1ª dp: depÓsito de inquÉritos

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popular 4 Domingo, 23 de maio de 2010 Jornal de Fato Pelo menos 100 inquéritos policiais sobre homicídios 'adormecem' na delegacia sem um desfecho, enquanto autores dos crimes continuam em liberdade ANDREY RICARDO Da Redação Um depósito de inquéritos, amontoados uns por ci- ma dos outros. Centenas de folhas de papel que, muitas vezes, nunca foram nem lidas com o mínimo de aten- ção necessária. Esquecidas em um canto da sala repre- sentam vidas perdidas, famílias destruídas e descaso. Es- sa é a descrição mais adequada da Primeira Delegacia de Polícia Civil (I DP), no bairro Alto de São Manoel (zo- na leste). São aproximadamente 500 casos sem solução que vêm se acumulando ao longo dos últimos anos. Desses, quase 100 são referentes a casos de homicídio. No meio desse descaso, as famílias sofrem com a per- da, a dor irreparável e com a falta de Justiça para aqueles que "roubaram" seus filhos, maridos e irmãos, de forma violenta. Sem investigação, os criminosos ficam impunes e, muitos deles, voltam a matar na certeza de que, na ino- perância policial, encontrarão a impunidade. Em tese, um inquérito policial deve ser concluído em 30 dias, ca- so o suspeito não esteja preso, mas isso está longe do real. No meio das folhas, sem rosto para a polícia, cober- tas de poeira nas prateleiras do cartório da 1ª DP, famí- lias como a de Francisco Fernandes Neto, o "Netinho", assassinado em 3 de janeiro de 2008, Jair de Lima Fer- reira, morto em 19 de janeiro de 2009, e Augusto Vicen- te Lopes Neto, 19 de setembro de 2009, representam a imagem do descaso das autoridades. Até hoje elas carre- gam consigo a dor da morte de cada um deles, à procu- ra do único consolo que lhes resta: justiça. Muitas das famílias que tiveram algum familiar as- sassinado na área de investigação da 1ª DP desistiram de esperar pela justiça dos homens e hoje se apegam à fé, na esperança de uma "justiça divina". Mas nem todos que- rem esperar por isso. Para as famílias dos três casos des- critos na reportagem, a justiça é aqui na terra. Por isso nunca desistiram e, até hoje, continuam batendo à por- ta da polícia, do Ministério Público Estadual, e de qual- quer outra entidade que possa lhe oferecer uma respos- ta. Mas, com o passar do tempo, o cansaço é inevitável. "No início, eu ia lá (I DP) todos os dias, depois, pas- sei a ir uma ou duas vezes por semana para falar com os policiais... De tanto ir, cheguei a desistir de esperar pelos policiais. Chegou uma hora que eu entreguei a Deus, mas, agora, vou voltar à porta deles e cobrar por justiça", relembra Maria Auxiliadora do Nascimento, mãe de Francisco Fernandes, o "Netinho", e agora ve- readora em Mossoró. Das três famílias que ilustram es- sa reportagem, "Maria das Malhas", como é conhecida a vereadora, é a que sofre há mais tempo. Já Sonali Ferreira de Lima, filha de Jair de Lima, e Alcedejane Ribeiro da Silva, sobrinha de Augusto Lo- pes, têm mais "gás" que a vereadora e vão constantemen- te à I DP em busca de respostas para os crimes. Antes as visitas eram diárias. Agora, as cobranças são feitas uma ou duas vezes na semana. É o cansaço que lhes bate à porta. As duas acreditam que um dia serão recompensa- das com um resultado simples: a prisão dos matadores. A I DP é comandada pelo delegado Caetano Bau- mann, que também responde por delegacias de várias cidades da região Oeste. Hoje, a atual estrutura da Pri- meira DP resume-se a um escrivão e dois agentes, fora o delegado que tem outras atribuições. Quando um de- les entra de férias, por exemplo, a Distrital fica pratica- mente inutilizada. Descaso e desdém Não bastasse a dor provocada pelos crimi- nosos e o descaso das autoridades responsá- veis por punir essas pessoas, as famílias das ví- timas ainda lidam com a ironia dos policiais e um mau atendimento por parte deles. "Olha, você pode estrebuchar, pode fazer o que quiser, mas se tiver que ser feito alguma coisa, será feito aqui, então, você pode ir pra onde você quiser que não vai mudar nada. Tem que ter paciência e esperar". As palavras são do delegado Caetano Baumman de Azevedo, se- gundo Sonali Ferreira de Lima, em uma das poucas audiências que ela diz ter conseguido com o delegado sobre o inquérito que apura a morte do seu pai. "Outra vez, procurei um policial de lá (1ª DP) e ele disse que não tinha o que fazer e nem o que dizer pra mim. Na verdade, lá, eles fa- lam muito pra tentar enrolar a gente e fazem muito pouco", desabafa Sonali. O limite do des- caso e do desdém é quando a própria polícia orienta as famílias a se conformarem com a impunidade. "Da última vez que falei com o delegado (Caetano Baumman), ele disse que eu tinha que me conformar, que a morte do meu pai era só mais um caso que ia virar estatística e que eu tinha de me conformar", afirma Sonali de Li- ma. A mesma queixa é feita por Alcedejane Ri- beiro da Silva, sobrinha de Augusto. "Eles fi- cam enganando a gente. A gente procura o de- legado, ele diz que a culpa é do chefe de inves- tigação. A gente procura o chefe de investiga- ção, ele diz que a culpa é do escrivão, que, por sua vez, culpa ou o delegado o ou investigador e assim vai...", reclama. "Tem hora que, sinceramente, da vontade de perder a cabeça e fazer uma besteira. A gen- te chega a esse extremo porque é difícil demais lidar com essa falta de compromisso de todos eles", completa Alcedejane. Ela revela que os po- liciais chegaram ao extremo de pedir que ela e sua avó - mãe de Augusto - investigassem por conta própria o endereço de testemunhas-chaves do caso. "O delegado (Caetano Baumman) disse que a gente fosse atrás desses endereços e trouxesse tudo direitinho pra ele. Como é que pode uma coisa dessas? Chega a ser o cúmulo do absur- do! Imagina eu e minha avó, que é uma idosa, se arriscando dessa maneira?", diz. A vereadora Maria das Malhas é mais con- tida nas críticas e diz que não chegou a sofrer como Sonali e Alcedejane, mas reconhece que faltou empenho dos policiais em elucidar a mor- te do seu filho, ocorrida há mais de dois anos. "Eles dizem que não podem fazer nada, mas eu acredito que faltou mais empenho deles. Os pro- cessos ficam engavetados. Tem hora que penso que vou enlouquecer de tanta dor", diz. Editoria de arte: Neto Silva ‘Maria das Malhas, Sonali de Lima e Alcedejane: famílias prejudicadas Marcos Garcia Fred Veras

