1930 Ãguas da revolução- juremir machado da silva

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  • CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    S58m Silva, Juremir Machado da, 1962-1930 [recurso eletrnico] : guas da revoluo (romance) / Juremir Machado da Silva. - Rio de Janeiro : Record, 2011.Recurso Digital

    Formato: ePubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide WebISBN 978-85-01-09679-1 (recurso eletrnico)

    1. Romance brasileiro. 2. Livros eletrnicos. I. Ttulo. II. Ttulo: Mil novecentos e trinta.

    11-4679 CDD: 869.93CDU: 821.134.3(81)-3

    Copyright Juremir Machado da Silva, 2010

    Capa: Srgio Campante

    Imagem de capa: Fundao Getlio Vargas CPDOC

    Texto revisado segundo o novo Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa.

    Direitos exclusivos desta edio reservados pelaEDITORA RECORD LTDA.Rua Argentina, 171 Rio de Janeiro, RJ 20921-380 Tel.: 2585-2000

    ____________________________________________________________Produzido no Brasil

    ISBN 978-85-01-09679-1

    Seja um leitor preferencial Record.Cadastre-se e receba informaes sobre nossoslanamentos e nossas promoes.

    Atendimento e venda direta ao leitor:[email protected] ou (21) 2585-2002.

  • 2010

    Um pouco mais, um pouco menos, cada homem fisgado por narrativas, por romances,

    que lhe revelam a verdade mltipla da vida.Somente essas narrativas, lidas, por vezes,em estado de transe, situam-no em relao

    ao destino. Precisamos, ento, buscarapaixonadamente o que pode ser narrativa

    coordenar o esforo por meio do qualo romance se renova ou, melhor, perpetua-se.

    A preocupao com tcnicas diferentes, quesuperem o esgotamento das formas

    conhecidas, ocupa, de fato, as mentes.

    Georges Bataille

    Uma coisa porm certa; a saber, a revoluono foi boa nem m. A revoluo foiindispensvel e como tal invencvel.

    Virglio de Melo Franco

    H muitas revolues na revoluo de 1930: h a quefoi vista pelo jornal Correio do Povo, h a que foi contada ou

    sentida pelos seus principais articuladores, h uma, margemdas narrativas oficiais, vista por um combatente que,80 anos depois, ainda se lembrar de cada detalhe.

  • Sumrio

    CapaRostoCrditosAbertura1234567891011121314151617181920212223242526

  • 272829AgradecimentosColofo

  • 1Nada parecia destinar o gacho Getlio Dornelles Vargas a comandar uma revoluonacional.

    Mas o Brasil precisar de uma revoluo e ele ter a pacincia e a frieza para ser o homemcerto, no lugar certo, na hora certa: 17h30 de 3 de outubro de 1930.

    Uma revoluo, porm, nem sempre se faz na hora certa. Na hora marcada. questo demuitos ponteiros.

    preciso um lder frente do seu tempo e totalmente dentro dele, um homem em doistempos.

    Getlio sempre sabe, como os melhores jogadores calculistas, esperar o momento certo deagir, o que impacienta seus aliados e desconcerta seus inimigos.

    Ele o quarto filho, de um total de cinco, todos homens, do general Manoel do NascimentoVargas, que lutara na Guerra do Paraguai, tornara-se um fazendeiro rico, graas a um bomcasamento e a ter escolhido o lado certo na poltica e nos campos de batalha, e fora um dosbaluartes do conservadorismo republicano que mudara o Rio Grande do Sul, com Jlio deCastilhos e Borges de Medeiros, para mant-lo sem grandes alteraes.

    Nascido na longnqua cidade de So Borja, na fronteira com a Argentina, na chamadasavana verde, tudo preparava Getlio para ser um estancieiro, um militar, um chefete daagressiva poltica local, quem sabe um advogado ou, no mximo, um lder regional.

    A vida, no entanto, parece divertir-se arranjando-lhe caminhos inesperados. um homem desorte.

    Devia chamar-se Getlio Bueno.O gesto de uma mulher trada alterou-lhe o nome.E o destino?Sua bisav, abandonada, num fim de mundo, pelo marido que fugiu com outra na garupa

    do cavalo num dia de arroubos e nuvens pesadas , pagou o padre do lugarejo para cortar osobrenome Bueno da sua prole. O av de Getlio ser ento apenas Evaristo Vargas.

    Os descendentes sero tudo em nome da me.Getlio ser muito.Pois o Brasil precisar de muito. uma nao de miserveis.

  • Agora, nesta tarde quente, enquanto espera a visita de Joo Neves da Fontoura, Getliopensa nesse Brasil que vem revolucionando. Ele ser o ditador do Estado Novo.

    O esquema que rabisca muito simples: em 1500, os portugueses descobrem uma terraque tinha dono e apossam-se dela. Ao longo dos anos, catequizam, exploram e massacram osnativos. Introduzem negros escravos trazidos da frica. Em 1822, um prncipe portugusproclama a independncia brasileira. Em 1888, os escravos so libertados e vo somar-se aogrande contingente de miserveis livres. Essa medida incontornvel arrasta o Imprio, quedesaba em 15 de novembro de 1889.

    Os quarenta anos seguintes constituiro a Repblica Velha. Um tempo de pobreza para amaioria dos brasileiros, de analfabetismo, de fraudes eleitorais disseminadas e de controle dapoltica por coronis.

    O Brasil era a fraude.Uma poca que a Revoluo de 3 de outubro de 1930, comandada por ele, Getlio, e

    articulada por seus amigos Osvaldo Aranha e Joo Neves da Fontoura com mineiros eparaibanos, esmagar, sepultando a poltica do caf com leite, a alternncia no podercentral, com raras excees, de polticos de So Paulo e de Minas Gerais.

    Getlio espera. Joo Neves est atrasado. Faz muitos anos que no se falam. Quase sentesaudades. No quer admitir que est um pouco ansioso. Tem as mos midas? No chega atanto. Sente raiva? O seu autocontrole no permite esse tipo de sentimento. Pensa o passadocomo se fosse um futuro ainda evitvel. Em 1932, quando os carcomidos de So Paulolanaro a contrarrevoluo, Joo Neves mudar de lado. Passar para o inimigo.

    Perder. Amargar o exlio na Argentina.Por que far isso? Por que no se controlar?Joo Neves acha-se muito inteligente, pensa Getlio, mas no consegue ver todas as peas

    do tabuleiro ao mesmo tempo. Falta-lhe a viso global. V o passado como passado. Getliosorri. Para avanar, preciso recuar.

    Que lhe dir Joo Neves?Que histrias lhe contar?Ser capaz de atar os fios da aventura de todos eles? A aventura que vem levando de

    roldo tantas vidas.A vida, pensa Getlio, uma jogada de mestre.Mas quem o mestre?

    *

    Na manh de 16 de novembro de 1918, aos 6 anos de idade, o menino Gabriel, nascido em

  • Santa Maria, num 4 de junho, viu o pai, juiz de paz em So Gabriel, morrer. Nos confins do RioGrande do Sul, na Coxilha do Pau Fincado, perto do arroio Jacar, ele se preparava para ler oCorreio do Povo, depois de tomar providncias para proteger seu fado da tormenta, quandoum raio o fulminou diante da mulher, Zulmira, e dos filhos, Thalita, Ely, Edgar, Francisco, entocom 10 anos de idade, e Gabriel.

    Que marcas essa viso deixar no filho Gabriel? Quantas outras tormentas lhe reservar ofuturo? Que guas mais turvas rolaro na sua vida? Ele ter tempo de saber e de viver.Intensamente. Ter um sculo pela frente. O episdio da morte de Horcio Enas Flores sernarrado, dcadas depois, por seu filho Francisco dvila Flores, em A tragdia da casinhabranca, livro que Gabriel ter sempre ao alcance das suas mos centenrias. Numa trocaentre dois gachos, a morte do pai ser anunciada assim: Escurecera um momento,/ aventania soprava,/ movida pela tormenta,/ uma carreta marchava.

  • 2Getlio vai at a janela. Faz muito calor no Rio de Janeiro. Por que no vem uma brisa domar? Por que Joo no chega? Essa impacincia contida, sua maior especialidade, notransparece no seu rosto. Nada parece alterar a sua fisionomia. Est com 54 anos de idade.Nascera em 19 de abril de 1882, embora na sua certido de nascimento conste 1883. Maisuma artimanha da vida?

    Pensa em Joo Neves. Nas razes que o levaram a debandar depois de ter sido oincansvel artfice da revoluo. Pensa nas dificuldades passadas pelo amigo nos anos vividos sombra, com doena na famlia, o pai que morrera sem o filho poder comparecer ao enterro,as dvidas, antes que voltasse ao Brasil, poltica, e fosse eleito deputado federal para fazer-lhe oposio.

    Est informado de tudo. Acompanha cada passo do outro como um amante que sofre coma ausncia da amada mas no pode dar o brao a torcer. Ou como um oponente impassvelque finge no sentir dio para melhor degustar a vingana. atacado pelo outro. Apara osgolpes. Pesa, pondera, aguarda, controla-se. Acredita nas virtudes do tempo. A poltica assim. Ficar clebre a sua frase: Nunca tive amigos de quem no pudesse me separar, neminimigos de quem no pudesse me aproximar. No ntimo, porm, no assim. Ama seusamigos e sofre por eles.

    Pensar em Joo Neves pensar em 1930.Como chegaram l? Por que fizeram a revoluo?Muitos haviam duvidado de que ele desse passo to extremado. Viam nele um conservador

    frio e impassvel.Afinal, crescera em poltica sob a proteo de Borges de Medeiros, que comandara com

    mo de ferro a poltica gacha durante quase trs dcadas, tendo exercido cinco mandatos depresidente do Estado a golpes de fraudes eleitorais, uma delas, ao menos, fraudada comajuda do prprio Getlio quando presidente da Comisso de Verificao. O velho Borges ssairia do poder forado pela revoluo de 1923, da qual ele, Getlio, ento ministro daFazenda no governo do paulista Washington Lus, acabaria por ser o grande beneficiado,sendo eleito para substituir o cacique Borges de Medeiros em 1928.

    A vida assim. Aprendera a esconder o jogo e a romper com seus mestres e benfeitores.Sem alarde.

  • Getlio, quando jovem, havia visto a misria do Brasil profundo quando fora at Corumbengajado nas tropas que deveriam enfrentar a Bolvia num conflito que no aconteceu. Soimagens gravadas no seu crebro.

    Crianas famlicas. Velhos doentes. Mulheres tristes. Misria a perder de vista. Solido evazio.

    Vira tambm a misria e o desespero dos homens quando atuara como promotor pblico.Algumas vezes, em lugar de pedir a punio dos acusados, como era sua atribuio,reclamara a absolvio dos infelizes.

    Compreendera os jogos de poder como deputado na assembleia gacha e na CmaraFederal. Aprendera tudo sobre a realidade econmica brasileira como ministro da Fazenda.Sabia que o Brasil no daria o grande salto sem industrializao. Sabia tambm que paramuitos no mudar era um privilgio que no aceitariam perder sem luta.

    Entendera a fora da lei como instrumento de manuteno da ordem e dos privilgiosestudando direito em Porto Alegre e advogando em So Borja. mile Zola fora seu primeirogrande mestre, o escritor que lhe revelara as entranhas da misria humana. Escrevera at umartigo sobre Zola. No temia a desordem. Era gacho. Reconhecia a importncia daRevoluo Farroupilha de 1835-1845, lamentava as degolas da Revoluo Federalista de1893, na qual seu pai atuara, mas reconhecia o herosmo daqueles homens. Mais de mildegolados em dez mil combatentes de ambos os lados. Mais de 300 degolados pelosmaragatos no combate de Rio Negro. Outros 300 degolados, como vingana cruel e precisa,pelos chimangos em Boi Preto. Ainda em 1923, quando tambm ele se preparara para tomarparte na luta, apenas quinze anos antes, as degolas haviam sido retomadas.

    A sua formao vem desse passado de guerras civis.Em 1930, estavam todos do mesmo lado, velhos inimigos formando nas mesmas fileiras

    aguerridas, prontos para matar ou morrer, o Rio Grande de p pelo Brasil.Ao contrrio da maioria dos seus colegas e amigos da faculdade de direito ou da Escola

    Militar de Porto Alegre, descobrir, porm, que o Brasil s mudar de um jeito especial: serpreciso mudar conservando.

