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Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao
XXIII Encontro Anual da Comps, Universidade Federal do Par, 27 a 30 de maio de 2014
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NO BONDE DA OSTENTAO: o que os rolezinhos esto
dizendo sobre os valores e a sociabilidade da juventude brasileira?1
IN AN OSTENTATION FUNK VIBE: what the "rolezinhos" are telling us about the values and sociability
of Brazilian youth? Vera Regina Veiga Frana2
Raquel Dornelas3
Resumo: Os recentes fenmenos conhecidos como rolezinhos nos shoppings centers das grandes capitais suscitaram, dentro e fora do espao miditico, um intenso debate. Os rols foram alvo de olhares repressores e chegaram a ser judicialmente impedidos de acontecerem. Tais eventos esto intimamente ligados ao chamado funk ostentao que se difere de outros funks por letras que revelam o fascnio pelo consumo e pela exibio da riqueza. Neste artigo, pretendemos mostrar como os rols e o funk ostentao revelam aspectos instigantes da sociabilidade, da cultura e dos valores dos jovens brasileiros. Alm disso, nossa abordagem tenta problematizar como ambos os fenmenos descortinam uma luta politico-ideolgica e apontam uma clara barreira de classes.
Palavras-Chave: Sociabilidade. Valores. Juventude.
Abstract: The recent phenomena known as rolezinhos in the shopping malls of Brazilian major cities raised, inside and outside the media, an intense debate. The rols were seen with repressive looks by society and ended up legally prohibited. Such events are closely linked to the ostentation funk which differs from other funks by lyrics that reveal a fascination for consumption and wealth exhibit. In this paper, we show how rols and ostentation funk reveal intriguing aspects of sociability, culture and other values of young Brazilian people. Furthermore, our approach tries to discuss how both phenomena unveil a political and ideological struggle and show a clear class barrier.
Keywords: Sociability. Values. Youth.
1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicao e Sociabilidade do XXIII Encontro Anual da Comps, na Universidade Federal do Par, Belm, de 27 a 30 de maio de 2014. 2 Professora do Programa de Ps-Graduao em Comunicao Social da UFMG; pesquisadora do CNPq, coordenadora do GRIS/UFMG (Grupo de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade); [email protected]. 3 Mestranda do Programa de Ps Graduao em Comunicao Social da UFMG; bolsista Fapemig; [email protected].
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1. Introduo
Desde o ltimo ms de 2013, os chamados rolezinhos tomaram conta do noticirio e
da conversao cotidiana dos brasileiros. O nome se refere aos encontros em massa em
shoppings centers, organizados via Facebook principalmente por jovens da periferia
paulistana4. A inteno dos participantes muito simples e objetiva: ir ao rol sinnimo de
paquerar, zoar (utilizando um termo recorrente entre eles) e conhecer pessoas,
principalmente aqueles garotos e garotas que fazem sucesso na internet entre a juventude
local. O fenmeno provocou susto e tenses, suscitou reflexes e instaurou um debate
pblico marcado pelo dissenso.
Frente a um quadro inusitado, e necessidade enquadr-lo em padres explicativos
conhecidos, tanto a imprensa como porta-vozes do governo ou de instituies privadas
estabeleceram a distino entre frequentadores e baderneiros. A polmica e a dicotomia
surgidas se inscrevem em vrias problemticas e podem ser analisadas sob vrios aspectos.
Diz respeito, inicialmente, ao campo das relaes e da sociabilidade. Ainda que
passear no shopping j tenha se instaurado como uma prtica comum da juventude de
classe mdia brasileira (e o shopping seja para eles um lugar de encontro e de paquera,
substituindo os antigos footings em praas e avenidas na vida urbana de 50 anos atrs), os
jovens que circulam e se ajuntam nos shoppings, normalmente no final de semana, no
diferem do padro mdio de seus consumidores habituais5. O ajuntamento massivo, e
inclusive contrariando o perfil de classe do respectivo shopping6, fere a prtica habitual
tanto de frequncia quanto de convivncia entre pblicos. Esses rolezinhos estariam
anunciando (ainda que de forma um pouco abrupta como acontece em toda mudana) um
novo padro de sociabilidade, a aspirao a uma outra forma de relacionamento e
convivncia? E qual seria ela?
4 Os rolezinhos aconteceram tambm em outras grandes cidades, como Rio de Janeiro, Niteri, Belo Horizonte; foram porm, sem dvida, os de So Paulo que tiveram maior intensidade e repercusso. 5 Um exemplo so os calouros da Faculdade de Economia, Administrao e Contabilidade da USP. Como parte da programao da calourada, eles seguem a tradio de realizar um grande encontro no Shopping Eldorado, zona oeste de So Paulo, h pelo menos cinco anos e esse ajuntamento nunca preocupou lojistas e frequentadores do shopping. 6 Existe uma diviso de classe na frequncia dos shoppings centers das grandes cidades com os shoppings da elite, shopping de classe mdia, classe mdia baixa, indo at aos populares (frequentados pela populao pobre).
