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UMA TEOLOGIA DO EVANGELHO E CULTURA

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Nicholls, Bruce J.

Contextualização: uma teologia do evangelho e cultura / Bruce J. Nicholls;

tradução Gordon Chown. — 2. ed. — São Paulo: Vida Nova, 2013.

Título original: Contextualization: a theology of gospel and culture.

ISBN 978-85-275-0541-3

1. Cristianismo e cultura 2. Teologia - Metodologia I. Título.

13-05511 CDD-200.1

Índice para catálogo sistemático:

1. Teologia : Metodologia 200.1

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V a S coh

TRADUÇÃO

GORDON CHOWN

o. VIDA NOVA

"" Pie CJN z,X UAI.= UMA TEOLOGIA DO EVANGELHO E CULTURA

NOVA EDIÇÃO

BRUCE J. NICHOLLS

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Copyright ©1979 Bruce J. Nicholls. Título original: Contextualization: A Theology of Gospel and Culture Traduzido a partir da primeira edição publicada pela The Paternoster Press LTD. Exeter, Inglaterra, UK.

l a edição: 1983 la edição revisada: 2013

Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos reservados por SOCIEDADE RELIGIOSA EDIÇÕES VIDA NOVA, Caixa Postal 21266, São Paulo, SP, 04602-970 www.vidanova.com.br 1 [email protected]

Proibida a reprodução por quaisquer meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos, fotográficos, gravação, estocagem em banco de dados etc.), a não ser em citações breves com indicação de fonte.

ISBN 978-85-275-0541-3

Impresso no Brasil I Printed in Brazil

SUPERVISÃO EDITORIAL Marisa K. A. de Siqueira Lopes

COPIDESQUE Mariú Madureira Lopes

COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO Sérgio Siqueira Moura

REVISÃO DE PROVAS Fernando Mauro S. Pires Mauro Nogueira

DIAGRAMAÇÃO Luciana Di brio

CAPA Wesley Mendonça

Todas as citações bíblicas, salvo indicação contrária, foram extraídas da versão Almeida Século 21, publicada no Brasil como todos os direitos reservados por Sociedade Religiosa Edições Vida Nova.

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SUMÁRIO

1. Fatores culturais e supraculturais na comunicação do evangelho 7

2. Padrões no movimento da contextualização para o sincretismo 25

3. Compreendendo a teologia bíblica 51

4. A dinâmica da comunicação transcultural 73

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FATORES CULTURAIS E SUPRACULTURAIS NA COMUNICAÇÃO DO EVANGELHO

ma das maiores crises da nossa era é o colapso das comu- nicações. À medida que o mundo se torna uma comuni-

dade global, pessoas de culturas nitidamente diferentes são forçadas a viver juntas, repartir os mesmos recursos naturais e humanos e criar comunidades culturalmente pluralistas. Isso causa tensões na comunicação transcultural, seja nos guetos deprimentes de Chicago, seja nas comunidades multirraciais que lutam em prol da sua identidade e da justiça em Londres e Birmingham. Isso também se aplica a Nairóbi, Singapura e São Paulo.

As viagens, a educação, a comunicação em massa, o comércio e a política ressaltam tanto oportunidades quanto dificuldades da comunicação transcultural. Para os cristãos que se comprometem a comunicar um evangelho revelado e universal a pessoas em situações culturais em rápida trans-formação, a tarefa é intensa. A consciência de que os próprios mensageiros são frequentemente produto de mais de uma

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cultura acentua as dificuldades. Os missionários nos países em

missionário ocidental que foi o primeiro a trazer o evangelho

desenvolvimento, por exemplo, precisam entender pelo menos quatro culturas diferentes: a sua própria cultura, a da Bíblia, a do

CONTEXTUALIZAÇÃO: UMA TEOLOGIA DO EVANGELHO E CULTURA

e a do povo para o qual estão levando o evangelho. Avanços rápidos nos campos da antropologia e da sociologia ajudaram a voltar o foco da atenção para fatores culturais da comunica-ção e a trazer à existência uma avalanche de teologias culturais.

SINAIS DE INSENSIBILIDADE CULTURAL

Com frequência, comunicadores evangélicos subestimam a im-portância dos fatores culturais na comunicação. Alguns se preo-cupam tanto com a preservação da pureza do evangelho e das formulações doutrinárias dele decorrentes que se tornam insen-síveis aos padrões de pensamento e comportamento culturais das pessoas às quais proclamam o evangelho. Alguns não têm tido consciência de que alguns termos, tais como Deus, pecado, encar-nação, salvação e céu, provocam impressões na mente do ouvinte diferentes daquelas que produzem na mente do mensageiro.

