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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXIII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Pará, 27 a 30 de maio de 2014 www.compos.org.br 1 NO BONDE DA OSTENTAÇÃO: o que os “rolezinhos” estão dizendo sobre os valores e a sociabilidade da juventude brasileira? 1 IN AN OSTENTATION FUNK VIBE: what the "rolezinhos" are telling us about the values and sociability of Brazilian youth? Vera Regina Veiga França 2 Raquel Dornelas 3 Resumo: Os recentes fenômenos conhecidos como “rolezinhos” nos shoppings centers das grandes capitais suscitaram, dentro e fora do espaço midiático, um intenso debate. Os rolés foram alvo de olhares repressores e chegaram a ser judicialmente impedidos de acontecerem. Tais eventos estão intimamente ligados ao chamado funk ostentação – que se difere de outros funks por letras que revelam o fascínio pelo consumo e pela exibição da riqueza. Neste artigo, pretendemos mostrar como os rolés e o funk ostentação revelam aspectos instigantes da sociabilidade, da cultura e dos valores dos jovens brasileiros. Além disso, nossa abordagem tenta problematizar como ambos os fenômenos descortinam uma luta politico-ideológica e apontam uma clara barreira de classes. Palavras-Chave: Sociabilidade. Valores. Juventude. Abstract: The recent phenomena known as “rolezinhos” in the shopping malls of Brazilian major cities raised, inside and outside the media, an intense debate. The “rolés” were seen with repressive looks by society and ended up legally prohibited. Such events are closely linked to the “ostentation funk” – which differs from other funks by lyrics that reveal a fascination for consumption and wealth exhibit. In this paper, we show how “rolés” and ostentation funk reveal intriguing aspects of sociability, culture and other values of young Brazilian people. Furthermore, our approach tries to discuss how both phenomena unveil a political and ideological struggle and show a clear class barrier. Keywords: Sociability. Values. Youth. 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Sociabilidade do XXIII Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 de maio de 2014. 2 Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG; pesquisadora do CNPq, coordenadora do GRIS/UFMG (Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade); [email protected]. 3 Mestranda do Programa de Pós Graduação em Comunicação Social da UFMG; bolsista Fapemig; [email protected].

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    XXIII Encontro Anual da Comps, Universidade Federal do Par, 27 a 30 de maio de 2014

    www.compos.org.br 1

    NO BONDE DA OSTENTAO: o que os rolezinhos esto

    dizendo sobre os valores e a sociabilidade da juventude brasileira?1

    IN AN OSTENTATION FUNK VIBE: what the "rolezinhos" are telling us about the values and sociability

    of Brazilian youth? Vera Regina Veiga Frana2

    Raquel Dornelas3

    Resumo: Os recentes fenmenos conhecidos como rolezinhos nos shoppings centers das grandes capitais suscitaram, dentro e fora do espao miditico, um intenso debate. Os rols foram alvo de olhares repressores e chegaram a ser judicialmente impedidos de acontecerem. Tais eventos esto intimamente ligados ao chamado funk ostentao que se difere de outros funks por letras que revelam o fascnio pelo consumo e pela exibio da riqueza. Neste artigo, pretendemos mostrar como os rols e o funk ostentao revelam aspectos instigantes da sociabilidade, da cultura e dos valores dos jovens brasileiros. Alm disso, nossa abordagem tenta problematizar como ambos os fenmenos descortinam uma luta politico-ideolgica e apontam uma clara barreira de classes.

    Palavras-Chave: Sociabilidade. Valores. Juventude.

    Abstract: The recent phenomena known as rolezinhos in the shopping malls of Brazilian major cities raised, inside and outside the media, an intense debate. The rols were seen with repressive looks by society and ended up legally prohibited. Such events are closely linked to the ostentation funk which differs from other funks by lyrics that reveal a fascination for consumption and wealth exhibit. In this paper, we show how rols and ostentation funk reveal intriguing aspects of sociability, culture and other values of young Brazilian people. Furthermore, our approach tries to discuss how both phenomena unveil a political and ideological struggle and show a clear class barrier.

    Keywords: Sociability. Values. Youth.

    1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicao e Sociabilidade do XXIII Encontro Anual da Comps, na Universidade Federal do Par, Belm, de 27 a 30 de maio de 2014. 2 Professora do Programa de Ps-Graduao em Comunicao Social da UFMG; pesquisadora do CNPq, coordenadora do GRIS/UFMG (Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade); [email protected]. 3 Mestranda do Programa de Ps Graduao em Comunicao Social da UFMG; bolsista Fapemig; [email protected].

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    1. Introduo

    Desde o ltimo ms de 2013, os chamados rolezinhos tomaram conta do noticirio e

    da conversao cotidiana dos brasileiros. O nome se refere aos encontros em massa em

    shoppings centers, organizados via Facebook principalmente por jovens da periferia

    paulistana4. A inteno dos participantes muito simples e objetiva: ir ao rol sinnimo de

    paquerar, zoar (utilizando um termo recorrente entre eles) e conhecer pessoas,

    principalmente aqueles garotos e garotas que fazem sucesso na internet entre a juventude

    local. O fenmeno provocou susto e tenses, suscitou reflexes e instaurou um debate

    pblico marcado pelo dissenso.

    Frente a um quadro inusitado, e necessidade enquadr-lo em padres explicativos

    conhecidos, tanto a imprensa como porta-vozes do governo ou de instituies privadas

    estabeleceram a distino entre frequentadores e baderneiros. A polmica e a dicotomia

    surgidas se inscrevem em vrias problemticas e podem ser analisadas sob vrios aspectos.

