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O Cortesão: Terceiro Livro [L] Lê-se que Pitágoras, com extrema sutileza e grande arte, encontrou a medida do corpo de Hércules deste modo: saben- do-se que o espaço onde a cada cinco anos se celebravam os jogos olímpicos em Acaia, perto de Elida, diante do templo de Júpiter Olímpico, fora medido por Hércules e que nele fora construído um estádio de seiscentos e vinte e cinco pés, dos seus; e que os demais estádios, que por toda a Grécia foram edificados pelos descendentes, mediam seiscentos e vinte e cinco pés, mas eram menores do que aquele, Pitágoras facil- mente soube por aquela proporção que o pé de Hércules tinha sido maior que os demais pés humanos. Assim, conheci- da a medida do pé, a partir desta deduziu que todo o corpo de Hércules havia sido proporcionalmente de grandeza supe- rior aos dos outros homens, como aquele estádio em relação aos outros. Destarte, meu dom Alfonso, pela mesma razão, dessa pequena parte do corpo podeis claramente saber quan- to a corte de Urbino era superior a todas as demais da Itália, considerando quanto os jogos, os quais foram inventados para recrear os espíritos fatigados pelas tarefas mais árduas, eram igualmente superiores aos que se encontram nas outras cortes italianas. E, se esses eram assim, imaginai como seriam as demais operações virtuosas, para as quais os espíritos se acha- vam voltados e dedicados por inteiro; e disso atrevo-me a falar confiantemente, na esperança de que acreditem em mim, não 187

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o cortesao

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  • O Corteso: Terceiro Livro

    [L] L-se que Pitgoras, com extrema sutileza e grande arte, encontrou a medida do corpo de Hrcules deste modo: saben-do-se que o espao onde a cada cinco anos se celebravam os jogos olmpicos em Acaia, perto de Elida, diante do templo de Jpiter Olmpico, fora medido por Hrcules e que nele fora construdo um estdio de seiscentos e vinte e cinco ps, dos seus; e que os demais estdios, que por toda a Grcia foram edificados pelos descendentes, mediam seiscentos e vinte e cinco ps, mas eram menores do que aquele, Pitgoras facil-mente soube por aquela proporo que o p de Hrcules tinha sido maior que os demais ps humanos. Assim, conheci-da a medida do p, a partir desta deduziu que todo o corpo de Hrcules havia sido proporcionalmente de grandeza supe-rior aos dos outros homens, como aquele estdio em relao aos outros. Destarte, meu dom Alfonso, pela mesma razo, dessa pequena parte do corpo podeis claramente saber quan-to a corte de Urbino era superior a todas as demais da Itlia, considerando quanto os jogos, os quais foram inventados para recrear os espritos fatigados pelas tarefas mais rduas, eram igualmente superiores aos que se encontram nas outras cortes italianas. E, se esses eram assim, imaginai como seriam as demais operaes virtuosas, para as quais os espritos se acha-vam voltados e dedicados por inteiro; e disso atrevo-me a falar confiantemente, na esperana de que acreditem em mim, no

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  • elogiando coisas to antigas que me permitam fingir e poden-do comprovar o que digo com o testemunho de muitos ho-mens dignos de f que ainda vivem e, pessoalmente, viram e conheceram a vida e os costumes que naquela casa48 floresce-ram um dia; e me considero obrigado, at onde puder, a esfor-ar-me atravs de estudos a salvar do mortal oblvio essa clara memria e, escrevendo-a, faz-la viver no esprito dos que vie-rem depois. E da talvez no falte no futuro quem por isso sinta inveja de nosso sculo; pois no existe ningum que leia as coisas maravilhosas dos antigos sem criar em seu esprito uma opinio mais favorvel a respeito daqueles sobre os quais se escreve e que esses livros parecem no poder exprimir, embo-ra divinamente escritos. Assim desejamos que todos aqueles, a cujas mos chegar este nosso trabalho, se que algum dia ser digno de tanto favor que por nobres cavaleiros e valoro-sas damas merea ser lido, presumam e tenham como evidn-cia que a corte de Urbino foi muito mais esplendorosa e orna-da de homens singulares do que somos capazes de exprimir ao escrever; e, se em ns houvesse tanta eloquncia quanto valor, no teramos necessidade de outro testemunho para que s nossas palavras fossa dada plena f por quem no a conheceu.