    E o Joo que no chega? No vir?Ter medo de humilhar-se?Impossvel. Joo a prpria altivez melindrosa.O suor cobre-lhe a testa. Poreja.Mudar conservando e conservar mudando. Para isso seria preciso, ao mesmo tempo,

    conciliar interesses antagnicos e, muitas vezes, desagradar a todos.Essa a sua misso. Havia lido a obra de Gilberto Freyre, lanada alguns anos antes,

    intitulada Casa-grande & senzala. Ficara maravilhado com a percepo do antroplogo de que

  • o Brasil um equilbrio de antagonismos. Sim, isso mesmo. E ele, Getlio, o ponto deapoio sobre o qual esses antagonismos tero de equilibrar-se. Em 1930, ele j sabia muitobem disso.

    Nunca teve iluses.A revoluo avanar no Brasil por vrios caminhos. Foram muitos pequenos rios confluindo

    para o mesmo lugar.A violncia, ao longo da Repblica Velha, sufocar muitas manifestaes de inconformidade

    ou de desespero.O exrcito brasileiro humilhara-se para esmagar Canudos e os tristes rebeldes de Antnio

    Conselheiro.A Marinha afundara-se no lodo para liquidar com requintes de tortura a Revolta da Chibata

    do negro Joo Cndido num dos episdios mais srdidos da Repblica.Getlio estivera do lado da ordem. No se gaba de ter sido desde sempre um

    revolucionrio. Cada uma daquelas irrupes de violncia, no entanto, marcar nele umacerteza: o Brasil precisa ser mudado radicalmente.

    Para no explodir.A Repblica Velha havia enterrado o Imprio e colocado no lugar dele um regime de

    iniquidades.E o Joo? Por que no chega?Apesar do calor, quer tomar um mate amargo com o amigo. Ou deve consider-lo um

    desafeto, um traidor? Como ser que ele vai reagir no primeiro instante?Joo Neves carregara a revoluo de 1930 nas costas, mas no soubera compreender os

    seus desdobramentos. Tentara ignorar que uma verdadeira revoluo dificilmente consegueevitar os expurgos, os excessos e o terror.

    Uma revoluo um charco com o objetivo de secar um pntano. H que se meter os psno atoleiro para avanar.

    E dizer que Joo Neves escrever, em 1933, depois que tudo estiver a ponto de desabar oude retroceder, um livro contra ele, chamando-o de ditador, um panfleto contra os desvios darevoluo. Getlio vai at a estante e pega o seu exemplar bastante manuseado do Acuso.

    Folheia-o com um sorriso maroto.Ah, esse Joo Neves fogo mesmo. Que oratria virulenta! Que incontinncia verbal! J

    comea como uma boca de canho, cuspindo rtulos em defesa de So Paulo:

    Separado da Ditadura desde incio, s dela me aproximei em novembro de 1930,para impetrar-lhe que desse a So Paulo um interventor civil e paulista, assegurando aogrande Estado o direito de ser governado por um dos seus filhos ilustres. Bati-me

  • firmemente contra a nomeao do Sr. Joo Alberto, como a ele prprio tive a franquezae a lealdade de dizer.

    Um ingnuo, o Joo Neves. Um teimoso.Um pouco pretensioso tambm.No queria Joo Alberto como interventor em So Paulo. Empenhara-se em impedir essa

    nomeao. Estava errado no princpio, mas acertara nas consequncias. um extremado com mania de ponderado, o Joo.Em 1936, Getlio ajudar, por baixo dos panos, Joo Neves a ser eleito para a Academia

    Brasileira de Letras. Quando Ataulfo de Paiva vier lhe dizer que Joo Neves no tem obrapublicada, responder rindo e soltando uma baforada do seu indefectvel charuto: Claro quetem, como no?, tem, e obra brilhante, tem o Acuso.

    De repente, seus olhos fixam-se numa pgina na qual Joo Neves o acusa de grandesperversidades, de ter criado uma justia de exceo, denunciando todo mundo e nocondenando a ningum: O ilustre Sr. Joo Mangabeira, que est agora, e com justia, nacomisso elaboradora do anteprojeto de Constituio, foi, por exemplo, arrastado beira doComit de Salut Public, por ter recebido indebitamente do irmo, ex-ministro da Fazenda, umapassagem para a Bahia, no valor de 300$000.

    Comit de Salvao Pblica? A quem Joo Neves o comparava? A Saint-Just? A Hbert? ARobespierre?

    Que imbecil!Tambm pudera. Nada havia entendido da verdadeira revoluo, que rapidamente o

    ultrapassara. Gabava-se ainda de no apoiar, nem mesmo pela cumplicidade do meu silncio,a obra diablica do desmantelo de todas as foras conservadoras da sociedade brasileira.

    isso que Getlio pensa enquanto enxuga o suor do rosto e volta a contemplar o vazio pelajanela.

    No se sente sozinho. Nem cr na solido do poder. A sua solido vem do fato de precisarandar na frente.

    *

    Gabriel cresceu na Estncia da Palma, entre So Vicente do Sul e So Gabriel, no RioGrande do Sul. Tinha apenas 10 anos de idade quando o sangue manchou as areias deCopacabana e imortalizou os 18 do Forte. Seu irmo mais velho, Francisco, exerceria, muitojovem, a profisso de jornalista no Dirio do Interior, o veculo de maior circulao fora dacapital gacha, chegando a trabalhar depois, em Porto Alegre, no jornal republicano A

  • Federao. As notcias sempre chegaram casa de Gabriel como uma janela aberta ventania do mundo. Ele se lembrar dcadas depois de Siqueira Campos, tenente aos 24anos, que dividiu a bandeira nacional em 28 pedaos e os colocou no peito dos que sobraram.

  • 3Os tenentes empurram a revoluo nos anos 1920. o baixo clero das Foras Armadas.9 de outubro de 1921.O jornal O Povo publica uma carta recebida manuscrita na qual o ex-presidente da

    Repblica, o marechal Hermes da Fonseca, maior dolo do exrcito, quase uma esttuanacional, chamado de sargento sem compostura. Os militares so rotulados de venais.

    A carta atribuda ao mineiro Artur Bernardes, candidato da situao presidncia doBrasil.

    Bernardes nega veementemente. Intil.Levanta-se o Clube Militar.Uma segunda carta reafirma o contedo da primeira.A ferida continuar aberta por muitos anos.Artur Bernardes vence as eleies em 1 de maro de 1922. A oposio, como sempre,

    reclama de fraude na contagem dos votos. A populao de Recife sai s ruas. A insatisfaovara os meses. Em junho, Hermes da Fonseca conclama o exrcito a no castigar o povopernambucano.

    preso por insubordinao.Um decreto presidencial fecha o Clube Militar.O Brasil entra em convulso. um tempo de homens destemidos, valentes e quase

    quixotescos. Querem vencer obstculos extraordinrios apenas com coragem e ousadia.Rebela-se o Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro, comandado pelo filho de Hermes da

    Fonseca. Cavam-se trincheiras. Preparam-se as armas. A revolta deve explodir uma hora damanh de 5 de julho de 1922.

    Ser o famoso primeiro 5 de julho da revolta brasileira.D tudo errado. A revolta fracassa. O governo antecipa-se ao movimento. O tenente

    Siqueira Campos dispara inutilmente o seu canho dando incio ao ataque. Quatro pessoasso mortas no Forte do Leme. A artilharia da Fortaleza de Santa Cruz reage ferozmente aolongo do dia. Os comandantes da rebelio liberam os homens dispostos a partir. A debandada enorme. Euclides Hermes vai negociar no Palcio do Catete e preso. Em 6 de julho, restasomente um punhado de homens desatinados.

  • Podem bombardear o Rio de Janeiro. Podem morrer atirando a esmo. Podem morrerentrincheirados. Podem sacrificar inocentes. Precisam decidir. As horas passam lentamentepara alguns. Velozes demais para outros. Siqueira Campos ter seu primeiro encontro com amorte.

    Preferem sair de peito aberto para um combate impossvel. s 13 horas, comeam amarcha pela praia. H deseres. Sobram, enfim, 17 homens comandados por SiqueiraCampos. A morte os acompanha. O civil Otvio Correia, um amigo de Siqueira, junta-se a eles.

    So os 18 do Forte.Depois de meia hora de combate e de uma corrida contra o destino, estaro quase todos

    mortos, menos dois soldados, que morrero no hospital, e os tenentes Siqueira Campos eEduardo Gomes, ambos feridos.

    Essa derrota ser o comeo da vitria que vir oito anos depois sob a liderana de GetlioVargas.

    Hlio Silva, mdico e jovem jornalista em 1930, escrever muito tempo depois um livrodocumental intitulado 1922: sangue na areia de Copacabana.

    Algo havia comeado a mudar.Getlio acompanhar tudo de longe, do seu Rio Grande do Sul tambm pronto para

    explodir, num misto de pavor e de inquietao. somente um jovem poltico conservador.Aqueles tenentes defendero nos anos seguintes reformas que no o deixaro indiferente:

    voto secreto, voto para as mulheres, educao para o povo, direitos.Propostas capazes de tirar o sono de um homem.Seu rosto, contudo, permanecer enigmtico.A vida, dir um dia Getlio, um tecido de fios e de vidas partindo de lugares muito

    diferentes em busca de uma mesma luz misteriosa, a luz que d sentido.

    *

    Nas ruas de Santa Maria, importante centro militar e ferrovirio dos anos 1920, Gabriel vpassar os irmos Alcides e Nlson Etchegoyen. Aos seus ouvidos de menino chegam histriasincrveis. Numa delas, o Dr. Jlio de Arago Bozano ruma para Iju a fim de encontrar a ColunaPrestes. Numa emboscada, no meio do mato, assassinado. Sua noiva, Maria Clara, decidenunca mais se casar, dedicando sua vida medicina. Gabriel exclamar: Amor, sempre oamor. Em 1926, as cercanias de Santa Maria amanhecero sob intenso tiroteio demetralhadora, fuzil e canho. Mais uma sublevao nos campos do Rio Grande.

    Francisco, o irmo de Gabriel, aos 18 anos de idade, cobre a revolta dos irmosEtchegoyen para o Dirio do Interior. Acompanha o major Anbal Baro, comandante do

  • regime da Brigada Militar, cujo Estado-Maior est instalado no Clube Caixeral. O combate dura26 horas. Um civil atingido por uma bala perdida. Morre na rua Dr. Bozano. Gabriel nuncaesquecer: Depois de 26 horas de luta e de muitos boatos os rebeldes hastearam bandeirabranca, mas, antes, mandaram um praa a cavalo percorrer a cidade anunciando que iriambombarde-la, que a populao que tivesse condies deixasse a cidade. A notcia geroupnico, e a correria foi grande. Eu, que tinha 14 anos, estava na casa de um amigo eacompanhei a famlia para fora da cidade. Tudo no passou de um blefe para dar tempo queos sublevados, que estavam perdendo a batalha, sassem rumo ao Uruguai, onde foram seexilar.

  • 4Joo Neves hesita.Est na hora de encontrar Getlio, o homem que, embora eleito indiretamente conforme a

    Constituio de 1934, comanda o Brasil como um ditador, o ditador que passar realmente aser em 10 de novembro de 1937.

    O que vai lhe dizer? Como ser recebido?Tambm ele sente algo que poderia ser entendido como saudades. Mas no se acha

    homem de grandes expanses sentimentais. Vai perguntar o que sabe e a educao manda:como anda a Darci? Como vo os filhos? Lembra-se da espevitada da Alzirinha, a filha mimosade Getlio.

    Sabe as respostas. Perguntar mesmo assim.Melhor ir logo e ter a primeira conversa ao p do ouvido, depois de tantos anos, com o

    amigo de outrora, com o companheiro de tantas lutas e confabulaes.Tambm ele pensa em 1930. Revisa o que os havia unido. Recorda-se do seu papel na

    campanha da Aliana Liberal. Percorrera o pas discursando pela eleio de Getlio, que lhepedira para no falar em revoluo, pois entendia que isso afastaria os eleitores. Faziasentido.