    Diz respeito, inicialmente, ao campo das relaes e da sociabilidade. Ainda que

    passear no shopping j tenha se instaurado como uma prtica comum da juventude de

    classe mdia brasileira (e o shopping seja para eles um lugar de encontro e de paquera,

    substituindo os antigos footings em praas e avenidas na vida urbana de 50 anos atrs), os

    jovens que circulam e se ajuntam nos shoppings, normalmente no final de semana, no

    diferem do padro mdio de seus consumidores habituais5. O ajuntamento massivo, e

    inclusive contrariando o perfil de classe do respectivo shopping6, fere a prtica habitual

    tanto de frequncia quanto de convivncia entre pblicos. Esses rolezinhos estariam

    anunciando (ainda que de forma um pouco abrupta como acontece em toda mudana) um

    novo padro de sociabilidade, a aspirao a uma outra forma de relacionamento e

    convivncia? E qual seria ela?

    4 Os rolezinhos aconteceram tambm em outras grandes cidades, como Rio de Janeiro, Niteri, Belo Horizonte; foram porm, sem dvida, os de So Paulo que tiveram maior intensidade e repercusso. 5 Um exemplo so os calouros da Faculdade de Economia, Administrao e Contabilidade da USP. Como parte da programao da calourada, eles seguem a tradio de realizar um grande encontro no Shopping Eldorado, zona oeste de So Paulo, h pelo menos cinco anos e esse ajuntamento nunca preocupou lojistas e frequentadores do shopping. 6 Existe uma diviso de classe na frequncia dos shoppings centers das grandes cidades com os shoppings da elite, shopping de classe mdia, classe mdia baixa, indo at aos populares (frequentados pela populao pobre).

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    Do ponto de vista dos valores e da cultura, o prprio shopping center enquanto lugar

    pblico (apesar de constituir um empreendimento privado, representa, sem dvida, um novo e

    importante espao pblico das cidades atuais) indicador de um novo panorama cultural, no

    qual ressaltam tanto a dinmica do consumo quanto o isolamento (prdio fechado, com

    servio de segurana). Mais do que lugar de compras, os shoppings, verdadeiras redomas de

    vidro e espelhos, so espao de ativao de desejo e confirmao do consumo enquanto

    valor.

    A reverberao do fenmeno revela tambm e com muita fora uma dimenso

    poltica e ideolgica, uma luta pela ultrapassagem das fronteiras de classe. Do ponto de vista

    dos participantes dos rols, tal dimenso se inscreve na prpria prtica de ocupao de um

    espao que tradicionalmente no visto como seu. Mas essa luta tambm se expressa, muito

    claramente, na disputa pela nomeao. arrasto ou apenas uma reunio de jovens? Nomear

    promover um enquadramento, situar lugares, estimular um tipo de leitura e promover certa

    inteligibilidade.

    Nosso artigo sem qualquer pretenso de esgotamento da questo vai explorar esses

    trs caminhos (claramente entrecruzados): a sociabilidade, os valores e a dimenso cultural,

    os aspectos poltico-ideolgicos.

    2. Ostentar e zoar

    Os primeiros rols nasceram sem grandes pretenses. Foram organizados por jovens

    famosinhos (outro termo comum entre eles) no ambiente virtual. Os encontros eram uma

    oportunidade para os fs desses garotos e garotas estarem juntos aos dolos, tirarem fotos,

    conversarem. Comearam tmidos, com uma pouca dezenas de pessoas. Juan Carlos

    Silvestre, 20 anos, possui mais de 71 mil seguidores no Facebook e foi um dos pioneiros na

    organizao de tais eventos. Em uma reportagem veiculada no programa Fantstico, da Rede

    Globo, ele conta como surgiram essas iniciativas:

    Depois que a gente ficou conhecido, a gente falou: Vamos fazer um encontro de fs.

    Porque muitas fs moram longe e no tm a oportunidade de vir aqui, conhecer a

    gente, tirar foto. A a gente simplesmente postou: Encontro de Fs no Shopping

    Ibirapuera, tal dia. A elas estavam l. Umas 50 mais ou menos7.

    7 Disponvel em www.youtube.com/watch?v=8onk-ZyohdY. Acesso em 10 de fevereiro de 2014.

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    Com o passar do tempo, os rols conquistaram o gosto da garotada e a adeso de mais

    pessoas. Tomaram corpo, chegaram a reunir milhares de jovens e viraram assunto nacional.

    A ttulo de exemplo, no dia 7 de dezembro de 2013, cerca de seis mil jovens compareceram

    ao estacionamento do Shopping Metr Itaquera, na zona leste de So Paulo. A multido

    deixou comerciantes, frequentadores, polcia militar e segurana privada confusos. Afinal, o

    que eram aqueles meninos e meninas, pobres (negros em sua maioria), frequentando aquele

    local? Do inesperado, surgiu a tenso e o enfrentamento. Um enquadramento era preciso ser

    dado naquele momento. O evento foi associado aos arrastes, violncia, a algo perigoso e a

    ser temido. A resposta veio por meio da represso policial e da proibio jurdica de novos

    encontros.