    [II.] Destarte, tendo o grupo se reunido no dia seguinte no lugar habitual e se acomodado em silncio, cada u m dirigiu os olhos para dom Federico e para o magnfico Iuliano, aguar-dando qual deles daria incio discusso. E assim, a senhora duquesa, aps ter ficado u m tanto calada: Senhor Magnfico, - disse - cada u m deseja ver esta vossa dama bem ajaezada; e, se no a mostrardes de tal modo que se vejam todas as suas belezas, concluiremos que estais enciumado. - Respondeu o Magnfico: - Senhora, caso a considere bela, hei de mostr-la sem outros ornamentos e daquele modo que Paris quis ver as trs deusas; mas, se estas mulheres no me ajudarem a adorn-la, como tambm sabem faz-lo, receio que no s o senhor Gasparo e Frigio, mas todos estes outros senhores tero justa

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    causa para falar mal dela. Por isso, enquanto ela continua a manter alguma reputao de beleza, talvez seja melhor mant-la oculta e ver o que resta a dom Federico para dizer sobre o corteso, pois sem dvida muito mais belo do que possa ser a minha dama. O que eu pretendia dizer respondeu dom Federico - no to pertinente ao corteso que no se possa deixar de lado sem prejuzo; ao contrrio, quase um tema diferente daquele que at aqui se tratou. - E o que seria? - per-guntou a senhora duquesa. Respondeu dom Federico: - Havia decidido, no que me era possvel, ilustrar as origens dessas companhias e ordens de cavaleiros criadas por grandes prnci-pes sob diversas insgnias: como a de So Miguel na casa de Frana; a da Jarreteira, que se acha sob o nome de So Jorge, na casa da Inglaterra; o Toso de Ouro, na da Borgonha; de que modo so concedidas tais dignidades e como delas so privados aqueles que o merecem; onde nasceram, quem fo-ram seus autores e com que finalidades as instituram, porque mesmo nas grandes cortes esses cavaleiros so sempre vene-rados. Pensava, ainda, se o tempo me bastasse, alm da diver-sidade de costumes que existem nas cortes dos prncipes cris-tos, para servi-los, festejar e aprsentar-se nos espetculos pblicos, falar igualmente alguma coisa sobre a do Gro-Tur-co, e muito mais particularmente daquela de Sofi, rei da Pr-sia; pois, tendo eu escutado de mercadores que por muito tem-po estiveram naquele pas, que os homens nobres de l so muito valorosos e de hbitos gentis, que usam ao conversar um com o outro, ao servir s mulheres e em todas as suas aes muita cortesia e discrio e, quando necessrio, nas armas, nos jogos e nas festas exibem muita grandeza, generosidade e elegncia, procurei saber quais so nessas coisas os modos mais apreciados, em que consistem suas pompas e esmeros de roupas e armas; em que so diferentes e em que se parecem conosco; que tipos de entretenimento usam suas mulheres e com quanta modstia favorecem quem as serve por amor. Mas na verdade no a melhor hora para entrar nesta discusso,

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  • em especial havendo outras coisas para serem ditas, e muito mais conformes a nosso propsito do que isso.

    [III.] - Ao contrrio, - disse o senhor Gasparo - isso e muitas outras coisas vm mais a propsito do que representar esta dama palaciana; admitindo que as mesmas regras estabe-lecidas para o corteso servem tambm para a mulher, porque assim ela deve ter respeito pelos tempos e lugares e observar, pelo que implica sua fraqueza, todas aquelas outras maneiras sobre as quais tanto falamos, tal como o corteso. Portanto, em vez disso, talvez no fosse mau ensinar alguma particula-ridade daquelas que dizem respeito ao servio da pessoa do prncipe, que tambm conveniente que o corteso conhea e pratique com graa; ou falar com verdade sobre o modo de se comportar nos exerccios corporais, de cavalgar, manejar armas, lutar, e em que consiste a dificuldade de tais operaes. - Disse ento a senhora duquesa rindo: - Os senhores no uti -lizam os servios pessoais de um corteso to excelente como este; quanto ao exerccios corporais, fora e destreza pessoal, deixaremos que nosso dom Pietro Monte se encarregue de ensinar, quando lhe parecer mais conveniente; porque agora o Magnfico no falar de outra coisas alm dessa mulher, a qual me parece que j comeais a temer e por isso gostareis de mudar de tema. - Respondeu Frigio: Certamente uma impertinncia e est fora de propsito falar agora de mulheres, em especial porque resta tanto a dizer do corteso, sendo melhor no se misturar uma coisa com outra. - Enganai-vos completamente, - respondeu Cesar Gonzaga pois nenhuma corte, por maior que seja, pode ter ornamento ou esplendor por si mesma, nem alegria sem mulheres, nem corteso algum ser gracioso, agradvel ou corajoso, nem jamais praticar u m ato elegante de cavalaria, que no seja movido pela convivn-cia, pelo amor e pelo prazer de mulheres; assim o discurso-sobre o corteso sempre imperfeitssimo se as mulheres, interpondo-se, no oferecem sua parte daquela graa com a

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    qual tornam perfeita e enriquecem a cortesania. Riu o senhor Ottaviano e disse: Eis um pouco daquele chamariz que faz enlouquecer os homens.

