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T E M A  S L I   V  R E  S F  R E E T E E  S 2277 1 Centro Universitário Franciscano. R. Andradas 1614, Centro. 97.060-267 Santa Maria RS Brasil. [email protected] 2  Curso de Fisioterapia e Saúde Coletiva, Universidade Federal do Paraná. 3  Departamento de Medicina Preventiva, Universidade Federal de São Paulo. Itinerários terapêuticos de travestis da região central do Rio Grande do Sul, Brasil Therapeutic itineraries of transvestites from the central region of the state of Rio Grande do Sul, Brazil Resumo  A proposta geral deste texto é apresentar os itinerários terapêuticos de travestis do muni- cípio de Santa Maria, região central do Rio Gran- de do Sul. O estudo objetivou acompanhar as com-  plexas trajetórias percorridas pelas travestis, em busca de cuidados com a saúde. A pesquisa de cam-  po realizou-se no período compreendido de janei- ro a novembro de 2012, com travestis advindas de municípios do Rio Grande do Sul, residindo em Santa Maria no momento da pesquisa. Trata-se de metodologia qualitativa por meio de pesquisa etnográfica. Os resultados demonstraram que as interlocutoras evitam os serviços institucionali- zados de saúde, optando por outras formas de cui- dado. Destacou-se em relação a esse aspecto que, das 49 travestis que fizeram parte da pesquisa, 48  frequentavam o que denominavam de “casas de religião afro” ou “ batuque” . As interl ocutoras in- dicaram sua opção em frequentar as “casas de re- ligião afro” por identificá-las como espaços que, sem questionar as modificações corporais e sua orientação sexual, ofereciam formas de cuidado e  proteção. Este artigo pode contribuir proporcio- nando certa visibilidade às inusitadas trajetórias das travestis em busca de cuidado em saúde. Palavras-chave Travesti, Itinerário terapêutico, Cuidado, Religião Abstract The scope of this paper is to shed light on the therapeutic itineraries of transvestites from Santa Maria in the central region of the state of Rio Grande do Sul in southern Brazil. The study sought to follow the complex trajectories followed by transvestites in their quest for health care. Field research was conducted between January and  November 201 2 with transvestites from d ifferent cities in the state who were living in Santa Maria at the time. It involved qualitative methodology using ethnographic research. The results showed that the interviewees avoid institutionalized health services, opting for other forms of health care. In this respect, it is noteworthy that of the  group of 49 transvestites who were included in this study, 48 sought health care in “African reli-  gion groups” or “batuque” (“drumming”), as they refer to them. The transvestites stated that they opted for “African religion groups” as they saw them as places that were able to afford forms of care and protection, without questioning bodily changes and sexual orientation. This article may help to shed light on some of the unusual trajecto- ries of transvestites in their quest for health care. Key words Transvestite, Therapeutic itinerary, Care, Religion Martha Helena Teixeira de Souza 1 Marcos Claudio Signorelli 2 Denise Martin  Coviello 3 Pedro Paulo Gomes Pereira 3 DOI: 10.1590/1413 -8123201 4197.10852013

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1 Centro UniversitárioFranciscano. R. Andradas1614, Centro. 97.060-267Santa Maria RS [email protected] Curso de Fisioterapia eSaúde Coletiva,Universidade Federal doParaná.3 Departamento de MedicinaPreventiva, UniversidadeFederal de São Paulo.

Itinerários terapêuticos de travestis da região centraldo Rio Grande do Sul, Brasil

Therapeutic itineraries of transvestites from the central regionof the state of Rio Grande do Sul, Brazil

Resumo  A proposta geral deste texto é apresentar os itinerários terapêuticos de travestis do muni-cípio de Santa Maria, região central do Rio Gran-de do Sul. O estudo objetivou acompanhar as com-

 plexas trajetórias percorridas pelas travestis, embusca de cuidados com a saúde. A pesquisa de cam- po realizou-se no período compreendido de janei-ro a novembro de 2012, com travestis advindas demunicípios do Rio Grande do Sul, residindo emSanta Maria no momento da pesquisa. Trata-sede metodologia qualitativa por meio de pesquisaetnográfica. Os resultados demonstraram que asinterlocutoras evitam os serviços institucionali-zados de saúde, optando por outras formas de cui-dado. Destacou-se em relação a esse aspecto que,das 49 travestis que fizeram parte da pesquisa, 48 frequentavam o que denominavam de “casas dereligião afro” ou “batuque”. As interlocutoras in-dicaram sua opção em frequentar as “casas de re-

ligião afro” por identificá-las como espaços que,sem questionar as modificações corporais e suaorientação sexual, ofereciam formas de cuidado e proteção. Este artigo pode contribuir proporcio-nando certa visibilidade às inusitadas trajetóriasdas travestis em busca de cuidado em saúde.Palavras-chave Travesti, Itinerário terapêutico,Cuidado, Religião