    O julgamento precipitado desconheceu o fato de que as prticas desses indivduos

    esto inscritas no terreno de suas experincias e vida social: tais encontros dizem de um

    universo simblico maior desses jovens. Quando os rolezinhos iniciaram, o que muitos no se

    deram conta era de que os eventos esto intimamente ligados ao chamado funk ostentao8

    tambm conhecido como funk paulista. Difundido na baixada santista e na periferia da

    cidade de So Paulo, essa modalidade difere dos outros funks, como o carioca, por trazer

    letras de exaltao ao consumo e riqueza. Nos videoclipes, os MCs9 aparecem vestindo

    roupas de grifes, cercados por belas mulheres, dirigindo automveis de luxo e quase sempre

    cobertos por joias. O prprio Juan, mencionado acima, sonha em ser cantor de funk e

    comeou a fazer sucesso justamente aps postar vdeos nos quais aparece danando. No

    Facebook, apresenta-se como cantor e compositor na empresa Os Tentao.

    Uma das inspiraes para o funk paulista o rapper americano 50 Cent, autor de

    discos com nomes bem sugestivos, como Power of the Dollar (O poder do dlar) e Get Rich

    or Die Tryin (Fique rico ou morra tentando). O funk ostentao se tornou uma febre nas

    periferias paulistas e os MCs, verdadeiros reis. Um dos mais famosos, o MC Guim,

    nasceu na periferia de Osasco e alcanou a marca de mais de 43 milhes de acessos em

    apenas um de seus videoclipes10

    . Como no podia deixar de ser, as letras de suas canes

    8 Para mais informaes, indica-se o documentrio Funk Ostentao o Filme. Disponvel em www.youtube.com/watch?v=5V3ZK6jAuNI. Acesso em 28 de janeiro de 2014. 9 MC: sigla para mestre de cerimnias, referindo-se aos cantores desse estilo. 10 Disponvel em www.youtube.com/watch?v=gyXkaO0DxB8. Acesso em 10 de fevereiro de 2014.

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    revelam um ode ao luxo. A expresso plaque de 100, ttulo da msica, se refere a conjuntos

    de notas de cem reais:

    Contando os plaque de 100, dentro de um Citron / Ai nis convida, porque sabe

    que elas vm / De transporte nois t bem, de Hornet ou 1100 / Kawasaky, tem

    Bandit, RR tem tambm / A noite chegou, nis partiu pro Baile funk / E como de

    costume toca a nave no rasante / De Sonata, de Azzera, as mais gata sempre pira /

    Com os brilho da jias no corpo de longe elas mira / Da at piripaque do Chaves

    onde nis por perto passa / Onde tem fervo tem nis, onde tem fogo h fumaa.

    Na esteira dos MCs com menor ou maior grau de fama, os participantes dos rols

    tambm fazem dos encontros uma oportunidade para ostentar. Especialmente os meninos

    adotam essa prtica, provavelmente numa tentativa de reproduzir o visual dos seus dolos que

    so, em sua maioria, do sexo masculino. O depoimento de uma das rolezeiras comprova tal

    fato: Tem que ser uma bermuda branca, com [tnis] Nike Shox, uma camiseta da Hollister

    da Aeropostale, um [culos] Juliet e um bon. T perfeito. Esse a o gato do rol, que

    chama a ateno.11

    Assim, percebe-se claramente que o fascnio pelo consumo parece cercar o universo

    desses jovens. Conforme explica Pereira (2013), essa obsesso no novidade nas letras e no

    imaginrio musical de jovens da periferia. O que difere o momento atual dos anteriores que

    o funk ostentao no cogita o crime como possibilidade para adquirir bens e no tem medo

    de revelar a total adeso desses jovens a um mundo de luxo e riqueza que, outrora, parecia

    muito distante de suas realidades.

    Quando digo que os Racionais [grupo de rap Racionais MCs] j cantavam isso, quero dizer que eles j identificavam essa necessidade de consumir da juventude. E

    de consumir o que eles achavam que era bom, nada de consumo consciente. Por

    isso digo que os Racionais j faziam, h mais de dez anos, uma leitura desse anseio

    por consumir dos jovens pobres. Por outro lado, h essa dimenso de movimentos

    como o dos escritores da periferia, promovendo produtos da periferia, pela periferia.

    O funk ostentao comea sem se preocupar com essa questo diretamente. Ele no

    tem dor na conscincia por cantar o consumo em suas msicas e aderir ao sistema,

    por exemplo (PEREIRA, 2013).

    Evidencia-se assim que a ostentao tem marcado a sociabilidade dos jovens adeptos

    ao funk paulista. No basta ter, preciso mostrar que tem, ou ao menos simular que tem

    como o caso de garotos que, desprovidos da condio de adquirir o bem original, desfilam

    com as rplicas do cordo de ouro ou da camisa de grife. Usando termos de Maffesoli, a

    pulso gregria, o estar-juntos dos rolezeiros revela um trao em comum: o consumo (e a

    11

    Disponvel em www.youtube.com/watch?v=7LwrClolRF4. Acesso em 28 de janeiro de 2014.

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    celebrao dele) tem sido um elo muito forte de identificao entre esses meninos e meninas.

    Estar vestido com a indumentria da ostentao uma condio importante para ser

    reconhecido no grupo.

    Um outro trao desse fenmeno a marca de gnero: no rolezinho, quem mais

    ostenta, quem apresenta um visual mais tratado e uma performance mais ritualizada so os

    meninos. As meninas so seguidoras. Esse movimento, portanto, traz um trao machista,

    que encontra razes no funk e em outros movimentos musicais (no funk carioca falando das

    cachorras; no funk ostentao falando da atrao das gatas pelo cara que usa grifes e joias;

    no sertanejo universitrio exaltando o poder do dinheiro para atrair a mulherada) o que,

    de resto, espelha as relaes de gnero na sociedade. No desconhecemos o fato de que as

    mulheres esto dando o troco, muitas delas fazendo sucesso na carreira artstica (Tati

    Quebra-Barraco e Valesca Popozuda no funk carioca; MC Pocahontas, MC Byana que,

    apesar de serem cariocas, tm apostado no funk ostentao) respondendo com letras

    feministas. Permanece, no entanto, a hegemonia masculina (no rolezinho, com toda

    evidncia), e mais a relao de gnero se vendo enquadrada pela lgica do consumo (o

    dinheiro e a ostentao se colocando como importantes atrativos sexuais).

