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  • I Estgios de Ps-doutoramento no PPG Letras

    Anais do Evento PG Letras 30 Anos Vol. I (1): 54-65

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    REVISES DE TOMS ANTNIO GONZAGA NAS LETRAS BRASILEIRAS

    Naelza de Arajo Wanderley1

    Resumo:

    Nem mesmo o prosasmo da vida real que envolve os dias de Toms Antnio Gonzaga e Maria Dorotia foi suficiente para empobrecer os frontispcios do imaginrio que despertam a fantasia acerca dos amores de Dirceu e Marlia. O roteiro da desventura amorosa dos amantes propiciou a reescritura de vrias verses para a histria de Gonzaga ao longo dos sculos na literatura brasileira. O percurso literrio fictcio e/ou histrico dos amantes de Vila Rica foi iniciado pelos versos de Dirceu. A partir de ento, vrios foram os escritores que romantizaram e perpetuaram at a atualidade a figura do desditoso poeta.

    Palavras-Chave: Gonzaga; reescritura; Literatura Brasileira

    A obra de Toms Antnio Gonzaga permite, atravs do texto, quer seja na

    rea jurdica, satrica ou lrica, a leitura do registro histrico. evidente que se torna delicada, em muitos momentos, principalmente quando se fala do texto lrico que pertence rea literria, distino entre o factual e o ficcional.

    Ao estabelecer um dilogo entre o literrio e o histrico, uma vez que a figura de Toms Antnio Gonzaga remete o leitor a fatos histricos, ocorridos nos fins do sculo XVIII, na ento capitania das Minas Gerais, e reporta-o a um passado remoto na histria colonial do Brasil, a Inconfidncia Mineira, que, sendo considerada, dentre as revoltas coloniais, como o primeiro movimento burgus pela liberdade da colnia em relao metrpole, marca o incio do processo de emancipao poltica do Brasil.

    Toms Antnio Gonzaga, apesar de ter nascido portugus, poeta brasileiro, principalmente pelos temas e pelo sentimento que colocou em suas poesias. Era filho de Joo Bernardo Gonzaga, brasileiro, nascido no Rio de Janeiro, e de Tomsia Isabel Gonzaga, portuguesa, nascida na cidade do Porto.

    Representante do Arcadismo brasileiro, Toms Antnio Gonzaga est entre os grandes escritores desse perodo. Acerca de sua obra lrica, Marlia de Dirceu, muito j se escreveu, ressaltando-se diversos aspectos de seu contedo.

    A histria desse poeta e dos seus amores (Gonzaga / Dirceu e Maria Dorotia / Marlia), acontecida no sculo XVIII, contempornea do episdio da Inconfidncia Mineira, est nas razes de nossas idias de nacionalidade, uma vez que o tempo e 1 Professora da Universidade Federal de Campina Grande. Estgio de Ps-doutoramento com superviso de Alfredo Cordiviola.

    AdministradorNoteO autor o titular dos direitos autorais do artigo que voc est preste a baixar em seu computador.O artigo destina-se exclusivamente para fins cientficos, e cpia parcial ou total, sem prvia autorizao, sem a devida citao das fontes, constitui-se plgio.Eu li e concordo com as condies.

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    os escritores de nosso pas se encarregaram de assim o fazer. A reconstruo dessa histria no imaginrio do pblico brasileiro, atravs dos sculos, reapresenta fatos e constri mitos e noes sobre os elementos que fazem parte da fundao de nossa nacionalidade.

    Sabemos que o aspecto histrico no define uma obra literria, mas, com certeza, a base de uma influncia importante, pois, se desnudarmos Toms Antnio Gonzaga de toda a fantasia romntica que se criou em torno de sua figura, encontraremos apenas um magistrado que, em dezembro de 1782, por um decreto de D. Maria I, foi nomeado ouvidor-geral em Vila Rica, tornando-se, assim, o ouvidor da capitania mais cobiada do ultramar como nos afirma Adelto Gonalves (1999:91); em cujas disputas judiciais, ao defender interesses de amigos, exibia uma retrica hbil em manipular atravs das palavras. Desapareceria, portanto, todo o fascnio lrico que existe em torno da histria do desditoso poeta. Uma histria que, muitas vezes, se contradiz e se reafirma atravs da pena dos poetas e romancistas de nossa literatura.