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Reportagem sobre o acúmulo de inquéritos sem esclarecimentos na 1ª Delegacia de Polícia Civil, em Mossoró, e o crescimento no número de homicídios na cidade

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Page 1: 1ª DP: DEPÓSITO DE INQUÉRITOS

popular4 Domingo, 23 de maio de 2010Jornal de Fato

DEPÓSITO DE INQUÉRITOSPelo menos 100 inquéritos policiais sobre homicídios 'adormecem' na delegacia

sem um desfecho, enquanto autores dos crimes continuam em liberdade

ANDREY RICARDO Da Redação

Um depósito de inquéritos, amontoados uns por ci-ma dos outros. Centenas de folhas de papel que, muitasvezes, nunca foram nem lidas com o mínimo de aten-ção necessária. Esquecidas em um canto da sala repre-sentam vidas perdidas, famílias destruídas e descaso. Es-sa é a descrição mais adequada da Primeira Delegacia dePolícia Civil (I DP), no bairro Alto de São Manoel (zo-na leste). São aproximadamente 500 casos sem soluçãoque vêm se acumulando ao longo dos últimos anos.Desses, quase 100 são referentes a casos de homicídio.

No meio desse descaso, as famílias sofrem com a per-da, a dor irreparável e com a falta de Justiça para aquelesque "roubaram" seus filhos, maridos e irmãos, de formaviolenta. Sem investigação, os criminosos ficam impunese, muitos deles, voltam a matar na certeza de que, na ino-perância policial, encontrarão a impunidade. Em tese,um inquérito policial deve ser concluído em 30 dias, ca-so o suspeito não esteja preso, mas isso está longe do real.

No meio das folhas, sem rosto para a polícia, cober-tas de poeira nas prateleiras do cartório da 1ª DP, famí-lias como a de Francisco Fernandes Neto, o "Netinho",assassinado em 3 de janeiro de 2008, Jair de Lima Fer-reira, morto em 19 de janeiro de 2009, e Augusto Vicen-te Lopes Neto, 19 de setembro de 2009, representam aimagem do descaso das autoridades. Até hoje elas carre-gam consigo a dor da morte de cada um deles, à procu-ra do único consolo que lhes resta: justiça.

Muitas das famílias que tiveram algum familiar as-sassinado na área de investigação da 1ª DP desistiram deesperar pela justiça dos homens e hoje se apegam à fé,na esperança de uma "justiça divina". Mas nem todos que-rem esperar por isso. Para as famílias dos três casos des-critos na reportagem, a justiça é aqui na terra. Por issonunca desistiram e, até hoje, continuam batendo à por-ta da polícia, do Ministério Público Estadual, e de qual-quer outra entidade que possa lhe oferecer uma respos-ta. Mas, com o passar do tempo, o cansaço é inevitável.