    Alm dos aspectos de consumo e de gnero, uma outra questo se destaca: a busca e o

    valor do sucesso. A motivao dos primeiros rols (veja-se o caso do Juan) foi promover um

    encontro com as fs, ou seja, se inscreve claramente dentro de um quadro de dolo e seguidor.

    a nossa cultura da celebridade, onde ser visto, ser apreciado, ser seguido se tornou valor

    maior. A figura do lder, do heri, do poderoso sempre existiu; historicamente, esse era um

    lugar para poucos. A modernidade, mas sobretudo o cenrio contemporneo, estende o

    alcance do indivduo comum, e todos e cada um podem aspirar a se tornar um famoso. O que

    vemos em nossos dias que, mais do uma possibilidade, a fama se tornou meta.

    Como a crise das grandes instituies, o indivduo passou a ocupar um lugar central

    na sociedade. Consequentemente, a autopromoo surgiu como forma de elevar esse sujeito a

    uma condio no experienciada antes: a de dolo. Assim, na contemporaneidade, a fama to

    almejada no necessariamente precisa estar ligada a grandes feitos, a atos heroicos. A fama

    pela fama vai alm das habilidades excepcionais, se conforma e encerra na figura da

    celebridade em si.

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    O advento das novas tecnologias facilitou esse processo de busca pela autopromoo

    e visibilidade. Com a difuso dos blogs, da tecnologia mobile e das mdias sociais, no

    preciso muito para aparecer no ambiente miditico: na internet, a obsesso pela popularidade

    concretiza-se nos nmeros de seguidores nos perfis dessas mdias sociais. Quanto mais fs,

    maiores so as possibilidades para garotos e garotas hiperconectados se tornarem as

    celebridades da vez. O sucesso deles explica-se pela identificao que provocam com seu

    pblico. A figura de web-celebridade construda num processo relacional com os

    seguidores. Conforme Simes:

    ... um dolo se constri em interao com outros dolos no cenrio sociomiditico,

    bem como com fs e outros pblicos com os quais dialoga. Alm disso, preciso

    atentar para a relao entre eles e o contexto social, na medida em que o carisma de

    um dolo delineado a partir desse jogo entre a dimenso interna desse sujeito e os

    valores em determinado momento histrico. Atentando para a dimenso social e

    coletiva do carisma, pode-se perceber como as celebridades personificam valores

    em determinado contexto, suscitando uma devoo afetiva do pblico (SIMES,

    2013).

    Portanto, o MC do funk ostentao converge em si a nsia por consumo e por

    popularidade de seus seguidores. Alm disso, a fama restrita ao ambiente virtual apenas o

    primeiro passo para esses garotos e garotas alcanarem o status de celebridade fora da

    internet. Eles no querem apenas postar seus vdeos caseiros danando em casa: almejam o

    status de MC de sucesso. No postam suas msicas no Youtube de forma aleatria: esperam

    com isso divulgar as canes, ser contratados para shows e ganhar visibilidade fora da web.

    No caso dos rolezinhos, vemos uma dinmica circular: os famosinhos utilizando sua

    fama incipiente como estratgia para increment-la (a fama permite convocar fs; a resposta

    dos fs aumenta a fama).

    3. Que sociabilidade esta?

    O conceito de sociabilidade, em sua matriz simmeliana, destaca sua natureza de

    gratuidade; para Simmel, a sociabilidade constitui a forma ldica da socializao, uma

    forma marcada pela inexistncia de fins prticos, e que no quer seno existir enquanto

    relao (SIMMEL, 1991, p. 169). Domnio da forma, inscrio no terreno da sensvel, das

    emoes, a sociabilidade marcada por um carter ldico e esttico. Ela se distingue das

    relaes formais e estratgicas, que almejam a obteno de resultados especficos

    (econmicos, religiosos, sexuais etc), e tem no estar-com-o-outro o seu prprio fim.

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    Nessa mesma matriz, tambm Maffesoli (1985) destaca o carter ldico, afetivo,

    efmero da sociabilidade, que se ope s relaes cristalizadas da sociedade (como a poltica

    em sua dimenso institucional), e se remete s relaes anrquicas, contraditrias e fusionais

    que cimentam a criao da comunidade e impulsionam as diferentes formas de agregao.

    Acompanhando a leitura dos autores, torna-se fcil enquadrar os rolezinhos nesse

    modelo de sociabilidade: prtica ldica dos jovens, que querem apenas se divertir. Faz parte

    da natureza da juventude chamar ateno, aprontar, causar. E, com um fator adicional:

    eles esto de frias, com o tempo livre e com energia de sobra para criar iniciativas como

    essas (no toa que os rolezinhos com maior nmero de adeptos ocorreram em pleno ms

    de dezembro). possvel afirmar que o objetivo inicial dos eventos no carregava em si

    grandes pretenses; os meninos e meninas s estavam ali para namorar, passear, zoar. Uma

    simples brincadeira de jovens. Nos termos de Maffesoli, esbanjando sua energia fusional.

