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Rudolf Steiner O Evangelho segundo Lucas Considerações esotéricas sobre suas relações com o budismo Dez conferências proferidas em Basiléia (Suiça) de 15 a 26 de setembro de 1909 Tradução: Edith Asbeck e Livia Landsberg

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Rudolf Steiner

O Evangelho segundo LucasConsiderações esotéricas

sobre suas relações com o budismo

Dez conferências proferidas em Basiléia (Suiça)de 15 a 26 de setembro de 1909

Tradução:Edith Asbeck e Livia Landsberg

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15 de setembro de 1909

A pesquisa na Crônica do Akasha

Ao reunir-nos aqui algum tempo atrás, tivemos oportunidade de falar sobre as correntes mais profundas do cristianismo, do ponto de vista do Evangelho de João.1 Naquela ocasião, surgiram diante de nossos olhos espirituais as imagens e idéias grandiosas com que o homem se depara ao aprofundar-se nesse docu-mento primordial da humanidade. Várias vezes, então, vimos a necessidade de salientar como as mais acentuadas profundezas do cristianismo vêm à superfície quando este é estudado por meio do referido documento. E no dia de hoje, sem dúvida alguma, um ou outro ouvinte daquela época, ou um ouvinte de outro ciclo do Evangelho de João2, poderá indagar a si mesmo: será possível que os pontos de vista declarados, de certa maneira, como sendo realmente os mais profundos, e que podemos obter através do Evangelho de João, poderiam ser ampliados ou aprofundados pela contemplação de outros documentos cristãos como, por exemplo, os três outros evangelhos — o de Lucas, o de Mateus e o de Marcos? E quem aprecia o comodismo teórico perguntará a si mesmo: será realmente necessário, depois de havermos conscientizado como as maiores profundezas da verdade cristã se nos deparam no Evangelho de João, falar ainda sobre a essência do cristianismo visto de um outro ponto, principalmente daquele — como facil-mente se poderia crer — menos profundo, o Evangelho de Lucas?

Quem formulasse semelhante pergunta acreditando ter dito algo de essencial, com relação a esse ponto de vista, se deixaria levar por um considerável equívoco. Não é apenas certo que o cristianismo como tal seja incomensurável em sua essência, podendo também ser focalizado dos mais diversos pontos de vista; cabe também afirmar — e este ciclo de conferências deverá prová-lo — que apesar de o Evangelho de João ser um documento profundíssimo, é possível, por meio do Evangelho de Lucas, aprenderem-se coisas que o Evangelho de João não ensina. O que, durante o ciclo do Evangelho de João, nos habituamos a designar como as profundas idéias do cristianismo não abrangem, porém, o cristianismo em toda a sua profundidade; possibilitam, isto sim, a penetração nessas profundezas desde um outro ponto de partida! Este outro ponto de partida será conquistado no atual trabalho, pois desta vez colocaremos o Evangelho de Lucas, do ponto de vista antroposófico e científico-espiritual, no centro de nossas considerações.

Para podermos compreender a afirmativa de que ainda é possível extrair algo do Evangelho de Lucas, apesar de os valores profundos do Evangelho de João já haverem sido exauridos totalmente, devemos nos basear no que se nos depara a cada frase do Evangelho de João: documentos primordiais, como o são os Evangelhos, apresentam-se ao observador antroposófico como documentos escritos por homens que visualizaram o cerne da vida e o cerne da existência,

1 Em oito conferências (16-25.11.1907) intituladas ‘O Evangelho segundo João’, em Menschheitsentwicklung und Christus-Erkenntnis, GA-Nr. 100 (2ª ed. Dornach: Rudolf Steiner Verlag, 1981). (N.E.)2 Rudolf Steiner proferiu vários ciclos de conferências sobre o Evangelho de João: em Berlim (três conferências, 1906), em Basiléia (oito conferências, 1907), em Hamburgo (doze conferências, 1908) e em Kassel (catorze conferências, 1909), este último editado em português sob o título O Evangelho segundo João: considerações esotéricas, trad. Jacira Cardoso (2ª- ed. São Paulo: Antroposófica, 1996). (N.E.)

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tendo, como iniciados e clarividentes, penetrado nos mistérios profundos do mundo. Falando de maneira generalizada, podemos definir as expressões ‘iniciado’ e ‘clarividente’ como palavras sinônimas. Porém, no decorrer de nosso trabalho antroposófico, se quisermos atingir as camadas mais profundas da vida espiritual, deveremos diferenciar ambos os termos como expressões de duas diferentes categorias de pessoas que encontram o caminho para alcançar o mundo metafísico da existência. De certo modo, há uma diferença entre um iniciado e um clarividente, embora absolutamente nada impeça o iniciado de ser também clarividente e este, até certo grau, um iniciado. Se os Senhores quiserem diferenciar exatamente essas duas categorias — o iniciado e o clarividente —, necessário será apenas lembrarem-se dos pormenores sobre o assunto em meu livro O conhecimento dos mundos superiores. Lembrem-se de que existem essencialmente três etapas que conduzem a transcender a visão comum do mundo.

O conhecimento que, por ora, é mais acessível ao homem poderá ser caracterizado pelo fato de o homem observar o mundo por meio de seus sentidos e, por meio do intelecto e de outras forças anímicas, apropriar-se do que observou. Além destas, existem três outras etapas do processo de conhecimento do mundo. A primeira é a chamada ‘cognição imaginativa’; a segunda é a ‘cog-nição inspirativa’ e a terceira é a ‘cognição intuitiva’ — se compreendermos a palavra ‘intuitiva’ em seu verdadeiro sentido científico-espiritual.

Ora, quem possui cognição imaginativa? Aquele cujos olhos espirituais vêem, expresso em imagens, o que se oculta por detrás do mundo sensório — um imenso cenário cósmico, em nada semelhante ao que, habitualmente, designamos por imagens. Além de não estarem sujeitas às leis do espaço tridimensional, essas representações imaginativas possuem também outras par-ticularidades que não podem ser facilmente comparadas às do mundo sensório comum.

Poderemos obter uma idéia do que é o mundo da imaginação pensando numa planta da qual tivéssemos a possibilidade de extrair tudo o que nossos olhos sensórios percebem como cor, de forma que essa cor pairasse completamente livre no espaço. Se, porém, nada fizéssemos além de extrair essa cor da planta e deixá-la pairar livremente à nossa frente no espaço, teríamos diante de nós apenas uma forma colorida inanimada. Para o clarividente, contudo, essa forma colorida não permanece em absoluto uma imagem morta: quando ele extrai das coisas o que nelas é a cor, essa configuração colorida principia a ser avivada espiritualmente mediante o preparo e os exercícios por ele realizados — do mesmo modo como, no mundo sensório, era avivada pela matéria vegetal; e o ser humano terá então diante de si não apenas uma forma cromática inanimada, porém uma luz colorida pairando livremente, cintilando, faiscando nas mais variadas formas, mas interiormente vivificada. Cada cor é a expressão da característica de uma entidade anímico-espiritual imperceptível no mundo dos sentidos. Isto significa que a cor na planta sensória se torna, para o iniciado, expressão de entidades anímico-espirituais.

Pensem agora num mundo repleto dessas expressões coloridas reverberando, cintilando das mais diversas formas, transformando-se continuamente, modificando-se. Não limitem, porém, o olhar à coloração como o fariam com uma pintura de reflexos coloridos e cintilantes; pensem que isto tudo são expressões de entidades anímico-espirituais e digam: “Se aqui reverbera um colorido verde, isto me revela que um ser inteligente está por detrás; ou se cintila

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uma imagem de cor vermelha-clara, compreendo que através desta cor se manifesta uma entidade passional.” Imaginem agora todo esse mar de cores entrelaçadas; ou imaginem, para citar outro exemplo, um mar de sensações auditivas, gustativas ou olfativas — pois todas estas são expressões de seres anímico-espirituais subjacentes —, e então terão o que chamamos de mundo imaginativo. Este não é algo que o uso habitual dessa expressão faz compreender como sendo mera fantasia, mas um mundo real. Trata-se de uma forma de compreensão diferente da sensorial.

Dentro desse mundo imaginativo, o homem se depara com tudo quanto está por detrás do mundo sensório e que não pode ser percebido com ‘sentidos sensoriais’ — se me permitem usar esta expressão —, como, por exemplo, o corpo etérico e o corpo astral do ser humano. Quem, como clarividente, conhece o mundo espiritual por meio dessa cognição imaginativa, conhece seres superiores em sua exterioridade tal como nós, no mundo sensório, conhecemos as pessoas exteriormente ao cruzar com elas na rua. Havendo a possibilidade de conversar com essas pessoas, passaremos a conhecê-las melhor. Por meio de suas palavras elas terão a possibilidade de expressar algo além daquilo que vemos ao cruzar com elas na rua. Para citar apenas um exemplo: por quantas pessoas passamos, sem perceber se nos recônditos de sua alma há dor ou alegria, se uma alma está impregnada de admiração ou aflição! Tudo isto poderá ser-nos revelado no diálogo com alguém. Ao contato visual, a pessoa se manifesta em sua exterioridade sem uma participação ativa; no diálogo, porém, ela fala por si mesma. O mesmo sucede com os entes do mundo superior.

Quem, como clarividente, passa a conhecer os seres do mundo espiritual pela cognição imaginativa, conhece apenas sua exterioridade anímico-espiritual. Elevando-se, porém, do conhecimento imaginativo ao conhecimento pela inspiração, ouve esses seres exprimindo-se. Então há um contato verdadeiro com essas entidades. Elas lhe manifestam por si mesmas o que são e quem são. Por este motivo, a inspiração é um grau cognitivo mais elevado do que a mera imaginação; e ascendendo ao grau da inspiração se experimenta muito mais acerca dos seres anímico-espirituais do que pelo conhecimento imaginativo.

Um grau ainda mais elevado do conhecimento é a intuição — na medida em que não se atribui a esta palavra o significado usual pelo qual se designa tudo quanto nos ocorre de obscuro, mas sim no sentido que lhe confere a Ciência Espiritual. Intuição é, pois, uma cognição pela qual não apenas se pode observar a manifestação espontânea das entidades, mas também nos tornamos unos com elas, aprofundando-nos em seu próprio âmago. Esse é um alto grau de conhecimento espiritual, pois exige que o homem realize em si mesmo aquele desabrochar do amor por todas as entidades — quando então desaparecem as diferenças entre ele e os demais seres que o circundam espiritualmente; quando ele, por assim dizer, derrama seu próprio ser na espiritualidade circundante, de modo que não mais haja uma separação entre ele e os seres espirituais com os quais está em contato: ele estará no âmago desses seres. E por ser isto possível apenas em relação a um mundo divino-espiritual, a expressão ‘intuição’, que significa ‘estar em Deus’, é plenamente justificada. E, portanto, em três estágios que inicialmente se nos afigura o mundo espiritual: a imaginação, a inspiração e a intuição.

Existe, naturalmente, a possibilidade de se alcançarem esses três graus do conhecimento superior. Contudo, pode suceder também, por exemplo, que numa encarnação só possa ser alcançado o grau da imaginação; ao respectivo

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clarividente permanecerão ocultos, então, os âmbitos do mundo espiritual que só podem ser alcançados pela inspiração e pela intuição. Então essa pessoa é um ‘clarividente’. Nos tempos atuais, muito dificilmente uma pessoa será conduzida aos mais altos graus de conhecimento do mundo superior sem antes ter passado pela imaginação. Desta maneira, torna-se quase impossível, nas circunstâncias atuais, alguém renunciar ao grau da imaginação e alcançar imediatamente o da inspiração ou da intuição. Houve, porém, tempos na evolução da humanidade em que essa alternativa, hoje totalmente incorreta, era possível e de fato ocorreu.

Existiram tempos, na evolução da humanidade, em que os diversos estágios da cognição dos mundos superiores eram, por assim dizer, distribuídos entre diversos indivíduos: imaginação de um lado, inspiração e intuição de outro. Assim, por exemplo, houve centros iniciáticos onde a capacidade dos iniciados para o desenvolvimento espiritual atingia somente o grau da imaginação, sendo-lhes acessível apenas o mundo simbólico das imagens. Pelo fato de esses possuidores de profunda clarividência renunciarem voluntariamente, pelo período de uma encarnação, ao alcance de graus superiores como os da inspiração e da intuição, é que eles se tornaram aptos a ver mais precisa e claramente no mundo da imaginação. Eles se haviam, por assim dizer, especialmente treinado para perceber esse mundo da imaginação.

No entanto, era-lhes necessário algo mais. Quem deseja apenas ver o mundo da imaginação, renunciando a conhecer o mundo da inspiração e o mundo da intuição, vive, de certo modo, num mundo de incerteza. Este mundo da flutuação imaginativa não é delimitado, e a alma flutua sem rumo nem meta de um lado para outro quando alguém se deixa ficar nele por si mesmo. Por isso, as pessoas pertencentes aos povos daquelas antigas épocas que almejavam alcançar graus superiores de cognição espiritual tinham, necessariamente, de entregar-se sem reservas a seus guias espirituais. Os homens clarividentes, imaginativos, eram conduzidos pelos guias que já possuíam a capacidade contemplativa da inspiração e da intuição. Ora, somente a inspiração e a intuição transmitem certeza com relação ao mundo espiritual, de forma que se pode saber precisamente: este é o caminho a ser seguido — lá está a meta. Na ausência da cognição inspirada, isto não pode ocorrer. Diante desta impossibilidade, é preciso apoiar-se num guia competente que o diga. Por isto ainda ocorre, em muitos lugares, afirmar-se que quem inicialmente ascende ao conhecimento imaginativo se ligou interiormente a um guru, um guia que lhe mostra a direção e a meta que ele não pode alcançar por si mesmo.

Por outro lado, houve ocasiões — hoje isto não ocorre mais — em que era válido omitir o conhecimento imaginativo, conduzindo-se de imediato outras pessoas à cognição inspirativa ou, quando possível, à intuitiva. Tais homens renunciavam a observar as visões imaginativas do mundo espiritual; entregavam-se apenas às manifestações do mundo espiritual, que aí são a expressão interior das entidades espirituais. Eles ouviam com ouvidos espirituais o que tais entidades diziam. É como se entre os Senhores e uma outra pessoa houvesse uma parede que os impedisse de vê-la, mas lhes permitisse ouvir o que a pessoa diz. É perfeitamente possível pessoas desistirem da visão dos mundos espirituais para, deste modo, serem encaminhadas mais rápido a ouvir espiritualmente as manifestações dos seres supra-sensíveis. Independentemente do fato de alguém ver ou não as imagens do mundo imaginativo, se esse alguém é capaz de captar, pela audição espiritual, as manifestações dos entes supra-sensíveis, dizemos então a seu respeito: ele tem o dom da ‘palavra interior’ — em contraposição à

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fala exterior que, no mundo físico, é usada na comunicação entre as pessoas. Desta maneira, portanto, podemos considerar o fato de existirem também pessoas que, sem penetrar no mundo da imaginação, possuem a ‘palavra interior’, percebendo as manifestações orais dos seres espirituais e tendo a possibilidade de revelá-las.

Houve determinada época da evolução humana em que, nos centros iniciáticos, estas duas modalidades de experiências espirituais dos iniciados atuaram conjuntamente. Como cada um deles renunciava às contemplações do outro, podiam-se aperfeiçoar as próprias aptidões, e por ser este o caso realizou-se, em certas épocas, um belíssimo, um maravilhoso trabalho conjunto no interior dos centros de mistérios. Havia, por assim dizer, clarividentes imaginativos que se haviam exercitado especialmente para ver o mundo das imagens. E havia outros que haviam deixado de lado o mundo da imaginação; haviam-se exercitado preponderantemente no sentido de receber em sua alma a ‘palavra interior’, que é experimentada por intermédio da inspiração. E desta maneira, um podia participar ao outro o que conhecera por intermédio de seu treinamento especial. O que possibilitava esta situação era o fato de naquela época existir confiança mútua, extinta hoje pela própria evolução dos tempos. Hoje não existe quem creia em outro a ponto de apenas ouvir sua descrição de imagens espi-rituais crendo ser ela verdadeira e acrescentando o que ele próprio sabe pela inspiração. Hoje, cada qual quer ver por si mesmo. Esta é a forma válida para a nossa época. Bem restrito é o número de pessoas que se dariam por satisfeitas desenvolvendo apenas a imaginação, prática usada em outros tempos. Daí ser também necessário, em nossa época, que o homem atual pouco a pouco seja guiado através dos três estágios do conhecimento superior, sem se omitir qualquer deles.

Em cada um dos graus do conhecimento supra-sensível, encontramos o grande mistério relacionado com o acontecimento que chamamos de Crístico — de modo que o conhecimento imaginativo, o inspirativo e o intuitivo têm muito, infinitamente muito a dizer a respeito desse acontecimento do Cristo.

Ora, se observarmos em retrospectiva os quatro Evangelhos partindo deste ponto de vista, poderemos dizer que o Evangelho de João foi escrito com a visão de um iniciado que havia penetrado nos mistérios do mundo até à intuição, descrevendo, portanto, o acontecimento crístico pela contemplação dos mundos espirituais até o alcance da intuição. Quem, no entanto, se aprofunda com precisão nas características do Evangelho de João, deve concluir — como verificaremos justamente no presente ciclo — que a clareza dos fatos apresentados nesse evangelho deve-se à inspiração e à intuição, e que todo aspecto oriundo dos quadros da imaginação esmaece e se torna impreciso. Sem considerar certas coisas que, apesar de tudo, são provenientes da imaginação, podemos chamar o escritor do Evangelho de João o mensageiro dos acontecimentos crísticos percebidos por quem possui a fala interior até o alcance da intuição. Através de suas palavras ele nos revela os mistérios do Reino do Cristo, caracterizando-o como transmitido pela palavra interior ou Logos. É um conhecimento inspirado e intuitivo que fundamenta o Evangelho de João.

Bem diversos são os outros três evangelhos. E nenhum dos outros evangelistas expressou tão claramente o que tinha a dizer como justamente o escritor do Evangelho de Lucas.

Um prefácio curto e estranho antecede o Evangelho de Lucas. Esse prefácio declara que várias pessoas, já muito antes do autor desse evangelho, fizeram

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coletâneas das narrativas que circulavam a respeito dos acontecimentos na Palestina, relatando-as; e que, com a finalidade de um resultado mais organizado e preciso, o escritor do Evangelho de Lucas se propõe agora relatar — seguem agora as palavras significativas — o que têm a dizer os que desde o princípio foram ‘testemunhas oculares e servidores da Palavra’, como este trecho usualmente é traduzido (Lucas 1, 1-2). Portanto, o escritor do Evangelho de Lucas quer transmitir os dizeres dos que foram testemunhas oculares — melhor diría-mos “que viram por si mesmos” — e servidores do Verbo. No sentido do Evangelho de Lucas, “vêem por si mesmos” os que possuem a cognição imaginativa, que são capazes de penetrar no mundo das imagens percebendo aí o acontecimento crístico. Eles foram especialmente preparados para ver precisa e nitidamente tais imaginações — é em suas declarações que o escritor do Evan-gelho de Lucas baseia seus relatos; eram também ‘servidores da Palavra’ — expressão muito significativa! Ele não diz ‘possuidores da palavra’, pois tratava-se de pessoas possuidoras da perfeita cognição inspirada, mas ‘servidores’, os que servem àqueles aos quais não foi conferida a possibilidade de ver o mundo da imaginação, mas que percebem as manifestações do mundo da inspiração. A eles, servidores, é participado o que o inspirado percebe; eles podem proclamá-lo, pois foi dito por seu instrutor inspirado. Eles são servidores, e não possuidores da palavra.

É desta forma que o Evangelho de Lucas se reporta às comunicações dos que vêem e adentram o mundo imaginativo por si mesmos, aprendendo o que aí observam com os meios possuídos pelo homem inspirado e tornando-se, assim, servidores do Verbo.

Temos aqui mais um exemplo da exatidão dos Evangelhos e de como devemos interpretar suas palavras literalmente. Tudo é exato e preciso nesses documentos compreendidos com base na Ciência Espiritual. Contudo, o homem moderno muito poucas vezes chega a pressentir a exatidão, a precisão com que foi escolhida cada palavra nestes documentos.

Toda vez que iniciamos um trabalho antroposófico contemplando os Evangelhos, é preciso lembrar que, para a Ciência Espiritual, não são estes a fonte do conhecimento. Não é por estar escrito nos Evangelhos que um fato é aceito como sendo incondicionalmente verdadeiro para o pesquisador espiritual. Este não extrai sua sabedoria de documentos escritos, e sim das fontes espirituais que se lhe deparam em suas próprias pesquisas. O que os entes do mundo espiritual têm a comunicar ao clarividente e ao iniciado nos tempos de hoje são, para eles, as fontes da verdadeira Ciência Espiritual. E, de certa maneira, estas fontes são ainda hoje as mesmas das épocas remotas que lhes descrevi. Por esta razão podemos, hoje também, chamar de clarividentes os que adentram o mundo imaginativo, podendo denominar iniciados apenas os que alcançaram os graus da inspiração e da intuição. Desta maneira, para a atualidade, clarividente e iniciado não são palavras coincidentes.

O que lemos no Evangelho de João só poderia fundamentar-se na pesquisa do iniciado que tivesse alcançado a cognição inspirada e intuitiva. O que encontramos nos outros evangelhos consiste em relatos de homens imaginativos, clarividentes, que ainda não podiam, por si mesmos, ascender ao mundo inspirado e intuitivo. Hoje podemos dizer que o Evangelho de João se fundamenta na iniciação; os outros três evangelhos, principalmente o de Lucas, de acordo com as próprias declarações de seu escritor, fundamentam-se na clarividência. É por apoiar-se em conhecimentos de um clarividente muito evoluído que as

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revelações do Evangelho de Lucas trazem imagens claras e precisas de fatos que o Evangelho de João só pode mostrar imprecisamente. O que digo a seguir é com a intenção de dar maior ênfase ainda a esta diferença.

Suponham que alguém se tornasse iniciado, de modo que os mundos da inspiração e da intuição se lhe abrissem, embora ele não fosse clarividente, não podendo, pois, conhecer o mundo imaginativo — o que é improvável ocorrer hoje. Essa pessoa encontraria uma outra que talvez não fosse um iniciado, mas que, por circunstâncias diversas, tivesse a possibilidade de ver todo o imenso panorama das imaginações. Esta última poderia participar ao iniciado muitas coisas que este só poderia explicar pela inspiração, pois não consegue enxergar por si próprio por faltar-lhe a clarividência. Na época atual existem inúmeros clarividentes que, contudo, não são iniciados; já o inverso muito dificilmente suce-de. Poderia, porém, acontecer de um iniciado possuir o dom da clarividência mas, por algum motivo, não conseguir ver as imaginações. Então um clarividente poderia relatar-lhe muitas coisas que para ele ainda fossem desconhecidas.

É preciso enfatizar rigorosamente que a Antroposofia ou Ciência Espiritual se alicerça única e exclusivamente nas fontes das quais haurem os iniciados, e que, portanto, nem o Evangelho de João nem tampouco os outros evangelhos constituem a fonte de seu conhecimento. O que pode ser pesquisado atualmente sem um documento histórico é o que constitui a fonte para o conhecimento antroposófico. Em seguida se abordam os documentos bíblicos a fim de comparar seu conteúdo com o que a atual investigação espiritual pode encontrar. O que a Ciência Espiritual pode encontrar hoje, sem os documentos, em relação ao acontecimento Crístico — a qualquer momento —, nós o reencontramos nos fatos magnificamente relatados no Evangelho de João. Este evangelho é um documento valioso justamente por nos mostrar que, na ocasião em que foi escrito, alguém pôde fazê-lo da forma como o faria hoje quem já passou pela iniciação nos mundos espirituais. Por assim dizer, a voz que hoje pode ser percebida é a que nos chega das profundezas dos séculos.

O mesmo sucede quanto aos outros evangelhos, e também quanto ao de Lucas. Não são as imagens descritas pelo autor deste último que nos servem de fonte para o conhecimento dos mundos superiores; para nós, são fontes aquelas que alcançamos pela própria contemplação dos mundos superiores. E se nos refe-rimos ao evento do Cristo, apoiamo-nos no imenso panorama de imagens que nosso olhar espiritual encontra ao voltar-se para o início da nossa era. Comparamos então o que vemos com os referidos quadros e imaginações descritos no Evangelho de Lucas. E o presente ciclo de conferências deverá demonstrar como os quadros imaginativos obtidos pelo homem atual se apresentam em relação às descrições feitas no Evangelho de Lucas.

É bem verdade que para a pesquisa espiritual, quando esta se estende a acontecimentos passados, existe somente uma única fonte. Essa fonte não repousa nos documentos exteriores. Nem pedras extraídas das entranhas da Terra, nem papéis cuidadosamente arquivados, nem textos de historiadores, inspirados ou não, constituem as fontes da Ciência Espiritual. O que podemos ler na crônica imperecível — a Crônica do Akasha — é que constitui para nós a fonte da pesquisa espiritual. Aí existe a possibilidade de constatar, sem documentos exteriores, fatos há muito ocorridos.

O homem moderno tem, portanto, a possibilidade de escolher dois caminhos para conhecer fatos ocorridos no passado. Lendo documentos históricos, ele saberá a respeito dos acontecimentos do mundo material; estudando documentos

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religiosos, saberá a respeito de circunstâncias espirituais. Ou então poderá perguntar: “O que sabem dizer-nos os que por si mesmos abriram aos seus olhos espirituais aquela imperecível crônica que denominamos ‘Akasha’, aquele grande panorama onde se encontram indelevelmente inscritos todos os acontecimentos ocorridos durante a evolução cósmica, terrestre e humana?”

Ao alcançar os mundos espirituais, o ocultista aprende aos poucos a leitura dessa crônica. Não se trata de uma escrita comum. Imaginem o curso dos acontecimentos, tal como ocorreram, colocado diante de seus olhos espirituais. Imaginem o imperador Augusto, com todos os seus feitos, como que envolto por uma espécie de névoa; tudo quanto sucedeu naquela ocasião aparece agora diante de seus olhos espirituais. É assim que surge diante do pesquisador espiritual, e ele poderá repetir a experiência a qualquer momento — não necessita de atestados exteriores. Basta ele volver o olhar para determinado momento do suceder cósmico ou humano, e diante de seus olhos surgirão os acontecimentos tal qual se deram. Desta forma os olhos espirituais podem percorrer o passado. O que o ocultista decifra então constitui o resultado da pesquisa espiritual.

Quais foram os acontecimentos exatamente na época em que se inicia nossa era? O que aconteceu nesse tempo pode ser visto espiritualmente, podendo ser comparado, por exemplo, com os escritos do Evangelho de Lucas. Então o ocultista reconhece terem vivido naquele tempo pessoas que, da mesma forma, penetravam nos mundos espirituais e visualizavam o que pertencia ao passado; e nós podemos constatar como os fatos relatados por eles como sendo seu tempo presente se relacionam com a visão retrospectiva da Crônica do Akasha, referente àquela época.

É preciso nunca esquecer que nós nada extraímos dos documentos: haurimos nosso saber da própria pesquisa espiritual, procurando encontrar esses resultados novamente nos documentos. Mediante tal comparação é conferido aos documentos valor ainda maior, pois poderemos decidir sobre a veracidade de seu conteúdo mediante nossa própria investigação. Desta forma eles crescem perante nossos olhos como expressão da verdade, pois podemos conhecê-la por nós mesmos. Não devemos mencionar fatos como o agora descrito sem ao mesmo tempo apontar que a leitura da Crônica do Akasha não é tão fácil como observar acontecimentos no plano físico. Por meio de um exemplo específico quero evidenciar, por exemplo, onde se encontram certas dificuldades em relação à leitura da Crônica do Akasha. Quero demonstrá-las no próprio homem.

Já a Antroposofia elementar nos faz saber que o homem consiste em corpo físico, corpo etérico, corpo astral e um eu. A partir do momento em que ultrapassamos o plano físico para observar o mundo espiritual, principiam as dificuldades. No plano físico o homem é uma unidade; aí encontramos seu corpo físico, seu corpo etérico, seu corpo astral e seu eu. Se observarmos espi-ritualmente o homem durante seu período de vigília, constataremos que essas quatro partes formam uma unidade. A partir do momento em que não fazemos a observação durante a vigília diurna, tornando-se necessário, para observá-lo, penetrar nos mundos espirituais, principiam igualmente as dificuldades. Se, por exemplo, durante a noite desejamos contemplar o homem total e, para tanto, penetramos no mundo da imaginação no intuito de ver, por exemplo, seu corpo astral — pois este se encontra fora do corpo físico —, temos então a entidade humana dividida em dois membros separados entre si.

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A descrição do que vem a seguir acontecerá em raríssimas ocasiões, por ser a observação do homem ainda relativamente fácil; entretanto, poderá dar-lhes uma idéia das dificuldades. Imaginem que alguém entre num cômodo onde várias pessoas estejam dormindo. Se o observador tem o dom da clarividência, vê deitados no leito os corpos físicos e os corpos etéricos; e ao se elevar na contemplação, vê os corpos astrais. Sucede que no mundo da astralidade um corpo perpassa o outro. E embora dificilmente isto venha a acontecer para o ocultista evoluído, poderia suceder que, ao olhar para todo um grupo de pessoas adormecidas, ele ficasse confuso a respeito de cada corpo astral e seu respectivo corpo físico. Frisei que dificilmente isto aconteceria porque esta percepção se refere a um grau menos evoluído, e também porque a pessoa que o alcança está bem preparada para saber como, nesses casos, se faz a distinção. Porém, se nos mundos superiores não observamos o ser humano, mas outros seres espirituais, as dificuldades passam a ser bem maiores. Realmente, já são notáveis as dificuldades quando observamos o homem não apenas no momento presente, mas em sua existência total, conforme ele atravessa as encarnações.

Se, portanto, ao observarmos uma pessoa com quem convivemos perguntamos onde se encontrava esse eu numa encarnação anterior, é necessário atravessarmos o Devachan para encontrarmos sua encarnação precedente. É preciso saber distinguir qual é o eu que, através de todas as encarnações anteriores, sempre pertenceu a essa pessoa. Bastante complicado é estabelecer a ligação entre o eu perene e seus diversos estágios aqui na Terra. Havendo possivelmente qualquer falha, com muita facilidade poderá ocorrer um erro ao se pesquisar a permanência de um eu em seus corpos anteriores. Alcançando-se os mundos superiores, não é tão fácil unir tudo quanto pertence a determinada personalidade com o que, na Crônica do Akasha, está indicado como sendo suas encarnações anteriores.

Suponhamos que alguém se proponha a seguinte tarefa: — Ele tem à sua frente uma pessoa à qual daremos o nome de João da Silva. Como clarividente ou iniciado, pergunta a si mesmo quais teriam sido os ancestrais físicos desse João da Silva. Suponhamos agora que todos os documentos existentes no plano físico hajam desaparecido, podendo-se confiar apenas na Crônica do Akasha. Ele teria, portanto, de encontrar aí os antepassados físicos — pai, mãe, avô e assim por diante — para verificar como evoluiu o corpo físico através da descendência genealógica. Depois disso, poderia surgir outra pergunta: quais foram as encar-nações anteriores desse homem? O caminho a ser seguido agora por ele é bem diverso daquele trilhado para se conhecer a linha genealógica da pessoa. Possivelmente ele terá de retroceder muito, muito tempo até alcançar as encarnações anteriores desse eu. Temos aí, portanto, duas correntes, pois nem o corpo físico, na forma como se nos apresenta, é totalmente novo, nem tampouco o eu; o corpo físico descende, por hereditariedade, de seus ancestrais, e o eu se liga às suas encarnações anteriores.

O que é válido para o corpo físico e o eu é válido também para os membros intermediários — os corpos etérico e astral.

A maioria das pessoas aqui presentes sabe que tampouco o corpo etérico é um ente novo, podendo ter-se metamorfoseado várias vezes. Já lhes falei de como o corpo etérico de Zaratustra reaparece no corpo etérico de Moisés3, sendo o mesmo corpo etérico. Examinando a ascendência física de Moisés, obtemos a li-3 V. Rudolf Steiner, O Evangelho segundo Mateus, 2ª conferência. Ed. brasileira em trad. Luiza Thenn de Araújo (2ª ed. São Paulo: Antroposófica, 1996). (N.E.)

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nhagem de seus ancestrais físicos. Se examinássemos os antecessores do corpo etérico de Moisés, obteríamos uma outra linhagem: chegaríamos até o corpo etérico de Zaratustra e a outros corpos etéricos.

Tal como no caso do corpo físico é preciso seguir correntes totalmente diversas das que se referem ao corpo etérico, assim também ocorre quanto ao corpo astral. Cada um dos membros da natureza humana pode levar-nos às mais diversas correntes. Daí podermos afirmar: o corpo etérico é a reencarnação etérica de um corpo etérico que se encontrava numa individualidade muito diferente, que de forma alguma é a mesma em que o eu esteve anteriormente encarnado. O mesmo podemos dizer do corpo astral.

Ao elevar-nos aos mundos superiores para pesquisar sobre os membros anteriores de determinada pessoa, verificamos que aí as correntes divergem. Uma nos leva nesta, outra naquela direção, e confrontamo-nos com acontecimentos espirituais muito complicados. Se desejamos, do ponto de vista da pesquisa espiritual, compreender uma pessoa em sua totalidade, não podemos somente retratá-la como descendente física de seus ancestrais — não podemos apenas seguir a linha de sua ascendência etérica ou astral —, mas devemos considerar plenamente o caminho percorrido por cada um desses quatro membros até confluírem nessa pessoa. Não é possível, no entanto, realizar tudo isso a um só tempo. Pode-se, por exemplo, acompanhar o caminho seguido pelo corpo etérico e chegar a importantes conclusões. Outra pessoa pode seguir o corpo astral. A primeira poderá dar relevância ao corpo etérico e a outra ao corpo astral, redigindo ambas seus relatos de acordo com o enfoque escolhido. Porém, para quem desconhece tudo o que o clarividente descreve a respeito de uma entidade, será indiferente o que diz este ou aquele, pois lhe parecerá simplesmente a mesma coisa. A descrição do corpo físico tem para ele o mesmo significado que a descrição do corpo etérico; ele sempre acreditará que está sendo descrita a pessoa de João da Silva.

Tudo isso pode ilustrar-lhes sobre toda a complexidade das circunstâncias com as quais se depara o clarividente ao querer descrever a natureza de qualquer manifestação deste mundo — seja o homem, seja outro ser qualquer. Precisei dizer o que disse para evidenciar que somente a mais minuciosa e abrangente pesquisa realizada na Crônica do Akasha delineia claramente uma entidade diante de nossos olhos espirituais.

A entidade que se encontra diante de nós com um eu, também no sentido em que a descreve o Evangelho de João (é indiferente se antes ou depois do batismo por João: se a tratarmos por Jesus de Nazaré, antes do batismo, ou por Cristo, depois do batismo) possui também um corpo astral, um corpo etérico e um corpo físico. Só podemos descrevê-la perfeitamente do ponto de vista da Crônica do Akasha ao percorrermos os caminhos que esses quatro membros da entidade do então Jesus Cristo perfizeram durante a evolução humana. Só assim poderemos compreendê-la corretamente. Trata-se aqui de compreender perfeitamente a mensagem a respeito do evento do Cristo do ponto de vista da investigação espiritual de hoje, para que uma luz seja derramada sobre os pontos que nos quatro Evangelhos aparentemente se contradizem.

Já por várias vezes expliquei por que a pesquisa moderna, puramente materialista, não consegue reconhecer o alto valor, o valor de verdade contido no Evangelho de João: é por não poder compreender que um iniciado em alto grau alcance uma visão mais profunda do que os demais. Assim, aqueles a quem o Evangelho de João não agrada procuram estabelecer uma harmonia entre os

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outros três evangelhos, os chamados sinópticos — tarefa difícil quando se levam em conta apenas os acontecimentos materiais, exteriores; pois o que será de grande importância para a conferência de amanhã — considerar a vida de Jesus de Nazaré antes do batismo por João — é descrito por dois evangelistas: o autor do Evangelho de Mateus e o autor do Evangelho de Lucas; e para um ponto de vista materialista, existem aí divergências que em nada diferem daquelas que se julgam haver entre o Evangelho de João e os outros três evangelhos.

Consideremos os fatos. O escritor do Evangelho de Mateus relata que o nascimento do criador do cristianismo foi prenunciado; que o nascimento sucedeu; que magos vieram do Oriente seguindo a estrela; que esta os guiou ao local onde o Redentor havia nascido. Descreve ainda como este fato desperta a atenção de Herodes e que, para escapar da medida tomada por este, ou seja, o infanticídio de Belém, os pais do Redentor fogem com a criança para o Egito. Morto Herodes, José, o pai, recebe o sinal de que poderá regressar e, temendo o sucessor de Herodes, não regressa a Belém, mas a Nazaré.

Não farei ainda hoje referência à anunciação do Batista. Mas quero chamar a atenção para o fato de, comparando os evangelhos de Lucas e de Mateus, se verificar que a anunciação de Jesus de Nazaré ocorre de maneira diversa nos dois relatos: uma vez é feita a José, outra vez a Maria.

Vemos, pois, pelo Evangelho de Lucas, que os pais de Jesus de Nazaré vivem originalmente em Nazaré e dirigem-se a Belém para o recenseamento. Quando aí estão, nasce Jesus. Após oito dias, segue-se a circuncisão — nada consta sobre uma fuga para o Egito — e após um tempo não muito longo a criança é apresen-tada no Templo. Vemos que é ofertado o sacrifício usual, e em seguida os pais e a criança retornam a Nazaré, ali residindo. E então nos é relatado um estranho acontecimento: aos doze anos de idade, Jesus, ao acompanhar os pais numa visita ao Templo em Jerusalém, ali fica após a saída dos pais, sem que estes o percebam; os pais o procuram e vão encontrá-lo, finalmente, entre os doutores que interpretam as Escrituras, defrontando-se com estes como um douto e sábio entre eles. Em seguida é narrado como os pais o levam para casa novamente e como ele cresce; e nada mais de importante lemos aí até o batismo por João.

Temos aqui duas histórias de Jesus de Nazaré antes do recebimento do Cristo. Quem desejar unificá-las deverá primeiramente indagar como será possível reunir numa só, pela usual observação materialista, a narrativa de que, imediatamente após o nascimento de Jesus, os pais Maria e José são orientados para fugir para o Egito com a criança e somente mais tarde regressam, e a narrativa da cena do Templo, segundo Lucas.

Aqui podemos ver como os fatos que para a concepção materialista aparentemente se contradizem provam ser verdadeiros se observados pela Ciência Espiritual. Ambos os relatos são verdadeiros, apesar de no mundo físico se apresentarem como contradições. Justamente os três evangelhos sinópticos — o de Mateus, o de Marcos e o de Lucas — deveriam obrigar a humanidade a uma interpretação espiritual dos fatos do suceder humano. Os homens deveriam reconhecer que nada se consegue sem refletir a respeito de aparentes contradições ou falando em ‘lendas’, quando não se penetra em realidades.

Justamente agora teremos oportunidade de falar a respeito do que o Evangelho de João não nos ensejou mencionar, isto é, dos acontecimentos que se desenrolam antes do batismo por João, antes da encarnação da entidade do Cristo nos três corpos de Jesus de Nazaré. E muitos dos importantes enigmas da essência do cristianismo serão solucionados porque ficaremos sabendo, pela

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leitura na Crônica do Akasha, como era o ser de Jesus de Nazaré antes de o Cristo assumir seus três corpos.

Amanhã começaremos a investigar o ser e a vida de Jesus de Nazaré por meio da crônica espiritual do Akasha, para indagar: como se relaciona tudo o que podemos haurir desta fonte sobre o verdadeiro ser de Jesus de Nazaré com as narrativas do Evangelho de Lucas oriundas daqueles que, naquela época, Viam por si mesmos' ou eram ‘servidores do Verbo’, do Logos?

16 de setembro de 1909

O Buda no evento de BelémDurante as várias épocas da evolução do cristianismo, o Evangelho de João

foi o documento que sempre impressionou imensamente quem procurava um aprofundamento especial, uma imersão nas correntes cristãs universais. Por tal motivo, esse Evangelho de João é o documento primordial para todos os místicos cristãos que procuraram imitar o que está representado na personalidade e no ser de Cristo Jesus.

Durante vários séculos a humanidade cristã encarou o Evangelho de Lucas de uma maneira um pouco diferente. Isto corresponde ao que já ontem demos a entender, de um outro ponto de vista, sobre as diferenças existentes entre os evangelhos de João e Lucas. Se, de certo modo, o Evangelho de João foi um documento para os místicos, o Evangelho de Lucas foi sempre uma espécie de livro edificante para a maioria das pessoas — aquelas que, pela simples ingenuidade de seus corações, eram capazes de elevar-se às esferas do sentimento cristão. É como um livro edificante que o Evangelho de Lucas percorre os tempos. Para todos os oprimidos pelo sofrimento e pela dor, ele foi sempre uma fonte de consolo interior, pois aí se anuncia com bastante insistência a vinda do grande Consolador, do Benfeitor da humanidade, do Salvador dos oprimidos e sobrecarregados. Esse era o livro ao qual se dirigiam os pensamentos dos que procuravam impregnar-se de amor cristão, pois nesse documento cristão, mais do que em qualquer outro, desabrocha a força e a profundidade do amor. E os que, de alguma forma, estavam conscientes de terem manchado seu coração com algum erro — e basicamente isto diz respeito a todos os homens — encontravam sempre consolo, edificação e elevação para a alma oprimida quando consideravam os presságios contidos no Evangelho de Lucas, podendo dizer a si mesmos: o Cristo Jesus não veio somente para os justos, mas também para os pecadores; ele sentou-se à mesa com pecadores e publicanos. Se o Evangelho de João exige um alto preparo interior para agir na alma, do Evangelho de Lucas podemos dizer que não existe alma, por menos evoluída ou menos madura que seja, que não possa entregar-se completamente ao calor emanado dessa obra.

Assim sendo, o Evangelho de Lucas foi sempre um livro para a maioria, que nele alimentava sua alma, por mais infantil que fosse. Toda a pureza da infância remanescente no homem até a mais avançada idade sempre se sentiu atraída pelo Evangelho de Lucas. E principalmente as verdades crísticas representadas por imagens que então serviam de modelo para as reproduções artísticas, mormente a pintura, falavam de perto ao coração das pessoas. É verdade que também dos outros três evangelhos muito fluiu para as artes, mas é no Evangelho de Lucas que encontramos

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descritas as cenas fixadas em quadros pelos pintores. Todas as profundas ligações entre o Cristo e João Batista, tantas vezes representadas pictoricamente, tiveram sua fonte neste livro eterno, o Evangelho de Lucas.

Quem se entrega a tal obra deixando-a atuar deste ponto de vista verá que, do início até o fim, ela está impregnada pelos princípios do amor, da compaixão, da ingenuidade e, até certo ponto, da infantilidade. E essa infantilidade encontra sua expressão mais calorosa no relato da infância de Jesus de Nazaré, propiciado pelo autor do Evangelho de Lucas! Por que razão isto foi possível, ficará claro ao nos aprofundarmos mais e mais neste livro singular.

Hoje será necessário dizer várias coisas que, para quem assistiu a outras palestras ou ciclos meus, poderão parecer uma contradição de minha parte. Mas após as explanações dos próximos dias os Senhores já perceberão a concordância dessas coisas com tudo o que, até agora, foi dito por mim a respeito do Cristo Jesus e de Jesus de Nazaré. Não é possível trazer de uma só vez toda a complexa dimensão da Verdade; assim, será necessário apontar hoje determinada face das verdades cristãs que aparentemente se encontram em contradição com aquela parte da Verdade que até agora pude expor-lhes em várias ocasiões.

O caminho será escolhido de modo a ser desenvolvida cada corrente da Verdade, demonstrando-se como estão em concordância e harmonia. Naturalmente, nos diversos ciclos de palestras só me foi possível até agora mostrar-lhes uma parte da Verdade, tomando propositadamente, como ponto de partida, o Evangelho de João. No entanto essa parte é verdadeira, como veremos nos próximos dias. Hoje devemos contemplar uma parte das verdades cristãs incomuns para a maioria dos Senhores.

No Evangelho de Lucas, há uma maravilhosa passagem relatando como no campo é anunciado aos pastores, por um anjo que lhes aparece, o nascimento do ‘Salvador do Mundo’. E então é mencionado que a esse anjo, depois de ter ele realizado a anunciação, juntaram-se ‘legiões de seres celestes’ (Lucas 2, 13). Imaginem, pois, a cena: esses pastores erguem o olhar e parece-lhes que ‘o céu se abre’, e os seres do mundo espiritual se estendem à sua frente em imagens supremas. O que está sendo proclamado aos pastores?

O que lhes é proclamado é revestido de palavras monumentais, palavras que foram anunciadas através de toda a evolução humana e que agora se transformaram na oração natalina da cristandade. Traduzidas de um modo correto, as palavras que soaram aos pastores diriam aproximadamente:

Revelam-se os seres divinos das alturas para que embaixo, na Terra, reine a paz entre os homens impregnados de boa vontade. [Lucas 2, 14.]

‘Honra’, como é habitualmente reproduzido, é uma tradução bastante falsa.4

Deveria transmitir o que acabo de dizer, devendo-se frisar bem que a cena vista pelos pastores é a manifestação dos seres espirituais a partir das alturas, e que tal manifestação sucede nesse preciso momento para que a paz possa penetrar nos corações humanos impregnados de boa vontade.

No fundo, como veremos, muita coisa dos mistérios do cristianismo está contida em tais palavras, se as compreendermos corretamente. Para que possam 4 “Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens de boa vontade” é a tradução mais comum da vulgata latina, neste versículo, para o português. Nas traduções alemãs aparece a palavra ‘honra’ (Ehre) ao invés de ‘glória’. (N.E.)

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tornar-se claras, o fator de maior importância é contemplar as revelações que o clarividente encontra na Crônica do Akasha. Necessário, sobretudo, é contemplar com os olhos espirituais a época em que o Cristo Jesus aparece para a humanidade e perguntar: como se apresenta o que, naquela ocasião, surgiu espiritualmente no desenvolvimento da Terra, quando a acompanhamos em toda a sua evolução histórica, buscando sua origem?

Naquela ocasião, penetrou na evolução humana algo como uma confluência de correntes espirituais advindas das mais variadas direções. No decorrer dos tempos, as mais diversas cosmovisões surgiram nas mais variadas regiões da Terra. E tudo quanto havia surgido fluiu, naquela época, para a Palestina e expressou-se de alguma maneira nos acontecimentos que aí sucederam, permitindo-nos perguntar: para onde levam as correntes que, nos acontecimentos da Palestina, vemos convergir para um ponto central?

Já ontem fizemos notar que o Evangelho de Lucas propicia o que denominamos cognição imaginativa, sendo essa cognição imaginativa obtida por meio de imagens. Temos aqui uma imagem em sua plenitude: sobre os pastores aparece a manifestação das entidades espirituais das alturas, a imagem de um ser espiritual — um anjo —, e em seguida uma legião de anjos. Aqui devemos formular a seguinte pergunta: de que modo o clarividente e iniciado nos mistérios da existência compreende esta imagem, possível de ser encontrada a qualquer momento em que ele volte a olhar para a Crônica do Akasha? O que vem a ser aquilo que se apresentou aos pastores? O que está contido nesta legião de anjos, e qual é sua origem?

Nesse quadro se revela uma das maiores correntes espirituais da evolução humana: aquela que gradualmente havia alcançado alturas espirituais tais que, no tempo dos acontecimentos palestinos, só podia manifestar-se na Terra, a partir das alturas espirituais, do modo como é descrito nesse quadro. Decifrando a Crônica do Akasha, tomaremos como ponto de partida a legião de anjos que aparece aos pastores; seremos reconduzidos a uma das maiores correntes espirituais que fluíram através do desenvolvimento da humanidade — a última, pode-se dizer, que se propagou na evolução da humanidade antes do aparecimento do Cristo Jesus na Terra, vários séculos atrás: o budismo. É à ‘iluminação’ do grande Buda que será reconduzido, por estranho que lhes pareça, quem percorre retrospectivamente os caminhos da humanidade na Crônica do Akasha, partindo da revelação recebida pelos pastores. Aquilo que na índia iluminou os homens — a religião do amor e da compaixão, a qual, como uma grande cosmovisão, comoveu outrora os espíritos e corações, constituindo ainda hoje alimento espiritual para uma grande parte da humanidade — reapareceu na revelação aos pastores. É que também isto deveria fluir para as revelações palestinas. Só poderemos compreender o que o Evangelho de Lucas nos relata no princípio se, por meio da pesquisa com base na Ciência Espiritual, considerarmos a significação do Buda para a humanidade e como sua revelação atuou sobre a evolução do homem.

Quando, cinco a seis séculos a.C, nasceu o Buda no Oriente, surgiu nele uma individualidade que se reencarnara muitas vezes e que, mediante essas múltiplas encarnações, alcançara um alto grau de evolução humana. Ao Buda foi possível tornar-se a personalidade que foi simplesmente pelo fato de já ter, em suas encarnações anteriores, alcançado esse alto nível de desenvolvimento. Esse grau evolutivo de uma entidade dentro do Cosmo, alcançado pelo Buda, recebe a designação oriental de Bodhisatva. Alguns dentre os presentes já terão, em

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outras ocasiões, ouvido explanações minhas sobre a natureza dos Bodhisatvas. No ciclo Geistigen Hierarchien und ihre Widerspiegelung in der physischen Welt [Hierarquias espirituais e seu reflexo no mundo físico] — Düsseldorf, abril de 1909 —, falei dos Bodhisatvas em sua relação com toda a evolução cósmica; em Munique, no ciclo Der Orient im Lichte des Okzidents (O Oriente à luz do Ociden-te) — agosto de 1909 —, falei a seu respeito partindo de um outro ponto de vista. Hoje falarei novamente dos Bodhisatvas, vendo-os sob um outro ângulo. Os Senhores encontrarão paulatinamente a congruência entre estas verdades.

Aquele que veio a ser um Buda devia antes ser um Bodhisatva. Na evolução individual, um Bodhisatva representa, portanto, o grau precedente ao do Buda. Estudemos agora o ser dos Bodhisatvas do ponto de vista da evolução humana. Nós só os compreenderemos se observarmos essa evolução compenetrando-a com o ponto de vista da Ciência Espiritual.

As capacidades desenvolvidas pelo homem em qualquer época não existiram sempre. E uma visão muito limitada julgar que as faculdades do homem de hoje tenham existido desde tempos remotos. As faculdades humanas do saber, do agir, do adquirir conhecimentos modificam-se de época para época. Atualmente, as faculdades do homem estão desenvolvidas de um modo tal que, por meio de sua própria razão, ele pode conhecer qualquer coisa, sendo justo que diga: “Esta ou aquela verdade eu conheço por meio de minha razão, de meu juízo; posso discernir o moral e o imoral, o lógico e o ilógico.” Estaríamos, porém, enganados se supuséssemos que estas faculdades de distinguir o moral do imoral, de ter critério do lógico e do ilógico sempre tivessem sido inerentes à natureza humana. Elas surgiram paulatinamente, evoluindo sempre. O que o homem consegue hoje por meio de suas próprias faculdades lhe foi ensinado outrora, por seres su-periores, do mesmo modo como a criança aprende com seus pais ou professores. Esses seres eram entidades que também se encontravam encarnadas sob forma humana, mas por suas capacidades espirituais, tinham alcançado um grau mais elevado na evolução. Por intermédio dos mistérios eles podiam manter-se em contato com seres espirituais altamente elevados, seres divino-espirituais.