    Nem sempre fora possvel. Em Recife, a plateia do Teatro Santa Isabel havia comeado agritar viva a revoluo brasileira e s lhe restara segui-la. Terminara com um grito de guerra:Mas, se a 1 de maro os donatrios do Brasil tentarem afogar no mar morto da trapaa opronunciamento da Nao, levantemo-nos ento em armas, por amor do Brasil. Foralongamente ovacionado.

    Tempo feliz de angstia e de esperana.Depois, vieram os desentendimentos.Aps a derrota da Revoluo Constitucionalista de So Paulo, ele escrever com suas

    tripas o Acuso.Folheia-o com certa displicncia. Vai at a pgina em que justifica a sua adeso revoluo

    de 1930:

    Fui esquerdista at o dia da revoluo, que eu considerava necessria para prordem na vida poltica do Brasil, para extinguir os abusos, para desmobilizar a legio dos

  • funcionrios inteis, para extinguir o negocismo, para restabelecer a moralidade nosprocessos da administrao, com o recurso a mtodos heroicos incompatveis com oregime legal burocrtico e demorado.

    Sentira-se trado j em 7 de outubro de 1930. Era o vice-presidente do Estado. Fora eleitopelo povo. Em Cachoeira do Sul, no entanto, recebera uma carta de Getlio avisando queseguiria para o campo de operaes, mas no lhe passaria o governo do Rio Grande do Sul,entregando-o a Osvaldo Aranha, sob a alegao de que no tinha como prever o desfecho domovimento e poderia dele precisar como deputado federal no caso de derrota.

    Assumindo o governo [dizia Getlio], ficaria impossibilitado, desde logo, para exercero mandato de deputado. Isso, evidentemente, no seria aconselhvel, de incio, porqueficaramos privados do lder da bancada, quando ainda no sabemos qual o rumodefinitivo dos acontecimentos. , pois, de inteira convenincia, permaneceres a, porenquanto, nada dizendo a respeito, para no inspirar qualquer dvida de nossa parte.

    A raiva o tinha submergido num silncio que assustara sua mulher. Queria evitar de falar.Tentava no explodir. Getlio prometia-lhe o governo se a revoluo triunfasse. Ele, Joo,deveria ter sido o candidato ao governo, mas o velho Borges achava Getlio mais dcil. Seriaengolido pelo discpulo. No, no podia aceitar a afronta. Respondera anunciando sua rennciaao cargo de vice-governador: Nunca tive outro pensamento seno seguir para o campo daluta. No poderei, porm, ocupar posto cujo preenchimento em momento difcil no me possacaber (...) Embarcarei como simples soldado. Assim ser.

    Vargas apressara-se em desfazer o erro. Prometera-lhe o cargo que escolhesse. Receberacomo resposta um nico posto aceito o de simples combatente. Ningum o faria mudar.Queria levar o candidato esbulhado da Aliana Liberal ao cargo para o qual fora eleito e para oqual apresentava todos os mritos. Era tudo. Getlio insistira. Sabia-se devedor. Chamara-o aPorto Alegre para conversar. Tudo intil. Sua deciso estava tomada. Permaneceria onde seencontrava para no inspirar qualquer dvida. Vargas no desistira. Implorara para v-lo.Lisonjeara-o com humildade e novos argumentos: Ningum mais do que eu faz justia aos teusmritos.

    A cicatriz ficar.Osvaldo Aranha, recuperado de uma doena que o pusera de cama, apelar em nome da

    amizade que os ligava para que Joo assuma o cargo ou o posto de comandante de umacoluna. Nada feito. Como um menino mimado, responder com nova recusa: Meu ideal era arevoluo. Ela a est. Estou contente. Quero apenas pelear um pouco e conseguir que no

  • falem mais em mim, nem de mim. o seu jeito. No se dobra.Desejava apenas ajudar a derrubar o Barbado. Deposto Washington Lus e empossado

    Getlio, o ganhador das eleies, ele tomaria o seu rumo de alma lavada.Apenas trs anos depois, no Acuso, outra seria a sua atitude e bem outras as suas

    palavras. Queimava de dio. Exalava rancor. Pretendia provar que fora muitas vezescompelido a deter Getlio, pela aba do jaqueto, a permanecer no bom caminho, para queno desertasse o bom combate nem se acarneirasse, tmido e arrependido, sob as asas doconservadorismo ao qual pertencera.

    Apresentava-se como antpoda de Vargas. Definia Getlio, depois da eleio de 1930,como um comodista incorrigvel, um calculista frio, um arrivista desejoso de chegar aoCatete em linha reta, sem ideais nem riscos. Uma mente labirntica tomada pela abulia.

    Joo Neves sabe ser feroz.Getlio admira essa mordacidade panfletria.Dizem que ele adoraria ter escrito o Acuso.Na caminhada revolucionria, Joo Neves dizia ter travado duas batalhas terrveis: uma

    contra os inimigos. Outra contra a inconstncia de Getlio, sempre disposto a bandear-se parao adversrio em troca de duas ou trs concesses. O tom sobe. A fria deslancha em ondassucessivas. Tudo levado de roldo por essa memria implacvel. Neves era um vulcomelanclico. Getlio fora um pesado fardo carregado pelos amigos nas ladeiras da revoluo.Queria poder e nada mais. No importava a via de acesso. Extenuado, o acusadorsentenciava:

    Getlio Vargas e eu no puxaramos, porm, parelho no futuro. A tornura das disputasntimas, embora em tom amistoso, desquitaria-nos para sempre.

    Ser mesmo?Joo Neves hesita. Precisa correr. Est atrasado. Getlio gosta de pontualidade. Odeia, na

    verdade, esperar. O livro, porm, cola-se nas suas mos. Sente-se cansado. Quase searrepende de algumas frases mais violentas. Haviam tentado atingir-lhe a honra. Desafiara atodos para que verificassem a origem do seu patrimnio.

    Podia olhar altivo para o futuro naqueles dias infelizes de exlio: nada pedira e nada devia ditadura. Recusara ser ministro da Justia, governador do Rio Grande do Sul e at interventorem So Paulo, quando, de passagem, seu nome fora sugerido por Jos Maria Whitaker, entoministro da Fazenda do governo revolucionrio.

    Era 14 ou 15 de novembro de 1930. Naquela vez, tambm estivera no Catete. Antes, demanh, fora a um encontro de ltima hora na casa de Osvaldo Aranha em que lhe repugnaraver o anfitrio junto com Joo Alberto e Juarez Tvora, este com pequenos discos de pano

  • vermelho no antebrao, as estrelas do generalato, tagarelarem como salvadores do pas edonos da revoluo. Donos da revoluo que era dele e de outros.

    Os nouveaux riches do poder!Em seguida, num almoo no Lido, havia dito na cara do Joo Alberto que So Paulo

    merecia um interventor paulista e com competncia de estadista. Um petardo.Fora ento ver Getlio no Catete. Rogara-lhe que no indicasse Joo Alberto para

    interventor em So Paulo.Getlio o tranquilizara. Tinha outros planos.Mas chegara Osvaldo Aranha e pedira justamente o oposto. Getlio havia prontamente

    mudado de opinio.Joo Alberto seria interventor em So Paulo. Ele no me ouviu. Deu no que deu resmunga Joo.Parece ouvir ainda, enquanto abandonava o gabinete de Vargas, Osvaldo censurar o

    presidente pela demora na reforma dos generais. Aranha era o dono do poder.Voltara ao Catete, a pedido de Batista Luzardo e Anacleto Firpo, para tentar a ltima

    cartada. Era preciso a qualquer custo impedir a nomeao de Joo Alberto. EncontraraGetlio almoando com Osvaldo Aranha. Os dados estavam lanados. Era tempo perdidoinsistir. Sara do palcio em companhia de Osvaldo. No Palace Hotel, encontraram AssisBrasil. Aranha explicara, com riqueza de detalhes, que a nomeao de Joo Alberto seria porapenas oito dias. Foram, escrever Neves, oito meses de lutas, sofrimentos e humilhaespara So Paulo, trado e enxovalhado. E uma contrarrevoluo sangrenta.

    No Acuso, registrara com amargura: Os vencidos de 22 e 24 empalmavam a vitria comuma sem-cerimnia admirvel. Eram os tenentes cobrando a colheita.

    Foram anistiados por Vargas.E dizer que Osvaldo Aranha proclamara: A revoluo no foi feita para perdoar, mas para

    punir.Era a poltica dos enrags. Sente raiva.Alguns anos, no entanto, haviam passado e ele estava atrasado para um encontro

    importante com o seu velho companheiro, o fardo de 1930, aquele que mais tarde seria oditador do Estado Novo e j era o maquiavlico dono do poder, aquele a quem acusara deprticas de sovietismo, ceifando comandantes do exrcito, descartando homens depensamento livre, amordaando a imprensa, empastelando jornais, disseminando mentiras,espalhando intrigas.

    Ter de carreg-lo outras vezes?Far novamente parte da sua histria?

  • *Um circo cubano passa por Santa Maria em 1926. Gabriel, aos 14 anos de idade, apaixona-se pela trapezista, uma morena deslumbrante chamada Olguita. Pede um adiantamento na lojaSo Paulo, onde trabalha como balconista, e, na companhia de um amigo, tambm comesprito aventureiro e enamorado de uma menina do circo, segue a comitiva do espetculo. Alonga viagem termina em Rosrio do Sul com o fim do dinheiro e das esperanas de conquistaro primeiro grande amor de sua vida.

  • 5Pelo que haviam lutado aqueles tenentes que incomodam Joo Neves antes do seu encontrocom Vargas?

    Quais eram os seus sonhos e utopias?Em 1922, haviam lutado pelo respeito aos valores das Foras Armadas e j por uma

    mudana nos costumes polticos dominantes, ou seja, contra a fraude dominante.Contra a fraude, contra o mandonismo e a poltica dos governadores, o pacto de troca de

    favores entre os governos estaduais e o governo federal de planto.5 de julho de 1924.Segundo aniversrio do fatdico episdio dos 18 do Forte de Copacabana. Data

    melanclica. Dia de revolta.O conservador Artur Bernardes, piv do conflito no Rio de Janeiro, acusado de ser o autor

    das cartas falsas que haviam ofendido o brio dos militares e rebelado os tenentes, impe nao um permanente estado de stio.

    O general gacho aposentado Isidoro Dias Lopes secundado pelos tenentes Joaquim eJuarez Tvora, Eduardo Gomes, um dos sobreviventes de Copacabana, Miguel Costa e JooCabanas deflagra uma rebelio em So Paulo cujo objetivo maior a renncia de ArturBernardes.

    O governador Carlos de Campos foge da capital.Os rebeldes oferecem o poder ao vice-governador, o coronel Fernando Prestes de

    Albuquerque, que impe uma condio para aceit-lo: a renncia de Carlos de Campos.Fernando Prestes organiza a resistncia em Piratininga. O futuro ouvir falar dele e do seu

    filho.Avies do exrcito legalista bombardeiam So Paulo.O desespero toma conta das populaes civis. Mulheres pedem clemncia. Homens

    apresentam-se como voluntrios. Bares da indstria e caciques do comrcio tentam fazer aponte entre os rebeldes e o poder federal. Negociar o negcio deles. Bairros operrios,como Mooca e Brs, so duramente atingidos. A classe mdia de Perdizes tambm recebe oseu quinho. O pnico instala-se sob o bombardeio terrificante. Os revoltosos insistem.

    Haver, mais tarde, um processo judicial. As tropas comandadas por Joo Cabanas seroacusadas de vandalismo e estupros e ficaro conhecidas como a coluna da morte.

  • So Paulo permanecer nas mos dos rebeldes durante interminveis 23 dias. JoaquimTvora, que desertara do exrcito em 1923, ser um dos heris daquela que ficar conhecidacomo revoluo esquecida, o segundo 5 de julho, tendo aprisionado o general Ablio deNoronha, comandante da 2 Regio Militar. Um heri deve morrer.

    Joaquim Tvora, ferido ao atacar o 5 Batalho de Polcia, morrer dias mais tarde. Sermais um mrtir do tenentismo na luta contra as oligarquias brasileiras.