    A literatura brasileira tem, progressivamente, retomado, em diversos momentos, a temtica romntica que envolve a obra lrica e a biografia do poeta Toms Antnio Gonzaga. Diversos autores brasileiros se voltaram para a tentativa de reconstruir a trajetria desse poeta no Brasil, tanto no aspecto poltico (enquanto possvel inconfidente) quanto no aspecto lrico (referente aos amores de Gonzaga e sua noiva mineira Maria Dorotia Joaquina de Seixas Brando), inspirao, segundo bigrafos, para as liras de Dirceu Pseudnimo rcade dedicadas Marlia tambm pseudnimo.

    Aps a consolidao da Independncia poltica do Brasil em relao a Portugal e o incio da segunda era da literatura brasileira nomeadamente durante o surgimento de uma literatura que iniciava a era nacional de toda a composio de um povo que precisava urgentemente de novos heris , os autores estavam voltados ao estudo e recriao, ainda que fictcia, de figuras passadas que tivessem contribudo, mesmo que supostamente, para a consolidao do ideal de liberdade que pairava sobre os ares da antiga colnia. Toms Antnio Gonzaga estava entre essas figuras, afinal, segundo ficou registrado nas denncias contra o poeta, ele era o lder dos inconfidentes em Minas Gerais. Apesar da origem lusitana e da intensa negativa em relao s acusaes a ele dirigidas, esse poeta e representante do governo portugus na colnia foi eleito, inicialmente, pelos autores romnticos como legtimo defensor dos ideais de liberdade no Brasil e, portanto, digno de ser enaltecido pelos seus feitos atravs da literatura.

    Pelo crime de traio, a justia da coroa portuguesa condenou o poeta / ouvidor ao exlio em Moambique, livrando-o da pena capital aplicada aos traidores, mas os escritores e o pblico brasileiro fizeram de Gonzaga e de sua obra lrica figuras mpares de nossa literatura colonial absolvendo-o de qualquer delito.

    A figura do inconfidente que sonhou com a liberdade do povo brasileiro, acrescida do drama amoroso vivido pelo poeta ao lado de Maria Dorotia e cantado nas liras da Marlia de Dirceu, constituem o conjunto perfeito para a inspirao

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    romntica e para o incio de um processo de reescritura constante da histria do poeta luso-brasileiro e de seu amor, em terras brasileiras, desenvolvido ao longo de vrias pocas da literatura brasileira.

    Ao reescrever a idlica histria desse poeta/inconfidente e de sua noiva mineira, a maioria dos escritores elabora um verdadeiro painel de recortes; nele, o eixo lrico predomina sobre a realidade histrica. Os limites entre o que histria e o que fico se permeabilizam.

    Em torno da figura de Gonzaga, giram dois planos que regem a sobrevivncia desse mito na literatura brasileira; so eles: o plano histrico e o plano fictcio. A referncia aos amores de Gonzaga e Maria Dorotia, no decorrer da literatura brasileira, oscila entre o que real sobre o homem e o que revestimento lrico do pblico leitor e dos poetas que recontaram / revisaram o mito amoroso.

    No romance Gonzaga ou a revoluo do Tiradentes, Sousa (1848:s.p), j nas pginas iniciais, justifica a postura do romancista em relao ao fato histrico atravs da seguinte reflexo:

    Quando o romancista toma por fundo de sua obra um fato j consignado na histria, e de todos sabido, conquanto esse fato ocorresse revestido de tais, ou tais circunstncias, nem por isso o romancista est obrigado a d-lo pela mesma conta, peso e medida, misso esta que s ao historiador compete. A histria a representao dos fatos tais e quais ocorreram, me o retrato da natureza tal e qual ela ; e seu fim , no presente, a lio do passado para a preveno do futuro, isto , instruir; embora os fatos ali consignados deleitem, ou no. O fim porm do romancista (se o fundo de sua obra fabuloso) apresentar quase sempre o belo da natureza, deleitar e moralizar. Se nesse fundo h alguma coisa, ou muito de histrico, ento melhorar as cenas desagradveis da natureza, corrigir em parte os defeitos da espcie humana: adoar os mais terrveis traos de horrorosos quadros, tendo sempre por fim deleitar e moralizar, ainda que instrua pouco ou nada. Assim a histria para o romancista, como a poesia para o msico: a histria oferece o assunto sobre o qual pde o romancista discorrer a seu livre arbtrio, sem que imponha-lhe o menor freio; da mesma sorte a poesia oferece ao msico os versos sobre os quais compe ele sua msica a seu bel-prazer, conservando apenas nela o timbre, ou o gosto da poesia, segundo for mais alegre ou melanclico.