Sempre houve individualidades que, embora encarnadas num corpo físico, podiam manter-se em comunicação com seres mais evoluídos, não encarnados fisicamente. Por exemplo, antes de ter adquirido o dom do pensamento lógico que lhe possibilita, hoje em dia, pensar com lógica ele próprio, o homem tinha de seguir os ensinamentos de determinados instrutores. Estes instrutores, por sua vez, não sabiam pensar logicamente no sentido de hoje, pois esta qualidade se desenvolve por intermédio do corpo físico; eles recebiam nos mistérios esses pensamentos dos seres divino-espirituais que estão em regiões superiores. Tais instrutores — que ensinavam o lógico, o moral das manifestações obtidas dos mundos espirituais — existiram antes de que o próprio homem, por sua natureza terrestre, fosse capaz de pensar logicamente ou encontrar o aspecto moral. Uma categoria específica de seres encarnados em corpos físicos, porém capazes de manter comunicações com seres divino-espirituais — eis os Bodhisatvas, os quais têm possibilidades de trazer à humanidade o que aprenderam dos seres superiores. Trata-se, portanto, de seres encarnados num corpo humano, que com suas capacidades podem alcançar uma comunicação com os seres divino-espirituais.

Antes de tornar-se um ‘Buda’, o Buda foi precisamente um Bodhisatva, isto é, uma individualidade que por intermédio dos mistérios se relacionava com os seres superiores divino-espirituais. Nos tempos remotos da evolução terrestre, tal

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ser tinha recebido dos mundos superiores uma determinada missão, uma tarefa específica, que continuou a cumprir.

Referindo-nos ao Buda devemos dizer, portanto, que como Bodhisatva ele tinha determinada incumbência. Quando a Terra se encontrava ainda em estágios de evolução anteriores à época atlântica e à época lemúrica, esse ser que quinhentos anos antes da era cristã esteve encarnado como Buda recebera tam-bém uma determinada tarefa, e nela permanecera. Através de todas as eras, de época em época, ele deveria atuar ensinando à humanidade tudo o que esta estava capacitada a absorver. Para todo Bodhisatva existe, portanto, uma ocasião em que a missão recebida em tempos primordiais atinge um certo ponto onde os ensinamentos transmitidos por ele das alturas à humanidade passam a ser capacidade humana própria. De fato, o que hoje é uma capacidade humana foi antigamente capacidade dos seres divino-espirituais, e os Bodhisatvas traziam-nas dos mundos espirituais para o homem. Um missionário espiritual como este atinge então um ponto em que pode dizer: “Realizei minha missão; agora foi dado à humanidade aquilo para o qual ela foi preparada por muito, muito tempo.” Alcançando este ponto, o Bodhisatva pode tornar-se um Buda. Isto significa surgir para ele o momento em que, como ser incumbido de uma missão como a que acabamos de caracterizar, ele não precisa mais encarnar-se num corpo físico — ele o faz pela última vez na qualidade de missionário. Tal tempo havia chegado para o Buda. O que ele tinha a realizar trouxera-o à Terra muitas e muitas vezes. Mas, no momento em que ele recebeu a iluminação para tornar-se Buda, chegou-lhe a vez da última encarnação como Bodhisatva. Ele veio a um corpo humano que desenvolvera em alto grau as capacidades que antes tinham de ser transmitidas das alturas do mundo espiritual, e que pouco a pouco deveriam transformar-se em capacidades inerentes à natureza humana.

Quando, por seu desenvolvimento anterior, tal Bodhisatva consegue tornar um corpo humano tão perfeito que este possa ser um portador das qualidades relacionadas com a missão do Bodhisatva, encerra-se o ciclo de suas encarnações. Ele paira então em regiões espirituais, atuando daí sobre a humanidade, dirigindo-a e impulsionando-a. Então os homens têm a tarefa de continuar a desenvolver o que anteriormente lhes havia fluído das alturas, dizendo a si próprios: “Devemos agora evoluir de forma a desenvolver as qualidades que o Bodhisatva, pela primeira vez, desenvolveu ao máximo em sua última encarnação, e que surgiram depois no Buda.” Ser ‘Buda’ significa que na natureza de um único homem se integraram todas as qualidades anteriormente recebidas das alturas espirituais, e que nesse homem se manifestam as possibilidades do Bodhisatva. Isto o Buda também demonstrou. Se o Bodhisatva se houvesse retirado mais cedo de sua missão, não teria sido mais possível à humanidade receber o benefício das capacidades que lhe chegam das alturas. Mas a evolução progredira a ponto de estas capacidades já se haverem integrado num único ser humano, estando também criado o germe para que o homem futuramente pudesse desenvolvê-las em si próprio. Assim, essa individualidade que se desenvolvera como Bodhisatva e que, como tal, nunca se unira completamente ao corpo humano, permanecendo sempre nas alturas celestes, por esta única vez habitou por completo esse corpo. Depois disso se retirou novamente, pois agora — com esta encarnação como Buda — é dada aos homens uma certa quantidade de revelações que deverão continuar a desenvolver-se no seio da humanidade. Por isso a entidade Bodhisatva, após ter alcançado a iluminação do Buda, pôde retirar-se para certas alturas espirituais, lá

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permanecendo e daí continuando a velar pela humanidade, num nível onde só determinados iniciados serão capazes de vê-lo. Que missão tinha aquela maravilhosa, grandiosa individualidade que na vida comum se denomina Buda? Se desejamos reconhecer essa tarefa, essa missão no sentido do verdadeiro eso-terismo, precisamos refletir no seguinte: — Toda a capacidade humana de cognição desenvolveu-se paulatinamente. Repetidas vezes frisamos que, na época atlântica, uma grande parte da humanidade possuía o dom da clarividência, que lhe permitia ver nos mundos espirituais. Dissemos também que alguns remanescentes dessa clarividência permaneceram nos tempos pós-atlânticos. Se, partindo da época atlântica, penetrássemos na época da antiga índia, na antiga Pérsia, na época egipto-caldaica, até a época greco-romana, encontraríamos muitas pessoas, muitas mais do que supõe o homem atual, que haviam herdado partes dessa clarividência. Para elas o plano astral encontrava-se aberto — elas penetravam nas ocultas profundezas da existência. Até a idade greco-romana, enxergar o corpo etérico das pessoas era muito comum para uma grande parte da humanidade: era principalmente normal, naquela época, ver a parte da cabeça envolta por aquela nuvem etérica que só com o passar dos tem-pos se foi ocultando cada vez mais no interior da própria cabeça.

A humanidade, porém, devia alcançar aquele conhecimento que paulatinamente se tornou o pleno conhecimento sensível, adquirido por meio dos sentidos exteriores e daquelas faculdades espirituais dirigidas a eles. Era preciso que o homem se livrasse por completo do mundo espiritual, a fim de concentrar-se na simples observação sensorial, no pensamento racional e lógico. Ele deveria apossar-se paulatinamente desse conhecimento não-clarividente, pois terá de atravessá-lo para, no futuro, alcançar novamente o conhecimento clarividente — então, porém, unido ao que houver adquirido como conhecimento sensível e intelectual.

É essa a época que atravessamos atualmente. Nós olhamos para um passado em que a humanidade possuía o dom da clarividência e vemos um futuro em que o homem novamente será clarividente. Entretanto, em nossa época intermediária a maioria dos homens dependem do que observam com os sentidos e conceituam com o intelecto e com a razão. É claro que existe também um certo nível de observação e de conhecimento intelectual e racional; mas em toda parte existem graus no conhecimento. Existe quem, numa determinada encarnação de sua vida terrestre, caminha de modo a pouco reconhecer do que é moral, pouca compaixão desenvolver pelo próximo: nós o designamos como uma pessoa com baixo nível moral. Outro desenvolve muito pouco suas forças intelectuais: dizemos que essas são pessoas de baixo nível intelectual. Sabemos, porém, que tais forças intelectuais de conhecimento podem alcançar um elevado grau. Do homem pouco intelectual ou moral até aquele que, no sentido de Fichte, chamamos de ‘gênio moral’ e que desenvolve ao máximo sua fantasia moral, temos todos os graus intermediários; e sabemos que, no presente, podemos desenvolver-nos a esse grau da perfeição humana sem possuir forças de clarividência — mas somente pelo cultivo das forças que estão à disposição do homem comum. Estes estágios tiveram de ser alcançados pela humanidade somente no decorrer da evolução terrestre. O homem dos tempos arcaicos não conseguia alcançar por seus próprios esforços o que o homem moderno consegue, até certo grau, por sua inteligência, e tampouco o que o homem de hoje poderá alcançar por sua própria força moral, isto é, por dever sentir compaixão diante do sofrimento e da dor do próximo. Hoje podemos dizer que o

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pensamento moralmente sadio do homem já se eleva a esse conhecimento também sem auxílio da clarividência, e que os homens poderão elevar-se cada vez mais à compreensão de que a compaixão é a virtude suprema, e de que a humanidade não poderia prosseguir sem amor. Podemos dizer que o senso moral do homem já é capaz de reconhecer tais verdades, vindo a intensificar-se cada vez mais. Mas devemos retroceder às épocas em que o sentido moral era de natureza tal que o homem, por si mesmo, não poderia tê-lo compreendido.

Houve tempos em que os homens jamais poderiam reconhecer por si mesmos que a compaixão e o amor pudessem pertencer ao mais alto grau de evolução da alma humana. Por isso tinham de encarnar-se em corpos humanos entidades como, por exemplo, os Bodhisatvas. Estes recebiam dos mundos superiores as revelações da força atuante da compaixão, da força atuante do amor, e diziam aos homens como deveriam conduzir-se na compaixão e no amor, pois estes ainda não possuíam maturidade para compreendê-lo por si mesmos. O que a humanidade reconhece hoje em dia, por suas próprias forças, como sendo a alta virtude da compaixão e do amor, à qual o senso moral se eleva, tinha de ser ensinado das alturas celestes no decorrer das épocas. E o mestre do amor e da compaixão, naqueles tempos em que o homem ainda não possuía a compreensão da natureza dessas virtudes, foi aquele Bodhisatva que então se encarnou pela última vez no Gautama Buda.

Portanto, o Buda foi antes o Bodhisatva, mestre do amor e da compaixão e de tudo o que se relaciona a este sentimento. Ele foi mestre durante a época, já caracterizada, em que por natureza as pessoas ainda eram, de certo modo, clarividentes. Ele se encarnou como Bodhisatva em tais corpos humanos clarividentes. Quando então se encarnou como Buda e, pela clarividência, vislumbrou — uma a uma — essas encarnações anteriores, pôde dizer como se sentia no âmago da alma ao perscrutar as profundezas da existência oculta por detrás da existência sensorial. Ele possuía essa faculdade nas encarnações anteriores e com ela nasceu dentro da dinastia dos Sakya; destes descendia o pai do Gautama, chamado Sudodana. Ao nascer, Gautama Buda era ainda o Bodhisatva, ou seja, manifestava-se como o ser ao qual evoluíra em suas encarnações anteriores. Portanto, aquele que habitualmente designamos por Buda nasceu, através de seu pai Sudodana e sua mãe Mayadevi, como Bodhisatva. Por isso já na infância tinha, em alto grau, o poder da clarividência, conseguindo penetrar com o olhar nas profundezas da realidade existencial.

Importante é sabermos que, no decorrer da evolução da humanidade, essa capacidade de penetrar no âmago da existência tomou gradativamente formas muito específicas. A missão evolutiva da humanidade aqui na Terra era deixar regredir o dom da antiga clarividência nebulosa; e quando transmitida como herança, essa antiga clarividência perdia justamente sua mais valiosa porção. O que restava, geralmente, era uma reduzida visão do mundo astral, precisamente uma visão das forças demoníacas que prendem o homem numa esfera inferior por meio de seus instintos e paixões. É bem verdade que podemos penetrar no mundo espiritual pela iniciação e ver as forças e os seres relacionados com os mais belos pensamentos e sentimentos humanos; contudo, vemos também os poderes espirituais situados atrás da sensualidade torpe e do egoísmo destruidor. O que a maioria das pessoas havia conservado — exceção feita aos iniciados — era justamente a capacidade de ver essas forças demoníacas selvagens situadas atrás dos baixos vícios humanos. Naturalmente, quem penetra nos mundos espirituais pode ver tudo por si próprio. Isso depende apenas da evolução da

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capacidade humana, pois o homem não pode alcançar um nível sem ter passado por outro.

Naturalmente o Buda precisava encarnar-se num corpo humano organizado segundo aquela época, o qual lhe facultasse a contemplação profunda das origens astrais da existência. Já na infância ele tinha a capacidade de ver todos os poderes astrais inferiores dos quais se originam as paixões desenfreadas e intempestivas, bem como a sensualidade ávida. Ele era resguardado cuidadosamente de qualquer contato com o mundo exterior, para que não se confrontasse com suas depravações físicas, seus sofrimentos e dores. Recluso no palácio, protegido de tudo, ele foi mimado ao extremo, por se considerar, conforme os conceitos então vigentes, que isto lhe era devido de acordo com sua posição social. Porém esse isolamento favoreceu a intensificação de sua força vidente interior. Enquanto se evitava cuidadosamente seu contato com tudo o que pudesse lembrar enfermidades ou dor, ele teve, em seu isolamento, seus olhos espirituais abertos para as imagens astrais. Rodeavam-no as imagens as-trais de tudo o que, sob forma de paixões terríveis, pode rebaixar o homem.

Quem, com olhos espirituais no verdadeiro sentido esotérico, consegue ler a biografia do Buda mesmo consultando apenas documentos exotéricos, terá por si mesmo um vislumbre do que acabamos de dizer. Ora, é preciso enfatizar o seguinte: muitas coisas relatadas nos documentos exotéricos não podem ser en-tendidas quando não temos possibilidade de penetrar em suas origens esotéricas; e o que menos se pode compreender nos relatos exotéricos é a vida do Buda. Deve parecer um pouco estranho, tanto aos orientalistas quanto a outros que se interessam pela vida do Buda, encontrar aí escrito que este, em seu palácio, vivia rodeado por ‘quarenta mil dançarinas e oitenta e quatro mil mulheres’. Isto já declaram hoje até os livros que podem ser adquiridos por alguns níqueis; mas percebe-se que os escritores não estão muito admirados com este harém de quarenta mil dançarinas e oitenta e quatro mil mulheres! O que significa isto? As pessoas não sabem que tal declaração aponta algo vivenciado pelo Buda — tão plenamente quanto só pode ocorrer a um coração humano — por meio de uma visão astral: como desde a infância ele não experimentara, na verdade, as misérias e dores do mundo físico, pois fora poupado delas, vendo-as, porém, no mundo espiritual como manifestações do espírito. Tendo nascido num corpo, ele observava como pudera ter vindo ao mundo naquela época, tendo sido fortalecido e elevado acima de tudo o que o circundava sob forma das mais terríveis imagens fantasmagóricas, por ter sido elevado, em suas encarnações anteriores, à altura de Bodhisatva. Vivendo, porém, como tal individualidade nessa encarnação humana, sentiu-se impelido a ver o que lhe indicava cada imagem do mundo astral que o cercava no palácio. Cada uma dessas imagens o impelia para fora, a conhecer o mundo — enfim, a deixar a prisão. Era esta a força impulsora em sua alma. É que nele, como Bodhisatva, vivia uma elevada força espiritual — precisamente aquela força espiritual cuja missão era ensinar à humanidade a plena força da compaixão e do amor, e de tudo o que se relaciona com estes. Para tal ele necessitava conhecer por si mesmo essa humanidade e vê-la no mundo, onde ela poderia, a partir de um sentido moral, vivenciar os ensinamentos de compaixão e de amor. Ele precisava conhecer a humanidade no mundo físico. Precisava elevar-se de Bodhisatva a Buda, ser um homem entre homens. Isto só lhe seria possível se ele abdicasse das capacidades remanescentes de encarnações anteriores, se partisse para o plano físico para aí

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viver entre os homens, de modo a representar para eles um exemplo, um ideal, um modelo para o desenvolvimento das qualidades especiais já caracterizadas.

Para, neste sentido, se evoluir de Bodhisatva a Buda, naturalmente são necessários vários estágios intermediários; isso não acontece de um dia para outro.

Ele sentia necessidade de sair do palácio real. E o relato nos conta que lá fora, tendo ‘fugido’ da prisão palaciana, ele se depara com um homem velho, um ancião. Até então, só estivera cercado pelas imagens da juventude, tendo de acreditar que só existisse a força exuberante da mocidade. Ao deparar-se com o ancião, veio a conhecer o que, no plano físico, representa a velhice. Em seguida veio a conhecer um doente, e logo após um defunto — isto é, a morte no plano físico. Todas estas coisas, agora que ele tem a possibilidade de realmente encarar o plano físico, apresentam-se à sua alma.

Muito característico para a identificação real do Buda é o que conta a seguinte lenda, mais verdadeira do que qualquer ciência exterior: ao sair do palácio, ele foi levado por um cavalo que, de tanto sofrer por ele desejar abandonar tudo que o rodeara desde o nascimento, morreu de tristeza e então foi transferido para os mundos supra-sensíveis como uma entidade espiritual. Nesta imagem se exprime uma verdade profunda. Ocuparia muito tempo uma explicação, agora, do motivo de ser empregado precisamente um cavalo para representar uma força espiritual humana. Quero somente lembrar-lhes Platão, mencionando um cavalo que ele segura pela rédea ao utilizar uma metáfora para determinadas faculdades humanas doadas ainda das alturas, e não desenvolvidas a partir do próprio íntimo do homem. Quando o Buda sai do palácio real, deixa atrás de si as faculdades que não havia desenvolvido a partir do íntimo de sua própria alma. Ele as deixa no mundo espiritual, de onde sempre as recebera. Isto é indicado pela imagem do cavalo, que morre de pesar quando ele o abandona, sendo então transferido para os mundos espirituais.

Mas só gradativamente o Buda pôde tornar-se o que devia vir a ser nesta sua última encarnação na Terra. Ele precisava, antes, conhecer no plano físico o que já sabia da visão espiritual como Bodhisatva. Inicialmente conhece dois mestres: um deles é representante da antiga cosmovisão hindu que conhecemos como filosofia do Sanquia, e o outro é um representante da filosofia da loga. Buda conhece ambas e aprofunda-se no que elas lhe transmitem, vivendo-o. Ora, por mais evoluído que um ente seja, é preciso primeiro familiarizar-se com as conquistas da humanidade no mundo exterior. Mesmo que um Bodhisatva possa aprendê-las com a maior presteza, deverá sempre aprendê-las, primeiro. Se tivesse nascido nos tempos atuais, o Bodhisatva que viveu cinco ou seis séculos antes da nossa era precisaria — da mesma maneira como as crianças aprendem na escola — recapitular primeiro o que teria sucedido na Terra enquanto ele houvesse vivido nas alturas celestes. Assim, o Buda precisava conhecer também tudo quanto acontecera desde sua última encarnação.

E ele estudou a filosofia do Sanquia com um dos mestres e a filosofia da loga com outro. Pôde então compreender tipos de cosmovisão que para muitos solucionavam os enigmas da existência. Pôde entender, então, como se sentia uma alma ao deixar atuar sobre si essas filosofias.

Na filosofia do Sanquia ele encontrou uma cosmovisão de lógica sutil; porém, quanto mais se aprofundava nela, menos ela o satisfazia — era, afinal, como uma teia, afastada da plenitude da vida. Ele sentia que as fontes para o que deveria

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realizar nesta encarnação tinham de ser buscadas alhures — não na filosofia do Sanquia.

A outra era a filosofia da loga de Patanjali, que buscava ligações com o Divino por meio de processos interiores da alma. Deste modo ele se aprofundou também nesta filosofia, absorvendo-a e fazendo dela uma parte de seu ser. Contudo esta também o deixou insatisfeito, pois ele a reconheceu como algo pertencente a tempos arcaicos; era mister que o homem se voltasse para outras capacidades, para uma evolução moral. Depois de ter provado a filosofia da loga em sua alma, o Buda verificou que esta tampouco podia ser a fonte para sua tarefa de então.

Após essas experiências, ele se aproximou de cinco eremitas. Estes haviam tentado chegar a uma compreensão dos mistérios da existência empregando o mais severo autodomínio, penitências e privações. Também tal caminho o Buda tentou, mas reconheceu que tampouco este poderia constituir a fonte para sua missão nessa época. Por um certo tempo passou por privações e penitências, tal como faziam os monges. Jejuava com eles para afastar a ganância da vida humana e, deste modo, buscar forças mais profundas, que surgem justamente quando o corpo está enfraquecido pelo jejum. É então que tais forças podem conduzir rapidamente a alma das profundezas do corpo físico ao mundo espiritual. Porém, por ter atingido seu alto grau de evolução, o Buda viu a inutilidade dessas penitências, do jejum, da fome. É que sendo o Bodhisatva ele havia desenvolvido o corpo físico à máxima altura possível de ser alcançada então por um ser humano, devido a seu desenvolvimento em encarnações anteriores. Por isso o Buda também pôde vivenciar o que deve experimentar um ser humano ao trilhar justamente esse caminho para as alturas espirituais.

Quem se integra, até certo grau, na filosofia do Sanquia ou na filosofia da loga sem ter desenvolvido as capacidades que o Buda já adquirira antes, quem quiser alcançar as alturas imaculadas do Espírito Divino por meio do pensamento lógico, sem ter antes adquirido o senso moral no sentido do Buda, deparará com a tentação pela qual o Buda passou experimentalmente e que nos é indicada como a tentação pelo demônio Mara. Aí, o homem chega a ser perpassado por todos os demônios do orgulho, da vaidade, da ambição. O Buda passou por esta experiência. A figura de Mara — a vaidade, a ambição — estava à sua frente; mas por se encontrar no alto nível de um Bodhisatva, ele a reconheceu e tornou-se imune a ela. E soube concluir então que, se a humanidade continuasse a desenvolver-se dentro dos conceitos antigos, sem o novo impulso dos ensinamentos de amor e compaixão, sem adquirir este sentido moral independente, deveria, por não se constituir essencialmente de Bodhisatvas, cair vítima do demônio Mara, que introduz nas almas todas as forças do orgulho e da vaidade. Isto sentiu o Buda em seu íntimo quando viveu a filosofia do Sanquia e a filosofia da Ioga em suas últimas conseqüências.

Porém em seguida, em companhia dos monges, ele teve uma outra vivência. Viu que o demônio assumia uma outra aparência, caracterizada por sua atitude de mostrar ao ser humano todas as riquezas físicas, ‘os reinos do mundo e suas maravilhas’, a fim de desviá-lo do mundo espiritual. Soube que é precisamente ao trilhar a senda da autopunição que se cai nessa tentação, quando o demônio Mara lhe apareceu e disse: “Não te deixes seduzir nem abandones tudo quanto possuías como filho do rei; volta ao palácio real!” Um outro qualquer sucumbiria às aparições tentadoras, mas o Buda estava tão evoluído que podia desmascarar o Tentador. Podia prever o que aconteceria à humanidade se esta prosseguisse

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nessa maneira de viver e quisesse, apenas jejuando, seguir o caminho que a elevaria até os mundos espirituais. Ele mesmo estava protegido, e isto lhe dava condição de alertar a humanidade contra os perigos que se seguiriam caso os homens procurassem penetrar no mundo espiritual apenas pelo jejum e outros meios exteriores, sem o grande fundamento do sentido moral gerado por ação própria.

Desta maneira o Buda, ainda como Bodhisatva, avançou até os dois pontos limítrofes do desenvolvimento humano que para o homem, por não ser ele um Bodhisatva, é aconselhável evitar. Traduzindo-o para uma linguagem comum, diríamos: “A suprema sabedoria é maravilhosa, a suprema sabedoria é bela, mas acerca-te dessa sabedoria com o coração puro, com intenções nobres, com a mente purificada; do contrário, o demônio do orgulho, da vaidade e da ambição te dominará.” E o outro ensinamento é: “Não procures por um caminho exterior qualquer, seja mediante penitência ou jejum, entrar nos mundos espirituais sem teres antes purificado teu sentido moral, pois do contrário o Tentador se insinuará pelo outro lado.” Estes são os dois ensinamentos do Buda que ainda iluminam nossos tempos. Deste modo o Buda, sendo ainda o Bodhisatva, revela-nos o que constitui eminentemente sua missão. Ora, trazer à humanidade este sentido moral, numa época em que os homens ainda não tinham a capacidade de desenvolver tal sentido em seu próprio coração, foi sempre sua missão. Por esta razão, reconhecendo o perigo que o ascetismo representava para a humanidade, ele deixou os cinco eremitas; partiu para onde pudesse, de forma adequada aos nossos tempos, imergir nas possibilidades da natureza humana que podem ser desenvolvidas sem a antiga clarividência, sem o que é herança de outrora. Assim poderia realizar o que há de mais sublime, conduzindo a humanidade através dessas capacidades. Debaixo da árvore, Bodhi, no 29º ano de sua vida, após ter deixado de seguir o caminho unilateral do ascetismo, o Buda encontrava-se numa contemplação de sete dias. Surgiu-lhe então a grande verdade revelada quando alguém procura, em tranqüila e íntima meditação, o que lhe podem conceder as capacidades humanas atuais. Nessa ocasião se lhe revelaram os grandes ensinamentos que ele transmitiu nas chamadas ‘Quatro Verdades’, e a grande lição do amor e da compaixão que ele ensinou na ‘Senda das Oito Sabedorias’. Sobre este ensinamento do Buda ainda falaremos depois. Hoje nos contentaremos em dizer que tais ensinamentos constituem uma descrição do sentido moral da mais pura lição da compaixão e do amor. Eles surgiram na ocasião em que, debaixo da árvore Bodhi, o Bodhisatva da índia transformou-se em Buda. Naquela ocasião, os ensinamentos da compaixão e do amor desabrocharam pela primeira vez na humanidade como uma capacidade humana própria, e desde aquela época o ser humano é capaz de desenvolver em seu próprio íntimo essas qualidades. Isto constitui o essencial. Por esta razão o Buda disse a um discípulo muito chegado, ainda pouco tempo antes de morrer: “Não pranteiem o fato de seu Mestre os deixar. Deixo-lhes um legado. Deixo-lhes a lei da Sabedoria e a lei da Disciplina; estas deverão, futuramente, substituir-lhes o Mestre.” Isto nada mais significava senão: “Até agora o Bodhisatva lhes ensinou o que estava expresso nestas leis; agora, tendo realizado a encarnação completa na Terra, ele pode retirar-se. Pois a humanidade terá plantado em seu próprio coração os ensinamentos que antes lhe haviam sido ministrados por um Bodhisatva e que de agora em diante, a partir do próprio coração, podem desenvolver-se como religião da compaixão e do amor.” Foi isto o que sucedeu na velha índia quando, no decorrer dos sete dias de contemplação interior, o

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Bodhisatva se tornou Buda. Constituiu também o conteúdo dos ensinamentos que, em suas mais variadas formas de expressão, ele podia dar aos discípulos que o rodeavam. Mais adiante verificaremos para que formas ele as verteu.

Tivemos de fazer hoje uma retrospectiva dos acontecimentos decorridos seis séculos antes do início da era cristã. Se, guiados pela leitura da Crônica do Akasha, não houvéssemos retrocedido dos acontecimentos da Palestina até o tempo em que se deu o Sermão de Benares, não compreenderíamos o caminho do cristianismo; principalmente não entenderíamos quem descreveu tal caminho de forma eminente: o escritor do Evangelho de Lucas. Desde que se tornara Buda, o Bodhisatva não tinha mais necessidade de voltar à Terra; desde então era uma entidade espiritual que pairava nos mundos supra-sensíveis e, de lá, devia interferir nos acontecimentos terrestres. E quando estava sendo preparado o mais importante acontecimento na Terra e os pastores se encontravam no campo, apareceu-lhes uma individualidade oriunda das alturas espirituais e anunciou-lhes aquilo que relata o Evangelho de Lucas: “E ao anjo se juntaram ‘legiões celestes’.” De quem se tratava?

Nesta visão, quem se aproximava dos pastores era o Buda transfigurado, o Bodhisatva de tempos passados, aquele ser sob sua forma espiritual que, por milênios afora, havia trazido à humanidade a mensagem da compaixão e do amor. Agora, tendo já deixado sua última encarnação terrestre, ele pairava em alturas espirituais e aparecia aos pastores nas imensidões celestes ao lado do anjo que lhes predizia os acontecimentos na Palestina.

Assim nos ensina a pesquisa espiritual. Ela nos mostra o Bodhisatva dos velhos tempos transfigurado, pairando acima dos pastores. Sim, aconteceu — isso nos ensina a pesquisa do Akasha — que na Palestina, na ‘cidade de Davi’, nasceu uma criança, filha de um casal descendente da linha sacerdotal da casa de Davi. Essa criança — friso bem esta afirmativa — nascida de pais dos quais ao menos o progenitor descendia da linha de sacerdotes da casa de Davi, estava predestinada a ser iluminada e fortificada, desde seu nascimento, por algo que emanava do Buda após este ter sido elevado às alturas espirituais. Então, em companhia dos pastores, olhamos para o estábulo onde Jesus de Nazaré, como geralmente é chamado, nasceu; olhamos e vemos acima da criança o halo da glória, sabendo que nesse halo se expressa a força do Bodhisatva que se tornou Buda. E a força que anteriormente fluíra para as pessoas atuava agora sobre a humanidade, advinda das alturas espirituais e revelando sua maior atuação ao iluminar a criança de Belém, para que esta pudesse integrar-se de modo apropriado à evolução humana.

Quando essa individualidade — que agora enviava toda a sua força das alturas espirituais para cercar a criança nascida de pais descendentes de Davi — nasceu na antiga índia como Bodhisatva, um sábio teve uma visão em que previu toda a grandiosa majestade do fato acima descrito. Tal visão obtida dos mundos espirituais induziu o sábio — Asita era seu nome — a entrar no palácio do rei e procurar pela criança-Bodhisatva. Ao vê-la, predisse sua grandiosa missão como Buda. Naquela ocasião, para consternação do pai, Asita previu que a criança não viria a reger o reino de seu pai, porém se tornaria um Buda. Em seguida prin-cipiou a chorar; ao lhe perguntarem se previa alguma desgraça para a criança, respondeu: “Não! Choro por estar tão velho que não poderei estar entre os vivos quando este Salvador, o Bodhisatva, palmilhar a Terra como Buda!” Asita realmente não presenciou a transformação do Bodhisatva em Buda; suas lágri-mas, portanto, foram perfeitamente justificadas, do seu ponto de vista de então.

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Aquele Asita, que vira o Bodhisatva apenas como criança no palácio de Sudodana, aquele Asita reencarnou-se na pessoa que no Evangelho de Lucas é descrita como Simeão, na cena da ‘apresentação no Templo’ (Lucas 2, 25-35). Simeão, assim relata o Evangelho de Lucas, encontrava-se ‘animado pelo espírito’ quando lhe trouxeram a criança. Fora ele mesmo que, naquela sua encarnação como Asita, chorara por não ter a possibilidade de presenciar a transformação do Bodhisatva em Buda. Fora-lhe reservado o destino de, agora, presenciar o subseqüente grau de evolução dessa individualidade. E como fosse ‘dotado de espírito’ ele pôde, ao ser a criança apresentada no Templo, ver o halo de glória do Bodhisatva transfigurado acima do menino Jesus da dinastia de Davi. Então disse a si mesmo: “Não precisas mais chorar; o que não pudeste ver naquela ocasião tu o vês agora; vês o teu Salvador, transfigurado sobre esta criança; ‘Senhor, deixa teu servo morrer em paz’.”

17 de setembro de 1909

A renovação do budismoQuem se entregar à atuação do Evangelho de Lucas poderá com certeza,

logo de início, ter apenas sensações e sentimentos acerca de seu conteúdo. No entanto, terá o pressentimento de que grandiosos mundos espirituais vêm ao seu encontro a partir desse evangelho. E depois da conferência de ontem, parece-nos compreensível que assim seja; pois vimos que a pesquisa espiritual nos mostra como a cosmovisão budista, com tudo o que devia trazer à humanidade, está inserida no Evangelho de Lucas. Podemos bem dizer que é realmente budismo o que emana deste evangelho para os homens. Esse budismo, no entanto, flui desse documento sob forma toda peculiar, manifestando-se, como já mostramos, de modo mais compreensível para a mais ingênua, a mais simples das almas.

Como já foi possível entrever nas explicações de ontem, e como hoje ficará mais evidente ainda, o budismo como tal, como ensinamento do grande Buda, é uma cosmovisão que só pode ser compreendida por quem atinge certas idéias elevadas, as puras alturas etéricas do espírito. Para se compreender o próprio bu-dismo é preciso muito preparo. No Evangelho de Lucas, a autêntica substância espiritual está presente de forma a poder atuar, de certo modo, em cada alma que ao menos tenha aprendido a compreender a necessidade de deixar fluir para seu coração as mais necessárias idéias e conceitos humanos. A razão disto nos será esclarecida quando desvendarmos o mistério do Evangelho de Lucas. Mas aí as conquistas espirituais não somente vêm ao nosso encontro; elas assumem uma forma sublimada, como que elevadas a um nível superior tal como o possuíam ao serem enviadas à humanidade há seiscentos anos, na velha índia. Por intermédio de uns poucos exemplos, poderemos ter diante da alma em quê consiste esta elevação do budismo.

Ontem designamos o budismo como sendo o mais puro ensinamento a respeito da compaixão e do amor. E a partir do ponto geográfico onde o Buda atuou, flui um evangelho do amor e da compaixão para todas as criaturas da Terra. Esse evangelho da compaixão e do amor, nós o encontramos vivendo no budista autêntico, sincero, quando seu coração compartilha de toda a miséria que

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se lhe depara, no mundo físico, em cada ser vivente. Este é o primeiro contato que temos com o amor e a compaixão budistas, no pleno sentido da palavra. Vemos, porém, que no Evangelho de Lucas vem ao nosso encontro algo além desse amor e dessa compaixão abrangentes. Poderíamos designá-lo como sendo a transformação do amor e da compaixão na atitude necessária à alma. Compaixão, no sentido mais eminente da palavra, é o que deseja o budista; desenvolver um amor atuante é o que procura quem vive no sentido do Evangelho de Lucas. O budista consegue compartilhar da dor do enfermo; porém, é do Evangelho de Lucas que nos chega o incentivo para participar ativamente e contribuir, tanto quanto nos for possível, para o restabelecimento da saúde desse enfermo. Por meio do budismo aprendemos a compreender tudo o que vivifica a alma; não julgar, fazer mais do que nos for feito — eis a estranha exigência que faz o Evangelho de Lucas. Dar mais do que recebemos! O amor transformado em ação é algo que nos deve parecer muito mais elevado ainda, embora o que temos no Evangelho de Lucas seja o mais puro, verdadeiro budismo.

Para que este aspecto do cristianismo, ou seja, a elevação do budismo por intermédio do cristianismo pudesse ser descrito, foi preciso existir um coração como o do autor do Evangelho de Lucas. Compreender o Cristo Jesus como curador das almas e dos corpos era, ao escritor do Evangelho de Lucas, muito mais possível. Para isso ele encontrou as palavras que falam ao fundo do coração, pois ele mesmo atuara como médico e também anotara, do ponto de vista de médico do corpo e da alma, tudo quanto tinha a dizer sobre o Cristo Jesus. Quanto mais nos aprofundarmos no Evangelho de Lucas, mais claramente veremos isso.

Mas um outro fato nos chama ainda a atenção quando nos concentramos em verificar como esse Evangelho de Lucas atua, no sentido mencionado, até mesmo sobre os corações mais infantis. E isto o que nos chama a atenção: os elevados ensinamentos budistas, que podem ser compreendidos apenas por uma inteli-gência bem desenvolvida, por uma disposição anímica muito madura, no Evangelho de Lucas nos parecem como que rejuvenescidos, como que recém-criados. Qual uma fruta na árvore da humanidade — eis como nos parece o budismo. Quando voltamos a encontrá-lo no Evangelho de Lucas, ele se nos afigura como a flor recente, um rejuvenescimento do que existia anteriormente. Cumpre então perguntar: de que forma aconteceu o rejuvenescimento do budismo? Só poderemos compreender isto após havermos estudado seriamente os ensinamentos do grande Buda e visto com nossos olhos espirituais, mediante nosso preparo antroposófico, o que impulsionou a alma do Buda.

Tenhamos em mente que o Buda surgiu do Bodhisatva, isto é, de um ser altamente evoluído, possuidor do dom de penetrar nos mistérios da existência. Pelo fato de ter sido um Bodhisatva, o Buda participara de todos os acontecimentos da evolução humana desde os tempos primordiais. Quando a humanidade surgiu na época pós-atlântica para dar início à primeira cultura desse período e prosseguir mais tarde em sua evolução, o Buda, ainda sob forma de Bodhisatva, já havia transmitido dos mundos espirituais o que mencionamos ontem. Eleja estava presente na época atlântica, e até mesmo na época lemúrica. E por haver alcançado tão elevado grau de evolução foi-lhe possível, em sua existência como Bodhisatva, aos 29 anos de seu último nascimento, antes de tornar-se o Buda, olhar retrospectivamente para suas vidas anteriores e lembrar-se de todas as convivências que tivera antes de haver-se encarnado pela última vez na índia. Ele podia olhar retrospectivamente para suas atuações em favor da humanidade, para sua existência nos mundos divino-espirituais, a fim de trazer

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desse âmbito o que ele deveria legar aos homens. Ontem já mencionamos que mesmo uma individualidade tão elevada tem de repassar, embora muito rapidamente, o que já aprendeu antes. Desta forma o Buda nos descreve como, em seu estágio como Bodhisatva, ele se desenvolveu passo a passo até alcançar uma perfeição cada vez maior em sua visão e sua iluminação espirituais.

Nós lemos o relato de como o Buda descreve a seus seguidores esse acontecimento. No intuito de descrever os caminhos trilhados por sua alma, a fim de poder recordar paulatinamente as vivências de tempos remotos, ele lhes disse: “Houve para mim um tempo, ó monges, em que eu percebia, advindo dos mundos espirituais, um esplendor que tudo abarcava, mas dentro do qual eu nada conseguia distinguir: eu não definia nem imagens, nem formas; minha iluminação não era ainda suficientemente pura. Então principiei a ver não somente a luz, mas algumas imagens e formas em seu interior, não sendo, porém, ainda capaz de distinguir seu significado; minha iluminação ainda não era suficientemente pura. Passei em seguida a reconhecer que nessas imagens e nessas formas se expressavam seres espirituais, mas não conseguia ainda distinguir a que reinos dos mundos espirituais pertenciam; minha iluminação ainda não era suficientemente pura. Mais tarde aprendi a diferenciar a quais reinos dos mundos espirituais pertencia cada um desses seres; contudo, não conseguia reconhecer por quais ações haviam eles conquistado seus lugares nesses reinos, e quais as suas disposições anímicas; pois minha iluminação ainda não era bastante pura. Chegou-me então a ocasião de distinguir os fatos que os haviam colocado nesse reino e quais suas disposições anímicas; mas não conse-guia ainda diferenciar com qual desses seres espirituais eu havia convivido anteriormente e qual meu relacionamento com eles, pois minha iluminação ainda não era bastante pura. Afinal chegou o tempo em que compreendi ter convivido com este ou aquele ser espiritual nesta ou naquela época, tendo estado ligado a eles desta ou daquela maneira; sabia como haviam sido minhas vidas pregressas: agora minha iluminação era pura.”

Com esta descrição Buda fez saber a seus seguidores como, passo a passo, ele evoluíra até alcançar uma cognição já possuída anteriormente, a qual, porém, tem de ser reconquistada a cada nova encarnação, de acordo com as condições da época. Agora ele tivera de reconquistar esse conhecimento de uma forma que correspondesse à sua total descida a um corpo físico humano. Se conseguirmos abordar este fato com os sentimentos, teremos uma noção da importância e da grandeza daquela individualidade significativa que se encarnou no príncipe herdeiro da dinastia Sakya. O que o Buda conseguira reconhecer e entender dessa maneira ele sabia que os homens, com sua visão habitual do presente imediato e do futuro próximo, deviam perder novamente. Somente os iniciados, aos quais o próprio Buda pertencia, podiam penetrar no mundo espiritual; o homem comum havia perdido esta possibilidade, pelo fato de a herança de antigos dons de clarividência estarem desaparecendo. O Buda não tinha, pois, apenas a incumbência de dizer o que deve dizer um iniciado; antes de tudo, era sua missão falar ao homem sobre as forças que devem fluir do âmago da própria alma humana. Assim, ele não somente podia apontar os resultados de sua iluminação, mas também dizer: “Devo falar sobre o que o ser humano poderá alcançar mediante uma evolução superior que seja, porém, uma evolução de seu próprio íntimo, uma evolução do que existe nesta época.” Paulatinamente, no decorrer da evolução terrestre, o ser humano reconhecerá em sua alma, em seu coração, o conteúdo dos ensinamentos do Buda como algo que sua própria razão,

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sua própria alma lhe diz. Mas decorrerá muito tempo antes de todos os homens adquirirem a maturidade para, por assim dizer, extrair de sua própria alma o que o Buda chamou de conhecimento humano puro. É que existe uma diferença entre desenvolver certas faculdades em tempos posteriores e extraí-las, pela primeira vez, das profundezas da alma humana.

Tomemos um outro exemplo. Hoje em dia, o jovem adquire as regras do pensamento lógico. Atualmente, pensar de maneira lógica faz parte das capacidades gerais do ser humano, as quais o homem desenvolve a partir de seu próprio íntimo. Mas para que esta capacidade viesse a irromper do íntimo pela primeira vez, foi preciso existir o grande espírito do pensador grego Aristóteles. Há muita diferença entre extrair pioneiramente algo dos recônditos da alma humana e extraí-lo após este se haver desenvolvido na humanidade durante algum tempo.

O que o Buda tinha por missão dizer aos homens está entre os maiores ensinamentos que perduraram por longo tempo. Por isso foi preciso o grande coração de um Bodhisatva, um ser tão altamente iluminado para, pela primeira vez, fazê-lo presente no homem. Somente quem era um iluminado no mais elevado grau pôde fazer surgir em sua alma, pela primeira vez, algo que deveria tornar-se pouco a pouco um bem comum a toda a humanidade: o elevado ensinamento da compaixão e do amor, bem como de tudo o que se relaciona com estes. O que o Buda tinha a dizer deveria ser antes revestido por palavras, usadas pela humanidade daquela época, mormente por seus compatriotas. Já relatamos como na antiga índia eram ensinadas, no tempo do Buda, as filosofias do Sanquia e da Ioga. Essas filosofias haviam criado os termos e conceitos habitualmente usados. Destes termos conhecidos teria de fazer uso quem tivesse algo de novo a dar; nestes conceitos usuais deveria o Buda expressar as vivências de sua alma. É bem verdade que tais idéias e conceitos, quando empregados pelo Buda, recebiam um aspecto completamente novo; todavia era necessário usá-los, pois toda evolução deve transcorrer de maneira que o futuro se fundamente no passado. Assim, o Buda teve de revestir sua sublime sabedoria com as expressões usuais nos ensinamentos daquele tempo na índia.

Cumpre, no entanto, obtermos uma visão do que o Buda vivenciou sob a árvore Bodhi, por ocasião de sua iluminação de sete dias, como o ensinamento que viria a ser a doutrina mais próxima do coração humano. Tentemos, ainda que só aproximadamente, colocar diante de nossa alma, sob forma de pensamentos, as expressões das mais profundas vivências anímicas que perpassaram a mente do Buda quando este foi iluminado sob a árvore Bodhi. Aí ele pôde cogitar o seguinte: — Houve tempos, na evolução humana, em que muitos possuíam uma clarividência semiconsciente, obscura, e em tempos ainda anteriores a cla-rividência era inerente a todos. Afinal, o que significa ser um clarividente semiconsciente e obscuro? O que quer dizer, em geral, ser clarividente? Ser clarividente significa saber servir-se dos órgãos de seu corpo etérico. Podendo-se usar apenas os órgãos do corpo astral, tem-se a possibilidade de sentir e experi-mentar interiormente os mais profundos mistérios, mas não contemplá-los. Só quando o que vive no corpo astral consegue, por assim dizer, estampar-se no corpo etérico, é que pode manifestar-se a clarividência. Também a antiga clarividência se baseava no fato de os órgãos do corpo etérico ainda não estarem completamente inseridos no corpo físico, possibilitando à antiga humanidade utilizá-los. O que perdeu então a humanidade, no decorrer do tempo? Perdeu a capacidade de poder servir-se dos órgãos do corpo etérico. Aos poucos teve de

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restringir-se ao uso dos órgãos externos do corpo físico e a vivenciar no corpo astral, sob forma de pensamentos, sensações, sentimentos e idéias, algo que só o corpo físico transmite. — Tudo isso perpassou a grande alma do Buda como expressão de suas vivências. Disse ele a si mesmo: “Deste modo a humanidade perdeu a capacidade de servir-se dos órgãos de seu corpo etérico. Em seu corpo astral ela vivência o que experimenta por meio do instrumento de seu corpo físico.”

Agora o Buda podia fazer uma importante ponderação: — Quando a vista percebe a cor vermelha, quando o ouvido ouve um som qualquer, quando o paladar tem qualquer sensação gustativa, sob condições normais estas sensações tornam-se representações, são vivenciadas interiormente no corpo astral. Fossem apenas experimentadas desta forma, não poderiam normalmente ser acompanhadas de dor ou sofrimento. Se o homem deixasse simplesmente agir sobre ele o que atua em seus sentidos de acordo com manifestações de cores, luzes, sons, etc., caminharia pelo mundo sem receber sofrimento ou dor destas impressões. Só a partir de certas condições ele pode sentir dor e tristeza.

Então o grande Buda procurou descobrir tais condições sob as quais o homem experimenta dor e aflição, tristeza e mágoa. Quando é que as impressões do mundo exterior se tornam dolorosas? E por qual motivo se tornam assim, em determinadas circunstâncias?

Ele disse então a si próprio: “Retrocedendo aos tempos antigos, vemos como o homem, ao caminhar pelo mundo em encarnações anteriores, recebia certas influências em seu corpo astral. Tais influências se aproximavam por dois lados, provindo de seres que atuavam sobre a natureza humana. No decorrer das en-carnações durante os tempos lemúricos e os tempos atlânticos, infiltraram-se na natureza humana as entidades que chamamos de luciféricas.” Por esta razão o homem, com o passar dos tempos, absorveu em seu corpo astral as impressões e influências dessas entidades. A partir da época atlântica, ainda atuaram no homem as entidades comandadas por Árimã. Deste modo, em suas encarnações anteriores o homem sofreu a influência das forças que designamos por seres luciféricos e arimânicos. Não houvessem estas forças atuado, o homem não estaria de posse da liberdade, do dom de distinguir entre o bem e o mal, e do livre arbítrio. De um ponto de vista mais elevado, foi bom que estas forças tenham agido sobre o homem; de certo modo, porém, elas também o dis-tanciaram, mais do que era previsto, dos mundos divino-espirituais para uma existência sensorial. Por esta razão o homem, assim pôde concluir o grande Buda, “traz em si determinadas influências que são, por um lado, herança da atuação de Lúcifer e, por outro, de Árimã. Estas lhe restaram de encarnações anteriores — o homem as traz dentro de si”.

Na época em que, graças à sua clarividência nebulosa, o homem ainda vislumbrava o mundo espiritual, ele via as influências de Lúcifer e Árimã, podendo distingui-las perfeitamente: eis uma influência luciférica, eis uma influência arimânica. E enquanto, vislumbrando o mundo astral, percebia as influências nocivas de Lúcifer e Árimã, podia dar-se conta das mesmas, precavendo-se contra elas. Sabia também em que ocasião entrara em contato com tais seres. Houve um tempo — assim pensava o Buda — em que os homens sabiam de onde provêm essas influências que eles trazem dentro de si de encarnação em encarnação. Mas ao se perder a clarividência, perdeu-se também o saber a respeito dessas forças, vindo em seguida a ignorância sobre o que exerceu influência em suas almas durante as encarnações. Em lugar da antiga

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clarividência, surgiu a ignorância. As trevas se espalharam sobre o homem, que não pode mais distinguir de onde vêm as influências luciféricas e arimânicas; apesar disto, ele as carrega consigo. Ele traz em si algo a cujo respeito nada sabe. Seria, naturalmente, simplório negar sua realidade e atuação, embora nada se saiba a seu respeito. No homem atuam as influências que penetraram nele de encarnação em encarnação. Elas estão presentes e agem pela vida toda; só que o homem ignora isso. — Assim refletia o grande Buda.

Como atuam essas influências no homem? Mesmo não podendo reconhecê-las, ele as sente; existe nele uma força que é a expressão do que se manteve vivo através das encarnações, vindo à tona até a vida atual. O que se manifesta nessa força — cuja natureza o homem não pode reconhecer — é a avidez pela vida externa, física: a avidez de absorver o mundo, a sede de viver, o desejo de vida. Assim atuam as antigas influências de Lúcifer e Árimã, expressando-se na sede de viver, no desejo de existir. E essa sede de viver prossegue a cada encarnação.

Foi isto o que disse o grande Buda, tendo esclarecido seu sentido apenas para seus discípulos mais íntimos.

Só poderemos compreender o que o Buda expressava se tivermos um certo preparo por meio da Teosofia5 — pois sabemos que ao morrer o ser humano, no momento da a morte seu eu e seu corpo astral deixam o corpo etérico e o corpo físico. Então o homem encontra, por algum tempo, aquele imenso painel de recordações da última vida, que lhe surge à frente como um grande panorama. Sabemos também que a parte principal do corpo etérico é abandonada como um cadáver, restando algo como um extrato, uma essência do corpo etérico. Esse extrato o homem leva consigo ao atravessar o Kamaloka e o Devachan, voltando com ele na próxima encarnação. Porém, enquanto o homem se encontra no Kamaloka, é gravado nesse extrato de vida tudo o que ele vivenciou como ações, tudo o que atua em relação ao carma e que deverá ser contrabalançado pela atuação na encarnação seguinte. Tudo isto, de certa forma, se amálgama ao extrato do corpo etérico, que passa de uma encarnação a outra. Tudo o que o homem leva de uma encarnação para outra encontra-se nesse extrato do corpo etérico, e o homem o traz consigo ao penetrar na existência pelo novo nascimento. A literatura oriental habituou-se a designar por linga sharira o que chamamos de corpo etérico. Portanto, é um extrato de linga sharira o que o homem leva consigo de encarnação em encarnação.

Agora o Buda podia dizer: “Vejam o homem ao nascer: ele traz gravado em seu linga sharira o que se sedimentou das encarnações anteriores.” Neste linga sharira está inscrito tudo o que o homem do atual ciclo evolutivo ignora. Trata-se do que está encoberto pela obscuridade da ignorância e que, no entanto, se manifesta, quando o homem penetra na vida, sob a forma de sede de existência, de ânsia de viver. No que chamamos de ânsia de viver o Buda divisou todo o resultado de encarnações anteriores, o qual impele ao desejo irrefreado de desfrutar do mundo, não só perambulando como um andarilho no mundo das cores, tons e outros fenômenos, mas cobiçando esse mundo. É isto o que advém das encarnações como uma tendência, como uma força do homem. Esta força os discípulos do Buda chamam de samskara. Assim sendo, disse o Buda a seus 5 Na época deste ciclo de conferências (1909), Rudolf Steiner era membro da Sociedade Teosófica na Alemanha, da qual se desligaria em 1913 por questões de divergência. Entenda-se a palavra ‘Teosofia’, neste trecho, como ‘Antroposofia’, por referir-se à Ciência Espiritual isenta de qualquer sectarismo. (N.E.)