"No início, eu ia lá (I DP) todos os dias, depois, pas-sei a ir uma ou duas vezes por semana para falar comos policiais... De tanto ir, cheguei a desistir de esperarpelos policiais. Chegou uma hora que eu entreguei aDeus, mas, agora, vou voltar à porta deles e cobrar porjustiça", relembra Maria Auxiliadora do Nascimento,mãe de Francisco Fernandes, o "Netinho", e agora ve-readora em Mossoró. Das três famílias que ilustram es-sa reportagem, "Maria das Malhas", como é conhecidaa vereadora, é a que sofre há mais tempo.

Já Sonali Ferreira de Lima, filha de Jair de Lima, eAlcedejane Ribeiro da Silva, sobrinha de Augusto Lo-pes, têm mais "gás" que a vereadora e vão constantemen-te à I DP em busca de respostas para os crimes. Antes asvisitas eram diárias. Agora, as cobranças são feitas umaou duas vezes na semana. É o cansaço que lhes bate àporta. As duas acreditam que um dia serão recompensa-das com um resultado simples: a prisão dos matadores.

A I DP é comandada pelo delegado Caetano Bau-mann, que também responde por delegacias de váriascidades da região Oeste. Hoje, a atual estrutura da Pri-meira DP resume-se a um escrivão e dois agentes, forao delegado que tem outras atribuições. Quando um de-les entra de férias, por exemplo, a Distrital fica pratica-mente inutilizada.

Descaso e desdémNão bastasse a dor provocada pelos crimi-

nosos e o descaso das autoridades responsá-veis por punir essas pessoas, as famílias das ví-timas ainda lidam com a ironia dos policiaise um mau atendimento por parte deles.

"Olha, você pode estrebuchar, pode fazer oque quiser, mas se tiver que ser feito algumacoisa, será feito aqui, então, você pode ir praonde você quiser que não vai mudar nada. Temque ter paciência e esperar". As palavras são dodelegado Caetano Baumman de Azevedo, se-gundo Sonali Ferreira de Lima, em uma daspoucas audiências que ela diz ter conseguidocom o delegado sobre o inquérito que apura amorte do seu pai.

"Outra vez, procurei um policial de lá (1ªDP) e ele disse que não tinha o que fazer e nemo que dizer pra mim. Na verdade, lá, eles fa-lam muito pra tentar enrolar a gente e fazemmuito pouco", desabafa Sonali. O limite do des-caso e do desdém é quando a própria políciaorienta as famílias a se conformarem com aimpunidade.

"Da última vez que falei com o delegado(Caetano Baumman), ele disse que eu tinha queme conformar, que a morte do meu pai era sómais um caso que ia virar estatística e que eutinha de me conformar", afirma Sonali de Li-ma. A mesma queixa é feita por Alcedejane Ri-beiro da Silva, sobrinha de Augusto. "Eles fi-cam enganando a gente. A gente procura o de-legado, ele diz que a culpa é do chefe de inves-tigação. A gente procura o chefe de investiga-ção, ele diz que a culpa é do escrivão, que, porsua vez, culpa ou o delegado o ou investigadore assim vai...", reclama.

"Tem hora que, sinceramente, da vontadede perder a cabeça e fazer uma besteira. A gen-te chega a esse extremo porque é difícil demaislidar com essa falta de compromisso de todoseles", completa Alcedejane. Ela revela que os po-liciais chegaram ao extremo de pedir que ela esua avó - mãe de Augusto - investigassem porconta própria o endereço de testemunhas-chavesdo caso.

"O delegado (Caetano Baumman) disse quea gente fosse atrás desses endereços e trouxessetudo direitinho pra ele. Como é que pode umacoisa dessas? Chega a ser o cúmulo do absur-do! Imagina eu e minha avó, que é uma idosa,se arriscando dessa maneira?", diz.

A vereadora Maria das Malhas é mais con-tida nas críticas e diz que não chegou a sofrercomo Sonali e Alcedejane, mas reconhece quefaltou empenho dos policiais em elucidar a mor-te do seu filho, ocorrida há mais de dois anos."Eles dizem que não podem fazer nada, mas euacredito que faltou mais empenho deles. Os pro-cessos ficam engavetados. Tem hora que pensoque vou enlouquecer de tanta dor", diz.

Editoria de arte: Neto Silva

‘Maria das Malhas’, Sonali de Lima e Alcedejane: famílias prejudicadas

Marcos Garcia

Fred Veras