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Do ponto de vista dos valores e da cultura, o prprio shopping center enquanto lugar
pblico (apesar de constituir um empreendimento privado, representa, sem dvida, um novo e
importante espao pblico das cidades atuais) indicador de um novo panorama cultural, no
qual ressaltam tanto a dinmica do consumo quanto o isolamento (prdio fechado, com
servio de segurana). Mais do que lugar de compras, os shoppings, verdadeiras redomas de
vidro e espelhos, so espao de ativao de desejo e confirmao do consumo enquanto
valor.
A reverberao do fenmeno revela tambm e com muita fora uma dimenso
poltica e ideolgica, uma luta pela ultrapassagem das fronteiras de classe. Do ponto de vista
dos participantes dos rols, tal dimenso se inscreve na prpria prtica de ocupao de um
espao que tradicionalmente no visto como seu. Mas essa luta tambm se expressa, muito
claramente, na disputa pela nomeao. arrasto ou apenas uma reunio de jovens? Nomear
promover um enquadramento, situar lugares, estimular um tipo de leitura e promover certa
inteligibilidade.
Nosso artigo sem qualquer pretenso de esgotamento da questo vai explorar esses
trs caminhos (claramente entrecruzados): a sociabilidade, os valores e a dimenso cultural,
os aspectos poltico-ideolgicos.
2. Ostentar e zoar
Os primeiros rols nasceram sem grandes pretenses. Foram organizados por jovens
famosinhos (outro termo comum entre eles) no ambiente virtual. Os encontros eram uma
oportunidade para os fs desses garotos e garotas estarem juntos aos dolos, tirarem fotos,
conversarem. Comearam tmidos, com uma pouca dezenas de pessoas. Juan Carlos
Silvestre, 20 anos, possui mais de 71 mil seguidores no Facebook e foi um dos pioneiros na
organizao de tais eventos. Em uma reportagem veiculada no programa Fantstico, da Rede
Globo, ele conta como surgiram essas iniciativas:
Depois que a gente ficou conhecido, a gente falou: Vamos fazer um encontro de fs.
Porque muitas fs moram longe e no tm a oportunidade de vir aqui, conhecer a
gente, tirar foto. A a gente simplesmente postou: Encontro de Fs no Shopping
Ibirapuera, tal dia. A elas estavam l. Umas 50 mais ou menos7.
7 Disponvel em www.youtube.com/watch?v=8onk-ZyohdY. Acesso em 10 de fevereiro de 2014.
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Com o passar do tempo, os rols conquistaram o gosto da garotada e a adeso de mais
pessoas. Tomaram corpo, chegaram a reunir milhares de jovens e viraram assunto nacional.
A ttulo de exemplo, no dia 7 de dezembro de 2013, cerca de seis mil jovens compareceram
ao estacionamento do Shopping Metr Itaquera, na zona leste de So Paulo. A multido
deixou comerciantes, frequentadores, polcia militar e segurana privada confusos. Afinal, o
que eram aqueles meninos e meninas, pobres (negros em sua maioria), frequentando aquele
local? Do inesperado, surgiu a tenso e o enfrentamento. Um enquadramento era preciso ser
dado naquele momento. O evento foi associado aos arrastes, violncia, a algo perigoso e a
ser temido. A resposta veio por meio da represso policial e da proibio jurdica de novos
encontros.
O julgamento precipitado desconheceu o fato de que as prticas desses indivduos
esto inscritas no terreno de suas experincias e vida social: tais encontros dizem de um
universo simblico maior desses jovens. Quando os rolezinhos iniciaram, o que muitos no se
deram conta era de que os eventos esto intimamente ligados ao chamado funk ostentao8
tambm conhecido como funk paulista. Difundido na baixada santista e na periferia da
cidade de So Paulo, essa modalidade difere dos outros funks, como o carioca, por trazer
letras de exaltao ao consumo e riqueza. Nos videoclipes, os MCs9 aparecem vestindo
roupas de grifes, cercados por belas mulheres, dirigindo automveis de luxo e quase sempre
cobertos por joias. O prprio Juan, mencionado acima, sonha em ser cantor de funk e
comeou a fazer sucesso justamente aps postar vdeos nos quais aparece danando. No
Facebook, apresenta-se como cantor e compositor na empresa Os Tentao.
Uma das inspiraes para o funk paulista o rapper americano 50 Cent, autor de
discos com nomes bem sugestivos, como Power of the Dollar (O poder do dlar) e Get Rich
or Die Tryin (Fique rico ou morra tentando). O funk ostentao se tornou uma febre nas
periferias paulistas e os MCs, verdadeiros reis. Um dos mais famosos, o MC Guim,
nasceu na periferia de Osasco e alcanou a marca de mais de 43 milhes de acessos em
apenas um de seus videoclipes10
. Como no podia deixar de ser, as letras de suas canes
8 Para mais informaes, indica-se o documentrio Funk Ostentao o Filme. Disponvel em www.youtube.com/watch?v=5V3ZK6jAuNI. Acesso em 28 de janeiro de 2014. 9 MC: sigla para mestre de cerimnias, referindo-se aos cantores desse estilo. 10 Disponvel em www.youtube.com/watch?v=gyXkaO0DxB8. Acesso em 10 de fevereiro de 2014.
