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mia couto Vozes anoitecidas Contos 3 a reimpressão

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mia couto

Vozes anoitecidasContos

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Copyright © 2013 by Mia Couto, Editorial Caminho SA, Lisboa

Edição apoiada pela Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas/ Secretaria de Estado e da Cultura—Portugal

A editora manteve a grafia vigente em Moçambique, observando as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

CapaAlceu Chiesorin Nunes

Ilustração de capaAngelo Abu

RevisãoJane Pessoa

[2016]Todos os direitos desta edição reservados àeditora schwarcz s.a.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002—São Paulo—spTelefone: (11) 3707-3500Fax: (11) 3707-3501www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.brfacebook.com/companhiadasletrasinstagram.com/companhiadasletrastwitter.com/cialetras

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Couto, MiaVozes anoitecidas : Contos / Mia Couto.—1a ed.—

São Paulo : Com panhia das Letras, 2013.

isbn 978-85-359-2733-7

1. Contos moçambicanos i. Título.

13-09693 cdd-m869.3

Índice para catálogo sistemático:1. Contos : Literatura moçambicana 869.3

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Índice

Prefácio à edição portuguesa ............................ 7Como se fosse um prefácio............................... 11Texto de abertura ............................................. 17

A fogueira ......................................................... 19O último aviso do corvo falador ...................... 27O dia em que explodiu Mabata ‑bata ............... 39Os pássaros de Deus ........................................ 49De como se vazou a vida de Ascolino do Perpétuo Socorro .................................... 57Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar? ........................................................ 73Saíde, o Lata de Água ...................................... 85As baleias de Quissico ...................................... 93De como o velho Jossias foi salvo das águas ........................................ 103A história dos aparecidos ................................. 115A menina de futuro torcido ............................. 125Patanhoca, o cobreiro apaixonado .................... 133

Glossário .......................................................... 151

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Prefácio à edição portuguesa

Quase de chofre e muito sorrateiramente, Mia Couto apareceu ‑nos a confirmar que todo e qual‑quer ato criativo sério na área das artes (plásticas ou literárias) não consiste em ser autor de coisa jamais feita, ser o pioneiro ou dela ser o descobridor. E dizemo ‑lo porque esta coletânea de contos com que Mia Couto se estreia na ficção tem, quanto a nós, precisamente o mérito de reestabelecer o elo, reavi‑var uma continuidade, partindo do Godido, de João Dias, passando inevitavelmente pelo Nós matámos o cão tinhoso de Luís Bernardo Honwana.

Ou equívoco nosso ou este Vozes anoitecidas imbui ‑se de um referencial algo importante para nós, moçambicanos, literariamente: indo afoitamen‑te remexer as tradicionais raízes do Mito, o narrador concebe uma tessitura humano ‑social adequada a determina dos lugares e respetivos quotidianos. Mia Couto faz ‑se (transfigura ‑se) vários seus personagens pela atenta escuta de pessoas e incidentes próximos de si, porque o homem ‑escritor quer ‑se testemunha

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ativa e consciente, sujeito também do que acontece e como acontece, já que desde a infância pôde saber ‑se objeto.

Em jeito de aforismo, Mia Couto remete ‑nos para enredos e tramas cuja lógica se mede não pou‑cas vezes pelo absurdo, por um irrealismo, conflitan‑tes situações; pelo drama, o pesadelo, a angústia e a tragédia. No entanto — e importa salientar — fiel ao clima. O mesmo clima. Um dado clima. Isso que distingue o escritor do escrevente e diferencia prosa de prosaico.

Obtendo sugestivos efeitos significantes, Mia Couto maneja a linguagem das suas figuras legiti‑mando a transgressão lexical de uma fala estrangeira com o direito que lhe permite o seu papel de parente vivo de Vozes anoitecidas. E, tal como João Dias e Luís Bernardo Honwana já a isso, óbvia e neces‑sariamente, haviam recorrido, também Mia Couto consegue na escrita refletir vivências e particularis‑mos sem descer ao exotismo gratuito, ao folclorismo cabotino. Igualmente sem se estatelar no linguajar chocarreiro de baixo nível, sem cair na chacota ou no indigenismo de burlesca ironia do senso de humor pró ‑colonial.

