureza da ficção literária. Na terceira edição, ou seja após a publicação de

Anti-Édipo, isto é, no momento de ruptura com as categorias de Freud e de

Lacan, Deleuze projecta sobre À Procura do Tempo Perdido o ponto de

vista do seu novo programa esquizoanalítico.

Por que razão chamou Deleuze a estes dois retornos ao livro sobre

Proust, um em 1970, outro em 1976, neste último caso retomando um texto

que ele tinha escrito e publicado em 1973, com títulos tão imponentes

como «Segunda Parte» e «Conclusão»? Uma Segunda Parte que em nada

continua a Primeira e uma Conclusão que não é senão um campo de

batalha, uma clivagem conceptual, um verdadeiro plano de composição em

plena acção? Por que não simplesmente anexá-los, considerá-los um

suplemento, como ele tinha feito antes em Lógica do Sentido, com todos os

textos que ele tinha publicado entretanto? Não podemos deixar de pensar

que tal é o resultado da vontade de Deleuze de redimir o facto das suas

descontinuidades remeterem, não para objectos diferentes, mas para

diferentes modos de pensar esses objectos.

BIBLIOGRAFIAProust et les Signes, Paris : Minuit, 1976.

Différence et Répétition, Paris : P.U.F., 1968.

114

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Logique du Sens, Paris : Minuit, 1969.

Pourparlers, Paris : Minuit, 1990.

L’Anti-Œdipe, Paris : Minuit, 1972.

Pourparlers, Paris : Minuit, 1990.

115

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Merleau-Ponty e a experiência da afectividade na

criança.Irene Pinto Pardelha65

0.

Em 1951, Merleau-Ponty lecciona, na Sorbonne, um seminário que

tem como objectivo explorar a forma como a criança se relaciona com os

outros. Este seminário, publicado com o título “Les relations avec autrui

chez l’enfant” na compilação de textos que fazem parte de Parcours,

exprime-se numa linguagem fundamentalmente descritiva, à semelhança de

outros textos do autor, como La Structure du comportement ou as notas

postumamente publicadas dos cursos do Collège de France sobre a noção

de Natureza. Ao longo das páginas apresentadas observamos que o

aparelho crítico em torno do qual se esboça a afectividade infantil é

fundamentalmente psicológico. No entanto, como Merleau-Ponty explica, a

Psicologia oferece apenas uma abordagem intelectual do problema e, para

compreender o alcance da experiência da alteridade infantil é necessário

considerar sobretudo o seu aspecto emocional. O objectivo desta

comunicação é compreender como é que o outro aflora na vida da criança

como um alter ego, para isso, a compreensão da imagem especular será

aqui de especial interesse.

65 Doutoranda da Universidade de Évora.

116

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

1. Crítica às noções clássicas de psiquismo e de corpo próprio

Wolfgang Köhler dizia que para compreender o fenómeno da

animalidade não podíamos colocar ao animal problemas que não fossem os

seus. A conduta do animal só nos aparece como absurda se exigirmos dele

o desempenho de funções que não são próprias da sua espécie. Neste

sentido, o comportamento que o animal dirige ao mundo está dependente

da estrutura sobre a qual assenta e, por isso, não podemos esperar que um

cão abra uma fechadura.

O olhar humano adulto, intencionalmente antropomórfico, processa-

se através de operações comparativas, incapazes de escapar a uma tipologia

de superior e inferior. O erro cometido contra o comportamento animal

verifica-se por isso também quando analisada a conduta da criança. Neste

caso, as respostas da criança só parecem rudimentares porque as questões

que lhe são postas são próprias da idade adulta. Torna-se assim insolúvel

um estudo que pretenda analisar o comportamento infantil por analogia ao

do adulto: da comparação surge a incompreensão e o desajuste entre duas

formas de tratar o mundo. Apesar da criança e do adulto viverem no

mesmo mundo, o horizonte de experiência mundana de uma é diferente da

do outro; eles tratam o mesmo mundo (i. e. o mundo de todos, o horizonte

interpessoal de todas as experiências possíveis) através de um aqui e agora,

ao qual cada um só pode responder munido das suas vivências pessoais. No

entanto, o comportamento humano realiza-se, como Merleau-Ponty nos

explica, por antecipação e regressão. Na conduta do adulto está patente a

vivência infantil e a conduta da criança antecipa a maneira como o adulto

dá forma ao seu mundo sem que, contudo, possamos pensá-la como uma

espécie de esboço. Ela é, por assim dizer, a forma como a criança faz uso

da sua vida, como ela estrutura o seu mundo.

117

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Até à fase de latência, não podemos considerar que a conduta infantil

seja realmente intelectual. A sua experiência é antes de mais afectiva e não

podemos pensar que a criança constitua o mundo do fundo da sua

interioridade, do alto seu psiquismo. Apenas numa fase mais avançada da

sua vida, o indivíduo pode supor que todo o corpo que se exprime como o

seu seja habitado por uma consciência, porque uma operação lógica como

esta pressupõe o desenvolvimento de um sistema de pensamento, cuja

existência, como dissemos, não podemos comprovar nos primeiros anos da

vida da criança.

Merleau-Ponty sente-se, por isso, no direito de reformular a ideia da

Psicologia clássica, que define o psiquismo ou a esfera psíquica como

aquilo que é dado a um só. Pois, se partimos do princípio que o psiquismo

é uma interioridade impenetrável a qualquer conteúdo externo, ele é

incomunicável e, por conseguinte, a experiência do outro torna-se

impossível. Neste sentido, para que o fenómeno afectivo seja possível, i. e.

para que a criança esteja apta a desenvolver uma percepção do outro, é

necessário, antes de mais, que ela não seja impermeável a uma experiência

exterior. Que a interacção entre a criança e o seu meio mais próximo seja

fundada a partir da noção de conduta, pois «é na sua conduta, na maneira

como o outro trata o mundo que eu vou poder encontrá-lo»66.