Abstract The scope of this paper is to shed light on the therapeutic itineraries of transvestites fromSanta Maria in the central region of the state of Rio Grande do Sul in southern Brazil. The study 

sought to follow the complex trajectories followed by transvestites in their quest for health care. Field research was conducted between January and  November 2012 with transvestites from different cities in the state who were living in Santa Mariaat the time. It involved qualitative methodology using ethnographic research. The results showed that the interviewees avoid institutionalized health services, opting for other forms of healthcare. In this respect, it is noteworthy that of the group of 49 transvestites who were included inthis study, 48 sought health care in “African reli- gion groups” or “batuque” (“drumming”), as they refer to them. The transvestites stated that they opted for “African religion groups” as they saw 

them as places that were able to afford forms of care and protection, without questioning bodily changes and sexual orientation. This article may help to shed light on some of the unusual trajecto-ries of transvestites in their quest for health care.Key words Transvestite, Therapeutic itinerary,Care, Religion

Martha Helena Teixeira de Souza 1

Marcos Claudio Signorelli 2

Denise Martin Coviello3

Pedro Paulo Gomes Pereira 3

DOI: 10.1590/1413-81232014197.10852013

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Introdução

O objetivo deste trabalho é apresentar os itinerá-rios terapêuticos de travestis residentes em SantaMaria, município da região central do Rio Gran-de do Sul. Durante o trabalho de campo acom-panhamos as complexas trajetórias percorridaspelas travestis em busca de cuidados com a saú-de, em vários espaços e instâncias.

Alguns autores e autoras vêm se dedicandoaos estudos sobre as travestis1-8. Tais estudos per-mitiram ampliar o entendimento sobre numero-sos aspectos do universo destas, promovendoreflexões sobre as questões de gênero, políticaspúblicas e espacialidades. Contudo, subsistem la-cunas e indagações. Uma das lacunas recai sobrecomo as travestis percorrem os itinerários tera-pêuticos na busca do cuidado com a saúde.

Os estudos sobre itinerários terapêuticos sãorelativamente recentes. Apesar de sua potenciali-dade para a compreensão das particularidades emrelação ao cuidado em saúde, há muito que sefazer na pesquisa dessa temática no Brasil 9. Omodo de viver, delineado pelo contexto que cadasujeito está inserido, produz itinerários de cuida-dos diferenciados nas sociedades. O cuidado, emsuas variadas formas, é também mediado pelasquestões culturais.

Para compreender como as travestis percor-rem trajetórias para o cuidado é importante co-nhecer as estratégias utilizadas em seus itinerários,e as soluções encontradas para evitar espaços emque sabidamente sofrerão preconceitos e violênci-as por suas opções de gênero, por sua sexualidadee pelas modificações corporais.

As travestis desestabilizam as fronteiras degênero tradicionalmente construídas, enfrentan-do dificuldades em múltiplos cenários, sendo umdeles os serviços públicos de saúde. Como cons-troem para si uma imagem feminina (inserindoem seus corpos símbolos do que é socialmentetido como femininos), além de construir um bi-ocorpo feminino sem, no entanto, extirpar sua

genitália, as travestis desestabilizam as fronteirasde gênero e sexualidade. Tais características con-duzem a conflitos constantes já que questionama heteronormatividade. As travestis escolhempara sua identificação nomes de mulheres, geral-mente glamourosos, evitando ao máximo utiliza-rem suas carteiras de identidade oficiais comnomes masculinos, o que conduz a processos deafastamentos dos serviços públicos.

A influência do gênero nas questões referen-tes à saúde/doença pode ser percebida em mui-tas dimensões, entre as quais a definição de it ine-

rários terapêuticos e o acesso aos serviços e polí-ticas públicas10.

Utilizaremos aqui o termo “itinerário tera-pêutico” como sinônimo de busca por cuidadosterapêuticos, com o propósito de descrever e ana-lisar os caminhos percorridos por indivíduos natentativa de solucionar o seu problema de saúde,considerando as práticas individuais e sociocul-turais11.

Metodologia

Baseamos este trabalho em metodologia quali-tativa de estudo, por meio de uma pesquisa et-nográfica, na qual se adotaram procedimentosde observação participante, entrevistas em pro-fundidade e acompanhamento da vida cotidianadas interlocutoras. A opção pela investigação et-nográfica deveu-se, em parte, por sua relevânciae atualidade nas pesquisas em saúde10,12. CliffordGeertz13 argumentou que etnografia não é defi-nida pelas técnicas que emprega, como observa-ção participante e entrevistas, mas por um tipoparticular de esforço intelectual que ele descrevecomo uma ‘descrição densa’. Esta descrição, tipi-camente obtida por meio de imersão na vida diá-ria do grupo pesquisado, focaliza-se nos deta-

lhes e informações subjacentes, almejando expli-car modos de vida e descrevendo padrões de sig-nificado que informam suas ações, assim comoos tornam acessíveis.

Realizamos a pesquisa de campo no períodode janeiro a novembro de 2012. Coletamos da-dos mediante observações cotidianas e anotamosas entrevistas em diário de campo. Os dados,registrados no caderno de campo, permitem cap-tar informações que as entrevistas e máquinasfotográficas não alcançam14.

Gravamos as falas e, logo após, transcreve-mos, para proporcionarem uma reflexão críticados dados coletados. Abordamos ao longo dapesquisa 49 travestis, residentes no município de

Santa Maria (RS). Após a leitura exaustiva dastranscrições, agrupamos os dados em categoriase estes foram analisados tematicamente de acor-do com os objetivos do estudo. A análise antro-pológica foi resultado de todas as etapas de pro-dução do conhecimento. O olhar (a observação),o ouvir (as entrevistas) e o escrever (a análise e ainterpretação dos dados) como atos cognitivossão disciplinados no horizonte da Antropologia15.