Com esta auspiciosa estreia na prosa (!) Mia Couto entrega ‑se ao renovo, esse aspeto sempre pouco, menor, mau ou descarado quando se não apoia no talento. E como? Inserindo ‑nos no ritmo do poeta que já era e no modular sóbrio, conciso — tributo à tarimba de jornalista ou seu estilo? —, do narrador recreando ‑se no prazer do contador de estórias. Dando ‑se até a exigência de não se auto‑rizar — nem a ele nem aos seus leitores — a fácil sonolência, o bocejo, o monótono ou o ambíguo

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escorregadio, o que vale, afinal, como aquele objetivo da coisa literária que muitos aprendizes despudora‑damente tentam mas que só os eleitos vão conse‑guindo. Portanto, ao notável projeto literariamente moçambicano de João Dias (década de 50), a feliz proposta de Luís Bernardo Honwana (década de 60) vemos afluir com a mesma surpresa e também quase à socapa, dialeticamente, este Vozes anoitecidas (década de 80) de Mia Couto. Uma trilogia que nos apetece exaltar como base e fase da nossa criação na arte de escritor ou — por que não? — capítu‑lo cultural importante de uma fisionomia africana com personalidade identificavelmente moçambi‑cana, umas vezes nas simbologias, outras vezes em certos desfechos, reações e codificações de um fata‑lismo místico ritualista, aparentemente imaginado mas extraído da própria vida. E que Mia Couto, em forma de hábeis slides, com rara beleza fixa e nos oferece para nos angustiar ou fazer participar a partir da sua visão deste nosso universo sentido do lado de dentro. Visão precária? Ah! Desculpem, mas não enveredemos numa práxis ou na catarse do fenómeno literário, essa tarefa em que transpiram e se esgotam os críticos de ofício. E o que nós temos estado, muito tosca e fastidiosamente, a tentar dizer é que gostámos maningue deste Vozes anoitecidas. Sinceramente, maningue, mesmo!

E, já agora, não sabendo se vale ou não vale a pena, se devo ou não devo, atrevo ‑me ao desplante de garantir que Mia Couto com estes seus mag‑níficos slides no género conto mostra que neles se mantém — e com sensibilidade — o bom poeta que no género poesia já provara ser. E ainda bem, por‑que disso se congratula menos o autor e mais, bem

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mais, a literatura destes sítios meridionais, cujos pés, mãos, cabeça e coração se salgam e iodizam no mar Índico mas... em Moçambique.

Abril de 1987

José Craveirinha

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Como se fosse um prefácio

Meu caro Mia Couto,

Fui a ver o tempo e encontrei ‑o — o tempo este, nosso, tão sentencioso como o puseste na fala do responsável da “História dos aparecidos”: “Vocês são almas, não são a realidade materialista como eu e todos que estão connosco na nova aldeia”. Situação paradigmática.

Agora pedes ‑me, a “aparência” de um prefácio. Confesso — sei só a carta. Depois, e com alguns deploráveis exemplos entre nós, a tradição do pre‑fácio convencionou fazer dele a descabelada exegese das obras onde elas não se bastam por si. Como não é esse o teu caso...

Sabemos os dois — e saberão mais alguns — que não somos os maiores, que a aventura literária à medida que se desdobra na mais radical das autogno‑ses nos “humilda” a ponto de reusarmos o caciquismo de qualquer “nova aldeia”.

Cacique, pois, voluntariamente deposto, queria

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ver nesta tua coletânea de contos uma saudável pro‑vocação aos que vêm costurando no nado ‑morto ‑vivo corpo da literatura moçambicana: lá onde se diz ser‑mos só um país de poetas, vens tu, poeta de títulos comprovados, a desdizê ‑los. A filha do velho e defun‑to Guimarães Rosa chamaria a isto uma “acontecên‑cia”. E é. Mas se será maior ou menor ou se na estiagem das pátrias letras ela vem abrir aquele sulco indelével sentenciosamente te direi que pouco inte‑ressa e não sei.