    O seu irmo Juarez continuar a luta. At o golpe militar de 1964, oscilar entre o poder eas revoltas.

    Em 1924, porm, em Trs Lagoas, sofrer uma das maiores derrotas da sua vida militar:metade do seu batalho perecer ou cair prisioneiro das tropas legais.

    Os tenentes derrotados unem-se, em Foz de Iguau, aos homens de outro gacho, LusCarlos Prestes. o comeo de uma aventura entre heroica e quixotesca, a Coluna Prestes.Os tenentes descobrem o Brasil profundo. Miguel Costa ser o comandante da Coluna.Prestes, o chefe do Estado-Maior, tendo como subchefe Juarez Tvora. Siqueira Campos,Joo Alberto, Cordeiro de Farias e Djalma Dutra comandaro os quatro destacamentos.

    Isidoro Dias Lopes velho de guerra. Em 1893, durante a Revoluo Federalista, lutacontra Floriano Peixoto. Conhece o exlio em Paris. Volta anistiado. Depois da revolta de 1924,liga-se com seus homens Coluna Prestes. Mas, velho para tantas andanas, fica naArgentina como articulador do movimento. Em 1930, est do lado de Getlio Vargas. Em1931, para desespero de Joo Neves, um dos nouveaux riches do poder, comandando a2 Regio Militar. Em 1932, como Joo Neves, est contra Getlio, ao lado dos paulistas naRevoluo Constitucionalista, o que o leva a uma temporada indesejada em Portugal. Em1934, experimenta um novo estado: o gosto de ser anistiado pela segunda vez. Em 1937,ataca o Estado Novo. Enfim, um homem do seu tempo.

    O saldo da revolta de Isidoro ser devastador: o Palcio dos Campos Elseosbombardeado, So Paulo apavorada, o interior sacudido, 503 mortos, mais de 5 mil feridos, acapital ocupada por 15 mil soldados legalistas, bairros destroados e uma ferida aberta pormuito tempo. So Paulo jamais ser tenentista. Jamais!

    Joo Neves limpa o suor da testa.Lamenta o destino de Pires e Albuquerque, Procurador-geral da Repblica, que indiciar os

    rebeldes por sedio exigindo que lhes sejam aplicadas as penas da lei. Os novos donos dopoder o acusaro de nepotismo.

    Tem um encontro com Getlio. Est atrasado.Mas o acusara de desmantelar a justia. Denunciara corajosamente um interventor no

    Amazonas que dissolvera o tribunal inteiro e outro, em Pernambuco, que demitira osdesembargadores. Chamara isso de retorno barbrie.

  • J faz tempo tudo isso. Est de volta. No mais um exilado, um pestilento, um esquecido.Mas no esquece.

    O que queriam os tenentes? Muito do que ele tambm quisera. Os verdadeiros fins, noentanto, seriam diferentes. Lembrava-se do cartaz afixado porta do Ministrio da Justia dorevolucionrio Osvaldo Aranha: No existem direitos adquiridos contra a nao.

    Aquilo no poderia ter servido de autorizao a expurgos e saques. Afinal, haviam lutadocontra isso.

    Os tenentes haviam ido s ltimas consequncias na Coluna Prestes, um movimento que lheparecera louco: 1.500 homens vagando pelo pas como fantasmas errantes.

    Que Brasil era aquele dos tenentes?Em 1920, eram 27 milhes de brasileiros. A populao crescia 2% ao ano. Os comunistas

    j denunciavam a concentrao da terra: 26.318 estabelecimentos rurais ocupavam 60% daterra disponvel para cultivo.

    Isidoro Dias Lopes resumir a falncia do Brasil daqueles anos afirmando que o Brasil viauma oligarquia plutocrtica enriquecer at a quinta gerao, enquanto trinta milhes dehabitantes, quase em misria, so cada vez mais explorados. Segundo ele, havia 10 milprivilegiados, um sindicato composto por grandes industriais, seus parentes e amigos dopeito, presidentes da Repblica, presidentes de Estados, senadores, deputados federais eestaduais, parentes, compadres e nepotes de toda sorte. Um quadro desolador.

    Em 14 de abril de 1925, Miguel Costa, em Santa Helena, assume o comando das tropas dacoluna que entrar para a histria com o nome de Prestes. O capito gacho Lus CarlosPrestes, que se tornar conspirador no Rio de Janeiro sob os ventos daquele terrvel ano de1922, sublevar, em outubro de 1924, o seu batalho em Santo ngelo, na regio missioneiragacha, romper o cerco espetacularmente e subir para Santa Catarina e Paran.

    Os homens de Prestes atravessaram matas fechadas, passaram fome e frio, carregaramarreios nas costas, viram seus cavalos extenuarem-se ou morrer. Mulheres aderiram coluna.No Rio de Janeiro, oficiais da Marinha, entre os quais um certo Amaral Peixoto, tomaram oCouraado So Paulo e o entregaram s autoridades em Montevidu. O Brasil estava emebulio. Mais de 50 anos depois, Prestes, o cavaleiro da esperana, resumir:

    Realmente as foras do governo jamais conseguiram surpreender a Coluna etampouco derrot-la. Isso porque adotamos uma linha estratgica determinada.Enquanto estvamos em Santa Catarina e Paran, espervamos receber munio ereforos para atacar a retaguarda do general Rondon. Quando verificamos que, mesmono Paran, a quantidade de munio era tambm pequena, decidimos que o essencialseria manter a luta e a bandeira da insurreio, na esperana de que os companheiros

  • do Rio de Janeiro pusessem abaixo o governo Bernardes. Isso porque no tnhamos umprograma poltico de fato. A luta era movida para a derrubada do governo e, como notnhamos fora suficiente para tal, achvamos que deveramos nos movimentar paraatrair sobre ns as maiores foras possveis, facilitando o trabalho dos nossoscompanheiros da capital do pas.

    Em 1930, Getlio adotar como programa eleitoral boa parte das ideias tenentistas.Fraudada a eleio, ter como aliado decisivo na revoluo o odiado ex-presidente ArturBernardes. Alguns anos depois, Getlio mandar colocar Bernardes, que voltar a trocar delado, numa mesma cela com seu antigo adversrio poltico, Borges de Medeiros, cacique doPartido Republicano Rio-grandense e padrinho de Vargas na sua estreia na vida pblica.

    Entre os tenentes da Coluna estar Siqueira Campos, aquele mesmo Siqueira Campos dos18 do Forte. Entre ele e Prestes crescer uma amizade que durar at a morte.

    Um dia, Siqueira est com Prestes num povoado. Uma criana aproxima-se deles como umco temeroso.

    Meu pai vai morrer diz, por fim.Entram no casebre para tentar ajudar. Um homem raqutico agoniza. Nada podem fazer por

    ele. Siqueira, contudo, deixar escapar um comentrio pattico: Este o Brasil. Que triste morrer assim.A Coluna seguiu seu rumo.Foram 25 mil quilmetros de marcha.Tudo acabou na Bolvia, onde Prestes se refugiou.O que havia sido aquilo? Uma fuga desesperada para a frente? Uma guerra de guerrilhas?

    Uma aventura delirante?Os tenentes conheceram as entranhas do Brasil. As entranhas do Brasil nem sempre

    desejavam conhecer os tenentes. O padre Jos Audrin escreveu para Miguel Costa:

    A passagem da coluna revolucionria atravs dos nossos sertes e por nossascidades tem sido um lamentvel desastre que ficar, por alguns anos, irreparvel. Empoucos dias, nosso povo, na maioria pobre, viu-se reduzido misria. Isto sobretudodeplorvel, porque este humilde povo nenhuma culpa teve dos acontecimentospassados, ignorando em sua quase totalidade os acontecimentos de 1924 em So Pauloe no Rio Grande do Sul.

    O clero no contava. Era conservador. Deus havia sido requisitado pelas elites. Estavaprisioneiro.

  • A Coluna era uma tropa de miserveis sujos, cobertos de muquiranas, atravessando umimenso pas de sujos miserveis. Visitaram Santa Catarina, Paran, Mato Grosso, Gois,Pernambuco, Piau, Cear, Paraba, Bahia, Minas Gerais, novamente a Bahia, outra vezMinas, Bahia, Gois, j pela quarta vez, Mato Grosso, Gois e, enfim, Bolvia, onde, em 3 defevereiro de 1927, na vila de San Mathias, 620 maltrapilhos chegaram com 90 fuzis, quatrometralhadoras e dois fuzis-metralhadoras. Siqueira Campos seguiria com seus esfarrapadospara o Paraguai. Tudo seria visto e experimentado: sol e chuva, fome e tristeza, medo esofrimento, dor e alegria, campos e caatingas, montanhas e rios, o Velho Chico e o serto.

    O Brasil vivia uma sria crise econmica. A dvida externa andava em torno de um bilho etrezentos milhes de dlares. Importava-se mais do que se exportava. Tudo dependia dopreo do caf. Era o triste reino da monocultura. Banhava-se em sangue qualquer insatisfao.Em 1917, as greves operrias haviam mostrado as garras dos trabalhadores. Elas se afiariamcom o tempo. Em 1922, surgira o Partido Comunista. Havia mais de 20 milhes de miserveis.Artur Bernardes tinha a sensibilidade de uma anta e a truculncia de um general desejoso depaz a qualquer custo. Era um advogado com vocao para elefante descontrolado.Washington Lus, seu sucessor, eleito sem oposio, era conhecido por uma gloriosa einesquecvel obra: ter reprimido duramente, como prefeito de So Paulo, as greves operriasde 1917, quando teria dito sutilmente que questo social questo de polcia.

    A Coluna Prestes no venceu a guerra. Revelou o Brasil para os tenentes que pensavamconhec-lo como ningum. Eles mergulharam na aventura com muitas certezas. Saram delacheios de dvidas e de cicatrizes. Nunca mais seriam os mesmos. Nem o Brasil. Haviampassado do mapa realidade. O Brasil era uma imensa capitania de deserdados. Hereditriapara a maioria era a pobreza, o analfabetismo e a falta de amparo. A Coluna foi, em temporeal, uma aula de histria, economia, geografia, cultura popular, arte da guerra. Abguar Bastosescrever:

    Os povos ignorantes e aturdidos do serto viam em Prestes o mistrio da audcia,da vida, da grandeza e do atrevimento dos homens urbanos. Formavam a sua lenda,como os escravos e os servos formavam as lendas dos castelos. Nada mais pico, paraa burguesia, do que esse Cavaleiro da Esperana, que desafiava exrcitos, rompia umspero territrio de oito milhes de quilmetros quadrados, atravessava, sem sabernadar, centenas de rios, transpunha vales e cordilheiras, rodeava mesopotmiasselvagens e florestas sombrias.

    O marxista Nelson Werneck Sodr dir com alguma pompa: A importncia que otenentismo atingira, entretanto, e particularmente, com os efeitos da Coluna, alterara

  • profundamente a poltica nacional.Getlio acompanhar tudo isso com espanto e um dissimulado fascnio. Em 1924, em apoio

    ao envio de tropas gachas para combater a revolta de Isidoro Dias Lopes, dir: J passou apoca dos motins de quartis e das empreitadas caudilhescas, venham de onde vierem!Ministro da Fazenda de Washington Lus, nos meses finais das andanas da Coluna, estar dolado repressor. Afinal, tambm o Rio Grande do Sul sofria com novas labaredas.

    Aprendia com o que combatia. Acumulava dados.Conhecia muitos daqueles homens.Sentia que buscavam fins justos por meios errados.Sonhava, sem o revelar, em mudar o Brasil pelo voto.Joo Neves era de outra tmpera. Achava que o gosto pelas conspiraes era quase um

    vcio, uma molstia, um bilhete de loteria que se comprava quase por hbito.Admirava o general Isidoro e via nele um homem sem ambio de poder, inteligente, sagaz,

    irnico, de quem ele se tornaria amigo em 1932. Em 1924, considerava descosidas as razesdo levante de Prestes, em nome do povo e do voto secreto. Prestes sempre lhe parecer umhomem talentoso e um pssimo escritor. Nas suas memrias, escritas no Rio de Janeiro, ondemorrer em 31 de maro de 1963, Joo expressar uma certeza: A insurreio de 5 de julhode 24 poderia ter vencido, se o Sul do pas, notadamente o Rio Grande, se orientasse nomesmo sentido. Dada, porm, a firme resistncia do Sr. Borges de Medeiros e a reaopartida daqui do Rio tiveram os rebeldes de abandonar a capital de So Paulo e marchar pelointerior, rumo fronteira, pelejando em retirada.