Contudo, a revisão do conceito de psiquismo não é o único requisito

necessário para compreender o fenómeno da afectividade infantil. Através

da forma como estrutura o mundo, pelo comportamento, a criança habita-o,

ela vive nas coisas e nos outros. Há assim interacção e transferência de

intenções. A situação de indistinção entre a criança e o seu mundo familiar

exige uma redefinição da noção clássica de corpo próprio. O

desenvolvimento de uma estrutura comportamental não pode ser fundada

66 M. MERLEAU-PONTY, «Les relations avec autrui chez l’enfant» in Parcours – 1935-1951, Lagrasse, Éditions Verdier, 1997, p. 176.

118

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

apenas na apreensão cenestésica do seu corpo, porque a contribuição dos

dados dos sentidos não pode ser rejeitada na configuração geral da

existência da criança. O corpo-próprio deve ser compreendido, segundo

Merleau-Ponty, como «estrutura corporal», porque não se limita a ser uma

massa de sensações, mas a instituição humana de um sistema, de uma

totalidade onde as experiências de interoceptividade e de exteroceptividade

devem ser compreendidas segundo uma lógica de reciprocidade. Porque,

«instituição, no sentido forte, é esta matriz simbólica que faz com que haja

abertura de um campo, de um futuro através de dimensões, daí a

possibilidade de uma aventura comum e de uma história como

consciência»67.

2. A experiência interoceptiva do corpo-próprio e do outro

A organização da experiência do outro, i. e. da afectividade

acompanha o desenvolvimento do esquema corporal. No entanto, o

esquema corporal não nos é dado de uma vez por todas. Ele é uma forma

dinâmica, que se desenvolve e se reorganiza tendo como objectivo uma

melhor organização da experiência humana. A instituição de uma vida

humana não segue os passos de um programa pré-estabelecido, na medida

em que o desenvolvimento se dá, segundo Merleau-Ponty, como «uma

estruturação (Gestaltung, Neugestaltung) progressiva e descontínua do

comportamento»68.

Se podemos, por isso, identificar diversas etapas na vida do

indivíduo, isso não implica que não possam ocorrer regressões ou

antecipações relativamente umas às outras. A infância não é assim uma

67 M. MERLEAU-PONTY, L’Institution. La Passivité, Paris, Éditions Belin, 2003, p. 45.68 M. MERLEAU-PONTY, La Structure du Comportement, Paris, PUF, 2002, p. 192.

119

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

preparação da vida adulta, mas uma antecipação sobre ela. Neste sentido,

Merleau-Ponty constata que «a criança é sempre [prematura] e o próprio

nascimento é prematuro, já que a criança vem ao mundo num tal estado,

que a vida independente neste meio novo não é possível para ela»69.

Lançada num mundo para o qual não possui a chave de

compreensão, a criança tem como único recurso um corpo, que, como já

vimos, se define através de um sistema que comporta uma experiência

interna e externa. No entanto, o esquema corporal infantil não consegue

ainda tirar proveito de todos os seus recursos, e não conseguirá fazê-lo

enquanto o desenvolvimento natural do seu corpo não for capaz de fundir

os dados da experiência interna com os da experiência externa. A

organização do esquema corporal depende, por isso, não apenas das

sensações interoceptivas que a criança tem do seu corpo, mas da adaptação

dos órgãos dos sentidos ao meio físico onde se situa. Dependendo da

constituição biológica do indivíduo, o desenvolvimento da

exteroceptividade é tardio relativamente aos dados da percepção interna.

Não podemos, com isto, afirmar que a percepção externa esteja ausente na

primeira fase do desenvolvimento da criança, contudo ela ainda não se

encontra suficientemente organizada para poder colaborar de forma

efectiva na experiência afectiva infantil.

Neste sentido, tendo como base o desenvolvimento privilegiado das

sensações internas nos primeiros seis meses da vida da criança, Merleau-

Ponty defende que enquanto os dados da percepção externa não puderem

ser identificados com os da interoceptividade, «o corpo interoceptivo

funciona como exteroceptivo»70. O desenvolvimento do esquema corporal,

apesar de dependente da imersão da criança no mundo, é organizado

apenas de maneira interoceptiva. Não há, por assim dizer, um verdadeiro

69 M. MERLEAU-PONTY, «Les relations avec autrui chez l’enfant» in Parcours – 1935-1951, p. 205.70 M. MERLEAU-PONTY, «Les relations avec autrui chez l’enfant» in Parcours – 1935-1951, p. 183.

120

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

contacto com o exterior, no sentido de um sujeito que apreende um objecto,

pois tudo é sentido a partir de dentro.

Por conseguinte, segundo Merleau-Ponty, «a percepção do corpo-

próprio está em avanço sobre o reconhecimento do outro e se as duas

formam um sistema, é um sistema articulado no tempo»71. O que quer dizer

que, se a percepção do outro está unicamente dependente dos dados da

experiência dos sentidos, ela não está verdadeiramente presente na primeira

fase da vida da criança. Nesta linha de análise, até aos seis meses, o

esquema corporal infantil não estaria ainda apto para distinguir entre um eu

e um outro, ou seja entre uma experiência de si e uma experiência daquilo

que escapa aos limites do seu próprio corpo.