Contrariamente ao que se costuma fazer quan‑do prefácios se escrevem, confesso ‑te que li os con‑tos todos. Oito propostas, não é? Ou outras tantas maneiras de “outrar” esta coeva, conservadora, fre‑nética, delirante realidade. Penso que conseguiste um bom flash “no invisível pescoço do vento” da escrita: “De repente o boi explodiu. Rebentou sem um múúú. No capim em volta choveram pedaços e fatias, grãos e folhas de boi. A carne era já borboletas vermelhas”. Mas há outros. Nenhum sentido redutor que não se espraie num miúdo saber fazer de ironia quando o imaginário colide com a realidade, no querer dizer este nosso tempo onde as fórmulas se começam a deglutir e o slogan “explode” aquém minado pelo real e todos os seus arquétipos.

A eles te quiseste aventurar, aos arquétipos, desnu dando ‑os com minúcia e mais a manselinha atenção de o realizares com a única e grande arma da linguagem que é aquilo com que literatura se faz. Nessa opção pelo terceiro registo — na definição de Hartmann o registo “é a variação linguística realiza‑da com um determinado fim” —, parece ‑me serem muitas as implicações presentes. Contudo, só na apa‑rência estamos longe do poeta da Raiz de orvalho. Do

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poeta ficou o narrador capaz de reveladoras imagens, secretamente cúmplice dos mais deserdados dos seus personagens, atento ao outro lado das coisas, jogando na fronteira do fantástico, diapasão vibrando entre o halo de vida e a pulsão de morte deste nosso ser em formação/situação para nos dar a partitura breve de “A fogueira” ou do “Saíde, o Lata de Água”.

Quanto às implicações, meu caro Mia Couto, gostaria tão ‑só de ressalvar a mais importante delas. Para mim, é claro. Se mais ou menos andamos todos a esgaravatar na substância da Moçambicanidade — e é preciso dizer que mais honesta e verdadei‑ramente uns do que outros —, julgo ver nestes teus textos um empenhamento total. E a complicação começa aqui.

Pois que raio de coisa será essa da Moçambica‑nidade? O despedaçado boi étnico a que um excesso de etnocentrismo rotula de tribalismo? A orteguiana circunstância de sermos os embaraçados “herdeiros”, cada um por sua privada genealogia, ou do cantochão latino, ou de muezins arábicos, ou de Monomotapas nostálgicos, ou já algum sincretismo histórico disso tudo, mas ainda na ilha onde Caliban e Próspero lambem as últimas feridas? Ou já nem será bem isto por milagre de um denominador comum em projeto político estruturado?

Onde há tantas perguntas para poucas respostas não resisto a citar Eugénio Lisboa na intervenção sobre “O particular, o nacional e o universal” que fez para o Colóquio de Paris em torno das “Literaturas africanas de língua portuguesa: à procura da identi‑dade, individual e nacional”: “Costuma dizer ‑se que órgão que se sente é órgão doente. E eu começo a ser de opinião que esta malhação sistemática, ulti‑

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mamente feita, no problema das identidades nacio‑nais, pode acabar por ter efeitos mais negativos do que positivos. Quanto mais manipulamos a senhora menos ela nos responde. Falamos sempre demasia‑do do que não sentimos o suficiente e gabamo ‑nos sobretudo das conquistas que não fazemos. O êxito pleno antes convoca o silêncio de uma digestão satis‑feita. A busca da identidade, comandada de cima, pode muito bem assumir a forma e emitir o cheiro de um mau programa nacionalista (no pior senti‑do), para efeitos políticos de valor ético duvidoso. O mais curioso é que a identidade de um povo, assim manipulada, varia singularmente com os objetivos em vista. A cada caudilho, a identidade almejada que lhe convém. No meio de tudo isto, ao pobre do povo e ao pobre do artista fica ‑lhes o fado triste de dança‑rem conforme a música que lhes tocam, mudando de identidade como quem muda de camisa, para maior glória de quem se está marimbando para a integri‑dade de quem escreve ou para a liberdade de quem pinta”.

Judiciosas e incomodativas palavras! Aplicar‑‑se ‑ão assim em absoluto na variedade histórica de muito país ex ‑colonizado às contas consigo e o resto por esse mundo fora.