    Evidentemente, torna-se impossvel, no caso do estudo dos autores que

    apresentam os amantes de Vila Rica como protagonistas, estabelecer limites questo vnculo literatura / histria, pois, durante o processo de mitificao destes, houve aqueles que at mesmo chegaram ao falseamento de biografias, principalmente a de Gonzaga, como forma de enaltecer e purificar a imagem do poeta brasileiro. Talvez no fizesse sentido a leitura do poema sem o conhecimento do drama pessoal que rodeava Marlia e Dirceu. Os amantes, em alguns momentos de nossa literatura, foram transformados em heris que serviram aos projetos ideolgicos vigentes. Em muitos textos, h apenas a insero de alguns fatos da histria (partculas biogrficas) no contexto fictcio, um recurso que, muitas vezes, assume o aspecto de uma bricolage. o rompimento das fronteiras

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    entre o histrico e o literrio defendido ardentemente por Hayden White em seus textos.

    Na concepo das revises sobre a histria de Gonzaga, destaca-se, alm do adorno literrio, a referncia s fontes histricas como elemento de verossimilhana. Aparentemente, pertencentes a diferentes prticas discursivas, os escritores que fizeram, atravs dos sculos, dos amantes da inconfidncia os protagonistas de suas obras tocam-se em vrios pontos, entre eles, o empenho em ressuscitar o passado e a recriao de uma histria de amor nica em nosso imaginrio. Ao recontar a histria de Gonzaga, em diferentes pocas e obras de nossa literatura, poetas, bigrafos e romancistas revestem-na da fico e do lirismo prprios de cada poca e a coloca a servio dos objetivos da esttica vigente.

    O vnculo vida/obra fortalece o poder de seduo que a Marlia de Dirceu exerce junto ao pblico, pois no contexto das liras que compem a obra que Gonzaga revela desde seus sonhos de realizao amorosa ao lado de Maria Dorotia Joaquina de Seixas Brando, transformada em Marlia, at o drama pessoal da priso e, consequentemente, da separao amorosa, fonte de dor e sofrimento. Ser o sofrimento amoroso um dos pontos principais que envolvem, sensibilizam e mexem com a imaginao do pblico leitor. Sobre esse vnculo vida/obra, o crtico Antonio Candido (1975:115) acertadamente nos afirma que: Gonzaga um dos raros poetas brasileiros e certamente o nico entre os rcades, cuja vida amorosa tem algum interesse para a compreenso da obra.

    Atravs da leitura sobre a vida e sobre os versos de Toms Antnio Gonzaga, perpetuam-se fatos e personagens histricos que fazem parte da histria e do imaginrio dos leitores brasileiros. O contexto histrico da Inconfidncia Mineira nos registra todo um processo que envolve a figura do ouvidor / poeta como um ru de Majestade. Um homem que ousou trair a Corte / Metrpole ao participar da Conjurao que tinha como grande objetivo a Independncia deste pas. Portugal puniu severamente os seus traidores, entre ao quais estava Gonzaga, um renomado representante da corte portuguesa em terras brasileiras. Mesmo tendo construdo uma defesa brilhante como grande jurista que era, o magistrado / poeta foi preso e condenado pelo crime de traio ao poder real de Portugal.

    Eis a o caminho que a histria traou para o final dos sonhos de amor de Gonzaga e Maria Dorotia: ele, no exlio, em Moambique, e ela, em Vila Rica. A condenao de Gonzaga assinala definitivamente o final de seus sonhos de amor ao lado de Maria Dorotia.