Não obstante, poderíamos falar de uma percepção interoceptiva do

outro, onde este não seria verdadeiramente sentido como alter ego, uma

vez que a criança não consegue ainda sentir-se a si mesma como um ego. O

outro é sentido primeiramente como conduta, porque as diferentes atitudes,

das diferentes pessoas que rodeiam a criança, são sentidas internamente

pelos diversos estados do seu corpo. Podemos, por isso, descrever esta fase

através de uma pré-comunicação de intenções entre a criança e o seu meio

afectivo, onde identificaríamos «não um indivíduo em face de um

indivíduo, mas uma colectividade anónima, uma vida a muitos sem

distinção»72. A reciprocidade comportamental entre a criança e as pessoas

que a rodeiam inscreve-se numa estrutura indistinta e, por isso, experiência

afectiva infantil dá-se como um fenómeno global. A forma plena como a

criança vive o seu mundo (de coisas e de afectos) pode ser exemplificada

através da sensação de incompletude infantil (Wallon) experienciada pelo

bebé nas primeiras semanas: ele não chora porque vê alguém partir ou

porque alguém o coloca de volta no berço, mas porque a sua solidão é

71 M. MERLEAU-PONTY, «Les relations avec autrui chez l’enfant» in Parcours – 1935-1951, p. 181.72 M. MERLEAU-PONTY, «Les relations avec autrui chez l’enfant» in Parcours – 1935-1951, p. 179.

121

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

sentida interiormente como uma falta. Ou seja, «a criança não percebe

verdadeiramente as pessoas que estão ali, ela “fica” incompleta quando

alguém vai embora»73.

3. A contribuição da imagem especular na percepção do corpo

próprio e do outro

A imagem oferecida pelo espelho introduz uma revolução na

compreensão do fenómeno da afectividade infantil. Por intermédio do

espelho, a criança compreende que também há um espectáculo visível de si

mesma, a que os outros podem assistir, tal como ela assiste ao espectáculo

dos outros. Ela compreende que o seu ego interoceptivo é também um ego

visual. A imagem do espelho introduz, portanto, a possibilidade de

identificação, mas ao mesmo tempo uma cisão, na medida em que a partir

do momento em que a criança se reconhece na imagem, a sua existência

real desenrolar-se-á sempre por referência a um ideal.

No entanto, a síntese entre a imagem especular e o seu corpo-próprio

é um processo complexo para a criança e, daí que, a identificação do outro

no espelho e a distinção entre o modelo e a imagem sejam para ela

processos mais simples de compreender. Por exemplo, aos seis meses a

criança, apesar de não se reconhecer no espelho, já consegue distinguir

entre a imagem do seu pai e o pai quando este lhe fala. Para ela é mais fácil

identificar o pai do que a si mesma no espelho porque a imagem visual

paterna faz parte das condutas que até ali ela encontrou no mundo. A

distinção entre o modelo e a imagem é feita tendo como base o

reconhecimento de que aquele que lhe fala é o mesmo que ela pode tocar.

No entanto, a imagem visual do seu próprio corpo é ínfima

relativamente à imagem interoceptiva que tem dele. O espelho dá-lhe pela

73 M. MERLEAU-PONTY, «Les relations avec autrui chez l’enfant» in Parcours – 1935-1951, p. 186.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

primeira vez uma visão completa do corpo-próprio e, neste sentido, a

imagem especular coloca à criança duas dificuldades essenciais: identificar

o seu corpo interoceptivo ao seu corpo visual e, por fim, compreender que

ela é vista pelos outros onde ela se sente, sob o aspecto visual que lhe

oferece o espelho.

No fundo, o problema colocado pelo espelho resume-se ao seguinte:

a criança não se vê onde se sente e não se sente onde se vê. A resolução

deste problema implica que a criança seja capaz de (cito Merleau-Ponty)

«deslocar a imagem do espelho, reenviá-la do lugar aparente que ela ocupa

no fundo do espelho, até ela, e que ela a identifique à distância com o seu

corpo interoceptivo»74. Ou seja, implica que a criança seja capaz de fundir

os dados da interoceptividade com os dados da exteroceptividade.

É necessário também compreender que a identificação não anula a

independência relativa que a imagem especular tem relativamente ao

modelo real, na medida em que ela introduz uma espécie de existência

fantasmagórica, uma quasi-existência marginal. Esta quase-presença é

sentida pela criança também no que respeita à apreensão do seu próprio

corpo através da imagem dada pelo espelho. Ela começa por compreender a

imagem especular como uma espécie de duplo do seu corpo. E, por isso,

sente que pode estar em vários sítios ao mesmo tempo.

Se através da ubiquidade a criança sente que também habita a

imagem no espelho, é porque a imagem especular participa de forma global

na existência do próprio corpo. Da mesma forma podemos compreender o

reconhecimento do outro como experiência afectiva: «A criança sente-se a

si mesma no corpo do outro como se sente na sua imagem visual»75. O

fenómeno do outro pode assim ser compreendido no seio da indistinção

74 M. MERLEAU-PONTY, «Les relations avec autrui chez l’enfant» in Parcours – 1935-1951, p. 193.75 M. MERLEAU-PONTY, «Les relations avec autrui chez l’enfant» in Parcours – 1935-1951, pp. 199-200.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

entre três termos fundamentais: o corpo visual da criança, o seu corpo

interoceptivo e o outro.

Por intermédio da imagem especular a criança assume-se como ser

visual, dando-se conta que, se é visível para si é visível para os outros.