Até mesmo aqueles ouvintes que tiveram longo contato com missionários cristãos ou com cristãos de seu próprio país podem continuar a dar uma interpretação totalmente dife-rente ao evangelho. Por exemplo, Mahatma Gandhi era um hindu bastante familiarizado com missionários cristãos e com extenso conhecimento da fé e prática cristãs. Folheei pessoal-mente a Bíblia dele certa vez e notei quão cuidadosamente ele sublinhara versículos da passagem do Sermão do Monte (Mt 5-7). Mesmo assim, ele foi capaz de escrever: "Não con-segui ver qualquer diferença entre o Sermão do Monte e o Bhagavad Gita. O que o Sermão descreve de maneira grá-fica, o Bhagavad Gita reduz a uma fórmula científica... Hoje,

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supondo-se que eu fosse privado do Gita e me esquecesse de todo o seu conteúdo, mas tivesse um exemplar do Sermão, derivaria dele a mesma alegria que derivo do Gita".1

Além disso, alguns cristãos têm demorado a fazer uma reflexão crítica sobre o impacto da própria herança cultural e das experiências pessoais sobre seu modo de entender e inter-pretar o evangelho. Eles supõem ser possível transmitir o puro evangelho da Bíblia diretamente ao ouvinte sem que o porta-dor dessa mensagem a modifique.2 Não raro, na Índia, onde organizações missionárias têm seguido uma estrita política de boa vizinhança em termos territoriais, nota-se que há diferen-ças marcantes na vida e no testemunho de igrejas em distritos próximos, as quais refletem diferenças nas culturas religiosas das missões fundadoras.

Outro sinal dessa insensibilidade a fatores culturais é o caso comum do pregador que proclama o evangelho praticamente da mesma maneira para todos os tipos de audiência, quer seja ela composta de católicos, hindus, muçulmanos ou marxistas. Com demasiada frequência, o ouvinte é tratado como se fosse uma tabula rasa, e parte-se da suposição de que, porque o evangelho é a Palavra de Deus, "não voltará para mim vazia".

O fato de quatro culturas estarem geralmente envolvidas na comunicação do evangelho complica-se ainda mais, uma vez que, nos dias de hoje, muitas pessoas são produto de várias culturas — tradicional e moderna, religiosa e secular. Somente

iMahatma Gandhi, Young India, 22 de dez. de 1917, citado em: Truth Is God (M. K. Gandhi: Ahmedabad Navajivan Publishing House, 1995), p. 70.

2Esse problema foi discutido com certa profundidade no Congresso de Lausanne, no grupo de estudos "O evangelho, a contextualização e o sin-cretismo". Veja o relatório em Let the Earth Hear His Voice, ed. J. D. Douglas (Minneapolis: Worldwide Publications, 1975), p. 1224-1228.

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nestas duas últimas décadas é que os evangélicos têm levado essa situação a sério.

0 movimento conhecido como Crescimento de Igreja, do qual Donald McGavran é o pioneiro, tem, por meio de nume-rosos estudos de casos, exigido uma nova sensibilidade para fatores culturais que contribuem ou atrapalham o crescimento da igreja e o discipulado das nações. Por que a igreja na Coreia, por exemplo, cresceu praticamente do zero, no começo do século 20, para quinze por cento da população, com mais de 600 mil novas adesões por ano, ao passo que no país vizinho, o Japão, a comunidade cristã total é de aproximadamente um por cento da população? Por que na índia, por exemplo, mais de sessenta por cento da população da Nagalândia é cristã, ao passo que no Rajastão apenas 0,1 por cento da população é cristã? Reformulando a pergunta: Por que algumas pessoas resistem ao evangelho mais do que outras?

O Relatório de Willowbank, oriundo da Consulta sobre o Evangelho e a Cultura, realizada nas Bermudas, em 1978,3 chamou a atenção para duas barreiras culturais à comunicação eficaz do evangelho. A primeira barreira, segundo declara o documento, é que "Às vezes as pessoas resistem ao Evangelho não por pensar que ele é falso, mas por perceber que é um ameaça à sua cultura, especialmente à base da sua sociedade, e à sua solidariedade nacional e tribal".4 O relatório ressalta que, até certo ponto, isso é inevitável, pois Jesus Cristo é tanto um agitador quanto um pacificador que exige lealdade total. Os judeus do primeiro século certamente viam o evangelho

'Patrocinado pelo Grupo de Educação e Teologia de Lausanne em Willowbank, Bermuda, 6-13 janeiro, 1978.