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revelam um ode ao luxo. A expresso plaque de 100, ttulo da msica, se refere a conjuntos
de notas de cem reais:
Contando os plaque de 100, dentro de um Citron / Ai nis convida, porque sabe
que elas vm / De transporte nois t bem, de Hornet ou 1100 / Kawasaky, tem
Bandit, RR tem tambm / A noite chegou, nis partiu pro Baile funk / E como de
costume toca a nave no rasante / De Sonata, de Azzera, as mais gata sempre pira /
Com os brilho da jias no corpo de longe elas mira / Da at piripaque do Chaves
onde nis por perto passa / Onde tem fervo tem nis, onde tem fogo h fumaa.
Na esteira dos MCs com menor ou maior grau de fama, os participantes dos rols
tambm fazem dos encontros uma oportunidade para ostentar. Especialmente os meninos
adotam essa prtica, provavelmente numa tentativa de reproduzir o visual dos seus dolos que
so, em sua maioria, do sexo masculino. O depoimento de uma das rolezeiras comprova tal
fato: Tem que ser uma bermuda branca, com [tnis] Nike Shox, uma camiseta da Hollister
da Aeropostale, um [culos] Juliet e um bon. T perfeito. Esse a o gato do rol, que
chama a ateno.11
Assim, percebe-se claramente que o fascnio pelo consumo parece cercar o universo
desses jovens. Conforme explica Pereira (2013), essa obsesso no novidade nas letras e no
imaginrio musical de jovens da periferia. O que difere o momento atual dos anteriores que
o funk ostentao no cogita o crime como possibilidade para adquirir bens e no tem medo
de revelar a total adeso desses jovens a um mundo de luxo e riqueza que, outrora, parecia
muito distante de suas realidades.
Quando digo que os Racionais [grupo de rap Racionais MCs] j cantavam isso, quero dizer que eles j identificavam essa necessidade de consumir da juventude. E
de consumir o que eles achavam que era bom, nada de consumo consciente. Por
isso digo que os Racionais j faziam, h mais de dez anos, uma leitura desse anseio
por consumir dos jovens pobres. Por outro lado, h essa dimenso de movimentos
como o dos escritores da periferia, promovendo produtos da periferia, pela periferia.
O funk ostentao comea sem se preocupar com essa questo diretamente. Ele no
tem dor na conscincia por cantar o consumo em suas msicas e aderir ao sistema,
por exemplo (PEREIRA, 2013).
Evidencia-se assim que a ostentao tem marcado a sociabilidade dos jovens adeptos
ao funk paulista. No basta ter, preciso mostrar que tem, ou ao menos simular que tem
como o caso de garotos que, desprovidos da condio de adquirir o bem original, desfilam
com as rplicas do cordo de ouro ou da camisa de grife. Usando termos de Maffesoli, a
pulso gregria, o estar-juntos dos rolezeiros revela um trao em comum: o consumo (e a
11
Disponvel em www.youtube.com/watch?v=7LwrClolRF4. Acesso em 28 de janeiro de 2014.
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celebrao dele) tem sido um elo muito forte de identificao entre esses meninos e meninas.
Estar vestido com a indumentria da ostentao uma condio importante para ser
reconhecido no grupo.
Um outro trao desse fenmeno a marca de gnero: no rolezinho, quem mais
ostenta, quem apresenta um visual mais tratado e uma performance mais ritualizada so os
meninos. As meninas so seguidoras. Esse movimento, portanto, traz um trao machista,
que encontra razes no funk e em outros movimentos musicais (no funk carioca falando das
cachorras; no funk ostentao falando da atrao das gatas pelo cara que usa grifes e joias;
no sertanejo universitrio exaltando o poder do dinheiro para atrair a mulherada) o que,
de resto, espelha as relaes de gnero na sociedade. No desconhecemos o fato de que as
mulheres esto dando o troco, muitas delas fazendo sucesso na carreira artstica (Tati
Quebra-Barraco e Valesca Popozuda no funk carioca; MC Pocahontas, MC Byana que,
apesar de serem cariocas, tm apostado no funk ostentao) respondendo com letras
feministas. Permanece, no entanto, a hegemonia masculina (no rolezinho, com toda
evidncia), e mais a relao de gnero se vendo enquadrada pela lgica do consumo (o
dinheiro e a ostentao se colocando como importantes atrativos sexuais).
Alm dos aspectos de consumo e de gnero, uma outra questo se destaca: a busca e o
valor do sucesso. A motivao dos primeiros rols (veja-se o caso do Juan) foi promover um
encontro com as fs, ou seja, se inscreve claramente dentro de um quadro de dolo e seguidor.
a nossa cultura da celebridade, onde ser visto, ser apreciado, ser seguido se tornou valor
maior. A figura do lder, do heri, do poderoso sempre existiu; historicamente, esse era um
lugar para poucos. A modernidade, mas sobretudo o cenrio contemporneo, estende o
alcance do indivduo comum, e todos e cada um podem aspirar a se tornar um famoso. O que
vemos em nossos dias que, mais do uma possibilidade, a fama se tornou meta.
Como a crise das grandes instituies, o indivduo passou a ocupar um lugar central
na sociedade. Consequentemente, a autopromoo surgiu como forma de elevar esse sujeito a
uma condio no experienciada antes: a de dolo. Assim, na contemporaneidade, a fama to
almejada no necessariamente precisa estar ligada a grandes feitos, a atos heroicos. A fama
pela fama vai alm das habilidades excepcionais, se conforma e encerra na figura da
celebridade em si.