    Ele mesmo registra que em 1932 o efeito se repetir, com Flores da Cunha selando aderrota dos paulistas.

    Joo Neves sente-se abatido. suscetvel.Vrias vezes pensara em abandonar a poltica. Em 1928, convidado por Borges a ser

    candidato a deputado, recusara. Ao ver a lista sem o seu nome, sofrera.Agora, cansado e atrasado, precisa ver Getlio. Ele, Joo, presidencialista e federalista,

    tem encontro marcado com o dspota, a quem ajudara a escalar o poder.Por que o fizera?Pelo partido, pelo Rio Grande, pelo Brasil, por ideal. Porque tambm ele havia se

    convencido de muitas das mazelas denunciadas pelo tenentismo por vezes confuso. Queriaresolv-las pelos meios legais. Fizera-o para reparar defeitos das instituies. Afastara-seporque todas as causas coletivas comeam por imolar seus servidores mais sinceros epremiar os oportunistas.

    Como explicar o atraso?Talvez diga que estava revisando a lio de casa. Corrigindo 1930. Tentando entender os

  • seus erros.Melhor encontrar outra desculpa. Getlio, do seu jeito dissimulado, tambm tem suas

    suscetibilidades. homem frio que arde por dentro, Getlio.

    *

    Alm de fracassar na tentativa de conquistar Olguita, Gabriel perde o bom emprego debalconista. O desejo de partir toma conta dele. bom aluno. Sonha em estudar no ColgioMilitar de Porto Alegre. Escreve para um tio, pintor de quadros. Toma o trem para PortoAlegre. Tem apenas 15 anos de idade. O Brasil fervilha de conspiraes. Ele pensa na farda,nas meninas, na Olguita que no teve e em como ser a capital gacha. Rapidamente percebeque o tio, artista de ganhos incertos, no poder tomar conta dele. Decide jogar todas as suascartas.

  • 6Ele no vir, pensa Getlio, cortando o charuto.Sente-se s. V muita gente. Mas a solido do poder um fato. A solido, de qualquer

    maneira, sua velha companheira. Quando jovem, seus amigos gostavam de corrida de cavaloe de carpetas de jogo. Flores da Cunha sempre tentava arrast-lo para as mesas. Aquilo noo atraa de fato. Preferia ler, fumar charuto, tomar chimarro e pensar. O seu vcio, sechegasse a tanto, eram as sadas alegres, as mulheres esguias. Um corpo jovem e rijo algo que ainda o arranca do torpor.

    Quando se casara com Darci, em 1910, ela era uma menina de apenas 15 anos. Tiveramfilhos. Estavam juntos. O corpo, no entanto, pedia outras. assim. Trai.

    Joo Neves no costumava atrasar-se, lembra.Lembra e j esquece de lembrar.Ah, como Joo se permite agredi-lo. Que esprito conturbado e propenso traio. No seu

    dirio, Getlio anotar em 19 de junho de 1935: A oposio rio-grandense Joo Neves eBatista Luzardo abriu as baterias contra mim. O primeiro um frasquinho de venenomanejando brilhante capacidade oratria, o segundo, com a m-f inconsciente dos espritosobtusos, mal se equilibra entre as contradies da sua palavra e dos seus atos.

    Afasta a amargura com lembranas erticas.Afasta as lembranas do corpo da amante com lembranas intensas. Deixa-se dominar por

    imagens de poucos anos antes, que parecem distantes. Pensa em 1930.Melhor, pensa nas articulaes que fizeram dele candidato de oposio presidncia do

    Brasil. o ano de 1928.Jlio Prestes de Albuquerque governa So Paulo. Fora eleito depois que seu pai, o velho e

    prestigiado Fernando Prestes de Albuquerque, cotado naturalmente para o cargo, deixara-lheo caminho livre, embora fosse o vice-presidente do estado e devesse assumir. Jlio tivera oapoio inesperado e decisivo do presidente Washington Lus, contrariando parte da cpula doPartido Republicano Paulista, o que se repetir gravemente no futuro.

    Em Porto Alegre, Getlio Vargas e Joo Neves da Fontoura conversam, no Palcio, sobre oquadro poltico.

    No acreditas que na prxima sucesso presidencial seja a vez do Rio Grande?

  • pergunta Joo Neves. No, no creio.Silncio embaraoso. O candidato de Washington Lus inequivocamente o Jlio Prestes. As ligaes entre

    ambos tm a maior intimidade. Por outro lado, os interesses do PRP concorremimperativamente para essa soluo.

    No possvel, Getlio. Isso vai romper o pacto com Minas. Antnio Carlos no vaiaceitar uma coisa dessas.

    Isso teoricamente certo, Joo, mas o Antnio Carlos no estar em condies deenfrentar o Prestes numa campanha eleitoral comandada pelo presidente da Repblica. Seuspontos de apoio oficial, nos estados, so muito vagos. E convm no esqueceres que o poderpresidencial se acha cada vez mais forte no Brasil, com as derrotas de todas as campanhaspolticas de oposio e dos surtos revolucionrios.

    Neves fica algum tempo em silncio.Por fim, atreve-se a perguntar: Qual dever ser a posio do Rio Grande? Acho cedo para firmarmos uma diretriz. Quanto ao Rio Grande, no a mim, mas ao

    partido que caber decidir. Portanto, ao Dr. Borges de Medeiros.Outro silncio. E uma pergunta queima-roupa: E, se o choque das ambies regionais abrir margem possibilidade de tua escolha

    como companheiro de Prestes, aceitarias? a vez de Getlio silenciar. Neves sabe que ele evita respostas imediatas quando a

    questo grave. Teme comprometer-se. Evita definies. cauteloso demais. No, porque entendo que governar o Rio Grande mais do que ser vice-presidente da

    Repblica. Alm disso, eu fui eleito para este cargo e devo desempenh-lo. Perfeitamente, Getlio. Em qualquer caso, penso que o Rio Grande no pode nem deve, de acordo com a nossa

    tradio, pr-se frente de um movimento para levar um dos nossos ao Catete.Joo Neves no desanima. Conhece Getlio. Sabe que ele ctico. Um pessimista por

    natureza. Precisa de garantias. Estuda cada passo a dar. Tem uma pacincia extraordinria.Explora as circunstncias. Jamais se precipita. Ser assim a vida inteira: um comunicador natoque sabe argumentar com muitos silncios e poucas palavras. Mas tambm sabe envolver,fascinar, seduzir e deixar no ar o que parece enraizado. Concluso: s uma razo externa olevar a enfrentar a marcha natural dos acontecimentos. Se nada acontecer, no se oporao candidato de Washington Lus, mesmo sendo outro paulista.

    Um dia, nas suas memrias, Joo Neves caracterizar Getlio como um homem ameno,

  • sorridente, gostando da boa piada, da anedota clef, irnico, ateu, acessvel, um sedutor quenamorava os adversrios com ternura dom-juanesca. Naquele dia de 1928, porm, sairquase aborrecido. Se depender de Vargas, o Rio Grande continuar acatando o jogo depaulistas e mineiros.

    com essa impresso melanclica que Joo Neves embarcar para a capital federal, ondeexercer a funo de lder da bancada do PRR na Cmara de Deputados. Vai substituir Floresda Cunha, que ocupara interinamente o lugar de Lindolfo Collor, cujo pedido de demisso sedevera mgoa por no ter sido designado, com a sada de Getlio, para o Ministrio daFazenda.

    Inveja, ressentimentos, rupturas, alianas... Nada mais do que o eterno vaivm das ondasdo poder.

    Ambies, ideais e lgicas de carreira. Joo Neves no demora para compreender que hum divrcio entre a elite dirigente e o resto da nao. O fosso enorme, no falam amesma lngua. Washington Lus vive alheio realidade. Exala autoridade. Mas peca porotimismo delirante. O cotidiano escapa-lhe por inteiro.

    O governador mineiro Antnio Carlos advertir: Faamos a revoluo antes que o povo a faa.No Rio de Janeiro, Joo Neves frequenta o Jockey Club, mora no Hotel dos Estrangeiros,

    pronuncia um discurso bombstico, declara que o Rio Grande do Sul no est comprometidocom qualquer candidato, conhece o assdio da imprensa, acompanha atentamente a evoluodo processo sucessrio e equilibra-se entre os dois principais interessados, o presidenteWashington Lus e o governador Antnio Carlos. Minas Gerais e So Paulo hostilizam-se.Washington Lus tem dificuldades para impor Jlio Prestes como seu candidato. Especula-seque poder optar por Getlio Vargas. Tudo fica para 1929.

    Getlio governa o Rio Grande do Sul ensimesmado. Parece alheio ao que acontece nacapital da Repblica.

    No recesso parlamentar, Joo Neves retorna ao Rio Grande do Sul. Encontra Borges deMedeiros na sua fazenda de Irapuazinho. Visita Getlio. Acertam os ponteiros.

    Volta ao Rio de Janeiro. Aproxima-se cada vez mais do mineiro Afrnio de Melo Franco,grande amigo de Antnio Carlos, um jurista vivo com vocao de estadista. O Brasilpermanece atolado nos seus problemas sem que haja qualquer inquietao dramtica. Asucesso presidencial entrar na pauta como um tema meramente poltico. A vida nas ruas,nas cidades e nos campos parece um problema estranho escolha do prximo chefe danao. Aqueles homens vivem e debatem como membros de um clube exclusivo. O pas deveser reflexo dos seus desejos, caprichos, partilhas e acordos. Comportam-se ora como lordesdistantes da vulgaridade do cotidiano ora como aves de rapina disputando uma gorda carcaa.

  • O mundo est prestes a sofrer um choque de grandes propores que afetar rudemente oBrasil, a crise da bolsa de Nova York. Mas aqueles homens esto longe.

    Esto no Brasil da Repblica Velha, que lhes parece muito nova e pujante. Discutem seanistiaro os revoltosos de 1922 e 1924. Joo Neves favorvel. Jlio Prestes, certamenteno. O pas um tabuleiro de xadrez com poucas jogadas permitidas. Tudo previsvel.Washington Lus promete para setembro o seu grande lance, a escolha do candidato, querdizer, do seu sucessor. Minas Gerais aguarda com a respirao em suspenso. Antnio Carlosangustia-se. A misria ulcera a nao, mas um problema dos miserveis. Somente algunsmilhes. Estadistas preocupam-se com a poltica do caf com leite. O presidente paulistatrair Minas Gerais? Minas aceitar a afronta? O Rio Grande do Sul tentar aproveitar abrecha que poder se abrir com a ruptura entre os dois grandes? Faam as suas apostas.Haver um azaro?

    O governador de Pernambuco, Estcio Coimbra, pergunta a Joo Neves, numa conversaamigvel:

    Por que no se lanar o Sr. Borges de Medeiros?Borges um homem duro, seco, pilar do positivismo gacha. O Rio Grande do Sul

    adaptara o cientificismo do francs Augusto Comte, acrescentado a degola para os casos deextrema necessidade. Deve-se viver s claras, salvo na contagem dos votos. Cacique regional,Borges tem influncia nacional, mas, no fundo, no parece ter envergadura para uma longatemporada longe de casa.

    No vamos tomar a iniciativa responde Neves.O ano decisivo. O jogo no deslancha. Getlio e Joo trocam intensa correspondncia.

    Vivem uma fase idlica. Getlio derrama-se em confidncias e reconhecimentos: Asconfidncias de natureza poltica, de que s o nico depositrio, vo escritas de meu prpriopunho. No passam pela secretaria para que ningum mais tenha conhecimento delas. Tuaatitude a acertada, tuas informaes parecem-me justas. Dizes que te interessasprincipalmente por mim. Outros se interessam principalmente por eles prprios. Esta umadiferena que muito abona a elevao da tua conduta e que eu reconheo. Tramam como seapenas trocassem opinies.