Neste sentido, como Lacan também refere, a imagem especular é «matriz

simbólica» tanto da percepção do corpo-próprio como da percepção do

outro. No entanto, ela possui uma função «desrealizante», na medida em

que nos arranca à nossa realidade imediata por referência do ego

interoceptivo a um ego ideal. Há, por isso, alienação do ego interoceptivo

no ego especular, tanto quanto há alienação de mim no outro. Nas palavras

de Merleau-Ponty, a partir do momento em que a criança compreende que a

imagem visual é o correspondente externo do seu corpo vivido

interiormente, «o ego deixa de se confundir com o que sente ou deseja em

cada momento, e a este ego vivido se sobrepõe um ego construído, um ego

visível de longe, um ego imaginário, o que os psicanalistas chamam de

super-ego. A partir daqui, a atenção da criança é captada por este ego acima

de mim, ou por este ego diante de mim»76.

Neste sentido, concluímos que a experiência da imagem especular

deve ser compreendida como antecipação pela infância da compreensão do

fenómeno de alteridade. A imagem no espelho é um pré-outro. Ou seja, a

imagem do espelho «é matriz simbólica onde o ego se precipita numa

forma primordial antes de se objectivar na dialéctica de identificação com o

outro»77.

76 M. MERLEAU-PONTY, «Les relations avec autrui chez l’enfant» in Parcours – 1935-1951, p. 204.77 M. MERLEAU-PONTY, «Les relations avec autrui chez l’enfant» in Parcours – 1935-1951, p. 203.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

Afinal o que significa o inconsciente? Michel Henry

leitor de Freud.

Nuno Miguel Proença∗

Estou desde finais de 2007 como pós-doutorando do Centro de

Filosofia das Ciências e tenho estado interessado pelas obras de Michel

Henry e de Henry Maldiney em que estão presentes perspectivas filosóficas

sobre a origem da Psicanálise. É por essa razão, e porque me interessa a

maneira como as noções de «pulsão», de «afecto» e de «inconsciente» se

elaboraram na filosofia antes de serem empregues pela psicanálise que me

interessei por um texto de Michel Henry de que vos proponho hoje uma

apresentação. Tem por título «Significação do conceito de inconsciente

para o conhecimento do homem»78. Encontra-se numa recolha de textos

com o título «Auto-doação» e é oriundo de uma conferência pronunciada

por Henry na Academia das Ciências de Moscovo, no dia 31 de Maio de

1986, aquando de um colóquio com o título «O Inconsciente».

Permitam-me que comece por uma série de perguntas às quais

certamente já encontraram resposta. Seremos capazes de enumerar de cor

as palavras que conhecemos ? Quem é que está actualmente consciente da

série de termos e da significações destes, que conhece numa língua, a

começar pela língua natal ? E se nos sentássemos a escrever uma a uma as

palavras que conhecemos, de quantas nos lembraríamos de facto ? De um

número certamente inferior àquelas que de facto sabemos. Onde é que se

encontram as palavras que às vezes nos faltam, e que conhecemos, e que

procuramos e que não encontramos ou que encontramos às vezes enleadas Pós-doutorando, CFCUL.78 «Signification du concept d’inconscient pour la connaissance de l’homme», in Auto-donation, Paris,

Beauchesne, 2004, pp. 87-110. A tradução dos trechos citados é da nossa responsabilidade.

125

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

no novelo de outras tantas? Uma resposta seria simples, aparentemente :

encontram-se na nossa memória, claro, mas algures nela onde, por uma

razão qualquer, não acedemos só pela vontade e da qual, por isso, parece

que não estamos conscientes. A meu ver estas perguntas permitem-nos

entender aquilo que Freud nos apresenta com o nome de inconsciente, não

aquilo a que o próprio dá o nome, num texto de 1926 sobre « A

manipulação da interpretação dos sonhos», de misterioso inconsciente, mas

a série de materiais que a um momento ou outro escapa à nossa consciência

apesar de determinar os conteúdos desta, e sobretudo aqueles que parecem

excedê-la: lapsos, afasias, actos falhados, inibições, fobias, esquecimentos,

erros sucessivamente renovados, por exemplo, e, claro, entre outras coisas,

os sonhos. Ora, é precisamente a possibilidade dos conteúdos de

consciência serem determinados por materiais não conscientes que parece

levantar um problema à filosofia e nomeadamente à filosofia do

conhecimento na qual a consciência tem um papel predominante.

O esclarecimento fenomenológico de Michel Henry sobre a

Significação do conceito de inconsciente para o conhecimento humano

desconstói a incompatibilidade aparente entre as hipóteses freudianas para

a constituição de uma psicologia do inconsciente e as restantes ciências

humanas no sentido em que situa as primeiras na continuação do momento

metafísico que serve de fundamento às segundas. Mas porquê?

«A questão do conhecimento do homem é muito particular,

simultaneamente solidária e diferente da questão do conhecimento em

geral. O conhecimento é as mais das vezes o conhecimento de algo que é

em-si estranho ao próprio conhecimento, algo de opaco e de cego que

precede, ao que parece, o olhar que o conhecimento fará incidir sobre ele e

que, graças a esta, será tirado do seu lugar natural para ser levado, nela e

por ela, até à luz. O ente da natureza, a pedra, o átomo, a molécula, banham

numa espécie de noite original e cósmica que quase não se pode pensar e

126

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

de onde o conhecimento os vem arrancar para os projectar perante este

olhar da consciência de modo a oferecê-los a esta. O homem, pelo

contrário, se o considerarmos no que tem de específico, quer dizer naquilo

que o diferencia de qualquer outro ente, não precisa, para aceder à luz da

fenomenalidade, de intervenção de um princípio que não seja ele e que

viria subtraí-lo posteriormente a uma dimensão anterior de escuridão, é ele-

próprio esta luz, ele próprio o conhecimento, é «consciência»»79. A tese

assim resumida parece simples de entender : a Humanitas do homem seria

assim definida como «fenomenalidade, mais precisamente, como

fenomenalização da fenomenalidade e assim em oposição radical com

aquilo que pelo contrário se encontrara em-si desprovido do poder de

cumprir a obra da manifestação. No pensamento de Descartes, esta

oposição é a da alma e do corpo»80.