Informamos a todas as interlocutoras sobreos objetivos do estudo e estas assinaram o Termode Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto

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obteve a aprovação do Comitê de Ética em Pes-quisa da Universidade Federal de São Paulo (UNI-FESP). Respeitamos a decisão voluntária de dese- jar ou não participar da pesquisa, bem como ga-rantimos o anonimato e, para isso, se utilizarampseudônimos para identificar as participantes.

Resultados e discussão

A idade das interlocutoras variou entre 18 e 53anos tendo como escolaridade predominante oensino fundamental incompleto. As travestis eramprovenientes de municípios do Rio Grande do Sul,entre eles: Pelotas, Bagé, Cacequi, Itaqui, Cruz Alta,Porto Alegre, Santa Cruz, Ijuí, Rio Grande, SãoGabriel, Campo Bom e Santa Maria. Com rela-ção à atividade laboral, três participantes destapesquisa atuam como mães de santo, uma comopai de santo, duas são diaristas, uma realiza ser-viços gerais na rodoviária, uma é presidente daOrganização Não Governamental (ONG) Igual-dade, e as demais são profissionais do sexo.

A ideia inicial deste estudo foi acompanharas travestis durante seus atendimentos nos servi-ços institucionalizados de saúde. E assim proce-demos por meses. No entanto, no decorrer dapesquisa, a experiência etnográfica transportou-

nos para outro caminho, trilhado também embusca de cuidados, inclusive com a saúde: o “ba-tuque” ou, como elas denominam, a “religiãoafro”, como será mostrado no texto.

Essa opção das travestis e esses itineráriossugerem que embora a biomedicina detenha omonopólio legitimado das soluções curativasreferentes às questões de enfermidade nas socie-dades ocidentais contemporâneas, não se consti-tui como sendo a única forma de pensar o pro-cesso saúde-doença. Essa dimensão encontradaem nossa pesquisa também foi relatada por Luz16.Conforme esta autora, particularmente as po-pulações vivendo em condições de grandes desi-gualdades sociais, buscam itinerários de cuida-

dos alternativos, como é o caso, por exemplo, dereligiões afro-indígenas. Fato este que não atin-giu apenas o Brasil, mas, o conjunto de paíseslatino-americanos, principalmente a partir dadécada de 1980.

Há uma persistente opção por descrever ositinerários de maneira a pensá-los como relacio-nados ao trânsito de sujeitos pelos aparelhos ofi-ciais de saúde. Esta seria apenas parte de umatrajetória que é mais complexa, como pretende-mos demonstrar. Compreender os itinerários deforma parcial, vinculados somente às instâncias

médico-hospitalares, acaba por indicar uma re-lação de exclusividade entre doença/cura e bio-medicina17.

Com o propósito de elucidar os itineráriosterapêuticos aqui seguidos, organizamos o textoda seguinte forma: primeiro, a trajetória da cons-trução travesti e as primeiras dificuldades encon-tradas, em seguida relatamos o itinerário de cui-dados nos espaços percorridos por elas, taiscomo os locais públicos e também os serviçospúblicos de saúde. Por fim, apresentamos as con-siderações a respeito do que foi exposto pelasinterlocutoras sobre o itinerário no “batuque”.

A trajetória da construção travesti

Das interlocutoras que participaram da pes-quisa, a maioria divide aluguel com outras tra-vestis. Raramente residem com familiares, prin-cipalmente as que exercem a função de profissio-nais do sexo. É uma constante o perambular dastravestis, de um município para outro, em buscade moradias. Após situações que envolvem a ex-pulsão ou mesmo a rejeição das interlocutorasda família biológica, as pensões de travestis sãoas mais procuradas.

Ao buscarem formar “casas” de convivênciaentre travestis, elas criam novos laços muitas ve-

zes ampliando a noção de família: ali elas constro-em relações de afeto, sendo identificadas por ma-nas. A fala de Jeny, 20 anos, esclarece esta novarelação familiar quando expõe que somos manasagora, cuidamos uma da outra, como família mes-mo. Essa família nasce amiúde em contraste comas experiências da família nuclear, como indica orelato de Jessye, 18 anos, que apontou uma situa-ção de violência vivenciada pela maioria do grupo:

 Meu pai batia muito a minha cabeça na pare-de. Quando eu tinha uns cinco anos ele dava socosna minha cabeça e jogava o meu corpo em cimadas coisas, pois já percebia que eu era gay, e nãoaceitava. Era bem ruim e eu chorava muito. De- pois ele aceitou mais. Disse até que eu podia ser 

 gay, mas usar roupas de mulher, nem morta! Umtempo depois comecei a me vestir de mulher. Umdia esqueci-me de tirar as roupas da minha mãeque estava usando. Quase me matou de tanto ba-ter. Ele percebeu que eu já estava travesti. Então eusaí de casa e fui morar com outras travestis, por-que não aguentava mais! 