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discípulos mais chegados: “É típico do homem atual nada saber sobre algo de suma importância alojado dentro de seu próprio ser. Essa ignorância transforma o que, em outras circunstâncias, se confrontaria com o homem como algo proveniente de seres luciféricos e arimânicos. Esse algo se transforma na sede de existência e em outras forças dormentes que, trazidas de encarnações anteriores, agitam-se surdamente no íntimo do homem.” É isto o que, sob a influência do Buda, se chama samskara. É este samskara que cristaliza o pensamento do homem moderno, sendo também o que determina, no ciclo humano atual, a dificuldade de pensar objetivamente.

Notem bem a sutil diferença que o Buda faz entre um pensar objetivo, visando apenas ao objeto, e o pensar influenciado pelas forças originárias do linga sharira. Reflitam o quanto nos apropriamos de dados a respeito das coisas como sendo nossa própria opinião; perguntem-se, porém, o quanto os Senhores se apropriam dessas opiniões por lhes parecerem agradáveis, e o quanto observam as coisas objetivamente! Tudo o que adquirimos como verdade, deixando de lado as cogitações objetivas, mas trazendo convicções de encarnações anteriores, evidencia-se ao Buda como um ‘órgão interior do pensar’. Esse órgão do pensar é o conjunto de tudo o que o homem pensa por ter tido estas ou aquelas vivências nas encarnações precedentes, as quais permaneceram como resíduos em seu linga sharira. O Buda via, pois, no íntimo do homem uma espécie de ‘órgão do pensar’ formado pelo conjunto do samskara. E então concluía: somente desse ex-trato do pensar é formada, no homem de hoje, a chamada individualidade atual — no budismo, ‘nome e forma’ ou namarupa. É o mesmo que, vindo de outra linha filosófica, recebe o nome de ahamkara.

O Buda dizia a seus discípulos algo como o seguinte: — Quando, nos tempos arcaicos, os homens ainda eram clarividentes e podiam penetrar no mundo situado detrás da existência física, de certo modo todos eles viam as mesmas coisas, pois o mundo objetivo é igual para todos. Quando, porém, a ignorância do mundo espiritual envolveu o homem em trevas, cada homem passou a trazer consigo predisposições individuais que o diferenciam dos demais. Isto fez dele um ser com este ou aquele ‘tipo’ de alma; cada um possuía um certo ‘nome’ que o distinguia dos outros, um ahamkara.

Portanto, o que o homem criou em seu interior pelas influências remanescentes das encarnações anteriores, o que nele representa ‘nome e forma’ e moldou sua individualidade constitui agora, de dentro para fora, o manas e os cinco órgãos dos sentidos, os chamados ‘seis órgãos’. Notadamente, o Buda não disse que o olho fosse formado apenas de dentro para fora, mas que ao olho se integra algo localizado no linga sharira e trazido dos estágios anteriores da existência. Por esta razão, o olho não vê claramente; ele veria algo diferente no mundo da existência exterior se não fosse permeado pelo que remanesce de encarnações precedentes. Por esta mesma razão o ouvido não recebe os sons puros, e sim destituídos de clareza, abafados pelo que resta de graus anteriores de existência. E tal fato propicia a infiltração do desejo de ver isto ou aquilo, ouvir isto ou aquilo, saborear ou perceber deste ou daquele modo. Assim, em tudo com que se depara o homem na vida presente se insinua o que resta de encarnações anteriores como ‘desejo’.

Se esse desejo oriundo de vidas precedentes não se infiltrasse — algo assim disse o Buda —, o homem fitaria o mundo como um ser divino, deixaria o mundo atuar sobre ele, não ambicionando mais, não desejando mais do que lhe é conferido. Ele não ultrapassaria com seu saber os conhecimentos que lhe foram

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presenteados pelos espíritos divinos; não estabeleceria diferenças entre si e o mundo exterior, e sentir-se-ia como um membro desse mundo. Ora, o motivo pelo qual o homem se sente separado do mundo que o rodeia é o desejo de possuir mais, possuir algo diferente das satisfações que, espontaneamente, o resto do mundo lhe oferece. Como conseqüência, penetra-lhe na alma a consciência de que ele é diferente do mundo. Estivesse ele satisfeito com o que existe no mundo, não se distinguiria deste. Sentiria sua própria existência prolongando-se no mundo à sua volta. Não conheceria o que chamamos de contato com o mundo exterior, por não sentir-se separado desse mundo; não poderia, em tais condições, experimentar um contato externo com ele. Por terem sido desenvolvidos os ‘seis órgãos’ é que aos poucos surgiu este ‘contato com o mundo exterior’, tendo-se desenvolvido por seu intermédio o que em nossa vida chamamos de sensações, pelas quais adquirimos o ‘apego ao mundo exterior’. Contudo, é pelo fato de o homem procurar apegar-se ao mundo exterior que sur-gem a dor, o sofrimento, a preocupação, a aflição.

Foram estas as palavras do Buda a seus discípulos a respeito de experiências interiores do homem. É nestes sentimentos interiores que se encontra a causa para a existência de dor e sofrimento, aflição e preocupação no mundo dos homens. Tratava-se uma teoria sutil, de uma teoria elevada, porém diretamente oriunda da própria vida, pois um ‘iluminado’ a sentira como a mais profunda verdade acerca da humanidade atual. Por milênios e mais milênios, sendo ainda um Bodhisatva, o Buda conduzira a humanidade aos ensinamentos do amor e da compaixão. Agora, tendo-se tornado Buda, fora-lhe revelada a verdadeira natureza do sofrimento na humanidade atual, a partir de suas origens e causas. Por isso, ele podia transmitir, a seus discípulos mais próximos, o motivo do sofrimento dos homens.

E assim, tendo alcançado a possibilidade de vivenciar o cerne da existência humana para o atual ciclo evolutivo, ele pôde resumir tudo isto no famoso ‘Sermão de Benares’, a predica com a qual deu início à sua atuação como Buda. Aí ele ensinou, de uma maneira compreensível a todos, o que de um modo mais íntimo participara anteriormente aos discípulos: “Quem conhece as causas desta existência humana sabe que a vida, tal como é, deve conter sofrimentos, deve conter dores. O primeiro ensinamento que devo dar-lhes é o ensinamento do sofrimento do mundo. O segundo é o das origens do sofrimento. Onde se encon-tram as causas do sofrimento? Elas estão no fato de o desejo, a sede de existir proveniente de encarnações anteriores penetrar sorrateiramente no homem. Sede de viver é a origem do sofrimento. O terceiro ensinamento é o seguinte: — Como pode o sofrimento ser extinto do mundo? Naturalmente, ele será extinto se sua origem for eliminada, se a sede de existência, nascida da ignorância, for mitigada; pois as pessoas passaram do antigo saber clarividente para uma ignorância que lhes encobre os mundos espirituais. Esta ignorância é culpada da sede de viver. E essa sede, por sua vez, é causa de sofrimentos e dores, preocupações e inquietações; ela precisa desaparecer do mundo, para que também possam desaparecer do mundo a dor e o sofrimento, a inquietação e a preocupação. O antigo saber desapareceu do mundo; os homens já não podem fazer uso dos órgãos de seu corpo etérico. Contudo, é possível ao homem adquirir um novo saber: aquele que ele poderá obter se procurar aprofundar-se in-tensamente no que seu corpo astral pode oferecer mediante as forças mais ocultas e com a ajuda das observações que os órgãos sensoriais permitem. Porém o que é incentivado por meio dessa observação no corpo astral, em suas forças

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mais profundas, ocorre pelo emprego do corpo físico, mas não se desenvolvendo a partir desse uso: por ora isso só poderá ajudar o homem e propiciar-lhe um novo saber, pois é este o saber que ora lhe é destinado.” Foi assim que Buda se pronunciou em seu grande discurso inicial no mundo.

“Portanto,” queria ele dizer, “preciso transmitir à humanidade o saber conquistável pelo desenvolvimento máximo das forças do corpo astral”. Por esta razão, o Buda devia ensinar o que o homem pode adquirir mediante uma profunda imersão nas forças do corpo astral. Desta maneira ele adquire um saber que lhe convém agora, que lhe é facultado adquirir no presente, mas que ao mesmo tempo é um saber em nada relacionado com as influências de encarnações precedentes. O Buda queria transmitir à humanidade um conhecimento em nada relacionado com o que está adormecido na alma humana como samskara, à mercê da ignorância e da obscuridade. Tal conhecimento poderá ser adquirido quando, no decorrer de uma encarnação, forem despertadas todas as forças existentes no corpo astral.

“O motivo do sofrimento do mundo”, dizia o Buda, “é que das encarnações anteriores remanesceu algo cuja existência o homem ignora. O que ele traz de encarnações anteriores é o motivo pelo qual se propagou dentro dele a ignorância a respeito do mundo; esta ignorância é o motivo do sofrimento e da dor, do pesar e da preocupação. Porém quando ele se tornar consciente das forças que jazem em seu corpo astral, nas quais ele poderá penetrar, então poderá, se assim quiser, adquirir um conhecimento que permaneceu independente das coisas anteriores, um conhecimento próprio”.

Era este o saber que o Buda queria transmitir aos homens. E assim ele o fez na chamada ‘Senda das Oito Sabedorias’. Desejava assim assinalar as forças que deverão ser desenvolvidas pelo homem para que, no atual ciclo de evolução humana, ele alcance um saber isento de influências de repetidas encarnações. Portanto o Buda, pela força que adquiriu, elevou sua alma ao nível só atingível por intermédio das mais intensas forças do corpo astral. Com a Senda das Oito Sabedorias ele desejava indicar à humanidade o caminho pelo qual esta pudesse alcançar um saber livre das influências do samskara. Ele o definiu do seguinte modo:

O homem obtém conhecimento a respeito do mundo adquirindo uma opinião correta sobre as coisas, uma opinião independente de simpatia e antipatia — procurando, de acordo com suas forças e conforme se lhe apresenta o mundo exterior, obter a opinião correta a respeito das coisas. Isto é o principal — a ‘opinião correta’ a respeito de algo.

Em segundo lugar, é necessário tornarmo-nos independentes do que restou das encarnações anteriores, esforçando-nos por julgar apenas de acordo com nossa opinião correta, livres de quaisquer influências. Por conseguinte, o ‘julgamento correto’ é o segundo fator importante.

O terceiro caminho é nos esforçarmos, ao comunicar-nos com o mundo, por expressar corretamente o que queremos dizer, o que consideramos e julgamos com acerto; é não deixarmos que em nossas palavras se insinue qualquer coisa além de nossa própria opinião, e não somente em nossas palavras, mas também em todas as manifestações do ser humano. Esta é a ‘palavra correta’, de acordo com o Buda.

Em quarto lugar é necessário nos esforçarmos por não conduzir nossos atos seguindo nossas simpatias ou antipatias, isto é, segundo o que obscuramente agita nosso íntimo como samskara; devemos permitir que se transforme em ato o

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que compreendemos ser nossa opinião correta, nosso julgamento correto, nossa palavra correta. Trata-se, portanto, da ação correta, da ‘maneira correta de agir’.

Em quinto lugar é necessário ao homem, a fim de libertar-se do que vive nele, conquistar sua posição correta no mundo. Poderemos compreender melhor o que o Buda queria exprimir se pensarmos da seguinte maneira: — Há tantas pessoas no mundo insatisfeitas com sua tarefa, julgando que estariam melhor colocadas neste ou naquele lugar! Mas o homem deveria conquistar a possibilidade de extrair o melhor da situação em que o colocou o nascimento ou o destino: alcançar, portanto, a melhor posição. Quem não se sente satisfeito em sua posição atual tampouco conseguirá extrair dela a força para atuar corretamente no mundo. A isto Buda chamou conquistar o ‘lugar correto’.

A sexta indicação é esforçarmo-nos por tornar um hábito dentro de nós tudo o que adquirimos por intermédio da opinião correta, do juízo correto, etc. Nascendo no mundo, desenvolve mos determinados hábitos. A criança mostra preferências ou costumes. O homem, contudo, deveria esforçar-se para não conservar os hábitos advindos do samskara, mas apropriar-se dos que aos poucos se lhe tornam próprios a partir da opinião certa, do pensamento certo, da palavra certa e assim por diante. Estes são os ‘hábitos corretos’ que devemos adquirir.

A sétima condição é colocarmos ordem em nossa vida, não esquecendo o ontem quando precisamos agir hoje. Se fôssemos obrigados a aprender sempre de novo todas as habilidades, nunca conseguiríamos realizar coisa alguma. O homem precisa tentar desenvolver uma memória a respeito de todas as coisas de sua existência. Precisa sempre utilizar o que já aprendeu, precisa ligar o presente ao passado. Portanto, a ‘memória correta’, como é designada pelo budismo, deve ser adquirida pelo homem na Senda das Oito Sabedorias.

E a oitava conquista é o que o homem obtém quando não demonstra preferência por esta ou aquela opinião, quando não permite manifestar-se o que lhe restou de encarnações anteriores: quando simplesmente se entrega às coisas, aprofunda-se nelas e deixa que apenas elas lhe falem. Esta é a ‘contemplação correta’.

Esta é a Senda das Oito Sabedorias da qual o Buda falou a seus discípulos, dizendo-lhes que segui-la levaria à extinção gradativa da sede de existência, trazendo à alma algo que a livraria de tudo o que procede de existências anteriores e a torna escrava. Deste modo assimilamos também parte do espírito e da origem do budismo. Com isto, entretanto, ficamos também sabendo o significado da transformação do antigo Bodhisatva em Buda. Sabemos que o antigo Bodhisatva sempre fez com que fluísse para a humanidade tudo o que se relaciona com sua missão. Em tempos anteriores ao aparecimento do Buda na Terra, a humanidade não era capaz de usar suas forças interiores de forma a, por si própria, empregar a palavra certa ou fazer um julgamento correto. Para que isso sucedesse, influências dos mundos espirituais deveriam jorrar sobre os homens. Isto se realizou por intermédio do antigo Bodhisatva. Por esta razão, foi um acontecimento ímpar o fato de o antigo Bodhisatva se haver tornado Buda — agora ensinando o que anteriormente fazia fluir para os homens, por haver entregue ao mundo um corpo capaz de desenvolver dentro de si as forças que anteriormente só podiam fluir vindas do alto. Como um primeiro corpo deste tipo, o Buda colocou no mundo o de Gautama Buda. Neste se concentrou pela primeira vez tudo o que anteriormente ele fizera fluir das alturas. É de grande significado para a evolução do mundo que esse conteúdo fluído para a Terra através das épocas se haja encarnado num homem que caminhava sobre ela. Afinal, agora é

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criada uma força que poderá ser transmitida a todas as pessoas. No corpo físico do Gautama Buda se encontrarão sempre, por todos os tempos futuros, as fontes para que a humanidade possa desenvolver dentro de si as forças da Senda das Oito Sabedorias. Deste modo, a Senda das Oito Sabedorias pode tornar-se propriedade de cada pessoa. O fato de ter existido o Buda conferiu aos homens a possibilidade de pensar com acerto. E tudo o que suceder neste sentido, até que a humanidade toda haja adquirido as oito sabedorias, se deverá à existência do Buda. O que o Buda abrigava em si ele o deu aos homens como alimento espiritual. Nenhuma ciência exterior reconhece estas coisas, ainda hoje. Porém muitas vezes as mais antigas lendas e contos nos relatam esses grandiosos acontecimentos da evolução da humanidade. Várias vezes eu enfatizei que os contos e lendas são freqüentemente mais sábios e científicos do que nossa ciência objetiva. A profundeza da alma humana sempre pressentiu algo especial emanando como verdade de uma entidade como o Bodhisatva. O fato de primeiramente fluir das alturas cósmicas algo que depois se transforma gradativamente em propriedade da alma, sendo novamente refletido por esta para o espaço cósmico, era sentido pelas pessoas como algo muito especial. E os que o pressentiam, ainda que obscuramente, diziam a si mesmos: “Tal como os raios do Sol brilham no espaço celeste, assim antigamente a força do Bodhisatva enviava para a Terra as forças contidas na Senda das Oito Sabedorias; depois disso, o Bodhisatva veio habitar por completo um corpo humano e entregou à humanidade o que até então só constituíra propriedade sua. Trata-se do que ora vive na humanidade e é refletido para o Cosmo, tal como o luar reflete para lá os raios solares.” Tal acontecimento era sempre considerado algo muito importante em lugares onde essas verdades se expressavam em lendas e contos. Por isso, no intuito de expressar tais verdades a respeito do Bodhisatva se criou, nos lugares por onde ele passou, um estranho conto. O grande acontecimento foi relatado na singeleza da seguinte história:

Uma vez o Buda viveu como coelho. Era uma época em que os mais diversos seres estavam à procura de alimento, mas todo alimento se extinguira. O que o próprio coelho podia tomar como alimento, os vegetais, não era apropriado para os seres carnívoros. Resolveu então o coelho — que na realidade era o Buda —, ao se aproximar um brâmane, sacrificar-se servindo de alimento. Nesse instante veio o deus Shakra e viu o ato glorioso do coelho. Em seguida o deus tomou de uma tintura e desenhou a forma do coelho sobre a Lua. E desde aquela época pode-se ver a figura do Buda, como um coelho, na Lua.

No Ocidente não se fala do ‘coelho na Lua’, e sim do ‘homem na Lua’.Um conto calmuco relata ainda com maior clareza:Na Lua vive um coelho que certa vez chegou lá porque o Buda se sacrificou e

o próprio espírito da Terra pintou a imagem do coelho na Lua.Assim se expressa a grande verdade a respeito da transformação do

Bodhisatva em Buda, e como o Buda se ofertou a si próprio, dando à humanidade por alimento o que constituía seu próprio conteúdo, de modo que, a partir dos corações dos seres humanos, seus raios possam agora iluminar o mundo.

A respeito de uma entidade como a do Bodhisatva que se tornou Buda, dissemos — e este é o ensinamento de todos os que sabem —: quando tal entidade evolve de Bodhisatva a Buda, esta é sua última encarnação terrestre, quando todo o ser desabrocha num corpo humano. Não se repete para ele uma

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incorporação semelhante. Por conseguinte, ao sentir o significado de sua exis-tência presente, o Buda podia concluir ser aquela a última encarnação, não havendo outra para ele na Terra. Contudo, seria errôneo julgar que uma entidade assim se afastaria por completo da vida terrestre. Ela atua novamente na vida da Terra. Para tanto, realmente não se integra mais num corpo físico, mas adota um corpo — seja constituído por substâncias astrais, seja por substâncias etéricas — e, deste modo, prossegue atuando no mundo. E a maneira como atua, após ter percorrido a última encarnação terrestre que lhe coube, poderá ser a seguinte:

Um homem comum, constituído dos corpos físico, etérico, astral e do eu, poderá ser permeado por uma tal entidade. Um ser que já não desça até um corpo físico, mas ainda possua um corpo astral, poderá integrar-se no corpo astral de outra pessoa, atuando nela. Esta pessoa poderá então tornar-se importante personalidade, pois nela trabalham as forças de uma entidade que já completou sua última encarnação na Terra. Assim, uma tal entidade astral se une à entidade astral de qualquer ser humano na Terra. Tal união pode processar-se de maneira muito complicada. Quando o Buda apareceu aos pastores sob forma de ‘legiões celestes’, não se encontrava num corpo físico, mas num corpo astral. Usava um corpo astral por cujo intermédio poderia atuar na Terra. Podemos, portanto, distinguir, num ser como o que se transformou em Buda, uma tríplice corporalidade.

Primeiramente, há o corpo espiritual que lhe pertencera antes de ele alcançar o estágio de Buda, quando atuava das alturas celestes sob forma de Bodhisatva. Trata-se de um corpo que não contém todo o necessário para este ser poder agir; ele se encontra ainda nos mundos espirituais e está ligado à sua missão anterior, da mesma maneira como o Bodhisatva estava ligado ao Buda antes de transformar sua missão em missão do Buda. Pelo tempo em que tal entidade se encontra nesse corpo, este recebe o nome de darmakaya.

Em segundo lugar, há o corpo que tal ser plasma, possuindo-o em si, e mediante o qual, expressa fisicamente tudo o que traz dentro de si; esse corpo é chamado samboyakaya ou o ‘corpo da perfeição’.

Em terceiro lugar, há o corpo espiritual que tal entidade adquire após ter alcançado a perfeição, podendo atuar das alturas espirituais da maneira já descrita. A este corpo chamamos nirmanakaya.

Podemos, portanto, dizer que o nirmanakaya do Buda apareceu aos pastores sob forma de legiões de anjos. O Buda resplandeceu em seu nirmanakaya e revelou-se desta forma aos pastores. Contudo, deveria procurar ainda outros meios para influenciar os acontecimentos da Palestina nessa importante época. Isso sucedeu da forma relatada a seguir.

Para compreendê-lo, é preciso rememorar muito rapidamente nossos conhecimentos sobre o ser humano obtidos das palestras antroposóficas. Sabemos que na Ciência Espiritual distinguimos vários ‘nascimentos’. No nascimento chamado físico, o ser humano despe o envoltório materno. Com o sétimo ano de vida, livra-se do envoltório etérico que o envolve até então, isto é, até o início da segunda dentição, tal como antes do nascimento físico o envolvera o âmnio; e com a puberdade — portanto, por volta do 14º ou 15º ano de vida em nossa época —, o ser humano despe o que o envolve até esse momento como um envoltório astral. Portanto, somente no sétimo ano de vida o corpo etérico do homem nasce como um corpo livre para o exterior, e o corpo astral do homem nasce com a puberdade; o envoltório astral é então despido.

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Vejamos o que é abandonado com a puberdade. Nas regiões em que se desenrolavam os acontecimentos da Palestina, a puberdade iniciava-se um pouco mais cedo — em condições normais, por volta dos doze anos; era esta a idade, pois, em que o envoltório astral era abandonado. Habitualmente, este envoltório é despido e entregue ao mundo astral. Com aquela criança descendente da linha de sacerdotes da casa de Davi, sucedeu algo diferente. No 12Q ano de vida, seu envoltório astral foi retirado, porém não se dissolveu na astralidade universal; ao contrário, esse envoltório astral protetor do jovem, tal qual se apresentava com todas as forças vivificadoras que recebera durante o tempo da dentição e da puberdade, uniu-se ao que descera das alturas celestes na qualidade de nirmanakaya do Buda. O que aparecera fulgurante sob forma de legião de anjos uniu-se ao que se desligou sob forma de envoltório astral do jovem Jesus, na idade de doze anos. Juntou-se a todas as forças juvenis que fortificam um jovem no período entre a segunda dentição e a adolescência. O nirmanakaya do Buda, que iluminara o menino Jesus desde seu nascimento, tornou-se uno com o que, como envoltório astral, desligou-se dessa criança na puberdade; isto ele absor-veu, e com tal comunhão rejuvenesceu. E, devido a esse rejuvenescimento, tornou-se possível reaparecer no menino Jesus, sob forma de inocência infantil, o que outrora o Buda havia doado ao mundo. Desta maneira a criança teve a possibilidade de falar com expressão infantil a respeito dos elevados ensinamentos da compaixão e do amor que hoje caracterizamos de modo tão com plexo. Por ocasião de sua alocução no Templo, Jesus falou de modo a surpreender todos os que o rodeavam. Isto porque o envolvia o nirmanakaya do Buda, rejuvenescido pelo envoltório astral do menino.

O investigador espiritual pode perfeitamente conhecer essas qualidades esotericamente colocadas pelo escritor do Evangelho de Lucas nas estranhas cenas de Jesus aos doze anos no Templo, onde repentinamente ele se transformou. Assim é ensinado, no Evangelho de Lucas, o budismo de maneira a poder ser compreendido pelo mais infantil dos corações. É isto o que precisamos compreender. Então saberemos por que o jovem já não fala como anteriormente. Tal como se expressava antes, fala agora, nessa época, aquele que como rei Kanishka, na antiga Índia, conclamara um sínodo e fizera anunciar aí o antigo budismo como uma doutrina ortodoxa. Mas nesse ínterim o próprio Buda evoluíra. Ele havia assimilado as forças do envoltório astral do menino Jesus, e em conseqüência tornara-se capacitado a falar de nova forma aos corações humanos.

É assim que o Evangelho de Lucas contém o budismo sob nova forma, como que banhado numa fonte de juventude, e por isso revela a religião da compaixão e do amor de uma maneira compreensível ao mais simples dos corações. Podemos ler isso. É o que o escritor do Evangelho de Lucas deixou subentendido nele. Porém, algo mais está contido aí. Apenas uma parte do que a cena do Templo abriga pôde ser descrita hoje; ainda deveremos aprofundar-nos muito mais para trazer luz a esses mistérios. Então também recairá uma luz sobre acontecimentos precedentes e épocas posteriores da vida de Jesus de Nazaré.

18 de setembro de 1909

O encontro entre o Buda e Zaratustra4

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Os fatos que fundamentam os Evangelhos, principalmente o Evangelho de Lucas, tomar-se-ão cada vez mais sutis no decorrer das próximas conferências; e por este motivo, peço considerarem, desta vez ainda mais do que nas anteriores, que as conferências perfazem uma série, que o conteúdo realmente prossegue de uma para outra, não sendo possível compreender uma conferência isolada ou algumas delas sem relação com as demais. Isto diz respeito especialmente às conferências de hoje e amanhã; convém ainda que somente amanhã os Senhores se questionem a respeito de diversos pontos que serão abordados hoje, relacionando-os com outros já abordados anteriormente em outros ciclos e que apenas aludiram a este tema.

Finalizamos ontem dizendo que o nirmanakaya do Buda se revelou ao nosso mundo no momento que, no Evangelho de Lucas, se expressa como sendo a anunciação aos pastores. Deixamos também entrever que o rejuvenescimento da cosmovisão budista — que fluiu para dentro do cristianismo e por este meio foi doado ao mundo — surgiu pelo fato de o envoltório astral que se separa do ser humano por ocasião da puberdade, estando, portanto ligado ao Jesus-menino, ter sido absorvido pelo nirmanakaya do Buda, unindo-se a ele no 12Q ano da vida de Jesus. Por isto, a partir desse momento defrontamos um ser que na realidade é constituído pela junção do nirmanakaya, o corpo espiritual do Buda, com o envoltório astral que, como uma espécie de manto astral, se desligava do menino Jesus aos doze anos de vida.

Cumpre agora considerar o seguinte: — Se na vida comum, durante o desenvolvimento do homem, esse envoltório astral se desprende, nascendo o corpo astral propriamente dito do homem, o envoltório astral se dissolve no mundo astral. Neste caso, o envoltório astral do homem comum no presente ciclo evolutivo não terá utilidade para uma entidade tão elevada como o era o Buda em seu nirmanakaya. Esse envoltório astral, que fora despido e de cuja união com o nirmanakaya do Buda resultou o rejuvenescimento do budismo, devia, portanto, apresentar algo bastante peculiar. Em outras palavras, no menino Jesus devia abrigar-se uma entidade muito especial; nesse corpo de Jesus devia estar encarnada uma entidade fora do comum, para que dela, nos primeiros doze anos de vida, emanassem as forças que em seguida formariam o envoltório astral dotado, por sua vez, daquelas forças rejuvenescedoras mencionadas ontem. Portanto, não devia tratar-se de um ser humano comum, e sim de uma entidade excepcional — aquela que cresceu no menino Jesus até os doze anos, tendo o poder de irradiar todas as forças que realizaram tal rejuvenescimento no envoltório abandonado.

Se quisermos ter uma idéia de como uma criança pode atuar sobre seus envoltórios de maneira bem diferente da usual, teremos de aproximar-nos, ao menos comparativamente, dos fatos então ocorridos. Quero, portanto, usando de uma comparação, tornar-lhes compreensíveis os acontecimentos daquela época.

Se acompanharmos uma vida humana em sua evolução desde o nascimento até idades mais avançadas, até o vigésimo, trigésimo, quadragésimo ano, decorrendo ela normalmente, poderemos ver como as várias forças em estado nascente, ou que somente ao nascer são implantadas, pouco a pouco vêm à tona. A criança cresce no âmbito físico, mas também cresce espiritualmente. Pouco a pouco se desenvolvem suas forças anímicas (a maneira como isto sucede pode ser acompanhada em meu livro A educação da criança segundo a Ciência Espiritual). Procurem entender como a criança desenvolve gradativamente as for-ças emotivas e as forças do intelecto — como com o sétimo, o 14º ou o 21º anos

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de vida aparecem estas ou aquelas forças inexistentes antes, ou como as já existentes aparecem em maior proporção. Procurem fazer presente o que se passa durante a vida normal do homem, e imaginem agora que quiséssemos fazer uma experiência nesse campo, ‘uma experiência de vida’ — oferecer a um ser humano recém-nascido a possibilidade de um desenvolvimento não inserido nas normas do nosso ciclo evolutivo, adequadas a uma vida normal, mas criássemos para ele uma oportunidade, artificialmente imposta, no seguinte sentido: que ele absorvesse de modo diferente o que qualquer outro aprende normalmente, por exemplo, dos doze aos dezoito anos, e que não fizesse suas aquisições da maneira habitual, como as outras pessoas o fazem, e sim a alma as absorvesse com uma disposição vigorosa, de maneira a não se apropriar dos ensinamentos conforme o fazem as outras pessoas. Com uma certa força renovadora de sua alma, ele atuaria sobre as coisas. E suponhamos que, por meio de um artifício, quiséssemos tornar esse ser humano especialmente produtivo. Neste caso não deveríamos deixar a criança crescer como outras crianças normalmente crescem.

Queremos, pois, tentar uma experiência hipotética de vida. Friso, porém, o sentido apenas hipotético deste exemplo, que não foi cogitado para ser executado na prática; eu o utilizo apenas para esclarecer algo por comparação, e de modo algum o recomendo como ideal educativo.

Portanto, queremos fazer de certa pessoa um gênio especialmente inventivo, que não só vivifique a capacidade de pensar, mas possa prosseguir desenvolvendo criativamente tais capacidades a fim de que, em idade avançada, elas resultem em produtividade mais elevada. Neste caso, antes de tudo devería-mos proteger tal criança dos métodos habituais de ensino, evitando que recebesse o programa educativo normal para crianças de seis e sete anos em diante. Teríamos de afastá-la dos assuntos escolares em voga e guiá-la de modo que, a partir dessa época, ela aprendesse o menos possível do que é ensinado às outras crianças. Teríamos de conservá-la brincando infantilmente até os dez, onze anos, e ensinar-lhe o menos possível as matérias escolares de modo que aos nove anos, possivelmente, ela não soubesse ainda somar, e aos oito lesse ainda muito mal. Então, teríamos de começar somente aos oito, nove anos com tudo o que uma criança, via de regra, começa aos seis, sete anos. Neste caso, as forças dessa pessoa se teriam desenvolvido de modo muito diferente; sua alma modificaria tudo o que lhe fosse ensinado. Tal criança conservaria suas forças infantis até os dez, onze anos, as quais, de outra maneira, seriam oprimidas pelo ensino tradicional. Deste modo ela se aproximaria dos assuntos com uma força anímica ardorosa, aproveitando-os de maneira completamente diversa. Por esta razão, suas capacidades se tornariam especialmente produtivas. Deveríamos, portanto, conservar a infância de uma criança durante o mais longo tempo possível; então o clarividente perceberia que o envoltório astral original, a ser desprendido com a puberdade, possui de fato forças bem diversas daquelas en-contradas habitualmente: são forças juvenis, vigorosas. E esse envoltório astral poderia servir para uma entidade como, em nosso caso, o nirmanakaya do Buda.

Por meio de semelhante experiência não se alcançaria tão-somente o prolongamento da juventude, mas também se possibilitaria a penetração de certas forças infantis e juvenis no envoltório astral original, as quais poderiam ser utilizadas outra vez no mundo de tal modo que um ser, descendo das alturas espirituais, pudesse alimentar-se dessas forças e rejuvenescer.

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Contudo, essa experiência não deveria ser feita, pois não constitui um ideal pedagógico. Há certas coisas que, ainda hoje, os homens devem deixar a cargo dos deuses. Os deuses têm capacidade para isso; os homens ainda não podem executá-lo corretamente. E se em algum lugar os Senhores ouvirem dizer que de-terminada personalidade, cuja atuação deveria ser de grande estímulo para uma área específica, foi por muitos anos considerada tola, inábil, estúpida, tendo somente mais tarde ‘despertado’, é porque os deuses realizaram essa experiência: conservaram sua infância para além daqueles anos e assim prepararam-na para aprender, numa época mais avançada da vida, o que normalmente se aprende mais cedo. Um exemplo vivo são as crianças muito espertas, que captam com facilidade o que lhes contamos e, ao ingressar na escola, parecem nada querer aprender. Neste caso, os deuses estão realizando a experiência que acabamos de caracterizar.

Algo semelhante, porém em dimensões muito mais amplas, deveria suceder com a criança que crescia como menino Jesus e que deveria entregar ao nirmanakaya do Buda seu envoltório astral infinitamente fecundo. Tratou-se do mesmo caso. Deparamos aqui com um fato misterioso, diante do qual temos a liberdade de acreditar ou não, mas que hoje já pode ser exposto a um antropósofo bem preparado, podendo também ser provado. Examinem todos os fatos que se lhes deparam nos Evangelhos ou na História em sua expressão usual, e verão todos os acontecimentos confirmados pelos fatos exteriores do plano físico, bastando para isto focalizá-los de maneira correta e não fazer um julgamento apressado. O que o ocultista revela e que são verdades dos mundos superiores, ele o transmite à humanidade como uma garantia — e, tendo-o obtido das fontes certas, diz então: “Podeis averiguar com a maior exatidão possível; se fizerdes esta averiguação do modo certo, encontrareis confirmada a veracidade em tudo o que possa ser encontrado em documentos escritos ou nos outros fatos científicos do mundo físico.” Por conseguinte, para o casal mencionado no Evangelho de Lucas deveria nascer uma criança de natureza única, uma criança que já trouxesse consigo uma força juvenil, forças muito especiais da infância, que lhe conservassem o mesmo vigor do início, o ímpeto e a disposição para uma meta. Era isto o que deveria acontecer.

Em condições normais, não seria possível encontrar nem pais nem uma criança dotada de tais forças infantis e juvenis com o vigor necessário. Em toda a humanidade daquele tempo, considerando-se apenas as condições normais, não teria sido possível encontrar a individualidade e os pais imprescindíveis para tal encarnação se não tivesse havido também a possibilidade de algo muito especial. O que se fez possível, só conseguiremos compreendê-lo recordando-nos de muitas coisas que já conhecemos por nosso preparo antroposófico.

Sabemos que a humanidade atual remonta, através de várias eras, a uma humanidade primordial que designamos como a da antiga época atlântica; esta, por sua vez, se retrocedermos em mais algumas épocas, remonta à chamada época lemúrica. A Ciência Espiritual pode mostrar-nos fatos bem mais diversos a respeito da evolução humana do que a ciência materialista, que só se prende as manifestações físicas. A Ciência Espiritual nos mostra que a humanidade passou pelo estágio da cultura greco-romana, precedida pela cultura egipto-caldaica, pelo sistema cultural da antiga Pérsia e da antiga índia. Retrocedemos assim até aquela grande, formidável catástrofe que, em certa ocasião, varreu a Terra, modificando-lhe completamente o semblante. Antes dessa destruição existia, no lugar onde habitualmente se encontra o Oceano Atlântico, um vasto continente: a

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velha Atlântida. E as regiões hoje habitadas pelos povos europeu, asiático e afri-cano estavam, naquela época, em grande parte ainda encobertas pelas águas do mar. Devido à grande catástrofe atlântica que se desenrolou no elemento hídrico da Terra, a face desta se modificou. Antes de tal acontecimento, a humanidade habitava principalmente o continente da Atlântida. Ali se desenvolvia ela. Eram seres humanos com organização bem diversa da humanidade atual. Isto já foi descrito muitas vezes. Ao se aproximar o período da catástrofe atlântica, os grandes guias clarividentes e os sacerdotes da humanidade puderam prevê-la, e por esta razão reconduziram uma parte dos homens em direção ao Oriente e outra em direção ao Ocidente. Os que foram guiados para o Ocidente constituíram os ancestrais dos posteriores povos americanos. Portanto, é entre os antigos atlantes que devemos procurar os ancestrais de nossa humanidade.

Esses homens que habitavam a Atlântida eram, por sua vez, descendentes de seres humanos ainda mais longínquos, de uma aparência muito diferente daquela que possuíam os atlantes. Eles habitavam um continente situado entre as atuais Ásia, África e Austrália — a antiga Lemúria. Uma descrição bem detalhada consta em meu livro A ciência oculta; portanto, salientarei agora apenas o que necessito no momento.

Quando, através da Crônica do Akasha, volvemos o olhar para tempos antiqüíssimos, percebemos o fato notável de essa Crônica do Akasha nos fornecer comprovantes maravilhosos para tudo o que encontramos nos livros bíblicos ou nas escrituras religiosas em geral. Assim, aprendemos a compreender os conteúdos desses documentos religiosos de modo acertado. Vejamos, por exemplo, que dilema suscitou para a ciência exterior a questão sobre a veracidade da citação bíblica de ‘um único casal’, Adão e Eva, do qual descenderia toda a humanidade! Esta foi uma questão que, do ponto de vista da Ciência Natural, preocupou principalmente a época por volta da metade do século XIX.

Nós sabemos — reunindo tudo o que nos relata a Crônica do Akasha — que a Terra teve um longo período predecessor, e que também a época lemúrica foi precedida de outra. Sabemos que a Terra é a reencarnação de estados planetários anteriores — da antiga Lua, do antigo Sol e do antigo Saturno. Sabemos ainda que o homem, durante as encarnações planetárias anteriores da Terra, moldou passo a passo seus três corpos: em Saturno o corpo físico, no Sol o corpo etérico, na Lua o corpo astral — e na Terra o eu, o quarto membro da entidade humana. Tudo o que precedeu o período lemúrico não passou de uma preparação para a presente missão da Terra. Naquela ocasião, na época lemúrica, o homem se formava de modo a capacitar-se a desenvolver o quarto membro de sua entidade, o eu. Então principiou a formar-se o primeiro germe para que aos três membros já existentes se pudesse acrescentar aquele que o homem tinha de adquirir gradativamente. Podemos, portanto, dizer que mediante as modificações que se processaram na Terra houve, sobre os seres humanos, uma atuação que lhes possibilitou tornarem-se portadores do eu. Já antes da época lemúrica, a Terra era habitada. Nela havia seres humanos com forma muito diferente. Tratava-se, porém, de seres humanos ainda não portadores do eu, tendo desenvolvido apenas o que haviam trazido de Saturno, do Sol e da Lua como sendo seu corpo físico, seu corpo etérico e seu corpo astral; e conhecemos os processos que, no Universo todo, possibilitaram ao homem ser conduzido até este nível de maturidade em seu desenvolvimento.

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Sabemos, também, que no início desta nossa evolução a Terra estava unida ao Sol e à Lua; que a princípio o Sol se desligou, deixando para trás um corpo planetário constituído da Terra e da Lua atuais. Mas sabemos também que, se a Terra houvesse permanecido unida à Lua, tudo o que existia sob forma de seres humanos se teria endurecido, mumificado, passando a um estado ‘lenhoso’. Para se evitar isto, deveriam ser expelidas todas as substâncias e seres existentes na Lua. Deste modo a forma humana foi salva do enrijecimento, tornando-se possível ao homem assumir pouco a pouco a forma atual, e somente após a separação da Lua lhe foi dada a possibilidade de tornar-se um portador do eu. Contudo, esses acontecimentos não se deram a um só tempo. Poderíamos dizer que foi muito devagar que o Sol se desligou da Terra. Houve, por conseguinte, enquanto a Terra ainda continha a Lua, uma condição que não permitia o prosseguimento da evolução humana. A matéria física principiava a adensar-se mais e mais, a ponto de aparecer no ser humano uma pronunciada tendência ao endurecimento. Já naquela época as almas humanas, embora se encontrassem num estado pouco evoluído, seguiram um caminho semelhante ao que seguem hoje as almas através das encarnações sucessivas, quando o cerne humano abandona seu corpo físico e percorre o mundo espiritual, para reaparecer em nova encarnação.

Antes, porém, de a Lua abandonar a Terra surgiu algo muito especial, um estado que podemos considerar difícil para o prosseguimento da evolução terrestre. Sucedeu que determinadas almas humanas, tendo abandonado seu corpo e penetrado no mundo espiritual, desejando agora encarnar-se novamente, encontravam lá embaixo uma substância humana que lhes era muito rija, como que lenhosa, e sendo assim não podiam encarnar-se. Houve então um tempo em que as almas, desejosas de voltar a Terra, não encontraram nesses corpos as condições adequadas para uma nova encarnação. Apenas as almas mais fortes conseguiram dominar a matéria entrementes endurecida, tendo assim a possibilidade de uma encarnação na Terra. As demais tinham de voltar aos mundos espirituais, não podendo descer. Isto sucedeu em épocas anteriores à saída da Lua. Contudo, ia diminuindo o número daquelas almas fortes, capazes de dominar a matéria e povoar a Terra. Portanto, antes dos tempos lemúricos houve uma época em que a Terra se tornou desértica em sua mais ampla extensão, reduzindo-se aí cada vez mais o número de seres humanos: as almas que queriam descer dos mundos espirituais não encontravam corpos físicos adequados.

O que aconteceu com essas almas que não encontravam mais corpos físicos? Elas eram dirigidas a outros planetas que, nesse ínterim, se haviam formado a partir da substância geral. Desta maneira certas almas foram dirigidas a Saturno, outras a Júpiter, outras ainda a Marte, Vênus ou Mercúrio; em conseqüência, houve uma época terrestre durante a qual as almas mais fortes podiam vir à Terra: foi a época do grande inverno terrestre. As almas mais fracas tiveram de ser abrigadas pelos demais planetas do nosso sistema solar.

Estaríamos bem próximos da verdade se, falando de determinada época lemúrica, disséssemos que existia na Terra um casal de seres humanos, um par da maior importância, um casal que conseguira conservar a força do domínio sobre a substância humana resistente e a força de encarnar-se na Terra, tendo conseguido até resistir por toda aquela época terrestre. Foi também essa a época em que a Lua se separou da Terra; e, devido a tal separação, tornou-se novamente possível à substância humana modificar-se para uma matéria mais fina e, portanto, apropriada para abrigar as almas humanas mais fracas. Deste

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modo, os descendentes do citado casal principal encontravam novamente con-dições de substâncias mais macias do que os que se haviam encarnado antes da separação da Lua. Assim, regressaram à Terra, aos poucos, todas as almas que haviam partido para Marte, Júpiter, Vênus ou mais além ainda. E, com a multiplicação de seres humanos a partir daquele casal principal, deu-se a possibilidade de as almas poderem pouco a pouco regressar do espaço cósmico para a Terra, tornando-se então descendentes daquele casal principal.

Desta maneira a Terra se povoou novamente. No final da era lemúrica e por longos períodos da era atlântica, desceu um número crescente de almas que haviam aguardado em outros planetas a ocasião de novamente encarnar-se na Terra. Elas desciam para um corpo físico terrestre, e assim a Terra foi novamente povoada. Foi deste modo que surgiu aquela população atlântica guiada, pelos iniciados, nos oráculos atlânticos. Caracterizei esses oráculos atlânticos da maneira a seguir:

Havia na Atlântida grandes centros iniciáticos. Eles eram conduzidos de maneira a poderem ser chamados ‘oráculos de Marte’, ‘oráculos de Júpiter’, ‘oráculos de Saturno’ e assim por diante. Tal diversidade de centros iniciáticos existia porque as pessoas também diferiam entre si. Para as almas humanas que anteriormente haviam aguardado em Marte a ocasião de encarnar-se, era preciso criar ensino e meio de conduta nos oráculos de Marte; para os que haviam esperado em Júpiter, eram necessários os oráculos de Júpiter, e assim por diante. Apenas alguns eleitos podiam, nos tempos atlânticos, ser instruídos no oráculo central, no grande Oráculo do Sol. Os escolhidos eram os que, pela ascendência, encontravam-se mais próximos do casal principal que subsistira à crise da Terra, e ao qual encontramos alusão na Bíblia pelos nomes de Adão e Eva. Pelas palavras da Bíblia vislumbramos algo que corresponde perfeitamente aos fatos na Crônica do Akasha. Vemos a veracidade da Bíblia mesmo quando esta parece contar-nos algo tão inverossímil.

Na direção do grande oráculo, chamado o Oráculo do Sol, que supervisionava todos os demais oráculos, encontrava-se o maior dos iniciados atlânticos, o grande Iniciado Solar — que era ao mesmo tempo Manu, ou seja, o guia dos povos atlânticos. Era Manu quem, ao se aproximar a catástrofe atlântica, tinha de incumbir-se da tarefa de levar em direção ao Oriente os homens que considerava aptos, para ali fundar um início da cultura pós-atlântica. Sobretudo este iniciado possuía, entre as várias pessoas que mantinha ao seu redor, os descendentes das almas progenitoras que haviam suportado o inverno terrestre — os que eram, por assim dizer, descendentes diretos de Adão e Eva, o primeiro casal principal. Estes foram tratados, pelo círculo do grande Iniciado Solar, com particular cuidado e atenção. Todas as instruções que recebiam eram direcionadas de modo tal que, em dados momentos da evolução humana, sempre se tivesse a possibilidade de fazer extravasar do Oráculo do Sol, guiado pelo grande Manu, as influências acertadas.

Suponhamos que em certo momento da evolução humana tivesse sido necessário surgir um rejuvenescimento da cultura; e que tudo quanto a humanidade houvesse conservado como sendo tradição, tendo-se tornado antiquado, recebesse uma nova influência; que um novo elemento cultural fosse dado à humanidade. Para esta finalidade era preciso tomar providências direta-mente no centro do Iniciado do Oráculo do Sol, e isto foi feito das mais variadas maneiras.

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Nos primeiros tempos que se seguiram ao desenvolvimento da cultura pós-atlântica, pessoas que para tal haviam sido preparadas eram enviadas a outros lugares, com a finalidade de levar os resultados de sua bem elaborada educação a este ou aquele povo que estivesse necessitando disso. Esse centro de oráculos, oculto em determinada região asiática, sempre zelou para que culturas isoladas pudessem ser influenciadas da maneira adequada.

Mais tarde, porém, cinco a seis séculos após o aparecimento do grande Buda, surgiu uma época muito especial. Surgiu a necessidade de rejuvenescer o budismo. Tudo o que fora revelado pelo grande Buda como uma antiga doutrina cheia de sabedoria, uma doutrina situada no ápice de seu desenvolvimento, deveria agora receber forças rejuvenescedoras, de modo a se apresentar doravante à humanidade sob nova forma — revigorada como se houvesse passado por uma fonte da juventude. Forças juvenis muito especiais precisavam ser encaminhadas à humanidade. Essas forças não podiam ser encontradas numa individualidade qualquer atuante no mundo.

Quem atua em favor do mundo desgasta suas forças, e desgastar forças significa envelhecer. Poderíamos retroceder nos tempos e ver como as culturas se seguem uma após outra: primeiramente a antiga cultura hindu, em seguida a cultura proto-persa, depois a egipto-caldaica e assim por diante — e veríamos que sempre estiveram presentes grandes e importantes guias espirituais. Todos esses guias espirituais da humanidade doaram suas melhores forças para fazer progredir os seres humanos. Os grandes Rishis sagrados deram suas melhores forças; Zaratustra, inaugurador da cultura persa, doou o melhor de suas forças; Hermes, Moisés, os guias da cultura caldaica, todos eles doaram o melhor de suas forças. Devido ao que podiam realizar, de certa maneira todos eles foram os melhores e mais acertados guias para sua época. Tomemos uma personalidade qualquer da antiga índia. Ela se havia reencarnado repetidamente — na época cultural persa, na época cultural egipto-caldaica — e, por ter-se reencarnado sempre, sua alma se tornara mais velha, cada vez mais madura: conseguira elevar-se a forças mais maduras, porém havia perdido as vigorosas forças juvenis. É possível amadurecer sempre, realizar coisas maravilhosas ao se tornar velha uma alma aperfeiçoada por muitas encarnações; contudo, esta alma terá envelhecido. Pode-se ministrar grandes ensinamentos, propiciar muito à humanidade, mas o frescor e a força da juventude seriam necessariamente sacrificados ao se evoluir tanto.

Para exemplificar, tomemos um dos maiores dentre os grandes que atuaram no decorrer da evolução humana: Zaratustra. Foi ele quem, das profundezas do mundo espiritual, pôde trazer à sua época a mensagem do Espírito do Sol; foi ele quem pôde apontar para o alto revelando à humanidade o grande espírito das alturas que, mais tarde, surgiu como o Cristo. Foi ele quem disse: “Ele, Ahura Mazdao, está no Sol; ele se aproximará da Terra.” E falou a seu respeito com palavras grandiosas e importantes. Somente o conhecimento espiritual mais profundo, a clarividência altamente desenvolvida de Zaratustra poderia contem-plar o ser ao qual os santos Rishis ainda se referiam como Vishva Karman, situado além de sua esfera. Era esta a entidade que Zaratustra chamava de Ahura Mazdao, revelando seu significado para a evolução humana. Um espírito imensamente amadurecido se alojava na organização física de Zaratustra, já naquela época em que ele fundou a antiga cultura persa.

Podemos imaginar que, através das encarnações subseqüentes, esta individualidade se haja elevado progressivamente, tornando-se cada vez mais

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amadurecida, cada vez mais velha — e cada vez mais capacitada aos maiores sacrifícios pela humanidade. Aqueles, dentre os presentes, que ouviram outras palestras minhas devem saber como Zaratustra entregou seu corpo astral que, mais tarde, reviveu no guia da cultura egípcia, Hermes, e como entregou seu corpo etérico ao guia do antigo povo hebraico, Moisés. Só há possibilidade de se fazer tudo isso quando se possui uma alma altamente desenvolvida. Só então é possível uma alma se tornar uma individualidade com o porte de Zaratustra, que vemos então atuar na Caldéia seiscentos anos antes da era cristã — ao mesmo tempo em que Buda atuou na índia —, sob o nome de Nazaratos ou Zaratas, tornando-se também o mestre de Pitágoras. Em tudo isto foi possível transformar-se a grande alma que foi o guia e inaugurador da cultura persa. Até essa ocasião, ela havia amadurecido progressivamente.

Porém o que se tornava necessário — quando o budismo teve de ser rejuvenescido — esta alma não pôde realizar, por razões facilmente compreensíveis. Para ela era impossível doar forças cheias de vigor juvenil, características justamente por se haverem desenvolvido até à puberdade em seu frescor infantil, para depois ser entregues ao nirmanakaya do Buda. A entidade de Zaratustra jamais o teria conseguido, justamente por se haver elevado tanto, atingindo tão alto grau no decorrer das encarnações. Por esta razão não lhe teria sido possível desenvolver-se numa criança, no início da nossa era, de modo a possibilitar a realização de algo imperativo.

Se, portanto, passarmos em revista todas as individualidades que desabrocharam naquele tempo, não encontraremos um único ser humano que pudesse nascer agora, com as forças necessárias para desenvolver, até o 12º ano de vida, as forças vitais capazes de rejuvenescer o budismo. Volvemos o olhar justamente para a grande, extraordinária individualidade de Zaratustra a fim de citar algo fora do comum, podendo dizer que também essa individualidade era imprópria para vivificar o corpo físico de Jesus até a ocasião em que fosse despido o envoltório astral destinado a unir-se ao nirmanakaya do Buda.