    Em nossa leitura, no entanto, resguardando e acentuando o carter relacional da

    perspectiva de Simmel, seu foco na tenso entre formas de sociao e experincias vividas,

    possvel ampliar a noo e pensar a sociabilidade enquanto formato e espessura das relaes

    (dos padres de relacionamento), marcas e dinmicas que formatam o estar-com-o-outro e

    tm consequncias na configurao da sociedade como um todo. Dimenses afetivas, ldicas,

    gratuitas permeiam os vrios tipos de relacionamento (uns mais, outros menos) o que no

    impede que outras dimenses tambm a se manifestem.

    A questo de uma sociabilidade brasileira no um tema no singular; os modelos de

    relacionamento que atravessam e constituem nossa vida social so mltiplos, so

    diversificados. O epteto cordiais e pacficos foi um dos qualificativos que, no perodo ps-

    repblica, na construo e acomodao de um povo brasileiro, foi forjado e sedimentado

    para nos dizer quem somos e como nos comportamos. Uma outra marca, dizendo do

    relacionamento entre classes, (alm das relaes cordiais) a preservao das distncias e

    diviso de espaos: cada um em seu lugar (ou, de forma mais popular, cada macaco no seu

    galho), cada um com suas marcas distintivas. Atentar contra isto misturar espaos (ferir a

    geografia classista), embaralhar as marcas de distino (mesmos hbitos de consumo)

    infringir uma regra de convivncia. quebrar um modelo de sociabilidade.

    Assim que os rolezinhos apontam, sim, um outro padro de sociabilidade, que

    desrespeita o pacto da segregao, invade espao, e faz de sua alegria barulhenta e

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    descomprometida uma transgresso. nesse momento que eles assumem uma dimenso

    poltica.

    4. Ostentar tambm se afirmar

    A exaltao ao consumo ocorre em um perodo histrico de ascenso econmica de

    algumas classes brasileiras. Nos ltimos dez anos, perceptvel o incentivo e a possibilidade

    do consumo especificamente entre as classes mais pobres do pas. De 2003 a 2011, cerca de

    40 milhes de brasileiros ingressaram na classe C. Segundo pesquisa da Fundao Getlio

    Vargas, a renda dos 50% mais pobres no Brasil subiu 67,9% nos anos 2000.12

    Exibir roupas e acessrios de marca talvez seja a primeira oportunidade para esses

    jovens se sentirem includos em um universo de consumo sonhado h tanto tempo e possvel

    apenas agora. sentir-se parte (mesmo que simbolicamente) de uma classe que pode

    comprar, que pode usar aquela camiseta da propaganda da TV. poder ascender socialmente,

    como fizeram muitos dos MCs de sucesso no mundo do funk ostentao. Baudrillard j

    falava sobre essa aspirao pelo consumo como sinal de desejo por ascendncia social em sua

    obra A sociedade de consumo:

    ... muito possvel que as aspiraes consumidoras (materiais e culturais), que

    revelam um nvel de elasticidade superior ao das aspiraes profissionais ou

    culturais, venham compensar as deficincias graves de determinadas classes, em

    matria de mobilidade social. A compulso de consumo compensaria a falta de

    realizao na escala social vertical (BAUDRILLARD, 1995, p. 63).

    Portanto, a ostentao tem sido um instrumento de afirmao e de busca por ocupar

    lugares e posies at ento no destinados aos garotos da periferia. Conforme Pereira

    (2013), o consumo cada vez mais exaltado como espao de afirmao e de reconhecimento

    para os jovens. Os prprios videoclipes do funk ostentao comprovam isso. As cenas

    mostram algo destoante do convencional: jovens da periferia (e no da classe mais rica)

    portando joias, dirigindo carros de luxo, pilotando motos carssimas.

    evidente que os rolezeiros no tm nenhuma inteno mais aprofundada

    ideologicamente ao marcar e/ou frequentar tais encontros. No entanto, independente disto, a

    dimenso sensvel e espontnea dos rols ultrapassa seus objetivos iniciais e revela tenses de

    12 Disponvel em http://oglobo.globo.com/economia/cerca-de-40-milhoes-de-pessoas-ingressaram-na-classe-aponta-pesquisa-da-fgv-2756988. Acesso em 28 de janeiro de 2014.

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    nossa sociedade. possvel ver a potncia da socialidade dessa tribo de rolezeiros

    descortinando novas camadas que circundam o fato. Ainda conforme Pereira:

    O que so o funk ostentao e os rolezinhos se no essa reivindicao dos jovens

    mais pobres por maior participao na vida social mais ampla pelo consumo? Estas

    aes culturais parecem situar-se nessa lgica, que no necessariamente se

    contrape ao hegemnico, na medida em que tenta se afirmar pelo consumo, mas

    provoca um desconforto, um rudo extremamente irritante para aqueles que se

    pautam por um discurso e uma prtica de segregao dos que consideram como

    seus outros (PEREIRA, 2013).

    Ao marcar os rols, os garotos provavelmente sabiam que iriam chamar a ateno,

    mas certamente no imaginavam causar um desconforto to grande. O surgimento dessa

    tenso descortina o fundo ideolgico e revela a barreira de classes: no se trata apenas de um

    grupo que almeja ultrapassar uma fronteira (os rolezeiros), mas tambm de uma parcela que

    parece no desejar esse passo adiante daqueles a quem consideram os outros.