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O advento das novas tecnologias facilitou esse processo de busca pela autopromoo
e visibilidade. Com a difuso dos blogs, da tecnologia mobile e das mdias sociais, no
preciso muito para aparecer no ambiente miditico: na internet, a obsesso pela popularidade
concretiza-se nos nmeros de seguidores nos perfis dessas mdias sociais. Quanto mais fs,
maiores so as possibilidades para garotos e garotas hiperconectados se tornarem as
celebridades da vez. O sucesso deles explica-se pela identificao que provocam com seu
pblico. A figura de web-celebridade construda num processo relacional com os
seguidores. Conforme Simes:
... um dolo se constri em interao com outros dolos no cenrio sociomiditico,
bem como com fs e outros pblicos com os quais dialoga. Alm disso, preciso
atentar para a relao entre eles e o contexto social, na medida em que o carisma de
um dolo delineado a partir desse jogo entre a dimenso interna desse sujeito e os
valores em determinado momento histrico. Atentando para a dimenso social e
coletiva do carisma, pode-se perceber como as celebridades personificam valores
em determinado contexto, suscitando uma devoo afetiva do pblico (SIMES,
2013).
Portanto, o MC do funk ostentao converge em si a nsia por consumo e por
popularidade de seus seguidores. Alm disso, a fama restrita ao ambiente virtual apenas o
primeiro passo para esses garotos e garotas alcanarem o status de celebridade fora da
internet. Eles no querem apenas postar seus vdeos caseiros danando em casa: almejam o
status de MC de sucesso. No postam suas msicas no Youtube de forma aleatria: esperam
com isso divulgar as canes, ser contratados para shows e ganhar visibilidade fora da web.
No caso dos rolezinhos, vemos uma dinmica circular: os famosinhos utilizando sua
fama incipiente como estratgia para increment-la (a fama permite convocar fs; a resposta
dos fs aumenta a fama).
3. Que sociabilidade esta?
O conceito de sociabilidade, em sua matriz simmeliana, destaca sua natureza de
gratuidade; para Simmel, a sociabilidade constitui a forma ldica da socializao, uma
forma marcada pela inexistncia de fins prticos, e que no quer seno existir enquanto
relao (SIMMEL, 1991, p. 169). Domnio da forma, inscrio no terreno da sensvel, das
emoes, a sociabilidade marcada por um carter ldico e esttico. Ela se distingue das
relaes formais e estratgicas, que almejam a obteno de resultados especficos
(econmicos, religiosos, sexuais etc), e tem no estar-com-o-outro o seu prprio fim.
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Nessa mesma matriz, tambm Maffesoli (1985) destaca o carter ldico, afetivo,
efmero da sociabilidade, que se ope s relaes cristalizadas da sociedade (como a poltica
em sua dimenso institucional), e se remete s relaes anrquicas, contraditrias e fusionais
que cimentam a criao da comunidade e impulsionam as diferentes formas de agregao.
Acompanhando a leitura dos autores, torna-se fcil enquadrar os rolezinhos nesse
modelo de sociabilidade: prtica ldica dos jovens, que querem apenas se divertir. Faz parte
da natureza da juventude chamar ateno, aprontar, causar. E, com um fator adicional:
eles esto de frias, com o tempo livre e com energia de sobra para criar iniciativas como
essas (no toa que os rolezinhos com maior nmero de adeptos ocorreram em pleno ms
de dezembro). possvel afirmar que o objetivo inicial dos eventos no carregava em si
grandes pretenses; os meninos e meninas s estavam ali para namorar, passear, zoar. Uma
simples brincadeira de jovens. Nos termos de Maffesoli, esbanjando sua energia fusional.
Em nossa leitura, no entanto, resguardando e acentuando o carter relacional da
perspectiva de Simmel, seu foco na tenso entre formas de sociao e experincias vividas,
possvel ampliar a noo e pensar a sociabilidade enquanto formato e espessura das relaes
(dos padres de relacionamento), marcas e dinmicas que formatam o estar-com-o-outro e
tm consequncias na configurao da sociedade como um todo. Dimenses afetivas, ldicas,
gratuitas permeiam os vrios tipos de relacionamento (uns mais, outros menos) o que no
impede que outras dimenses tambm a se manifestem.
A questo de uma sociabilidade brasileira no um tema no singular; os modelos de
relacionamento que atravessam e constituem nossa vida social so mltiplos, so
diversificados. O epteto cordiais e pacficos foi um dos qualificativos que, no perodo ps-
repblica, na construo e acomodao de um povo brasileiro, foi forjado e sedimentado
para nos dizer quem somos e como nos comportamos. Uma outra marca, dizendo do
relacionamento entre classes, (alm das relaes cordiais) a preservao das distncias e
diviso de espaos: cada um em seu lugar (ou, de forma mais popular, cada macaco no seu
galho), cada um com suas marcas distintivas. Atentar contra isto misturar espaos (ferir a
geografia classista), embaralhar as marcas de distino (mesmos hbitos de consumo)
infringir uma regra de convivncia. quebrar um modelo de sociabilidade.
Assim que os rolezinhos apontam, sim, um outro padro de sociabilidade, que
desrespeita o pacto da segregao, invade espao, e faz de sua alegria barulhenta e
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descomprometida uma transgresso. nesse momento que eles assumem uma dimenso
poltica.