De onde, então, provinha a grande força vivificadora do corpo de Jesus? Do grande berço espiritual da humanidade que o grande iniciado Manu, o iniciado do Oráculo do Sol, dirige. Na criança nascida do casal que no Evangelho de Lucas é chamado José e Maria foi instilada uma grande força individual, conservada e cuidadosamente protegida até então no grande berço espiritual, no grande Oráculo do Sol. Nessa criança tomou lugar a melhor, a mais vigorosa daquelas individualidades. Qual foi ela?

Se quisermos conhecer a individualidade que naquela ocasião foi introduzida no menino Jesus, teremos de retroceder até épocas anteriores à influência luciférica sobre a humanidade, antes que no corpo astral dos seres humanos se fizesse sentir esta influência. Esta influência luciférica acercou-se dos seres humanos na mesma época em que o casal primordial, o casal principal, povoou a Terra. Este casal era forte o bastante para, por assim dizer, vencer a resistente substância humana de modo a poder encarnar-se, mas não era forte o bastante para resistir às influências luciféricas. A influência luciférica estendeu sua atuação também ao corpo astral desse casal principal, e a conseqüência foi tornar-se impossível que todas as forças existentes em Adão e Eva fluíssem para seus descendentes através da consangüinidade. O corpo físico teria de ser procriado por todas as gerações; contudo uma parte do corpo etérico podia ser retida pelos dirigentes da humanidade. Era isto o que se expressava dizendo-se: “Os seres humanos provaram da árvore do conhecimento do bem e do mal”, isto é, o que

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provinha da influência luciférica; todavia, foi dito também: “Precisamos tirar-lhes a possibilidade de provar também da árvore da vida!” Isto significa que foi retida uma certa soma de forças do corpo etérico. Agora estas não fluem para os descendentes. Por conseguinte, havia em Adão certa parte de forças que lhe foram retiradas após a Queda. Esta parte ainda inocente de Adão foi conservada espiritualmente no grande berço da humanidade, sendo ali acalentada e zelada. Era, por assim dizer, aquela parte da alma de Adão ainda não tocada pela culpa humana, ainda não envolvida pelo fator que levara os seres humanos à queda. Essas forças primordiais da individualidade de Adão foram preservadas. Elas existiam, sendo dirigidas agora, como ‘eu provisório’, à criança que nascia de José e Maria; e em seus primeiros anos de vida esse menino Jesus trazia dentro de si as forças do ancestral da humanidade terrestre.

E como permanecera jovem essa alma! Ela não fora conduzida através das múltiplas encarnações, mas retida num estágio bastante atrasado, assim como o faríamos artificialmente com a criança de nossa hipotética experiência educacional. Portanto, quem realmente ressurgiu na criancinha nascida de José e Maria? O progenitor da humanidade, ‘o velho Adão’ como ‘um novo Adão’. Disto já sabia Paulo (1. Coríntios, 15, 45), pois está implícito em suas palavras. E disto também sabia Lucas, o escritor de um dos Evangelhos, que era um discípulo de Paulo. Por tal razão Lucas cita este acontecimento de um modo todo especial. Ele sabia que algo extraordinário deveria ocorrer para possibilitar a descida dessa substância espiritual à humanidade; sabia da necessidade de um parentesco consangüíneo com o próprio Adão, descendente direto dos mundos espirituais. E por isso que nas palavras de Lucas ele descende de Deus, é um ‘filho de Deus’. É até Deus que é fornecida, em Lucas, a linha de ascendência (Lucas 3, 23-38).

Naquele que chamamos de ‘capítulo genealógico’ de Lucas esconde-se um mistério significativo: a mesma corrente sangüínea deveria fluir ininterruptamente através das gerações e ser conservada até os mais longínquos descendentes, para que, concluído o tempo, também o espírito pudesse ser conduzido das alturas aos descendentes.

Deste modo se uniu ao corpo físico nascido de Maria e José aquele espírito infinitamente jovem, aquele espírito ainda completamente intocado pelos destinos terrestres, aquela alma jovem cujas forças, caso as queiramos procurar, deveriam ser procuradas na velha Lemúria. Somente tal espírito era suficientemente forte para irradiar para o interior do envoltório astral materno e, ao ser despido deste, legar-lhe as forças das quais este necessitava para unir-se de maneira fecunda ao nirmanakaya do Buda.

Podemos, portanto, perguntar o seguinte: o que, na verdade, nos relata o Evangelho de Lucas quando principia a falar de Jesus de Nazaré? Em primeiro lugar, descreve-nos um ser humano que, pela consangüinidade, demonstra uma ligação direta de seu corpo físico com Adão — uma ligação que se estende até os tempos em que a humanidade foi salva, por um casal principal, da desertificação que ocorria na Terra. A seguir nos descreve, do ponto de vista da reencarnação, o retorno de uma alma que esperara para reencarnar-se por último. É a alma de Adão antes do pecado original, a que por mais tempo esperara, que reencontra-mos no menino Jesus. Embora possa parecer fantástico à humanidade atual, podemos dizer o seguinte: a individualidade que foi conduzida ao menino Jesus através do grande berço espiritual da humanidade não só descendia fisicamente das primeiras gerações da humanidade, como também, e principalmente, era a reencarnação do primeiro membro da raça humana.

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Sabemos agora quem era o ser apresentado no Templo e mostrado a Simeão; quem era, de acordo com Lucas, o ‘Filho de Deus’. Lucas não fala do homem de então, mas testemunha ter sido esse ser humano a reencarnação daquele que anteriormente fora o primeiro pai físico, o primeiro membro da árvore genealógica da raça humana.

Sintetizando, devemos agora dizer o seguinte:Quinhentos, seiscentos anos antes da era cristã, viveu na índia o grande

Bodhisatva, cuja missão era trazer à humanidade as verdades que paulatinamente deviam nascer do próprio seio desta. Ele dera os impulsos para isso. Por tal motivo tornou-se Buda naquela ocasião, não tornando a aparecer mais num corpo terrestre inteiramente adequado à sua individualidade. Todavia ressurge no nirmanakaya, ou seja, no corpo das transformações, mas apenas até o mundo etérico-astral. Sob forma de legiões de anjos é visto pelos pastores, que se tornam clarividentes por um instante a fim de ver o que lhes é anunciado. Ele se inclina sobre a criança nascida de José e Maria. E há uma razão para inclinar-se justamente sobre esta criança.

O que o grande Buda pudera trazer à humanidade deveria existir numa forma amadurecida; isso é muito difícil de ser compreendido, pois situa-se em nível espiritual muito elevado. A fim de tornar-se fecundo para todos, o que até então o Buda havia conquistado necessitava receber uma força plena de frescor juvenil. O Buda devia absorver essa força da Terra, curvando-se sobre a criança da qual poderia receber todas as forças juvenis do envoltório astral que se separava. E esse ser humano veio ao mundo para ele: da continuidade sangüínea nasceu uma criança, e o Buda, que melhor sabia disto, podia acompanhá-la retrospectivamente até o progenitor da humanidade, mas também reconduzi-la até a velha-jovem alma da humanidade durante a época lemúrica, podendo apontá-la agora como o novo Adão reencarnado. Essa criança possuidora de uma alma que era a alma-mãe da humanidade, tendo sido conservada jovem através das épocas, vivia de modo a impregnar com todas as suas forças jovens seu corpo astral, que mais tarde se desprendeu e ascendeu para unir-se ao nirmanakaya do Buda.

Porém estes não são todos os fatos que nos levam a compreender o maravilhoso mistério da Palestina. Este é apenas um aspecto. Compreendemos agora quem nasceu em Belém, depois que José e Maria saíram de Nazaré e para lá viajaram, e quem foi anunciado aos pastores. Mas isto ainda não é tudo. Nos tempos em que nossa era se iniciou, houve vários acontecimentos estranhos e significativos para que se realizasse o maior evento da evolução humana. Para tornar compreensível o que gradativamente conduzia a este grande acontecimento, devemos observar ainda o seguinte:

No antigo povo hebraico incluía-se a dinastia de Davi. Aquelas que designamos por ‘gerações davídicas’ remontavam todas ao progenitor original, o próprio Davi. A Bíblia nos relata que Davi teve dois filhos, Salomão e Natan (2. Samuel 5, 14). Duas dinastias — a linha salomônica e a linha natânica — descendem, portanto, de Davi. Se desconsiderarmos os membros existentes de permeio, poderemos dizer o seguinte: no tempo em que se iniciou nossa era, viviam na Palestina os descendentes da linha salomônica e os descendentes da linha natânica da dinastia de Davi. E como descendente da linha que chamamos de natânica, vive em Nazaré um homem sob o nome de José. Ele tem como esposa uma certa Maria. E em Belém vive um descendente da linha salomônica da dinastia de Davi, que também se chama José. Nada há de estranho no fato de

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existirem dois descendentes da dinastia de Davi, ambos chamados José, e que ambos tivessem por esposa uma Maria, como é chamada na Bíblia. Temos, por-tanto, dois casais no início da nossa era, na Palestina, ambos de nome José e Maria. Um dos casais segue sua origem até a linha salomônica da dinastia de Davi, a ‘linha real’; o outro casal, aquele de Nazaré, descende da linha natânica, a ‘linha sacerdotal’. Este último casal, da linha natânica, tinha a criança que lhes descrevi hoje. Esta criança forneceu um envoltório astral que pôde ser aspirado pelo nirmanakaya do Buda. Estes pais descendentes da linha natânica foram os que, estando a criança para nascer, viajaram de Nazaré a Belém — como diz Lucas — para o recenseamento (Lucas 2, 4-5). Isto está escrito na genealogia de Jesus do Evangelho de Lucas.

O outro casal, que originalmente não vivia em Nazaré — é preciso tomar os Evangelhos literalmente —, vivia em Belém, conforme nos relata o escritor do Evangelho de Mateus (Mateus 2, 1). Os Evangelhos descrevem sempre a verdade — não é preciso fazer especulações a seu respeito —, e os homens, por intermé-dio da Antroposofia, vão chegar outra vez a uma compreensão que os fará interpretar os Evangelhos literalmente. Para este casal da linha salomônica, nasce uma criança que também se chama Jesus. Também esta criança abriga em seu corpo físico uma poderosa individualidade. Por ora, no entanto, ela é incumbida de uma missão diferente — profunda é a sabedoria cósmica —; não está destinada a fornecer ao âmbito astral as forças juvenis, mas é conclamada a trazer à humanidade o que só é possível a alguém trazer sendo portador de uma alma amadurecida. Esta criança era dirigida, por meio de todas as forças implicadas neste processo, de modo a poder tornar-se fisicamente portadora da individualidade que outrora fora ensinada na Pérsia a respeito de Ahura Mazdao, chegando a entregar seu corpo astral a Hermes e seu corpo físico a Moisés, e que reaparecera como o grande mestre de Pitágoras, sob o nome de Zaratas ou Nazaratos, o grande mestre da velha Caldéia: não se trata senão da individualidade de Zaratustra. O eu de Zaratustra reencarnou-se nesta criança da qual o evangelista Mateus nos conta que nasceu de pais chamados José e Maria, descendentes da linha real, da linha salomônica da dinastia de Davi, e originalmente já morando em Belém.

Assim, no Evangelho de Mateus deparamos com uma parte da verdade, e no Evangelho de Lucas com outra parte. Devemos tomar ambas literalmente, pois a verdade do mundo é complexa. Agora sabemos quem nasceu da linha sacerdotal da casa de Davi.

Contudo, sabemos também que da linha real nasceu a individualidade que certa vez atuara na Pérsia como Zaratustra, lá tendo fundado a magia do velho império persa, a cultura dos soberanos magos. Portanto, as duas individualidades viviam lado a lado: a jovem individualidade de Adão, na criança descendente da linha sacerdotal da dinastia de Davi, e a individualidade de Zaratustra, na criança descendente da linha real da mesma dinastia. Como e por que tudo isto sucedeu, e como se conduziu a evolução posterior, é o que veremos na próxima conferência.

29 de setembro de 1909

A natureza de Jesus de Nazaré5

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As grandes correntes espirituais da humanidade, ao abrir seu caminho pelo mundo, têm cada qual uma especial missão. Não se trata de missões isoladas — elas simplesmente caminham separadas entre si durante certas épocas, para depois se cruzarem frutiferamente das mais variadas maneiras. No aconteci-mento da Palestina, reconhecemos especialmente algumas dessas grandes e maravilhosas confluências de correntes espirituais da humanidade. É nossa tarefa colocar tais acontecimentos com clareza cada vez maior diante da alma. Porém as cosmovisões não desenvolvem seu rumo de modo abstrato, como se fluíssem pelo ar, para depois unir-se num ponto comum: as cosmovisões atravessam seres, atravessam individualidades. Uma cosmovisão, onde quer que surja pela primeira vez, tem de ser conduzida por uma individualidade. Quando correntes espirituais convergem para um mesmo ponto e se fecundam mutuamente, também no íntimo de seus portadores sucede algo muito especial.

Na conferência de ontem, vários ouvintes podem ter considerado muito complicada a maneira como as duas grandes correntes espirituais, a do budismo e a do zaratustrismo, encontram-se concretamente no grande acontecimento da Palestina. Se quiséssemos falar apenas de maneira abstrata, nós nos teríamos limitado a mostrar apenas o entrelaçamento destas duas correntes. Como antropósofos, no entanto, temos a tarefa de indicar também as individualidades que foram portadoras de ambas as cosmovisões, bem como o que traziam em seu íntimo; pois o antropósofo deve afastar-se cada vez mais do abstrato para penetrar no concreto. Não deverá, portanto, parecer-lhes estranho que ali onde estava por suceder algo tão grandioso, tão soberbo, houvesse também uma grande complexidade de fatos exteriores; que não seria sem mais nem menos que o budismo e o zaratustrismo poderiam unir-se. Esse acontecimento deveria ser preparado passo a passo, vagarosamente.

Vemos assim como o budismo fluiu e atuou na personalidade que, como filho de José e Maria, descendia da linha natânica da casa de Davi, tal qual se encontra descrito no Evangelho de Lucas. Por outro lado temos, descendendo da linha salomônica da casa de Davi, aquele casal José e Maria o qual, com seu filho Jesus, originalmente morava em Belém, como nos descreve o Evangelho de Mateus. Este menino Jesus descendente da linha salomônica é o portador daquela individualidade que outrora, como Zaratustra, fundou a antiga cultura persa. Deste modo, no marco inicial de nossa era encontramos, como duas individuali-dades concretas, simultaneamente as duas correntes: de um lado a do budismo, descrito pelo Evangelho de Lucas, e de outro a do zaratustrismo, descrita por Mateus na figura de Jesus da linha salomônica da casa de Davi. As datas de nascimento dos dois meninos não coincidem exatamente.

Hoje, terei de dizer algo que, naturalmente, não está escrito nos Evangelhos; mas o conhecimento de algo que se encontra na Crônica do Akasha lhes facilitará a compreensão dos Evangelhos. Nestes podemos encontrar indiretamente as ações e conseqüências do que eles não podiam relatar. É preciso notar a vali-dade, para todos os evangelhos, das palavras que se encontram no final do Evangelho de João: “Nem todos os livros do mundo seriam suficientes para relatar todos os fatos que deveriam ser relatados.” (João 21, 25.) As revelações que vieram ter à humanidade por meio do cristianismo não são do tipo das que se encerram para ser definitivamente entregues ao mundo sob forma de livros. Verdadeiras são as palavras “E eis que estarei convosco todos os dias, até a consumação dos séculos”. (Mateus 28, 20.) O Cristo está entre nós não como um

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morto, mas como um ser vivente, e o que ele tem para nos ofertar poderá ser sempre experimentado novamente pelos que trazem abertos seus olhos espiri-tuais. O cristianismo é uma corrente espiritual viva, e suas revelações perdurarão pelo tempo em que a humanidade estiver capacitada a recebê-las. Portanto, hoje serão mencionados alguns fatos que não constam nos Evangelhos — apenas suas conseqüências são ali mencionadas. Poderemos, contudo, prová-los pelos fatos externos, encontrando então sua veracidade.

É em alguns meses que divergem os nascimentos dos dois meninos Jesus. Porém, tanto o menino Jesus do Evangelho de Lucas como o menino João nasceram algum tempo depois do chamado infanticídio de Belém, que assim não pôde atingi-los. Os Senhores já terão pensado, pois, alguma vez, que os que lêem sobre esse infanticídio poderiam bem perguntar: “E como, então, pudemos ter ainda um João?”. Os fatos, contudo, são tais que poderão resistir a qualquer prova. Pensem que o Jesus do Evangelho de Mateus é conduzido ao Egito por seus pais, e que pouco antes ou ao mesmo tempo nasce João. Este, de acordo com o entender comum, permanece na Palestina, onde então deveria também ser atingido pela ordem de Herodes. Deveria, portanto, ter morrido pelo ato criminoso de Herodes, e não poderia estar lá. Como vêem, é realmente preciso refletir sobre todas estas coisas. Ora, se naquela ocasião todas as crianças até dois anos foram mortas, então João deveria estar incluído entre elas. Mas tudo isto se lhes tornará compreensível se, apoiados nos fatos da Crônica do Akasha, os Senhores verificarem que os acontecimentos do Evangelho de Mateus e os do Evangelho de Lucas não coincidem no tempo, de modo que o nascimento do Jesus natânico já não ocorre na época do infanticídio de Belém. O mesmo acontece com João. Embora haja uma diferença de alguns meses apenas, esta é suficiente para possibilitar esses fatos.

Da mesma maneira, será pelos fatos mais íntimos que os Senhores virão a compreender o Jesus do Evangelho de Mateus. Neste menino se reencarna a individualidade que conhecemos como o Zaratustra da antiga cultura persa. Sabemos que este Zaratustra trouxera outrora para seu povo os grandes ensina-mentos a respeito de Ahura Mazdao, o grande Ser Solar. Sabemos que devemos imaginar este Ser Solar como sendo a parte anímico-espiritual do que vemos como o Sol físico. Por isso podia Zaratustra dizer: “Não vejam apenas o Sol físico refulgir; vejam o Ser Supremo que envia espiritualmente suas atuações benéficas, tal qual o Sol físico envia suas forças benéficas sob forma de luz e calor.” Por intermédio de Zaratustra fora revelado ao povo persa Ahura Mazdao — que mais tarde viria a ser chamado, com outras palavras, o Cristo. Zaratustra ainda não o anunciava como um ser que houvesse caminhado sobre a Terra; ele podia apenas apontar para o Sol e dizer: “É lá no alto que ele vive; aproxima-se lentamente da Terra, e um dia habitará aqui, dentro de um corpo humano.”

É a partir deste ponto que se nos pode tornar compreensível a enorme diferença entre o zaratustrismo e o budismo. Há uma profunda diferença entre ambos, enquanto separados; e essa diferença desaparece a partir do momento em que, no acontecimento da Palestina, ambos confluem e rejuvenescem.

Retrocedamos mais uma vez à missão do Buda no mundo. Já enumeramos seus ensinamentos conhecidos como a Senda das Oito Sabedorias, as quais representam tudo o que a alma humana deve adquirir como conteúdo se quiser evitar as más influências do carma. O que o Buda deu ao mundo é exatamente o que os homens, no decorrer dos tempos, deverão desenvolver a partir de seu próprio caráter e de sua própria moral como compaixão e amor. Eu lhes disse,

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outrossim, que o instante em que ocorreu o aparecimento da entidade Bodhisatva no Buda foi um momento ímpar. Não tivesse ocorrido naquela precisa ocasião o fato de o Bodhisatva surgir por completo no corpo do grande Gautama Buda, não teria sido possível transmitir à alma humana o que designamos por conformidade a leis, por darma. O homem só pode desenvolvê-lo dentro de si quando expele seu próprio conteúdo astral para livrar-se de todas as más influências do carma. É isto o que nos indica de maneira soberba a lenda do Buda, onde se conta que ele consegue ‘fazer girar a roda da lei’. Isto significa que da iluminação do Bodhisatva para o Buda emanou realmente uma força para toda a humanidade. Como conseqüência, as pessoas podiam agora desenvolver o darma a partir de sua pró-pria alma, podendo alcançar passo a passo a total profundidade da Senda das Oito Sabedorias. São estas as origens do ensino desenvolvido pelo Buda, o qual visa a alicerçar o caráter moral dos homens na Terra.

Era esta a missão desse Bodhisatva. Podemos compreender como foram distribuídas as diversas missões entre as grandes individualidades ao encontrarmos no budismo a origem verdadeira, grandiosa de tudo o que o homem vivência em sua própria alma como um grande ideal. O ideal da alma humana, o que o homem é e pode ser — eis o conteúdo da predica do Buda. Era o quanto bastava para esta individualidade. No budismo tudo é intimismo, tudo se relaciona com o homem e seu desenvolvimento; e nada encontramos, no verdadeiro budismo, que possamos chamar de ensinamentos cosmológicos, embora possamos encontrá-los introduzidos mais tarde. Ora, é necessário que tudo se una harmoniosamente. Porém a verdadeira missão do Bodhisatva foi trazer aos homens o ensino da interiorização da própria alma. Em determinados sermões, o Buda se negou mesmo a dizer algo especial sobre as relações cósmicas. Tudo é expresso de modo que a alma humana, ao permitir que os ensinamentos do Buda atuem sobre ela, possa tornar-se sempre melhor. O homem será considerado como um ente em si, um microcosmo, independente do grande seio do Universo. Por ter sido esta a missão específica do Bodhisatva é que os ensinamentos do Buda, ao serem verdadeiramente conhecidos, geram tanto calor no coração humano, e por isso a alma humana se sente tão acolhida ao procurar acercar-se desses ensinamentos por meio das expressões rejuvenescidas que reaparecem no Evangelho de Lucas. Muito diferente era a missão da individualidade que vivera como Zaratustra entre o antigo povo persa. Sua tarefa era bem oposta. Zaratustra ensinava a compreender e a penetrar espiritualmente o Deus distante e o grande Cosmo. O Buda dirigia o olhar para o íntimo humano, dizendo: “Quando o ser humano se desenvolve, surgem paulatinamente, superando a ignorância, os ‘seis órgãos’, que enumeramos como os cinco sentidos e o manas.” Contudo, tudo o que está contido no homem é oriundo do Universo. Não possuiríamos olhos sensíveis à luz se a luz não tivesse provocado o nascimento dos olhos no organismo. “Os olhos foram criados na luz para a luz”, diz Göethe. Eis uma profunda verdade. De órgãos indiferentes, que existiram em outros tempos no corpo humano, a luz desenvolveu os olhos. É desta maneira que todas as forças espirituais do Universo modelam o homem. O que se encontra interiormente nele foi organizado, inicialmente, a partir das forças divino-espirituais. Portanto, para tudo o que existe internamente há um correspondente exterior. É do exterior que fluem primeiramente as forças situadas no interior do homem. E Zaratustra tinha por missão chamar a atenção para a exterioridade, para o que se encontra ao redor do homem. Por esta razão falava, por exemplo, dos Amshaspands, dos grandes gênios dentre os quais, a

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princípio, enumerou seis — eles são na realidade doze, porém os outros seis estão ocultos. Estes Amshaspands atuam do exterior como os plasmadores dos órgãos humanos. Zaratustra demonstrou como, por detrás dos órgãos sensoriais humanos, encontram-se os próprios criadores do homem. Ele apontou estes grandes gênios, estas grandes forças que se encontram fora de nós. Já o Buda aponta as forças ocultas que atuam no homem. Zaratustra, porém, indicou em seguida as forças e entidades situadas abaixo dos Amshaspands, as quais chamou de ‘os 28 Izards ou Izads’, que também atuavam no homem a partir do exterior, contribuindo para sua organização interna. Portanto, mais uma vez Zaratustra mostrou o espiritual no Cosmo, chamou a atenção para o contexto exterior. E enquanto o Buda indicava a substância do pensar propriamente dita, da qual nascem os pensamentos a partir da alma humana, Zaratustra, por sua vez, indicava os Farohars ou Feruers, ou ainda Frawarschai, ou seja, os pensamentos criativos cósmicos que nos rodeiam, espalhados que estão pelo mundo todo. Pois tudo o que o homem possui como pensamentos está presente em todo o mundo exterior.

Assim, Zaratustra tinha a missão de anunciar uma cosmovisão que deveria desvendar, decifrar os segredos do mundo exterior. Deveria trazer uma cosmovisão para um povo que tinha a incumbência de plasmar o mundo físico pelo esforço de suas próprias mãos. A missão de Zaratustra encontra-se em perfeita harmonia com as características do antigo povo persa. Sendo assim, poderíamos também dizer que cabia a Zaratustra educar os homens no sentido da força e da competência na atuação terrestre exterior, embora à primeira vista isto pareça repulsivo aos homens de hoje. Criar força, diligência e segurança para a atuação exterior por meio do saber, de forma que o ser humano não apenas se confine em si mesmo, mas sempre repouse no seio de um mundo divino, esta era a missão de Zaratustra — orientar o homem para compreender o seguinte: “Onde quer que te encontres na imensidão do Universo, não estás sozinho; tu te encontras num Cosmo espiritualizado, sendo uma partícula dos deuses e espíritos universais; nasceste do Espírito e nele repousas. A cada inspiração sorves o Espírito Divino; seja a tua expiração como uma oferenda ao Grande Espírito.” Por conseguinte, de acordo com sua missão, a iniciação de Zaratustra tinha de ser algo diferente das iniciações dos outros grandes missionários da humanidade.

Rememoremos agora o que podia realizar a individualidade encarnada em Zaratustra. Ela havia alcançado um tão elevado grau de evolução que já podia preparar a corrente cultural subseqüente à persa — isto é, a cultura egípcia.

Zaratustra teve dois discípulos: a individualidade que mais tarde reapareceu como o Hermes egípcio e a que ressurgiu como Moisés. E ao se reencarnarem estas individualidades para prosseguir seu trabalho na humanidade, o corpo astral de Zaratustra, dado por ele em oferenda, foi agregado a Hermes. Uma reencarnação do corpo astral de Zaratustra — eis o que devemos ver no Hermes egípcio. Hermes trazia em si o corpo astral de Zaratustra, que lhe fora transferido a fim de tudo o que Zaratustra adquirira como sabedoria a respeito do mundo exterior poder ressurgir no mundo físico. E o corpo etérico de Zaratustra foi transferido para Moisés; e por ser ligado ao corpo etérico tudo o que se desenvolve no tempo, pôde Moisés, ao se tornar consciente dos segredos de seu corpo etérico, fazer ressuscitar os acontecimentos temporais sob forma das grandes imagens que encontramos no Gênesis. Desta maneira Zaratustra continuou atuando através de sua individualidade, inaugurando e influenciando a cultura egípcia e tudo o que dela se originou como antiga cultura hebraica.

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Tal individualidade também recebeu grandes incumbências por intermédio de seu eu. O eu de Zaratustra voltou a encarnar-se repetidas vezes em outras personalidades. Ora, uma individualidade que alcançou um tal grau de evolução pode renovada-mente santificar um corpo astral e fortalecer um corpo etérico, mesmo já os tendo entregue originalmente. Assim, Zaratustra voltou a nascer e apareceu novamente, seiscentos anos antes do Cristo, na antiga Caldéia, como Zaratas ou Nazaratos, que se tornou o mestre da escola oculta da Caldéia, e também o mestre de Pitágoras. Ele alcançou portentosas visões do mundo físico. Se conseguirmos compreender verdadeiramente a sabedoria caldaica pelos conhecimentos que a Antroposofia — e não a Antropologia — nos transmite, obteremos então uma idéia do que Zaratustra, como o Zaratas das correntes ocultistas dos antigos caldeus, podia ensinar.

Tudo quanto Zaratustra podia ensinar e dedicar ao mundo tinha como meta, conforme vimos, atingir o mundo exterior para trazer-lhe ordem e harmonia. Por esta razão, era também missão de Zaratustra a arte de criar e organizar reinos conforme a necessidade correspondente à evolução humana, dentro das possi-bilidades da ordem social. Daí os que se contavam entre os discípulos de Zaratustra poderem ser chamados não apenas de grandes magos, grandes iniciados, mas também de reis, isto é, os que conheciam a arte de estabelecer a organização e a ordem social externa.

Um incrível afeiçoamento à individualidade — não só à personalidade — de Zaratustra desenvolveu-se nas escolas dos caldeus. Estes sábios do Oriente sentiam-se aparentados ao seu grande guia. Viam nele a estrela da humanidade, pois ‘Zoroastro’ é uma adaptação da expressão ‘estrela de ouro’ ou ‘estrela do brilho’. Eles viam nele um reflexo do próprio Sol. E não lhes podia ficar oculto, em sua profunda sabedoria, o reaparecimento de seu grande mestre em Belém. Assim, eles foram guiados por sua estrela e levaram-lhe o símbolo material do que de melhor ele pudera dar aos homens. O que de melhor se podia dar a alguém que pertencesse à corrente de Zaratustra era o saber a respeito do mundo físico, a respeito dos mistérios do Cosmo, recolhidos no corpo astral humano no pensar, no sentir e no querer. Desejavam assim, os discípulos de Zaratustra permear também seu pensar, sentir e querer — as forças de sua alma — com a sabedoria que se pode sorver das profundas bases do mundo divino-espiritual. Esta sabedoria, que podia ser adquirida pela absorção dos mistérios exteriores, era simbolizada pelo ouro, pelo incenso e pela mirra: ouro como símbolo para o pensar, incenso como símbolo para a fé, para o que nos impregna sob forma de sentimentos, e mirra para a força do querer. Este foi o modo como eles demonstraram sua estreita ligação com o mestre ao surgirem em sua presença por ocasião de seu nascimento em Belém. Por conseguinte, o escritor do Evangelho de Mateus relata corretamente ao dizer que os magos, entre os quais Zaratustra atuara, sabiam que este havia reaparecido entre os homens; e que por meio dos três símbolos — ouro, incenso e mirra —, símbolos para o que de melhor ele lhes havia legado, os magos expressavam seu parentesco com ele (Mateus 2, 11).

A verdade é que agora Zaratustra, sob a forma física do Jesus da linha salomônica da descendência de Davi, poderia atuar intensamente para, de maneira agora rejuvenescida, legar novamente à humanidade seu legado anterior. Ele deveria, pois, reunir todas as forças que já uma vez possuíra. Por este motivo não podia incorporar-se num descendente da linha de sacerdotes da casa de Davi, mas somente num descendente da linha soberana. É desta forma

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que se expressa no Evangelho de Mateus o parentesco do antigo nome real persa com a ascendência da criança em que Zaratustra se reencarnou. Os antigos livros da sabedoria da Ásia Menor também apontavam sempre estes acontecimentos. Quem compreende de verdade estes sábios livros entende-os diferentemente de quem desconhece os fatos e confunde tudo. Assim temos, por exemplo, duas profecias no Antigo Testamento: uma nos apócrifos de Enoc, que indicam mais o Messias natânico descendente da linha sacerdotal, e uma outra contida nos sal-mos, apontando o Messias da linha real. Cada detalhe indicado nas Escrituras coincide com os fatos que podemos obter na Crônica do Akasha.

Zaratustra, porém, devia reunir tudo o que existira nele anteriormente como forças. A cultura egípcia e à antiga cultura hebraica — a Hermes e a Moisés — ele havia doado tudo o que havia em seu corpo astral e em seu corpo etérico. A esse conteúdo ele deveria reunir-se novamente. Deveria, da mesma forma, buscar junto aos egípcios as forças de seu corpo etérico. Eis um mistério profundo que aqui se abre diante de nossos olhos: o Jesus da linha salomônica da casa de Davi, o Zaratustra reencarnado, precisava ser guiado para o Egito, e assim ocorre — lá se encontram as forças que fluíram de seu corpo astral e de seu corpo etérico, por ele as ter entregue primeiramente a Hermes e em seguida a Moisés. Por ter ele atuado na cultura egípcia, deveria agora dirigir-se a esta como que para recolher as forças encaminhadas para lá anteriormente. Daí a ‘fuga para o Egito’ e tudo o que sucedeu espiritualmente — a absorção de todas as forças de que ele agora necessitava para dar novamente à humanidade, de forma rejuvenescida e cheia de vigor, o que lhe legara em épocas anteriores.

Vemos assim, que o Jesus de Belém, cujos pais anteriormente residiam nesse local, é descrito da maneira correta por Mateus. Somente Lucas relata que os pais de seu Jesus moravam em Nazaré, que se dirigiram a Belém para o recenseamento e que nesse curto espaço de tempo Jesus lá nasceu, tendo em seguida seus pais regressado com ele a Nazaré. No Evangelho de Mateus é dito apenas que Jesus nasceu em Belém e que precisava ser levado ao Egito. Somente ao regressarem do Egito seus pais passam a residir em Nazaré, a fim de que Jesus — o Zaratustra reencarnado — possa estar próximo do representante da outra corrente, do budismo. Assim são concretamente reunidas as duas cosmovisões.

Em certos trechos, os Evangelhos nos demonstram, em toda a profundidade, o porquê dos acontecimentos. O aspecto que, no ser humano, mais se relaciona com o querer e a energia, com o elemento da soberania — se quisermos usar esta expressão tecnicamente — é a herança física do elemento paterno. Disto já sabiam os conhecedores dos segredos da existência. Porém o que se relaciona com o lado íntimo, com a sabedoria e a flexibilidade do espírito, é transmitido pelo elemento materno. Göethe, que mergulhou tão profundamente nos segredos da existência, sugere-nos esta relação nas seguintes palavras:

De meu pai tenho a estatura e uma séria conduta na vida; de minha mãe a natureza alegre e a vontade de fantasiar.

Esta é uma verdade freqüentemente comprovada. A estatura, a aparência exterior, o que encontra sua expressão imediata no aspecto externo e ‘uma séria conduta na vida’, relacionada com o caráter do eu, a pessoa herda do elemento paterno. Por esta razão, o Jesus salomônico deveria, antes de mais nada, herdar a força do elemento paterno por haver sido sempre sua missão transportar para a

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Terra o que, sob forma de forças divinas, circunda a Terra no espaço. É isto o que expressa o escritor do Evangelho de Mateus de maneira tão soberba. Dos mundos espirituais é anunciado como um importante acontecimento que uma individualidade muito especial se encarnará, e a anunciação não é feita a Maria, e sim ao pai, José (Mateus 1, 20-21). Por detrás disto se ocultam as mais profundas verdades; não se deve considerar tal fato como um acaso.

Ao Jesus descendente da linha natânica foram transferidas as qualidades interiores herdadas da mãe. Por esta razão o Jesus do Evangelho de Lucas precisava ser anunciado à mãe, e assim vemos ocorrer nesse documento (Lucas 1, 26-38). É dessa profunda maneira que se expressam os fatos nas escrituras religiosas. Mas prossigamos:

Também os outros fatos descritos exprimem realidades de muita importância. Primeiramente, o precursor de Jesus de Nazaré deve surgir para a humanidade na figura de João Batista. No decorrer do tempo poderemos aproximar-nos mais da individualidade do Batista. Por ora aceitemo-lo tal como se nos apresenta em imagem, como sendo o preconizador do que deveria advir em Jesus. Ele o anuncia resumindo, com energia muito intensa, tudo o que estava contido na lei exterior e nas antigas profecias. Com isso, quer trazer aos homens a possibilidade de se preservar o que está escrito nas leis, o que envelheceu dentro da cultura mas foi esquecido — o que já está maduro, porém é ignorado pelas pessoas. Ele deve, sobretudo, trazer em si todas as forças próprias de uma alma que vem ao mundo amadurecida ao máximo. Ele nasce de um casal idoso, de maneira que desde o início seu corpo astral é puro em relação a todas as forças que rebaixam as pessoas, pois paixão e concupiscência não atuam neste casal de idade avançada. Esta é mais uma verdade profunda que o Evangelho de Lucas nos deixa entrever (Lucas 1,18). Por tal individualidade zela também o grande centro de mistérios principal da humanidade. Dali, onde o grande Manu dirige e orienta os acontecimentos espirituais, são enviadas as forças para onde necessárias. Um eu como este de João Batista nasce num corpo sob a orientação e direção imediatas do grande centro de mistérios da humanidade, o ponto central da vida espiritual terrena. O eu de João Batista era oriundo do mesmo centro de mistérios do qual proveio a alma para o menino Jesus do Evangelho de Lucas — só que apenas a Jesus foram legadas as capacidades ainda não permeadas pelo eu tornado egoísta. Isto significa que uma alma jovem é dirigida para onde o Adão renascido deve encarnar-se.

Deve parecer-lhes estranho ter sido possível dirigir do grande centro de mistérios, para um determinado local, uma alma que ainda não possuía um eu realmente desenvolvido. Ora, o mesmo eu do Jesus do Evangelho de Lucas, que no fundo é retido, é presenteado ao corpo de João Batista, e ambos — o que habita como ser anímico no Jesus do Evangelho de Lucas e o que vive como um eu em João Batista — estão intimamente ligados desde o princípio. Quando o embrião humano se desenvolve no corpo materno, já na terceira semana o eu se une às outras partes da organização humana, mas passando a atuar apenas nos últimos meses que precedem o nascimento. Só então o eu se torna uma força interior, impulsora. Ora, num caso comum, quando o eu atua normalmente para levar o embrião humano ao movimento, trata-se de um eu que provém de encarnações anteriores e impele o embrião humano a movimentar-se. Porém aqui, no caso de João, trata-se de um eu relacionado com a alma do Jesus natânico. É por esta razão que no Evangelho de Lucas a mãe de Jesus deve visitar a mãe de João Batista estando esta em seu sexto mês de gestação, e, neste caso,

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o que normalmente é estimulado pelo próprio eu na própria personalidade é estimulado pelo outro embrião. A criança de Isabel começa a mover-se quando se aproxima dela a mulher que traz em seu ventre o menino Jesus, pois é este o eu que estimula a criança no ventre da outra mãe (Lucas 1, 3944). Eis a profunda ligação existente entre aquele que deveria atuar pela confluência das duas correntes espirituais e aquele que deveria prenunciá-lo.

Vemos, assim, como no início da era cristã sucede algo excepcionalmente grandioso. Se habitualmente as pessoas gostam que uma verdade seja de compreensão bem fácil, isto resulta do comodismo, da preguiça mental que evita formar muitos conceitos; porém as maiores verdades só podem ser vislumbradas com o maior empenho das forças espirituais. Seja para descrever uma máquina o homem precisa fazer os maiores esforços, deve esperar muito menos que as maiores verdades sejam as mais fáceis. A verdade é grande e por isso mesmo complicada, e sem dúvida precisamos empenhar nossas forças espirituais ao querer compreender progressivamente todas as verdades relacionadas com o acontecimento na Palestina. Tampouco alguém deve objetar que as coisas são relatadas de modo muito complexo; elas são relatadas tal qual são, sendo assim por referir-se ao maior fato da evolução terrestre.

Vemos, pois, dois meninos Jesus crescendo, sendo um deles o filho dos pais natânicos José e Maria; e vemos este filho nascer de uma mãe jovem — no hebraico teria sido usada a palavra ‘Alma’—, pois o que deveria atuar como alma jovem deveria nascer de uma mãe muito jovem. Com este filho viviam os pais novamente em Nazaré, após regressarem de Belém. Eles não tinham outros filhos. Esta mãe deveria ser mãe única e exclusivamente deste Jesus.

E temos o Jesus do casal José e Maria da linha salomônica. Após ter regressado do Egito e ter-se transferido para Nazaré, esse casal teve ainda vários outros filhos, que se encontram enumerados no Evangelho de Marcos: Simão, Judas, José, Jacó e também duas irmãs (Marcos 6, 3).

Os dois meninos Jesus crescem. A criança que abriga em si a individualidade de Zaratustra desenvolve cada vez mais, numa maturação extremamente rápida, as forças que é mister desenvolver quando no corpo atua uma individualidade tão poderosa. A individualidade que atua no corpo do outro Jesus é bem diferente: nela o mais importante é o nirmanakaya do Buda. Isto é algo que pousa sobre esta criança. Por tal razão nos é dito, quando os pais retornam de Jerusalém, que a criança está cheia de sabedoria — isto é, em seu corpo etérico ela está permeada de sabedoria — e a graça de Deus está sobre ela (Lucas 2, 40). Mas ela crescia e se desenvolvia de maneira tal que as qualidades humanas normais, relacionadas com a capacidade de entender as coisas e reconhecer os fatos do mundo exterior, evoluíam nela com marcante lentidão. O homem comum classificaria justamente este menino Jesus como sendo uma criança ‘relativamente retardada’, caso julgasse somente as forças que servem para en-tender e compreender o mundo material. Em contrapartida, justamente nesta criança se desenvolveu o que fluía para ela do protetor nirmanakaya do Buda. Desenvolveu-se nela uma profunda interioridade, em nada comparável a qualquer outra no mundo. Evoluíam neste menino sentimentos tão profundos que atuavam extraordinariamente sobre tudo o que o cercava.

Vemos, portanto, crescendo no Jesus natânico um ser com profundos sentimentos, e no Jesus salomônico uma individualidade de excepcional maturidade e penetrante compreensão do Universo.

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Fora dito à mãe do Jesus natânico, daquela criança com sentimentos profundos, algo muito importante. Já quando Simeão deparou com o recém-nascido, vendo-o iluminado por aquele que outrora, na índia, ele não viera a conhecer como Buda, vaticinou o grande, soberbo acontecimento que estava por vir; porém pro feriu também as significativas palavras sobre a ‘espada que transpassará o coração da Mãe’ (Lucas 2, 35). Também esta profecia se relaciona com alguma coisa que ainda hoje passaremos a compreender.

Em imediata vizinhança e sob um relacionamento amistoso entre os pais, assim cresceram os dois meninos até aproximadamente seu 12Q ano de vida. Ao se aproximar o 12º ano do Jesus natânico, conforme nos é relatado, seus pais se dirigiram a Jerusalém para, de acordo com a tradição, participar das festividades da Páscoa; e levaram consigo a criança, como era de hábito quando os filhos estavam crescidos. Entretanto, no Evangelho de Lucas se encontra um relato muito estranho a respeito de Jesus aos doze anos no Templo. Está escrito: ao retornarem os pais da festa, subitamente deram por falta do menino, e não o encontrando em parte alguma entre os parentes e conhecidos, voltaram para Jerusalém e encontraram-no no Templo entre os grandes doutores, admirando a todos por sua sabedoria (Lucas 2, 41-50).

O que acontecera? Consultemos a eterna Crônica do Akasha. Os fatos do mundo não são tão simples. O que aconteceu aqui ocorre, de uma outra maneira, também alhures. Pode acontecer que uma certa individualidade, em determinado estágio de sua evolução, necessite de condições diversas das que lhe foram da-das desde o princípio. Por este motivo, acontece repetidamente de uma pessoa crescer e evoluir até certo momento de sua vida e, inesperadamente, desmaiar e parecer morta. Aqui ocorre uma transformação: seu próprio eu a deixa e um outro eu toma morada em seu corpo. Tal transferência do eu ocorre também em outras situações, sendo isso um fenômeno bem conhecido por todo ocultista. Neste caso, ao Jesus de doze anos sucedeu o seguinte: a individualidade que, como individualidade de Zaratustra, até aquele momento ocupara o corpo físico do Jesus da linha soberana da descendência de Davi, a fim de adaptar-se ao desenvolvimento da sua época, irrompeu do corpo do Jesus salomônico e transferiu-se para o do Jesus natânico, que em conseqüência pareceu completamente mudado. Os pais não o conheciam assim, não entendiam suas palavras sábias. É que agora se manifestava por intermédio do Jesus natânico o eu de Zaratustra, transferido para ele. Foi nessa ocasião que o nirmanakaya do Buda se uniu ao envoltório astral, e foi também o ponto em que o eu de Zaratustra se uniu ao Jesus natânico. Agora o eu de Zaratustra vivia no Jesus natânico. E foi esta criança, modificada a ponto de os próprios pais não conseguirem entendê-la, que eles levaram consigo para casa.

Não muito tempo depois faleceu a mãe deste menino Jesus, de modo que a criança em quem agora habitava o eu de Zaratustra tornou-se órfã de mãe. Veremos que o fato de esta mãe ter falecido e ter deixado o menino órfão indica uma situação muito especial e incisiva.

Tampouco a outra criança, o Jesus salomônico, podia prosseguir vivendo em condições normais quando o eu de Zaratustra a deixou. O José da linha salomônica já havia falecido há mais tempo, e a mãe do Jesus salomônico, juntamente com os filhos Jacó, José, Judas, Simão e as duas filhas, havia sido acolhida na casa do José natânico, de modo que Zaratustra convivia novamente com aquela família em que se havia encarnado, com exceção apenas do pai. Dessa maneira, as duas famílias se condensaram numa só, e assim vivia a mãe

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dos irmãos — podemos chamá-los irmãos, pois eles o são no sentido do eu — na casa do José natânico com o Jesus que, pelo local de seu nascimento corpóreo, era originário de Nazaré. Assim conviviam eles.

Dessa forma, vemos concretamente a confluência do budismo e do zaratustrismo: o corpo em que habitava a amadurecida alma individual de Zaratustra podia acolher em seu interior o resultado da absorção do envoltório astral do Jesus natânico pelo nirmanakaya do Buda. Assim, vemos agora crescer em Jesus de Nazaré uma individualidade que abriga em seu íntimo a indivi-dualidade de Zaratustra, iluminada e espiritualizada pelo nirmanakaya rejuvenescido do Buda. Na alma de Jesus de Nazaré vive, assim, a confluência do budismo e do zaratustrismo. Tendo morrido também o José da linha natânica, e isto relativamente cedo, na realidade a criança Zaratustra é órfã, e como tal se sente: ela não é mais a mesma quanto à sua ascendência física. Espiritualmente, é o Zaratustra ressurgido. De conformidade com sua ascendência física, seu pai é o José da linha natânica, e as pessoas deveriam considerá-lo como tal. Lucas nos relata isso com exatidão, e é com exatidão que devemos entender suas palavras:

E aconteceu que, como todo o povo se batizava, sendo batizado também Jesus e estando a orar, o céu se abriu; e o Espírito Santo desceu sobre ele em forma corpórea como uma pomba, e do céu veio uma voz que dizia: Tu és meu filho amado, hoje eu te gerei.E Jesus tinha, quando principiou a atuar, cerca de trinta anos de idade.

E agora não é dito apenas que ele é um filho de José, mas “... e era considerado um filho de José” (Lucas 3, 21-23), pois o eu que se havia inicialmente encarnado no Jesus salomônico não tinha, no fundo, ligação com o José natânico.

Temos agora diante de nós um ser unitário na figura de Jesus de Nazaré, que possuía um grande, imenso interior, onde se unia tudo o que reconhecemos como as bênçãos do budismo e como as bênçãos do zaratustrismo. Aquela interioridade foi posteriormente solicitada para realizações supremas e majestosas. A ela deveria suceder ainda algo de muito diferente do que aconteceu aos batizados por João no rio Jordão. E veremos que, mais tarde, essa interioridade de Jesus deveria receber o Cristo no Jordão. Então, também o que de imortal existia da primeira mãe do Jesus natânico desceu e transformou a outra, abrigada na casa do José natânico, tornando-a novamente virgem; e assim a alma da mãe que Jesus perdera é dada a esta, por ocasião do batismo no Jordão. Esta mãe que ficou com ele abriga em si, por conseguinte, a alma de sua mãe original, aquela Maria que na Bíblia é chamada de bendita (Lucas 1,28).

20 de setembro de 1909

Preparando a doutrina do amorSerá relativamente fácil compreendermos os pormenores do Evangelho de

Lucas se realizarmos um trabalho preparatório que, por assim dizer, vivifique as entidades e individualidades a serem estudadas, de modo a sabermos de quem estaremos falando. Por esta razão, não deve aborrecê-los o fato de termos, como se diria, tanta ‘introdução’. Primeiramente, será preciso conhecermos em toda a complexidade de seu ser o grande vulto que é o ponto central dos Evangelhos, e

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também alguns outros aspectos sem os quais nunca poderíamos entender o que se nos depara em toda a singeleza no Evangelho de Lucas.

Cumpre lembrar-nos de algo que já tivemos oportunidade de mencionar nestes últimos dias: o grande significado da individualidade singular que descrevemos como o Buda, e da qual tivemos oportunidade de dizer que, no período entre quinhentos e seiscentos anos antes do início da era cristã, elevou-se de Bodhisatva a Buda. Caracterizamos o significado que esse acontecimento teve para a humanidade e, mais uma vez, queremos compenetrar-nos disto.

O conteúdo do ensinamento do Buda deveria, pela primeira vez, ser entregue à humanidade como propriedade desta. Se retrocedêssemos mais além da época do Buda, teríamos de dizer o seguinte, com relação às épocas pregressas da humanidade: não poderia haver nessa época, na face da Terra, homem algum que por si só pudesse ter encontrado os ensinamentos de compaixão e de amor que se expressam na Senda das Oito Sabedorias. A evolução humana ainda não havia atingido o ponto em que qualquer alma, pelo aprofundamento na própria meditação, em seus próprios sentimentos, pudesse ter encontrado tais verdades. Tudo tem uma primeira vez para aparecer neste mundo, e para tudo o que deve aparecer é preciso ser dado um motivo. De que maneira as pessoas de épocas mais remotas podiam, por exemplo, seguir as máximas do caminho das Oito Sabedorias? Elas só poderiam fazê-lo se estas lhes fossem ensinadas, como que instiladas pelas escolas ocultas dos iniciados e clarividentes. Era dentro dos mistérios e escolas ocultistas que ensinava o Bodhisatva, porque tais escolas ofereciam a possibilidade da elevação aos mundos superiores e o recebimento do que ainda não podia ser transmitido nem ao intelecto nem à alma comum. Assim, nesses tempos remotos tais conhecimentos tinham de ser como que inoculados na humanidade pelos que participavam da graça de entrar em contato direto com os mestres das escolas ocultistas. Não tendo os homens a possibilidade de atingir esses princípios por si mesmos, sua vida deveria ser influenciada de modo a transcorrer pautada por eles. Portanto, as pessoas que viviam fora dos mistérios seguiram como que inconscientemente o que lhes era dado — também como que inconscientemente — pelos que podiam trazê-lo das escolas ocultistas. Não havia ainda sobre a face da Terra um corpo humano — mesmo se penetrado por toda a espiritualidade — organizável de maneira que a pessoa pudesse, em seu próprio íntimo, encontrar o conteúdo da Senda das Oito Sabedorias. Era necessário haver uma revelação do alto, transmitida pelos meios adequados. Disso se conclui que um ser como o Bodhisatva não estava, antes da época do Buda, em condições de utilizar por completo um corpo humano. Ele não conseguia encontrar na Terra um corpo em que pudesse incluir todas as capacidades mediante as quais deveria atuar sobre os homens. Não existia tal corpo humano.

O que era, portanto, necessário? Como se encarnava tal Bodhisatva? Eis uma indagação que cumpre fazermos.