    De fato, no de hoje que os indivduos mais pobres veem os templos do consumo

    como o lugar desses outros e como seus corredores travam, mesmo que simbolicamente,

    uma diviso muito clara de classe. A cano Chpis Cntis, do grupo Mamonas

    Assassinas13

    , j problematizava essa questo nos anos 90. Com uma crtica social bem

    humorada, a cano mostra o estranhamento e ao mesmo tempo o fascnio de um

    operador da construo civil e provavelmente migrante nordestino pelo shopping e pelo

    mundo do consumo:

    Esse tal Chpis Cntis / muicho legalzinho / Pra levar as namoradas / E dar uns

    rolzinhos / Quando eu estou no trabalho / No vejo a hora de descer dos andaime /

    Pra pegar um cinema do Schwarzenegger / Tombm o Van Daime / Quanta gente /

    Quanta alegria / A minha felicidade / um credirio / Nas Casas Bahia.

    Voltando para os rols de 2013, percebe-se que a situao no mudou muito. Os

    narizes torcidos de alguns frequentadores e das administradoras dos shoppings comprovam

    que existe uma delimitao entre quem pode e quem no pode permanecer do lado de c

    dessa demarcao. Ou como bem comentou a jornalista do SBT, Rachel Sheherazade, o

    refgio dos consumidores em busca de segurana foi violado por quem ela denominou de

    arruaceiros.14 Para esses grupos de indivduos, praticamente impossvel enxergar os

    arruaceiros da periferia como potenciais ou reais consumidores.

    13 Disponvel em www.youtube.com/watch?v=UQbbsVguNgk. Acesso em 02 de fevereiro de 2014. 14 Disponvel em www.youtube.com/watch?v=8hZ4cewFSl4. Acesso em 02 de fevereiro de 2014.

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    Outro ponto merece destaque. Os rols e sua ligao com as canes de ostentao

    no revelam apenas uma necessidade de afirmao pelo consumo, mas tambm pela

    valorizao de um estilo musical prprio o funk. A gerao rolezeira quer sim consumir os

    produtos tpicos de outras classes, mas no pretende abandonar a sonoridade com a qual

    nasceram, cresceram e construram suas experincias sociais.

    Assim sendo, possvel descortinar a dimenso poltica dos rols, principalmente se

    nos embasarmos no pensamento de Jacques Rancire a respeito dos termos polcia e poltica.

    Segundo o filsofo francs, a lgica policial diz respeito a todas as configuraes e

    dispositivos que definem o lugar nos quais os corpos devem estar, suas respectivas

    atribuies e os sistemas de legitimao dessa distribuio. O ato poltico ocorreria no

    momento em que h um questionamento desses lugares e funes colocados como

    consensuais pela ordem policial e hegemnica. Ora, no seria este o cenrio percebido

    durante os rolezinhos? De um lado, no vemos o carter questionador dos encontros, na

    medida em que ocorrem em um espao onde os jovens da periferia no so bem-vindos, com

    participantes ostentando mercadorias que no so, a priori, destinadas a eles? Por outro lado,

    tambm no fica clara a presena de uma lgica consensual tentando manter esses garotos

    longe dos centros de consumo e sem consumir os produtos no-destinados a eles? O fato de

    grandes grifes estarem insatisfeitas com a associao de suas marcas aos garotos dos rols e

    do funk ostentao15

    marca bem essa distribuio de lugares e apropriaes, regidas por uma

    ordem policial.

    A tenso entre a lgica hegemnica e o fazer poltico tambm pode ser vista na

    disputa pela nomeao dos rolezinhos. Qualquer tentativa de classificar, enquadrar,

    denominar, reflete tambm a tentativa de dominao simblica por parte de um grupo

    formado pelo ns sobre indivduos vistos como eles. A dominao simblica seria,

    portanto, uma ferramenta que torna possvel o consenso no mundo social e a reproduo de

    uma ordem estabelecida (ou da ordem policial, para retomarmos o pensamento de Rancire).

    Assim, para manter a configurao dos corpos em seus devidos locais, o discurso

    policial (aqui representado por grande parte da imprensa, pelas administradoras dos

    shoppings, pela segurana privada e pela polcia militar) tratou de classificar os fenmenos

    15 Segundo pesquisa do Instituto Data Popular. Disponvel em http://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2014/02/03/marcas-de-grife-tem-vergonha-de-clientes-mais-pobres-diz-data-popular.htm#fotoNav. Acesso em 05 de fevereiro de 2014.

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    como baderna, arrasto, invaso. J os participantes do rolezinhos tentaram se defender,

    dizendo que se os rols so apenas encontros de jovens, zoao, curtio.

    5. #PartiuRol

    Ao analisar os rolezinhos como fenmeno social, preciso atentar-se para o papel

    significativo das novas tecnologias. Convocaes para encontros de jovens em shoppings

    centers ou outros locais no novidade. Isso sempre existiu. O que merece destaque como

    essas oportunidades de interao podem ser amplificadas pelas mdias sociais, seja

    aumentando o alcance do convite, seja difundido com mais velocidade a repercusso do

    evento.

    De fato, sabido como as novas tecnologias tm reconfigurado a sociabilidade dos

    indivduos na contemporaneidade. Conforme Bretas (2008, p. 3): ... pensamos que o meio

    telemtico no serve apenas como mero suporte para essas inscries, mas refere-se a algo

    que participa ativamente na conformao dos modos de sociabilidade nos nossos dias.

    Nascidos na era digital, essa gerao de rolezeiros vive uma forma de se relacionar bastante

    distinta daquela experienciada por seus pais. Para estes garotos e garotas hiperconectados,

    praticamente impossvel ficar sem internet. Neste cenrio, o celular e a conexo mobile

    tambm assumem um papel central nas interaes. A lgica desses jovens quantitativa: para

    eles, a meta obter cada vez mais seguidores, postar cada vez mais fotos, atualizar cada vez

    mais seus fs sobre as atividades que realizam durante o dia.