4The Willowbank Report: Lausanne Occasional Papers, n. 2 (Wheaton: Lausanne Committee for World Evangelization, 1978), p. 13.

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como uma ameaça ao seu judaísmo helenístico. Quanto mais sofisticada é a cultura de hoje, mais provável que semelhante ameaça seja sentida. Ao mesmo tempo, o relatório observa: "Há aspectos de cada cultura que não são incompatíveis com o senhorio de Cristo e que, portanto, não precisam ser con-frontados nem descartados, mas, pelo contrário, preservados e transformados". A capacidade de perceber essa distinção e de aceitar fatores culturais que talvez sejam contrários àqueles que o próprio mensageiro traz consigo varia enormemente de uma agência missionária ou igreja para outra.

A segunda barreira à comunicação do evangelho é que ele é frequentemente apresentado às pessoas por meio de for-mas culturais estrangeiras. O relatório declara: "Nos casos em que os missionários trazem consigo modos estrangeiros de pensar e de comportar-se, ou atitudes que transmitam supe-rioridade racial, paternalismo ou preocupação com coisas materiais, a comunicação eficaz será obstruída".5 Esse empe-cilho não se limita à primeira pessoa que traz o evangelho, mas frequentemente é perpetuada pela igreja nacional, a qual, por uma questão de insegurança, procura manter o status quo e assim perpetua as mesmas barreiras culturais. Quando esses equívocos culturais são cometidos em conjunto, o problema é agravado. A imagem do cristianismo como uma religião estrangeira, ocidental, exclusiva de homens brancos, é hoje um dos obstáculos mais sérios à evangelização eficaz na África e na Ásia. O islamismo na África tem procurado fomentar essa imagem do cristianismo e apresentar sua própria imagem como uma religião dos negros, algo que pertence à África.

O chamado a uma sensibilidade maior na comunicação transcultural é um chamado à paciência em compreender as

Ibid.

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pessoas; à humildade ao seguir a trilha do discipulado e um chamado a se engajar com amor nas realidades da vida coti-diana das pessoas. É ter a mente de Cristo, que renunciou a sua glória e posição, identificou-se com as pessoas em sua huma-nidade e foi um servo sofredor até a morte.

A CULTURA: UM ENREDO PARA A VIDA

Na mente de muitas pessoas, a palavra cultura está associada a atividades tais como teatro, música, arte, poesia, literatura; uma pessoa culta é considerada alguém que adquiriu um co-nhecimento requintado dessas atividades e leva uma vida de sofisticação e boa etiqueta segundo os ideais da sociedade. Essa definição popular é por demais estreita, pois a cultura abrange a totalidade da vida. Nas palavras de Louis Luzbetak: "A cultura é um enredo para a vida. É um plano segundo o qual a sociedade se adapta ao seu ambiente social e ideal".° O termo cultura em si é um conceito abstrato. Sempre deve ser concebido como envolvimento na vida. O professor John S. Mbiti, na Assembleia Pan-Africana de Liderança Cristã, em Nairóbi, 1976, forneceu uma definição prática de cultura como "padrão de vida huma-no em resposta ao ambiente em que o ser humano se encontra". Tal padrão se expressa sob formas fisicas, tais como agricultura, artes, tecnologia; sob a forma de relações entre seres humanos, tais como instituições, leis, costumes; e sob a forma de reflexões sobre a realidade total da vida, tais como linguagem, filosofia, religião, valores espirituais, cosmovisão.7

°Louis J. Luzbetak, The Church and Cultures (South Pasadena: William Carey Library, 1970), p. 61.

'John S. Mbiti, "Christianity and African Culture", Journa/ of Theology of South Africa (setembro de 1977), p. 26.