A consideração é bastante geral mas é importante. Não só porque,

como relembra M. Henry, «antes da psicanálise e como seu antecessor

incontornável, o conceito de inconsciente vai também levantar-se e

aparecer em todo o lado na filosofia clássica ocidental como recusa ou

consequência do cogito de Descartes»81, mas também porque, no

seguimento — pelo menos histórico— disto, o inconsciente vai ser

apresentado por Freud como aquilo que da vida psíquica excede a

actualidade da manifestação consciente. A ideia de que Freud é um

herdeiro tardio do desenvolvimento da metafísica Ocidental é a tese de

fundo da Genealogia da psicanálise que Michel Henry escreveu poucos

anos antes da conferência pronunciada em Moscovo e que reencontramos

neste texto.

O primeiro texto de Freud ao qual Henry presta atenção é de 1912 e

tem por título «Abrégé de psychanalyse» e é importante por verificar a 79 M. Henry, «Signification du concept d’inconscient pour la connaissance de l’homme», in Auto-

donation, Entretiens et conférences, p.87. 80 Ibid.81 Ibid., p.88.

127

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

hipótese de que a noção de consciência com a qual Freud trabalha e a partir

da qual elabora as suas hipóteses é aquela que o senso comum herdou de

forma mais ou menos esclarecida da tradição metafísica. « A primeira

indicação de Freud, diz Henry, não deixa de parecer decepcionante ou até

mesmo desconcertante». E o que é que escreve o Freud de 1912 ? Escreve

que «não é preciso explicar aqui aquilo a que damos o nome de consciente

e que é o consciente dos filósofos e do grande público». Uma segunda

resposta, escreve Henry, impressiona pelo contrário pela sua clareza.

Depois de ter contestado a identificação filosófica tradicional entre

«psíquico» e «consciente», a Nota sobre o inconsciente em psicanálise de

1912 declara de forma categórica : «Chamemos pois « consciente » a

representação que está presente à nossa consciência e que percebemos

como tal e digamos que é este o único sentido do termo « consciente»». A

partir desta definição de consciente, escreve Henry, chegamos depressa ao

inconsciente pelo caminho que é o de Freud : «Se de facto a essência da

consciência reside na representação, quer dizer na posição frente a si sob

forma de um redobrar ou de um desdobrar, qualquer representado, quer

dizer o poisado em frente, o que é visto e conhecido – no texto de Freud :

«A representação que está presente à nossa consciência e que percebemos

como tal» - encontra-se afectada pela finitude que é própria a qualquer

representação como tal e que é a do espaço de luz aberto por ela. Noutros

termos: só me posso representar uma coisa de cada vez, claro com uma

zona de co-apresentação marginal sempre co-dada mas em todo o caso

estreita e já afogada na sombra. Se portanto ser, é ser consciente e, se ser

consciente é ser representado, então a quase totalidade deste ser fica fora da

representação efectiva ou actual»82. Não estamos longe da constatação de

há pouco de que conhecemos muitas mais palavras do que aquelas que

somos capazes de enumerar. Sobretudo se tivermos em mente a ideia de

82 Ibid. p.88.

128

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

que as palavras são acompanhadas de representações e estas de palavras. Se

prosseguirmos a leitura do texto de Henry damo-nos assim conta de que

«podemos ainda exprimir esta finitude ontológica radical ao dizer que da

representação está excluído quase todo o representado». E é de facto aquilo

que encontramos, dito de outra forma, no texto de Freud que Henry cita:

«Podemos ir mais longe, escreve Freud, e admitir, como esteio da tese de

um estado psíquico inconsciente, que a consciência não comporta a cada

momento senão uma conteúdo mínimo de tal forma que, à parte este, a

maior parte daquilo a que chamamos conhecimento consciente se encontra

necessariamente, durante os mais longos períodos, em estado de latência,

portanto num estado de inconsciência psíquica. Se tomássemos em

consideração a existência de todas as nossas lembranças latentes, passaria a

ser perfeitamente inconcebível contestar o inconsciente» («O

Inconsciente», in Metapsicologia). Henry chama no entanto a nossa

atenção para as insuficiências desta hipótese que, no seu entender, Freud

partilha com a filosofia e a psicologia do seu tempo e nomeadamente com

Bergson e que retoma a resposta clássica que à pouco demos às nossas

perguntas iniciais: as lembranças nas quais já não pensamos são

conservadas no inconsciente. «Mas a memória é compreendida por Freud,

no entender de Henry, da mesma maneira que por toda a esta filosofia e

toda esta psicologia, como uma faculdade representativa»83. É aí que

residem as dificuldades da demonstração freudiana: «não é pois só às

lembranças, mas a todas as representações, a todas as que ultrapassam o

campo reduzido da actualidade consciencial, que se aplica esta

demonstração com a sua consequência: a sua hipóstase sob forma de

representações virtuais num inconsciente grosseiramente realista inventado

com o propósito de as receber nele»84. Esta hipótese deveria então rejeitar-

83 Ibid. p.89.84 Ibid., p.90.

129

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

se por não parecer trazer nada de novo, nem à metafísica nem às ciências

humanas.