    Os garotos e garotas da gerao internet tm cincia de que podem se apropriar do

    espao virtual. nesse ambiente que eles se sentem vontade e tm a oportunidade de lutar

    pelo que desejam: seja para conseguir relacionamentos amorosos, obter popularidade ou

    realizar o sonho de ser um cantor de sucesso. MC Guim, o cone do funk ostentao, obteve

    os mais de 43 milhes de visualizaes em um nico videoclipe alm de fama e dinheiro

    sem a necessidade de divulgao de seu trabalho em um grande programa de auditrio ou do

    aval de gravadoras ou rdios de renome. Ele contou apenas com o espao gratuito do

    Youtube e pela sorte de ter sua msica apreciada pelos amantes do funk.

    Assim, a natureza alternativa do espao da internet nos leva a refletir sobre as

    configuraes da distribuio do poder na sociedade contempornea. Conforme explica

    Castells (1999, p. 497), as redes constituem a nova morfologia social de nossas sociedades,

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    e a difuso da lgica de redes modifica de forma substancial a operao e os resultados dos

    processos produtivos e de experincia, poder e cultura. Os rolezeiros encontram no ambiente

    virtual um espao para formatar e buscar novas experincias. Os MCs do funk ostentao

    localizam ali uma oportunidade de difundir sua cultura, mostrar a que vieram.

    Nesse sentido, os fenmenos que analisamos acima parecem ter algo em comum com

    as chamadas Jornadas de Junho, ocorridas em 2013. A anlise nos leva a um ponto de

    convergncia entre os dois fatos: o espao virtual uma possibilidade tanto para editar a

    narrativa predominante quanto para oferecer uma outra narrativa possvel.

    No caso dos MCs, a internet o meio pelo qual esses garotos podem tomar as rdeas

    de sua prpria carreira, conquistar o pblico que almejam, mostrar a mensagem que desejam.

    J durante as manifestaes, foi possvel detectar a presena de diversas narrativas virtuais

    que se contrapunham narrativa predominante da chamada mdia de referncia. Essa

    presena se concretizava tanto nas transmisses independentes da Mdia Ninja quanto no

    contra-discurso dos adeptos ttica black block. No caso desses ltimos, a tentativa de

    descontruir a denominao de vndalo ocorreu, principalmente, por meio das mdias

    sociais.

    evidente que no devemos dar um carter redentor s novas tecnologias, como se

    ela tivesse contornos absolutamente democrticos para qualquer indivduo. Sabemos que esse

    tambm um terreno estriado, com hierarquias de poder e concentrao de tecnologias nas

    mos de grandes conglomerados. No pretendemos abordar uma perspectiva midiacntrica,

    dando um papel decisivo para a tcnica. Se assim fosse, estaramos neutralizando o papel dos

    indivduos nas interaes mesmo que virtuais. O que pretendemos colocar e para esse

    ponto que gostaramos de chamar a ateno como o espao virtual pode ser visto como

    um dispositivo de produo e deslocamento de sentidos, que possibilita novas experincias de

    sociabilidade de pblicos que esto em rede e que podem, em um certo momento, debater e

    desconstruir as relaes de poder historicamente estabelecidas em nossa sociedade.

    Consideraes Finais

    Fechando nossa reflexo, cabe a ns fazer algumas perguntas: se se trata do ensaio de

    uma nova sociabilidade, uma nova forma de estar juntos e estar com o outro, o que os

    rolezinhos dizem das relaes desses jovens entre si e com a sociedade do centro (dos

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    donos e frequentadores habituais dos shoppings)? O que os rolezinhos, bem como o funk

    ostentao, revelam das aspiraes e valores desses meninos da periferia?

    A propsito dos valores, de acordo com Pereira, o cenrio pode revelar indcios de

    uma juventude pautada por projetos hedonistas e imediatistas:

    Fico pensando que a busca de realizao apenas pelo consumo envolve sentimentos

    e posturas extremas de um egosmo hedonista e de um profundo desprezo pelos

    outros humanos. As mercadorias, ou as coisas almejadas, de certa forma tm

    conformado as subjetividades contemporneas. E nessas novas subjetividades,

    pautadas pelo instantneo e o instvel, parece no haver muito espao para a

    solidariedade (PEREIRA, op.cit.).

    Claramente, existe um valor de consumo que permeia o fenmeno. perceptvel a

    presena de uma dimenso hedonista. Mas este aspecto no explica tudo e no esgota o

    conjunto diversificado de valores que esto em jogo. E aqui h de se fazer duas observaes.

    Em primeiro lugar, como j abordamos, a valorizao dada aos bens de consumo por

    parte dos garotos e garotas dos rols e do funk ostentao se inscreve em um contexto maior,

    do qual eles so participantes. Os rolezeiros so o que o fruto de uma gerao que nasceu

    com a ideia de ascenso dentro de suas casas; cresceram em lares cujos pais no tiveram

    condies financeiras to favorveis mas que enxergam na recente melhoria de vida uma

    oportunidade para dar aos filhos itens que no poderiam sequer sonhar em ter. migrar de

    uma situao de privao e avanar um degrau na escala de estratificao de classes no

    Brasil. Consumir provar que esses garotos podem, sim, ter uma vida melhor do que aquela

    vivenciada pela gerao anterior.