    [IV.] Ento o senhor Magnfico, voltando-se para a senhora duquesa: - Senhora, disse - dado que assim vos apraz, direi o que me vem mente, mas com imenso receio de no agra-dar; e certamente trabalho bem menor me daria representar uma dama que merecesse ser rainha do mundo do que uma perfeita cortes, pois desta no sei de quem seguir o exemplo; enquanto, para a rainha, no seria necessrio ir muito longe, e s me bastaria imaginar as divinas condies de uma senhora que conheo e, contemplando-a, dirigir todos os meus pensa-mentos para exprimir claramente com palavras aquilo que muitos vem com os olhos; e, se mais no pudesse, apenas dizendo seu nome, teria cumprido com a minha obrigao. -Disse ento a senhora duquesa: - No vos permitais sair dos limites, senhor Magnfico, mas sim executai a ordem dada, e modelai a dama palaciana, para que essa to nobre senhora disponha de quem possa dignamente servi-la. - Prosseguiu o Magnfico: Destarte, senhora, para que se veja que suas or-dens podem induzir-me a tentar fazer aquilo que ainda no sei, direi sobre essa dama excelente como gostaria que fosse; e quando a tiver representado minha maneira, no podendo depois ter outra, hei de torn-la minha guisa de Pigmaleo. E, como o senhor Gaspar disse que as mesmas regras estabe-lecidas para o corteso servem tambm para a dama, tenho opinio diferente; pois, embora algumas qualidades sejam comuns e, assim, necessrias tanto ao homem quanto mu-lher, existem afinal algumas outras que mais se ajustam mulher que ao homem, e algumas convenientes para o ho-mem, s quais ela deve se manter alheia. O mesmo digo quan-to aos exerccios corporais; mas sobretudo me parece que em suas atitudes, maneiras, palavras, gestos e procedimentos a mulher deve ser muito diferente do homem; dado que a ele

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  • convm demonstrar uma certa virilidade slida e determinada, mulher cai bem uma ternura suave e delicada, com modos, em cada movimento seu, de doura feminina, pois ao andar, estar de p e falar deve parecer mulher sem nenhuma semelhana com o homem. Acrescentando assim esta advertncia s regras que esses senhores ensinaram ao corteso, penso que de mui-tas dessas ela se deve valer e adornar-se de timas condies, como diz o senhor Gaspar; porque julgo que muitas virtudes de esprito so to necessrias mulher quanto ao homem; igualmente a nobreza, a recusa da afetao e o fato de possuir graa natural em todos os seus atos, ter bons costumes, ser engenhosa, prudente, no soberba, no invejosa, no maledi-cente, no ftil, no litigiosa, no inepta, saber ganhar e con-servar a graa de sua senhora e de todos os demais, fazer bem e graciosamente os exerccios que convm s mulheres. E tenho a convico de que nela a beleza mais necessria do que no corteso, pois na verdade muito falta mulher a quem falta beleza. Deve tambm ser mais circunspecta, ficar alerta para no dar oportunidade de que falem mal dela e agir de tal modo que no s no lhe atribuam culpas como tampouco suspeitas, pois a mulher no tem tantos meios para defender-se das falsas calnias quanto o homem. Mas como o conde Ludovico explicou muito detalhadamente e exigiu que sejam as armas o ofcio principal do corteso, parece-me ainda conve-niente dizer, em minha opinio, qual deve ser o de uma dama palaciana; coisa que, depois de concluda, penso que terei cumprido com a maior parte da minha incumbncia.

    [V.] Deixando portanto aquelas virtudes de esprito que partilha com o corteso, como a prudncia, a magnanimidade, a continncia e muitas outras, assim como aqueles atributos que convm a todas as mulheres, como ser boa e discreta, sa-ber administrar os bens do marido, a casa e os filhos quando casada, e todas aquelas qualidades que se exigem de uma boa me de famlia, digo que quela que vive numa corte me

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    parece convir acima de tudo uma certa afabilidade prazerosa, por meio da qual saiba gentilmente entreter qualquer tipo de homem com dilogos agradveis, decorosos e adequados ao momento, ao lugar e condio da pessoa com quem falar, acompanhando com costumes plcidos e modestos, e com aquela honestidade que sempre h de harmonizar todas as suas aes, uma inteligncia vivaz, em que se mostre alheia a qualquer grosseria; e tudo isso com tal bondade que se faa considerar tanto pudica, prudente e humana quanto agrad-vel, arguta e discreta; por isso, necessita manter uma certa mediania difcil e como que feita de coisas contrrias, e atingir determinados limites sem os superar. Logo, no deve essa mu-lher, por desejar ser considerada boa e honesta, ser esquiva e demonstrar que abomina a tal ponto as companhias e as con-versas u m pouco lascivas, que, em se apresentando estas, se afaste; facilmente se poderia pensar que ela fingia ser to aus-tera para ocultar a seu respeito aquilo que receava que outros pudessem vir a saber; e os costurnes assim to rudes so sem-pre odiosos. No deve tampouco, para mostrar ser livre e agra-dvel, dizer palavras grosseiras nem lanar mo de uma certa familiaridade excessiva e sem freio,' nem modos que faam crer de si aquilo que talvez no seja; porm, defrontando-se com tais discursos, deve escut-los com u m pouco de rubor e ver-gonha. Deve igualmente evitar u m erro, no qual v i cair muitas, que falar mal e ouvir de bom grado quem fala mal de outras mulheres; pois aquelas que, ouvindo contar coisas desonestas de outras mulheres, se perturbam e demonstram no acreditar nisso e julgar quase uma monstruosidade que uma mulher seja impudica, fazem crer que, parecendo-lhes to grave aquele defeito, no o cometem; mas aquelas que andam sempre in-vestigando os amores das outras e os relatam to minuciosa-mente e com tanta alegria, aparentam invej-las e desejar que todos o saibam, para que o mesmo no lhes seja atribudo por engano; e assim se pem a rir, com certos modos que indicam sentirem imenso prazer. Da resulta que os homens, embora