Segue, nos termos de Henry, uma desconstrução da metafísica da

representação e do objectivismo que caracteriza o conhecimento que só se

baseia nela e que a psicanálise partilha porque o conceito de inconsciente

que é o dela a determinado momento resulta desta mesma metafísica. Só

que, escreve Henry, «Desconstruir não quer dizer rejeitar pura e

simplesmente e desconhecer o mundo da representação, o próprio mundo.

Desconstruir quer dizer trazer à luz um fundamento mais profundo sobre o

qual se eleva a representação e sem a qual não seria nada». E talvez a

psicanálise tenha um papel a desempenhar ao termo desta desconstrução. E

mais adiante: «o fundamento derradeiro da representação e assim do

pensamento no sentido em que habitualmente é entendido e nomeadamente

no «penso, sou», só se obtém pela exclusão e mesmo pela expulsão da

representação e assim do próprio pensamento»85. Ora, o que esta

desconstrução traz à tona, não é a recusa psicótica da vida psíquica, nem

uma detestação do pensamento, é antes o que a afectividade tem de não

erradicável. «Aquilo a que os psicólogos chamam afecto, sentimento, etc. é

sempre só a objectivação posterior daquilo que é edificado interiormente

em nós próprios, como se edifica o primeiro aparecer, a essência original

da Psique, quer dizer, a prova de si mesmo in-ekstática que encontra a sua

efectuação fenomenológica e assim a sua substancialidade fenomenológica

na afectividade de que falamos»86. Já agora permitam-me que vos leia a

maneira como Henry fala desta afectividade transcendental que desvela por

uma leitura de Descartes das duas primeiras Meditações Metafísicas e das

Paixões da Alma, a mesma leitura com que inaugura a Geneaologia da

Psicanálise: «Transcendental, a afectividade não é aquilo a que chamamos

um afecto, um sentimento, o sofrimento ou a angústia ou a alegria, mas 85 Ibid., p.95.86 Ibid. p.98.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

aquilo que faz com que algo como o afectivo em geral seja possível e

alastre a sua essência em todo o sítio em que se cumpre, antes da ek-stase

do mundo, a primeira implosão de si da experiência, o pathos primitivo do

ser e dessa forma de tudo o que é e será»87. E essa afectividade escapa à

radicalidade da dúvida que incide sobre o conteúdo das representações e

sobre tudo aquilo que se dá no horizonte onde se ex-põe o que o espírito

pode ver, com os sentidos ou o intelecto. Resta um video videor, diz

Descartes «parece-me que vejo. Ora, continua Henry, falaciosa ou não, a

visão não deixa de existir enquanto dela se faz prova, em cada ponto do seu

ser, na sua afectividade e por ela. Sentimus nos videre diz Descartes»88. A

qualidade afectiva da vista, independentemente da verdade dos conteúdos

que são os seus e enquanto estando relacionada com os conteúdos do

mundo, é verdadeira, tão verdadeira como o horror, «intacto no seu próprio

ser, na carne da sua afectividade, mesmo que o mundo da representação se

tenha dissipado na ilusão do sonho» que a suscitou.

É precisamente a partir desta «dimensão de experiência na qual o que

deve ser entendido como Fundo da Psique se sente a si-próprio numa

imediação radical, antes da «relação a» um «ob-jecto», antes do surgimento

de um mundo e independentemente dele» que Henry vai esclarecer a

significação da hipótese do inconsciente, noutro momento da sua

elaboração. «Se a Psique se revela originalmente a si-própria na imediação

do afecto e do seu pathos, independentemente do afastamento da

objectividade e antes de qualquer representação, então toda […] [a]

problemática [de um inconsciente das representações latentes na qual se

encontra tudo aquilo que escapa à realidade psíquica] se desmorona. Por

duas razões. «Por um lado, diz Henry, o psíquico não é constituído em si-

próprio […] como ser representado, também não tem de conservar esta

estrutura, que não é a sua, quando se encontra posto fora da actualidade 87 Ibid.88 Ibid., p.99.

131

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

fenomenológica da consciência, quer dizer, precisamente fora do ser

representado. O conceito de representação inconsciente é absurdo. Por

outro lado, é esta essência interior e original da Psique que tem de ser por

fim pensada por si-própria se quisermos adquirir um conhecimento novo e

mais profundo do homem, que não o reduza, como na filosofia tradicional

da consciência ou nos seus rebentos positivistas, ao sujeito vazio ou ao

conteúdo morto de uma representação»89. E nesse caso, o que é que resta da

alma? «O que está sempre em posse da alma, diz Henry, relembrando

Descartes não é o conteúdo representativo das ideias, é o poder de as

formar. Assim sendo, a análise, deixando o universal da representação deve

virar-se para estas determinações essenciais da Psique que são Força e

Poder». Mas em que sentido é que estes dois termos são entendidos no

texto de Henry? «O nosso corpo, por exemplo, é o conjunto dos poderes

que temos sobre o mundo ao qual nos abre por todos os sentidos e pela sua

motricidade. Mas só é tal porquanto é capaz de se apoderar de cada um dos

seus poderes de forma a coincidir com eles e a pô-los à obra. Uma tal

coincidência não é mais do que a subjectividade original e essencial que é a

prova imediata dos seus poderes, o saber deles portanto, mas um saber que,

em vez de os representar, se identifica com eles e com a possibilidade de

princípio de os manifestar – um saber fazer, portanto»90. E também, agora

no que diz respeito à Força: «Temos experiência da uma força com a qual

coincidimos e que por esta razão podemos pôr em obra. O meu corpo

original é um posso que sou, é um fazer imediatamente provado e vivido na

praxis subjectiva do mundo». E já agora, antes de voltarmos às

consequências para a avaliação da significação do conceito de inconsciente,

«não há passagem, aliás enigmática, do subjectivo ao objectivo, mas um só

movimento que nos é dado duas vezes, a primeira na sua realidade sob

forma desta praxis vivida, a segunda na objectividade de uma 89 Ibid., p.10090 Ibid., p.101.