Ele não encarnava totalmente seu ser enquanto entidade espiritual. Se um corpo animado por um Bodhisatva fosse observado de forma clarividente, ver-se-ia apenas parcialmente sua entidade — que, sob forma de corpo etérico, transcenderia muito o invólucro humano, mantendo sua ligação com o mundo espiritual, pois nunca o abandonaria por completo. Desta forma, o Bodhisatva nunca deixou completamente o mundo espiritual, pois vivia simultaneamente num corpo espiritual e num corpo físico. A transição de Bodhisatva para Buda se devia ao fato de agora existir, pela primeira vez, um corpo humano que permitiu ao Bodhisatva penetrá-lo por completo e dentro dele desenvolver suas

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capacidades. Com isso foi criado um ser humano que os homens devem imitar para tornar-se semelhantes a ele, podendo enfim encontrar por si mesmos a Senda das Oito Sabedorias, tal como o Bodhisatva a encontrou por si mesmo sob a árvore Bodhi. Portanto, se a individualidade encarnada no Buda tivesse sido pesquisada em suas encarnações anteriores, teria sido preciso dizer que em parte sua entidade necessitava permanecer nos mundos espirituais, podendo enviar ao corpo físico apenas uma parcela de sua natureza. Somente agora, de quinhentos a seiscentos anos antes de nossa era, existia o primeiro organismo humano em que o Bodhisatva podia penetrar completamente, dando assim o exemplo de como a humanidade poderia, por si mesma, encontrar a Senda das Oito Sabedorias a partir dos caracteres morais da alma.

Todas as religiões e todas as cosmovisões conheceram a existência de seres humanos que habitam os mundos espirituais com uma parte do ser. Elas sabiam que, para certos seres, a entidade humana é demasiado restrita para abrigar a total individualidade dos que têm a missão de atuar na Terra. Nas concepções cósmicas da Ásia Menor, chamava-se este tipo de ligação — entre individualidades superiores dessas entidades e um corpo físico — de ‘estar pleno do Espírito Santo’. Esta é uma expressão específica bem definida. E, usando as palavras da linguagem da Ásia Menor, diríamos que uma entidade como a do Bodhisatva encarnada na Terra está ‘plena do Espírito Santo’, isto é, que as forças constitutivas de tal entidade não estão completamente em seu interior; é preciso que algo de espiritual atue do exterior. Do mesmo modo, portanto, poderíamos dizer que o Buda, em suas encarnações anteriores, estava pleno do Espírito Santo.

Tendo compreendido isto, poderemos também compreender o que lemos no início do Evangelho de Lucas e já ontem foi mencionado. Sabemos que no corpo etérico de um dos meninos Jesus, aquele proveniente da linha natânica da casa de Davi, vivia a parte até agora imaculada do corpo etérico subtraído à humani-dade pelo acontecimento conhecido por ‘pecado original’; isto significa que a substância etérica extraída de Adão fora preservada e guardada, sendo agora entregue a esta criança. Assim era preciso, a fim de surgir um ser tão jovem, intocado pelas vivências da evolução terrestre, que pudesse absorver tudo o que lhe era destinado absorver. Acaso um homem comum, que desde a época lemúrica tivesse cumprido suas encarnações, teria podido receber a influência do nirmanakaya do Buda? Jamais! E menos ainda teria podido absorver o que mais tarde deveria integrar-se nele. Foi preciso nascer um corpo humano tão enobrecido que só existisse pelo fato de a substância etérica de Adão, ainda total-mente resguardada das vivências terrestres, ser inserida justamente no corpo astral deste menino Jesus. Por tal razão a substância etérica também estava ligada a todas as forças que haviam atuado sobre a Terra antes do pecado original e que, por este motivo, desenvolviam agora sua atuação poderosa nesta criança. Assim se tornou possível o que já mencionamos ontem: a singular influência que a mãe do Jesus natânico exerceu sobre a mãe de João Batista e também sobre o próprio João, antes de seu nascimento.

Neste sentido, também é preciso esclarecermos quem é a entidade com a qual deparamos em João Batista. Só poderemos compreender essa entidade de João Batista se colocarmos diante de nossa alma a diferença entre a estranha anunciação que fluiu através do Buda na índia — caracterizada suficientemente para nossa finalidade — e aquela anunciação feita ao antigo povo hebraico por Moisés e seus seguidores, os antigos profetas hebreus.

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Por intermédio do Buda, a humanidade recebeu o que a alma pode considerar sua própria legitimidade, podendo postulá-lo a fim de purificar-se e desenvolver-se até à máxima elevação moral possível aqui na Terra. A lei da alma — darma — foi proclamada pelo Buda, e o foi de maneira que o homem, em sua mais alta evolução humana, possa encontrá-la em sua própria alma. E foi o Buda quem pela primeira vez a propagou. A evolução humana, porém, não transcorre em linha reta. As mais diversas correntes culturais devem fecundar-se reciprocamente.

O que deveria suceder na Ásia Menor como evento do Cristo tornava necessário que, de certo modo, aí a evolução se atrasasse em relação à evolução indica, a fim de mais tarde absorver, refortalecida, o que fora dado à cultura indica de outra maneira. Foi preciso, por assim dizer, criar na Ásia Menor um povo que se desenvolvesse de modo diferente e menos do que os povos mais orientais. Se, no sentido da sabedoria cósmica, os povos do Oriente haviam sido guiados ao ponto de poderem ver o Bodhisatva como Buda, entre os povos da Ásia Menor — principalmente no antigo povo hebraico — era preciso deixar as pessoas num grau de evolução mais infantil e menos evoluído. Isto era necessário: foi preciso fazer na evolução da humanidade, em grande escala, algo similar ao que poderíamos observar, mais restritamente, numa pessoa que até seu vigésimo ano de vida se desenvolvesse a ponto de atingir certa maturidade; com isto ela teria adquirido certas capacidades, mas ao mesmo tempo as capacidades adquiridas constituem um certo freio, um empecilho.

Quando, em determinada idade, adquirimos certas capacidades, estas se caracterizam por querer conservar-se em seu estágio evolutivo, por querer prender o homem nesse estágio. Elas o detêm e, aos trinta anos, não será fácil ele ultrapassar esse grau adquirido aos vinte anos. Se, pelo contrário, temos uma segunda pessoa, que em seu vigésimo ano de vida tenha adquirido ainda pouco por si mesma e depois tenha aprendido essas habilidades da outra pessoa, então essa que se conservou infantil por mais tempo alcançará tal estágio com maior facilidade, podendo no trigésimo ano de vida atingir um estágio mais elevado do que o primeiro. Quem souber observar a vida verá que assim acontece. Capacidades alcançadas e que, por assim dizer, transformamos em nossa propriedade, criam também algemas para o futuro, enquanto algo que não ligamos tanto à nossa alma, adquirido mais exteriormente, prende-nos menos.

Se a humanidade quer progredir, é preciso sempre providenciar para que haja uma corrente cultural absorvendo em seu âmago um certo número de capacidades, e uma outra corrente, fluindo praticamente ao lado desta primeira, que no entanto deve ser contida em sua evolução. Cria-se assim uma corrente cultural capaz de desenvolver até um ponto adequado certas capacidades, que se integram no mais recôndito dessa corrente e na natureza humana. Ela vai mais além: surge algo novo. Porém tal corrente não seria capaz de elevar-se, por si mesma, a um estágio superior. Por isso se faz necessário providenciar uma segunda corrente, que acompanhe paralelamente a primeira. Esta segunda permanece subdesenvolvida, de certo modo, não tendo absolutamente alcançado a altura da primeira. Prosseguindo, ela recebe da outra tudo o que adquire e, por ter-se conservado entrementes jovem, posteriormente poderá elevar-se bem mais. Assim, uma fecundou a outra. Por isso as correntes espirituais devem caminhar lado a lado na evolução da humanidade; e por meio da direção espiritual do mundo é preciso tomar providências para que assim aconteça.

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Como, na direção espiritual do mundo, poderia ser providenciado para que paralelamente à corrente que encontrou sua expressão no grande Buda corresse uma outra, que somente mais tarde absorvesse o legado do budismo à humanidade? Só se podia tomar providências impedindo que a corrente designada por nós como proto-hebraica gerasse, por meio de uma atitude moral própria, homens capacitados a desenvolver darma, ou seja, homens capazes de trilhar a Senda das Oito Sabedorias. Esta corrente não podia ter um Buda. A tal corrente exterior devia ser dado o que o Buda integrara interiormente em sua corrente espiritual. Por isto, e para que tudo acontecesse da forma mais sábia possível, muito tempo antes do aparecimento do Buda esses povos da Ásia Menor não receberam a lei interiormente, e sim de forma exterior pela revelação do Decálogo, na lei dos Dez Mandamentos (2. Moisés 20, 2-17). O que deveria ser concedido a uma outra corrente humana como propriedade interior foi dado ao povo hebraico, nos Dez Mandamentos, como um conjunto de leis exteriores experimentadas de fora, ainda não inatas à alma. Por este motivo, todo membro do antigo povo hebraico encara os Mandamentos como algo vindo do céu, devido à infantilidade de seu grau de evolução.

Ao povo hindu fora ensinado reconhecer a lei da alma, o darma que os homens criam por si mesmos, e o antigo povo hebraico foi preparado para obedecer à lei que lhe foi dada do exterior. Desta forma o povo hebraico se tornou uma maravilhosa complementação para o que Zaratustra dera à sua cultura e a todas as outras provenientes dela.

Conviria ressaltar que Zaratustra dirigiu o olhar ao mundo exterior. Enquanto no Buda encontramos ensinamentos profundamente marcantes a respeito da dignificação do íntimo do ser humano, em Zaratustra encontramos o grande, imenso ensinamento a respeito do Cosmo, ensinamento que nos deverá elucidar o Universo de cujo seio crescemos. Se o olhar do Buda era dirigido ao interior, o olhar dos membros do povo de Zaratustra era dirigido ao mundo exterior, a fim de perpassá-lo espiritualmente.

Tentemos aprofundar-nos no que Zaratustra ofereceu a partir de seu primeiro aparecimento, quando trouxe a anunciação de Ahura Mazdao, até a época seguinte, quando surgiu como Nazaratos. Ele ministrava ensinamentos cada vez mais incisivos sobre as grandes leis espirituais e sobre as entidades do Cosmo. Tratava-se, por assim dizer, apenas de indicações a respeito do Espírito do Sol, as quais Zaratustra ofereceu à cultura persa; mais tarde, porém, ele as desenvolveu de modo mais amplo, e encontramo-las então sob a forma do maravilhoso — e hoje tão pouco compreendido — ensinamento caldaico sobre o Cosmo e sobre as origens espirituais do nosso nascimento. Se examinarmos esses ensinamentos a respeito do Cosmo, eles nos revelarão uma peculiaridade bem importante.

Quando ainda falava ao antigo povo persa sobre as origens espirituais exteriores do mundo sensório, Zaratustra colocou à frente de seres humanos duas potências, Ormuzd e Árimã ou Angra-Mainju, as quais se encontram em todo o Universo como forças oponentes. Contudo, os Senhores não encontrariam nes-ses ensinamentos o que poderíamos chamar de calor moral que permeia a alma. Segundo a compreensão da antiga Pérsia, o ser humano ainda constitui parte inerente de todo o processo cósmico. E uma disputa entre Ormuzd e Árimã — que atuam um contra o outro — é travada no interior da alma humana. E por estarem lutando entre si, ardem dentro dela as paixões desenfreadas. Ainda não se tinha noção do que fosse a alma íntima humana. O que fora transmitido era um

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ensinamento cósmico. Ao se falar do Bem e do Mal, fazia-se referência às conseqüências benignas, às úteis e às malignas que se confrontam no Cosmo e também se manifestam no ser humano. A ‘cosmovisão moral’ ainda não estava, por assim dizer, integrada neste ensinamento do ‘olhar para o exterior’. Por tal ensinamento passava-se a conhecer todas as entidades que dominam o mundo sensorial — tudo o que rege o mundo de forma benigna e luminosa, como também tudo o que de obscuro e maligno se manifesta nele. As pessoas se senti -am envolvidas nessa trama. Porém a verdadeira moralidade, da qual o homem participa com sua alma, ainda não era sentida dentro da própria alma como sucederia mais tarde. Por exemplo, ao ser confrontado com uma pessoa considerada ‘má’, o homem sentia que através dessa pessoa fluíam forças provenientes das más entidades do mundo; sentia que ela estava ‘possuída’ por tais entidades. Tampouco poderia dizer que ela fosse culpada dessa situação. O homem sentia-se envolvido pela trama de um sistema cósmico ainda não penetrado por qualidades morais. Era esta a peculiaridade de uma doutrina que por ora dirigia seu olhar apenas ao exterior, embora fosse esse o olhar espiritual.

O ensinamento hebraico forma uma complementação tão maravilhosa a esse ensinamento cosmológico por introduzir na revelação anterior o elemento moral, que possibilitou ligar a uma razão a concepção de culpa, de culpabilidade humana. Antes do elemento hebraico, só se podia dizer de uma pessoa má que ela estava possuída por forças malignas. A revelação da lei dos Dez Mandamentos tornou necessário diferenciar entre os que seguem esta lei e os que não a seguem. Surge a concepção de culpa, de culpabilidade humana. Podemos sentir de que maneira este conceito começa a penetrar na evolução humana ao lermos o Livro de Jó. Nesta narração está claramente expressa como ainda assola as pessoas a dúvida a respeito deste conceito de culpa, onde se torna trágica a existência destas dúvidas e incertezas sobre esse conceito. Deixem que o Livro de Jó atue sobre os Senhores, e perceberão a obscuridade a respeito deste conceito de culpa, o não saber ao certo como interpretar o aparecimento de um infortúnio; mas por outro lado encontrarão também um leve vislumbre do aparecimento desta nova concepção de culpa.

Assim, foi como uma revelação do exterior que o elemento moral foi outorgado precisamente a esse antigo povo hebraico — tal qual as demais revelações a respeito dos outros reinos da natureza. Isto só foi possível acontecer pelo fato de, conforme lhes contei, Zaratustra se haver preocupado com a continuidade de sua obra, transferindo seu corpo etérico para Moisés e seu corpo astral para Hermes. Deste modo Moisés se tornou capacitado, tal qual Zaratustra, a perceber o que atua no mundo exterior, porém sentindo não apenas forças neutras e indiferentes a par destas percepções, mas aquilo que rege moralmente o mundo, aquilo que pode tornar-se mandamento. Por este motivo o antigo povo hebraico vivia de modo a poder abrigar em sua cultura o que podemos designar por obediência, sujeição à lei, enquanto a corrente espiritual do Buda abrigava em seu âmago o ideal de encontrar na Senda das Oito Sabedorias a direção para a vida humana.

Mas o desígnio deste antigo povo hebraico era preservar-se até o momento certo, que estamos justamente empenhados em caracterizar: até o aparecimento do princípio Crístico, este povo deveria, por assim dizer, ser salvo da revelação do Buda, porém deveria ser mantido num — se assim quisermos chamá-lo — estágio cultural mais imaturo. Por conseguinte era preciso, dentro do antigo povo hebraico, encontrar personalidades que, por sua natureza, não podiam abrigar a

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entidade total de uma individualidade que tivesse, por exemplo, de representar a ‘lei’. Não poderia surgir no povo hebraico uma personalidade que fosse como o Buda; assim, só foi possível que se chegasse aos Mandamentos por iluminação exterior pelo fato de Moisés possuir o corpo etérico de Zaratustra e ter possibilitado o recebimento de algo que não nascera da própria alma. Ao povo hebraico não era possível fazer nascer a lei em seu próprio coração. Contudo, era preciso que a obra de Moisés continuasse e, assim como qualquer obra, prosse-guisse para, em tempo certo, trazer o fruto certo. Por esta razão deviam surgir no povo hebraico as individualidades que encontramos como sendo os profetas e os videntes. E um dos mais importantes dentre esses videntes é o que conhecemos por Elias.

Como devemos imaginar tal personalidade? Elias devia ser, entre o povo hebraico, um administrador do que Moisés encaminhara. No seio desse povo, contudo, não havia possibilidade de nascerem pessoas totalmente integradas no que era representado pela lei de Moisés, algo que só podia ser recebido como uma revelação das alturas. O que caracterizamos como necessário à época indica, mesmo como a estranha natureza do Bodhisatva, agora precisava aparecer também no povo hebraico, e começou então a surgir repetidamente. Era mister haver individualidades que não se integrassem completamente na personalidade humana, e cuja entidade estivesse só parcialmente dentro da personalidade terrena, estando ainda, por outro lado, ligada ao mundo espiritual. Um desses seres era Elias. Na pessoa que no plano físico encontramos como sendo Elias está contida apenas parcialmente a entidade de Elias. Sua individualidade não pôde penetrar por completo no corpo físico de Elias. Devemos denominá-la uma personalidade ‘plena do Espírito’. E seria impossível que forças normais, por cujo intermédio o homem vem ao mundo, suscitassem o aparecimento de uma personalidade como a de Elias na Terra.

Quando, em caso normal, um ser humano deve vir ao mundo, a partir dos processos físicos a entidade humana se desenvolve dentro do ventre materno, de modo que em dado momento a individualidade que estivera encarnada anteriormente simplesmente se liga à entidade física. No homem comum tudo segue, por assim dizer, em linha reta, sem a interferência de forças específicas situadas fora do caminho normal. Não poderia ser este o caso numa individualidade como Elias. Era preciso que outras forças interferissem — aquelas ocupadas com a parte da individualidade que adentra o mundo espiritual. É preciso haver uma atuação do exterior sobre o homem em evolução. É por este motivo que tais individualidades, quando encarnadas em nosso mundo, aparecem como que inspiradas, impelidas pelo espírito. Elas aparecem como personalidades extáticas, transcendendo em muito o que sua inteligência comum lhes poderia esclarecer. É assim que aparecem todos os profetas do Velho Testamento. O espírito os impele; o eu nem sempre está consciente do que faz. O espírito vive na personalidade e é recebido do exterior.

Em certas épocas, tais personalidades recolhem-se na solidão; isto significa um retraimento da parte do eu necessitada pela personalidade e uma manifestação do espírito a partir do exterior. Em certos momentos de êxtase inconsciente, tal entidade capta as inspirações das alturas. Assim sucedeu principalmente com Elias. Aquele que em sua vida terrena se apresentava como Elias, bem como o que ele transmitia por sua fala, pelos movimentos de suas mãos, não advinha apenas da parte que nele vivia; eram revelações de seres divino-espirituais que se encontravam por detrás dessas manifestações.

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Quando essa entidade voltou a nascer, deveria unir-se ao corpo da criança nascida de Zacarias e Isabel. Do próprio Evangelho se sabe que devemos encarar João Batista como Elias renascido (Mateus 17, 10-13). Contudo, deparamos aí com uma individualidade que em suas encarnações anteriores não estivera habituada a desenvolver tudo o que deveria desabrochar por meio das forças contidas no próprio ciclo normal de vida. Num decurso normal, durante o desenvolvimento do corpo físico humano dentro do corpo materno, manifesta-se a força interior do eu. O que está intimamente ligado a esse acontecimento ainda não havia sido experimentado pela individualidade de Elias em tempos anteriores — pois ela ainda não havia descido tanto à vida terrestre. Seu eu não havia sido ativado pelas forças próprias, como sucede em circunstâncias normais, e sim por forças exteriores. Tal situação precisava repetir-se agora. Mais afastado do mundo espiritual, esse eu da individualidade de Elias encontrava-se agora mais próximo à Terra, estava agora mais ligado à Terra do que as entidades que anteriormente haviam guiado Elias. É que agora deveria ser criada a transição para a união das correntes do Buda e de Zaratustra. Tudo deveria rejuvenescer. Justamente agora era necessária a atuação exterior da entidade que se havia ligado tão intensamente às finalidades da Terra como Buda, o qual, em seu nirmanakaya, encontrava-se agora unido ao Jesus natânico. Esta entidade, que por um lado se achava também ligada à Terra, estando porém agora um tanto afastada por atuar somente no nirmanakaya, vivia ‘além’ da Terra, pois se elevara novamente. Ela pairava então sobre a cabeça do Jesus natânico; deveria agora atuar exteriormente e fazer desabrochar a força do eu de João Batista.

Foi, portanto, o nirmanakaya do Buda que atuou no desabrochar da força do eu de João Batista, da mesma forma como, em tempos anteriores, as forças espirituais haviam atuado sobre Elias. Naqueles tempos o ser de Elias entrava, em determinadas ocasiões, num certo estado de êxtase; então Deus falava e im-pregnava seu eu com uma força real, que ele podia então transmitir ao mundo exterior. Agora havia novamente uma entidade espiritual que, como nirmanakaya do Buda, pairava sobre o Jesus natânico; que atuava agora sobre Isabel no tempo em que deveria nascer seu filho João; que no ventre materno estimulou o feto no sexto mês de gestação e aí despertou o eu. Mas desta vez, por estar agora mais perto da Terra, essa força realizou não somente uma inspiração, mas a plena formação do eu de João. Sob a influência da visita daquela que é designada por Maria, o eu de João Batista se manifestou. Assim o nirmanakaya do Buda age, neste eu que outrora fora o eu de Elias, no atual eu de João Batista, de modo a despertar e libertar até a substância física. O que podemos esperar agora?

Assim como outrora, no nono século antes da era cristã, Elias pronunciou suas palavras imponentes, sendo estas na realidade palavras divinas e os gestos de sua mão gestos divinos, em João Batista deveria suceder de forma similar, revivendo ele o que existira em Elias. O conteúdo do nirmanakaya do Buda atuava sob forma de inspiração no eu de João Batista. O que se anunciava aos pastores, pairando sobre o Jesus natânico, enviava suas forças ao íntimo de João Batista. E o sermão de João Batista consiste, em princípio, na evocação do sermão do Buda. Sucede aqui algo muito estranho, que deverá deixar uma profunda im-pressão em nossas almas se nos recordarmos do Sermão de Benares, quando o Buda falou dos sofrimentos da vida e da redenção destes sofrimentos por intermédio da Senda das Oito Sabedorias, que a alma deve procurar. Naquela época o Buda proclamou o que reconhecera como sendo o caminho das Oito Sabedorias; muitas vezes ele continuava seu Sermão dizendo o seguinte: “Até

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hoje tivestes o ensino dos brâmanes; estes assinalam sua origem como sendo do próprio Brahma. Dizem eles serem um pouco mais privilegiados em relação às demais pessoas por descenderem de tão nobre origem. Esses brâmanes dizem que o valor do homem é assegurado por sua ascendência. Porém eu vos digo: o homem adquire valor pelo que faz de si mesmo, e não pelo que a ascendência lhe propicia. Ele tem valor para a grande Sabedoria Universal pelo que, como indivíduo, consegue realizar em si mesmo.” Em conseqüência, o Buda provocou a ira do mundo brâmane, ao ressaltar o valor de qualidades individuais dizendo: “Em verdade vos digo: pode alguém chamar-se brâmane quantas vezes quiser — isto não importa; importante é tornar-se uma pessoa purificada pelo esforço pessoal.” Embora não fosse assim expresso literalmente, era este o sentido de muitos sermões do Buda. E geralmente ele dava continuidade a tais ensinamentos mostrando como o homem, ao compreender o mundo dos sofrimentos, pode sentir compaixão e transformar-se em alguém que tanto consola como reconforta, compartilhando do destino dos demais por saber que, como eles, sente a mesma dor e o mesmo sofrimento.

Agora o Buda estava em seu nirmanakaya, iluminava o Jesus natânico e prosseguia com o seu Sermão fazendo com que as palavras soassem pela boca de João Batista. As palavras proferidas por João Batista ocorriam sob inspiração do Buda. E parecem-nos uma continuação do Sermão do Buda as seguintes palavras de João, por exemplo:

Vós, que tanta importância dais ao fato de poderdes dizer-vos descendentes dos que, a serviço das forças espirituais, são chamados ‘Filhos da Serpente’ e sempre se referem à ‘sabedoria da Serpente’, por quem fostes guiados até este ponto? Apenas dizendo 'temos Abraão como pai' credes estar ofertando dignos frutos da penitência!

Agora, porém, João prossegue com o Sermão do Buda, dizendo:Não clameis ser Abraão vosso pai, mas transformai-vos em verdadeiros homens no lugar onde se encontram na Terra. No lugar da pedra sobre a qual pisam vossos pés poderá erguer-se um verdadeiro homem. Em verdade, Deus pode fazer surgir das pedras filhos para Abraão. [Lucas 3, 7-8.]

E, dando continuidade ao Sermão do Buda, disse: “Quem tiver duas túnicas, reparta com quem não tem nenhuma.” (Lucas 3, 11.) Eles vieram até ele e perguntaram-lhe: “Mestre, que devemos fazer?” (Lucas 3, 12), exatamente como outrora os monges vieram ao Buda e perguntaram: “Que devemos fazer?” Todas estas palavras soam como as palavras do Buda, ou como sua continuação.

Assim, tais entidades aparecem no plano físico pelas mudanças de época, e desse modo, aprendemos a compreender a unidade das religiões e das profecias espirituais da humanidade. Não chegamos a conhecer quem foi o Buda mantendo-nos presos ao tradicional, e sim estando atentos ao que ele realmente diz. O Buda se expressou, como conhecemos, por meio do Sermão de Benares, quinhentos a seiscentos anos antes da era cristã. Mas a voz do Buda não emudeceu. Ele se faz ouvir mesmo já não estando encarnado, ao inspirar por intermédio do nirmanakaya. Pela boca de João Batista ouvimos o que o Buda nos tem a dizer seiscentos anos após ter vivido num corpo físico. Eis a ‘unidade das religiões’. Devemos procurar cada religião no momento certo da evolução da humanidade, procurando nela o elemento vivo, e não o que já morreu, pois tudo evolui. É preciso aprendermos a compreender isto. Porém, quem não quiser ouvir

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nas palavras de João Batista as mensagens do Buda assemelha-se a uma pessoa que viu uma roseira brotando e, depois de algum tempo, tendo a roseira crescido e estando em completa florescência, não quer acreditar que esta roseira se haja desenvolvido a partir daquele broto, dizendo portanto agora: “Isto é outra coisa.” O que vicejava no broto floresce agora na roseira. E o que era vivo no Sermão de Benares desabrochou no sermão de João Batista às margens do rio Jordão.

Desta maneira, viemos a conhecer o íntimo de uma outra individualidade que se nos depara na época tão intensamente referida pelo Evangelho de Lucas. Só aprenderemos a conhecer verdadeiramente este evangelho elevando-nos passo a passo à compreensão real do significado de cada uma de suas palavras. Em sua introdução, Lucas nos diz que deseja relatar novamente as informações dos que atuavam como ‘videntes por si mesmos’. Porém, esses videntes viam as verdadeiras situações tal como estas se desvendaram paulatinamente no decorrer dos tempos; eles não viam apenas os acontecimentos que ocorrem no plano físico. Quem vê unicamente estes últimos poderia dizer: “Quinhentos a seiscentos anos antes da era cristã, viveu na índia um homem que era filho do rei Sudodana e era chamado Buda, e certa vez viveu um tal João Batista.” Porém não encontra o que liga um ao outro, pois somente no mundo espiritual isso pode ser visto. Lucas, contudo, diz estar relatando de acordo com os que 'viram', com os que eram videntes. Não basta simplesmente aceitarmos as palavras dos antigos documentos religiosos; devemos aprender também a ler essas palavras em seu sentido correto. Para isso, no entanto, as individualidades que se apresentam devem estar claramente delineadas diante de nossa alma — o que só ocorrerá ao conhecermos tudo o que afluiu para elas.

Dissemos que a individualidade que desce à Terra, seja ela qual for, só se desenvolve de acordo com as capacidades oferecidas pelo corpo físico em que se encarna. Também a presente entidade precisava contar com isso. Suponhamos que hoje uma entidade altamente desenvolvida deseje encarnar-se; ela só po-deria contar com as leis que regem o corpo físico do homem atual. Reconhecer a verdadeira natureza dessa individualidade é algo possível só ao vidente — aquele que percebe como os mais recônditos fios se entretecem no íntimo do ser. Tal ser com alto grau de sabedoria precisa, porém, preparar seu corpo para a maturidade durante a infância, para que em determinado momento seja possível revelar-se o que ele fora como entidade em encarnações anteriores. Se a missão de tal entidade for a de suscitar determinados sentimentos no homem, a encarnação física deverá estar de acordo com essa missão, de modo que o corpo físico possa suportar o encargo. Nos mundos espirituais, as situações se mostram bem diversas das situações do mundo físico. Se uma entidade espiritual quiser falar aos homens sobre cura dos sofrimentos, libertação do pesar, terá de sentir e experimentar as profundezas do sofrimento para poder encontrar as palavras adequadas no sentido humano.

O que a entidade oculta no corpo do Jesus natânico tinha a revelar posteriormente era uma mensagem para toda a humanidade. Era algo que deveria fazer o homem transcender toda e qualquer consangüinidade anterior. Isso não pretendia anular tal parentesco nem desfazer os laços existentes entre pai e filho, irmão e irmã, mas acrescentar, a esse amor nascido da consan-güinidade, o afeto que chamamos de amor ao próximo e que se estende de alma para alma, elevando-se acima dos laços sangüíneos. Era isso o que deveria trazer a entidade que mais tarde se revelou no Jesus natânico. Ela trazia uma mensagem de amor, de aprofundamento do amor, em nada relacionada com

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laços de sangue. Contudo, para tal essa entidade que vivia no corpo do Jesus natânico deveria primeiro vivenciar na Terra o que significa não sentir-se ligado a ninguém, não estar ligado a outros por laços sangüíneos. Somente assim ela poderia sentir desprendidamente o que flui de homem para homem. Ela deveria sentir-se inteiramente livre dos laços do parentesco, até mesmo da possibilidade de ligações sangüíneas. Não tornar-se um ‘apátrida’, como o Buda, que deixou a pátria partindo para longe, mas desfazer-se de quaisquer relações de família, de tudo quanto pudesse relacionar-se com laços sangüíneos — assim deveria mostrar-se ao mundo a individualidade do Jesus natânico. Ele deveria experimentar toda a amargura da dor sentida quando se enfrenta a despedida de tudo o que normalmente é caro ao homem quando é preciso ficar sozinho; a individualidade que vivia no Jesus natânico só deveria manifestar-se depois de ter sofrido a grande solidão, vivenciando a falta da família. Quem era essa entidade?

Sabemos tratar-se da entidade que viveu aproximadamente até o 12Q ano de vida no Jesus salomônico — a individualidade, o espírito de Zaratustra que vivia no Jesus salomônico, cujos progenitores eram o pai e a mãe salomônico. O pai, contudo, falecera cedo — o menino era órfão de pai. Além dele, havia irmãos e irmãs nessa família em cujo seio ele vive durante o tempo em que — ele, Zaratustra — permanece no corpo do Jesus salomônico. Então ele deixa esta família aos doze anos; deixa a mãe, deixa os irmãos e irmãs para poder transferir-se ao corpo do Jesus natânico. Morre então esta mãe [natânica] e mais tarde também o pai [natânico]. E ao partir para sua atuação no mundo, ele se desliga de todo e qualquer laço de sangue. Deste momento em diante não fica apenas totalmente órfão, completamente separado de irmãos e irmãs; como entidade de Zaratustra, tem de resignar-se a não ter jamais descendentes, a não constituir jamais uma família. Ora, a entidade de Zaratustra não deixou apenas pai, mãe, ir-mãos e irmãs: deixou também o próprio corpo, penetrando em outro corpo — o corpo do Jesus natânico. Assim essa entidade podia realizar um trabalho preparatório para uma entidade ainda mais elevada, a qual, por sua vez, podia preparar-se no corpo do Jesus natânico para a grande missão de anunciar o amor humano universal. E quando a mãe e os irmãos dessa entidade vieram e lhe foi avisado: “Tua mãe e teus irmãos estão aí fora e querem ver-te”, ela pôde dizer do fundo do coração, sem ser mal-interpretada, sem ferir sensibilidades, diante de todo o povo: “Eles não o são!” — pois até mesmo o corpo físico ligado a essa família Zaratustra abandonara. E apontando para os que compartilhavam de sua livre comunidade espiritual, ele pôde dizer: “São minha mãe e meus irmãos aqueles que ouvem e cumprem a palavra de Deus!” (Lucas 8, 20-21.) E nesta proporção que se deve considerar literalmente as palavras das escrituras religiosas.

Para que alguém pudesse anunciar, pregar o amor humano universal, era preciso encarnar-se numa forma física onde experimentasse o abandono total de tudo o que os laços sangüíneos pudessem fundamentar. É para uma figura assim que convergem todos os nossos sentimentos, de modo a se aproximarem dela como num contato humano — uma figura que desce de grandes alturas espirituais e dá expressão à experiência e aos sofrimentos humanos. É por esta razão que nossos corações se voltam em sua direção. E à medida que a compreendermos espiritualmente, tanto melhor a compreenderemos, e tanto mais nossos corações se inclinarão para ela, e nossas almas a aclamarão.

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21 de setembro de 1909

O Verbo se faz carneNos últimos dias tentamos criar uma imagem das mais importantes

entidades mencionadas no Evangelho de Lucas. Adquirimos amplos conceitos das bases desse documento. Porém ainda necessitamos acompanhar o subseqüente desenvolvimento da entidade principal e, com isto, da entidade principal da Terra — o próprio Cristo Jesus. Para tanto, será necessário primeiramente lembrarmos o que já foi dito — que o Cristo Jesus, de cuja descrição trata o Evangelho de Lucas e que mais tarde se nos apresenta, nasceu, por assim dizer, fisicamente como o Jesus natânico da casa de Davi. Esta criança cresce até aproximadamente seu 12Q

ano de vida. Tendo sua evolução progredido até essa etapa, adentra seu corpo o eu que certa vez esteve incorporado na entidade iniciadora da cultura persa. Deste modo temos, a partir do 12Q ano de vida, o eu de Zaratustra no corpo do Jesus natânico. Deveremos, portanto, acompanhar pormenorizadamente a evolução dessa entidade. Devemos então recordar-nos de um fato para o qual nossos precedentes estudos da Ciência Espiritual nos deixaram preparados.

Sabemos que o desenvolvimento do ser humano normal caminha de modo a ocorrer um período muito importante entre o primeiro e o sétimo ano de vida; outro período de importância evolutiva é aquele situado entre o sétimo e aproximadamente o 14Q ano, isto é, até a puberdade; outro período vai do 14Q ao 21º ano; segue-se o período que finda com o 28º ano, e a seguir mais outro, que termina no 35º. Naturalmente, esses períodos não devem ser encarados com rigor, a ponto de se julgar que haja coincidência absoluta entre seu término e a data de aniversário; porém, é no período da troca dos dentes que devemos localizar, dentro da evolução humana, o importante momento de transição usualmente caracterizado pelo término do sétimo ano. Essa transição não ocorre de uma só vez; desenrola-se paulatinamente na época da troca dos dentes. Da mesma maneira, também nos demais períodos tudo se processa gradativamente. Sabemos agora — sobre isto há uma descrição mais detalhada em meu livrinho A educação da criança segundo a Ciência Espiritual — que, ao término do sétimo ano de vida, há um acontecimento espiritual muito semelhante ao acontecimento físico com o abandono do corpo materno: ocorre uma espécie de nascimento etérico. Com o 14º ano de vida, com a puberdade, sucede um nascimento astral; então se liberta o que constitui o corpo astral do ser humano. Ora, quando acompanhamos atentamente, com olhos espirituais, o prosseguimento da evolução humana, esta nos parece muito mais complexa. Da maneira como o homem realiza habitualmente sua observação, escapam-lhe as importantes di-ferenças que se manifestam no decorrer da vida toda, mesmo nos anos mais adiantados. Na atualidade, postula-se que a partir de certo momento muito pouca coisa sucede com o homem. Contudo essa é uma opinião muito rudimentar. Na realidade, se observarmos com maior apuro também os anos mais adiantados da vida, poderemos perceber certas diferenciações no desenvolvimento humano.

Quando o envoltório materno humano é deixado, o que nasce é, na realidade, apenas o corpo físico; assim, o que se manifesta livremente durante o primeiro setênio é o corpo físico. (Nos vários ciclos de conferências sobre a educação da criança, foi ressaltada a importância, para o educador, de conhecer justamente este aspecto.) Em seguida, ao ser deixado o envoltório etérico, o

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corpo etérico se liberta; quando, com o 14º ano de vida, é rompido o envoltório astral, torna-se livre o corpo astral. Contudo, falando mais precisamente, só poderemos compreender a entidade humana se partirmos da organização descrita em meu livro Teosofia. Ali há subdivisões também dos órgãos anímicos, superiores da natureza humana. Aí encontramos, anexando-se ao corpo vital, o que designamos por corpo das sensações e, na realidade, somente a partir dos 21 anos o corpo das sensações está verdadeiramente livre em relação ao mundo físico. Com o 21º ano de vida vai-se libertando aos poucos, dentro do homem, o que designamos por alma da sensação; com o 28Q ano torna-se livre a alma do intelecto, e depois a alma da consciência. É assim que ocorre no homem da atualidade. E quem observa a vida humana guiado pelo conhecimento da Ciência Espiritual sabe perfeitamente da existência desses ciclos evolutivos. Os grandes guias da humanidade sabem por que o 35º ano de vida é de tão grande importân-cia. Dante sabia por que enfatizava seu 35º ano de vida ao declarar que nesse período tivera aquelas magníficas visões cósmicas retratadas em seu grande poema universal. Bem no início da Divina comédia, é mencionado que ele teve essas visões em seu 35º ano de vida. Nessa ocasião o ser humano se encontra em tal estágio evolutivo que pode usar como instrumento as capacidades ligadas ao corpo das sensações, à alma da sensação e à alma do intelecto ou da índole.

Esta divisão sempre foi conhecida dos que discorreram sobre o homem no sentido evolutivo. Entre os orientais isso divergia um pouco — os períodos eram um tanto modificados. Por isso, seria válido para a cultura oriental não se fazerem as mesmas diferenças na divisão. Os gregos, por exemplo, usaram palavras apenas um pouco diferentes para descrever o que apresentamos aqui. Desejando descrever o anímico, eles partiam do que nós definimos como corpo vital e o chamavam de treptikon; o que denominamos corpo dos sentimentos era chamado muito caracteristicamente de aesthetikon; nossa alma da sensação era denominada orektikon, a alma do intelecto kinetikon e a alma da consciência, o bem mais precioso que o homem de hoje adquire, era chamado dianoetikon. É assim que temos diante de nós a evolução humana quando a observamos com justeza e exatidão.

Por determinadas circunstâncias, que em parte deverão ser esclarecidas ainda hoje, o desenvolvimento do Jesus natânico foi um pouco antecipado, um pouco acelerado. Isto também foi possível porque na região onde ele habitava a puberdade era mais precoce. Contudo, para ele havia outras razões relevantes para lhe sucederem aos doze anos os acontecimentos que habitualmente ocorrem aos catorze. E assim, os acontecimentos que normalmente ocorrem no 21º ano de vida, se manifestaram nele aos dezenove anos; e o que ocorre aos 28 e 35 anos sucedeu-lhe aos 26 e aos 33 anos.

Relação normal Jesus natânico

Corpo físico 1 - 7Corpo etérico (treptikon) 7 - 14Corpo astral ou corpo das sensações (aesthetikon) 14

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- 21

Alma da sensação (orektikon) 21 - 28

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Alma do intelecto (kinetikon) 28 - 35

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Alma da consciência (dianoetikon) 33É este, por assim dizer, o esquema do desenvolvimento da entidade central

da Terra. Devemos considerar agora que até o 12Q ano de vida temos o Jesus natânico, mas que a partir desta idade revive nele, estando fisicamente diante de nós, o eu de Zaratustra. O que quer dizer isto exatamente? Nada mais senão que esse eu, esse eu amadurecido, a partir do 12Q ano de vida do Jesus natânico passou a atuar em seu corpo astral, em sua alma da sensação e em sua alma do intelecto. E ele aperfeiçoou essas qualidades humanas de um modo possível apenas a um eu tão amadurecido quanto esse que passara pelas mais variadas encarnações vivendo os destinos do eu de Zaratustra. Deparamos assim com o maravilhoso fato de, no corpo do Jesus natânico em seu 12Q ano de vida, ter-se encarnado o eu de Zaratustra, aperfeiçoando as qualidades da alma do modo mais sutil e elevado possível. Por conseguinte, desenvolveu-se um corpo das sensações capaz de olhar para o Cosmo de modo a perceber quem era o antigo Ahura Mazdao, de acordo com sua entidade espiritual; desenvolveu-se uma alma da sensação que podia cultivar em seu âmago o saber, a sabedoria que se desenvolvera paulatinamente na humanidade a partir dos ensinamentos sobre Ahura Mazdao; e desenvolveu-se uma alma do intelecto que tudo captava, isto é, que sabia expressar em conceitos, em palavras — palavras de fácil compreensão — o que antes fora entregue à humanidade partindo do exterior, por intermédio das correntes espirituais.

Era dessa maneira que se desenvolvia esse Jesus natânico, trazendo em si o eu de Zaratustra. E ele prosseguiu nessa evolução até se aproximar o trigésimo ano de vida. Então ocorreu um novo fato. O fenômeno que, de certa maneira, já se apresentara no Jesus natânico aos doze anos — o fato de seu íntimo ter sido preenchido por um outro eu — entra em cena mais uma vez, porém agora de forma mais universal, mais significativa. Por volta do trigésimo ano vemos como o eu de Zaratustra completou sua missão para com a alma do Jesus natânico, tendo elevado as capacidades desta ao mais alto nível. Neste ponto ele havia, por assim dizer, completado sua missão relativa a esta alma, tendo-a impregnado com tudo o que adquirira em encarnações anteriores e podendo, portanto, declarar: “Minha missão se completou agora.” E certo dia o eu de Zaratustra deixou o corpo do Jesus natânico.

O eu de Zaratustra viveu, pois, no corpo do Jesus salomônico somente até os doze anos. Por esta razão, este menino não teria podido desenvolver-se mais no plano físico. Ele permaneceu, por assim dizer, estacionário no ponto de evolução em que se encontrava, por ter-se retirado dele o eu de Zaratustra, que nele vivia. É verdade que ele atingira uma elevada e excepcional maturidade, por trazer dentro de si um eu tão evoluído. Quem houvesse observado o menino Jesus salomônico apenas exteriormente teria dito tratar-se de uma criança amadurecida muito precocemente. Entretanto, a partir do momento em que foi abandonada pelo eu de Zaratustra ela estagnou, não mais conseguindo progredir.

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E quando se aproximou a ocasião em que, um tanto prematuramente, a mãe do Jesus natânico faleceu, isto é, teve seus membros espirituais transferidos para o mundo espiritual, ela levou consigo algo que fazia parte do Jesus salomônico como valor eterno e força plasmadora. Esta criança morreu também, mais ou menos na mesma época em que faleceu a mãe do Jesus natânico.

Foi um envoltório etérico muito valioso que, naquela ocasião, abandonou o corpo do Jesus salomônico. Sabemos ser a partir do momento aproximado em que a criança transpõe seu sétimo ano de vida, entre o sétimo ano e a puberdade, que o corpo etérico alcança um desenvolvimento especial. Este era, portanto, um corpo etérico desenvolvido pelas forças que emanavam do eu de Zaratustra. Sabemos que na morte o corpo etérico deixa o corpo físico; que tudo o que não tem valor para a eternidade é despido na vida humana normal, sendo levado apenas uma espécie de extrato do corpo etérico. No caso do Jesus salomônico, a maior parte imaginável do corpo etérico era útil para a eternidade. Todo o corpo etérico dessa criança foi levado aos mundos espirituais pela mãe do Jesus natânico.

Ora, o corpo etérico é o plasmador e construtor do corpo físico humano. Podemos, portanto, imaginar que existisse um profundo parentesco entre esse corpo etérico salomônico, que fora levado para os mundos espirituais, e o eu de Zaratustra, pois ambos estiveram unidos por doze anos em sua peregrinação pela Terra. E quando, devido à evolução de Jesus de Nazaré, o eu de Zaratustra deixou seu corpo, abandonando, por assim dizer, o corpo do Jesus natânico, começou a manifestar-se esta força de mútua atração existente entre o corpo etérico do menino Jesus salomônico e o eu de Zaratustra. Eles se uniram novamente e viveram num corpo físico. O eu de Zaratustra alcançara tal maturidade que podia dispensar nova passagem por um Devachan. Após um período de tempo relativamente curto ele podia, com o auxílio do corpo etérico caracterizado acima, construir um novo corpo físico. E assim nasceu pela primeira vez o ser que a partir de então sempre e sempre reaparecerá, e de maneira tal que apenas curtos períodos de tempo decorrerão entre sua morte física e um novo nascimento. De modo que esse ser, ao deixar o corpo físico por meio da morte, aparece na Terra logo em seguida, em nova encarnação.

Essa entidade, que fora buscar novamente seu corpo etérico da maneira descrita, caminha doravante pela história da humanidade. Como os Senhores podem bem imaginar, tornou-se o maior auxiliar dos que queriam compreender o grande acontecimento da Palestina. Sob o nome de ‘Mestre Jesus’, essa individualidade atravessa novas épocas; de modo que Zaratustra, o eu de Zara-tustra, após o reencontro com seu corpo etérico iniciou sua carreira como o ‘Mestre Jesus’, vivendo na Terra sempre em novas encarnações, para orientar e direcionar as correntes espirituais que designamos por cristãs. É ele o inspirador dos que desejam compreender o cristianismo vivo e evolutivo; no seio das escolas esotéricas, inspirou os que tinham por missão zelar continuamente pelos ensinamentos do cristianismo. Por trás das grandes formas espirituais do cristianismo está sempre ele, ensinando o significado real do grande acontecimento da Palestina.

Esse eu de Zaratustra, que vivificou o corpo do Jesus natânico do 12º ao trigésimo ano de vida, encontrava-se agora fora desse corpo, no qual penetra uma outra entidade. O momento em que se deu esse acontecimento — momento em que propriamente ‘um eu sublime’ entrou no Jesus natânico em lugar do eu de Zaratustra — é caracterizado nos Evangelhos como sendo aquele do batismo

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por João, no Jordão. Já por ocasião das conferências sobre o Evangelho de João foi ressaltado que o batismo, naqueles tempos remotos, era algo muito diferente do que viria a ser mais tarde, quando se tomou apenas um símbolo. Também João Batista o executava de forma diferente. Os que eram batizados eram mergulhados na água com toda a sua corporalidade — todo o seu corpo físico imergia. Ora, por meio de diversas palestras antroposóficas preparatórias, os Senhores sabem que em tal acontecimento algo muito extraordinário pode suceder. Já na vida comum, pode acontecer que uma pessoa, por exemplo, esteja prestes a se afogar e, nesse momento, tenha um choque tal que veja sua vida toda passar à sua frente como se fora um imenso panorama espiritual. Isto acontece porque, por um instante, ocorre o que só acontece após a morte: o corpo etérico se desprende do corpo físico, livra-se das forças do corpo físico. Isto sucedia à maioria das pessoas batizadas por João, e sucedeu especialmente no batismo do Jesus natânico: seu corpo etérico foi parcialmente retirado. E neste justo momento pôde imergir no corpo do Jesus natânico, dele tomando posse, a sublime entidade que designamos por Cristo.

Desta maneira, a partir do momento do batismo por João o Jesus natânico está impregnado pelo ser do Cristo. É isto o que exprimem as palavras assentadas nas mais antigas escrituras: “Este é o meu Filho muito amado, hoje eu o gerei.” Isto significa que agora foi gerado o Filho do Céu, o Cristo. O fecundador foi a Divindade Una que permeia o Cosmo; receptor foi o corpo e toda a organização do Jesus natânico, que havia sido preparado para receber o germe das alturas. “Este é o meu Filho muito amado, hoje eu o gerei” — assim está escrito nos mais antigos evangelhos manuscritos, e assim deveria ser verdadeiramente escrito nos Evangelhos (Lucas 3, 22).6

Quem é essa entidade que, naquela ocasião, se uniu ao corpo etérico do Jesus natânico? Não poderemos compreender essa entidade do Cristo se dirigirmos nosso olhar apenas à evolução terrestre. Essa entidade do Cristo é aquela que devemos chamar de ‘guia’ das entidades espirituais que, ao separar-se o Sol da Terra, saíram com ele e criaram um ambiente mais elevado para si nesse Sol, de modo a poderem atuar de fora sobre a Terra. Se, portanto, nos transferirmos mentalmente à época pré-cristã da Terra — desde que o Sol se separou do nosso planeta até o aparecimento do Cristo na Terra —, deveremos dizer o seguinte: estando as sensações do homem devidamente maduras, ao olhar para o Sol ele deveria sentir o que Zaratustra ensinara, ou seja, que o que nos chega através da luz e do calor solares é apenas o envoltório físico da entidade espiritual situada detrás da luz solar; pois atrás dela se ocultam os raios espirituais das forças que, advindas do Sol, penetram na Terra. Portanto, o guia de todas as outras entidades que enviavam seus resultados benéficos do Sol para a Terra é o ser que mais tarde seria chamado o Cristo. Por conseguinte, nas épocas pré-cristãs não se devia procurá-lo na Terra, e sim no Sol. E Zaratustra tinha razão ao designá-lo pelo nome de Ahura Mazdao, ao situá-lo no Sol e dizer: “Peregrinando pela Terra, não encontramos esse Espírito da Luz; quando, porém, olhamos para o Sol, aquele que aí vive espiritualmente é Ahura Mazdao, e aquilo que flui para nós sob forma de luz é o corpo do Espírito do Sol, de Ahura Mazdao, da mesma maneira como o corpo físico humano é o corpo do espírito humano.” Todavia, por intermédio dos grandes processos cósmicos essa entidade sublime se aproximava mais e mais da esfera terrestre. Por meio da clarividência era 6 Esta tradução conforme sugere Steiner consta hoje na Bíblia de Jerusalém (ed. brasileira — São Paulo: Paulinas, 1987): “Tu és o meu filho; eu, hoje, te gerei!” (Lc 3, 22). (N.E.)

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possível, por assim dizer, perceber cada vez mais a aproximação do Cristo em relação à Terra. E um reconhecimento muito claro desse Cristo se deu quando o grande predecessor do Cristo Jesus recebeu, na pessoa de Moisés, sua revelação no fogo do relâmpago no monte Sinai.

Que significam essas revelações a Moisés? Significam que o ser que se aproxima da Terra como entidade do Cristo apresentava-se, de início, como que por um reflexo, como uma imagem refletida pelo espelho. Imaginem sob forma espiritualizada o processo que, a cada noite de luar, observamos na lua cheia. Ao olhar para a lua cheia, vemos aí refletidos os raios do Sol. E a luz solar que flui nessa direção; só que nós a denominamos luar por estar sendo refletida pela Lua. Quem foi que Moisés viu na sarça ardente e no fogo do monte Sinai? O Cristo! Mas da mesma maneira como não vemos diretamente a luz solar na Lua, mas refletida, assim Moisés viu espiritualmente o Cristo num reflexo. E assim como nós chamamos a luz solar de luar ao vê-la refletida na Lua, do mesmo modo o Cristo foi chamado, naquela ocasião, de Javé ou Jeová. Por conseguinte, Javé ou Jeová não é outra coisa senão a imagem refletida do Cristo antes de ele próprio aparecer na Terra. Desta maneira o Cristo se anunciou indiretamente ao ser humano ainda incapaz de reconhecê-lo em sua mais profunda realidade, tal como a luz solar se anuncia nas noites escuras através dos raios lunares. Javé ou Jeová é o Cristo, porém não visto diretamente, e sim como uma luz refletida.