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  • paream escut-las de boa vontade, na maioria das vezes pos-suem ms opinies sobre elas, consideram-nas realmente pouco, e lhes parece que com tais modos, so por elas convidados a ir mais longe, e, frequentemente, acabam caindo em excessos que lhes do merecida m reputao; e afinal desconsideram-nas tanto que sequer conversam com elas, ao contrrio, acham-nas aborrecidas; por outro lado, no h homem to impuden-te e insolente que no reverencie aquelas que so considera-das boas e honestas; porque aquela gravidade temperada de saber e bondade quase u m escudo contra a insolncia e a bestialidade dos presunosos; donde se deduz que uma pala-vra, u m sorriso, um ato de benevolncia, por mnimo que seja, de uma mulher honesta, mais apreciado do que todas as demonstraes e carcias daquelas que sem reserva mostram pouca vergonha; e, mesmo que no sejam impudicas, com o riso desenfreado, com a loquacidade, a insolncia e tais costu-mes ordinrios aparentam s-lo.

    [VI.] E como as palavras, sob as quais no existe sujeito com alguma importncia, so vs e pueris, necessrio que a dama palaciana, alm da capacidade de reconhecer a qualida-de daquele com quem fala, para entret-lo gentilmente esteja informada de muitas coisas; e saiba, ao falar, escolher coisas adequadas condio daquele com quem fala e seja cautelo-sa em no dizer s vezes, involuntariamente, palavras que o ofendam. Esteja atenta, para no aborrec-lo, louvando a si mesma com pouca discrio ou sendo muito prolixa. Evite misturar nas conversas agradveis e leves, coisas graves, como tampouco nas conversas graves, faccias e burlas. No de-monstre de modo inepto saber aquilo que no sabe, mas com modstia trate de ser honrada por aquilo que sabe, evitando, como foi dito, a afetao em todas as coisas. Destarte, ser ela ornada de bons costumes; e os exerccios corporais conve-nientes para uma mulher sero executados com suprema gra-a, seus discursos sero prolficos e cheios de prudncia, hones-

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    tidade e afabilidade, sendo ela no s amada como tambm reverenciada por todo mundo e talvez digna de ser igualada a esse grande corteso, tanto pelas condies do esprito quan-to pelas do corpo.

    [VIL] Tendo falado at aqui, calou-se o Magnfico, como se houvesse encerrado sua interveno. Disse ento o senhor Gasparo: - Senhor Magnfico, haveis de fato adornado muito essa mulher e dotado-a de excelente condio, todavia, pare-ce-me que vos ativestes muito ao geral, atribustes a ela algumas coisas to grandes que acredito vos sintais envergonhado de esclarec-las; e muito mais as desejastes semelhana daque-les que por vezes anseiam coisas impossveis e sobrenaturais, do que explicastes. Por isso, gostaria que nos esclarecsseis um pouco melhor quais so os exerccios corporais convenien-tes a uma dama palaciana, de que modo ela deva entreter as pessoas e quais so essas inmeras coisas que dizeis convenha a ela ter conhecimento; e, se a prudncia, a magnanimidade, a continncia e as muitas outras virtudes que haveis indicado, pensais que sirvam somente para ajud-la no governo da casa, dos filhos e da famlia (o que contudo no desejais que seja seu ofcio principal), ou na verdade para divertir os outros e fazer graciosamente tais exerccios do corpo; e por vossa f estejais atento para no inserir essas pobres virtudes em ofcio to vi l que elas devam dele se envergonhar. - Riu o Magnfico e disse: - No podeis fazer nada, senhor Gasparo, sem mos-trar mau nimo com as mulheres; mas na verdade, parecia-me ter dito bastante, principalmente a tais ouvintes; e no acredito que haja aqui algum que desconhea, quanto aos exerccios corporais, que no convm mulher terar armas, cavalgar, jogar pla, lutar e muitas outras coisas que convm aos homens. - Disse ento o nico Aretino: - Entre os antigos, era costume que as mulheres lutassem nuas com os homens; mas perdemos este bom hbito junto com muitos outros. -Agregou dom Cesare Gonzaga: - E no meu tempo conheci

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  • mulheres 4 9 que jogavam pla, manejavam armas, cavalgavam, caavam e faziam quase todos os exerccios de que um cava-leiro capaz.