132

OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

representação mundana»91 que, poderíamos dizer, é o movimento duplo que

compõe o trabalho da objectivação própria às ciências humanas.

Tendo isto em mente, é fácil de entender o que Henry diz de seguida:

«O conceito freudiano de inconsciente não é só uma consequência e um

avatar da metafísica da representação, implica, de forma mais essencial, a

sua rejeição. Assim se desvela a sua significação profunda, aquela que nos

conduz para fora da representação em direcção ao domínio irrepresentável

da vida, do qual acabamos de reconhecer o primeiro traço: o da acção, da

força, da praxis. Esta inflexão do conceito freudiano de inconsciente em

direcção às camadas originais e fundamentais da nossa experiência deixa-se

adivinhar na Nota sobre o inconsciente em psicanálise de 1912»92. É a

«eficiência dos pensamentos inconscientes durante o seu estado de

inconsciência, é portanto a actividade enquanto actividade inconsciente,

quer dizer, produzindo-se e desdobrando-se independentemente da

consciência representativa enquanto tal e antes dela, que tem agora o

papel de argumento principal» para a justificação da hipótese do

inconsciente, já não é o reaparecimento dos conteúdos de memória ao cabo

de um certo tempo, e de forma involuntária, depois de terem permanecido

em latência. A tese de um «inconsciente eficiente» é também aquela

segundo a qual «não só a acção só é possível em estado de inconsciência,

como só se efectua como tal, fora da representação, precisamente enquanto

poder em coerência consigo na imanência radical da Noite de uma

subjectividade primordial onde não há nem afastamento nem distância em

relação a si, nem intencionalidade nem objecto, onde a luz da objectividade

e da consciência representativa não se levanta nem nunca chega. Ora,

continua Henry, esta Noite original não é nem a da cegueira nem a do caos,

sede dos instintos irracionais cuja ameaça sempre suspensa sobre o mundo

luminoso dos homens se trata de conjurar. E é por isso que na Noite reside 91 Ibid. p. 102.92 Ibid.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

algo de fundamental para conhecimento humano, mesmo para o

conhecimento científico. Nesta Noite «habita um saber primitivo e

essencial, o saber da vida, o saber-mover-as-mãos, o saber-mexer-os-

lábios, o saber-mover-os-olhos que precede, por exemplo, qualquer leitura,

tornando assim possível a aquisição do saber científico, precedendo-o

consequentemente e fundando-o propriamente. Um tal saber, em virtude do

qual eu me levanto e ando, acompanha a humanidade desde as origens, e

permite-lhe habitar a terra. É um saber que é um saber-fazer, um saber do

fazer e que consiste nesse próprio saber. Por esta razão chamamos-lhe

praxis e compreendemo-lo não como aquilo que se trataria de reduzir e de

eliminar progressivamente enquanto incompreensível e irrepresentável –

que penetra pouco a pouco a luz da consciência. É precisamente um

irrepresentável em si, irredutível ao saber do conhecimento científico, o

que este pressupõe em todas as suas tramitações como condição

despercebida mas incontornável do seu acesso a tudo o que ele sabe e antes

de mais a tudo o que faz»93. É a este irrepresentável que uma metafísica da

representação dá o nome de inconsciente.

Se quisermos estabelecer, com Michel Henry, a significação positiva

do conceito de inconsciente, temos portanto de entender duas coisas.

Primeiro este inconsciente «não serve de argumento a nenhum

irracionalismo, antes constitui o fundamento e a condição inicial de

qualquer saber, mesmo do saber científico»94. Depois, que o «Fundo da

Psique humana não poderia ser um inconsciente absoluto que nada

distinguiria de um ente natural, tal como a pedra»95. O inconsciente antes se

refere « a uma primeira esfera de experiência e precisamente à própria

experiência na sua forma inicial – o que Freud reconhece, escreve Henry, à

sua maneira na Psicopatologia da vida quotidiana quando, ao propor uma

93 Ibid., p.103.94 Ibid.95 Ibid., p.104.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

teoria geral das concepções mitológicas, religiosas e metafísicas do mundo,

as explica como projecção exterior da realidade psíquica e assim como

desvelo perante a consciência representativa. A projecção supõe o

conhecimento obscuro daquilo que projecta»96. O trecho da obra de Freud

que Henry cita diz de facto o seguinte: «O conhecimento obscuro dos

factores e dos factos psíquicos do inconsciente (por outras palavras: a

percepção endopsíquica destes factores e destes factos) reflecte-se […] na

construção de uma realidade supra-sensível, que a ciência transforma

numa psicologia do inconsciente»97.

Em termos fenomenológicos, o que é que isto quer dizer, e como é

que se funda? Esta afirmação deve poder indicar uma forma de experiência

que, apesar de estranha à ek-stase da objectividade, e à posição das

representações como objectos, não deixa por isso de ser uma experiência

efectiva. Ora, pergunta Henry, será que existe uma fenomenalidade

irredutível ao mundo? A resposta, que é afirmativa, passa de novo pela

noção de inconsciente tal como a apresenta Freud: por ser constituído no

seu Fundo pelo afecto, o inconsciente verifica essa hipótese de uma

experiência efectiva não objectiva. No artigo com o título «Inconsciente»,

Freud escreve o seguinte, que Michel Henry cita: «é da essência de um

sentimento o ser apercebido, logo ser conhecido pela consciência » e

também «Não há, em sentido próprio, afectos inconscientes como há

representações inconscientes»98. Enquanto é representado pelo afecto, o

inconsciente não tem nada de inconsciente. E, como lembra Henry, é o

sentido profundo da doutrina ao mesmo tempo que o da terapia que se

encontra aqui em questão»99 e que a análise do recalcamento ilustra. Este,

explica, incide sempre em realidade sobre a associação de uma

representação e de um sentimento, associação que tem por efeito quebrar. É 96 Ibid.97 Freud, Psychopathologie de la vie quotidienne, Paris, Payot, 276.98 Freud, Métapsychologie, Paris, Gallinard, 1968, p.82 e 84.99 Ibid., p.105.