4. Ostentar tambm se afirmar
A exaltao ao consumo ocorre em um perodo histrico de ascenso econmica de
algumas classes brasileiras. Nos ltimos dez anos, perceptvel o incentivo e a possibilidade
do consumo especificamente entre as classes mais pobres do pas. De 2003 a 2011, cerca de
40 milhes de brasileiros ingressaram na classe C. Segundo pesquisa da Fundao Getlio
Vargas, a renda dos 50% mais pobres no Brasil subiu 67,9% nos anos 2000.12
Exibir roupas e acessrios de marca talvez seja a primeira oportunidade para esses
jovens se sentirem includos em um universo de consumo sonhado h tanto tempo e possvel
apenas agora. sentir-se parte (mesmo que simbolicamente) de uma classe que pode
comprar, que pode usar aquela camiseta da propaganda da TV. poder ascender socialmente,
como fizeram muitos dos MCs de sucesso no mundo do funk ostentao. Baudrillard j
falava sobre essa aspirao pelo consumo como sinal de desejo por ascendncia social em sua
obra A sociedade de consumo:
... muito possvel que as aspiraes consumidoras (materiais e culturais), que
revelam um nvel de elasticidade superior ao das aspiraes profissionais ou
culturais, venham compensar as deficincias graves de determinadas classes, em
matria de mobilidade social. A compulso de consumo compensaria a falta de
realizao na escala social vertical (BAUDRILLARD, 1995, p. 63).
Portanto, a ostentao tem sido um instrumento de afirmao e de busca por ocupar
lugares e posies at ento no destinados aos garotos da periferia. Conforme Pereira
(2013), o consumo cada vez mais exaltado como espao de afirmao e de reconhecimento
para os jovens. Os prprios videoclipes do funk ostentao comprovam isso. As cenas
mostram algo destoante do convencional: jovens da periferia (e no da classe mais rica)
portando joias, dirigindo carros de luxo, pilotando motos carssimas.
evidente que os rolezeiros no tm nenhuma inteno mais aprofundada
ideologicamente ao marcar e/ou frequentar tais encontros. No entanto, independente disto, a
dimenso sensvel e espontnea dos rols ultrapassa seus objetivos iniciais e revela tenses de
12 Disponvel em http://oglobo.globo.com/economia/cerca-de-40-milhoes-de-pessoas-ingressaram-na-classe-aponta-pesquisa-da-fgv-2756988. Acesso em 28 de janeiro de 2014.
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nossa sociedade. possvel ver a potncia da socialidade dessa tribo de rolezeiros
descortinando novas camadas que circundam o fato. Ainda conforme Pereira:
O que so o funk ostentao e os rolezinhos se no essa reivindicao dos jovens
mais pobres por maior participao na vida social mais ampla pelo consumo? Estas
aes culturais parecem situar-se nessa lgica, que no necessariamente se
contrape ao hegemnico, na medida em que tenta se afirmar pelo consumo, mas
provoca um desconforto, um rudo extremamente irritante para aqueles que se
pautam por um discurso e uma prtica de segregao dos que consideram como
seus outros (PEREIRA, 2013).
Ao marcar os rols, os garotos provavelmente sabiam que iriam chamar a ateno,
mas certamente no imaginavam causar um desconforto to grande. O surgimento dessa
tenso descortina o fundo ideolgico e revela a barreira de classes: no se trata apenas de um
grupo que almeja ultrapassar uma fronteira (os rolezeiros), mas tambm de uma parcela que
parece no desejar esse passo adiante daqueles a quem consideram os outros.
De fato, no de hoje que os indivduos mais pobres veem os templos do consumo
como o lugar desses outros e como seus corredores travam, mesmo que simbolicamente,
uma diviso muito clara de classe. A cano Chpis Cntis, do grupo Mamonas
Assassinas13
, j problematizava essa questo nos anos 90. Com uma crtica social bem
humorada, a cano mostra o estranhamento e ao mesmo tempo o fascnio de um
operador da construo civil e provavelmente migrante nordestino pelo shopping e pelo
mundo do consumo:
Esse tal Chpis Cntis / muicho legalzinho / Pra levar as namoradas / E dar uns
rolzinhos / Quando eu estou no trabalho / No vejo a hora de descer dos andaime /
Pra pegar um cinema do Schwarzenegger / Tombm o Van Daime / Quanta gente /
Quanta alegria / A minha felicidade / um credirio / Nas Casas Bahia.
Voltando para os rols de 2013, percebe-se que a situao no mudou muito. Os
narizes torcidos de alguns frequentadores e das administradoras dos shoppings comprovam
que existe uma delimitao entre quem pode e quem no pode permanecer do lado de c
dessa demarcao. Ou como bem comentou a jornalista do SBT, Rachel Sheherazade, o
refgio dos consumidores em busca de segurana foi violado por quem ela denominou de
arruaceiros.14 Para esses grupos de indivduos, praticamente impossvel enxergar os
arruaceiros da periferia como potenciais ou reais consumidores.
13 Disponvel em www.youtube.com/watch?v=UQbbsVguNgk. Acesso em 02 de fevereiro de 2014. 14 Disponvel em www.youtube.com/watch?v=8hZ4cewFSl4. Acesso em 02 de fevereiro de 2014.