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FATORES CULTURAIS E SUPRACULTURAIS NA COMUNICAÇÃO DO EVANGELHO

O comportamento cultural não é algo biologicamente transmitido de uma geração para outra. Cada geração deve aprendê-lo com a geração anterior. É a soma total das atitu-des e padrões comportamentais aprendidos por determinada comunidade. O termo enculturação é empregado em referên-cia ao processo mediante o qual as pessoas aprendem o estilo de vida da sua sociedade. Esse processo ocorre por meio da instrução direta e consciente dada pelos pais, mestres ou mais idosos. É aprendido pela observação e imitação deliberadas, como quando a criança copia os adultos na vida cotidiana. É aprendido também pela imitação e assimilação inconscientes. Pelo fato de ser adquirida, a cultura está em constante trans-formação, é relativa. Quando a mudança é mais rápida do que a capacidade de a comunidade adaptar-se a ela, podemos falar propriamente de "choque cultural".

G. Linwood Barney forneceu um modelo proveitoso acerca da organização desse conhecimento adquirido.' Ele sugere que cada cultura é composta de uma série de camadas, entre as quais a mais profunda consiste em ideologia, cosmo-logia e cosmovisão. Uma segunda camada, estreitamente rela-cionada e provavelmente derivada desta última, é a dos valores. Dessas duas camadas anteriores deriva-se uma terceira, a camada de instituições como casamento, lei e educação. Essas instituições formam uma ponte para uma quarta, a camada superficial dos artefatos materiais, comportamentos e costu-mes observáveis. Essa camada superficial é facilmente descrita e ainda mais facilmente alterada. A partir desta, cada camada

'G. Linwood Barney. Uma edição revista e inédita de "The Supra Culture and the Cultural: Implications for Frontier Missions", in: The Gospel and Frontier Peoples, ed. R. Pierce Beaver (South Pasadena: William Carey Library, 1973).

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da cultura é mais complexa e abstrata, sendo mais difícil defi-nir os relacionamentos funcionais entre elas. Desse modo, a cultura é um todo integrado comum, sistemático e funcio-nal, algo que Barney chama de "orientação cognitiva com-partilhada" do conhecimento comum. Nota-se que os níveis correspondem, grosso modo, ao padrão de Mbiti: o físico, o inter-humano e a reflexão sobre a totalidade da vida. Todo modelo tem suas limitações, e este, concebido como uma sucessão de camadas, não demonstra de forma satisfatória a interação de cada nível com os demais como sistema dinami-camente operante. Talvez um modelo melhor fosse uma esfera, na qual cada segmento ficasse próximo dos demais ou ainda uma pirâmide que tivesse como base invisível a cosmovisão, e os valores, as instituições e o comportamento observável como os três lados da pirâmide em mútua interação.

A religião, como um fator humano na cultura, influencia cada uma dessas camadas ou desses segmentos, e é influenciada por eles. A influência dominante da religião nessa pluralidade de segmentos é especialmente evidente nas religiões das socie-dades pré-letradas ou primitivas, tais como as culturas animis-tas.9 No entanto, é igualmente fundamental para as grandes religiões ético-filosóficas, como o hinduísmo, o budismo e o confucionismo, e para as religiões proféticas, como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo.

Nas culturas seculares, especialmente naquelas que se-guem uma ideologia claramente definida, como o marxismo, o fator religioso ou é submetido a outros, ou é um ponto fo-cal de reação que dá coerência ao comportamento cultural

9Sir Norman Anderson (ed.), The World's Reliçions, 4. ed., (Londres: Inter Varsity Press, 1975), p. 11-48.

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como um todo. É significativo que o marxismo na Rússia e na China não tenha conseguido eliminar o fator espiritual da religião. Parece haver uma onda crescente de espiritualidade, especialmente entre a juventude da Rússia. No caso da China, em que as crenças religiosas tradicionais têm sido reprimidas com rigor, o anterior componente cultural da obsessão por astrologia, quiromancia e superstição acerca do mundo dos espíritos parece estar novamente se reafirmando, a despeito da contínua doutrinação de orientação materialista e mecanicista promovida pelos governantes políticos. O pressuposto cristão é que os seres humanos são seres espirituais e morais; por isso, 4

nenhuma cultura imposta é capaz de reprimir esses fatores in-definidamente. Nesse sentido, a cultura é um macrocosmo do homem espiritual, o qual reage a seu ambiente do interior da corrente histórica de sua continuidade cultural.

Qualquer comunicação transcultural eficaz deve levar em conta cada um desses fatores. Ela envolve a totalidade do ser humano no contexto da cultura. Logo, se o evangelho ape-nas modifica ou muda o comportamento observável de uma pessoa ou de uma comunidade sem produzir uma mudança equivalente na cosmovisão fundamental, o nível da comuni-cação é superficial. De modo semelhante, incutir um novo conjunto de valores morais numa sociedade sem produzir mudanças perceptíveis nas instituições dessa sociedade é ape-nas uma conversão parcial.