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OFICINA DE FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

a representação à qual o sentimento estava fenomenologicamente associado

que é recalcada e assim empurrada para o inconsciente. Separado desta, o

sentimento liga-se a outra representação, que é tomada doravante pela

consciência como a manifestação desta última […]. Ora, neste processo de

desestruturação e de reestruturação que é o do recalcamento, o sentimento

nunca deixou de ser conhecido, só o seu sentido, neste caso a representação

à qual estava primitivamente associado, é «desconhecida». O trecho de

Freud que Henry cita (e que eu não retomo) sublinha as consequências que

isto tem em termos dos procedimentos terapêuticos necessários para

restabelecer a ligação inicial e que permitem uma liquidação adequada da

tensão afectiva, por uma lado, e, por outro, a constituição de uma história

essencial da afectividade a partir da análise do destino das pulsões, a

história das ligações sucessivas e das sucessivas transformações dos afectos

de alguém à medida que se instauram «relações sucessivas significativas

com o mundo da representação antes d(a afectividade) ser de uma certa

forma conduzida à sua essência própria: o que acontece quando se levanta a

angústia, não a angústia perante o objecto (Realangst) mas a angústia pura,

ou se preferirmos a angústia perante a pulsão»100.

Se retomarmos a questão da significação filosófica do conceito de

inconsciente para o conhecimento humano, podemos então dizer, com

Henry, que «aqui se dá a pensar a ligação essencial Força/Afecto que

constitui o Fundo da Psique, ao mesmo tempo que o da psicanálise»101 e

que se deixava entrever nas análises sobre o corpo e a potencialidade. «O

Fundo da Psique, de facto, é a pulsão, mas esta não é propriamente psíquica

senão enquanto afecto, o qual é precisamente o «representante» do sistema

bio-energético do organismo na Psique»102. A hipótese mantém-se desde o

Esquisso de uma psicologia científica e vai atravessar a obra de Freud 100 Ibid., p.106. 101 Ibid.102 Ibid. Henry parece, no entanto, não ter em consideração que para além do afecto, também a própria

representação é um representante da pulsão.

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apesar de algumas transformações. E qual é esta hipótese? É a de que o

sistema bio-energético tem dois tipos de neurónios de que resultam a

afecção interna e a afecção externa do indivíduo vivo»103 como diz Michel

Henry. A afecção ou a excitação interna não é mais do que a pulsão e «não

vêm do mundo exterior, mas do interior do organismo vivo» e por isso não

se lhe pode fugir, contrariamente ao que se passa com a excitação externa

em presença de um perigo, por exemplo, que, provocando a fuga, liquida o

afluxo de energia que provoca. Como pulsão, a afecção interna é afecção

de um eu por si-próprio ou a sua auto-afecção, de maneira que, sublinham e

Freud e Henry, é permanente por «nunca agir como uma força de impacto

momentânea, mas sempre como uma força constante »104, por outro lado

não oferece a possibilidade de se lhe escapar, «porque o eu não pode

escapar a si-próprio»105, por mais que se esforce por isso, nas formas tão

frequentes de negativismo e de detestação de si tão características dos

estados psicóticos, como relembra Freud num texto sobre a «Denegação».

E por isso, na leitura de Henry, a pulsão, no fim de contas não designa em

Freud uma moção particular, mas o facto de nos auto-impressionarmos a

nós-próprios sem que nunca se possa escapar a si-próprio e, enquanto esta

auto-impressão é efectiva, o peso e o encargo de nós-próprios»106.

Então, e para terminar, retomando a exposição de Michel Henry, «a pulsão

é o que ela é sobre o fundo nela do afecto e da essência da afectividade nele

– da essência da vida. A partir desta essência da vida que é a pulsão, é fácil

compreender o conjunto dos fenómenos da Psique mas sem dúvida também

os da cultura e da civilização em geral, porquanto as diversas culturas e

civilizações que já existiram à superfície da terra representam as diversas

vias desenhadas e abertas pela necessidade com vista à sua satisfação»107.

103 Ibid., p.106. 104 Ibid.105 Ibid., p.107.106 Ibid. p.107.107 Ibid.

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E, por último, retomando a questão inicial, e tentando responder-lhe, «a

significação do conceito de inconsciente para o conhecimento do homem,

consiste em remeter, no ser deste, para um domínio mais profundo que o da

consciência clássica, quer dizer do pensamento entendido como

conhecimento objectivo, como representação. O mundo da representação e

das suas determinações só é inteligível a partir de uma instância que lhe é

irredutível, a das pulsões, dos desejos, da necessidade, da acção, do

trabalho, que lhe dão a sua forma, uma forma mais antiga do que a do

pensamento e que este só pode reencontrar posteriormente. A reflexão

sobre o afecto e as pulsões não tem por efeito cortar-nos do mundo onde

vivem os homens, mas pelo contrario, fazer-nos voltar às suas raízes para

exibir o naturante verdadeiro, a autêntica ratio»108.

108 Ibid., p.108.

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