    [VIII.] Respondeu o Magnfico: - Dado que posso repre-sentar essa mulher minha maneira, no s no quero que ela pratique esses exerccios viris to duros e pesados, como que-ro que os que so convenientes para uma mulher ela pratique com cuidado e com aquela suave delicadeza que indicamos ser-lhe mais adequada; por isso, ao danar no gostaria de v-la preferir movimentos demasiado galhardos e que exijam esfor-os, tampouco, ao cantar ou tocar, aqueles diminuendos fortes e repetidos que indicam mais tcnica do que doura; tambm os instrumentos musicais que ela usa, em minha opinio, devem adaptar-se a essa inteno. Imaginai que coisa terrvel seria ver uma mulher tocar tambores, pfaros, trombetas ou instrumentos similares; e isso porque a rudeza deles oculta e retira aquela sua-ve delicadeza to condizente com cada ato de uma mulher. Por isso, quando ela dana ou faz msica de qualquer tipo, deve ser induzida a isso deixando que insistam um pouco, e com uma certa timidez que demonstre aquela nobre vergonha que o con-trrio do despudor. Deve tambm adequar as roupas a tais pro-psitos e vestir-se de maneira que no parea ftil e leviana. Mas, como s mulheres lcito e imperioso preocupar-se mais que os homens com a beleza, e existindo diversos tipos de beleza, deve essa mulher ter senso para saber quais so as roupas que lhe acrescentam graa e mais se adequam aos exerccios que pretende fazer naquele momento, e us-las; e, conhecendo em si uma beleza amvel e alegre, deve ajud-la com os movimen-tos, com as palavras e as roupas, devendo tudo isso tender pa-ra o alegre; assim como uma outra, que sinta ter maneiras man-sas e graves, deve tambm acompanh-las de modos capazes de aumentar aquilo que dom da natureza. Assim, se for um pouco mais gorda ou magra do que o razovel, de pele clara ou morena, valer-se das roupas, porm do modo mais dissi-

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    mulado que seja possvel; e, mantendo-se delicada e elegante, demonstrar sempre que a isso no dedica estudo nem esforos.

    [IX.] E, como o senhor Gasparo tambm pergunta quais seriam as muitas coisas que ela deveria saber e de que modo distrair pessoas, e se as virtudes devem servir a esse entreteni-mento, desejo que tenha conhecimento daquilo que estes' senhores exigiram que saiba o corteso; e, daqueles exerccios que apontamos como inconvenientes para ela, pretendo que tenham pelo menos a ideia que podem ter das coisas aqueles que no as fazem; e isso para saber louvar e apreciar mais ou menos os cavaleiros, segundo seus mritos. E, para reiterar em parte e com poucas palavras o que j foi dito, desejo que essa mulher conhea um pouco de letras, de msica, de pintura e saiba danar e festejar; acompanhando tambm com discreta modstia e com a -boa opinio que oferecer de si mesma as outras sugestes que foram dadas ao corteso. E assim ser ao conversar, ao rir, ao jogar, ao gracejar, em suma, muito gracio-sa em tudo; e h de entreter apropriadamente, com motes e faccias convenientes para ela, tpdas as pessoas que se lhe apresentarem. E, embora a moderao, a magnanimidade, a temperana, a fora de nimo, a prudncia e outras virtudes paream no importar muito para entreter as pessoas, desejo que as tenha todas, no tanto para o entretenimento, embora tambm para isso possam servir, quanto para ser virtuosa e para que tais virtudes faam dela algum que merea ser hon-rada e que cada uma de suas aes seja baseada nelas.

    [X.] Admira-me - disse ento rindo o senhor Gaspar - que, atribuindo s mulheres as letras, a moderao, a magnanimi-dade e a temperana, no tenhais a pretenso de que elas tam-bm governem as cidades, faam as leis e conduzam os exer-ccios; e os homens fiquem na cozinha ou se ponham a tecer. - Respondeu o Magnfico, rindo igualmente: Quem sabe isso no seria mal! - Depois acrescentou: No sabeis que Plato,

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  • que na verdade no era muito amigo das mulheres, lhes con-cede a custdia da cidade e todos os outros ofcios marciais entrega aos homens? No acreditais que muitas h que sabe-riam muito bem governar as cidades e os ofcios porque estou representando uma dama palaciana, no uma rainha. Bem sei que gostareis de reiterar tacitamente aquela calnia, que on-tem o senhor Ottaviano dirigiu s mulheres: so elas animais imperfeitssimos, incapazes de qualquer ato virtuoso, com mui-to pouco valor e nenhuma dignidade em relao aos homens; mas, na verdade, ele e vs incorreis em grande erro, se que assim pensais.