    A posio de Getlio no se altera: pede calma, discrio, conta com as circunstncias,prefere deixar que os acontecimentos sigam seu curso natural. Afirma que ningum se elegersem a concordncia de Washington Lus.

    A vida segue, no entender de Joo Neves, sem sobressaltos. O Rio de Janeiro, dir bemmais tarde, nunca mais lhe parecer to maravilhoso e envolvente. quase uma cidade dointerior, com pouco mais de um milho de habitantes, sem arranha-cus, salvo uma casa deapartamentos, o Edifcio Milton, na Praia do Russel. Joo conhece a nata da sociedade,

  • passa a morar, em 1929, no suntuoso Hotel Glria, no h pressa nem enfado, comtransporte fcil e preos baixos em relao aos salrios. O mundo de Joo no o daColuna Prestes.

    Ele se equilibra prazerosamente entre os emissrios do Enguia, apelido do escorregadiomineiro Antnio Carlos, os lances do Mando, Washington Lus, famoso por outra frase sutil,comigo na madeira, a hesitao do Geitlio, como Vargas ficar conhecido, capaz detirar as meias sem descalar os sapatos.

    As articulaes comeam a acelerar-se.Francisco Campos, secretrio do Interior do governo de Minas Gerais, o procura com uma

    pergunta frontal: O Rio Grande do Sul marcharia para a luta com Minas Gerais se Washington Lus

    impuser Jlio Prestes? O Rio Grande do Sul, sponte sua, no candidatar jamais um de seus prceres, mas, se

    uma fora poderosa e estranha, como a de Minas, apresentar uma soluo base de um dosnossos, o Rio Grande no se recusar, pena de falhar sua destinao poltica.

    Tem linguagem de bacharel, o Joo.Minas Gerais quer estar preparada para o caso de tomar uma rasteira de So Paulo. O Rio

    Grande do Sul poder ser uma bela cartada vingativa de Antnio Carlos.O idealismo gacho consiste em ser pragmtico: no dar o primeiro passo, mas jamais

    perder a oportunidade de dar o segundo. Questo de ocasio e de destino.Francisco Campos, acompanhado do elegante Jos Bonifcio de Andrade, irmo de Antnio

    Carlos, espera Joo Neves no apartamento 809 do Hotel Glria. o dia 17 de junho de 1929.Os dados sero lanados.O deputado Jos Bonifcio estende uma carta do irmo a Joo Neves. O contedo lquido

    e certo: Antnio Carlos oferece apoio candidatura de um gacho Borges de Medeiros ouGetlio Vargas, se no for ele mesmo, como de direito, lanado pelo presidente WashingtonLus.

    Um pacto proposto.Joo pensa: agora ou nunca?Ter de consultar Getlio e Borges. No tem autonomia para assinar um compromisso de

    tal monta.Sente-se tomado por uma grande excitao. Sabe que no pode vacilar. O Rio Grande do

    Sul no tem razes para romper com o Catete. Exceto, mas isso ele no pensa ou no diz, aoportunidade histrica de chegar ao poder.

    No se pode deixar o cavalo passar encilhado.

  • A tarde avana. Borges est longe, muito longe, na sua fazenda gacha de Irapuazinho.Precisaria de uns dez dias para obter uma resposta do velho cacique do PRR.

    Sabe que no hora de temer.Faz parte de um povo de homens ousados e guerreiros. Gente atrevida. Ainda em 1926,

    Osvaldo Aranha e Flores da Cunha andavam em armas contra os rebeldes dos oficiais Nelsone Alcides Etchegoyen, cuja Coluna Relmpago, ligada aos libertadores do velho HonrioLemes, tentara unir-se a Prestes e impedir a posse de Washington Lus. Quem podia preverque estaro todos juntos em 1930?

    Dar o grande passo sozinho?Pede tempo. Consulta o companheiro de bancada Srgio de Oliveira. Explica, confidencia,

    aposta, convence.Volta a encontrar Francisco Campos e Bonifcio. Campos escreve os termos do pacto entre

    Minas e Rio Grande. Borges de Medeiros dever caucion-lo.Joo Neves da Fontoura assina-o, pois o Rio Grande, claro, sob pena de falhar aos seus

    prprios destinos, no poder recusar; vitorioso, governar de inteiro acordo com o elementoque houver predominado na escolha.

    Um dos elementos, Borges, esconde seu jogo. O outro, Geitlio, desacredita de qualquerpossibilidade, mas, por via das dvidas, encoraja as articulaes.

    No ficar triste se o poder cair-lhe no colo.O Rio Grande do Sul entrar na luta que por fim Repblica Velha no para liquidar a

    poltica do caf com leite, mas justamente se ela no for respeitada.No Palcio Piratini, naquele comeo de inverno, Vargas recebe o comunicado entusiasta de

    Neves dando conta do acordo com os mineiros. Inquieta-se. Teme uma precipitao. Percebea esperteza mineira. Querem usar o Rio Grande do Sul como desaforo contra So Paulo seAntnio Carlos for preterido em favor de Prestes.

    Reage com hostilidade. Joo Neves irrita-se: Teu telegrama recebido s vinte e uma horas.Itaimb j partira de Santos. Estou profundamente impressionado com tua vacilao. Recusasreceber o documento que concretiza uma situao que tu mesmo havias idealmente admitidona resposta transmitida por Daudt ao Afrnio. Campos continua aqui, esperando. Parece, pois,conveniente Daudt regresse do porto Rio Grande, autorizando-me tu a desfazer o acordo.Lamento riscos, sacrifcios inteis, apenas no interesse do Rio Grande.

    A resposta de Geitlio eloquente: silncio.O emissrio Joo Daudt de Oliveira chega a Porto Alegre com o documento do acordo.

    Vargas interessa-se.Manda Osvaldo Aranha, seu secretrio do Interior, levar o papel em mos a Borges de

    Medeiros. Osvaldo um fenmeno de comunicao: envolvente, otimista, sedutor.

  • Volta de Irapuazinho com a autorizao do chefe.Escreve para Getlio de um jeito capaz de liquidar os temores do amigo: O pacto ajustado

    pelo lder de Minas e o nosso aceitvel em princpio, significando mesmo uma honra confiadapor Minas ao Rio Grande.

    Borges um velho cansado dos holofotes. Escreve para Getlio. Aceita o pacto. Mas noquer trair Washington Lus: prope que Minas Gerais, se o plano andar, submeta aopresidente a candidatura articulada em vista de uma Conveno Nacional. No momento devido,Joo Neves cuidar de implodir essa romntica sugesto.

    Faz Getlio feliz com uma observao tranquila: a candidatura no poder seno ser a sua,que a que melhor corresponde s simpatias e desejos da nao.

    Tudo parece convergir para Getlio: o teimoso Washington Lus no abre mo de Prestes.Antnio Carlos no pretende se deixar enganar. Borges no deseja o cargo. Joo Neves lutapelo posto como se fosse para ele mesmo. Cabe a Getlio falar o mnimo possvel e esperar.

    o que ele mais gosta de fazer.Finge-se de esfinge. Acaba por acreditar.Em 10 de maio de 1929, em carta protocolar ao presidente Washington Lus, ele havia

    falado demais: o Partido Republicano Rio-grandense no lhe faltar com o apoio no momentopreciso.

    Despiste? Traio? Artimanha?A imprensa governista o acusar de tudo isso.Joo Neves ter de defend-lo em discurso na Cmara dos Deputados: Como poderia um

    homem da notria inteligncia do Sr. Getlio Vargas escrever uma carta, que ocomprometesse no futuro, se estava tramando, por processos equvocos, o lanamento dasua candidatura?

    O argumento to pouco convincente, embora cinicamente perfeito, que arranca elogios deVargas e acalma os inimigos. Neves estava sendo encorajado por Getlio a negociar desde1928. Sabe, contudo, que preciso ser corts e enganar o Mando com sutileza.

    Falta pouco para tudo se concretizar.Em setembro, o presidente far a sua aposta.Mas Joo Neves adoece.O soldado da causa est sem foras.O corpo nem sempre obedece fibra do esprito.Flores da Cunha assume o comando provisrio das operaes. Leva uma nova carta de

    Getlio ao presidente: Os acontecimentos tomaram feio imprevista (...) Meu nome no serobstculo a que V. Ex. possa dar uma soluo pacfica ao problema da sucessopresidencial.

  • O intrpido Flores da Cunha transmite por intermdio de Joo Neves a resposta dopresidente: ele precisa refletir. Flores e Joo Neves tm seus desentendimentos do passado.Ao chegar ao Rio de Janeiro, informado da doena do outro, Flores exclama alegremente:

    Mas ainda no morreu!Joo o descrever assim, depois de tudo e de todas as lutas: Como Pinheiro Machado,

    sempre gostou da teatralidade: as chegadas e partidas espetaculares, o leno de seda brancano pescoo, as frases emotivas, os aplausos da multido. Um dos seus fracos era cultivar osuspense, deixando entrever aos interlocutores que sabia coisas importantes que toda genteignorava.

    Falta pouco tempo.Falta um vice-presidente para a chapa.Escolhe-se Joo Pessoa, presidente da Paraba, cujas qualidades de administrador

    chamam a ateno de todos. A Paraba j manifestara repdio candidatura de Prestes.Osvaldo Aranha luta em todas as frentes pela aliana entre Minas Gerais e o Rio Grande do

    Sul. Washington Lus vai lhe oferecer a vice-presidncia na chapa de Prestes.Em 2 de agosto, reunida nos sales luxuosos do Hotel Glria, onde Flores da Cunha exibe

    sua fanfarronice, a oposio adota o nome de Aliana Liberal.No dia 5, Neves discursa na Cmara de Deputados. Nas suas memrias, ele se resumir

    como um orador temvel.

    O Sr. Washington Lus e seus amigos alegavam possuir sobre ns uma superioridadeesmagadora, pois somavam os votos pela quantidade dos Governadores. Os eleitoreseram contados como os rebanhos, pelo nmero de seus proprietrios! S isto seriasuficiente para definir o carter primrio do regime, nos idos de 1929, ou a decadnciados costumes cvicos da poca. A maior concesso oficial consistia em no equiparar osGovernadores quanto potncia eleitoral. Havia os grandes e os pequenos, os donosde maior ou menor nmero de cabeas de votantes!

    O Brasil um imenso curral. Borges de Medeiros, Getlio Vargas, Flores da Cunha e JooNeves da Fontoura controlam parte importante do rebanho de eleitores do Rio Grande do Sul,sob a bandeira do PRR e das suas posses. Antnio Carlos, Jos Bonifcio, Francisco Campose Afrnio de Melo Franco dominam o curral de Minas Gerais, sombra do Partido RepublicanoMineiro. Joo Pessoa disputa na Paraba o controle da manada eleitoral com outros cls. Umcerto Jos Pereira dar trabalho.

    A guerra est declarada.

  • O governo perdeu virtualmente a partida naquela tarde de 5 de agosto [lembrarJoo Neves]. Da em diante a teimosia presidencial, os erros que ia cometendo, oemprego macio de todos os recursos oficiais a favor da candidatura de Prestes, asistematizao da fraude e afinal o apelo ao terceiro escrutnio para dividir a bancada deMinas e guilhotinar a representao paraibana, tudo isso culminado pelo assalto autonomia do pequeno Estado nordestino cavou a runa da ordem constitucional,desmoronada a 24 de outubro de 1930, trs semanas aps a marcha revolucionria queempreendemos, partindo do Nordeste, de Minas e do Rio Grande.

    Pobre Joo Neves. Luta por uma reforma, ter de abraar um movimento armado. Serultrapassado por uma revoluo. A sua Aliana Liberal perder as eleies, ganhar a guerra.Ele far uma previso, em carta de 31 de maro de 1930 a Vargas, cujo sentido lhe escapar:

    Tenho para mim que este foi, no regime atual, o ltimo pleito ocorrido em nosso pas.Aps os desmandos do poder, verificados na luta recm-terminada, depois dodescalabro que a est, s um sonhador incorrigvel se meteria a disputar uma eleiopresidencial no Brasil; e s um apstolo, colocado na chefia do governo, se deixariavencer por um movimento de opinio. O Sr. Washington Lus, com sua condutaantirrepublicana, marca o fim de uma poca.