Morar junto em uma pensão implica em al-gumas regras que devem ser respeitadas. O gru-po sempre comenta a drogadição, e quando al-gumas fazem o uso do crack não permanecemnas residências. O cuidado com o crack explica-

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se em falas como quem é pedreira sempre acabaroubando e morar junto vira um problema. O alertasobre os efeitos do crack vem sempre das maisexperientes que já assistiram ou mesmo vivenci-aram situações envolvendo o uso de drogas, ge-rando situações de violência ou criminalização.Provavelmente, o que mais sensibilize para evitaro uso da droga, é que ela causa um descuido como corpo, afetando a falta de clientela para as quetrabalham como profissionais do sexo. Outrofator importante é o relato de histórias de difi-culdade de largar o vício, ocasionando sérios pro-blemas de saúde. De qualquer forma, a estética,o corpo, está no centro das preocupações, supe-rando o cuidado mais diretamente relativo à es-fera biomédica.

É nesse convívio com outras travestis que seampliam as trajetórias para o cuidado com asmudanças corporais. As trocas de informaçõesentre elas conduzem à realização de constantesalterações na sua aparência física. Para as altera-ções, há um movimento intenso na região a pro-cura de uma “bombadeira”. Estas, em geral, sãotravestis mais velhas, que adquiriram experiên-cia em injetar silicone industrial. A utilização dehormônios e silicone é amplamente debatida etodas conhecem seus “problemas” e “riscos”. Al-guns motivos são apontados para o silicone in-

dustrial ser a primeira opção: facilidade de aces-so, custo menor do que cirurgia, não serem jul-gadas pelo procedimento e também pelo fato deo líquido “se movimentar” no corpo e ser maisfacilmente moldado (principalmente nos quadrise pernas). Durante as sessões de silicone, perma-necem deitadas em média de 8 a 12 horas, depen-dendo da quantidade e local em que este seráinjetado. Nestas ocasiões são amarradas commeias de nylon ou ataduras de crepom próximasaos locais em que serão injetados o silicone, paraevitar que escorra para outra parte do corpo. Aotérmino destas sessões, os orifícios que resulta-ram da retirada das agulhas são ocluídos comcola super bonder , impedindo que derrame para

fora da pele. É necessária a utilização de pressãona seringa para a entrada do silicone no corpodas travestis. Todas garantem não sentir dor.Relatam apenas tonturas e dificuldades para osdeslocamentos durante os longos períodos deinserção do silicone em seus corpos, como revelaa fala de Ashley, 29 anos:

 A gente sabe que é arriscado, portanto a culpanunca vai ser da bombadeira se acontecer algumacoisa. Se morrermos em uma sessão para bombar ela pode jogar o corpo em qualquer lugar escondidoe ninguém vai lá brigar. O importante é o corpo

 ficar belo. Difícil é aguentar o tempo de repouso para mostrar o corpo modelado. Porque precisa ficar deitada no mínimo uns 15 dias para ele [sili-cone] endurecer e poder sair de casa. Quando nãoaguentamos respeitar este tempo, as vezes o silico-ne escorre. Muitas têm problemas para conseguir sapato quando ele desce para os pés, por exemplo. Não dói nada, mas quando chega no final já esta-mos cansadas, ficamos tontas. É difícil para ir aobanheiro também. Se sentarmos no vaso, fica amarca da tampa, pois o líquido se move. Precisa-mos fazer tudo em pé, sempre com o chuveirinhodo lado para limpar depois. Mas vale a pena, ocorpo vai ficando lindo. (Ashley)

Todo esse movimento e deslocamentos sãopara produzir transformações no próprio cor-po. A utilização de hormônios, de silicone, cirur-gias, maquiagens cada vez mais sofisticadas, aretirada dos pelos, o preparo dos longos apli-ques de cabelos, a colocação de lentes de contatocoloridas, formas de esconder o pênis, em pro-cessos de deslocamento de gênero e sexualidade.As travestis revelam que esta transformação cor-poral geralmente provoca preconceito e violêncianos caminhos por onde passam, como sugereFrancy, 25 anos: quando as pessoas cruzam por nós na rua apontam, gritam, se espantam e, às ve-zes, atiram coisas. Não suportam ver um corpo

diferente. No sentido de evitarem a violência, uti-lizam de táticas de cuidados nas trajetórias per-corridas, como exposto na sequência.

Itinerário de cuidados

nos espaços percorridos pelas travestis

As travestis elaboram táticas específicas decuidado nos espaços pelos quais circulam. Apre-sentam, no seu itinerário, formas de cuidado querepresentam um conjunto de performances quese flexibiliza ao longo dos espaços percorridos. Anoção de espaço, aqui entendido também comoespaço social, vai além da concepção de distânci-as e de identificação de características de funcio-

nalidade e de convivência. Trata-se de uma rela-ção intrínseca entre o espaço configurado e seupróprio corpo, que estabelece limites e possibili-dades de existência e socialidade. Esta íntima per-cepção espacial traduz-se em um aprendizadocompartilhado entre o grupo. Importante desta-car que a noção de espaço amplia-se, incluindo oseu próprio corpo, que vai sendo moldado emodificado durante o trajeto, como sugere a ex-periência de Katy.