    [XI.] Disse ento o senhor Gaspar: - No quero repetir as coisas j ditas, mas bem que gostareis de induzir-me a dizer algumas palavras que ofendessem estas senhoras, para fazer delas minhas inimigas, assim como vs, elogiando-as falsa-mente, pretendeis obter suas graas. Mas elas possuem to maior discernimento que as outras que preferem a verdade, mesmo quando no lhes favorvel, a ouvir falsos louvores; tampouco se ofendem se algum diz que os homens tm maior dignidade, e admitiro que dissestes enormidades e atri-bustes dama palaciana coisas to impossveis que chegam a ser ridculas e tantas virtudes que Scrates, Cato e todos os filsofos do mundo se reduzem a nada; pois, para dizer a ver-dade, surpreende-me que no tenhais sentido vergonha de ir to longe. Com efeito, teria sido suficiente fazer essa dama palaciana bonita, discreta, honesta, afvel e que soubesse en-treter as pessoas, sem ser difamada, com danas, msicas, jo-gos, risos, gracejos e as demais coisas que todos os dias pre-senciamos nas cortes; mas pretender que conhea todas as coisas do mundo e atribuir-lhe aquelas virtudes, que to raras vezes foram encontradas entre os homens nos sculos passa-dos, coisa que no se pode aceitar nem ouvir. Que as mulhe-res sejam agora animais imperfeitos e por conseguinte tenham menor dignidade que os homens e sejam incapazes das virtu-

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    des atribudas somente a eles, no quero afirmar, pois o valor dessas senhoras bastaria para desmentir-me; insisto em dizer que homens sapientssimos deixaram escrito que a natureza, porque sempre quer e se dispe a fazer as coisas mais perfei-tas, se pudesse, produziria continuamente homens; e, quando nasce uma mulher, trata-se de um defeito ou erro da natureza, contrrio quilo que ela gostaria de fazer; como sucede quan-do algum nasce coxo, cego ou com qualquer outra deficin-cia e nas rvores h muitos frutos que jamais amadurecem. Assim, a mulher pode ser considerada um animal produzido pela sorte e pelo acaso; e, para comprov-lo, observai as aes do homem e da mulher e da julgai sobre a perfeio de um e de outro. Contudo, sendo esses defeitos das mulheres culpa da natureza que assim as produziu, no devemos por isso odi-las, nem deixar de ter por elas o respeito que lhes convm; porm, estim-las mais do que de fato valem me parece um erro evidente.

    [XII.] Esperava o Magnfico Iuliano que o senhor Gasparo fosse alm; mas, ao ver que silenciava, disse: - Sobre a imper-feio das mulheres me parece que haveis apresentado uma prova dbil; qual, se bem que talvez no convenha agora entrar em tais sutilezas, respondo, segundo o parecer de quem sabe e conforme verdade, que a substncia em qualquer coisa no pode receber em si nem o mais nem o menos; pois, como nenhuma pedra pode ser mais perfeitamente pedra que uma outra quanto essncia da pedra, nem um pedao de madeira mais perfeitamente madeira que outro, assim um ho-mem no pode ser mais perfeitamente homem que outro e, consequentemente, no ser o macho mais perfeito que a f-mea quanto sua substncia formal, porque um e outro se acham abrangidos pela espcie humana, e aquilo em que um difere do outro so coisas acidentais e no essenciais. Portan-to, se me disserdes que o homem mais perfeito que a mu-lher, se no quanto essncia pelo menos quanto aos aciden-

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  • tes, respondo que tais acidentes devem consistir no corpo ou no esprito. Se no corpo, por ser o homem mais robusto, mais gil, mais leve ou mais tolerante s fadigas, digo que este um argumento de pouqussima perfeio, porque, entre os pr-prios homens, aqueles que tm essas qualidades mais que os outros, no so mais estimados por causa delas; e nas guerras, em que a maior parte das obras cansativa e exige fora, os mais galhardos no so, porm, os mais apreciados. Se no esprito, digo que todas as coisas que podem entender os homens podem igualmente ser entendidas pelas mulheres; e onde penetra o intelecto de um pode muito bem penetrar o da outra.

    [XIII.] Aqui, tendo o magnfico Iuliano feito uma pequena pausa, acrescentou sorrindo: - No sabeis que em filosofia exis-te este axioma: os que so delicados na carne, so geis na mente? Por isso no h dvida de que as mulheres, sendo mais delicadas na carne, so ainda mais aptas na mente e com inte-ligncia mais adequada s especulaes que os homens. De-pois continuou: - Mas, deixando isso, como haveis dito que argumentasse sobre a perfeio de um e de outro a partir das obras, digo que, se considerardes os efeitos da natureza, con-cluireis que ela produz as mulheres tais como so, no casual-mente, mas adequadas ao fim necessrio; pois, embora as modele com corpos no galhardos e com esprito plcido, e com muitas outras qualidades contrrias s dos homens, as condies de um e de outro tendem a um nico fim concer-nente mesma utilidade. Pois, se por causa daquela frgil expresso as mulheres so menos ousadas, pela mesma razo so tambm mais cautelosas; por isso as mes nutrem os filhos, os pais os educam e com a fora buscam fora aquilo que, com a diligncia, as mulheres conservam em casa, o que no menos digno de louvor. Se tomais em considerao as histrias antigas (embora os homens sempre tenham sido muito parcos no escrever elogios s mulheres) e as modernas,

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    haveis de verificar que continuamente a virtude esteve tanto entre as mulheres quanto entre os homens; e que tambm houve algumas que promoveram guerras e obtiveram glorio-sas vitrias, governaram reinos com suma prudncia e justia, e fizeram tudo aquilo que foi feito pelos homens. Quanto s cincias, no vos lembrais de ter lido sobre tantas que pratica-ram a filosofia? Outras que foram excelentes ha poesia? Outras que assumiram causas, acusaram e defenderam de modo muito eloquente perante juzes? Seria longo falar das obras manuais, mas nem preciso invoc-las. Assim, se na substn-cia essencial o homem no mais perfeito que a mulher, nem nos acidentes (e sobre isso, alm da razo, vejam-se os fatos), no sei em que consiste essa sua perfeio.