    A prxima eleio presidencial direta s ocorrer em 2 de dezembro de 1945, depois deuma revoluo (1930), de um governo provisrio (1930-1934), de uma contrarrevoluo(1932), de um governo constitucional (1934-1937), de uma intentona comunista afogada emsangue, at de antigos tenentes aliados (1935), de uma ditadura, o Estado Novo (1937-1945),de uma tentativa de golpe de Estado fascista (1938), de tribunais de exceo, de expurgos, deprises de oposicionistas, de amordaamento da imprensa, da participao brasileira numaguerra mundial, ao lado dos Estados Unidos e dos seus aliados, contra o nazifascismo deHitler e Mussolini, da reinveno do Brasil pela industrializao e pela adoo do voto paramulheres e de uma legislao trabalhista avanada capaz de tirar do esquecimento milhes deinfelizes. Getlio Vargas havia comeado uma nova poca da qual, por algum tempo, JooNeves estar excludo.

    Uma revoluo precisa limpar a merda do passado com o mau cheiro dos cadveresdeixados para trs.

    *

  • O exrcito precisa de voluntrios em 1927. Gabriel, no auge dos seus 15 anos e do alto dosseus 1,64m, cobre a cabea com um chapu de abas largas para parecer mais velho eapresenta-se no 7 B. C. Porto Alegre parece-lhe imensa e maravilhosa. Quer ficar. No tem acertido de nascimento para mostrar aos recrutadores. recusado por no conseguir provar aidade de 17 anos. Um sargento sai do seu silncio, diz-lhe para esperar e volta com o texto deuma lei que permite a dois oficiais atestarem a idade de um candidato sem certido. Sentapraa no exrcito. Vai limpar as escarradeiras como primeira misso.

  • 7Ele no vem, conclui Getlio.Pensa na estranha personalidade de Joo Neves. Sempre oscilando, imaginando-se o mais

    coerente dos mais homens, andando em curvas com a certeza de seguir sempre reto. Quantostelegramas ele lhe enviara entre 1930 e 1932 jurando seu desinteresse e o seu idealismo?

    Quanta insegurana!Parecia, s vezes, uma criana precisando de reforo, de um afago, de um elogio, de

    reconhecimento.J em 18 de outubro de 1930, em meio revoluo, Joo viera expor-lhe seus medos:

    temia um surto militarista. Queria mudar tudo sem mexer em nada.Getlio ouvira calado.Muitas vezes tivera de dizer-lhe algo apenas para acalm-lo. Era um eterno angustiado

    conservador.Parecia sempre disposto a uma renncia com tons de herosmo. Mas sempre voltava com o

    rabo entre as pernas.Em 1932, Neves pedir demisso do seu cargo no Banco do Brasil. Acompanhar os

    demissionrios, de outros postos mais importantes, Mauricio Cardoso, Lindolfo Collor e BatistaLuzardo. O problema ser o empastelamento, como se dizia ento, do jornal Dirio Carioca.Getlio anotar no seu dirio, em 26 de julho de 1932: Joo Neves, pelo rdio, em duasnoites sucessivas, farta-se em agredir-me pessoalmente.

    Em 5 de janeiro de 1933, outro registro: Procurou-me o general Gis Monteiro paramostrar a cpia de uma carta assinada pelos Srs. Neves, Pilla e Mlega, como representantesdas frentes nicas, convidando-o para tomar parte num movimento subversivo que tinha por fimderrubar o atual governo e as situaes estaduais, a fim de substitu-lo por um governocoletivo at a Constituinte. Gis repeliu o convite.

    Esse o homem.Procurar Gis Monteiro para um golpe. Gis, o chefe militar da revoluo de outubro de

    1930!Getlio sente-se s.Quando Alzirinha fora para os Estados Unidos, experimentara a sensao de falta de um

    pedao.

  • A filha uma referncia na sua vida.Tem ressaca de sono. V muita gente. Churrasqueia, despacha com ministros, l os jornais,

    vai ao cinema. Reflete sobre antigos amigos. No tem iluses. Os mais rancorosos o atacamna esperana de pescar uma pasta de ministro. o caso de Collor. No o tem por inimigo.

    Volta a 1929.Joo Neves um leo. Bate-se por ele.Mas s enxerga uma parte da realidade.No v os tenentes conspirando como sempre.Na clandestinidade.Conspiram na rua Pinheiro Guimares, 69, no Rio de Janeiro. Conspiram em Recife, em

    So Paulo, em Porto Alegre, nas fronteiras. Conspiram de sul a norte.Conspiram na Bolvia e na Argentina.Chamam-se Joo Alberto, Juarez Tvora, Siqueira Campos, Miguel Costa, Prestes, Estillac

    Leal, Juraci Magalhes...Washington Lus, como previsto, confirma sua opo por Jlio Prestes. A Aliana Liberal se

    lana.O Partido Democrtico de So Paulo, de vertente liberal e defensor de uma nova

    mentalidade poltica, realiza em janeiro de 1930 o seu sexto congresso. Desde agosto, dera asua adeso candidatura de Vargas. No v nela perigo para a ordem. Quer mudanas. Oprofessor Gama Cerqueira, que ser citado pelo historiador Hlio Silva, afirmar semsobressalto: Assim como realizamos, sem dilaceraes sociais, sem lutas fratricidas, semderramamento de sangue as mais importantes reformas sociais, como a abolio daescravatura e a proclamao do regime republicano, assim a evoluo para a verdadeiraimplantao da Repblica nos moldes liberais e democrticos da nossa Constituio estseguindo o mesmo caminho.

    Os professores nem sempre enxergam o que se passa nas ruas. Cerqueira no v ofuraco se aproximar.

    Nem sequer os mais prximos aliados de Getlio Vargas parecem conhec-lo realmente.Todos pensam, no fundo, conduzi-lo. Imaginam-se empurrando-o para um caminho sem

    grandes riscos.Joo Neves parece ser o menos clarividente.As atitudes de Vargas indicam um homem pacato, acomodado, sem vontade de ir luta.

    No quer viajar muito para fazer a sua campanha. Prefere ir, de navio, s capitais litorneas.Nada mais. Aposta no recrudescimento da crise do caf, ampliada pela quebra da bolsa deNova York, acontecida em outubro de 1929, como estimulante para o eleitorado insatisfeito.Mantm-se descrente:

  • Enfim, este captulo [diz Getlio sobre a campanha] no me muito agradvel, vistocomo no tenho inclinaes para Messias, nem para armar efeito em torno da minhapessoa, exibindo mercadorias democrticas (...) Vou anuindo a tudo para manter asaparncias, pois o balano das foras j me fez perder a f na vitria eleitoral.

    um sinal de desistncia ou um estmulo adoo de outros mtodos? As articulaesfervilham. As declaraes de guerra multiplicam-se. Joo Pessoa desferira o seu negoquando Washington Lus lhe pedira apoio. A Paraba est disposta a tombar na luta em casode derrota eleitoral. Qual a importncia militar da Paraba?

    pequena, claro. Mas o Rio Grande do Sul e Minas Gerais estaro com ela se a histriaassim o exigir.

    A imprensa mais importante O Globo, Dirio Carioca, O Estado de Minas, Correio daManh, Jornal do Comrcio, Dirio da Noite, Dirio de So Paulo, O Combate, A Batalha, AEsquerda acompanha a expedio do navio de campanha da Aliana Liberal, o Ornia, noqual vo oradores temveis, Joo Neves, Batista Luzardo, Joo Pessoa...

    Vive-se ainda a era do impresso.Mas preciso ganhar os votos no gog.Os oradores atacam incessantemente os desmandos do governo central, o empreguismo,

    o menosprezo pela Constituio, a prtica da fraude eleitoral...Em Recife, Joo Pessoa sobe o tom:No, meus concidados, revolucionrios no somos ns. Revolucionrios so os que

    esvaziam criminosamente os arcos do tesouro, os que diminuem a nao no conceito dosoutros, os que colocam a Repblica fora da Constituio e das leis.

    O discurso de Joo Pessoa claramente conservador. Ele o ser at o ltimo dia, numaconfeitaria, em Recife. Parece ignorar que a revoluo se prepara. Aceitar, se necessrio,um movimento armado, jamais uma revoluo social, que nem imagina ou acredita possvel. Arepresso chega antes. Nos comcios, as polcias descem o pau.

    Batem com gosto.Um artista, De Chocolat, espancado em Recife.Os correligionrios do presidente da Repblica seguem a mxima do chefe: na madeira.Outros praticam a mesma filosofia. O bando de Lampio incendeia os sertes. As vidas

    valem pouco ou nada. Como dir Flores da Cunha, a perdio vem do fato de existirem muitoscavalos lerdos e mulheres ligeiras. Mais ligeiros ainda so os disparos. Tiroteia-se porqualquer coisa. Mata-se e morre-se sem cerimnia.

    Observador atento e interessado, Joo Neves sempre se lembrar desses comciosembalados a discursos inflamados e a balas inesperadas. Ou nem tanto.

  • Batista Luzardo escapa por pouco de um tiroteio num comcio em Garanhuns. Falava sobum poste iluminado.

    Em Natal, antes que Luzardo termine a introduo da sua fala, comea a fuzilaria, quetermina com dois mortos e muitos feridos. Ningum poupado. Nem o irmo do presidente doestado. Um comcio um lugar perigoso.

    No Esprito Santo, onde o governador Aristeu Aguiar faz tudo o que o Barbado manda,depois de um primeiro comcio interrompido por uma confuso, a polcia de Mirabeau Pimenteld garantias para um segundo encontro pblico, que acontece em 13 de fevereiro.

    O terceiro orador ataca as fraudes. interrompido bala. O tiroteio dura nada mais do queduas horas e cinco minutos. Uma epopeia. Um divertimento. O resultado desolador: mais decem vtimas, entre mortos e feridos. O jornal liberal da cidade, A Gazeta, invadido na mesmanoite. Fazer poltica exige coragem e sete vidas.

    Geraldo Viana, citado por Aurino Moraes, descreve a chacina de Vitria com as coresfortes de um romance:

    Correria, gritos, lamentaes tudo ao mesmo tempo que a fuzilaria cerrada dava aimpresso de uma batalha entre foras inimigas. No havia, entretanto, inimigos em luta;havia de um lado, ou melhor, por todos os lados, a fora pblica bem armada, bemmuniciada, em louca fuzilaria contra o povo indefeso, desarmado, colhido de surpresa napraa pblica. Duas horas e cinco minutos durou o tiroteio contra a massa popular econtra as casas que circundam a praa. Pessoas do povo, um oficial da polcia, um filhode outro oficial, ao todo mais de cem vtimas entre mortos e feridos foram encontradas.Todas as balas, como se verificou, eram de armas da polcia. A balaustrada daescadaria, em que se encontravam os caravaneiros e centenas de pessoas, foidespedaada pelas balas que para ali convergiam (...) Um dos primeiros disparos atingiuum homem que se encontrava na sacada do andar superior do Colgio [Internato MariaAuxiliadora], cuja morte fora instantnea, pois teve o crnio despedaado por uma bala.O que foi a cena de sangue daquela noite trgica de 13 de fevereiro de 1929, dizem-noem detalhes os jornais do Rio de Janeiro e o manifesto distribudo em avulsos, emVitria, assinado por mim e pelos seguintes companheiros de caravana...

    Muitos jornais apoiaro a Aliana Liberal: Correio da Manh, O Globo, O Estado de S.Paulo, Dirios Associados, A Manh, A Batalha, Correio do Povo, Dirio Mineiro, DirioCarioca, A Unio, A Gazeta, A Ptria, Dirio Nacional...

    Vitria ser apenas o comeo.O pior ainda acontecer.

  • Os nimos no param de se acirrar.Um trem partir, em 6 de fevereiro, da Central do Brasil com uma comitiva da Concentrao

    Conservadora, pilar do situacionismo. Entre os viajantes est o vice-presidente da Repblica,Fernando Melo Viana, mineiro, que, no tendo conseguido ser candidato ao governo de MinasGerais, virara a casaca e passara a apoiar Prestes.