A IMPORTÂNCIA DO SUPRACULTURAL

Os evangélicos levam a sério a importância do âmbito supra-cultural da realidade e sua interação com os fatores culturais humanos. Ao usarmos o termo "supracultural", referimo-nos a fenômenos culturais relacionados a crenças e comportamentos

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que têm origem fora da cultura humana. Realidades de âm-bito espiritual, como Deus e seu reino e Satanás e seu reino, são suposições aceitas pelos escritores bíblicos. Argumentos apologéticos em defesa da existência de Deus e de Satanás podem, na melhor das hipóteses, confirmar mais do que com-provar sua realidade. Em última análise, a crença na supracul-tura é um passo de fé (Hb 11.6).

Antropólogos e sociólogos seculares abordam o estudo da cultura de uma perspectiva diferente. Supõem que o mundo é um sistema fechado e que todos os fatores da formação cultu-ral, inclusive o religioso, estão contidos nesse sistema e são por ele determinados, de modo que as próprias alegações acerca do conhecimento de âmbitos supraculturais são, elas mesmas, produto do sistema.

A suposição do cristianismo bíblico é a de que Deus é o Criador e Senhor soberano que controla o mundo criado e age nele de acordo com seu próprio propósito. Os conceitos bíblicos acerca de profecias, milagres, escatologia e, sobre-tudo, acerca da encarnação de Cristo indicam a realidade dessa convicção. Portanto, o comentário de Mbiti, "Deus nos deu o Evangelho. O homem nos dá a cultura"," não é rigo-rosamente verídico. A cultura do povo hebreu não era ape-nas produto do seu ambiente, mas sim uma interação entre a supracultura e aquele povo, no contexto do seu ambiente e da sua história. A Palavra de Deus muda a direção da cultura e a transforma. O Deus dos hebreus também é o Deus dos cristãos e, portanto, a igreja, como o novo povo da aliança, é a esfera na qual as mudanças culturais mais devem ser esperadas.

Segue-se, portanto, que onde Cristo é verdadeiramente Senhor de sua igreja o enredo cultural para a vida de seus

'°Mbiti, p. 27.

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FATORES CULTURAIS E SUPRACULTURAIS NA COMUNICAÇÃO DO EVANGELHO

membros será diferente do enredo da comunidade mais ampla. Haverá um movimento progressivo em direção a uma "cul-tura cristã" que refletirá tanto a universalidade do evangelho quanto a particularidade do ambiente humano. O estilo de vida da igreja cristã da Índia, por exemplo, terá qualidades características que serão semelhantes às qualidades de uma igreja cristã de qualquer outro país. Ela manifestará o fruto do Espírito e, ao mesmo tempo, será uma igreja verdadeiramente indiana, liberta da cosmovisão, dos valores e dos costumes do hinduísmo que são contrários ao evangelho.

A linha divisória entre aquilo que é indiano e o que é hindu ou muçulmano é extremamente difícil de traçar. Somente o senhorio de Cristo e a iluminação divina do Espírito Santo sobre a Palavra de Deus escrita podem guiar o crente e a igreja a fazer essa distinção. Onde não houver interação genuína entre o supracultural e a cultura nacional da comunidade cristã, pode-se duvidar seriamente se o reino de Deus está de fato entre esse povo em qualquer sentido que seja.

A outra fonte supracultural dos fenômenos na cultura é a demoníaca. Satanás é uma realidade metafísica espiritual a quem João chama "o príncipe deste mundo" (Jo 12.31; 14.30; 16.11). E 1João 5.19 declara que "o mundo inteiro jaz no Maligno". Paulo leva a sério essa realidade supracultural. Ele fala de Satanás seduzindo os pagãos para que o adorem (1Co 10.20; 2Co 6.16) e dos descrentes sendo cegados pelo deus deste mundo (2Co 4.4). Além disso, Paulo afirma que os que andam segundo o curso deste mundo seguem "o príncipe do poderio do ar" (Ef 2.2). Mas sua metáfora mais frequente é a dos "principados e poderios" (Rm 8.38,39; 1Co 15.24-26; Ef 1.21; 3.10; 6.12; Cl 1.16; 2.10,15). Nessas passagens, a refe-rência aos poderes cósmicos demoníacos é inconfundível.