Fico ‑me pelo particular dos teus contos, por essa opção tua, minudente, de quereres iluminar o lado de sombra, só aparentemente comezinho, desta saga histórica que nos envolve. Vergados ao discurso grandíloquo é bom esta descolonização da palavra, este experimentar de estruturas narrativas, este também sentencioso — mais persuasivo do que impositivo — modo de nos recordar as pequenas verdades dos pequenos e esquecidos personagens de

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cuja soma total, derrogados do que não interessa do seu valor intrínseco, o Discurso da História se faz.

E mais não sei. Quiçá acrescentar que a litera‑tura, quando o não é, se prostitui para ser menos do que as ideologias de que se serve ou que quer servir. Que, não isenta de um substrato ético, cultural, polí‑tico também, a tua nos começa a redimir de tantas tentações redutoras dos múltiplos e entrelaçados planos deste nosso real dia‑a‑dia a descobrir ‑se mais moçambicano.

Maputo, 1o de abril de 1986.

Luís Carlos Patraquim

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Texto de abertura

O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem de si mesma. Confrontados com a ausência de tudo, os homens abstêm ‑se do sonho, desarmando ‑se do desejo de serem outros. Existe no nada essa ilusão de plenitude que faz parar a vida e anoitecer as vozes.

Estas estórias desadormeceram em mim sempre a partir de qualquer coisa acontecida de verdade mas que me foi contada como se tivesse ocorrido na outra mar‑gem do mundo. Na travessia dessa fronteira de sombra escutei vozes que vazaram o sol. Outras foram asas no meu voo de escrever. A umas e a outras dedico este desejo de contar e de inventar.

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A fogueira

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A velha estava sentada na esteira, parada na espera do homem saído no mato. As pernas sofriam o cansaço de duas vezes: dos caminhos idosos e dos tempos caminhados.

A fortuna dela estava espalhada pelo chão: tige‑las, cestas, pilão. Em volta era o nada, mesmo o vento estava sozinho.

O velho foi chegando, vagaroso como era seu costume. Pastoreava suas tristezas desde que os filhos mais novos foram na estrada sem regresso.

“Meu marido está diminuir”, pensou ela. “É uma sombra.”

Sombra, sim. Mas só da alma porque o corpo quase que não tinha. O velho chegou mais perto e arrumou a sua magreza na esteira vizinha. Levan‑tou o rosto e, sem olhar a mulher, disse:

— Estou a pensar.— É o quê, marido?— Se tu morres como é que eu, sozinho, doente e sem

as forças, como é que eu vou ‑lhe enterrar?

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Passou os dedos magros pela palha do assento e continuou:

— Somos pobres, só temos nadas. Nem ninguém não temos. É melhor começar já a abrir a tua cova, mulher.

A mulher, comovida, sorriu:— Como és bom marido! Tive sorte no homem da

minha vida.O velho ficou calado, pensativo. Só mais tarde a

sua boca teve ocasião:— Vou ver se encontro uma pá.— Onde podes levar uma pá?— Vou ver na cantina.— Vais daqui até na cantina? É uma distância.— Hei de vir da parte da noite.Todo o silêncio ficou calado para ela escutar o

regresso do marido. Farrapos de poeira demoravam o último sol, quando ele voltou.

— Então, marido?— Foi muito caríssima — e levantou a pá para

melhor a acusar.— Amanhã de manhã começo o serviço de covar. E deitaram ‑se, afastados. Ela, com suavidade,

interrompeu ‑lhe o adormecer:— Mas, marido...— Diz lá.— Eu nem estou doente.— Deve ser que estás. Você és muito velha.— Pode ser — concordou ela. E adormeceram.Ao outro dia, de manhã, ele olhava ‑a intensa‑

mente.— Estou a medir o seu tamanho. Afinal, você é

maior que eu pensava.— Nada, sou pequena.Ela foi à lenha e arrancou alguns toros.

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— A lenha está para acabar, marido. Vou no mato levar mais.

— Vai mulher. Eu vou ficar covar seu cemitério.Ela já se afastava quando um gesto a prendeu à

capulana e, assim como estava, de costas para ele, disse:

— Olha, velho. Estou pedir uma coisa...— Queres o quê?— Cova pouco fundo. Quero ficar em cima, perto do

chão, tocar a vida quase um bocadinho.— Está certo. Não lhe vou pisar com muita terra.Durante duas semanas o velho dedicou ‑se ao

buraco. Quanto mais perto do fim mais se demora‑va. Foi de repente, vieram as chuvas. A campa ficou cheia de água, parecia um charco sem respeito. O velho amaldiçoou as nuvens e os céus que as trou‑xeram.