Esse Cristo deveria aproximar-se cada vez mais do reconhecimento e da percepção do homem. Isto significa que por um certo período deveria peregrinar pessoalmente pela Terra, ser um homem entre homens. Ele deveria tornar-se um habitante humano da Terra da mesma forma como, anteriormente, se revelara do próprio Cosmo aos iniciados. Para isso era preciso chegar o momento apropriado. Sempre se soubera da existência do Cristo onde a sabedoria cósmica era penetrada. E por ter-se revelado das mais variadas formas, ele recebeu também os mais variados nomes. Zaratustra chamou-o Ahura Mazdao, por ele se haver revelado no manto da luz solar. Os grandes mestres da humanidade que viveram na antiga índia logo nos primeiros tempos após a catástrofe atlântica, os chamados Santos Rishis, sabiam perfeitamente da existência desse Ser por serem iniciados; mas sabiam também não ser possível ainda nessa época, mas somente em épocas futuras, alcançá-lo pela cognição humana. Por esse motivo, a explicação para aquela época era que esse Ser vivia além da região dos sete Rishis, sendo chamado Vishva Karman. Portanto, também eles ensinavam a respeito desse Ser que chamavam de Vishva Karman e que Zaratustra chamava de Ahura Mazdao. Trata-se de nomes diversos para essa entidade que, descendo paulatinamente de alturas espirituais, se aproximava da Terra.

Mas era preciso preparar a evolução humana para que um corpo físico pudesse receber essa entidade. Para tanto era necessário, primeiramente, que uma entidade como a que vivera em Zaratustra amadurecesse de encarnação em encarnação, a fim de plasmar, num corpo físico tão imaculado como o de Jesus de Nazaré, as capacidades do corpo das sensações, da alma da sensação e da alma do intelecto. Foi assim que este ser humano se tornou apto a receber uma entidade tão evoluída. Tal preparação deveria processar-se lentamente. Para que uma alma da sensação e uma alma do intelecto pudessem receber esse preparo, era mister que primeiramente um eu passasse por tantas experiências e vivências por quantas passara Zaratustra, transformando as faculdades no Jesus natânico. Isto não era possível em época anterior — pois no menino Jesus deveria atuar não somente o eu de Zaratustra, mas também a elevada entidade que

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caracterizamos como o nirmanakaya do Buda. Esta atuou principalmente do exterior, a partir do nascimento até o 12º ano de vida. Para isso, no entanto, era necessário sobretudo que estivesse presente. Era preciso que aquele Bodhisatva ascendesse à existência de Buda, a fim de tornar possível, em seu próprio íntimo, a evolução do corpo espiritual do nirmanakaya, para que este pudesse atuar no menino Jesus natânico desde seu nascimento até seu 12º ano de vida. O próprio Bodhisatva deveria antes ultrapassar o estágio de Buda, a fim possuir em si a força para maturar um corpo físico destinado ao grande acontecimento. Na encarnação durante a qual ele se tornara Buda, ele ainda não chegara a poder desenvolver essa faculdade. Para isso era necessária primeiramente sua vida como Buda.

Um dia, quando a humanidade vier realmente a entender os tesouros de sabedoria que estão guardados nas lendas, poderá então ler, nos lugares adequados, que tudo o que deciframos da Crônica do Akasha está contido, de maneira maravilhosa, nas velhas lendas. Aí é relatado, e com razão, que também na antiga índia a entidade do Cristo foi ensinada como sendo um ente cósmico situado além da esfera dos sete santos Rishis. Eles sabiam que tal entidade vivia nas alturas espirituais e aos poucos se aproximava da Terra. Zaratustra também sabia que deveria dirigir o olhar para além da Terra, para o Sol; e o antigo povo hebraico, devido às qualidades e às capacidades que salientamos ontem, encontrava-se em condições de ser o primeiro a receber uma revelação do reflexo da entidade do Cristo. Isto também nos é dito sutilmente numa história que relata como o Buda, quando prestes a evoluir de Bodhisatva para Buda, esteve em contato com Vishva Karman, que mais tarde viria a ser chamado Cristo. Conta a lenda que, ao se aproximar seu 29º ano de vida, ele realizou o célebre passeio fora de seu palácio, onde até aquele momento sempre estivera gozando de todos os cuidados e zelos que lhe eram dispensados. Primeiramente viu um homem idoso, depois um enfermo, em seguida um defunto, e pouco a pouco ficou conhecendo toda a miséria da vida; viu a seguir um monge que se havia retraído dessa vida da qual fazem parte a velhice, a doença e a morte. Conta a lenda — encerrando uma verdade profunda — que então ele resolveu não partir de imediato mundo afora, mas regressar ainda uma vez ao palácio. Conta, porém, essa lenda que, durante esse seu passeio, ele foi adornado pelas alturas espirituais com as forças que o artista divino Vishva Karman, que lhe apareceu, enviava em direção à Terra. O Bodhisatva foi adornado com a força do próprio Vishva Karman, que mais tarde seria chamado Cristo. Por conseguinte, o Cristo era para ele algo ainda exterior, não lhe estando ainda ligado. Naquela ocasião, coincidia de o Bodhisatva se aproximar de seus trinta anos; porém ainda não lhe seria possibilitado efetuar a completa integração do Cristo num corpo humano. Para isso ele precisava tornar-se maduro, tendo alcançado esta maturidade justamente por meio da existência como Buda. E quando surgiu no nirmanakaya, tinha a missão de tornar maduro esse corpo do Jesus natânico — no qual ele próprio não se havia integrado —, para que ele pudesse receber Vishva Karman, o Cristo.

Foi desta maneira que as forças da evolução terrestre atuaram em conjunto para a concretização do grande acontecimento. Porém deve ocorrer-nos agora a seguinte pergunta: qual o relacionamento desse Cristo, desse Vishva Karman com entidades como os Bodhisatvas — dentre eles, por exemplo, aquele que mais tar-de se tornou Buda?

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Com esta pergunta, tocamos um dos maiores mistérios de nossa evolução terrestre. De modo geral, torna-se muito difícil para os sentimentos e a sensibilidade da atual humanidade ao menos pressentir a grandeza oculta por esse mistério. Entidades como esse Bodhisatva, que evoluiu para Buda e tinha por missão incorporar à humanidade o ensinamento da compaixão e do amor, tais entidades relacionadas com nosso Cosmo, ao qual pertence a Terra, existem em número de doze. Aquele Bodhisatva que se elevou a Buda quinhentos a seiscentos anos antes da era cristã é uma delas. Todos os Bodhisatvas têm uma determinada missão. Assim como o referido Bodhisatva tinha por missão trazer aos homens os ensinamentos da compaixão e do amor, também os outros têm suas missões a serem cumpridas nas diversas épocas terrestres. O Buda tem uma ligação especialmente estreita com a missão terrestre pelo fato de o desenvolvimento dos sentimentos morais ser a tarefa específica para a nossa era, desde o momento em que apareceu o Buda, isto é, quinhentos a seiscentos anos antes da era cristã, até a ocasião em que este for substituído por outro Bodhisatva, que posteriormente deverá viver na Terra como o Maitreya-Buàa. Assim prossegue a evolução da Terra: os Bodhisatvas descem das alturas espirituais para, de tempos em tempos, incorporar à natureza humana o objeto de sua missão. Se de um só golpe de vista pudéssemos ver toda a evolução da Terra, veríamos exatamente doze desses Bodhisatvas. Eles fazem parte da poderosa comunidade espiritual que, de tempos em tempos, deve enviar à Terra um dos Bodhisatvas como um guia especial, como um dos grandes mestres.

Temos de compreender estes doze Bodhisatvas como uma união espiritual concentrada, dirigindo toda a evolução da Terra. Esses doze Bodhisatvas coincidem com o conceito que, em nível inferior, conhecemos pelo conceito do mestre. São eles os mestres, os grandes inspiradores para uma ou outra parte do que a humanidade deverá adquirir.

De onde os Bodhisatvas recebem o que, de tempos em tempos, devem revelar? Se os Senhores pudessem ter uma visão dessa união espiritual dos Bodhisatvas, do círculo dos doze Bodhisatvas, veriam que em meio aos doze Bodhisatvas da nossa existência cósmica se encontra um décimo terceiro ser, que não pode mos imaginar ser um mestre como os outros doze, e sim a entidade de quem a própria sabedoria emana substancialmente. Por este motivo, quando se procura expressar a realidade, é certo dizer: os doze Bodhisatvas estão concentrados em torno de seu ponto central; estão absortos na contemplação da grande entidade que para eles faz fluir tudo o que, sob a forma de missão, eles deverão introduzir na evolução terrestre. Portanto, é desse décimo terceiro que emana o que os outros deverão ensinar. Eles são os mestres, os inspiradores, e o décimo terceiro é a própria essência do que eles ensinam. E sobre esse décimo terceiro que eles falam, é a ele que anunciam de época em época. Esse décimo terceiro é aquele que os antigos Rishis chamavam de Vishva Karman, que Zaratustra chamou de Ahura Mazdao; é aquele que nós chamamos de Cristo. Eis sua relação com todos os Bodhisatvas, sendo ele assim o guia, o orientador do grande círculo dos Bodhisatvas. E desta maneira o conteúdo de todas as anunciações realizadas por todos os Bodhisatvas é o ensinamento a respeito do Cristo, de Vishva Karman.

Aquele que, quinhentos a seiscentos anos antes da era cristã, transformou-se de Bodhisatva em Buda, foi adornado com as forças de Vishva Karman. Aquele que na figura do Jesus natânico recebeu o Cristo em seu íntimo não foi apenas

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‘adornado’, mas ‘ungido’, isto é, permeado, perpassado por Vishva Karman, pelo Cristo.

Em qualquer lugar em que houvesse pessoas com um pressentimento ou, por meio da iniciação, um conhecimento dessas circunstâncias, desses grandes mistérios da evolução humana, ali se refletia esse mistério como um símbolo, como uma imagem. Vemos como, por exemplo, nos poucos conhecidos e estranhos mistérios do norte da Europa, os mistérios de Drotte, já antes do aparecimento do Cristo foi criado um símbolo terrestre para o fato espiritual daquele círculo dos doze Bodhisatvas. Nos mistérios de Drotte, nos velhos templos da Europa, fazia-se sempre necessário, para os guias da evolução espiritual, uma comunidade de doze. Estes eram os que deveriam levar a anunciação. E havia um décimo terceiro que não ensinava, mas de cuja presença emanava a sabedoria recebida pelos demais. Esse era o quadro, aqui na Terra, de uma realidade celeste, espiritual. Por outro lado, Göethe, no poema Die Geheimnisse (Os mistérios), onde faz referência à sua inspiração rosa-cruz, faz-nos lembrar como doze se sentam ao redor de um décimo terceiro e como este não precisa ser um grande mestre; pois o irmão Marcos será tratado por esses doze — depois que esse décimo terceiro se houver afastado deles —, em toda a sua simplicidade, por ‘Décimo Terceiro’. Ele deve ser o portador não de um ensinamento, mas da própria substância espiritual. E em qualquer lugar onde houvesse um pressentimento ou o conhecimento desse importante fato, acontecia o mesmo.

Portanto, com o batismo por João no rio Jordão havia chegado para a evolução humana o momento em que esse décimo terceiro ser celeste descera à Terra como a própria substância espiritual, a cujo respeito todos os demais — Bodhisatvas e Budas — deveriam ensinar; e agora eram necessários imensos preparativos para que essa entidade pudesse imergir num corpo humano. É este o segredo do batismo no rio Jordão. E é este o ser que nos é descrito nos Evangelhos: Vishva Karman, Ahura Mazdao ou Cristo, como mais tarde foi chamado quando no corpo do Jesus natânico. Como tal, essa entidade deveria peregrinar pela Terra durante três anos num corpo humano, homem entre ho-mens, naquela entidade humana tão sofrida, que até o seu trigésimo ano de vida havia vivenciado tudo o que ouvimos no decorrer destas palestras. Este Jesus natânico foi transiluminado, percorrido pela entidade que anteriormente se ocultara nos luminosos e cálidos raios solares que irradiavam do Cosmo — aquela entidade, portanto, que seguira com o Sol quando este se separara da Terra.

Podemos formular ainda uma outra pergunta: por que essa entidade se uniu tão tardiamente à evolução da humanidade? Por que já não descera à Terra em tempos anteriores? Por que já não perpassara antes um corpo etérico humano, como o fez por ocasião do batismo por João no rio Jordão? Poderemos compreen-der a razão ao entendermos um pouco melhor o acontecimento que no Velho Testamento nos é apresentado como o pecado original. Esse acontecimento consiste no seguinte: — Certos seres que haviam permanecido estacionários no estágio evolutivo da antiga Lua, nos tempos da antiga Lemúria, tomaram posse do corpo astral humano. Este corpo astral foi penetrado pelos seres luciféricos naquela ocasião. A queda do Paraíso é a imagem representativa desse acontecimento. Por terem essas forças penetrado no corpo astral humano, o homem foi mais profundamente envolvido pelos acontecimentos terrestres do que teria sido sem esse fato. Se não tivesse recebido essa influência luciférica, o homem teria prosseguido na trilha de sua evolução menos envolvido pela matéria

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terrestre, tendo assim terminado seu ciclo evolutivo previsto em esferas mais elevadas. Por isso o homem desceu a Terra antes de, na realidade, dever fazê-lo. E se, ao contrário, nada houvesse ocorrido, se houvesse acontecido apenas o fato mencionado, naquela ocasião toda a atividade das forças luciféricas, que tinham como base o corpo astral dos seres humanos, teria sido transmitida também ao corpo etérico do homem. Isso, porém, as forças universais precisavam impedir. Portanto, algo muito especial deveria acontecer. (O significado disto se tornará ainda mais claro visto de um outro ângulo, através de meu livro A ciência oculta, a ser publicado em breve.) O homem não podia permanecer como era, tendo recebido as forças luciféricas em seu corpo astral. Ele tinha de ser protegido das forças luciféricas em relação a seu corpo etérico. Este propósito foi alcançado quando o homem se tornou incapaz de usar todo o seu corpo etérico. Uma parte deste foi afastada do arbítrio humano. Não tivesse esse benefício advindo dos deuses, tivesse o homem conservado o poder sobre todo o seu corpo etérico, jamais teria ele encontrado de modo correto o caminho através da evolução. Determinadas partes do corpo etérico tiveram de ser afastadas com a finalidade de ser poupadas para épocas posteriores. Tentemos agora imaginar quais eram essas partes.

À primeira vista, o homem é constituído pelas partes que vemos também exteriormente no mundo — as partes sólidas ou minerais, a parte líquida ou água, a parte gasosa ou ar. São estes os elementos que constituem o corpo físico humano, da mesma maneira como constituem tudo o que é físico. O etérico principia com o primeiro estado etérico, chamado estado do éter ígneo ou simplesmente estado do fogo. Fogo ou calor é o primeiro estado do éter, embora a física moderna não o considere algo substancial, interpretando-o como mero movimento. O segundo estado etérico é o estado do éter luminoso ou simplesmente luz, e o terceiro estado é aquele que de início não se apresenta ao homem sob sua forma original; é apenas como um reflexo, ou como uma sombra desse éter, que o homem pode percebê-lo no mundo físico sob forma de som, de sonoridade. Porém, o que se manifesta no mundo físico como som fundamenta-se em algo muito tênue, etérico, algo espiritual, de modo que devemos designar o som físico apenas como uma sombra do som espiritual, do éter sonoro ou do éter numérico. A quarta região do éter é o éter vital, o fundamento de toda a vida existente.

Da maneira como se apresenta o homem físico atual, tudo o que nele existe de anímico se imprime em sua corporalidade física e em seu corpo etérico. Todavia, tudo o que é anímico está, por assim dizer, consignado a determinadas substâncias etéricas. O que designamos por ‘vontade’ se expressa etericamente no que chamamos de fogo. Quem for ao menos um pouco receptivo a determinadas correlações no âmbito da sensação sentirá que, até certo ponto, é válido dizer que a vontade se manifesta fisicamente no sangue, mas vive etericamente no elemento do fogo; fisicamente ela se expressa no sangue, ou melhor, no movimento do sangue. O que designamos por sentimento se expressa na parte do corpo etérico correspondente ao éter de luz. Por ser assim é que o clarividente vê os impulsos da vontade do ser humano como chamas que ardem através de seu corpo etérico e se irradiam no corpo astral, e os sentimentos como formas luminescentes. Porém o que o homem vivência em sua alma como sendo seu pensar, e que externamos através de palavras, são apenas sombras do pensar, como os Senhores bem podem imaginar, pois também o som físico é apenas a sombra, o reflexo de algo superior. As palavras têm seu órgão no éter

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sonoro. Nossas palavras se baseiam nos pensamentos, são veículos de expressão para os pensamentos. Essas formas de expressão preenchem o espaço etérico à medida que enviam suas vibrações através do éter do som. Som, portanto, é apenas um reflexo das reais vibrações do pensamento. Porém o que constitui o âmago de todos os nossos pensamentos, conferindo-lhes sentido, pertence, de acordo com seu estado etérico, ao próprio éter da vida.

Significado ― Éter da vidaPensamento ― Éter do Som

Sentimento ― Éter da Luz Vontade ― Éter do fogo

Ar Água Terra

Dessas quatro formas de éter, apenas as duas de baixo foram deixadas ao homem da época lemúrica, após a influência luciférica, para que ele dispusesse delas livre e arbitrariamente: o éter do fogo e o éter da luz; por outro lado, foram-lhe subtraídas as duas formas de éter mais acima. E este o sentido intrínseco do relato segundo o qual depois que, pela influência luciférica, os seres humanos alcançaram a capacidade de distinguir entre o Bem e o Mal — expresso figurativamente na cena em que provam da ‘árvore do conhecimento’, — foi-lhes subtraído experimentar da ‘árvore da vida’. Isto significa ter-lhes sido subtraído o que teria impregnado livre e arbitrariamente o éter do pensamento e o éter da razão. Por este motivo, os seres humanos deviam desenvolver-se da seguinte maneira:

Na força arbitrária de cada pessoa estava colocado o que corresponde à sua vontade. O homem tem a possibilidade de fazer valer sua vontade própria, e o mesmo ocorre com seus sentimentos. Sentimento e vontade foram liberados para o emprego particular de cada pessoa; daí o aspecto individual do mundo dos sentimentos e do mundo da vontade. Porém o individual cessa imediatamente ao nos elevarmos do sentimento para o pensar; isto ocorre mesmo já nas expressões dos pensamentos, nas palavras do plano físico. Enquanto cada pessoa possui seus próprios sentimentos e sua própria vontade, passamos imediatamente a algo generalizado ao nos elevarmos ao mundo das palavras e ao mundo dos pensamentos. Ninguém pode produzir seus próprios pensamentos. Se estes fossem tão individuais quanto o são os sentimentos, nunca nos entenderíamos. Por conseguinte, o homem foi privado de usar arbitrariamente significado e pensamento, tendo estes ficado provisoriamente recolhidos às esferas divinas, para somente mais tarde ser entregues aos homens. Por este motivo podemos encontrar em qualquer lugar da Terra pessoas individuais com sentimentos e impulsos volitivos individuais, mas deparamos sempre com um pensar, uma linguagem comum nos povos. Onde existe uma linguagem comum, reina uma divindade popular comum. Essa esfera ficou vedada ao arbítrio humano; por ora, são os deuses que aí atuam.

Quando Zaratustra, juntamente com seus discípulos, apontava para o alto, para o reino espiritual, podia dizer: “Das alturas celestes flui o calor, o fogo; das alturas celestes flui a luz. São estas as vestimentas de Ahura Mazdao. Contudo, por trás dessas vestimentas se oculta algo que ainda não desceu, que ainda per-

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manece nas alturas espirituais, tendo apenas projetado sua sombra nos pensamentos físicos, nas palavras físicas dos homens.” Por detrás do calor solar, da luz solar esconde-se algo que vive no som, no significado, tendo-se revelado somente aos que puderam divisar o oculto por detrás da luz — algo relacionado com a palavra terrestre tal como esta se relaciona com a parte da vida reservada ao futuro do homem. Por esta razão dizia Zaratustra: “Elevai vosso olhar para Ahura Mazdao! Vereis como ele se revela nas vestimentas físicas da luz e do calor; mas por detrás destes está o divino Verbo criador, aproximando-se da Terra.”

O que é Vishva Karman? O que é Ahura Mazdao? O que é o Cristo em seu verdadeiro aspecto? O divino Verbo criador! Por este motivo, nos ensinamentos de Zaratustra se nos depara a estranha comunicação de que ele se tornou iniciado para perceber o divino Verbo criador, Honover, que deveria descer a Terra e que o fez pela primeira vez por ocasião do batismo por João Batista, no corpo etérico de um ser humano individual. O que fora conservado desde os tempos lemúricos, o Verbo, o Verbo espiritual, projetou-se das alturas etéricas, por ocasião do batismo por João Batista, no corpo etérico do Jesus natânico. E ao completar-se o batismo, o que sucedera? O Verbo se tornara carne.

O que havia pressagiado, desde o início, Zaratustra ou os que conheciam seus segredos? Como videntes que eram, haviam prenunciado o ‘Verbo’, oculto por detrás do calor e da luz. Eles eram ‘servidores do Verbo’, e o autor do Evangelho de Lucas anotou o que os Videntes por si próprios' haviam prenunciado, tendo-se tomado, por esta razão, 'servidores da Palavra'.

Por esse exemplo vemos de novo como os Evangelhos devem ser tomados literalmente. O que tivera de ser negado por tanto tempo à humanidade, por causa do princípio luciférico, tornara-se carne pela primeira vez e habitava numa única personalidade — descera à Terra, vivia aqui. Por tal motivo, este ser é o maior ideal dos que virão gradualmente a compreender sua natureza. Por conseguinte, nossa sabedoria na Terra precisa tomar os Bodhisatvas como exemplos. Eles têm sempre a missão de anunciar o que emana do décimo terceiro dentre eles. Nós, porém, precisamos convocar nossa Ciência Espiritual, precisamos fazer uso dos nossos conhecimentos, dos resultados da pesquisa espiritual, para compreender, penetrar o ser e a natureza de Vishva Karman, de Ahura Mazdao — do Cristo.

24 de setembro de 1909

A missão do Eu CrísticoTentamos formar uma idéia a respeito dos pontos que fundamentam os

primeiros capítulos do Evangelho de Lucas. Só conhecendo os acontecimentos históricos com os quais tivemos de ocupar-nos por tanto tempo, a fim de explicá-los detalhadamente, é que se torna possível decifrar o que o autor do Evangelho de Lucas colocou como uma espécie de história preliminar do grande evento Crístico. Por seu intermédio ficamos sabendo quem era o homem que, no trigésimo ano de sua vida, abrigou o princípio cósmico já caracterizado anteriormente — o princípio Crístico. Para a compreensão do que o escritor do

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Evangelho de Lucas nos relata sobre a personalidade e a atuação do Cristo Jesus — isto é, sobre a individualidade que atuou por três anos e que representa o Cristo habitando um corpo humano —, agora é necessário fazermos um breve esboço da evolução humana. E no âmbito dessa evolução é mister considerar certas características das quais, nos dias de hoje, dificilmente se poderá formar um conceito. Em certos aspectos, nossa época tem uma visão extremamente míope. Ela crê que tudo o que sucede ou sucedeu nos últimos duzentos a trezentos anos à humanidade, fundamentando as leis da evolução humana, existiu sempre. E julga principalmente que o que hoje não é mais válido jamais teve validade. É por este motivo que ao homem de hoje se torna tão difícil compreender relatos e aceitá-los com naturalidade quando estes dizem respeito a épocas passadas, como aquela em que o Cristo esteve na Terra.

As realizações do Cristo na Terra nos são relatadas pelo Evangelho de Lucas. Este as relata de tal forma que, se realmente nos aprofundarmos no sentido de seus episódios, deveremos compreender cada vez mais o que era a evolução humana naquela ocasião. Mais uma vez é preciso chamar um pouco a atenção para algo que, no decorrer de nossas considerações antroposóficas, foi dito várias vezes: que a atual humanidade se originou em primeiro lugar da catástrofe atlântica, que nossos ancestrais — isto é, nossas próprias almas encarnadas em outros corpos — viveram na antiga Atlântida, no continente que devemos procurar entre a Europa e a África, de um lado, e a América, de outro. Então ocorreu a grande catástrofe atlântica, que modificou o semblante da Terra. As massas humanas dirigiram-se da Atlântida para leste e para oeste, e assim povoaram a Terra do modo como descrevemos referindo-nos à época pós-atlântica. Surgiram a seguir, na época pós-atlântica, as diversas culturas que caracterizamos como sendo a cultura hindu, a antiga cultura persa, a cultura egipto-caldaica, a cultura greco-latina e esta em que vivemos hoje.

Contudo, faz-se uma imagem totalmente falsa da evolução humana ao crer que o homem, durante a época da evolução pós-atlântica, tivesse constituição idêntica à de hoje. Ele se modificou continuamente; enormes transformações se operaram na natureza humana. Os documentos históricos exteriores descrevem apenas alguns milênios. Apenas aquele documento inacessível à pesquisa materialista, designado por nós como Crônica do Akasha e que também foi um pouco caracterizado no presente ciclo de conferências, fornece-nos informações a respeito da evolução desde a época da catástrofe atlântica. Aí encontramos ex-presso que, após a catástrofe atlântica, desenvolveu-se primeiramente a antiga cultura hindu, em cujo decurso os homens viviam mais em seu corpo etérico, e ainda não tão intensamente em seu corpo físico, como ocorreu mais tarde. A grande maioria da população indica era clarividente, com uma clarividência semi-lúcida e semi-consciente, pois ainda não havia desenvolvido livremente a atual consciência do eu. Sua consciência era similar a uma consciência onírica, mas em compensação ainda penetrava nas profundas razões da existência, nos mundos espirituais. Porém temo-nos habituado a ressaltar como é necessário ao homem moderno saber — porque isto poderá ajudá-lo a caminhar melhor para o futuro — o que se relaciona com o conhecimento e a forma cognitiva. Sempre salientamos como esses nossos antepassados da antiga índia conheciam o mundo e para ele olhavam, e como eram muito mais clarividentes do que os homens de épocas posteriores. Se, no entanto, quisermos compreender o Evangelho de Lucas, deveremos ressaltar ainda outra característica desses nossos antepassados.

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Nessa época em que o corpo etérico ainda se estendia muito além da periferia do corpo físico, não sendo ainda tão estreitamente ligado a este como hoje, as forças e qualidades anímicas tinham maior poder sobre o corpo físico. Porém, quanto mais o corpo etérico penetrava no corpo físico, tanto mais fraco se tornava e tanto menos força tinha sobre ele. Nos habitantes da velha Atlântida, a parte do corpo etérico relativa à cabeça ultrapassava ainda enormemente sua parte física. De certo modo, o mesmo sucedia também com os antigos hindus. Isto lhes permitia, por um lado, desenvolver a consciência clarividente e, por outro, possuir também um grande domínio sobre os processos de seu corpo físico.

Embora estejam muito distantes um do outro no tempo, podemos comparar um antigo corpo hindu com um corpo dos tempos atuais. Em nossos tempos, o corpo etérico atingiu a mais profunda penetração no corpo físico, estando extremamente unido aos fatos deste. Encontramo-nos hoje junto ao ponto limítrofe em que o corpo etérico está prestes a livrar-se outra vez do corpo físico e tornar-se mais independente; e à medida que a humanidade avançar para o futuro, o corpo etérico sairá cada vez mais do corpo físico. Atualmente, a humanidade já ultrapassou um pouco o ponto em que o corpo etérico se encontrava na máxima comunhão com o corpo físico. Se compararmos um corpo físico de um antigo hindu com um corpo físico da atualidade, poderemos dizer o seguinte: no corpo hindu o corpo etérico ainda está relativamente livre, e da alma podem desabrochar forças que atuam sobre o corpo físico. O corpo etérico absorve as forças da alma por ainda não se encontrar firmemente ligado ao corpo físico; por isso domina mais este último, e a conseqüência disso é que as influências exercidas sobre a alma, nessa época, atuam também numa escala extraordinária sobre o corpo físico. Se durante a época hindu uma pessoa que odiasse outra proferisse uma palavra carregada de ódio, esta palavra aguilhoava a outra — atuava até sobre o organismo físico. A alma ainda agia sobre o corpo etérico, e o corpo etérico sobre o físico. Hoje em dia, esta força foi retraída do corpo etérico. E se, por outro lado, fosse proferida uma palavra de carinho, esta proporcionaria uma ampliação, uma receptividade calorosa na outra pessoa, o que transmitia sua atuação também ao corpo físico. Por conseguinte, era muito importante, naquele tempo, se a palavra pronunciada era carinhosa ou cheia de ódio, pois isto agia sobre todos os processos do corpo físico.

Essa influência diminuiu paulatinamente na humanidade à medida que o corpo etérico penetrou sempre mais no corpo físico. Hoje é diferente. Hoje, uma palavra que pronunciamos age primeiramente sobre a alma, e bem poucas são as pessoas que sentem uma palavra carregada de ódio, uma palavra ofensiva como se esta lhes amarrasse algo dentro, e uma palavra afetuosa como se esta os fizesse crescer e sentir ditosos. Os efeitos estranhos que ainda hoje podemos sentir no coração físico, como resultado de uma palavra carinhosa ou de uma palavra cheia de ódio, eram de incrível intensidade no despertar da nossa evolu-ção pós-atlântica. Por isso era possível, por assim dizer, empregar essas influências sobre a alma de um modo bem diferente do de hoje. Hoje já não importa a maneira como se diz uma palavra. Pode uma palavra ser dita com o mais caloroso afeto: quando encontra a atual organização do ser humano, é sempre mais ou menos rechaçada, não conseguindo penetrar, pois isto não de-pende apenas da maneira como é pronunciada, mas também de como pode ser recebida.

Hoje, portanto, não é possível exercer influência tão direta sobre a alma humana de modo que esta penetre realmente em sua total organização física.

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Não é possível conseguir isso diretamente. Contudo, de certo modo poderá vir a ser possível, pois nos aproximamos do futuro em que o espiritual terá novamente um significado importante. Já hoje podemos assinalar como isso ocorrerá no futuro. Em nosso atual ciclo humano, muito pouco podemos realizar, nesse setor, para que o que vive em nossa própria alma como amor, bem-querer, sabedoria, se derrame de imediato na outra alma e adquira ali a força que atua até no corpo físico. Precisamos, contudo, saber que tal atuação só poderá ser gerada paulatinamente. Mas esta forma espiritual de atuação está-se reiniciando. E recomeça justamente no solo onde está sendo plantada a cosmovisão da Ciência Espiritual, pois essa cosmovisão é o início do fortalecimento das atuações da alma. Hoje, em apenas poucos casos é possível uma palavra alcançar efeitos físicos. Contudo é possível que seres humanos se unam para absorver em suas almas uma grande soma de verdades espirituais. Essas verdades espirituais se fortalecerão pouco a pouco, alcançarão poder sobre a alma e, em conseqüência, também a força para atuar até na organização física, moldando-a de acordo com o que elas próprias são. Assim, no futuro o anímico-espiritual readquirirá grande poder sobre o físico, e moldará esse corpo físico como sua réplica.

Nos antigos tempos da cultura primordial hindu, por exemplo, o que chamamos ‘curar’ era também algo diferente do que seria mais tarde, pois tudo isso se relaciona com os fatos recém-descritos. Por se conseguir um incrível efeito no corpo físico com o que atuava sobre a alma, podia-se, por intermédio da palavra perpassada pelo impulso volitivo correto, atuar sobre a alma de outro ser humano de modo que esta, por sua vez, transferisse essa atuação para o corpo etérico e este para o corpo físico. Tendo-se uma idéia do efeito que se desejava suscitar na outra alma, podia-se exercer, sobre uma organização enferma, a influência correta, da maneira indicada — sobre a alma e, conseqüentemente, sobre o corpo físico, o que promoveria a cura. Ora, imaginem os Senhores esta situação aumentada ao máximo, de modo que o médico hindu controlasse de preferência as influências e atuações anímicas em questão; então lhes ficará evidente que toda cura nos tempos hindus era um processo muito mais espiritual do que pode ser nos dias de hoje — enfatizo: do que pode ser nos dias de hoje. Porém, nos aproximamos novamente de tais formas de atuação. O que é buscado das alturas cósmicas, espirituais como uma cosmovisão, como uma soma de verdades espirituais, adequada aos grandes conteúdos espirituais do mundo, fluirá para dentro de almas humanas; e, à medida que a humanidade caminha para o futuro, este virá a ser o medicamento emanado do próprio âmago do homem. Ciência Espiritual é o grande medicamento das almas na vida voltada para o futuro. Contudo, precisamos entender que a humanidade se encontra em declínio evolutivo, que as atuações espirituais se afastaram cada vez mais, que agora nos encontramos no ponto mínimo do desenvolvimento e que somente aos poucos conseguiremos alçar-nos às alturas onde outrora nos encontrávamos.

Muito devagar, os efeitos que existiram predominantemente na velha Índia foram-se perdendo. Ainda uma organização similar — permitindo a atuação de alma para alma — existiu, por exemplo, na cultura egípcia. Quanto mais retrocedemos na cultura egípcia, tanto mais encontramos a presença de um efeito imediato de uma alma sobre outra, podendo esse efeito passar em seguida para a organização física. Muito menor era sua presença na época da antiga Pérsia, pois essa época tinha uma outra missão; ela fora solicitada a dar o primeiro impulso para a penetração no mundo físico. Em relação às qualidades agora caracterizadas, a cultura egípcia encontra-se bem mais próxima da cultura

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hindu do que a cultura persa. Dentro da cultura persa, a alma já principia a encerrar-se cada vez mais em si mesma, tendo um poder cada vez menor sobre a organização exterior, porque deve desenvolver cada vez mais a autoconsciência. Por esta razão, precisava confluir com a tendência que ainda mantinha a soberania do espiritual sobre o físico — uma outra tendência cultural, fundamentada principalmente na concentração interior, na criação da autoconsciência; e é, de certa maneira, num processo de compensação que essas duas correntes entram ao se formar o que chamamos de cultura greco-latina. Essa é a quarta cultura pós-atlântica. Nessa ocasião a humanidade desceu tanto para o mundo físico que surge agora uma espécie de equilíbrio entre o físico e o anímico-espiritual. Isto significa que, nesse quarto período cultural, o espírito e a alma têm sobre o corpo físico os mesmos poderes que este corpo físico tem, por sua vez, sobre a alma. Uma certa compensação surgiu entre ambos: a humanida-de desceu até o estado de equilíbrio.

Agora, porém, a humanidade deverá novamente passar por uma espécie de provação cósmica, para outra vez poder ascender às alturas espirituais. É por este motivo que, em verdade, desde a época greco-latina ela se aprofundou ainda mais na materialidade física. Tudo o que se relaciona com o corpóreo, com o físico, desceu ainda mais. Nesta época em que vivemos, a quinta época cultural pós-atlântica, na realidade o homem foi impulsionado para abaixo da linha do equilíbrio, tendo podido por ora apenas elevar-se em seu íntimo, absorvendo dos mundos espirituais uma consciência de cunho mais teórico. Ele teve de fortalecer-se interiormente.

Assim, encontramos na cultura greco-latina um estado de relativo equilíbrio, ao passo que agora, na atualidade, o físico alcançou uma supremacia e domina o anímico-espiritual. Vemos que, de certo modo, o anímico-espiritual se tornou impotente, podendo ser compreendido de modo apenas teórico. Através dos séculos, o íntimo do homem teve de restringir-se a fortalecer-se interiormente num processo não aberto à consciência. Pouco a pouco a alma precisa tornar-se mais forte e mais poderosa a fim de que, por seu intermédio, possa desenvolver-se uma nova consciência. E quando tiver atingido um certo grau de força — o que ocorrerá no sexto período pós-atlântico —, então o anímico-espiritual, em conseqüência de o homem ter absorvido cada vez mais alimento espiritual, não receberá mais desse alimento espiritual uma verdade teórica, mas uma verdade viva, uma viva sabedoria. Então esse espiritual será tão forte que em contrapartida conquistará novamente — e agora sob outro prisma — a soberania sobre o corpo físico.

Como podemos, então, esclarecer para a humanidade a missão da Ciência Espiritual, vista por esse ângulo? Se na atualidade a Ciência Espiritual se transformar cada vez mais em algo interiormente vivo na alma, capaz não somente de ativar o intelecto, o raciocínio do homem, mas de aquecer cada vez mais a alma, então esta será tão forte que conquistará a supremacia sobre a parte física. Naturalmente, para isso são necessárias várias transições — muitas coisas que, por enquanto, parecerão prejudiciais e decadentes. Mas trata-se de formas de transição que darão lugar ao estado futuro em que os seres humanos admitirão a vida espiritual em suas idéias e virá, para a humanidade toda, o estágio que significará o domínio do anímico-espiritual sobre o físico-material. E cada pessoa que hoje esteja interessada na sabedoria da Ciência Espiritual — não apenas por esta lhe ativar o raciocínio, mas por fazê-la encantar-se com as verdades científico-espirituais, podendo encontrar nisto uma grande satisfação

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íntima — virá a ser precursora dos homens que reconquistarão a correta soberania da alma sobre o corpo físico.

Já podemos, nos tempos atuais, mencionar as grandes verdades sobre acontecimentos como os que colocamos diante de nossas almas nos últimos dias: aqueles impressionantes acontecimentos relacionados com a confluência do elemento Buda com o elemento Zaratustra — tudo o que ocorreu no início da era cristã na Palestina. Pudemos explicar como, durante a evolução progressiva do mundo, a sabedoria criou aquelas duas figuras infantis — o Jesus natânico e o Jesus salomônico — e, por intermédio destes grandes, soberbos acontecimentos, fez confluir as correntes universais que anteriormente corriam separadamente pela Terra.

É possível haver um duplo ponto de vista a respeito de tudo o que deixamos atuar sobre nós nestes últimos dias. Alguém poderia dizer: “Para o conhecimento moderno isso deve parecer um tanto fantástico; mas quando levo em consideração os efeitos exteriores, parece-me plausível — e então o que me é relatado com base na Crônica do Akasha propicia que os Evangelhos me sejam compreensíveis.” Alguém pode sentir-se interessado, por exemplo, pelo que se refere aos dois meninos Jesus, e assim por diante; isto pode satisfazer seu interesse. Ele poderá dizer: “Agora posso compreender muita coisa que antes me era incompreensível.” Já um outro poderia dizer: “Para mim existe ainda outro aspecto. Ao observar todos esses acontecimentos, ao vê-los com clareza, compreendo o que a ciência oculta descreve e revela sobre a maravilhosa atuação do nirmanakaya do Buda, daquilo em que se fundamenta a anunciação aos pastores, e assim por diante. Também quando observo a outra corrente, vendo como a estrela orientou os seguidores de Zaratustra na ocasião em que seu guia reapareceu na Terra, vendo como um movimento cósmico flui para outro, como se unem forças que antes corriam separadas — deixando tudo isso atuar sobre minha alma, então tenho sobretudo uma impressão: a impressão de que tudo é indescritivelmente belo no devir cósmico!” Pode-se ter também a impressão de que tudo é majestoso, soberbo, grandioso. Na realidade, isso é algo que pode arrebatar nossa alma, podendo entusiasmar-nos para os verdadeiros processos cósmicos.

Esta é a melhor coisa que podemos extrair das grandes verdades. As pequenas verdades mitigarão nossa sede de conhecimento, e as grandes verdades aquecerão nossa alma; e nós diremos: “O que assim se processa nos acontecimentos cósmicos é, ao mesmo tempo, algo infinitamente belo. Se o sentirmos em toda a sua formosura, em sua majestade, ele principiará a criar raízes em nós, projetando-se para além da simples compreensão teórica.” O que diz o Cristo Jesus no Evangelho de Lucas?

O semeador saiu a semear sua semente. E quando semeava, caiu alguma junto do caminho e foi pisada, e as aves do céu a comeram; e outra caiu sobre o chão pedregoso e, tendo brotado, secou, pois não tinha umidade;

e outra caiu entre espinhos; e, crescendo com ela, os espinhos a sufocaram;e outra caiu em boa terra e, tendo crescido, produziu centenas de frutos. [Lucas 8, 5-8.]

O mesmo acontece com a cosmovisão antroposófica. É possível aplicar-lhe a explicação que o Cristo Jesus dá a seus discípulos para esta parábola do semeador. A semente é o reino dos deuses, o reino dos céus, o reino do Espírito.

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Este reino do Espírito deve, como semente, fluir para dentro da alma humana, atuar na Terra. Há, então, pessoas que abrigam em si apenas as forças que repudiam a cosmovisão espiritual, o reino das entidades divino-espirituais. A semente, nesse caso, é devorada pelos empecilhos existentes na própria alma humana; antes mesmo que possa germinar, ela é rejeitada. Isto é válido para muitas pessoas quanto às palavras do Cristo Jesus, e hoje é válido para muitos, no que a Antroposofia tem por missão trazer ao mundo; isso é repelido: os pássaros, por assim dizer, devoram a semente, não lhe permitindo penetrar na base, no solo.

Contudo, existe a alma que aceita a semente — seja a palavra do Cristo Jesus, seja a palavra da sabedoria espiritual — mas não é suficientemente profunda. Ela está preparada apenas para entender que tais verdades são plausíveis, porém não se identificam com sua própria substância e natureza. Talvez lhe seja possível passar adiante essa sabedoria, porém sem se identificar com ela; esta se assemelha à semente que caiu sobre a pedra e não pôde germinar.

A terceira semente caiu entre os espinhos; e, embora conseguisse brotar, não conseguiu crescer. Isto significa — o Cristo Jesus explica — que há pessoas tão preenchidas, em sua alma, pelas preocupações e interesses da vida cotidiana que, embora estando aptas a compreender as palavras da verdade espiritual, todo o restante toma conta de sua alma, qual um espinheiro impedindo-as sempre de crescer. Atualmente, também existem almas — e são muito numerosas — que bem gostariam de assimilar as verdades da Ciência Espiritual se o outro elemento, a vida exterior, não se apoderasse sempre delas de modo a impedi-las de elevar-se. E apenas bem poucos são capazes de fazer desabrochar as verdades espirituais como algo livre, tal qual a quarta semente da parábola. São estes que principiam a sentir o ele mento antroposófico como verdade viva, que o recebem na alma como elemento de vida e nele vivem completamente; são também estes os precursores para a atuação futura das verdades espirituais. Contudo, ninguém que por sua própria força anímica interior não possua a verdadeira confiança, a convicção sobre a força de atuação dessa sabedoria espiritual, poderá ser hoje convencido, por algum fato exterior, da veracidade e da força de atuação da sabedoria espiritual.

Ora, acaso é uma prova contra a força de atuação da sabedoria espiritual o fato de hoje ela já não atuar fisicamente em tantas e tantas pessoas? Ao contrário — poderíamos dizer que é uma prova da atuação saudável da sabedoria espiritual o fato de muitas vezes ela tocar em sentido negativo os grandes corpos físicos sobre os quais se projeta. É como, por exemplo, uma criança urbana fisicamente débil que, tendo, desde a mais tenra infância, respirado somente o ar da cidade e estando, de certa maneira, enfraquecida por isso, não refará necessariamente sua saúde ao entrar em contato com o ar puro da montanha — justamente agora, poderá adoecer muito. Assim como isto não invalida o caráter salutar do ar montanhês, tampouco é uma prova contra a atuação dos conteúdos da sabedoria espiritual o fato de estes, penetrando em certas organizações humanas, também poderem temporariamente causar danos. Ora, esses conteúdos atingem o que há séculos, há milênios pertence à herança física dos corpos humanos; eles nada mais encontram além do que não lhes convém.

Neste sentido, não podemos ainda procurar provas no mundo exterior; precisamos penetrar nesses tesouros da sabedoria e conseguir uma sólida certeza a seu respeito. Por mais indícios de provas que também possam existir no

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mundo exterior, precisamos ter a possibilidade de penetrar no âmago, precisamos elaborar dentro de nós mesmos a convicção e ponderar o seguinte: — Se essas sabedorias antroposóficas são hoje, num ou noutro caso, demasiadamente agressivas, é porque se confrontam com pessoas em condições doentias. Portanto, a sabedoria espiritual é saudável, mas nem sempre os homens o são. Por isso, também é compreensível que hoje não se revele tudo o que, no decorrer dos tempos, poderá chegar aos homens como verdades espirituais. Já se está providenciando para que o dano não seja muito grande: não se enviam crianças da cidade para os ares da montanha, que as debilitarão. Por isso, somente de tempos em tempos poderá ser revelado o que, na média, as pessoas suportarão. Se, por exemplo, fossem completamente revelados os mais profundos tesouros de sabedoria ainda existentes, sucederia que pessoas com determinadas naturezas sucumbiriam sob esse peso, como acontece com a saúde física débil ao contato com o ar das montanhas. Só paulatinamente é que poderão ser revelados à humanidade os grandes tesouros da sabedoria; contudo isto acontecerá, e será para o restabelecimento total da humanidade.

Tudo isto está por detrás do que conjugamos no conceito de movimento antroposófico. Aos poucos o homem precisa reconquistar o que teve de perder: a soberania do anímico-espiritual sobre o material. Esta se foi perdendo gradativamente a partir do desenvolvimento da cultura hindu, até adentrar os tempos greco-latinos. Ainda havia, na época greco-latina, pessoas que tinham, como herança de tempos remotos, o corpo etérico um tanto fora do corpo físico, sendo, em toda a sua disposição, receptivas a atuações anímico-espirituais. Por esse motivo é que o Cristo Jesus precisava surgir justamente nessa época. Tivesse ele surgido em nossos dias, não teria podido atuar como o fez então, nem tampouco apresentar o grande exemplo que apresentou. Em nossa época, ele teria deparado com naturezas humanas que desceram muito mais profundamente na matéria física. Hoje, ele mesmo seria obrigado a penetrar num organismo físico em que já não seria mais possível, como foi outrora, a soberba atuação do anímico-espiritual sobre o mesmo.

Isto não diz respeito apenas ao Cristo Jesus — diz respeito também a todas as manifestações semelhantes; e nós só poderemos compreender a evolução humana olhando-a deste ponto de vista. Isto, por exemplo, é valido também para o Buda e para sua aparição na Terra. Nós vimos o que o Buda tinha por missão. Foi ele quem primeiro apresentou o que se pode denominar o grande ensinamento do amor e da compaixão, bem como tudo o que se liga a isto e está descrito na Senda das Oito Sabedorias. Crêem os Senhores que, se o Buda aparecesse hoje, poderia apresentá-lo da mesma forma? Não, pois hoje não seria possível um organismo físico que permitisse ao Buda passar pelo desenvolvimento que ele atravessou em seu tempo. Os organismos físicos modifi-cam-se constantemente. Era preciso ser mantido exatamente aquele período de tempo para poder surgir um organismo modelar, para que o Buda pudesse descer à Terra e fazer uso daquele corpo humano, apresentando assim o grandioso fato da ‘Senda das Oito Sabedorias’, que deverá continuar atuando para que os homens a penetrem espiritualmente. Na época presente a humanidade tem a incumbência de, pouco a pouco, apropriar-se anímico-espiritualmente dessa senda óctupla. Pode parecer estranho, mas trata-se exatamente disso: tudo o que a humanidade realizou a seguir, em todos os ensinamentos filosóficos e morais, representa apenas um início muito tênue para se alcançar o que o Buda apresentou pela primeira vez. Por mais que as pessoas admirem as mais diversas

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filosofias, exultem com o kantismo7 e outras coisas mais, tudo isto são apenas insignificâncias, são o que há de mais elementar diante dos princípios abrangentes da Senda das Oito Sabedorias. E será apenas muito devagar que a humanidade poderá ascender novamente à compreensão do que se oculta nas palavras da Senda das Oito Sabedorias. A princípio, algo desse tipo é apresentado, no momento certo, no âmbito de um fato grandioso; e a partir desse ponto, a evolução prossegue. Esse é o ponto de partida para a humanidade, e somente após longo tempo estará ela apta a alcançar o que lhe foi primeiramente apresentado como um ato magnífico e exemplar. Assim se apresentou o Buda em sua época, trazendo ao mundo os ensinamentos do amor e da compaixão como sinal para as gerações futuras, que passo a passo deverão conquistar a capacidade de reconhecer por si próprias a mensagem contida na Senda das Oito Sabedorias. E no sexto período evolutivo já haverá um número razoável de pessoas capacitadas para isso. Sim, estamos ainda bastante distantes do momento em que as pessoas constatarão: “O que o Buda apresentou como exemplo, quinhentos a seiscentos anos antes da era cristã, nós podemos conseguir agora a partir de nosso próprio íntimo; em nossa própria alma nos tornamos agora semelhantes ao Buda.”

É assim que a humanidade deve ascender cada vez mais, até o ápice. Os primeiros adeptos são os que se projetam com sua individualidade numa importante época, trazendo consigo, como partes de herança, as capacidades para compreender algo. A restante grande maioria caminha lentamente em sua escalada, e somente muito mais tarde alcançará o que lhes será dado alcançar. Contudo, quando um grande número de pessoas tiver chegado ao ponto de ter a Senda das Oito Sabedorias como sua propriedade, a partir do próprio reconhecimento da alma — e não como algo extraído do budismo, meramente relatado —, então essas mesmas pessoas também já terão avançado muito em outro aspecto. Leiam no periódico Lucifer-Gnosis, em ‘Como se adquirem conhecimentos dos mundos superiores?’, qual a relação existente entre a evolução da flor de loto de dezesseis pétalas e a Senda das Oito Sabedorias. Então os seres humanos terão chegado a desenvolver exatamente a flor de loto de dezesseis pétalas por intermédio da Senda das Oito Sabedorias. Existe aí uma íntima correlação. E para quem tem a faculdade de perscrutar a evolução humana, há um sinal que revela o quanto a humanidade progrediu evolutivamente. Ela o fez tanto quanto progrediu no desenvolvimento da flor de loto de dezesseis pétalas, um dos primeiros órgãos de que os homens farão uso no futuro. Contudo, quando este órgão estiver desenvolvido, terá principiado um certo domínio do anímico-espiritual sobre o físico. Somente quem hoje se propõe passar por uma evolução espiritual em sentido esotérico pode afirmar encontrar-se a caminho de incorporar, da maneira certa, a Senda das Oito Sabedorias. Um outro qualquer a ‘estuda’. Naturalmente esse estudo também é muito útil, pois servirá de incentivo.

Desta maneira, no entanto, vemos também que efetivamente o anímico-espiritual pode atuar apenas sobre pessoas que já principiaram a vincular organicamente, à sua própria alma, o que lhes é ofertado como sabedoria espiritual. Na mesma proporção em que se torna vivência própria da alma, a Senda das Oito Sabedorias atua reflexivamente sobre o físico. Certamente as pes-soas muito inteligentes da atualidade, as que se prendem ao materialismo, 7 Doutrina ligada ao filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) e contestada por Steiner quanto às limitações cognitivas. (N.E.)

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poderão dizer agora: “Tivemos, nesse sentido, experiências bem específicas; houve fulano ou ciclano que começou a preocupar-se com uma evolução espiritual, isto é, no mesmo sentido que o teu, começou a vivificar dentro de si as sabedorias espirituais, porém morreu aos cinqüenta anos; portanto, essas sabedorias pouco contribuíram para prolongar sua vida.” Esta é uma verdade bastante sensata, e pode-se presenciá-la constantemente. É uma lástima apenas que as instâncias opostas não sejam colocadas em campo — especialmente quanto tempo teria vivido a referida pessoa se não tivesse passado por uma evolução espiritual: será que ela não teria, talvez, vivido apenas até os quarenta anos? Primeiramente teria de ser resolvida esta questão. Sempre se constata apenas o que é evidente, não dando atenção ao que não é. O essencial é que se vejam as coisas desse modo.

Portanto, gradativamente foi decrescendo na humanidade a soberania do anímico-espiritual sobre o físico, até atingir o quarto período cultural, quando surgiu o Cristo e quando ainda vivia um número suficiente de pessoas em quem era possível ver como o espiritual atua sobre o físico. Era preciso que o Cristo aparecesse nessa exata ocasião. Tivesse ele surgido mais tarde, não poderiam ter sido reveladas todas as coisas que o foram naquela ocasião. Era necessário ocorrer no mundo, no momento exato, um aparecimento assim grandioso.