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Outro ponto merece destaque. Os rols e sua ligao com as canes de ostentao
no revelam apenas uma necessidade de afirmao pelo consumo, mas tambm pela
valorizao de um estilo musical prprio o funk. A gerao rolezeira quer sim consumir os
produtos tpicos de outras classes, mas no pretende abandonar a sonoridade com a qual
nasceram, cresceram e construram suas experincias sociais.
Assim sendo, possvel descortinar a dimenso poltica dos rols, principalmente se
nos embasarmos no pensamento de Jacques Rancire a respeito dos termos polcia e poltica.
Segundo o filsofo francs, a lgica policial diz respeito a todas as configuraes e
dispositivos que definem o lugar nos quais os corpos devem estar, suas respectivas
atribuies e os sistemas de legitimao dessa distribuio. O ato poltico ocorreria no
momento em que h um questionamento desses lugares e funes colocados como
consensuais pela ordem policial e hegemnica. Ora, no seria este o cenrio percebido
durante os rolezinhos? De um lado, no vemos o carter questionador dos encontros, na
medida em que ocorrem em um espao onde os jovens da periferia no so bem-vindos, com
participantes ostentando mercadorias que no so, a priori, destinadas a eles? Por outro lado,
tambm no fica clara a presena de uma lgica consensual tentando manter esses garotos
longe dos centros de consumo e sem consumir os produtos no-destinados a eles? O fato de
grandes grifes estarem insatisfeitas com a associao de suas marcas aos garotos dos rols e
do funk ostentao15
marca bem essa distribuio de lugares e apropriaes, regidas por uma
ordem policial.
A tenso entre a lgica hegemnica e o fazer poltico tambm pode ser vista na
disputa pela nomeao dos rolezinhos. Qualquer tentativa de classificar, enquadrar,
denominar, reflete tambm a tentativa de dominao simblica por parte de um grupo
formado pelo ns sobre indivduos vistos como eles. A dominao simblica seria,
portanto, uma ferramenta que torna possvel o consenso no mundo social e a reproduo de
uma ordem estabelecida (ou da ordem policial, para retomarmos o pensamento de Rancire).
Assim, para manter a configurao dos corpos em seus devidos locais, o discurso
policial (aqui representado por grande parte da imprensa, pelas administradoras dos
shoppings, pela segurana privada e pela polcia militar) tratou de classificar os fenmenos
15 Segundo pesquisa do Instituto Data Popular. Disponvel em http://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2014/02/03/marcas-de-grife-tem-vergonha-de-clientes-mais-pobres-diz-data-popular.htm#fotoNav. Acesso em 05 de fevereiro de 2014.
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como baderna, arrasto, invaso. J os participantes do rolezinhos tentaram se defender,
dizendo que se os rols so apenas encontros de jovens, zoao, curtio.
5. #PartiuRol
Ao analisar os rolezinhos como fenmeno social, preciso atentar-se para o papel
significativo das novas tecnologias. Convocaes para encontros de jovens em shoppings
centers ou outros locais no novidade. Isso sempre existiu. O que merece destaque como
essas oportunidades de interao podem ser amplificadas pelas mdias sociais, seja
aumentando o alcance do convite, seja difundido com mais velocidade a repercusso do
evento.
De fato, sabido como as novas tecnologias tm reconfigurado a sociabilidade dos
indivduos na contemporaneidade. Conforme Bretas (2008, p. 3): ... pensamos que o meio
telemtico no serve apenas como mero suporte para essas inscries, mas refere-se a algo
que participa ativamente na conformao dos modos de sociabilidade nos nossos dias.
Nascidos na era digital, essa gerao de rolezeiros vive uma forma de se relacionar bastante
distinta daquela experienciada por seus pais. Para estes garotos e garotas hiperconectados,
praticamente impossvel ficar sem internet. Neste cenrio, o celular e a conexo mobile
tambm assumem um papel central nas interaes. A lgica desses jovens quantitativa: para
eles, a meta obter cada vez mais seguidores, postar cada vez mais fotos, atualizar cada vez
mais seus fs sobre as atividades que realizam durante o dia.
Os garotos e garotas da gerao internet tm cincia de que podem se apropriar do
espao virtual. nesse ambiente que eles se sentem vontade e tm a oportunidade de lutar
pelo que desejam: seja para conseguir relacionamentos amorosos, obter popularidade ou
realizar o sonho de ser um cantor de sucesso. MC Guim, o cone do funk ostentao, obteve
os mais de 43 milhes de visualizaes em um nico videoclipe alm de fama e dinheiro
sem a necessidade de divulgao de seu trabalho em um grande programa de auditrio ou do
aval de gravadoras ou rdios de renome. Ele contou apenas com o espao gratuito do
Youtube e pela sorte de ter sua msica apreciada pelos amantes do funk.
Assim, a natureza alternativa do espao da internet nos leva a refletir sobre as
configuraes da distribuio do poder na sociedade contempornea. Conforme explica
Castells (1999, p. 497), as redes constituem a nova morfologia social de nossas sociedades,
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e a difuso da lgica de redes modifica de forma substancial a operao e os resultados dos
processos produtivos e de experincia, poder e cultura. Os rolezeiros encontram no ambiente
virtual um espao para formatar e buscar novas experincias. Os MCs do funk ostentao
localizam ali uma oportunidade de difundir sua cultura, mostrar a que vieram.