— Não fala asneiras, vai ser dado o castigo — acon‑selhou ela. Choveram mais dias e as paredes da cova ruíram. O velho atravessou o seu chão e olhou o estra‑go. Ali mesmo decidiu continuar. Molhado, sob o rio da chuva, o velho descia e subia, levantando cada vez mais gemidos e menos terra.

— Sai da chuva, marido. Você não aguenta, assim.— Não barulha, mulher — ordenou o velho. De

quando em quando parava para olhar o cinzento do céu. Queria saber quem teria mais serviço, se ele se a chuva.

No dia seguinte o velho foi acordado pelos seus ossos que o puxavam para dentro do corpo dorido.

— Estou a doer ‑me, mulher. Já não aguento levantar.A mulher virou ‑se para ele e limpou ‑lhe o suor

do rosto.

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— Você está cheio com a febre. Foi a chuva que apa‑nhaste.

— Não é, mulher. Foi que dormi perto da fogueira.— Qual fogueira?Ele respondeu um gemido. A velha assustou‑

‑se: qual o fogo que o homem vira? Se nenhum não haviam acendido?

Levantou ‑se para lhe chegar a tigela com a papa de milho. Quando se virou já ele estava de pé, pro‑curando a pá. Pegou nela e arrastou ‑se para fora de casa. De dois em dois passos parava para se apoiar.

— Marido, não vai assim. Come primeiro.Ele acenou um gesto bêbado. A velha insistiu:— Você está esquerdear, direitar. Descansa lá um

bocado.Ele estava já dentro do buraco e preparava ‑se

para retomar a obra. A febre castigava ‑lhe a teimo‑sia, as tonturas dançando com os lados do mundo. De repente, gritou ‑se num desespero:

— Mulher, ajuda ‑me.Caiu como um ramo cortado, uma nuvem rasga‑

da. A velha acorreu para o socorrer.— Estás muito doente.Puxando ‑o pelos braços ela trouxe ‑o para a esteira.

Ele ficou deitado a respirar. A vida dele estava toda ali, repartida nas costelas que subiam e desciam. Neste deserto solitário, a morte é um simples deslizar, um recolher de asas. Não é um rasgão violento como nos lugares onde a vida brilha.

— Mulher — disse ele com voz desaparecida. — Não lhe posso deixar assim.

— Estás a pensar o quê?— Não posso deixar aquela campa sem proveito.

Tenho que matar ‑te.

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— É verdade, marido. Você teve tanto trabalho para fazer aquele buraco. É uma pena ficar assim.

— Sim, hei de matar você; hoje não, falta ‑me o corpo.

Ela ajudou ‑o a erguer ‑se e serviu ‑lhe uma chá‑vena de chá.

— Bebe, homem. Bebe para ficar bom, amanhã pre‑cisas da força.

O velho adormeceu, a mulher sentou ‑se à porta. Na sombra do seu descanso viu o sol vazar, lento rei das luzes. Pensou no dia e riu ‑se dos contrários: ela, cujo nascimento faltara nas datas, tinha já o seu fim marcado. Quando a lua começou a acender as árvores do mato ela inclinou ‑se e adormeceu. Sonhou dali para muito longe: vieram os filhos, os mortos e os vivos, a machamba encheu ‑se de produtos, os olhos a escorregarem no verde. O velho estava no centro, gravatado, contando as histórias, mentira quase todas. Estavam ali os todos, os filhos e os netos. Estava ali a vida a continuar ‑se, grávida de promessas. Naquela roda feliz, todos acreditavam na verdade dos velhos, todos tinham sempre razão, nenhuma mãe abria a sua carne para a morte. Os ruídos da manhã foram‑‑na chamando para fora de si, ela negando abandonar aquele sonho, pediu com tanta devoção como pedira à vida que não lhe roubasse os filhos.

Procurou na penumbra o braço do marido para acrescentar força naquela tremura que sentia. Quan‑do a sua mão encontrou o corpo do companheiro viu que estava frio, tão frio que parecia que, desta vez, ele adormecera longe dessa fogueira que ninguém nunca acendera.

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