O que significa o ingresso do Cristo no mundo? Significa que, ao bem compreender o Cristo, o homem aprende a fazer uso total de sua autoconsciência, aprende a impregnar com ele sua consciência do eu; que seu eu adquire completo e total domínio sobre tudo o que existe em seu íntimo. Este eu autoconsciente é o que irá reconquistar novamente tudo o que a humanidade foi perdendo no decorrer dos tempos. Contudo, da mesma maneira como a Senda das Oito Sabedorias teve de ser apresentada primeiramente por intermédio do Buda, também foi preciso que, antes do término dos tempos antigos, fosse visivelmente apresentada a soberania desse ‘princípio do eu’ sobre tudo o que possa existir no mundo como processos da corporalidade exterior. Em nosso tempo não seria mais possível que, ao ingressar o princípio Crístico no mundo, aquelas imensas forças curativas pudessem atuar por todo o ambiente à sua volta, como o fizeram naquela época. Para tal foi necessária a época quando ainda havia homens cujos corpos etéricos excediam em tal proporção o corpo físico que, por intermédio da simples palavra, do simples contato físico, eles podiam receber efeitos poderosos, dos quais podem restar hoje no máximo algumas fracas reminiscências. E a humanidade principiou a desenvolver o eu para poder primeiramente compreender o Cristo e, a partir daí, reconquistar o que um dia perdera. Aos últimos exemplares da antiga humanidade precisava ser demonstrado como o eu, existente agora em sua plenitude num homem — no Cristo Jesus — tal como existirá no final da evolução terrestre nos demais seres humanos, atuava fortemente, em todos os domínios, sobre as pessoas daquela época. O autor do Evangelho de Lucas relata isto para mostrar-nos o seguinte: — Agora o Cristo leva para dentro do mundo um eu que permeia o corpo físico, o corpo etérico e o corpo astral humanos, de maneira a poder exercer atuações capazes de influenciar toda a organização corpórea, podendo também influenciá-la no sentido curativo. — Tal fato precisava ser apresentado para mostrar o seguinte: quando, no futuro, em milhares de anos, os homens se houverem apropriado de tudo o que pode emanar do Eu do Cristo sob forma de energia, poderão emanar dos eus humanos energias iguais às que, naquela ocasião,

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irradiaram do Cristo para a humanidade. Era necessário que isto fosse demonstra-do em todos os domínios; mas só era possível mostrá-lo à humanidade de então.

Já salientamos que existem doenças cuja origem se localiza no corpo astral. A maneira como se manifestam está relacionada com a essencialidade do homem inteiro. Se hoje o homem tem péssimas qualidades morais, talvez estas se limitem a ser tão-somente más qualidades de sua alma. Como hoje a alma não tem sobre o corpo o domínio que tinha na época do Cristo Jesus, já não é tão fácil cada pecado se transformar também em moléstia física. Paulatinamente, estamo-nos aproximando novamente do estado em que o corpo etérico se expandirá. Por esta razão, inicia-se para a humanidade uma época em que deve ser tomado especial cuidado para não se manifestarem fisicamente, sob forma de doenças, todos os defeitos morais e intelectuais. Essa época já se inicia agora. E muitas das doenças que são apresentadas como sendo em parte psicológicas, em parte físicas — as moléstias nervosas do nosso tempo — caracterizam o princípio dessa época. Como o homem da atualidade absorveu em seu íntimo a desarmonia do mundo exterior, naturalmente tais coisas só podem exteriorizar-se como histeria e similares. Isto, porém, se relaciona com a característica da evolução espiritual à qual nos encaminhamos: o desprendimento do corpo etérico.

Na época em que o Cristo apareceu na Terra, havia à sua volta muitas pessoas em quem os pecados, especialmente falhas de caráter provenientes de más qualidades em tempos anteriores, expressavam-se por meio de moléstias. Para ser exato, o que está no corpo astral como pecado e se manifesta como doença é denominado por Lucas, em seu evangelho, como ‘estar possuído’, quando o ser humano invoca para dentro de seu corpo astral espíritos estranhos — já não sendo, por suas melhores qualidades, senhor de sua condição humana total. Nas pessoas que ainda tinham a antiga separação entre o corpo etérico e o corpo físico, manifestava-se preponderantemente, naquela época, o fato de características maléficas atuarem, conforme nos descreve o autor do Evangelho de Lucas, como formas patológicas expressas por ‘estar possuído’.

Ora, o Evangelho de Lucas mostra-nos como pessoas assim eram curadas pela proximidade e consolo da individualidade que residia no Cristo Jesus; como o que atuava como mal era expulso dessas individualidades. Isto é colocado como um exemplo de que, no final da época terrestre, as boas qualidades atuarão beneficamente sobre todas as demais.

Geralmente não se nota a sutileza com que certas coisas são colocadas de maneira a ficarem ocultas; de modo que também aí se fazem referências a outras doenças mais, tal como nos são descritas no capítulo que habitualmente é chamado de ‘cura do artrítico’ (Lucas 5, 17-26). O correto seria a ‘cura de um paralítico’, pois no texto grego está a palavra paralelyménos — alguém que tem os membros paralisados.8 Naqueles tempos ainda se sabia que esse tipo de doença provém das particularidades do corpo etérico. E ao se narrar que o Cristo Jesus cura também os que sofrem de paralisia, diz-se que, por intermédio das forças de sua individualidade, são obtidos efeitos não apenas atingindo até os corpos astrais, mas até os corpos etéricos, de modo que também as pessoas falhas em seu corpo etérico possam vivenciar efeitos curativos. Justamente ao se referir a algo que, sob forma de ‘pecado mais profundo’, se localiza até mesmo dentro do corpo etérico, o Cristo faz uso de uma expressão específica. Isto indica visivelmente que o causador espiritual dos danos deve, antes de tudo, ser 8 Nas traduções da Bíblia em português se vê realmente empregado o termo ‘paralítico’ nessa passagem, conforme Steiner justifica aqui. (N.E.)

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removido; pois ele não diz de imediato ao paralítico “Levanta-te e anda”; visando à causa que atua como doença e atinge o corpo etérico, ele diz: “Teus pecados te são perdoados” — o que quer dizer: o que penetrou no corpo etérico sob forma de pecado precisa ser extirpado antes de tudo. Porém, estas sutis diferenciações não são levadas em consideração pela pesquisa bíblica habitual; esta não se apercebe de que aqui é demonstrado como essa individualidade tinha influência sobre os mistérios do corpo astral e também do corpo etérico. Sim, ela exercia influência até sobre os mistérios do corpo físico.

Por que motivo se fala aqui dos mistérios do corpo físico como sendo estes, praticamente, os mistérios mais elevados? Até mesmo para a vida exterior, as influências de um corpo astral sobre outro são as mais evidentes. Os Senhores poderão ferir uma pessoa se, por exemplo, lhe disserem palavras carregadas de ódio. Este é um processo que ocorre em seu corpo astral. Ela ouve a palavra ofensiva e sente isto como um sofrimento em seu corpo astral. Temos então o intercâmbio entre os corpos astral e etérico. Bem mais recôndita é a permuta entre um corpo etérico e outro; para tal são necessários relacionamentos bem mais sutis entre pessoas, os quais hoje em dia já não são sequer notados. Contudo, os mais ocultos são os efeitos que passam para o corpo físico, pois o corpo físico é aquele que, devido à densidade material, esconde os efeitos do espiritual. Ora, também nos deverá ser mostrado que o Cristo Jesus exerce domínio sobre o corpo físico. Como se demonstra isso? Chegamos agora a um capítulo que para o atual homem com pensamento materialista seria totalmente incompreensível.

É bom que deste ciclo de conferências estejam participando somente pessoas preparadas, conhecedoras da Ciência Espiritual; pois se viesse alguém desavisado, tomaria o assunto exposto hoje como uma loucura total, mesmo se considerasse o restante apenas metade — ou um quarto apenas — de loucura.

O Cristo Jesus mostra ter a capacidade de perscrutar a corporalidade física e nela atuar até o íntimo. Isto é demonstrado pelo fato de ele poder, também por sua energia, atuar curativamente sobre as doenças enraizadas no corpo físico. Mas para tanto é preciso conhecer os misteriosos efeitos que passam do corpo físico de uma pessoa ao de outra, quando se quer erradicar as doenças do corpo físico. Desejando-se atuar espiritualmente, não se pode considerar o ser humano um ser encerrado dentro de sua derme. Já muitas vezes foi dito aqui que nosso dedo é mais inteligente do que nós. Nosso dedo sabe que o sangue só poderá fluir através dele se fluir regularmente por todo o corpo; e sabe que ficará mirrado e seco se for desligado do resto do organismo. Assim, o homem também deveria saber, caso perscrutasse todas as correlações de seu corpo, que segundo sua organização física ele pertence à humanidade inteira; que constantemente se transferem influências de uma pessoa a outra, e que não é possível isolar sua saúde física particular da saúde de toda a humanidade. O homem atual aceitará isto quanto às suas manifestações mais grosseiras, mas não o fará em relação às manifestações mais sutis, por não lhe ser possível conhecer os fatos. Aqui, no Evangelho de Lucas, apontam-se justamente as manifestações mais sutis. Leiam o oitavo capítulo, onde está escrito:

Mas quando Jesus voltou, a multidão o recebeu; pois todos o estavam esperando.E eis que chegou um homem de nome Jairo, que era o superior da sinagoga; e prostrando-se aos pés de Jesus, rogou-lhe que entrasse em sua casa;

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pois ele tinha uma única filha de aproximadamente doze anos, que estava à morte. Mas indo ele, apertava-o a multidão.E uma mulher que havia doze anos sofria hemorragia, e gastara com os médicos todos os seus haveres sem que ninguém pudesse curá-la, chegou por detrás dele e tocou a fímbria do seu vestido, e logo estancou sua hemorragia. [Lucas 8, 40-44.]

Portanto, o Cristo Jesus deve curar a filhinha de doze anos de Jairo. E como pode ela ser curada, se está à morte? Só será possível compreender isto sabendo-se como sua doença física está relacionada com outra manifestação em outra pessoa, de modo que ela não pode ser curada sem que se dê a devida atenção a essa outra manifestação. Pois quando nasceu esta menina, agora com doze anos, houve um determinado ponto de ligação com a outra personalidade, o qual tem sua origem profunda no carma. Por esse motivo nos é contado agora que uma mulher vítima de certa doença havia doze anos acercou-se do Cristo Jesus e, che-gando por detrás dele, tocou a fímbria de seu vestido. Por que é mencionada essa mulher em tal passagem? Porque em seu carma ela estava ligada a essa filha de Jairo. Entre essa menina de doze anos e essa mulher há doze anos doente existe uma ligação, e não é sem motivo que isto nos é apresentado como um mistério numérico. Surge essa mulher, há doze anos portadora de uma doença, aproxima-se de Jesus e é curada — e somente agora pôde ele entrar na casa de Jairo, podendo então ser curada a menina de doze anos que já era considerada morta.

É preciso penetrar assim profundamente nas coisas para que o carma, que passa de um ser humano a outro, possa ser compreendido. Então se poderá verificar como a terceira atuação do Cristo Jesus — a que age sobre o organismo todo — é demonstrada. É levando este fato em especial consideração que se deve contemplar a atuação mais elevada do Cristo, conforme nos é descrita no Evangelho de Lucas.

Portanto, é desta maneira que nos é indicado como o eu do Cristo atuava sobre todos os outros componentes do ser humano. É isto o que importa; e o autor do Evangelho de Lucas, que especialmente nestas passagens visa a descrição das curas, quis mostrar como as atuações curativas do eu nos demonstram o desabrochar deste num ponto muito elevado da evolução humana; e ele revela como o Cristo precisou atuar sobre o corpo astral, o corpo etérico e o corpo físico do homem. Lucas também apontou o grande ideal da evolução humana: “Olhai em direção ao vosso futuro; hoje o vosso eu, da maneira como se desenvolveu, está ainda fraco, possuindo ainda pouca soberania. Mas paulatina-mente se tornará soberano sobre o corpo astral, sobre o corpo etérico e sobre o corpo físico, e os plasmará, modificando-os.” Está colocado diante dos Senhores o grande ideal do Cristo, que mostra à humanidade como pode ser a primazia do eu sobre o corpo astral, o corpo etérico e o corpo físico.

São tais verdades que fundamentam os Evangelhos, e elas só poderiam ser descritas por quem não se apoiasse em documentos materiais, e sim no testemunho dos que eram ‘videntes por si mesmos’ e ‘servidores do Verbo’. Somente aos poucos a humanidade adquirirá uma certeza a respeito dos fatos ocultos nos Evangelhos; e então passo a passo se apropriará, com tal intensidade e força, daquilo que fundamenta as escrituras religiosas, que realmente isto poderá atuar sobre todos os demais membros da natureza humana.

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25 de setembro de 1909

O Cristo e a substância do amorCertamente a conferência de ontem já os levou concluir que um documento

como o Evangelho de Lucas só poderá ser compreendido se a evolução humana for considerada no mais elevado sentido, que aprendemos a conhecer por intermédio da Ciência Espiritual — isto é, quando realmente se dedica especial atenção às mudanças realizadas no decorrer da evolução humana, as quais modificaram o homem todo, em sua natureza. Desejando compreender o processo radical consumado na humanidade durante a época do Cristo Jesus — o que é necessário para a compreensão do Evangelho de Lucas —, devemos compará-lo com o processo em curso atualmente, embora não esteja ocorrendo tão rapidamente quanto o outro, e sim pouco a pouco, sendo porém facilmente perceptível a alguém dotado de visão.

Para se entender esse acontecimento, cumpre de início romper em definitivo com um outra opinião freqüentemente citada, à qual o comodismo dos homens tanto se apega. Trata-se da opinião segundo o qual a natureza ou a evolução não dão saltos. Considerando-se o ponto de vista habitual, não pode haver frase mais errada do que essa. A natureza dá saltos constantemente! E é isto justamente o essencial — o fato de acontecerem esses saltos. Vejamos, por exemplo, como se desenvolve o germe da planta. Ao projetar a primeira folhinha, ele está dando um salto significativo. Quando a planta passa da folha à flor ocorre um outro salto, e outro mais acontece quando da passagem da parte externa da flor para a parte interna, e mais um outro, muito importante, na formação do fruto. Seguidamente acontecem saltos, e quem não os levar em consideração não entenderá a natureza. Ao observar a evolução humana e verificar que em determinado século o desenvolvimento se fez lentamente, a passo de tartaruga, este acreditará que também em outras épocas o desenvolvimento deveria prosseguir no mesmo ritmo. Porém é perfeitamente possível que o desenvolvimento se processe lentamente em determinada ocasião, tal como sucede com a planta verdejante a partir de sua primeira folha verde até a última; mas assim como na planta, tendo ela desenvolvido sua última folha e formado o botão floral, acontece a seguir uma transição muito rápida, assim também no desenvolvimento da humanidade acontecem seguidamente esses saltos.

E um salto de tal importância aconteceu na época em que o Cristo Jesus surgiu na Terra. Nessa ocasião houve uma transição tão rápida que, num espaço de tempo relativamente curto, as características da antiga clarividência e a soberania do espiritual sobre o corpóreo se transformaram de modo tal que muito pouco restou de força clarividente e atuação anímico-espiritual sobre o corpo físico. Por tal razão era preciso que ainda uma vez, antes de ocorrer essa mudança, fosse compilado tudo o que existia sob forma de herança de tempos anteriores. Nisto deveria atuar o Cristo Jesus. Então o novo poderia ser integrado na humanidade, vindo a desenvolver-se lenta e sucessivamente.

Atualmente também está ocorrendo um salto, embora não tão rápido, em outra área. Ele é mais vagaroso, necessita de mais tempo; contudo deverá ser facilmente compreensível aos que desejam entender nossa época. A melhor maneira de formar um conceito a seu respeito é ouvir pessoas que hoje, partindo desta ou daquela área espiritual, encontram a Ciência Espiritual. Por exemplo, um

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representante de uma ou outra comunidade religiosa poderia vir assistir uma conferência antroposófica — fato que sucede com certa freqüência. O que vou dizer agora é muito fácil de compreender, e está longe de constituir uma censura.

Uma pessoa dessas ouve, portanto, uma conferência antroposófica justamente versando sobre o cristianismo e diz, no final: “Está tudo muito bem, e no fundo em nada contradiz o que pregamos do púlpito ou da cátedra; mas nós o dizemos de modo tal que qualquer pessoa o entenda. O que, no entanto, é dito aqui só pode ser entendido por alguns.” Esta é uma situação que se repete com muita freqüência. Quem diz ou julga que sua maneira de entender ou pregar o cristianismo é a única possível, deixa de considerar o seguinte: temos a obrigação de julgar de acordo com os fatos, e não de acordo com nossas predileções. Em certa ocasião, me vi obrigado a responder assim a uma pessoa: “O senhor talvez creia estar proclamando a verdade cristã a todos. Porém determinante nesse caso não é a nossa crença; determinantes são os fatos. Todas as pessoas freqüentam sua igreja? Os fatos provam o contrário! Àqueles para quem seu sermão é acertado, a Ciência Espiritual não é necessária; ela existe para os que necessitam de outra coisa.” Como se vê, devemos julgar de acordo com os fatos, e não de acordo com nossas predileções; e, via de regra, para as pessoas é muito difícil distinguir entre predileções e fatos.

Ora, se tais pessoas não pudessem absolutamente ser curadas da convicção de que sua opinião é a única acertada, menosprezando qualquer pessoa que falasse de modo diferente, e se a vida espiritual encontrasse nessas pessoas uma resistência definitiva, o que iria acontecer? Cada vez mais numerosas seriam as pessoas sem possibilidade de ouvir a anunciação de fatos espirituais tal como até agora foi usual nesta ou naquela corrente espiritual. Haveria sempre menos pessoas indo aonde há algo para ouvir. E se não existisse a corrente da Ciência Espiritual, tais pessoas ficariam sem coisa alguma, sem qualquer satisfação de suas necessidades espirituais; elas sucumbiriam, pois não lhes seria dado alimento. Contudo, não depende da vontade de cada um a forma como se apresenta o alimento espiritual que lhe é endereçado — depende da evolução. Atingimos agora a realidade e o momento em que as pessoas querem encontrar satisfação para suas necessidades espirituais, para a interpretação dos Evange-lhos e assim por diante. Contudo, determinante não é o modo como gostaríamos de dar o alimento espiritual, e sim o modo como a alma humana o requer. Hoje nasceu o anseio da alma humana pela Ciência Espiritual. E não é, em absoluto, dos que desejam ensinar algo diferente que depende se eles satisfazem ou não as necessidades espirituais da época — pois será cada vez menor o número de seus ouvintes.

Vivemos numa época em que está desaparecendo do coração dos homens a possibilidade de aceitar a Bíblia tal como foi aceita nos últimos quatrocentos a quinhentos anos do desenvolvimento cultural europeu. Ou a humanidade receberá a Ciência Espiritual, aprendendo através desta a compreender a Bíblia num novo sentido, ou as pessoas chegarão ao ponto de — como já sucede com muitos que hoje em dia não conhecem a Antroposofia — não mais poderem dar atenção à Bíblia. A humanidade perderia a Bíblia por completo; esta desapareceria, e a humanidade ficaria privada de imensos tesouros espirituais — os mais importantes tesouros espirituais da nossa evolução terrestre. É preciso compreender isto muito bem. Estamos justamente diante de um dos saltos dentro da nossa evolução. O coração humano anseia pelo esclarecimento científico-espiritual da Bíblia. Se esse esclarecimento ocorrer, a Bíblia se conservará, para

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bênção dos homens; caso contrário, estará perdida. Nisto deveriam pensar os que acham necessário manter a todo custo suas predileções e a interpretação tradicional da Bíblia.

É assim que podemos caracterizar o salto que ora fazemos dentro da evolução humana. Quem conhece esse fato não se deixará desviar por motivo algum do cultivo da corrente espiritual antroposófica, por reconhecê-la como uma necessidade da evolução humana.

De um ponto de vista mais elevado, porém, o que está sucedendo agora chega a ser de relativamente pouca envergadura diante do que sucedeu por ocasião do aparecimento do Cristo Jesus na Terra. Naquela ocasião, a evolução humana se encontrava num estágio em que praticamente ainda se manifestavam as derradeiras expressões da evolução em curso desde os tempos remotos, até mesmo desde a encarnação anterior da Terra. O homem se desenvolvia essencialmente em seus corpos físico, etérico e astral. Embora eleja tivesse há muito tempo recebido seu eu, esse eu exercia, ainda naquela época, uma função subalterna. O eu completamente autoconsciente estava ainda encoberto pelos três envoltórios — o corpo físico, o corpo etérico e o corpo astral — até o momento do aparecimento do Cristo Jesus.

Suponhamos que o Cristo Jesus não houvesse vindo à Terra. O que teria acontecido? O desenvolvimento da humanidade teria prosseguido de maneira tal que o eu estaria totalmente emancipado. Mas na proporção em que isso ocorresse, todas as antigas capacidades extraordinárias do corpo astral, do corpo etérico e do corpo físico teriam desaparecido; toda a antiga clarividência, todo o antigo domínio da alma e do espírito sobre o corpo físico não existiriam mais, pois teria sido essa a necessidade da evolução. O ser humano ter-se-ia transformado num eu autoconsciente, porém num eu que conduziria o homem cada vez mais ao egoísmo, levando cada vez mais ao extermínio do amor na face da Terra. Os homens se teriam tornado também ‘eus’, porém completamente egoístas. Eis o ponto essencial.

Naquela ocasião, a humanidade havia alcançado a maturidade necessária para ascender ao desenvolvimento do eu; por esse motivo, ao mesmo tempo havia também ultrapassado a possibilidade de ser influenciada da antiga maneira. Na antiga evolução hebraica fora possível, por exemplo, a atuação da lei, da revelação do Sinai, porque o eu ainda não se havia emancipado e o corpo astral, então o membro mais elevado, tivera como que instilado em si, impregnado em si o que deveria sentir e fazer para agir da maneira acertada no mundo exterior. Assim, a lei do Sinai surgiu como um prenuncio, o último antes de o eu tornar-se totalmente emancipado. Se o eu se houvesse libertado sem haver ocorrido algum outro acontecimento, o homem teria olhado apenas para o seu eu. A humanidade estava justamente amadurecida para a evolução do eu, mas este seria vazio, seria um eu concentrado apenas em si mesmo, não se empenhando em realizar algo em prol de outras pessoas ou do mundo.

Dar conteúdo a este eu, incentivá-lo pouco a pouco a uma evolução que fizesse fluir de seu próprio âmago a força que chamamos de força do amor, eis a missão do Cristo na Terra. Sem o Cristo, o eu se teria assemelhado a um recipiente vazio; devido ao aparecimento do Cristo, o eu se apresenta como um recipiente cada vez mais repleto de amor. Por esta razão o Cristo podia dizer aos que o rodeavam: “Ao verdes nuvens se aproximando, dizeis que o tempo vai ser desta ou daquela maneira; portanto, interpretais o tempo de conformidade com sinais exteriores. Porém, não compreendeis os sinais dos tempos — pois se

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soubésseis compreender e julgar as manifestações ao vosso redor, saberíeis que no eu precisa penetrar aquele Deus que o permeia e impregna; então não diríeis: ‘Podemos viver também com o que recebemos como tradição de tempos antigos.’Aquilo que data de tempos anteriores, vós o recebeis dos escribas e fariseus que conservam o antigo e não permitem a adição de coisa alguma no que anteriormente sucedeu aos homens. Mas isto é um fermento que não atuará mais na evolução humana. Porém aquele que diz ‘Quero permanecer estacionário em Moisés e os profetas’ não entende os sinais dos tempos, não sabe que transição está ocorrendo na humanidade.” (Lucas 12, 54-57.)9

Com palavras muito significativas, o Cristo Jesus disse aos que o rodeavam o seguinte: não depende em absoluto das predileções particulares de cada um o fato de alguém desejar ou não tornar-se cristão, mas sim da necessidade de prosseguimento na evolução da humanidade. Com as palavras que nos são transmitidas pelo Evangelho de Lucas nos ‘Sinais dos Tempos’, ele tencionava fazer compreender que a massa já levedada, velha, dos escribas e fariseus que apenas conservam o antigo, já não seria mais apropriada. E só poderia supor que ainda o fosse quem não sentisse a obrigação de julgar de acordo com o que é ensinado como necessário para a evolução da humanidade — quem julga tudo segundo suas preferências. Por esta razão, o Cristo Jesus qualificou como inverdade o que escribas e fariseus desejavam, por já não ser condizente com o mundo exterior. Seria este o significado da expressão.

A maneira mais simples de pressentirmos com toda a alma a força de sentimentos existente em sua fala é compará-la aos correspondentes acontecimentos dentro da atualidade. Qual seria, nos tempos atuais, a maneira de falar sobre o que foi indicado acima, se quiséssemos transportar para os dias de hoje o que o Cristo Jesus disse a respeito dos escribas e fariseus? Acaso temos, em nossos dias, pessoas semelhantes aos escribas? Sim, temos! E são exatamente aquelas que já não querem acompanhar as explicações mais profundas dos Evangelhos, desejando permanecer presas ao que suas capacidades, adquiridas sem a Ciência Espiritual, dizem a respeito dos mesmos; são as que não querem acompanhar os passos através da Ciência Espiritual a fim de se penetrar nos fundamentos dos Evangelhos. De modo geral, é este o caso em toda parte onde se procura — seja da maneira mais avançada ou mais retrógrada — interpretar os Evangelhos. Ora, a força necessária para a interpretação dos Evangelhos medra unicamente sobre o solo da Ciência Espiritual. Somente por intermédio da Ciência Espiritual é possível obter a verdade a esse respeito! É por esta razão que todas as outras pesquisas realizadas hoje, a respeito dos Evangelhos, são tão áridas; elas nos deixam indiferentes quando realmente procuramos a verdade. Apenas, nos nossos dias, aos escribas e fariseus foi acrescentado um terceiro tipo de pessoas — os cientistas naturalistas —, de modo que podemos falar de três categorias que querem excluir tudo o que conduza ao espiritual, tudo o que o homem possa adquirir como capacidades para encontrar os fundamentos espirituais das manifestações da natureza. E, no tempo atual, os que devem ser atingidos ao se falar sobre o sentido do Cristo Jesus encontram-se muitas vezes instalados em cátedras; eles têm em suas mãos coordenar as manifestações da natureza, mas rejeitam as explicações espirituais. São eles que detêm a evolução da

9 Não se trata aqui de uma citação, mas da versão oral de Steiner para o correspondente trecho de Lucas. O mesmo se repetirá adiante, em outras alusões. (N.E.)

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humanidade, pois o progresso desta é impedido sempre que não se aceita reconhecer o sinal dos tempos no sentido já indicado por nós.

Em nossa época, ser seguidor do Cristo Jesus corresponderia a encontrar coragem para opor-se — tal como ele o fez a todos os que queriam fazer valer apenas Moisés e os profetas — aos que querem impor um retrocesso a evolução da humanidade contrariando a interpretação antroposófica das Escrituras, por um lado, e a obras da natureza, por outro. Trata-se por vezes de pessoas bem-intencionadas, que aqui e ali gostariam de transmitir uma paz um tanto vaga. No coração de tais pessoas deveria germinar uma parcela do que disse justamente o Cristo Jesus, no sentido do Evangelho de Lucas.

É uma das parábolas mais belas e mais veementes do Evangelho de Lucas aquela que habitualmente é chamada ‘a parábola do feitor injusto’ (Lucas 16,1-13). Ali é relatado: — Um homem rico tinha um feitor, do qual lhe fora dito que desperdiçava os bens de seu amo. Resolveu, portanto, despedir o feitor. Mas este ficou muito consternado e perguntou a si mesmo: “Que devo fazer agora? Não posso ganhar meu sustento, tornando-me, de alguma forma, um agricultor, pois nada entendo disto; também não posso tornar-me mendigo, pois tenho vergonha de mendigar.” Encontrou então um meio de sobrevivência; cogitou: “Como feitor, sempre tratei as pessoas que entraram em contato comigo visando apenas ao interesse do meu amo. Por esse motivo elas não gostam muito de mim, pois não zelei pelos meus interesses; preciso fazer alguma coisa para que me recebam, para eu não sucumbir; farei alguma coisa para que as pessoas vejam que lhes tenho estima.” Foi a um dos devedores de seu amo e perguntou-lhe: “Quanto deves?”, e deixou que ele deduzisse a metade da dívida. Agiu de maneira idêntica junto aos outros. Desse modo, procurou obter benevolência dos devedores para que, mandando-o seu amo embora, pudesse procurar pelas pessoas, receber acolhida e não morrer de fome. Era essa a finalidade. — E a seguir, está escrito no Evangelho — e um ou outro que lê o Evangelho de Lucas poderia admirar-se muito (versículo 8): “E o Senhor louvou o injusto feitor por ter agido sensatamente.” Entre a espécie de pessoas que hoje em dia explicam os Evangelhos, houve realmente algumas que ficaram em dúvida a respeito de quem seria o ‘Senhor’ em questão, embora conste ali claramente que o próprio Jesus louvou o feitor por sua sensatez. E a seguir está escrito: “Pois os filhos deste mundo são, em sua geração, mais sensatos que os filhos da luz.” Há séculos que assim está escrito na Bíblia. É o caso de se perguntar se ninguém ainda refletiu a respeito do que significa: “os filhos deste mundo são, em sua geração, mais sensatos que os filhos da luz”. “Em sua geração” encontra-se escrito em todas as diversas traduções da Bíblia. Se alguém, com apenas algum conhecimento, fizesse a tradução do texto grego — precisaria, é claro, traduzi-lo corretamente —, então seria o certo: “pois os filhos deste mundo são mais sensatos, à sua maneira, que os filhos da luz”! Isto significa que, a seu modo, os filhos deste mundo são mais sensatos que os filhos da luz; de acordo com o que entendem, eles são mais sensatos, quis dizer o Cristo.

Os que há séculos vêm traduzindo essa passagem têm simplesmente confundido, até hoje, a designação ‘à sua maneira’ com uma palavra que, no grego, soa de modo muito semelhante (ten genean); confundiram-na com ‘geração’ porque, em algumas ocasiões, esta palavra foi também usada no outro sentido. Será possível — é o caso de se perguntar — que uma coisa destas se propague através dos séculos e surjam novas pessoas das quais se comenta que realizaram boas traduções da Bíblia e se esforçaram por restabelecer o texto

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verdadeiro, não o modificando? Weizsaecker, por exemplo, traduziu exatamente assim! Por mais estranho que pareça, é como se as pessoas tivessem desaprendido os primeiros ensinamentos escolares quando se propuseram in-vestigar a verdadeira forma dos documentos bíblicos.

Antes de mais nada, a cosmovisão da Ciência Espiritual deverá ser um meio de devolver à humanidade as escrituras bíblicas tal qual elas são. Porque atualmente o mundo não tem a Bíblia, e nem sequer pode imaginar como são esses livros. Poder-se-ia mesmo perguntar: são estes os livros bíblicos? Não, não são, justamente em suas partes mais importantes! Quero mostrar-lhes isso mais detalhadamente.

O que, na realidade, quer expressar essa parábola do feitor injusto? Está explicado claramente. O feitor ponderou: “Se preciso sair daqui, preciso tornar-me benquisto entre as pessoas.” Ele compreendeu que não se pode servir ‘a dois amos’. “Assim deveis compreender” disse o Cristo aos que o cercavam; “também não podeis servir a dois senhores: àquele que agora, como Deus, deve entrar nos corações, e àquele que até agora foi anunciado pelos letrados que interpretaram os livros dos profetas; pois não podereis servir àquele Deus que deverá penetrar em suas almas como princípio Crístico e fazer a humanidade progredir muitíssimo em sua evolução, e ao Deus que se colocaria como um empecilho diante dessa evolução”. Pois tudo o que foi adequado a um tempo já passado se transforma em empecilho na evolução posterior. É nisto que se baseia, de certa maneira, a evolução: o que é certo para uma época transforma-se em obstáculo quando levado à evolução posterior. As forças que comandam os obstáculos eram designadas, naqueles tempos, por uma expressão específica: Mammon. “Não podeis servir ao deus que deseja o progresso e a Mammon, o deus dos obstáculos. Olhai bem para o feitor que, como um filho do mundo, compreendeu que nem sequer com o corriqueiro Mammon se pode servir a dois amos! Assim, deveis compreender que, à medida que vos elevais, tornando-vos filhos da luz, não podeis servir a dois amos.” (Lucas 16,11-13.)

Do mesmo modo, quem vive na atualidade precisa compreender que não existe um acordo entre o deus Mammon em nossa época — os literatos e cientistas — e a direção que hoje deve dar à humanidade o alimento necessitado por ela. Esta é a linguagem cristã. É isto o que, no sentido do Evangelho de Lucas e revestido de palavras adequadas à nossa época, o Cristo Jesus quis dizer aos que o rodeavam — afirmando, por intermédio da parábola, que não é possível servir a dois amos, como demonstrou no caso do feitor.

É preciso entender os Evangelhos de forma viva. A própria Ciência Espiritual deverá vir a ser algo vivo! Por esta razão, tudo o que ela toca deverá adquirir vida sob sua influência. O Evangelho deve ser, para nós, algo fluindo para dentro de nossas próprias capacidades espirituais. Não devemos apenas dizer levianamente que nos tempos do Cristo Jesus era possível rejeitar os escribas e fariseus, pois novamente estaríamos apenas lembrando um tempo já passado. Porém, devemos saber de que forma ele hoje se vivifica e onde se encontra atualmente a continuação do que o Cristo Jesus designou, para sua época, como deus Mammon. Esta é a compreensão viva; mas também é o que desempenha um papel profundo e relevante no que nos é relatado no Evangelho de Lucas. É que a este aspecto que esclarecemos agora, a esta parábola só encontrada no Evangelho de Lucas, liga-se um dos mais importantes conceitos do Evangelho todo; e só nos será possível inserir em nossa alma tal importantíssimo conceito se

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estivermos em situação de poder restabelecer mais uma vez, de modo um pouco diferente, a relação entre o Buda, com seu impulso, e o Cristo Jesus.

Dissemos que o Buda colocou diante da humanidade o grande ensinamento da compaixão e do amor. Temos aqui um dos casos em que o que é dito pelo ocultismo deve ser entendido no sentido exato; pois do contrário alguém poderia dizer: “Uma vez dizes que o Cristo trouxe o amor para a Terra, e em outra ocasião é dito que foi o Buda quem trouxe o ensinamento do amor. Será que em ambas as vezes é dita a mesma coisa?” Numa das vezes digo que o Buda trouxe à Terra o ensinamento do amor, e em outra digo que o próprio Cristo trouxe à Terra o amor como força viva. É esta a grande diferença. Onde as mais profundas coisas têm importância para a humanidade, é preciso prestar toda a atenção; pois do contrário sucede que as coisas reveladas em determinado lugar aparecem alhures, ao se propagarem com aparência bem diferente — e então se diz: “Sim, na realidade esse aí estabeleceu, para fazer justiça a todos, dois preconizadores do amor.” Justamente no campo do ocultismo, tudo depende de se prestar atenção. Se realmente compreendermos as importantes verdades quando revestidas por palavras, então elas nos aparecerão sob o enfoque certo.

Sabemos que a transcrição do grande ensinamento da compaixão e do amor, como o Buda a trouxe, encontra-se na Senda das Oito Sabedorias; e perguntamo-nos: qual é, então, o desígnio final almejado por esta Senda das Oito Sabedorias? Podemos também formular a pergunta da seguinte maneira: o que alcança o homem que, das profundezas da sua alma, propõe a Senda das Oito Sabedorias como o ideal de sua vida, colocando esta meta diante de seus olhos, dizendo: “Como me tornarei o mais perfeito possível? Como limparei e purificarei meu eu da maneira mais perfeita? O que devo fazer para, da maneira mais perfeita possí-vel, colocar meu eu no mundo?” Ele dirá a si mesmo: “Se observo tudo quanto é dito na Senda das Oito Sabedorias, meu eu virá a ser o mais perfeito possível, pois tudo caminha para sua purificação e enobrecimento; tudo o que pode irradiar dessa maravilhosa Senda deve integrar-se em nós, tudo é trabalho do nosso eu em favor de seu aperfeiçoamento.” Isto é o essencial. Se, portanto, a humanidade continuasse a desenvolver em si aquilo que tem a designação específica de ‘roda da lei’ posta em ação pelo Buda, pouco a pouco chegaria a possuir eus o mais perfeitos possível, ou melhor, chegaria a saber quais são os eus mais perfeitos. Em pensamentos, como em sabedoria, a humanidade viria a possuir os mais perfeitos eus. Poderíamos também dizer o seguinte: o Buda trouxe à humanidade a sabedoria do amor e da compaixão; e se perpassarmos nosso corpo astral de maneira que este se torne totalmente um produto da Senda das Oito Sabedorias, então saberemos tudo quanto devemos saber a respeito do ensinamento dessa Senda.

Contudo, há uma diferença entre a sabedoria, o pensamento e a força viva, atuante. E há uma diferença entre saber como o eu deveria ser e deixar que a força viva nos penetre para, em seguida, fluir novamente para o mundo todo — assim como, fluindo do Cristo, essa força atuava sobre os corpos astrais, etéricos e físicos daqueles que o cercavam. Por meio do impulso trazido pelo grande Buda, tornou-se possível à humanidade conhecer o conteúdo do ensinamento da compaixão e do amor. No entanto, o que o Cristo trouxe é principalmente uma força viva, e não um ensinamento. Ele doou a si próprio, tendo descido com o intuito de fluir não somente para os corpos astrais, mas para o eu, conferindo a este a força para fazer emanar de si o substancial do amor. O substancial, o

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conteúdo vivo do amor, e não apenas seu conteúdo sábio, foi o que o Cristo trouxe à Terra. É este o significado.

São passados agora dezenove séculos e aproximadamente quinhentos anos desde que o grande Buda viveu na Terra. E passarão ainda — isto é algo que os fatos ocultos nos ensinam — cerca de três mil anos de evolução terrestre. Então, uma grande parte dos seres humanos estarão capacitados a desenvolver por si próprios, a partir de seu próprio senso moral, de sua própria alma e de seu próprio coração, a Senda das Oito Sabedorias, a sabedoria do Buda. Por uma única vez foi necessária a presença do Buda. A partir daí emanou a força que passo a passo as pessoas desenvolverão como o conhecimento da Senda das Oito Sabedorias. Então, daqui a aproximadamente três mil anos, elas a terão como propriedade sua. As pessoas, elas mesmas, poderão desenvolver esse ensinamento, não apenas recebendo-o de fora, mas desenvolvendo-o independentemente e dizendo a si próprias: “Essa Senda das Oito Sabedorias brota do nosso íntimo como a sabedoria da compaixão e do amor.”

Se nada mais tivesse sucedido além de o grande Buda ter acionado a ‘roda da lei’, então a humanidade, também daqui a três mil anos, viria a adquirir a capacidade da sabedoria sobre o ensinamento da compaixão e do amor; porém coisa bem diversa será ter conseguido a força para realmente viver estes ensina-mentos. E é esta a diferença: não apenas saber a respeito da compaixão e do amor, mas, sob a influência de uma individualidade, também desenvolver essa força. Essa capacidade emanou do Cristo. Ele verteu o próprio amor para dentro das pessoas, e este crescerá sempre mais. E quando tiverem atingido o final de sua evolução, os homens compreenderão, pela sabedoria, qual é o conteúdo do ensinamento da compaixão e do amor — e terão de agradecê-lo ao Buda. Mas ao mesmo tempo terão a capacidade de deixar o amor fluir do eu para a humanidade; isto a humanidade terá de agradecer ao Cristo.

Deste modo, tiveram ambos de atuar em conjunto, e assim precisava ser relatado para tornar compreensível o Evangelho de Lucas. Contudo, é isto o que se nos depara de imediato quando sabemos interpretar corretamente as palavras transmitidas no Evangelho de Lucas (Lucas 2, 13-14). Aí estão os pastores, que vêm apressados para receber a anunciação. No alto está a legião de anjos, que nada mais é senão a expressão espiritual imaginativa para o nirmanakaya do Buda. O que lhes é anunciado na imagem do céu? A revelação, vinda das alturas, do Deus pleno de sabedoria! E isto o que lhes anunciava o nirmanakaya do Buda, que sob forma de legião de anjos paira sobre o menino Jesusnatânico. Contudo, algo mais ainda é acrescentado: “E paz na Terra aos homens plenos de boa vontade”, isto é, às pessoas em quem germina a verdadeira e vivida força do amor. É isto o que, gradativamente, deverá tornar-se realidade na Terra mediante o impulso dado pelo Cristo. Ele acrescentou força viva ao que era a ‘revelação das alturas’. Ele a inseriu em cada coração e trouxe para cada alma humana algo que podia transbordar dela; proporcionou-lhe algo que não somente era um ensinamento possível de ser absorvido como pensamento e idéia, mas uma força que pode extravasar dessa alma humana. E aquela força constantemente caracterizada — por exemplo, no Evangelho de Lucas — como a força da fé, outra não é senão a que pode atuar na alma humana como força crística, podendo fazer transbordar a alma humana. Isto é fé, no sentido dos Evangelhos. Possui fé quem abriga em si o Cristo, de modo que o Cristo viva em seu íntimo e seu eu não exista nele como receptáculo vazio, mas encerre um

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conteúdo transbordante. E este conteúdo transbordante não é outro senão o conteúdo do amor.

Por que podia o Cristo, mediante suas palavras, apresentar aquele grande exemplo da ‘cura pela palavra?’ Por ter sido ele o primeiro a colocar em movimento a ‘roda do amor’ — não a ‘roda da lei’ — como uma livre faculdade e força da alma humana, pois trazia o amor dentro de si em altíssimo grau, a tal ponto transbordante e extravasante que fluía para dentro dos que o rodeavam e deviam ser curados; porque, fosse sua palavra “Levanta-tee anda” ou “Teus pecados te são perdoados”, ou qualquer outra palavra, esta quando pronunciada advinha do amor transbordante de seu íntimo. Ele pronunciava palavras ditas a partir de um amor que transbordava para além da medida do eu. E aos queconseguiam preencher-se um pouco com este fato, o Cristo denominava fiéis. Basta unirmos este pensamento com o conceito da fé — um dos mais essenciais no Novo Testamento. Ter fé é a capacidade de transcender a si mesmo, de ultrapassar o que o eu pode, por enquanto, fazer em favor de seu próprio aperfeiçoamento. Por este motivo o Cristo, tendo penetrado no corpo do Jesus natânico e tendo-se unido ali com a força do Buda, nãoensina algo como “De que modo devo aperfeiçoar o eu o mais possível?”, mas “Como devo fazer transbordar o eu?”, “Como pode ele ultrapassar a si mesmo?”. Muitas vezes ele o diz com palavras simples, da maneira como as palavras do Evangelho de Lucas podem sempre falar aos mais ingênuos corações. Diz ele: “Não é suficiente dardes algo somente àqueles dos quais tendes certeza que vo-lo tomarão a devolver, pois isto fazem também os pecadores. Quando eles têm certeza de que receberão de volta o que deram, ainda não o fizeram a partir do amor transbordante. Mas se dais e sabeis que não recebereis de volta, então agistes a partir do verdadeiro amor; é este o amor que não abrange o eu, mas que precisa libertar esse eu como uma força que emana do homem.” (Lucas 6, 33-34.) E em múltiplas variações que o Cristo diz como o eu deve transbordar — como, a partir dessa abundância do eu, a partir de um sentimento que pode exceder seu próprio íntimo, se deverá atuar no mundo.

São estas as palavras mais cálidas do Evangelho de Lucas, onde se alude a esse amor transbordante. O Evangelho de Lucas contém esta força do amor transbordante quando permitimos a atuação das palavras sobre nós de maneira que o encontremos — esse amor transbordante —, e que ele permeie todas as nossas palavras para conferir-lhes a força necessária à sua atuação no mundo exterior. Um outro evangelista, que a partir de suas considerações preliminares pouca ênfase deu a esse amor transbordante, resumiu em poucas palavras o segredo do cristianismo, ao dizer: “Da abundância do eu flui o amor. E naturalmente este deve verter para dentro de tudo o que dizemos e fazemos.” No Evangelho de Mateus, na tradução latina, os Senhores encontram ainda as palavras autênticas, primordiais, como um pequeno resumo de todos os belos louvores ao amor encontrados no Evangelho de Lucas. Em latim está escrito: Ex abundantia cordis os loquitur — “Da abundância do coração fala a boca” (Mateus 12, 34). Um dos mais elevados ideais cristãos! A boca fala a partir de um coração transbordante, a partir de algo que o coração não cinge. O coração é movimentado pelo sangue, e o sangue é a expressão do eu. Isto significa, pois: “Fala a partir de um eu transbordante, que irradia uma força — pois esta força é a força da fé —, fala a partir dessa força! Então tuas palavras conterão realmente a

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força do Cristo.” “Da abundância do coração fala a boca.” É este um princípio básico da essência do cristianismo.

E agora leiam a Bíblia moderna. O que está escrito nessa passagem? “Quem traz o coração repleto, pela boca transborda.”10 Estas palavras foram suficientes para encobrir um princípio cardinal do cristianismo através de séculos. A humanidade não atinou com o absurdo que é dizer que o coração, estando repleto, entorna. Habitualmente as coisas no mundo entornam apenas quando estão mais do que repletas, quando transbordam. Assim a humanidade — que isto não seja uma crítica — necessariamente se envolveu numa suposição que encobriu um dos mais importantes, um dos princípios norteadores do cristianismo, e sequer notou que neste trecho está escrito algo completamente impossível. Dizer que a língua alemã não permite a tradução literal de Ex abundantia cordis os loquitur com Aus dera Überfliessen des Herzens spricht der Mund [Do transbordo do coração fala a boca], e enfatizá-lo dizendo que não é possível também dizer que o excedente do aquecedor aquece o cômodo, é simplesmente um absurdo. Ora, se os Senhores esquentam o aquecedor o suficiente apenas para que o calor atinja suas paredes, o quarto não ficará aquecido; este só se aquecerá ao se registrar um excesso de calor, de modo que este calor exceda o aquecedor. Assim, deparamos aqui com algo importante. Um princípio norteador do cristianismo, onde se alicerça uma parte do Evangelho de Lucas, é encoberto de tal maneira que a humanidade, justamente em trecho de máxima importância, não recebe o que está escrito no Evangelho.

Esta força que pode verter do coração humano é a força do Cristo. ‘Coração’ está em lugar de ‘eu’. O que o eu pode criar para além de si mesmo flui para o exterior através do Verbo. No final da evolução terrestre, o eu estará em condições de trazer em si o Cristo inteiro. Por ora, o Cristo é algo que transborda do coração. Desejando-se ter somente o coração repleto, não se tem absoluta-mente o Cristo. É por esta razão que, justamente não interpretando esta frase em toda a sua seriedade e em toda sua dignidade, o cristianismo fica encoberto. As coisas mais importantes, a essência do cristianismo, tornar-se-á evidente pelo que a Ciência Espiritual tem a dizer como esclarecimento dos documentos sagrados do cristianismo. Pela leitura do mundo espiritual na Crônica do Akasha, ela descerra o sentido original e, por esse motivo, está em situação de poder ler os documentos primordiais em sua veracidade.

E agora poderemos entender como a humanidade caminha progressivamente em direção ao futuro. Aquele que, cerca de quinhentos a seiscentos anos antes da era cristã, evoluiu de Bodhisatva para Buda, elevou-se de tal maneira nos mundos espirituais, por intermédio dessa evolução, que atua agora como nirmanakaya. Com isso, foi alçado a um grau superior, e já não precisa descer para encarnar-se num corpo físico. As formas de atuação que lhe eram peculiares como Bodhisatva estão presentes novamente, de outra forma. Quando, naquela ocasião, ele evoluiu de Bodhisatva para Buda, passou seu cargo de Bodhisatva para outro. Um outro tornou-se seu sucessor, vindo a ser Bodhisatva. A lenda budista expressa esse acontecimento por intermédio de algo que, para o cristianismo mais profundo, é uma profunda verdade. Ela relata que a individualidade do Bodhisatva, antes de descer para sua transformação em Buda, tirou a tiara celeste e colocou-a no Bodhisatva sucessor. Este prossegue atuando em sua missão, de cunho ligeiramente diferente. Também ele está designado

10 Na Bíblia de Jerusalém consta: “Porque a boca fala daquilo de que o coração está cheio.” (N.E.)

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para ser um Buda. Justamente na época em que um certo número de pessoas houver desenvolvido por suas próprias forças o ensinamento da Senda das Oito Sabedorias — dentro de aproximadamente três mil anos —, tornar-se-á Buda aquele que se tornou Bodhisatva quando seu antecessor se transformou em Buda. Quinhentos a seiscentos anos antes da era cristã, foi-lhe confiada sua missão; ele virá a ser um Buda após três mil anos a contar do início da era cristã. Trata-se daquele que o esoterismo oriental conhece por Maitreya-Buda. Para que o atual Bodhisatva possa vir a ser um Maitreya-Buda, é preciso que um número bastante grande de seres humanos haja desenvolvido a Senda das Oito Sabedorias a partir do próprio coração; haverá então um número maior de homens que estarão sábios a ponto de serem capazes de fazê-lo. Então aquele que hoje é Bodhisatva trará ao mundo uma nova força.

Se até a época citada nada demais sucedesse, então ele até encontraria pessoas que, pela meditação, seriam capazes de conceber a Senda das Oito Sabedorias; contudo, não encontraria pessoas que tivessem, a partir do mais íntimo de suas almas, a força transbordante do amor, do amor vívido. Nesse ínterim, esta força vívida do amor deve fluir para que o Maitreya-Buda não encontre apenas seres humanos que reconheçam o amor, mas homens que tragam em si a força do amor. Para isso, precisou descer a Terra o Cristo ― uma entidade que esteve no mundo terrestre apenas por três anos e que antes nunca estivera encarnado, como os Senhores puderam captar das indicações dadas até agora. A presença do Cristo na Terra por três anos ― a partir do batismo por João até o Mistério do Gólgota ― foi motivo para que na Terra, desse evento em diante, o amor fluísse cada vez mais para dentro do coração humano; de modo que os homens estarão cada vez mais permeados pelo Cristo, para que ao final da evolução terrestre o eu humano se encontre totalmente preenchido por ele. Assim como foi preciso que o ensinamento da compaixão e do amor fosse inicialmente estimulado pelo Bodhisatva, também foi necessário que a substância do amor fosse conduzida a Terra por aquele que, trazendo-a das alturas celestiais, paulatinamente levou-a a tornar-se propriedade do eu humano individual. Não devemos dizer que anteriormente não tivesse existido amor. Antes não existira aquele amor capaz de tornar-se imediatamente propriedade do eu humano; o amor que o Cristo fazia fluir de alturas cósmicas era inspirado, tendo fluído tão inconscientemente como antes emanara do Bodhisatva o ensinamento da Senda das Oito Sabedorias. Da mesma maneira como o Buda se relaciona com a Senda, o ser do Cristo se relaciona com o que ele próprio fora anteriormente, antes de poder descer com o que ele próprio fora anteriormente, antes de poder descer para assumir a forma humana. Significava um progresso na evolução do Cristo o fato de assumir a forma humana. Eis o ponto essencial.