Ao citar os locais permitidos para o trânsitolivre das travestis, Katy, 25 anos, mãe de santo,

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salienta que na vida, a travesti sabe que pode esco-lher viver entre três salões: o salão de beleza, o salãodos orixás ou o salão da rua, que é a prostituição.No momento que faz esta revelação, explica que,assim como outras orientações, este ditame éaprendido com as mais experientes, desde o mo-mento que começam suas transformações cor-porais. O início da tomada de hormônios femini-nos, a utilização de silicone, o cuidado com o cres-cimento dos cabelos e a retirada dos pelos vaitransformando o corpo das travestis e ao mesmotempo limitando ou não os trajetos por elas per-corridos. Há espaços nos quais podem exibir todoseu glamour  (boates, bares, desfiles de carnaval)bem como ambientes nos quais é necessário tran-sitar discretamente ou mesmo evitar.

Como foi mostrado no ítem anterior, no sen-tido de esquivarem-se de dificuldades nos seuspercursos, é comum as travestis, além de aban-donarem o convívio familiar, evitarem o trânsitonos espaços públicos durante o dia: a rua, a far-mácia, o mercado, a padaria e, muitas vezes, osserviços de saúde institucionalizados. Para tanto,utilizam-se dos serviços de tele entrega para osprodutos farmacêuticos, visita de vendedoras deprodutos de beleza no domicílio, a utilização detáxi com motorista de referência para os deslo-camentos necessários e assim por diante. Uma

alternativa utilizada é a venda de alimentos e be-bidas na própria pensão das travestis, como es-clarece Ashley: montei um mercadinho dentro decasa, assim evitamos sair na rua.

Percebemos que existem espaços nos quaispodem exibir todo seu  glamour   (boates, bares,desfiles de carnaval) bem como ambientes nosquais é necessário transitar discretamente (locaispúblicos). Observamos também que quando pre-cisam percorrer itinerários nos quais já sabemque sofrerão rejeição, modificam a postura, uti-lizando roupas discretas para circularem com me-nos obstáculos, evitando principalmente a vio-lência.

Como resultado de situações de violência vi-

venciadas no seu caminho, comumente surgemferimentos que necessitam de cuidados. Essas si-tuações são comuns, fazendo parte do cotidianodas travestis. Durante o trabalho de campo, porexemplo, ocorreu uma tentativa de homicídio,com duas travestis, gêmeas. O relato de Whitney,22 anos, abaixo, identifica trechos deste episódio:

Saímos com dois caras depois de uma boate.Quando perceberam que éramos travestis, nos tran-caram no carro e agrediram muito, com alicate echave de fenda. A Natallye conseguiu quebrar osvidros e fugir antes. Correu e pediu socorro. O se-

 gurança da boate chamou a polícia. Fomos todos para a delegacia. Mas, mesmo com testemunha,acabamos como bandidas. Ninguém acredita emtravesti. Depois, precisamos ir até o serviço de saú-de. Só colocaram umas gazes nos machucados. Mesmo explicando que estava doendo muito, nãoderam remédio. (Whitney)

Apesar das histórias de inadequação do aten-dimento do serviço público de saúde, as situa-ções de violência enfrentadas levam as travestis aincluírem este itinerário no seu roteiro de cuida-dos, dos quais não conseguem se esquivar, mes-mo quando esses serviços ampliam a violência,como será mostrado a seguir.

O itinerário nos serviços públicos de saúde

No município de Santa Maria não há serviçoespecializado para atender a diversidade, como éo caso de Uberlândia, em Minas Gerais18, e deSão Paulo19. Quando procuram os serviços pú-blicos de saúde, de ordinário recorrem ao Pron-to Atendimento do município, para o cuidadocom ferimentos, ou no Centro de Testagem eAconselhamento, para a realização de diagnósti-co e tratamento para as Doenças SexualmenteTransmissíveis (DST). Atender à demanda dapopulação com dificuldades agravadas pelos

problemas sociais como o estigma nos serviçostem sido um grande desafio para a saúde públi-ca. Tais dificuldades favorecem o redireciona-mento de trajetórias dos usuários em busca decuidados alternativos.

Durante a realização da pesquisa foram fre-quentes as observações sobre a dificuldade parao atendimento a contento nos serviços públicosde saúde, como se nota na fala de Kelly, 30 anos: Na saúde não é diferente do dia a dia. Tratam a gente como não humanos, por isto eu não vou aoSUS, de jeito nenhum. Se preciso de atendimento,vou onde posso pagar. Pagando sempre respeitammais. SUS, nem pensar .

Autores como Benedetti3 e Pelúcio4 aponta-

ram que a saúde das travestis é relegada à auto-medicação ou à ação de “bombadeiras”. As nar-rativas de nossas interlocutoras sustentam umabusca por redirecionar as trajetórias sempre quepossível, procurando, muitas vezes, a respostapara o cuidado com sua saúde nos serviços par-ticulares. Elas percebem, desde a primeira tenta-tiva, uma barreira no atendimento, que já come-ça pela sua identificação:

Outro dia fui fazer meu teste anti-HIV e a salaestava cheia de gente. Todo mundo já olha atraves-sado, é como se tu já tivesse [aids] , entende? Deixa-