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CONTEXTUALIZACAO: UMA TEOLOGIA DO EVANGELHO E CULTURA

O Novo Testamento dá testemunho da convicção de que o mundo não é um sistema fechado, mas, sim, a arena de uma batalha entre o reino de Deus e o reino de Satanás. É tanto uma batalha nos lugares celestiais de caráter supracultural quanto no próprio mundo, batalha esta que foi manifesta de forma suprema na cruz e na ressurreição do Filho de Deus encarnado. Essa batalha não é um dualismo eterno, pois a vitó-ria decisiva já foi conquistada na cruz. Satanás foi desentroni-zado e Cristo é Senhor, mas essa vitória ainda está em processo de concretização na história e na cultura humanas, e tem avan-çado para uma culminação na volta de Cristo em glória a fim de estabelecer seu reino na terra. Essa vitória será completa na nova terra e no novo céu, tempo em que o Anticristo, a encar-nação do Maligno, será destruído. No contexto dessa volta e ressurreição finais se concretizará esta esperança: "Então virá o fim, quando ele entregar o reino a Deus, o Pai, quando houver destruído todo domínio, toda autoridade e todo poder. Por-que é necessário que ele reine até que tenha posto todos os inimigos debaixo de seus pés" (1Co 15.24,25). A totalidade da criação será libertada do cativeiro da degeneração para obter a gloriosa liberdade dos filhos de Deus (Rm 8.19-22). Uma cul-tura verdadeiramente cristã então se manifestará.

A realidade do conflito entre o supracultural e o cultural é de extrema importância para qualquer compreensão adequada das questões da comunicação transcultural. A cultura nunca é neutra. Cada cultura reflete esse conflito. A religião nunca é meramente uma questão humana, mas sim um encontro entre o reino de Deus e o reino de Satanás dentro do âmbito supracultural. Mbiti infere que a cultura é neutra quando diz: "Desta maneira, cada cultura deve considerar que é um privi-légio ter o Evangelho como convidado ou visitante. A cultura africana deve oferecer sua hospitalidade ao Evangelho como

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FATORES CULTURAIS E SUPRACULTURAIS NA COMUNICAÇÃO DO EVANGELHO

a um visitante honrado que, segundo se espera, possa ficar durante muitos séculos ou milhares de anos conforme for o caso"." Esse ponto de vista não dá atenção suficiente à intera-ção entre o supracultural e o cultural. O evangelho nunca é o convidado de qualquer cultura; sempre é seu juiz e redentor.

FUNDAMENTOS BÍBLICOS PARA NOSSA RESPOSTA AO EVANGELHO

A dinâmica da cultura como enredo para a vida deve ser en-tendida dentro de uma estrutura de conhecimento acerca da natureza humana e do seu relacionamento com o sobrenatu-ral. Por exemplo, uma concepção marxista da humanidade e da história predeterminará os valores e a interpretação atri-buídos ao comportamento cultural. A mesma coisa pode ser dita sobre um ponto de vista hindu, islâmico ou animista da natureza humana. O estilo de vida cristão começa com uma cosmovisão bíblica de Deus, da natureza e das pessoas, e o conceito cristão de comunicação depende dessa cosmovisão.

A dignidade do homem como imagem de Deus. Um conhe-cimento verdadeiro da natureza humana depende de um conhecimento verdadeiro de Deus. O Pacto de Lausanne diz: "Porque o homem é criatura de Deus, parte de sua cultura é rica em beleza e em bondade; porque ele experimentou a Queda, toda a sua cultura está manchada pelo pecado, e parte dela é demoníaca. O evangelho não pressupõe a superioridade de uma cultura sobre a outra, mas avalia todas elas segundo o seu próprio critério de verdade e justiça, e insiste na aceitação de valores morais absolutos em todas as culturas" (5 10).

O conceito bíblico de cultura é fundamentado numa com-preensão do evento da Criação como fato que deve ser aceito

"Ibid., p. 29.

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e entendido pela fé (Hb 11.3). A interpretação dada à Criação sempre é a linha divisória fundamental entre culturas. No relato bíblico da Criação, os seres humanos são aqueles que refletem a imagem de Deus tanto em sentido individual quanto cole-tivo. Deus criou os seres humanos como macho e fêmea de modo que, num sentido real, conforme notou Karl Barth, o homem e a mulher juntamente se constituem em imagem de Deus. Essa ideia de uma personalidade coletiva encontra-se presente não somente no primeiro Adão, mas também em Jesus Cristo, o novo homem que une em si mesmo todos os crentes (Rm 5.12-21). O último Adão é o homem celestial, cuja imagem será compartilhada pelo povo ressurreto de Deus (1Co 15.45-49). Portanto, a Bíblia reconhece a prioridade do indivíduo, mas faz do grupo social — a família — a unidade básica da sociedade.