    Os fatos que envolvem esse episdio histrico assumiram, junto ao pblico brasileiro, um semblante de tal fascnio que se atingiu a aspecto folhetinesco em algumas verses dessa trgica histria de amor. Desde o sculo XIX, a literatura romanceia esse episdio da histria do Brasil. Em torno das figuras de Gonzaga / Dirceu e Maria Dorotia / Marlia, surgem vrias obras que consumam um grande veredicto de absolvio para Gonzaga, confirmando que, se a histria condenou a Gonzaga por traio, a literatura o absolveu, no Brasil, por herosmo, em algumas

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    obras nacionalistas; por inocncia e, principalmente, pelos versos de amor feitos para a mais clebre noiva de Vila Rica em todos os tempos de sua existncia.

    As seqncias histricas do amor de Gonzaga e de Maria Dorotia, assim como a sua participao na Inconfidncia Mineira, so recontadas de diversas maneiras. A ficcionalizao em torno de Gonzaga, que tem incio no sculo XIX, se estende at o sculo XXI.

    O primeiro romance que tem como tema a Inconfidncia e Gonzaga como protagonista, Gonzaga ou a conjurao de Tiradentes, foi publicado em dois volumes entre 1848 e 1851 e foi escrito por Teixeira e Sousa, o precursor do romance no Brasil. Nessa obra do escritor romntico, segundo Antonio Candido, Gonzaga apresentado como sendo o gnio infeliz, o poeta marcado na fronte pelo talento, pagando com a desgraa o tributo da prpria genialidade.(1981: 132)

    Uma outra obra pouco conhecida do pblico e que contribuiu para a constituio mtica em torno dos amantes da Inconfidncia foi o poema Gonzaga, escrito por Joo Manoel Pereira da Silva, em 1865. Em seu texto, conta-se a histria do poeta / magistrado a partir das liras, assim como o fez tambm Teixeira e Sousa quando resgata as liras de Dirceu para narrar, em seu texto, a paixo de Maria Dorotia e Gonzaga. Alis, essa forma de reconstruo da histria amorosa dos amantes de Vila Rica no se registra apenas nos dois textos aqui citados, ela se faz presente em muitos outros textos da literatura brasileira.

    Ainda durante o Romantismo, o drama amoroso de Gonzaga ganha roupagem romntica nos quatro atos do drama Gonzaga ou a Revoluo de Minas, de Castro Alves, poeta que pertence terceira gerao do Romantismo brasileiro. Nele, o histrico reveste-se da idealizao, estabelecendo uma ponte que une uma esttica do perodo colonial a uma esttica que o incio de um perodo extremamente nacionalista. Enquanto a primeira, o Arcadismo, tem como contexto histrico a Inconfidncia, que smbolo de luta pela liberdade da ptria, a segunda esttica estar voltada para a realizao plena do um sonho de nao livre, idealizada no perodo anterior. A revalorizao de Gonzaga, no plano lrico e idealizado, surge como um smbolo do esprito de liberdade e nacionalidade.

    Dividido em quatro atos, o texto de Castro Alves um drama patritico, foi escrito em 1866, e estreou um ano depois, em Salvador. At mesmo o ctico escritor Machado de Assis, em carta ao amigo Jos de Alencar, apresenta um certo entusiasmo sobre a escolha de Gonzaga como protagonista do texto:

    foi certamente inspirada ao poeta pela circunstncia de seus legendrios amores, de que histria aquela famosa Marlia de Dirceu. [...] Os amores de Gonzaga traziam naturalmente ao teatro o elemento feminino, e de um lance casavam-se em cena a tradio poltica e a tradio potica, o corao do homem e a alma do cidado. A circunstncia foi bem aproveitada pelo autor; o protagonista atravessa o drama sem desmentir sua dupla qualidade de amante e de patriota; casa no mesmo ideal os dois sentimentos. (s.d.: 51-52)

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    Mesmo sendo uma atitude comum aos romancistas, o fascnio pela histria dos amantes de Vila Rica se faz presente tambm em nossa poesia. Exemplo desse fato pode ser observado no soneto Marlia, poema integrante da srie Perfis romnticos, do livro Sinfonias, do parnasiano Raimundo Correia:

    MARLIA Marlia! Dirceu! Eram dois ninhos Os vossos coraes, ninhos de flores; Mas, entre os quais, senteis os rigores Lacerantes de incgnitos espinhos; Tremiam, como em flcidos arminhos, Promiscuamente, neles os amores, As saudades, os cnticos, as dores, Como uma multido de passarinhos... O sulco profundssimo que traa Nos coraes amantes a desgraa, Ambos nos coraes traados viestes, Quando os vossos olhares, no momento, Cruzaram-se, do negro afastamento, Marejados de lgrimas e tristes...