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ram a porta aberta durante o atendimento. Le-vantei constrangida e tentei fechar a porta. Disse-ram para eu deixar a porta aberta. Pedi que colo-cassem meu nome de mulher no prontuário. Masque nada! Passei o maior constrangimento quandome chamaram pelo nome de homem. Fiz de contaque não era comigo e saí disfarçada. Mas não adi-anta. Quem está ali percebe que é tu. Além disto, é um descaso, não resolvem o problema. Imagina, seo meu teste tivesse dado positivo para o HIV eunão iria mais lá. É por estas e outras que as pessoasnão se tratam. (Ashley)

O relato de Ashley evidencia que sua experiên-cia aponta para profissionais de saúde que nãoatentam às especificidades desses sujeitos, desco-nhecendo as iniciativas governamentais na ten-tativa de respeitar a diversidade dos usuários.Lionço20 alegou uma ação importante para a pro-moção do acesso universal ao sistema de saúdecom a introdução do direito ao nome social naCarta dos Direitos dos Usuários da Saúde, emquaisquer serviços dispostos na rede pública desaúde. Com o objetivo de estruturar uma Políti-ca Nacional de saúde para a população LGBT, ogoverno federal lançou o “Programa Brasil semHomofobia”. Outras ações dentro deste progra-ma referem-se à produção de conhecimentossobre a população LGBT e à capacitação de pro-

fissionais de saúde21

. Visando a cumprir os prin-cípios da universalidade, equidade e integralida-de que orientam o SUS, no ano de 2008, o Minis-tério da Saúde apresentou a Política Nacional deSaúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Tra-vestis e Transexuais22. A área da saúde coletiva, aqual teve um papel determinante na concepção eimplementação do Sistema Único de Saúde, temagora função importante no sentido de fornecerevidências científicas para a elaboração e avalia-ção das políticas públicas23.

Todavia, neste estudo, observamos um hiatoentre o que consta no texto das políticas e a prá-tica nos serviços. A fala de Jhesyka, 25 anos, re-trata esta problemática:

Quando estamos trabalhando no ponto de pros-tituição e somos agredidas na rua, procuramos oserviço de saúde para levar pontos, tomar remédioou outra coisa qualquer. Mas, às vezes é melhor ir  para casa e curar sozinha. Em qualquer serviço desaúde que a gente vá nos chamam pelo nome mas-culino. Mal olham para nós e ainda ficam debo-chando. Parece que não somos gente. Então, é me-lhor aguentar a dor em casa.

A situação apontada por Jhesyka demonstrao afastamento do serviço de saúde. Estas situa-ções sugerem uma reflexão sobre as políticas

públicas, as quais atuam em uma gramática bi-nária, com políticas de “saúde da mulher” e “saú-de do homem”24. As transformações corporais,a inadequação entre nome nos documentos e aaparência física parecem também transformaresses corpos estranhos, ambíguos e que não seconformam em corpos precários. As travestis,ao evitarem o serviço de saúde, mobilizam umcuidado de maneira a se protegerem das condi-ções de “vidas precárias”: vidas que experimen-tam terrenos hostis, cuja socialização é marcadapelo rechaço social. O termo vida precária de JButler25 nos conta sobre todas e todos que apren-deram a compreender-se a partir da injúria daexperiência de serem ofendidas por estarem sobsuspeita ou serem comprovadamente sujeitosfora da norma heterossexual.

Essas vias precárias, no entanto, constroempara si novos espaços e novas formas de circula-ção. Acompanhando as travestis nesses comple-xos caminhos, deparamo-nos com a busca decuidados que extrapolam os serviços oficiais desaúde. As travestis têm como espaço mais fre-quentado em busca de cuidados as casas de san-to, aspecto que será explorado com mais deta-lhes a seguir.

O itinerário na “religião afro”, o “batuque”

A etnografia mostrou que as travestis optampor outras formas de cuidado: as “casas de reli-gião afro”, “casas de santo” ou “batuque”. Estu-dos26-34 demonstraram que as religiões afro-bra-sileiras possuem especificidades ao longo do ter-ritório brasileiro, entretanto, as interlocutorasdesta pesquisa falavam genericamente de “reli-gião afro”. No decorrer do trabalho de campo,as nossas interlocutoras argumentaram sistema-ticamente que a proteção dos orixás, caboclos,pretos velhos, Pombagiras e Exus é fundamentalnas suas vidas. Indagada sobre o assunto, Nicky,32 anos ponderou que trazem saúde, proteção e progresso.

Para dar um panorama daquilo que se deno-mina religião afro-brasileira, Ari Pedro Oro32 di-vide essas religiões em modelos de três expressõesritualísticas: a) A primeira cultua os orixás e pri-vilegia os elementos mitológicos, simbólicos, lin-guísticos, doutrinários e ritualísticos das tradi-ções banto e nagô. Neste grupo estão o candom-blé da Bahia, o xangô do Recife, o batuque do RioGrande do Sul e a casa de mina do Maranhão. b)A segunda, parece ter surgido a partir do can-domblé, mesclando tradições e adaptando-se àvida urbana no Brasil. Neste grupo está a ma-

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cumba e, de acordo com as variações regionais,também se denomina de quimbanda, linha ne-gra, magia negra, umbanda cruzada e linha cru-zada. c) A terceira é a umbanda composta porelementos das tradições religiosas católica, africa-na, indígena, kardecista, oriental. Sobre as religi-ões afro-brasileiras no Rio Grande do Sul, Cor-rea27 e Oro30,35 vêm desenvolvendo trabalhos im-portantes. E sobre batuque no Rio Grande doSul, Correa28 delimitou bem suas especificidades.