Do chamado de Abraão até as cartas do Novo Testamento, Israel e mais tarde a igreja são vistos a partir do ponto de vista do parentesco e da família. A maioria das culturas reconhece, em graus variados, a estrutura institucional da família como a base da sociedade. É somente no secularismo da cultura mar-xista que, pelo menos na teoria, a família é substituída pela unidade social maior que é o Estado.

A história da Criação afirma que Deus formou Adão do pó da terra e lhe deu uma vida espiritual que transcende o sopro de vida do reino animal. Enfatiza-se a natureza do ser humano como uma unidade psicossomática, de modo que, em certo sentido, o homem como ser constituído de corpo--alma é criado à imagem de Deus. A Escritura tem pouco interesse em um espírito ou alma sem um corpo, ou em um corpo sem alma. Cada pessoa é capaz de ter relacionamentos interpessoais em profundidade tanto com o Criador quanto

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FATORES CULTURAIS E SUPRACULTURAIS NA COMUNICAÇÃO DO EVANGELHO

com seu próximo, um aspecto adicional da natureza da ima-gem divina (Gn 1.26; 5.1; 9.6; 1Co 11.7).

No curso de sua história, a igreja tem se esforçado para compreender a natureza e o significado dessa imago Dei. A igreja primitiva e as igrejas ortodoxas orientais geralmente têm ressaltado o conteúdo ôntico ou essencial da imagem de Deus em termos das categorias da razão, da liberdade, da per-sonalidade e assim por diante. Emil Brunner, em sua distin-ção entre imagem formal e imagem material, chega perto do ponto de vista ortodoxo. Por outro lado, os reformadores e os teólogos evangélicos em geral têm ressaltado que a imagem de Deus é algo primariamente relacional. Reconhecem a sin-gularidade da razão, da liberdade e da personalidade humanas, mas ressaltam a continuidade relacional do conhecimento, do amor, da justiça e da santidade da imagem original e de sua renovação em Cristo, o novo homem (Ef 4.24; Cl 3.10). A continuidade e a descontinuidade nesses relacionamentos é fundamental para um conceito cristão de cultura.

O conceito cristão de pessoa também afirma que Deus nos dotou com o dom da criatividade. Deus, o Criador, deu às pessoas o dom de criar segundo a própria imagem dele, não ex nihilo, mas sim a partir dos critérios primários de tempo e espaço do mundo criado. Na criação, Deus abençoou o homem e a mulher e lhes disse: "Frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra e sujeitai-a" (Gn 1.28). A primeira etapa desse domínio sobre a criação foi o ato de atribuir nomes à cria-ção. Deus atribuiu nome a cada dia da criação e autorizou Adão a nomear cada criatura viva (Gn 2.19,20). Adão deu à sua mulher o nome de "Eva", declarando, assim, sua liderança sobre a família humana (Gn 2.23). O uso da linguagem poé-tica pelo homem ao dar o nome à mulher é a primeira evidên-cia da expressão estética da cultura.

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CONTEXTUALIZAÇAO: UMA TEOLOGIA DO EVANGELHO E CULTURA

Em Gênesis 4.17-22, outros elementos de comportamento cultural são descritos. Os descendentes de Caim edificavam

cidades, criavam animais domésticos, faziam instrumentos musicais e ferramentas de bronze e de ferro. No exercício cor-

reto desses poderes criativos, as pessoas glorificavam a Deus e

viviam em harmonia com seus semelhantes; assim, sua cultura refletia as riquezas da beleza e da bondade.