    [XIV.] E, como dissestes que a inteno da natureza pro-duzir sempre as coisas mais perfeitas e, por isso, se pudesse, ela sempre produziria homens, e que produzir a mulher antes um erro ou defeito da natureza do que uma inteno, respondo que isso no tem fundamento; e no sei como podeis dizer que a natureza no pretende produzir as mulhe-res, sem as quais a espcie humana no se pode conservar, o que, mais que tudo, essa mesma natureza deseja. Por isso, atravs da conjuno do macho e da fmea produzem-se os filhos, os quais retribuem os benefcios recebidos na infncia aos pais j velhos, porque os alimentam, depois os renovam ao gerar outros filhos, dos quais esperam receber na velhice aquilo que deram aos pais quando jovens; destarte a natureza, como se girasse em crculo, executa um movimento eterno e de tal maneira doa a imortalidade aos mortais. Portanto, sendo para isso to necessria a mulher quanto o homem, no vejo por que razo um seja mais fruto da casualidade que o outro. bem verdade que a natureza pretende sempre produzir as coisas mais perfeitas, por isso pretende produzir o homem co-mo espcie, sem privilegiar o macho contra a fmea; ao contr-rio, se produzisse sempre machos, faria uma imperfeio; por-

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  • que, como do corpo e do esprito resulta um composto mais nobre que suas partes, que o homem, assim da unio do ma-cho com a fmea resulta um composto que preserva a espcie humana, sem o qual as partes se destruiriam. Por isso, macho e fmea, por natureza, esto sempre juntos, no podendo existir um sem o outro; assim no se deve chamar macho aquele no tem a fmea, segundo a definio de um e outro; nem fmea aquela que no tem macho. E como um s sexo demonstra imperfeio, os antigos telogos atribuem um e outro a Deus; da Orfeu dizia que Jpiter era macho e -fmea, e se l na Sagrada Escritura que Deus criou os seres macho e fmea sua semelhana, e frequentemente os poetas, falando dos deuses, confundem os sexos.

    [XV.] Ento o senhor Gasparo: - No gostaria - disse - que entrssemos em tais sutilezas, pois estas mulheres no nos entendero; e, embora eu vos responda com timas razes, elas acreditaro, ou pelo menos demonstraro acreditar, que eu estou errado e logo daro a sentena a seu modo. Contudo, j que entramos nisso, acrescento apenas: como sabeis ser opinio de homens sapientssimos, o homem se assemelha forma e a mulher matria; por isso, como a forma mais per-feita que a matria, ou melhor, lhe d a existncia, assim o homem muito mais perfeito que a mulher. E lembro j ter ouvido que um grande filsofo, em certos Problemas seus diz: "De onde vem que naturalmente a mulher ama sempre aque-le homem que foi o primeiro a receber dela amorosos praze-res? E, ao contrrio, o homem odeia aquela mulher que foi a primeira a unir-se desse modo a ele?" E, acrescentando a cau-sa, afirma que acontece isso porque em tal ato a mulher rece-be do homem perfeio e o homem, imperfeio da mulher; por isso nenhum dos dois ama naturalmente a coisa que o faz perfeito e odeia a que o faz imperfeito. E, alm disso, grande argumento da perfeio do homem e da imperfeio da mu-lher que universalmente a mulher deseja ser homem por um certo instinto natural que a ensina a desejar sua perfeio.

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    [XVI.] Respondeu de imediato o magnfico luliano: - As mesquinhas no desejam ser homem para se tornarem mais perfeitas, mas para terem liberdade e fugirem daquele dom-nio que os homens usurparam delas por sua prpria autorida-de. E a similitude que atribus a matria e forma no se susten-ta em nada; porque a mulher no assim tornada perfeita pelo homem, como a matria pela forma; pois a matria rece-be o ser da forma e no pode ficar sem ela; ao contrrio, quan-to mais matria tm as formas, mais imperfeies tm e, sepa-radas dela, so perfeitssimas; mas a mulher no recebe o ser do homem, ao contrrio, como ela tornada perfeita por ele, ela tambm o faz perfeito; da, uma e outro juntos so capazes de gerar, coisa que nenhum deles pode fazer sozinho. Quanto causa do amor perptuo da mulher em relao ao primeiro com quem tenha estado e do dio do homem em relao primeira mulher, no o atribuirei ao fato a que o atribui vosso filsofo em seus Problemas, mas firmeza e estabilidade da mulher e instabilidade do homem; no sem razo natural porque, sendo o macho quente, naturalmente dessa qualidade deriva a leviandade, o movimento e a instabilidade; e, ao con-trrio, a mulher tira da frieza a calma e a gravidade firmes, e as mais profundas impresses.