Um ponto considerado fundamental para aescolha do “batuque” como forma de cuidado éa maneira como são não apenas recebidas, mas,além disto, aceitas, respeitadas e valorizadas, comosalienta Katy. As interlocutoras explicam que nosterreiros de pais e mães de santo não questionamnossa forma de ser, somos aceitas assim, do nosso jeito e isto faz toda a diferença, como ressaltouLolla, 22 anos. Um dos indícios de como as tra-vestis eram acolhidas nas “casas de santo” podeser observado no fato de que das seis “casas desanto” que fizeram parte do itinerário desta pes-quisa, em quatro delas o pai de santo ou a mãede santo eram travestis.

A experiência com o “batuque” deve-se a múl-tiplos fatores. Segundo as interlocutoras, algunsdeles são: tradição da família nuclear ( Minha avó paterna era de Salvador e também era de batuque);

busca de soluções para problemas do cotidiano(quando estou triste vou ao terreiro conversar commeu pai de religião); procura por um amor (algu-mas  travestis vêm na religião afro para arrumar marido); e, proteção contra a violência ( pedimos para o nosso pai de santo nos proteger das agressõesna rua). Pedir por saúde também é comum.

A terapêutica religiosa constitui uma das al-ternativas de cura, cuja adesão por parte de seusseguidores é influenciada por experiências indivi-duais ou coletivas de sua eficácia e/ou pela fideli-dade a uma religião que regula a vida em geral,incluindo as condutas relativas ao cuidado com ocorpo e com a saúde36. A maioria das religiões e,entre elas, as religiões afro-brasileiras, oferece for-

mulações para lidar com as aflições. Vasconce-los37  argumenta mesmo que um dos principaissofrimentos que levam as pessoas a se aproxima-rem dessas religiões é a busca do alívio ou cura dedoenças. Já Magnani38

 alerta que a religião, antes

de qualquer coisa, oferece um conjunto de noçõesque constituem pontos de referência diante daimprevisibilidade da vida cotidiana.

As interlocutoras confirmaram que o cuida-do para não adoecer é importante na “religiãoafro”, narrando que trabalham mais o lado do cui-dado e da proteção e reforçam  que a única que

apoia e cuida das travestis é o batuque. Alegam quenas “casas de santo” oferecem bandejas de comidase presentes aos seus orixás, pedindo em troca saúdee proteção. Soraya, 27 anos, explica que cada umtem a sua preferência, sendo que Oxum gosta dascoisas belas como espelhos e colares, já Iemanjá re-cebe lindas flores. Para Exu levamos charutos, ci- garros e bebidas e assim por diante. Agradar osorixás na Nação, os caboclos e índios na Umban-da e os Exus na Quimbanda são formas de retri-buir o cuidado recebido nos terreiros. Algumasvezes, quando o cuidado para a saúde no “batu-que” não resolve a situação, é o próprio pai desanto que faz o encaminhamento ao serviço desaúde, conforme justifica Julye, 27 anos: sempre faço proteção com meu pai de santo para não ficar doente. Mas outro dia ele falou que eu não estavabem, que eu precisava ir ao médico. Só procurei oserviço de saúde porque foi ele quem encaminhou.

As adversidades enfrentadas na vida das tra-vestis podem induzir a busca pela segurança, pro-teção e cuidado delas na “religião afro”. Justifican-do a procura pela religião, Segato34 sugeriu que éno seio de um conturbado e denso contexto, amercê de arranjos incertos de sociabilidade e dafalta das instituições como família, escola, traba-lho que, principalmente nos meios urbanos, asreligiões afro operam como fontes estruturado-

ras de modelos de identificação, nas quais os ori-xás emergiram com a função tutelar em relação àpessoa. Mas não apenas para resolverem seusproblemas as travestis frequentam os terreiros de“batuque”. Trata-se de um quadro complexo queenvolve de uma só vez personagens os quais ma-nejam saberes míticos sofisticados e que constro-em uma gramática de gênero e sexualidade queem muito se afasta da heterossexualidade com-pulsória; reconstruções de corpos por tecnologi-as; performances rituais nas quais os corpos es-tão no centro, perfazendo um processo de evocare produzir esses mesmos corpos39.

Em Santa Maria, os pais e mães de santo di-zem que consideram os três lados: Nação, Um-

banda e Quimbanda. A pesquisa mostrou que astravestis preferem participar dos rituais da Quim-banda, nos quais reina Exu, pois é o local onde aspermite incorporar Pombagira e dançar ao somdo batuque, bem como desempenhar perfor-mances corporais. Conforme a fala de um pai desanto, as travestis já vêm mais é para o Exu. Gos-tam bem mais, porque podem receber as Pombagi-ras. Vêm vestidas de mulher, com saia de armação,usam brincos, colares.