    Chegam a Montes Claros s 23h25.Um boletim distribudo na cidade pela Aliana Liberal pede cautela e respeito ordem:

    Recomendamos a todos os nossos correligionrios a mxima tolerncia para com osadversrios, evitando quaisquer discusses ou atritos e mesmo coparticipaes emreunies, mas tratando-os sempre com a devida cortesia.

    A comitiva, sob intenso foguetrio comemorativo, segue pelas ruas, serpenteia, avana, fazbarulho, muda inesperadamente de trajeto, passa pela frente da casa de Joo Alves, chefelocal aliancista. Jovens se divertem num baile. O momento de tenso. Tudo pode acontecer.

    Morra a Aliana Liberal! grita algum. Morra! repetem outros.Um menino chamado Austlio retruca: Viva!Um foguete dos festeiros cai porta da casa.Joo Alves recua ensanguentado.O pnico toma conta do lugar. Pipocam as balas.A revoluo ter o seu mrtir mais jovem.Morre Fifi, o menino Austlio Benjarane Tecles, cuja inocncia no suportar um batismo de

    fogo. A revoluo francesa de 1789 teve Joseph Bara, o menino mrtir.O Brasil de 1930 tem Fifi.Morrem tambm Jos Antnio da Conceio, Joo Soares da Silva, o Joo Gordo, e Rafael

    Fleury da Rocha, secretrio particular do vice-presidente da Repblica, Melo Viana, que,preocupado em fugir a mil por hora, s perceber a perda do auxiliar horas depois, longe dali.Morrem em Belo Horizonte, para onde foram removidos, Iracy de Oliveira Novais e MoacyrDolabella Portela.

    Seis mortos e 15 feridos, entre os quais, em princpio, o prprio Melo Viana, atingido trsvezes.

    O presidente Washington Lus, comovido e revoltado, rotular o episdio de tocaia dosbugres. Ele voltar imediatamente do seu descanso em Petrpolis. Trar pronto o decreto deinterveno em Minas Gerais.

  • Atribui-se prontamente Dona Tiburtina, mulher brava de Joo Alves, pintada como megerasoltando fogo pelas ventas, uma espcie de mula com cabea e olhar de bruxa famigerada,um papel decisivo no ocorrido.

    No jornal O Malho, que no perdoa ningum e sabe acirrar os nimos, ela aparecercaricaturada de escopeta na mo junto a um embornal com farinha e rapadura.

    o momento decisivo. Washington Lus salta sobre a oportunidade. Tenta usar o caso deMontes Claros como um exemplo do comportamento dos homens da Aliana Liberal.

    Joo Neves sintetizar:

    O Sr. Washington Lus fez todo o possvel para emprestar quele sangrento episdioo aspecto de uma crise geral de ordem interna e de ausncia de garantias para osadversrios do governo local. Seu objetivo era transparente: a interveno federal noEstado de Minas Gerais para vingar-se da atitude do PRM, opondo-se candidaturaoficial, para abater a ousadia do presidente Antnio Carlos, para sufocar a AlianaLiberal. No o conseguiu. Constitucionalmente, no ocorrera qualquer dos fundamentosque ento poderiam legitimar a grave medida.

    Aurino de Moraes, em Minas na Aliana Liberal e na revoluo, dar outra verso dosfatos. Em primeiro lugar, os adeptos da candidatura Prestes concentraro jagunos daGranjas Reunidas, propriedade agrcola dos irmos Dolabella Portela, em Montes Claros,para provocar os nimos. Depois do conflito, Carvalho Brito, preposto de Washington Lus emMinas e integrante da comitiva, mandar um telegrama ao ministro da Justia manipulando osacontecimentos e inventando os ferimentos de Viana:

    Urgente Dr. Viana de Castelo Rio De Montes Claros Chegada especialnesta cidade fomos agredidos a tiros, achando-se ferido Melo Viana. Devido faltagarantias partiremos dentro uma hora, telegrafando prxima estao. H mortos eferidos.

    Em seguida, Carvalho Brito ordenar o bloqueio dos telgrafos, impedindo qualquer outrocomunicado ou informao. Ao diretor dos Telgrafos, Mrio Belo, que lhe pergunta se podedar sada a todos os despachos, Brito responder que para manter instrues que demosao encarregado telgrafos em Montes Claros.

    Ao presidente da Repblica, Carvalho Brito enviar telegrama, assinado por ele e por MeloViana, descrevendo o episdio com fartura de detalhes controvertidos:

  • Depois de chegarmos a esta cidade, onde tivemos grande recepo, falando MeloViana discurso sereno e calmo, respondendo saudao desapaixonada, encaminhamosmeio grande massa popular casa destinada hospedagem Melo Viana. Ao defrontarresidncia chefe aliancista, Dr. Joo Alves, irmo deputado Honorato Alves, fomosalvejados descargas tiros revlveres e carabinas pelas costas, sendo ferido Melo Vianano pescoo parte posterior por trs projteis felizmente sem gravidade e j medicado.Dois dos nossos companheiros de comitiva gravemente feridos. Determinamos nossoregresso imediato para socorr-los devidamente. Nossos companheiros reagiram agresso, tendo fugido pessoas que da dita casa os alvejaram. H mortos e vriosferidos, cujos nomes no podemos ainda remeter.

    A descrio do jornalista Aurino de Moraes, simpatizante da Aliana Liberal, ser bemoutra:

    A rua Dr. Joo Pimenta, indo da estao, sai na praa Dr. Joo Alves, onde est aresidncia do poltico que lhe d o nome. A, ao som de uma vitrola, se realiza, com apresena de rapazes e moas da sociedade local, um baile. Casa com portas e janelasabertas, profusamente iluminada. Com surpresa para os que se divertiam, irrompe ocortejo naquela praa, que no era, nem prtica nem naturalmente, o caminho indicadopara o desfile da caravana depois que deixasse a estao. Da massa concentristaalguns exaltados gritam, em seguida a vivas aos seus chefes, morras Aliana Liberal eseus dirigentes. O Dr. Joo Alves, de p, na porta de sua residncia, assistia passagem dos manifestantes. Os seus amigos aproximaram-se, por sua vez, dasjanelas por detrs das quais observavam o cortejo. Eis quando uma das bombaslanadas pelo fogueteiro da festa cai na porta do chefe aliancista, provocando a quedado menino Austlio e a entrada sbita do Dr. Joo Alves, meio sufocado pelos gasesresultantes da exploso e deitando sangue pela boca. Estes fatos, verificados pelos quese encontravam dentro da casa, deram a impresso fulminante de que aquela residnciaestava sendo atacada, donde resultou uma reao imediata. Deflagra um tiroteio rpidoe violento. Tudo ocorreu em menos de trs minutos.

    Toda guerra uma guerra de verses.A imprensa chapa branca deita e rola. O Barbado encontra, enfim, razes para mandar

    mais tropas a Minas. Parte do 10 R.I. vai de Juiz de Fora para Montes Claros.Aurino Moraes dir que Carvalho Brito fugiu de medo, no tendo voltado para medicar os

    feridos, entre os quais o secretrio particular do vice-presidente da Repblica. Melo Viana

  • enviar telegrama ao juiz de direito de Corinto, estao prxima de Montes Claros, pedindonotcias de Fleury. Na fuga, no se olha para trs.

    O inqurito concluir pela inexistncia de premeditao de qualquer parte ou de participaodo governo mineiro no incidente. O estrago est feito.

    Nesse mesmo dia 6 de fevereiro, em Porto Alegre, Getlio Vargas rene-se com GisMonteiro, Osvaldo Aranha e o tenente Joo Alberto. No se improvisa uma revoluo.

    Os bons conselhos dos seus colaboradores e o inqurito realizado com eficcia impedemWashington Lus de realizar a interveno. Minas Gerais escapa da punio. a segunda dastrs derrotas do presidente da Repblica: a primeira fora no ter conseguido evitar a chapa deoposio, encabeada por seu ex-ministro da Fazenda, um homenzinho desconhecido que elehavia tirado praticamente do nada e transformado num lder nacional.

    Est sendo manipulado pelo Antnio Carlos diz Washington Lus num momento deindignao.

    Getlio? Quem mais seria, Jlio? Joo Neves. Esse outro que come na mo dos mineiros. um oportunista. O Antnio Carlos uma cobra, Jlio, uma vbora. Faz tempo que ele vem estimulando

    com sucesso o apetite de poder do pessoal do Rio Grande do Sul. Nunca pensei que Getliose deixaria levar assim. Ainda estou pasmo.

    Vargas se deixa influenciar por Neves e por Aranha. So todos iguais. Quem poderia imaginar que Borges de Medeiros fosse caucionar essa

    aventura pattica? Todos se uniram para dar o grande golpe. Pode ser. Em todo caso, s de um eu no esperava traio: de Getlio Vargas. Eu o

    ajudei como poucos. Dei-lhe a oportunidade mais importante da sua vida.Jlio Prestes sorri. Por um instante imagina que o presidente esteja falando da insistncia

    na sua candidatura, contrariando o acordo com Minas Gerais. Quem manipula quem nessa histria? Ora, Jlio, isso est muito claro. No tenho certeza. Os mineiros pensam que esto manipulando Vargas e os seus

    amigos do Rio Grande. E se for o contrrio? E se Minas estiver sendo usada? No seja ingnuo, Jlio. Getlio um aprendiz perto de Antnio Carlos. Como mesmo o

    apelido que lhe do? A Antnio Carlos?

  • Claro, a Antnio Carlos. Enguia? Ento? , pode ser... A culpa do Antnio Carlos e do Joo Neves da Fontoura. Esse deputadinho vive

    botando lenha na fogueira. Faz o que bem entende do Getlio.

    A hora da eleio chega.Ao longo do ms de fevereiro, jornais governistas denunciam a existncia de conspiraes

    nos quartis.Osvaldo Aranha minimiza ou desmente.Getlio Vargas retira-se para a sua cidade natal, a distante So Borja, disposto a esperar o

    resultado eleitoral no seu hbitat, a campanha gacha. um homem estranho, ensimesmado, complexo. Ouve mais do que fala, mas quando fala

    sabe comunicar. Na Esplanada do Castelo, no Rio de Janeiro, havia entusiasmado cem milpessoas com a plataforma da Aliana Liberal: anistia e liberdade de pensamento e deimprensa; legislao eleitoral, voto secreto, leis trabalhistas e sociais; criao do Ministrio daEducao e Sade Pblica, industrializao do pas, proteo aos produtos e interessesnacionais, valorizao de outras culturas alm do caf. Recebera felicitaes do mineiroAfonso Pena Jnior, implicado na Aliana, pela eloquncia, assim como de Epitcio Pessoa, tiode Joo Pessoa, o Borges de Medeiros da Paraba, uma raposa de algum fino trato.

    Jamais um comcio reunira tanta gente antes.Nunca os trabalhadores haviam escutado tantas promessas relacionadas com os seus

    interesses.Aquele programa j uma revoluo.Em 14 de maio de 1932, no entanto, em manifesto, Getlio Vargas, na condio de chefe

    do governo provisrio, sofrendo forte oposio e acossado pelo fogo amigo de gente comoseu antigo escudeiro Joo Neves da Fontoura, dir com todas as letras: O programa daAliana Liberal continha muita coisa aproveitvel, mas, somente ele, no bastava parasatisfazer as necessidades e as conquistas da revoluo.

    Se a Aliana Liberal promete salrio mnimo, frias pagas e desenvolvimento da indstriasiderrgica, Jlio Prestes faz juras de amor aos fazendeiros e ao mundo rural. A fazenda descrita como o lar brasileiro.

    No vaivm das negociaes, Geitlio tentar prever todas as possibilidades. O Rio Grandedo Sul tem fama de fazer oposio. Em 1922, apoiara a Reao Republicana, apostando emNilo Peanha contra Artur Bernardes.

  • Vargas temer, em algum momento, a derrota e as represlias dos vitoriosos. Tramar, porintermdio de Firmino Paim, um acordo ardiloso com Washington Lus. A ideia era que selanasse um terceiro candidato.

    Um nome de consenso.O plano fracassa. Paim, ainda assim, consegue um pacto de no agresso com o governo

    federal, pelo qual Vargas se compromete a no fazer campanha fora do