    [XVII.] Ento a senhora Emilia, dirigindo-se ao senhor Magnfico: - Pelo amor de Deus, - disse - abandonai de uma vez estas vossas matrias e formas, machos e fmeas, e falai de modo que sejais entendido; porque ouvimos e compreen-demos muito bem o mal que o senhor Ottaviano e o senhor Gasparo disseram a nosso respeito; mas agora j no entende-mos de que modo nos defendeis. Portanto, parece-me que estais vos afastando do objetivo e deixando no esprito de cada um aquela m impresso que deram de ns esses inimi-gos. - No nos deis este nome, senhora, - replicou o senhor Gasparo - que melhor cabe ao senhor Magnfico, o qual, ao conceder falsos louvores s mulheres, demonstra que para

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    elas no os h verdadeiros. - Acrescentou o magnfico Iuliano: - No duvideis, senhora, de que tudo ser respondido; mas no quero dizer infmias aos homens sem razo, como fizeram estes s mulheres; e, se por sorte houvesse aqui algum que escrevesse nossos discursos50, no gostaria que no lugar em que se ouvisse falar de matrias e formas, se vissem sem res-posta os argumentos e as razes que o senhor Gasparo apre-senta contra vs. No sei, senhor Magnfico, disse ento o senhor Gasparo - como podeis negar que o homem, pelas qualidades naturais, no mais perfeito que a mulher, a qual fria por sua compleio e o homem quente; e muito mais nobre e mais perfeito o quente do que o frio, por ser ativo e produtivo; e, como sabeis, os cus aqui entre ns infundem somente o calor e no o frio, o qual no participa das obras da natureza; por isso, o fato de as mulheres serem frias por com-pleio creio que seja a causa da sua fraqueza e timidez.

    [XVIII.] - Tambm quereis, - respondeu o magnfico Iulia-no entrar nas sutilezas; mas vereis que as coisas ho de ficar sempre piores para vs; e que assim seja, escutai. Confesso-vos que a quentura em si mais perfeita que a frieza; mas isso no prevalece nas coisas mistas e compsitas, pois se assim fosse, o corpo mais quente seria mais perfeito; o que falso, porque os corpos temperados so perfeitssimos. Digo-vos ainda que a mulher de compleio fria se comparada ao homem, o qual, por excesso de calor acha-se distante da tem-perana; mas, em si mesma, ela temperada ou, pelo menos, . mais prxima do equilbrio do que o homem, pois tem nela aquele mido proporcionado ao calor natural que no homem, pelo excesso de secura, logo se esvai e consome. Possui tam-bm uma tal frieza que resiste e" conforta o calor natural e o faz mais prximo da temperana; e n homem, o calor suprfluo logo reduz o calor natural ao ltimo grau, o qual, faltando-lhe a nutrio, igualmente se esvai; por isso, porque os homens ao gerar se ressecam mais que as mulheres, frequentemente acon-

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    tece que so menos vivazes que elas; da, tal perfeio tam-bm se pode atribuir s mulheres, que, vivendo mais longa-mente que os homens, executam mais aquilo que inteno da natureza que os homens. Do calor que difundem bs cus acima de ns no se fala agora, porque comum quilo sobre o que discutimos; porque, sendo conservador de todas as coi-sas que se acham sob o globo da lua, tanto quente quanto frias, no pode ser contrrio ao frio. Mas a timidez nas mulheres, embora demonstre algumas imperfeies, todavia tem causas louvveis, que so a sutileza e a destreza dos espritos, os quais representam de imediato as imagens ao intelecto e por isso se perturbam facilmente com as coisas extrnsecas. Muitas vezes haveis de ver alguns que no tm medo da morte nem de nada, e nem assim podem se chamar de ousados, porque no conhecem o perigo, vo como insensatos onde vem o caminho e no pensam mais; isso provm de uma certa gros-seria de espritos obtusos; por isso no se pode dizer que um louco seja corajoso; mas a verdadeira magnanimidade advm de uma deliberao prpria; de uma vontade determinada de agir assim e de estimar mais a honra e o dever do que todos os perigou .do mundo; e, embora saiba que a morte inevit-vel, ser to firme de corao e esprito, que os sentimentos no fiquem impedidos nem se assustem, mas faam seu traba-lho quanto a discorrer e pensar, como se estivessem em re-pouso absoluto. Deste gnero vimos e ouvimos que foram mui-tos grandes homens; igualmente muitas mulheres, as quais, nos sculos passados e no presente, demonstraram grandeza de esprito e deram ao mundo exemplos dignos de infinitos louvores, tanto quanto fizeram os homens.

    [XIX.] Ento Frigio: - Aquelas aes exemplares - disse -comearam quando a primeira mulher, errando fez outrem errar contra Deus e como herana deixou espcie humana as angstias, as dores e todas as misrias e calamidades que hoje existem no mundo. - Respondeu o magnfico Iuliano: Dado

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