    Aqui, os nomes de Marlia e de Dirceu esto inseridos entre os nomes de alguns dos amantes mais conhecidos da literatura europia.

    Outros poetas de nossa literatura, em diferentes momentos, tambm utilizaram a referida histria de amor e as liras de Dirceu como fonte de inspirao para os seus versos. Entre eles, podemos citar os romnticos Bernardo Guimares:

    De Marlia o cantor ternas endeixas Aqui gemeu na lira; E de Marlia o nome inda entre queixas A virao suspira; Inda estes montes guardam na memria De seu fiel amor a triste histria.

    e Casimiro de Abreu:

    Quando Dirceu e Marlia Em ternssimos enleios Se beijavam com ternura Em celestes devaneios: Da selva o vate inspirado, O sabi namorado, Na laranjeira pousado Soltava ternos gorjeios. Foi ali, no Ipiranga,

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    Que com toda a majestade Rompeu de lbios augustos O brado da liberdade;

    e at mesmo o modernista Manuel Bandeira:

    HAICAI TIRADO DE UMA FALSA LIRA DE GONZAGA

    Quis gravar Amor No tronco de um velho freixo: Marlia escrevi.

    Durante o Modernismo brasileiro, segunda fase, o Romanceiro da Inconfidncia, de Ceclia Meireles embasa-se na reconstruo histrica e recupera a tradio ibrica atravs do romance. Este sustentado por sua estrutura formal, ou seja, versos curtos e quase sempre escritos em redondilhos maiores e por um leve fio narrativo que une o histrico imaginao popular, principalmente no que se refere aos romances dedicados a Gonzaga e a Marlia. A obra de Ceclia Meireles, alm de juntar o modelo medieval literatura moderna, tambm reconta um tema de contexto rcade com uma viso histrica e outra imaginria. Ao mesmo tempo em que une tradio e modernidade, proposta esttica da poesia da segunda fase modernista no Brasil, tambm reafirma uma espcie de nacionalismo atravs da referncia ao contexto histrico da obra Marlia de Dirceu e a prpria obra. Afinal, o nacionalismo tambm uma caracterstica da esttica modernista brasileira.

    Usando como ponto de referncia a figura de Gonzaga, encontra-se uma seqncia que revela a seguinte trajetria: a idia de liberdade gerada pelos inconfidentes, entre os quais destaca-se a figura de Gonzaga, o incio da liberdade sonhada, confirmada pelo nacionalismo romntico e pela maturidade ou a reviso dessa nacionalidade na idia da esttica modernista.

    Para a ideologia romntica, Gonzaga representa a histria sagrada da busca de liberdade de um povo oprimido e explorado pela metrpole colonizadora. Fato ocorrido nos primrdios de nossa histria. Um tempo em que as idias de liberdade em terras brasileiras deveriam ser punidas com a morte. Sua obra e sua figura, muitas vezes, contam, explicam e revelam essa histria que tem como grandes temas a liberdade, a repblica e a inconfidncia. Os brasileiros, de certa forma, mitificaram quase todos os fatos e personagens da Inconfidncia. Cada um com a sua representao prpria, segundo seu papel no movimento. Gonzaga tinha ao seu lado Maria Dorotia, A noiva da Inconfidncia, segundo Orestes Rosolia. Eles assumem a representao mtica da desventura amorosa, o iderio do amor romntico moldado pela idealizao a partir do momento histrico. A figura idealizada de Gonzaga como participante de um movimento pela liberdade elevada ao extremo e ele tem a sua histria contada e recontada atravs dos

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    sculos e das obras literrias. Segundo Jos Murilo de Carvalho, A literatura brasileira comeou a se ocupar do tema antes que a historiografia o fizesse.