Nesse sentido, os fenmenos que analisamos acima parecem ter algo em comum com
as chamadas Jornadas de Junho, ocorridas em 2013. A anlise nos leva a um ponto de
convergncia entre os dois fatos: o espao virtual uma possibilidade tanto para editar a
narrativa predominante quanto para oferecer uma outra narrativa possvel.
No caso dos MCs, a internet o meio pelo qual esses garotos podem tomar as rdeas
de sua prpria carreira, conquistar o pblico que almejam, mostrar a mensagem que desejam.
J durante as manifestaes, foi possvel detectar a presena de diversas narrativas virtuais
que se contrapunham narrativa predominante da chamada mdia de referncia. Essa
presena se concretizava tanto nas transmisses independentes da Mdia Ninja quanto no
contra-discurso dos adeptos ttica black block. No caso desses ltimos, a tentativa de
descontruir a denominao de vndalo ocorreu, principalmente, por meio das mdias
sociais.
evidente que no devemos dar um carter redentor s novas tecnologias, como se
ela tivesse contornos absolutamente democrticos para qualquer indivduo. Sabemos que esse
tambm um terreno estriado, com hierarquias de poder e concentrao de tecnologias nas
mos de grandes conglomerados. No pretendemos abordar uma perspectiva midiacntrica,
dando um papel decisivo para a tcnica. Se assim fosse, estaramos neutralizando o papel dos
indivduos nas interaes mesmo que virtuais. O que pretendemos colocar e para esse
ponto que gostaramos de chamar a ateno como o espao virtual pode ser visto como
um dispositivo de produo e deslocamento de sentidos, que possibilita novas experincias de
sociabilidade de pblicos que esto em rede e que podem, em um certo momento, debater e
desconstruir as relaes de poder historicamente estabelecidas em nossa sociedade.
Consideraes Finais
Fechando nossa reflexo, cabe a ns fazer algumas perguntas: se se trata do ensaio de
uma nova sociabilidade, uma nova forma de estar juntos e estar com o outro, o que os
rolezinhos dizem das relaes desses jovens entre si e com a sociedade do centro (dos
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donos e frequentadores habituais dos shoppings)? O que os rolezinhos, bem como o funk
ostentao, revelam das aspiraes e valores desses meninos da periferia?
A propsito dos valores, de acordo com Pereira, o cenrio pode revelar indcios de
uma juventude pautada por projetos hedonistas e imediatistas:
Fico pensando que a busca de realizao apenas pelo consumo envolve sentimentos
e posturas extremas de um egosmo hedonista e de um profundo desprezo pelos
outros humanos. As mercadorias, ou as coisas almejadas, de certa forma tm
conformado as subjetividades contemporneas. E nessas novas subjetividades,
pautadas pelo instantneo e o instvel, parece no haver muito espao para a
solidariedade (PEREIRA, op.cit.).
Claramente, existe um valor de consumo que permeia o fenmeno. perceptvel a
presena de uma dimenso hedonista. Mas este aspecto no explica tudo e no esgota o
conjunto diversificado de valores que esto em jogo. E aqui h de se fazer duas observaes.
Em primeiro lugar, como j abordamos, a valorizao dada aos bens de consumo por
parte dos garotos e garotas dos rols e do funk ostentao se inscreve em um contexto maior,
do qual eles so participantes. Os rolezeiros so o que o fruto de uma gerao que nasceu
com a ideia de ascenso dentro de suas casas; cresceram em lares cujos pais no tiveram
condies financeiras to favorveis mas que enxergam na recente melhoria de vida uma
oportunidade para dar aos filhos itens que no poderiam sequer sonhar em ter. migrar de
uma situao de privao e avanar um degrau na escala de estratificao de classes no
Brasil. Consumir provar que esses garotos podem, sim, ter uma vida melhor do que aquela
vivenciada pela gerao anterior.
O segundo ponto que gostaramos de ponderar que o fenmeno, de fato, no nega
um individualismo acentuado, mas tambm clareia algumas aes pontuais de cunho
coletivo. A ostentao e os rols dizem de um universo simblico compartilhado por esses
garotos. Ao utilizar indumentrias quase idnticas, adotar o mesmo vocabulrio, ouvir o
mesmo gnero musical, eles consolidam a gramtica de uma coletividade da qual se sentem
parte e cujas aes servem para reforar essa mesma identidade grupal. No somos apenas
jovens da periferia; somos os rolezeiros. No somos apenas cantores de funk; somos do
bonde da ostentao. fazer parte de um grupo, sentir orgulho disso e divulgar a identidade
que lhes peculiar.