    O segundo ponto que gostaramos de ponderar que o fenmeno, de fato, no nega

    um individualismo acentuado, mas tambm clareia algumas aes pontuais de cunho

    coletivo. A ostentao e os rols dizem de um universo simblico compartilhado por esses

    garotos. Ao utilizar indumentrias quase idnticas, adotar o mesmo vocabulrio, ouvir o

    mesmo gnero musical, eles consolidam a gramtica de uma coletividade da qual se sentem

    parte e cujas aes servem para reforar essa mesma identidade grupal. No somos apenas

    jovens da periferia; somos os rolezeiros. No somos apenas cantores de funk; somos do

    bonde da ostentao. fazer parte de um grupo, sentir orgulho disso e divulgar a identidade

    que lhes peculiar.

    Assim, a ascenso dessa classe no ocorre semelhante figura do novo rico, do

    emergente que costuma negar as razes humildes de onde saiu. Eles tm orgulho de serem da

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    periferia, no negam o grupo ao qual pertencem. Percebe-se uma constante tentativa de

    recuperao do lugar de origem, de suas razes. O prprio funk ostentao no fala apenas de

    luxo, mas de superao. A msica Pas do Futebol, do MC Guim em parceria com o

    rapper Emicida, traz as seguintes frases: ... olha onde a gente chegou e ontem foi choro e

    hoje tesouro16. So meninos pobres que ficaram milionrios, mas que no abrem mo de

    suas identidades. MC Beyonc, por exemplo, conseguiu adquirir um apartamento na Barra da

    Tijuca com o sucesso do funk, mas prefere morar perto da famlia e dos amigos na baixada

    fluminense.17

    como a j citada msica dos Mamonas Assassinas diz: Comi uns bichos

    estranhos / Com um tal de gergelim / At que tava gostoso / Mas eu prefiro aipim. Na

    cano, mesmo aps ser apresentado ao ingrediente tpico do po das redes mundiais de fast

    foods, o visitante ainda prefere a comida que remete s suas origens.

    Assim, por mais que os valores individuais sejam perceptveis, no se pode negar um

    eco coletivo tanto no rolezinho quanto no funk ostentao. Conforme nos alertou Maffesoli, o

    final do sculo 20 redescobriu as tribos. Por mais que a coletividade contempornea possua

    laos bem mais efmeros do que os das antigas e tradicionais comunidades, o sentimento de

    pertencer a um grupo persiste. E, com o advento das novas tecnologias, tais grupos veem a

    possibilidade de intensificar contatos, potencializar interaes comunicativas, compartilhar

    experincias sociais, deixar o seu recado para mais pessoas, se dar a ver.

    E o que esse estar-junto dos rolezeiros e funkeiros se no a dimenso poltica do

    fenmeno? Afinal, no prprio grupo, na ascenso de seus pares, que eles se identificam e

    renem foras. Trata-se de reivindicar um lugar que eles pretendem conquistar por meio de

    sua arte, sua msica, sua expresso cultural. Querem ter o direito de exibir nos rols os itens

    que enfim conseguiram comprar (mesmo que seja em prestaes a perder de vista); nos

    videoclipes, querem esbanjar o luxo que lhes foi proporcionado pelo sucesso do funk

    ostentao.

    Assim, ostentar tambm provocar. mostrar que a margem e no apenas o centro

    existe, tem vida prpria, tem desejos e possibilidade de consumo. Eles querem compartilhar

    alguns bens e privilgios, mas com sua marca, seu jeito, sem abandonar suas grias, seu

    vocabulrio. Mostrar verdadeiramente quem so. Talvez por isso esses jovens causem tanto

    16 Disponvel em www.youtube.com/watch?v=bWnS2dIDgQA. Acesso em 8 de fevereiro de 2014. 17

    A marselhesa do subrbio. (Veja, 29/01/2014).

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    espanto. No se trata de um esforo de ascenso dentro do mesmo padro unificador dos

    ricos. O sentimento de classe agregador, e coloca um parmetro de pertencimento.

    Por fim, acreditamos que estes os rolezinhos se apresentam como um fenmeno novo

    em nossa sociedade, mas possuem traos em comum com episdios recentes no panorama

    brasileiro. Basta lembrarmos das manifestaes de 2013 e do ajuntamento de milhares de

    jovens na ocasio da visita do Papa Francisco no mesmo ano. Podemos perceber em tais fatos

    alguns aspectos semelhantes aos dos rolezinhos: o clima de festividade, o sentimento de

    grupo, uma juventude mobilizada em torno de algo. Nos trs casos, trata-se de um

    ajuntamento que revela uma disponibilidade de jovens. Percebe-se uma certa energia no ar,

    algo que tem impulsionado esses diferentes perfis de garotos e garotas a se juntar, a se

    mobilizar, a se mostrar.

    Ainda no sabemos o porqu, a origem e o destino dessa energia perceptvel no ar.

    Cabe a ns, pesquisadores das cincias sociais, atentarmos para os fenmenos que partem

    dela, identificarmos as formas que eles tomam, as prticas interacionais que a se configuram

    buscando entender para onde essa potncia juvenil contempornea ir nos levar, que novo

    mundo ela ir construir.

    Referncias

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    [25 de dezembro de 2013]. Portal Geleds. Entrevista concedida a Eliane Brum. Disponvel em

    www.geledes.org.br/em-debate/colunistas/22538-rolezinhos-o-que-estes-jovens-estao-roubando-da-classe-

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    RANCIRE, Jacques. O desentendimento (trad. de ngela Leite Lopes). So Paulo: Editora, v. 34, 1996.

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