    O universo gonzagueano desperta o imaginrio do leitor brasileiro. At mesmo sua aparncia fsica motivo de curiosidade. Gonzaga, possuidor de cultura e talento, carrega consigo uma aparncia fsica e moral que mexeu com a imaginao dos futuros leitores e bigrafos. A primeira imagem que guardei de Toms Antnio Gonzaga foi a de um jovem de perfil, tristonhamente belo, os longos cabelos ondulados a carem sobre os ombros, a escrever versos no crcere. Foram as palavras utilizadas por Alberto da Costa e Silva, na introduo do prefcio de Gonzaga, um poeta do Iluminismo, de Adelto Gonalves, para definir, fisicamente, a figura de Gonzaga. Esta apenas uma das muitas imagens construdas em torno da figura desse poeta rcade luso-brasileiro.

    Apesar das muitas aparncias sugeridas para Gonzaga por pintores, leitores e bigrafos, citaremos as palavras de Eduardo Frieiro, em seu texto Como era Gonzaga? In O diabo na livraria do cnego, como um dos esclarecimentos mais objetivos acerca da aparncia fsica do poeta:

    Como era na realidade a figura de Gonzaga? Positivamente no o sabemos. Podemos apenas fazer uma idia mais ou menos aproximada. Em troca, pode-se afirmar sem o mnimo receio que aquele Gonzaga de perfil de medalha e longa cabeleira negra, que todos conhecemos em estampas de manuais escolares, to imaginrio e to falso como o barbado e melenudo Tiradentes, com a corda ao pescoo, que um desenhista do segundo reinado, Jos Aleixo traou a seu capricho, ignorando talvez que no se usava barba no tempo da Conjurao. (198: 75)

    Se a aparncia fsica de Gonzaga mexe com a imaginao de seus leitores, imaginemos o poder de seduo que a sua produo lrica desperta nestes e nos estudiosos de seus textos.

    O roteiro da desventura amorosa dos amantes, aliado ao momento histrico do Brasil, propiciou a criao de um verdadeiro mito literrio nacional, independente do fato de Gonzaga no ser brasileiro. Os sofrimentos amoroso, biogrfico e potico, aliados ao patriotismo do ideal de liberdade da conjurao, mitificam aquele que, em vrios momentos, apontado como o lder desse movimento e, conseqentemente, aquela que est ao seu lado na vida e na poesia.

    Muitos tm sido os textos elaborados em torno da obra e da biografia de Toms Antnio Gonzaga, segundo j foi afirmado, mas estudos sobre as obras que recontaram ou ficcionalizaram a figura desse poeta luso-brasileiro transformando-o, praticamente, em uma espcie de mito literrio so, entrementes, pouco desenvolvidos no Brasil, sobretudo no que tange investigao e ao levantamento de textos que apresentam como principal tema a histria de Gonzaga / Dirceu e Maria Dorotia / Marlia, diante das muitas verses apresentadas pelos autores que reescreveram e reescrevem, segundo suas prprias dedues, dados biogrficos,

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    documentos e liras da Marlia de Dirceu, sobre a vida, as concepes polticas e os amores desse poeta que pertence a duas literaturas.

    Mais de dois sculos depois de publicada, a obra lrica Marlia de Dirceu e a vida de seu autor, Toms Antnio Gonzaga, continuam instigando e seduzindo leitores, prova maior desse fato a existncia deste trabalho. Leitores crticos ou simplesmente sonhadores que continuam embriagados com os devaneios amorosos de Dirceu. Poetas / leitores que ajudaram a imortalizar Marlia e Dirceu em suas obras e em diferentes momentos da literatura brasileira.

    Assim sendo, o presente trabalho tem o propsito de desenvolver uma pesquisa sobre as principais obras que recontaram atravs dos sculos (do sculo XIX ao sculo XXI), a histria de Toms Antnio Gonzaga, suas venturas e desventuras. Elas surgem na pena de diversos autores. Os amantes de Vila Rica so referncias vivas da poca colonial na modernidade e um dos muitos fatores que contribuiu para a sobrevivncia dessa histria de heris e amores, certamente, foi a reescritura. A forma de reelaborao e de reviso da figura de Gonzaga o transformou, em um perodo em que imperava o sentimento de lusofobia, em uma espcie de brasileiro adotivo que deixou de lado sua origem portuguesa e a corte para lutar pela liberdade de um povo oprimido pela metrpole.