O sucessor de Buda, atualmente um Bodhisatva, é bem conhecido das pessoas versadas em Ciência Espiritual; e certamente chegará o tempo em que se falará pormenorizadamente sobre esse fato, quando também será enunciado o nome desse Bodhisatva destinado a ser Maitreya-Buda. Hoje, quando já tantos fatos desconhecidos do mundo exterior foram mencionados, devemos restringir-nos a aludir a tais coisas. Quando esse Bodhisatva aparecer na Terra e vier a ser o Buda, encontrará na Terra a seara do Cristo. Esta seara será constituída pelas pessoas que dirão: “Não só minha cabeça está repleta do conhecimento da Senda das Oito Sabedorias; não trago em mim apenas o ensinamento, a sabedoria do amor: meu coração está repleto da substância viva do amor, daquele amor que transborda e irradia para o mundo.” Com tais seres humanos poderá então o

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Maitreya-Buda realizar sua subseqüente missão no prosseguimento da evolução da Terra.

É desta maneira que as coisas confluem, e só assim compreendemos o Evangelho de Lucas em sua profundidade. Ele não nos fala de um ensinamento; fala-nos daquela entidade que penetrou nos seres terrestres, na natureza humana de um modo substancial. Este é um fato expresso no ocultismo da seguinte maneira: — Os Bodhisatvas que se tornam Budas podem salvar os homens terrestres quanto a seu espírito, pela sabedoria, mas nunca poderão salvar o homem todo. É que o homem todo só pode ser redimido quando não apenas sabedoria, mas também a cálida força do amor transpassa toda a sua entidade. Redimir as almas pela abundância do amor trazida pelo Cristo à Terra — eis a missão do Cristo. Trazer sabedoria a respeito do amor foi a missão do Bodhisatva e do Buda; trazer para a humanidade a força do amor foi a missão do Cristo. Precisamos fazer esta distinção.

26 de setembro de 1909

O evangelho da boa vontadeHoje deveremos ocupar-nos em conduzir — segundo evidências que, com o

auxílio do Evangelho de Lucas, obtivemos da pesquisa espiritual — os diversos conhecimentos adquiridos nos últimos dias a seu ápice geral, ao ápice que denominamos o Mistério do Gólgota.

Ontem tentamos descrever, de maneira incisiva, o que realmente sucedeu no momento da evolução humana em que o Cristo caminhou por três anos pela Terra; e nas conferências precedentes tentamos caracterizar como isso pôde acontecer pela confluência das correntes espirituais que observamos. É justamente o autor do Evangelho de Lucas quem nos caracteriza, de maneira maravilhosa, toda a missão do Cristo Jesus na Terra; basta que nos seja possível ver seu relato à luz dos conhecimentos hauridos da Crônica do Akasha.

Ora, alguém poderia perguntar por que razão, já que a corrente espiritual budista se entrelaça tão organicamente ao ensinamento cristão, não aparecem neste alusões às grandes leis do carma, àquela compensação que acontece no decorrer das encarnações do homem. Contudo, seria um mal-entendido se alguém quisesse acreditar que o conhecimento a ser obtido da lei do carma não se encontre também na revelação do Evangelho de Lucas. Ele consta ali; basta termos bem claro, se é que desejamos compreender isso corretamente, que as necessidades das almas humanas são diversas em diferentes épocas, e que os grandes missionários da evolução universal nem sempre têm a incumbência de trazer aos seres humanos a verdade absoluta sob forma abstrata. Ora, nem a poderiam compreender pessoas em diferentes graus de maturidade; os grandes missionários precisam falar aos homens de maneira que estes recebam o adequado em determinada época. No que a humanidade recebeu pela intervenção do grande Buda está contida toda a sabedoria que, em conjunto com o ensinamento da compaixão e do amor, e também com a explanação desta doutrina pela Senda das Oito Sabedorias, pode conduzir a um sábio entendimento da doutrina do carma. E está escrito: “Não procureis na alma humana tudo o que

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conduz ao ensinamento do carma e da reencarnação se, partindo do carma, não chegardes a esse ensinamento.”

Ontem foi relatado como, três mil anos após o nosso próprio tempo, grande parte da humanidade estará em condições de extrair de seu próprio íntimo o ensinamento da Senda das Oito Sabedorias, e com isto — como poderemos adicionar hoje — também o ensinamento do carma e da reencarnação. Contudo, isto precisa suceder pouco a pouco, precisa acontecer lentamente. Pois assim como na planta, imediatamente após termos introduzido a semente na terra, não pode desenvolver-se já a flor — e sim, seguindo necessárias leis, é preciso desenvolver-se primeiramente folha após folha —, também é mister que a evo-lução espiritual da humanidade caminhe de grau em grau, e que no tempo certo o certo se manifeste. Quem, permeado pelas capacidades proporcionadas pela Ciência Espiritual, aprofunda-se atualmente em sua própria alma, depara-se com o ensinamento do carma e da reencarnação como um ensinamento muito ne-cessário. Contudo, considerem que a evolução não é inútil; realmente, apenas em nossa época as almas alcançaram novamente a maturidade para encontrar em si mesmas o que se denomina doutrina do carma e da reencarnação. Não teria sido bom se, já alguns séculos antes, esse ensinamento houvesse sido proclamado exotericamente; e não teria sido benigno para a evolução humana se o que hoje é conteúdo da Ciência Espiritual — do qual as almas humanas são ávidas e ao qual está entrelaçada a investigação dos motivos fundamentais dos Evangelhos — já houvesse sido revelado abertamente à humanidade alguns séculos atrás. Pois para tanto foi necessário que as almas humanas o desejassem ansiosamente e desenvolvessem capacidades para compreender o ensinamento sobre carma e reencarnação. Para tanto foi preciso que essas almas vivenciassem tudo o que cumpria vivenciar antes de atingir a maturidade adequada a receber o ensinamento de carma e reencarnação. Se nos primeiros séculos do cristianismo este houvesse sido revelado tão declaradamente como o é hoje, isto equivaleria a exigir da evolução da humanidade algo comparável a que da planta brotasse imediatamente não a folha verde, mas a flor.

Assim, somente hoje a humanidade está amadurecida para absorver em sua alma o ensinamento sobre carma e reencarnação quanto a seu conteúdo espiritual. Não é, portanto, de admirar que no que há séculos vem sendo entregue à humanidade por intermédio dos Evangelhos se encontre muita coisa oferecendo, por assim dizer, uma imagem bastante falsa do cristianismo. De certa maneira o Evangelho foi dado precocemente aos homens, e só agora a humanidade está madura para desenvolver em sua alma todas as capacidades possíveis de conduzi-la a uma compreensão do real conteúdo dos Evangelhos. Era absolutamente necessário que a mensagem resultante como anunciação do Cris-to Jesus levasse em consideração a situação da época e as condições das almas humanas naquela ocasião; sendo assim, naquele tempo não se ensinava sobre reencarnação e carma de modo abstrato — deixava-se fluir para a alma humana sentimentos por cujo intermédio as almas se tornassem paulatinamente maduras para receber o ensinamento do carma e da reencarnação. Naquela ocasião era preciso dizer algo que levasse paulatinamente à compreensão do ensinamento de carma e reencarnação, e não o ensinamento em si.

Acaso era isso o que dizia o Cristo Jesus e os que o cercavam? Para compreendermos este assunto é preciso abrirmos as páginas do Evangelho de Lucas, deixando-o atuar de maneira apropriada sobre nossa alma. E se absorvermos em nossa alma os escritos desse Evangelho com a devida

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compreensão destas coisas, certamente leremos como, naquela ocasião, justamente a lei do carma pôde ser anunciada aos homens.

Bem-aventurados sois vós que sois pobres, pois vosso será o reino dos céus.Bem-aventurados sois vós que agora estais famintos, pois vossa fome será mitigada.Bem-aventurados sois vós que agora chorais, pois sorrireis.Bem-aventurados sois vós se as pessoas vos odeiam, se vos evitam e vos amaldiçoam e renegam vossos nomes como um nome mau, por causa do Filho do Homem.Alegrai-vos nesse dia e rejubilai, pois vede: vossa recompensa é grande nos mundos espirituais. [Lucas 6, 20-23.]

Temos aqui o ensinamento da compensação, o qual, sem discorrer abstratamente sobre o ensino do carma e da reencarnação, contudo está empenhado em fazer fluir para as almas a certeza de que mais conhecerá a compensação quem, num campo qualquer, permanecer faminto por algum tempo. Estes sentimentos precisavam fluir para o âmago das almas humanas. E as almas que viviam naquela ocasião, para as quais se verteu esse ensinamento da maneira descrita, só ao encarnar-se novamente ficaram maduras para receber, sob forma de sabedoria, o ensino do carma e da reencarnação.

Por isso era necessário, naquela ocasião, fluir para dentro das almas algo que deveria amadurecer nelas. Ora, havia despontado uma época completamente nova, uma época durante a qual os homens, tendo alcançado pleno amadurecimento, preparavam-se para desenvolver seu eu, sua autoconsciência. Enquanto anteriormente os homens recebiam as revelações e seus efeitos no corpo astral, no corpo etérico e no corpo físico, o eu deveria agora tornar-se plenamente consciente. Mas apenas pouco a pouco deveria preencher-se com as forças que tinha a receber. Somente aquele eu determinado, que naquela ocasião caminhava sobre a Terra e cujo corpo físico fora preparado para tal, trazendo em seu corpo do Jesus natânico a individualidade de Zaratustra, somente esse eu podia realizar em si o princípio universal do Cristo. Agora os outros seres humanos devem desenvolver passo a passo, na imitação do Cristo, o que outrora esteve presente na Terra durante três anos, naquela determinada personalidade. Por assim dizer, apenas o impulso, o germe pôde o Cristo Jesus introduzir na humanidade naquela ocasião; e aos poucos esse germe precisa crescer e desenvolver-se. Também foram tomadas providências para que sempre em épocas adequadas, dentro do processo evolutivo da Terra, pudessem aparecer homens aptos a trazer o que a humanidade estará madura para receber em tempos futuros. O ser que naquela ocasião apareceu na Terra como o Cristo precisou tomar providências para que, imediatamente após seu aparecimento, a humanidade recebesse uma anunciação adequada à sua capacidade de compreensão; e precisou também tomar precauções para que mais tarde surgissem individualidades zeladoras das almas no sentido espiritual, na medida de seu amadurecimento posterior. A maneira como o Cristo preparou os tempos posteriores ao acontecimento do Gólgota é descrita pelo autor do Evangelho de João, Ele nos demonstra como o próprio Cristo ressuscita em Lázaro a individualidade que passa a atuar depois como João, tendo dela partido o ensinamento descrito nas conferências sobre o evangelho joanino. Contudo, o Cristo precisava também realizar preparativos para o posterior advento da individualidade que, no sentido da evolução futura, poderá oferecer objetiva-

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mente à humanidade algo para o qual os homens deveriam estar maduros mais tarde. Para tanto, porém, o Cristo deveria ressuscitar uma outra individualidade. Como isto aconteceu nos é relatado fielmente pelo autor do Evangelho de Lucas. Ao desejar relatar o que os clarividentes, imaginativos ou inspirados sabiam dizer naquela ocasião sobre os acontecimentos na Palestina, ele indica simultaneamente o que um dia será ensinado por um outro, porém apenas no futuro. E para descrever-nos esse processo misterioso, o autor do Evangelho de Lucas entreteceu a seu documento uma ressurreição (Lucas 7,11-17). O que lemos a respeito da ‘ressurreição do jovem de Naim’ encerra o segredo do cristianismo continuamente atuante, ao passo que na cura da filha de Jairo vemos uma outra ressurreição ocorrer de maneira a ser mencionada logo em seguida. (A respeito da filha de Jairo pude anteontem, ao menos alusivamente, esclarecer-lhes que os mistérios ligados a ela são tão profundos que o Cristo Jesus leva consigo apenas algumas pessoas aptas a presenciar o processo da cura, ordenando-lhes em seguida nada revelar a respeito.) O primeiro foi um processo de cura pressupondo que quem o efetuasse possuísse um conhecimento dos processos do corpo físico. O outro foi uma ressurreição, uma iniciação. A individualidade abrigada no jovem de Naim deveria passar por uma iniciação muito específica.

Há diversos tipos de iniciação. Um deles consiste em que imediatamente após o processo de iniciação o recém-iniciado veja despertar dentro de si o reconhecimento dos mundos superiores, podendo então penetrar nos processos e leis dos mundos espirituais. Mas um outro modo de iniciação pode ocorrer de maneira que na alma em questão seja inicialmente introduzido apenas o germe, tendo ela de aguardar por mais uma encarnação; então este germe brotará, e na encarnação posterior a pessoa se tornará um iniciado no verdadeiro sentido.

Este tipo de iniciação foi realizado com o jovem de Naim. Naquela ocasião, sua alma passou por uma modificação ao sobrevir o acontecimento da Palestina; ele ainda não tinha consciência de ter-se elevado aos mundos espirituais. Somente na encarnação seguinte germinaram as forças inseridas então em sua alma.

Numa palestra exotérica como esta, não podem ser enunciados os nomes que tiveram importância naquela ocasião; pode-se apenas aludir ao fato de aquela individualidade ressuscitada pelo Cristo Jesus no jovem de Naim ter despertado num grande mestre religioso, tendo assim podido surgir um novo mestre do cristianismo dotado das forças que haviam sido inseridas em sua alma.

Desta maneira, o Cristo zelou para que também mais tarde pudesse surgir uma individualidade continuadora do cristianismo. E essa individualidade, ressuscitada no jovem de Naim, tem a missão de, futuramente, impregnar cada vez mais o cristianismo com os ensinamentos da reencarnação e do carma, unindo a ele os ensinamentos que, na época da passagem do próprio Cristo pela a Terra, ainda não podiam ser revelados expressamente como ensinamentos de sabedoria, pois deviam ser introduzidos nas almas humanas apenas pelo sentimento.

Também no sentido do Evangelho de Lucas, o Cristo Jesus aponta insistentemente que algo completamente novo, ou seja, a conscientização do eu, penetrou na evolução humana; ele aponta isso — basta sabermos ler que anteriormente os homens não viam o mundo espiritual fluir para o interior de seu eu autoconsciente, mas possuíam esse elemento espiritual fluindo através de seus corpos físico, etérico e astral, havendo sempre um grau de inconsciência

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quando, nesses tempos antigos, forças divino-espirituais fluíam para os homens. Uma modificação deveria ocorrer agora. Anteriormente fora preciso que, por meio da corrente em que o Cristo Jesus fora diretamente colocado, os homens recebes-sem a lei do Sinai, capaz de falar apenas ao corpo astral humano. Essa lei fora dada ao homem de modo a atuar nele, porém não diretamente a partir das forças de seu eu. Somente na época do Cristo Jesus essas forças se tornaram possíveis, pois somente então os homens começaram a tornar-se conscientes de seu eu. A este fato o Cristo Jesus alude também no Evangelho de Lucas, ao dizer que na verdade, para poderem receber um princípio totalmente novo, os homens devem alcançar a plena maturidade de suas almas; a isto ele alude ao falar de seu precursor João Batista (Lucas 7, 18-35).

Como o próprio Cristo via essa individualidade de João? Ele dizia que João fora destinado a caracterizar da maneira mais pura e nobre para os homens, antes do aparecimento do próprio Cristo, o conteúdo do antigo ensino dos profetas, pura e nobremente emanado dos tempos antigos. Ele via João, por assim dizer, como o derradeiro portador a transmitir, da forma mais pura e nobre, o que pertencia a tempos antigos. A ‘Lei e os Profetas’ se estendem até João. Ele deveria demonstrar ainda uma vez aos homens o que o antigo ensinamento e o antigo conteúdo das almas podem trazer aos seres humanos. Ora, de que maneira deve-ria atuar esse antigo conteúdo nos tempos que precederam a chegada do princípio Crístico?

Temos aqui algo que um dia será ensinamento das modernas Ciências Naturais quando estas se deixarem inspirar um pouco pela Ciência Espiritual ou Teosofia, mesmo que ainda hoje isto lhes pareça muito estranho. Preciso referir-me aqui a algo que, no entanto, só poderei mencionar ligeiramente, o qual lhes mostrará as profundezas que Ciência Espiritual tem por missão iluminar, justamente no concernente às Ciências Naturais. Se atualmente os Senhores pesquisarem no campo das Ciências Naturais e virem como estas, fazendo uso das restritas capacidades do pensamento humano, querem penetrar nos mistérios da existência humana, então poderão encontrar explicado que a ação conjunta das células reprodutoras masculina e feminina dá origem ao homem completo. Justamente um dos objetivos fundamentais das Ciências Naturais modernas é querer descrever como, da ação conjunta das células reprodutoras feminina e masculina, vem a existir o homem inteiro. Diligentemente, a microscopia procura verificar nas substâncias quais características seriam provenientes da célula masculina e quais da célula feminina, ficando satisfeita em acreditar poder provar que o homem se origina da ação conjunta das células masculina e feminina. Todavia, a Ciência Natural será espontaneamente compelida a reconhecer que apenas uma parte do ser humano é determinada pela ação conjunta das células masculina e feminina; e que para o homem moderno do atual ciclo evolutivo é fato que, via de regra, por mais que se conheçam com exatidão os elementos provenientes de uma e outra das células geratrizes, não fica o ser humano explicado em sua totalidade.

Há em toda pessoa algo que não é estimulado pelo germe, representando por assim dizer um nascimento virgem — algo que, oriundo de regiões bem diferentes, verte-se para dentro da germinação. Ao germe do ser humano se une algo que não deriva do pai nem da mãe, mas que no entanto lhe pertence, lhe é destinado, vertendo-se para dentro de seu eu e podendo ser enobrecido ao absorver o impulso do Cristo. Nasce virgem no ser humano o que, no decorrer da evolução humana, liga-se ao Cristo. E algum dia as Ciências Naturais

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reconhecerão, com seus próprios meios, que isto se interliga com a significativa transição ocorrida na época do Cristo Jesus. Anteriormente, nada poderia haver no interior do ser humano que não tivesse penetrado através do germe. No decorrer do tempo, acontece realmente algo em favor da modificação evolutiva do eu. A partir daquela época, a humanidade se modificou; só que precisa, mediante o acolhimento do impulso do Cristo, desenvolver e dignificar passo a passo o que, desde aquela época, foi-se acrescentando aos componentes da sim-ples célula germinativa.

Acercamo-nos, assim, de uma verdade muito sutil. E para quem conhece a moderna Ciência Natural, é estranho e interessante verificar como, já hoje, existem áreas onde o cientista literalmente tropeça no fato de algo, no ser humano, não provir da célula geratriz. Já existem precondições para tanto; só que o intelecto dos cientistas não está suficientemente avançado para reconhecer acertadamente o que se evidenciou em suas próprias experiências, em suas observações. Ora, no que ocorre objetivamente nas experiências atuam muito mais fatores do que as Ciências Naturais modernas reconhecem. A Ciência Natural não iria muito longe se fosse entregue somente à habilidade dos cien-tistas. Enquanto este ou aquele pesquisa no laboratório, trabalha na clínica ou no gabinete, por detrás dele agem as forças que dirigem e guiam a humanidade, fazendo vir à superfície o que o cientista não compreende e para o qual ele serve apenas de instrumento. Portanto, está muito certo que mesmo a pesquisa obje-tiva seja guiada pelos ‘mestres’, isto é, pelas individualidades superiores. Só que as coisas agora apontadas passam normalmente despercebidas; contudo elas virão a ser observadas quando as capacidades conscientes do cientista estiverem permeadas pelo o ensinamento espiritual da Antroposofia.

Por ter acontecido o que agora descrevi, uma grande mudança se processou com relação às capacidades do homem desde o aparecimento do Cristo na Terra. Antes, o homem podia fazer uso apenas das capacidades provenientes das células geradoras paterna e materna, pois somente estas possuem a capacidade de plasmar-se dentro do ser humano. Quando nos encontramos entre o nascimento e a morte, desenvolvemos como capacidade aquilo que somos graças aos corpos físico, etérico e astral. Antes da época do Cristo Jesus, os instrumentos que o homem utilizava para si podiam ser preparados exclusivamente a partir do germe; em seguida agregou-se algo originário de nascimento virgem, não sendo absolutamente estimulado pelo germe. Naturalmente isto poderá ser muito prejudicado se o homem se entregar unicamente à visão materialista. Entregando-se, pelo contrário, ao calor que emana do princípio Crístico, ele poderá ser enobrecido e esse princípio o introduzirá num grau cada vez mais elevado em suas subseqüentes encarnações.

Todavia, o que foi dito agora presume compreendermos que todas as anunciações precedentes à anunciação do Cristo encerravam algo ligado às capacidades hereditárias, que o homem recebia justamente com o germe; presume também devermos ficar cônscios de que o Cristo Jesus deveria falar não às capacidades envolvidas com o germe proveniente da Terra, mas àquelas liga-das ao germe proveniente dos mundos divinos. Todos os que se apresentaram antes do Cristo só puderam servir-se, para poder falar aos homens, daquelas capacidades transmitidas à sua entidade terrestre pela célula germinativa. Todos os profetas e preconizadores, por mais elevados que fossem, mesmo quando desciam das alturas como Bodhisatvas, precisavam servir-se das capacidades provenientes do germe para fazer as anunciações. Porém o Cristo Jesus falava a

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algo que, dentro do homem, não passa pelo germe, mas provém do reino divino. No sentido do Evangelho de Lucas, é este fato que ele aponta ao falar aos discí-pulos sobre o ser de João Batista: “Eu vos digo, profeta maior do que João não existe entre aqueles que são nascidos de uma mulher”, isto é, aqueles que em sua natureza, da maneira como se nos apresentam, são explicados como tendo surgido pelo nascimento físico, a partir das células geratrizes masculina e femini-na. Mas ele prossegue dizendo: “A menor parte daquilo que não nasceu da mulher, e que se une ao homem proveniente do Reino de Deus, é maior do que João.” (Lucas 7, 28.) É muito profundo o que se oculta por trás dessas palavras. Um dia, quando estudarem a Bíblia esclarecidos pela substância da Ciência Espiritual, os homens verificarão que nela estão contidas verdades fisiológicas maiores do que qualquer novidade que o defeituoso pensamento fisiológico possa trazer à luz do dia. Em palavras como as recém-mencionadas está contido o impulso para o reconhecimento de uma das maiores verdades fisiológicas. Assim profunda é a Bíblia quando verdadeiramente a entendemos.

O que acabo de dizer-lhes, o Cristo Jesus o explica muitas vezes, por vários meios e também de outra forma. Ele quer indicar como o que deve integrar-se no mundo por seu intermédio é algo completamente novo, algo totalmente diferente de tudo quanto anteriormente fora anunciado, por ter sido transmitido com as capacidades nascidas dos Reinos dos Céus, as quais nós não herdamos. Ele aponta como é difícil aos homens elevar-se passo a passo à compreensão de tal ensinamento, de tal Evangelho; como as pessoas conseguirão ficar convencidas tal qual estiveram outrora. Ao mesmo tempo, porém, ele lhes diz: “A respeito do fato novo que adveio, da nova verdade, não podereis convencer-vos igualmente, pois o que podia servir como testemunho da forma antiga não vos poderá convencer da forma nova. A maneira e a forma relativas à antiga verdade encontram sua expressão máxima, conforme a compreensão dos homens, no modo como é simbolizado no signo de Jonas. Neste é simbolizado, da maneira an-tiga, como o homem paulatinamente se eleva à cognição e penetra nos mundos espirituais, ou, para usar a linguagem bíblica, torna-se profeta.” (Lucas 11, 29-32.)

É esta a maneira antiga de alcançar a iniciação: primeiramente amadurecer acalma, preparar tudo o que possa fazer maturá-la e em seguida ser colocado, pelo período de três dias e meio, num estado em que fique completamente afastado do mundo físico e também dos instrumentos através dos quais se perce-be esse mundo. Por esta razão, aqueles que deveriam ser conduzidos aos mundos espirituais eram antes cuidadosamente preparados; sua alma era preparada para a cognição da vida espiritual. Em seguida eles eram afastados do mundo por três dias e meio, sendo para tal conduzidos a um local onde também os sentidos físicos nada podiam captar, onde seu corpo permanecia num estado similar ao da morte e, após três dias e meio, eram novamente despertados; nessa ocasião sua alma era chamada de volta ao corpo. Então essas pessoas se encontravam capazes de recordar o que haviam recebido como visão dos mundos superiores, podendo, elas mesmas, proclamar os mundos espirituais. Era este o grande mistério da iniciação — o fato de a alma, longamente preparada por três dias e meio, ser conduzida do corpo físico a um mundo completamente diferente; então ela permanecia isolada do mundo exterior e penetrava no mundo espiritual.

Sempre houve, em meio aos povos, pessoas que podiam ser proclamadoras dos mundos espirituais; eram as pessoas que haviam passado pelo que é mencionado na Bíblia como a permanência de Jonas no ventre da baleia (Jonas 2,

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1). Para isso alguém era preparado e, quando aparecia diante do povo como ve-lho iniciado, trazia o sinal próprio daqueles capazes, eles próprios, de vivenciar o mundo espiritual: o signo de Jonas.

Esta era uma das formas de iniciação. “Não há,” assim dizia o Cristo Jesus, “no conceito antigo, outro sinal que não seja o de Jonas” (Lucas 11, 29). E ele se expressa ainda com maior clareza, no sentido do Evangelho de Lucas: “Contudo, existe ainda uma herança dos tempos antigos: a possibilidade de, sem atividade própria, sem iniciação, alcançar uma clarividência nebulosa, semiconsciente, e ser guiado aos mundos espirituais por intermédio de uma revelação vinda das alturas.” Ele queria apontar o fato de que, além da forma mencionada, existia ainda aquele outro tipo de iniciados nos mundos superiores: havia certas pessoas que caminhavam entre as demais e, por terem tido uma genealogia apropriada, eram capazes de receber revelações das Alturas sem se haverem submetido a uma iniciação especial, numa espécie de elevado estado de transe. E o Cristo chamou a atenção para o fato de que estas duas modalidades de transferência para o mundo espiritual eram provenientes dos tempos antigos. Disse ele: “Volvei o olhar e lembrai-vos do rei Salomão.” Nisto tencionava evidenciar uma individualidade da espécie que, sem qualquer atuação própria, apenas por intermédio de revelações das alturas, podia perscrutar o mundo espiritual. Por esta razão, também a rainha de Sabá, que vem visitar o rei Salomão, é portadora da sabedoria das alturas, é representante dos predestinados a trazer em si todas as heranças de clarividência semiconsciente e nebulosa conforme a tiveram todas as pessoas no período atlântico (Lucas 11, 31).

Existiam essas duas modalidades de iniciados: uma modalidade representada por Salomão e pela ida figurativa da Rainha de Sabá, a rainha do Sul, até ele; a outra modalidade era a que resultava no signo de Jonas, isto é, na antiga iniciação em que, em isolamento total do mundo exterior por três dias e meio, percorre-se o mundo espiritual. E agora o Cristo acrescenta: “Aqui há mais do que Salomão... aqui há mais do que Jonas” (Lucas 11, 31-32), indicando com isso que algo de novo ingressou no mundo, não se falando mais apenas aos corpos etéricos como no caso do rei Salomão, nem tampouco interiormente aos corpos etéricos por revelações transmitidas do corpo astral, devidamente prepa-rado, ao corpo etérico, como no caso daqueles simbolizados pelo signo de Jonas. O Cristo quer dizer: — Eis uma situação em que o homem, fazendo-se maduro em seu eu, une-se ao que pertence aos Reinos dos Céus porque as forças dos reinos celestes se unem à parte virgem da alma humana pertencente a esses reinos; os homens podem destruí-la ao desviar-se do princípio do Cristo, podendo, contudo, também velar e zelar por ela caso assimilem o que emana do princípio Crístico.

Assim, no sentido do Evangelho de Lucas o Cristo Jesus acrescenta em seu ensinamento o que, por aquela ocasião, veio à Terra como elemento novo; e então vemos como todas as antigas formas de anunciação do Reino de Deus foram modificadas devido ao acontecimento da Palestina. Foi por esta razão que ele disse, àqueles dos quais podia presumir que, devido ao seu preparo, poderiam entendê-lo um pouco: “Em verdade há entre vós alguns que podem ver o Reino de Deus não apenas por intermédio de revelações, como sucedeu a Salomão, ou por meio da iniciação, sob o signo de Jonas; se estes dentre vós nada alcançassem além disto, então nunca veriam o Reino de Deus nesta encarnação — antes disto morreriam.” Isto quer dizer que, antes de sua morte, eles não veriam o Reino de Deus se não fossem iniciados; entretanto, precisariam também passar por um estado semelhante à morte. Mas agora o Cristo queria mostrar a

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possibilidade de haver pessoas que, antes de morrer, estariam capacitadas a ver os Reinos dos Céus por meio do novo elemento que ora ingressara no mundo. A princípio os discípulos não entenderam do que se tratava. Todavia, ele queria mostrar-lhes que deveriam ser eles os que, antes de morrer de morte natural ou experimentar aquela morte sofrida anteriormente durante a iniciação, iriam conhecer os mistérios dos Reinos dos Céus. Trata-se da maravilhosa passagem do Evangelho de Lucas em que o Cristo fala de uma revelação suprema, dizendo: “Em verdade vos digo: há alguns, dentre estes que aqui estão, que não provarão a morte antes de ver os Reinos dos Céus.” (Lucas 9, 27.)

Eles não entenderam que os que se encontravam à volta do Cristo estavam predestinados a experimentar a forte atuação daquele eu, do princípio Crístico, por cujo intermédio deveriam elevar-se imediatamente aos mundos espirituais. O mundo espiritual deveria ser-lhes revelado sem o signo de Salomão e sem o signo de Jonas. Terá isto ocorrido?

A estas palavras segue-se imediatamente a cena da Transfiguração, durante a qual os três discípulos — Pedro, Jacó e João — são guiados para o mundo espiritual, onde lhes vem ao encontro o que nos mundos espirituais representa Moisés e Elias, e também a própria essência espiritual que habita no Cristo Jesus (Lucas 9, 28-36). Por um momento, eles olham para dentro do mundo espiritual a fim de receber a prova de que, mesmo sem o signo de Salomão ou de Jonas, alcança-se a visão dos mundos espirituais. Todavia, ao mesmo tempo se mostra que eles ainda são principiantes: adormecem logo após serem impelidos para fora de seus corpos físicos e etéricos pela violência do ocorrido. É por este motivo que o Cristo os encontra adormecidos. Este acontecimento deveria demonstrar qual é o terceiro modo de penetração nos mundos espirituais além daquele efetuado sob o sinal de Salomão e sob o sinal de Jonas. Disto sabia justamente quem fosse capaz de interpretar os sinais temporais para aquela época, isto é, que o eu precisava evoluir, necessitando agora ser inspirado diretamente, e que as forças divinas precisavam atuar diretamente no eu.

Contudo, a par disto deveria ser demonstrado como os homens daquela época, mesmo em se tratando de representantes do tipo mais elevado, não estavam capacitados a acolher em si o impulso do Cristo. Um início neste sentido deveria ser dado pela Transfiguração; ao mesmo tempo, porém, deveria ser demonstrado que por enquanto os discípulos não estavam capacitados a acolher por completo o princípio do Cristo. Por esta razão lhes falham as forças logo em seguida, ao quererem aplicar o princípio Crístico e curar um homem possuído por um mau espírito; eles não o conseguem. O Cristo demonstra que eles se encontram apenas num início, dizendo: “Eu permanecerei convosco ainda por muito tempo, até que vossas forças possam fluir também para dentro dos outros homens.” (Lucas 9, 41.) Então ele cura aquele que os discípulos não puderam curar; mas em seguida diz mais uma vez, chamando a atenção para tudo quanto de mistério se oculta por detrás disso: “Agora é chegada a hora em que o Filho do Homem deve ser entregue nas mãos dos homens”, isto é, a hora em que o que os seres humanos deverão desenvolver a partir de si mesmos, durante a missão terrena, pouco a pouco deve fluir para dentro dos homens; em que o eu humano deve ser entregue ao homem, devendo ser reconhecido em seu mais elevado aspecto: no Cristo.

Ponham estas palavras em seus ouvidos: é chegada a hora em que o Filho do Homem será entregue nas mãos dos homens.

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Mas eles não entenderam essa expressão, e esta lhes ficou oculta. [Lucas 9, 44-45.] Ora, quantas pessoas até hoje compreenderam estas palavras? Contudo, cada vez mais pessoas passarão a compreender que naquela ocasião deveria o eu, o Filho do Homem, ser entregue aos homens. O que pode ser acrescentado, à guisa de explicação para a época, o Cristo o acrescenta. Diz ele: “Da maneira como hoje em dia se apresenta diante de nós, o homem é um produto das antigas forças que atuavam quando nele ainda não haviam interferido os seres luciféricos; em seguida, vieram as forças luciféricas e impeliram o homem à descida. Tudo isto se infiltrou nas capacidades que hoje são parte inerente do homem. Em tudo o que provém do germe se imiscuiu o que, na consciência humana, arrastou-o para um nível inferior.”

O homem é um ser dual. Todavia, o que ele desenvolveu como consciência até o presente está totalmente permeado pelo precedente, pelas forças luciféricas. Somente o âmbito onde atua o inconsciente no homem é o que, como um derradeiro resto da evolução através de Saturno, do Sol e da Lua, quando não existiam ainda forças luciféricas, flui hoje em dia para dentro dele como sua parte virgem; porém esta parte não pode unir-se ao homem sem o que ele pode desenvolver dentro de si por intermédio do princípio Crístico. O homem, tal como se nos depara presentemente, a princípio é um resultado da hereditariedade, uma confluência do que advém do embrião. Crescendo assim, desde o princípio ele é uma dualidade, porém já permeada por forças luciféricas. Mas enquanto o homem ainda não for transiluminado pela autoconsciência, enquanto ainda não souber distinguir claramente entre bem e mal a partir de seu próprio eu, ele ainda nos evidenciará, através do véu do porvir, sua natureza anterior, original. Apenas o que é infantil no homem do presente traz ainda um derradeiro resto da entidade em que consistia o ser humano antes de ter sucumbido à influência dos seres luciféricos.

Por esta razão, agora o homem se nos apresenta com uma parte 'infantil' e uma parte ‘adulta’. A parte adulta é aquela permeada pelas forças luciféricas, porém fazendo prevalecer sua influência desde o início da germinação. As forças luciféricas também já permeiam a criança, de modo que na vida comum não pode aparecer o que já fora introduzido no homem anteriormente à influência luciférica. É isto o que a força do Cristo precisa despertar novamente. A força do Cristo precisa ligar-se às melhores forças da natureza virginal existentes no homem. Ela não deve unir-se às capacidades que o homem danificou, ao que é oriundo da sabedoria nascida do intelecto, mas precisa ligar-se ao que, proveniente dos tempos antigos, permaneceu na natureza infantil. Esta é a parte melhor; ela precisa regenerá-la e, a partir daí, fecundar a outra parte. “Mas no meio deles lançou-se um pensamento sobre qual deles seria o maior”, isto é, qual deles seria o mais apropriado para receber o princípio Crístico. “Mas como Jesus soubesse dos pensamentos que lhes iam pelo coração, tomou uma criança e colocou-a junto de si, dizendo: ‘Quem receber esta criança em meu nome’”, isto é, quem em nome do Cristo se unir ao que restou dos tempos pré-luciféricos, “receberá a mim; e quem receber a mim receberá o que me enviou” (Lucas 9, 46-48), isto é, Aquele que enviou esta parte do ser humano à Terra. Aqui têm os Senhores, enfatizado, o grande significado daquilo que permaneceu infantil no homem e que deve ser cuidado e protegido dentro da natureza humana.

Pode-se dizer o seguinte: “O homem que se encontra diante de mim traz realmente boas predisposições.” Pode-se dedicar todos os esforços para desenvolver essas predisposições, assim como o homem também faz grandes

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progressos na vida. Da maneira como se age hoje em dia, não se respeitará o que existe nas profundezas do ser humano. Contudo, dever-se-ia zelar pelo que de infantil restou no homem, pois é por um processo indireto, fazendo uso desses resquícios infantis é que, mediante capacidades crísticas, deverão ser aquecidas as outras capacidades. Devemos tornar inteligente o infantil para que, a partir desse ponto, as outras capacidades também se tornem novamente inteligentes. Cada qual traz em si a natureza infantil neste sentido, e esta, se estiver ativa, será também receptiva à ligação com o princípio Crístico. Contudo, por mais elevadas que sejam, as forças que atuam sozinhas no ser humano sob influência luciférica só farão, hoje, renegar e escarnecer do que vive na Terra como força do Cristo, conforme o próprio Cristo previu.

É assim que, justamente no sentido do Evangelho de Lucas, é colocado com nitidez diante da alma o sentido da nova anunciação. Quando alguém que trouxesse na fronte o sinal de Jonas — um velho iniciado — caminhava por entre o povo, era reconhecido como alguém que tinha a fazer revelações dos mundos espirituais. Todavia, somente os que haviam sido instruídos a esse respeito sabiam como deveria manifestar-se tal pessoa; é necessário um preparo específico para se compreender o signo de Jonas. Um novo preparo deveria, porém, ser acrescentado — mais do que o signo de Salomão e mais do que o signo de Jonas — para fazer surgir um novo modo de compreensão, uma nova maneira de amadurecer a alma. A princípio, os contemporâneos do Cristo Jesus só conseguiram entender o modo antigo, e uma das maneiras mais conhecidas pela maioria ainda era aquela trazida por João Batista. Mas que agora o Cristo Jesus trouxesse algo completamente novo, estando à procura de almas que em nada correspondessem à imagem anteriormente feita de tais pessoas, isto era, para toda a gente, algo completamente estranho. Havia-se presumido que ele se sentaria junto aos que praticavam a antiga maneira e lhes anunciaria seu ensinamento. Por esta razão não se podia entender que ele se sentasse junto aos que eram vistos como pecadores. Porém, ele lhes disse: “Se eu anunciasse da antiga maneira o que, como algo muito novo, tenho para dar à humanidade, e se não viesse também uma forma totalmente nova substituir a antiga, eu estaria fazendo tal qual colocar um remendo novo num traje velho, ou como se colocasse vinho novo em velhos odres. Porém, isto que agora deve ser dado à humanidade, sendo mais do que o sinal de Salomão ou o sinal de Jonas, precisa ser vertido em novos odres, em novas formas. E precisais esforçar-vos por entender também de uma nova forma a nova anunciação.” (Lucas 5 , 36-37.)

Os que deveriam compreender precisavam chegar à compreensão por intermédio da poderosa força do eu — não por intermédio do que haviam aprendido, mas do que lhes havia fluído da entidade espiritual do Cristo. Para tanto não haviam, porém, sido escolhidos os que estavam preparados no sentido do antigo ensinamento, mas aqueles que haviam passado por encarnações e mais encarnações e, apesar disto, mostravam-se pessoas simples e capazes de compreensão pela força da fé que fluíra para eles. Também por esta razão, era preciso presenciarem um sinal que ocorresse à frente de todos. O que ocorrera por centenas e milhares de anos, nos tempos dos mistérios, como a passagem pela ‘morte mística’, devia suceder agora no grande palco da História Universal. Tudo o que ocorria em segredo nos grandes templos da iniciação aparecia agora abertamente e colocava-se como um acontecimento único no Gólgota. Manifestava-se aos homens, de maneira intensa, o que só se manifestara aos iniciados durante os três dias e meio que durava a antiga iniciação. Assim, aquele

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que conhecia os fatos precisava descrever o acontecimento do Gólgota como o que realmente fora: como a antiga iniciação transformada em História e transferida para o plano exterior da História Universal.

Eis o que sucedeu no Gólgota. O que anteriormente os poucos iniciados haviam presenciado nos templos de iniciação — um estado letárgico semelhante à morte por três dias e meio, conferindo-lhes a certeza de que o espiritual venceria sempre o físico e o anímico-espiritual do homem pertencia a um mundo supra-sensível —, isto deveria agora ocorrer diante de todos os olhos: uma iniciação levada até o plano exterior da História Universal ― o acontecimento do Gólgota. Assim, esta iniciação não ocorreu apenas para os que estavam presentes na ocasião, mas para toda a humanidade. E o que extravasou da morte na cruz flui, a partir deste momento, para a humanidade toda. Uma torrente de vida espiritual flui para toda a humanidade das gotas de sangue que, no Gólgota, escorreram das chagas do Cristo Jesus; pois era sob forma de força que deveria integrar-se na humanidade o que fluíra de outros preconizadores sob forma de sabedoria. É esta a grande diferença existente entre o acontecimento do Gólgota e o ensinamento dos outros fundadores religiosos.

É necessária uma compreensão mais profunda do que a existente hoje para se entender ao certo o que ocorreu no Gólgota naquela ocasião. O elemento ao qual foi agregado fisicamente o eu humano, ao ter início a evolução terrestre, é o sangue. O sangue é a expressão exterior do eu humano. Os homens teriam fortificado cada vez mais seu eu e, sem o aparecimento do Cristo, teriam penetrado numa evolução do egoísmo. Eles foram preservados disto pelo acontecimento do Gólgota. O que deveria fluir? Aquilo que constitui o elemento substancial excedente do eu — o sangue. O que teve início quando, no Monte das Oliveiras, as gotas de suor escorreram do Salvador como gotas de sangue, de-veria ter sua continuidade no fluir do sangue das chagas do Cristo Jesus no Gólgota. O que fluiu como sangue, naquela ocasião, é o símbolo do que precisava ser sacrificado como excedente do egoísmo na natureza humana. É por este motivo que precisamos penetrar mais profundamente no significado espiritual do sacrifício no Gólgota. O acontecimento do Gólgota não é suscetível de ser interpretado pelo químico, enquanto pessoa dotada apenas de visão intelectual exterior. Se alguém tivesse analisado quimicamente o sangue que fluiu no Gólgota, teria encontrado os mesmos elementos encontráveis no sangue de outras pessoas quaisquer. No entanto, quem analisar esse sangue com os meios oferecidos pela pesquisa oculta verificará que se trata, na realidade, de um sangue diferente. Trata-se do sangue excedente da humanidade, que levaria a humanidade a sucumbir pelo egoísmo caso o amor infinito não tivesse advindo, fazendo esse sangue fluir. O amor infinito está adicionado ao sangue que jorrou no Gólgota, e o ocultista encontra esse amor ilimitado permeando por completo esse sangue. E já que o autor do Evangelho de Lucas queria descrever especialmente como o amor infinito veio à Terra através do Cristo, e como este amor precisa pouco a pouco erradicar o egoísmo, ele se atem a esse papel. Cada um dos evangelistas descreve o que é impelido a descrever de acordo com seu papel específico.

Se pudéssemos iluminar ainda mais profundamente estas correlações, descobriríamos que todas as contradições que a pesquisa materialista porventura pudesse encontrar desapareceriam, assim como desapareceram as contradições a respeito dos anos preliminares de Jesus de Nazaré ao entendermos os fatos reais desse relato sobre a juventude. Cada um dos evangelistas descreve o que,

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de acordo com seu ponto de vista, mais de perto lhe falou; por isso Lucas descreve o que seus informantes, os ‘videntes por si mesmos’ e ‘servidores do Verbo’, puderam perceber segundo seu preparo específico. Os outros evangelistas percebem outras coisas; o autor do Evangelho de Lucas observa o que vem a ser o amor transbordante, um amor que perdoa mesmo ao lhe suceder o que de mais terrível é feito no mundo físico; de modo que muito justamente ressoam ainda, da cruz do Gólgota, as palavras que constituem a expressão desse ideal de amor — perdão mesmo quando se é aviltado da pior maneira possível: “Pai, perdoai-os porque eles não sabem o que fazem.” (Lucas 23, 34.) Ele roga por perdão — ele, que na cruz no Gólgota consuma o ilimitado a partir de seu amor infinito pelos que o crucificaram.

Mais uma vez, este é o evangelho do poder da fé: deveria ser reafirmado o fato de existir na natureza humana algo que pode emanar dela, bastando estar presente para poder arrancar o homem do mundo materialista, por mais que esteja atado a ele. Imaginemos uma pessoa que, devido aos mais diversos delitos, esteja firmemente entrelaçada ao mundo material, de modo que o tribunal do mundo físico execute a punição. Imaginemos, porém, que ela tenha salvaguardado o que a força da fé pode fazer germinar nela; então ela se diferenciará de uma outra que não consiga fazer brotar isto dentro de si, tal como um dos ladrões se diferenciou do outro. Um deles não tem a fé — nele se consumou a punição; já o outro possui essa fé como uma tênue luz lançando-se dentro do mundo espiritual, e por isso não perde o contato com o espírito. Por esse motivo deve ser-lhe dito: “Sabemos que estás ligado ao mundo espiritual; ainda hoje estarás comigo no Paraíso.” (Lucas 23, 43.)

Assim ressoam também no Evangelho de Lucas, provenientes da cruz e acompanhando a verdade do amor, as verdades da fé e da esperança.

Ainda deve ser realizado, a partir do domínio da alma, algo que o autor do Evangelho de Lucas quer descrever especialmente. Ao ser permeado pelo amor que fluiu da cruz no Gólgota, o homem pode vislumbrar o futuro e dizer: “A evolução na Terra precisa decorrer de maneira que, gradativamente, o espírito existente em mim modele de outra forma toda a existência física terrestre.” O que existiu antes da influência luciférica, o princípio do Pai, a ele devolveremos pouco a pouco o espírito que recebemos; mas deixemos que nosso espírito seja completamente permeado pelo impulso do Cristo, e nossas mãos exprimirão o que vive em nossas almas como imagem clara e nítida. Assim como nossas mãos não foram criadas por nós, mas pelo princípio do Pai, assim também serão perpassadas pelo princípio do Cristo. E ao passarem os homens por encarnações e mais encarnações, o espiritual que emana do Mistério do Gólgota para o princípio do Pai fluirá, gradativamente, para tudo o que os homens executam por intermédio de seus corpos físicos; e assim o mundo exterior será permeado pelo impulso do Cristo. Os homens viverão de modo a acompanhar a serenidade que soou da cruz no Gólgota, conduzindo à maior esperança para o futuro, ao ideal que diz: “Eu deixo que em mim brote a fé, deixo que em mim brote o amor; assim viverão em mim fé e amor, e então eu saberei que, estando suficientemente fortes, ambos irão permear todas as coisas exteriores. Então saberei também que o princípio do Pai em mim será impregnado por eles.” A esperança do futuro da humanidade se juntará à fé e ao amor, e os homens compreenderão que devem adquirir para o futuro a serenidade expressa no seguinte: “Se eu tiver fé, se tiver amor, poderei entregar-me à esperança de que a porção do Cristo Jesus existente em mim pouco a pouco passará ao exterior.” Então os homens entenderão as

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palavras que, como ideal muito elevado, soam do alto da cruz: “Pai, em tuas mãos coloco meu espírito.” (Lucas 23, 46.)

Assim repercutem palavras do amor, assim repercutem palavras da fé e da esperança do alto da cruz, no Evangelho, onde é descrito como na alma de Jesus de Nazaré confluíram correntes espirituais anteriormente separadas. O que outrora entrara na humanidade como sabedoria fluiu para dentro dela como força da alma, como o elevado ideal do Cristo. E é tarefa da alma humana entender cada vez melhor o que nos é revelado por um documento como o Evangelho de Lucas, para que se tornem cada vez mais vivos na alma os sons profundamente penetrantes das três palavras que ressoam do alto da cruz. Quando, com as capacidades que desenvolverem em si por intermédio das verdades espirituais oferecidas pela Ciência Espiritual, os homens tiverem sensibilidade suficiente para já não lhes parecer uma mensagem sem vida o que flui do alto da cruz, e sim uma palavra viva, dirão então: “Começamos a compreender ser uma palavra viva o que se encontra num documento religioso como este escrito por Lucas.” Assim a Ciência Espiritual precisa revelar pouco a pouco o que jaz oculto nos documentos religiosos.

Com esta série de conferências, procuramos sondar o mais possível o profundo sentido do Evangelho de Lucas. Naturalmente, também em relação a este Evangelho um ciclo de conferências não é suficiente para revelar tudo. Por conseguinte, os Senhores compreenderão que muito ficou sem esclarecer, isso sem aludir especialmente ao fato de, num documento de conteúdo universal como este, muita coisa ter de ficar inexplicada. Mas, se os Senhores se puserem a trilhar o caminho que ficou indicado por tal ciclo de conferências, penetrarão cada vez mais profundamente nestas verdades, passando em suas almas por um crescente processo maturador a fim de receber palavras tão vivas, ocultas nas palavras exteriores. A Ciência Espiritual ou Teosofia não é um ensinamento novo. É um instrumento para a compreensão do que por ora é dado à humanidade. Desta forma, a Ciência Espiritual nos serve de instrumento para compreendermos os documentos religiosos da revelação cristã. Se os Senhores entenderem a Ciência Espiritual nesse sentido, não mais dirão: “Aqui está uma Teosofia cristã, lá está outra Teosofia.” Existe apenas uma única Teosofia ou Ciência Espiritual, apenas um único instrumento para a anunciação da Verdade. E nós fazemos uso dele para trazer à luz os tesouros da vida espiritual da humanidade. É sempre a mesma Ciência Espiritual que usamos para esclarecer ora o Bhagavad Gita, ora o Evangelho de Lucas. Eis a grandeza da corrente científico-espiritual: poder adentrar qualquer tesouro oferecido à humanidade, no âmbito espiritual; todavia, nós a compreenderíamos erradamente se quiséssemos fechar-nos a qualquer uma das revelações que foram dadas à humanidade.

Tomem neste sentido a revelação do Evangelho de Lucas, e entendam como este é permeado completamente pela inspiração do amor. Então fluirá para sua alma o que os Senhores reconhecerão no Evangelho de Lucas com crescente facilidade graças à Ciência Espiritual; e isto poderá contribuir não somente para se atentar aos mistérios em redor, revelados pelos fundamentos espirituais da existência: dessa compreensão da Ciência Espiritual, apta a aprofundar-se também no Evangelho de Lucas, lhes fluirá o que expressam as incisivas palavras fundamentais: “E paz nas almas dos homens em quem reside boa-vontade.” Ora, mais do que qualquer outro documento, justamente o Evangelho de Lucas — quando o entendemos verdadeiramente — é o apropriado para verter na alma humana aquele grande amor caloroso mediante o qual a paz vive na Terra; essa é

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a mais bela das imagens reflexas possíveis de surgir quando é dado aos mistérios divinos revelar-se na Terra. O que se manifesta nas revelações deve refletir-se na Terra, e o reflexo da imagem deve retomar às alturas espirituais. Se aprendermos a reconhecer a Ciência Espiritual neste sentido, esta poderá revelar-nos os mistérios dos seres divino-espirituais e da existência espiritual, e em nossas al-mas viverá o reflexo dessa revelação — amor e paz, o mais belo reflexo devolvendo à Terra o que lhe chega das alturas.

Podemos, assim, fazer nossas as palavras do Evangelho de Lucas que ressoam quando o nirmanakaya do Buda faz emanar sua força para o menino Jesus natânico. As revelações emanam dos mundos espirituais para a Terra, espelhando-se, a partir dos corações humanos, como amor e paz à medida que os seres humanos desabrocham em direção a algo que o impulso do Cristo realmente faz brotar como boa vontade, fluindo do ponto central do ser humano, do eu humano. Isto soa claramente, quando compreendemos o Evangelho de Lucas.

“A revelação dos mundos espirituais proveniente das alturas, bem como sua imagem refletida emanando dos corações humanos, traz paz aos homens que, na Terra, querem desenvolver a verdadeira boa vontade a partir de si mesmos no decorrer da evolução terrestre.”

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