Assim, a ascenso dessa classe no ocorre semelhante figura do novo rico, do
emergente que costuma negar as razes humildes de onde saiu. Eles tm orgulho de serem da
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periferia, no negam o grupo ao qual pertencem. Percebe-se uma constante tentativa de
recuperao do lugar de origem, de suas razes. O prprio funk ostentao no fala apenas de
luxo, mas de superao. A msica Pas do Futebol, do MC Guim em parceria com o
rapper Emicida, traz as seguintes frases: ... olha onde a gente chegou e ontem foi choro e
hoje tesouro16. So meninos pobres que ficaram milionrios, mas que no abrem mo de
suas identidades. MC Beyonc, por exemplo, conseguiu adquirir um apartamento na Barra da
Tijuca com o sucesso do funk, mas prefere morar perto da famlia e dos amigos na baixada
fluminense.17
como a j citada msica dos Mamonas Assassinas diz: Comi uns bichos
estranhos / Com um tal de gergelim / At que tava gostoso / Mas eu prefiro aipim. Na
cano, mesmo aps ser apresentado ao ingrediente tpico do po das redes mundiais de fast
foods, o visitante ainda prefere a comida que remete s suas origens.
Assim, por mais que os valores individuais sejam perceptveis, no se pode negar um
eco coletivo tanto no rolezinho quanto no funk ostentao. Conforme nos alertou Maffesoli, o
final do sculo 20 redescobriu as tribos. Por mais que a coletividade contempornea possua
laos bem mais efmeros do que os das antigas e tradicionais comunidades, o sentimento de
pertencer a um grupo persiste. E, com o advento das novas tecnologias, tais grupos veem a
possibilidade de intensificar contatos, potencializar interaes comunicativas, compartilhar
experincias sociais, deixar o seu recado para mais pessoas, se dar a ver.
E o que esse estar-junto dos rolezeiros e funkeiros se no a dimenso poltica do
fenmeno? Afinal, no prprio grupo, na ascenso de seus pares, que eles se identificam e
renem foras. Trata-se de reivindicar um lugar que eles pretendem conquistar por meio de
sua arte, sua msica, sua expresso cultural. Querem ter o direito de exibir nos rols os itens
que enfim conseguiram comprar (mesmo que seja em prestaes a perder de vista); nos
videoclipes, querem esbanjar o luxo que lhes foi proporcionado pelo sucesso do funk
ostentao.
Assim, ostentar tambm provocar. mostrar que a margem e no apenas o centro
existe, tem vida prpria, tem desejos e possibilidade de consumo. Eles querem compartilhar
alguns bens e privilgios, mas com sua marca, seu jeito, sem abandonar suas grias, seu
vocabulrio. Mostrar verdadeiramente quem so. Talvez por isso esses jovens causem tanto
16 Disponvel em www.youtube.com/watch?v=bWnS2dIDgQA. Acesso em 8 de fevereiro de 2014. 17
A marselhesa do subrbio. (Veja, 29/01/2014).
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espanto. No se trata de um esforo de ascenso dentro do mesmo padro unificador dos
ricos. O sentimento de classe agregador, e coloca um parmetro de pertencimento.
Por fim, acreditamos que estes os rolezinhos se apresentam como um fenmeno novo
em nossa sociedade, mas possuem traos em comum com episdios recentes no panorama
brasileiro. Basta lembrarmos das manifestaes de 2013 e do ajuntamento de milhares de
jovens na ocasio da visita do Papa Francisco no mesmo ano. Podemos perceber em tais fatos
alguns aspectos semelhantes aos dos rolezinhos: o clima de festividade, o sentimento de
grupo, uma juventude mobilizada em torno de algo. Nos trs casos, trata-se de um
ajuntamento que revela uma disponibilidade de jovens. Percebe-se uma certa energia no ar,
algo que tem impulsionado esses diferentes perfis de garotos e garotas a se juntar, a se
mobilizar, a se mostrar.
Ainda no sabemos o porqu, a origem e o destino dessa energia perceptvel no ar.
Cabe a ns, pesquisadores das cincias sociais, atentarmos para os fenmenos que partem
dela, identificarmos as formas que eles tomam, as prticas interacionais que a se configuram
buscando entender para onde essa potncia juvenil contempornea ir nos levar, que novo
mundo ela ir construir.
Referncias
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NETTO, Antnio; BRAGA, Jos Luiz; PORTO, Srgio Dayrell (org.). A encenao dos sentidos: mdia,
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MAFFESOLI, M. A conquista do presente. Rio de Janeiro: Rocco, 1984.
_____. sombra de Dionsio contribuio para uma sociologia da orgia. Rio de Janeirro: Graal, 1985.
_____. O tempo das tribos: o declnio do individualismo nas sociedades de massa. Traduo de Maria de
Lourdes Menezes. 2. ed. So Paulo: Forense, 1998.
PEREIRA, Alexandre Barbosa. Rolezinhos: o que esses jovens esto roubando da classe mdia do Brasil?
[25 de dezembro de 2013]. Portal Geleds. Entrevista concedida a Eliane Brum. Disponvel em
www.geledes.org.br/em-debate/colunistas/22538-rolezinhos-o-que-estes-jovens-estao-roubando-da-classe-
media-brasileira-por-eliane-brum. Acesso em 28 de janeiro de 2014.
RANCIRE, Jacques. O desentendimento (trad. de ngela Leite Lopes). So Paulo: Editora, v. 34, 1996.
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SIMMEL, Georg. La sociabilit. Exemple de sociologie pure ou formale. In: _____. Sociologie e
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SIMES, Paula Guimares. Celebridades na sociedade midiatizada: Em busca de uma abordagem
relacional. Revista ECO-POS, v. 16, n. 1, p. 104-119, 2013.