    Para um melhor esclarecimento dessa proposta de trabalho, objetiva-se, principalmente, desenvolver um levantamento bibliogrfico com a finalidade de identificar o conjunto das principais obras elaboradas em torno das venturas e desventuras polticas e amorosas do ouvidor / poeta Toms Antnio Gonzaga pelos autores brasileiros, desde o incio do Romantismo at a modernidade e, com isso, contribuir na ampliao do conhecimento sobre o acervo bibliogrfico desse poeta rcade, a partir de um trabalho de prospeco sistemtica aos arquivos pblicos e privados no Brasil, especialmente aos de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, procurando registrar as obras que se evidenciam como mais relevantes para a literatura brasileira, abrindo caminhos para novos trabalhos e pesquisas.

    Os princpios metodolgicos que norteiam o trabalho em desenvolvimento tm como critrios relacionados ao levantamento bibliogrfico a consulta a peridicos eletrnicos e a bibliotecas virtuais e a visita aos arquivos pblicos e privados no Brasil.

    Como resultado parcial da referida pesquisa, foram reunidas as seguintes obras:

    Dirceu de Marlia, de Joaquim Norberto de Sousa Silva. Ano de publicao: 1845;

    Gonzaga ou a revoluo do Tiradentes, de Teixeira e Sousa. Ano de publicao:1848 (v1) e 1851 (v2);

    Gonzaga, de Joo Manoel Pereira da Silva. Ano de publicao: 1865; Gonzaga ou a revoluo de Minas, de Castro Alves. Ano de publicao: 1866; Marlia de Dirceu, de Toms Brando. Ano de publicao: 1932;

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    Marlia de Dirceu, de Rui Bls. Ano de publicao: 1934; O amor infeliz de Marlia e Dirceu, de Augusto de Lima Jnior. Ano de

    publicao: 1936 (1 edio). Na 2 edio no consta a data de publicao;

    Dirceu e Marlia, de Afonso Arinos de Melo Franco.Ano de publicao: 1942; Romanceiro da Inconfidncia, de Ceclia Meireles. Ano de publicao: 1953; Marlia, a noiva da Inconfidncia, de Orestes Rosolia.Ano de publicao:

    1957;

    A ladeira da saudade, de Ganimdes Jos. Ano de publicao: 1983; A barca dos amantes: o drama da lendria paixo entre Marlia e Dirceu, de

    Antnio Barreto. Ano de publicao 1990;

    Cantares de Marlia, de Teresa Cristina Meireles de Oliveira. Ano de publicao 1998;

    Dirceu e Marlia, de Nelson Cruz. Ano de publicao: 1999; A mais bela noiva de Vila Rica, de Josu Montello.Ano de publicao: 2001.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ABREU, Casimiro de. As primaveras. ALVES, Castro. 1956.Gonzaga ou a revoluo de minas. Salvador: Livraria Progresso Editora. BANDEIRA, Manuel. 1966. Estrela da vida inteira: poesias reunidas.Rio de Janeiro: Livraria Jos Olmpio Editora. p. 156. BARRETO, Atnio. A barca dos amantes: o drama da lendria paixo entre Marlia e Dirceu. Belo Horizonte: Editora L. BLS, Rui.1934. Marlia de Dirceu: romance histrico. So Paulo. [s.e.] BRANDO, Thomas. 1932. Marlia de Dirceu. Belo Horizonte: Typographia Guimares. CANDIDO, Antonio. 1975. Formao da literatura brasileira : momentos decisivos. 5. ed. Belo Horizonte, Itatiaia; So Paulo, Editora da Universidade de So Paulo, 1v. CANDIDO, Antonio. 1981. Formao da literatura brasileira : momentos decisivos. Belo Horizonte, Itatiaia; So Paulo, Editora da Universidade de So Paulo, 2v. CARVALHO, Jos Murilo de. 2003. A formao das almas: o imaginrio da repblica do Brasil. So Paulo: Companhia das Letras.

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  • I Estgios de Ps-doutoramento no PPG Letras

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