Nas noites de sessão de Quimbanda, as tra-vestis vestem-se com roupas bem femininas e

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saem à noite, dispensando para isso sua ativida-de remunerada que geralmente é a prostituição,e dirigem-se às “casas de santo”, indo direto paraos terreiros de Quimbanda. Ao som de um batu-que que estremece as paredes, entram em transe,incorporando a Pombagira, o espírito de umamulher (e não orixá), que em vida teria sido umaprostituta, mulher capaz de dominar os homenspor suas proezas sexuais, amante do luxo, dodinheiro e dos prazeres40.

A explicação de um pai de santo reforça ocuidado ofertado pela religião: as travestis ma-tam no peito nesta parte de cuidado. Como elasnão têm a proteção que imaginam [necessitar] ter, procuram as Entidades para protegê-las. Então elavai dizer: eu tenho a Pombagira que me protege. Areligião cuida, e cuida muito! 

Ao identificarem-se com Pombagira, as tra-vestis dançam na sessão de Exu. Ali soltam largasrisadas, sendo reverenciadas pelos homens quebeijam suas mãos enquanto giram no salão. Aoobservar as travestis montadas com a sua Pom-bagira, rodando nos salões de Exu, notamos queelas não frequentam estes locais só para “arru-mar marido, cuidar da saúde e buscar proteção”.Elas estão ali para se divertir. Conforme Prandi40,Pombagira não vive só de feitiços e de trabalhos, enas festas de Exu vai para se divertir, ser apreciada

e homenageada. Nesses espaços, as travestis –corpos estranhos, vidas precárias, as quais se veemna condição de ter que reinventar a “família”, quedesenvolvem táticas de cuidados nas novas mo-radias, que têm dificuldades para circular livre-mente em espaços públicos e não se sentem aco-lhidas nos serviços públicos de saúde – têm seuscorpos, com as mudanças e contornos duramen-te construídos, no centro dos acontecimentos, emexperiências nas quais se sentem aceitas.

As “casas de santo”, então, tornam-se traje-tórias de destaque para as interlocutoras, poissão espaços que possibilitam experiências queescapam dos processos de normalização dos cor-pos. O cuidado ofertado nos terreiros permite

que as travestis escapem do modelo heteronor-mativo imposto tradicionalmente nos espaçospor onde passam, tornando-se um itinerário nosquais podem montar-se no feminino sem seremcriminalizadas e julgadas por isto.

Para Magnani38,o Exu, além de ser o orixá

que estabelece mediação entre os mundos doshomens e dos deuses, não evoca o mal, mas aambiguidade, sendo que o seu correspondentefeminino, a Pombagira, geralmente, assume a for-ma estereotipada da prostituta. Essa ambiguida-

de, presente também nas travestis, oferece algu-mas vantagens: podem montar seu corpo femi-nino na sua Pombagira, e enseja a possibilidadede serem aceitas. Talvez daí sentirem-se cuidadas.

Considerações finais

Com o objetivo geral de etnografar os itineráriosem saúde das travestis do município de SantaMaria (RS), buscando compreender como elasexperienciam as trajetórias de atendimento e cui-dado, percebemos que evitam os serviços públi-cos de saúde. Cuidar da saúde para elas, portan-to, não é um movimento em círculos neste itine-rário, em busca de resolutividade para seus pro-blemas, já que envolve outros cenários e práticasde saúde.

As travestis compreendem que saúde é algoque se constrói nos espaços da moradia, nospontos de prostituição, nos espaços públicos, nas“casas de santo”. Aquilo que definem como saú-de em muito extrapola a visão apenas vinculadaaos processos de adoecimento e mesmo aos ser-viços de saúde.

Em realidade, as raras situações em que osserviços de saúde institucionalizados fizeram parteda trajetória de cuidado e atendimento das tra-

vestis, não atingiram às suas expectativas e de-mandas e foram por elas considerados inade-quados. Uma das questões pungentes foi a for-ma de nominá-las nos serviços de saúde. Apesarde algumas travestis saberem de legislação espe-cífica que confere a elas o direito à identificaçãopelo nome social, os serviços não cumprem talprerrogativa. O desconhecimento das trajetóriasde cuidados das travestis, por parte dos serviçosde saúde, torna a situação mais complexa para oatendimento, pois relatam que profissionais desaúde estranham o cuidado com o silicone, coma utilização de hormônios e o desejo da feminili-dade da travesti.

Observamos então, a partir dessa experiên-

cia de campo, que o modo de cuidado em saúdede pessoas travestis transcende as noções de saú-de e doença exclusivamente vinculadas ao bioló-gico, assim como vai além do aparato institucio-nalizado e burocratizado do SUS. Pensar o cui-dado em saúde desse grupo requer uma amplia-ção do olhar sobre o processo saúde-doença,incorporando elementos próprios desses sujei-tos, como as modificações corporais, a vida emcoletividade e a influência das religiões afro-bra-sileiras em sua saúde, proteção e bem-estar.

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Colaboradores

MHT Souza contribuiu no desenho do estudo,na condução da pesquisa de campo, escrita e re-visão. MC Signorelli e DM Coviello contribui-ram na revisão e no referencial teórico sobre gê-nero. PPG Pereira contribuiu no desenho do es-tudo, no referencial teórico-metodológico e narevisão.

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Artigo apresentado em 02/05/2013Aprovado em 25/06/2013Versão final apresentada em 02/07/2013

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