O efeito da Queda e do conhecimento do evangelho sobre o com-portamento humano. As implicações pessoais e sociais da Queda afetam radicalmente todas as pessoas e culturas. Conforme

argumenta Paulo: "Portanto, assim como o pecado entrou no

mundo por um só homem, e pelo pecado, a morte, assim tam-bém a morte passou a todos os homens, pois todos pecaram"

(Rm 5.12). Na Queda, o homem rebelou-se contra o senhorio

do Criador, procurou asseverar a sua autonomia e deixou de crer na lei de Deus. O resultado foi a alienação do Criador, a

quebra da harmonia entre o homem e a mulher, além de dolo

e morte violenta dentro da família. Ao aspirar ser como Deus, conhecendo o bem e o mal, o homem tornou-se um idólatra, criando Deus à sua própria imagem, para então descobrir que

se tornara escravo da imagem que ele havia criado. Sua auto-confiança e arrogância são vistas na edificação da cidade e da

torre de Babel, que resultou em profunda alienação no nível

mais pessoal da comunicação, o da linguagem (Gn 11.1-9). Paulo faz um comentário teológico pormenorizado sobre a

Queda em sua análise da idolatria e do consequente julgamento de Deus em sua ira (Rm 1.18-32). Por causa da "inclusão total" do pecado, toda a cultura "é manchada com o pecado, e parte dela é demoníaca". Desse modo, cada segmento da cultura — a

cosmovisão, os valores, as instituições, os artefatos e o compor-tamento exterior — é deturpado e mal utilizado.

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FATORES CULTURAIS E SUPRACULTURAIS NA COMUNICAÇÃO DO EVANGELHO

É diante desse pano de fundo que o evangelho é a boa--nova da redenção para cada pessoa, em termos de sua indi-vidualidade, seu comportamento social e estilo de vida. O evangelho da redenção começa no momento da própria Queda (Gn 3.15) e atinge seu ponto máximo na nova Jerusalém descendo do céu e na voz que vem do trono e diz: "Eu faço novas todas as coisas!" (Ap 21.2,5).

O ponto central dessa redenção é Deus tornando-se homem, uma encarnação de tamanha realidade que poderia ocorrer apenas uma vez, em contraste com o caráter repetitivo das encarnações em outras culturas religiosas. O propósito da encarnação é a cruz, onde, de uma vez por todas, Deus recon-ciliou a humanidade consigo mesmo.

No ministério da ressurreição, a redenção atinge seu ponto alto numa unidade espantosa de continuidade e des-continuidade entre o material e o espiritual. A relevância da esperança da ressurreição para o comportamento cultural é vista ao se comparar o conceito hindu da imortalidade, ou aniquilamento, com a expressão cristã dessa esperança nas cerimônias de morte e sepultamento. A esperança da ressur-reição inclui a transformação total da cultura, quando o reino supracultural de Deus for estabelecido sobre a terra e Cristo for Senhor de toda a criação (Ef 1.10; Cl 1.20). Nesta presente era, a igreja como a nova comunidade do povo de Deus é a manifestação visível dessa nova sociedade, na medida em que Cristo é Senhor dela. Desse modo, a ressurreição consta como o modelo supremo tanto da universalidade quanto da huma-nidade da cultura cristã final.

A soberania de Deus na comunicação do evangelho. O Deus da revelação bíblica não é um deus deísta que passivamente espera o dia final. É o Deus que ama o mundo inteiro e chama todos os homens e mulheres à comunhão com ele, por meio de

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CONTEXTUALIZAÇÃO: UMA TEOLOGIA DO EVANGELHO E CULTURA

arrependimento e fé. Não deixa ninguém sem conhecimento dele mesmo, de modo que o pecado sempre é pecado contra um conhecimento melhor, e, portanto, todos são indescul-páveis (Rm 1.20). Aqueles que nunca ouviram o evangelho de Cristo não se encontram sem um conhecimento de Deus mediante sua revelação universal; todavia, por causa do efeito devastador do pecado, esse conhecimento de Deus traz julga-mento, e não salvação. Todas as pessoas sabem que devem amar o Criador das leis divinas; mas, em sua rebelião, tornam-se lei para si mesmas. Somente na graça soberana de Deus, tra-zendo os pecadores para si mesmo em arrependimento, e no dom da fé, é que aqueles que nunca ouviram falar de Cristo podem ser reconciliados com seu Criador.

O Deus vivo sempre fala a todas as pessoas, e a consciência é testemunha desse fato (Rm 2.14,15). As pessoas não somente têm conhecimento do "eterno poder e divindade" de Deus e da lei "gravada nos seus corações", mas também muitas cul-turas dão evidência de um conhecimento distorcido de um sacrifício expiador pelo pecado como sendo o único caminho à reconciliação com Deus. É, de certo modo, relevante que as Rig Vedas, as mais antigas das escrituras hindus, tenham traços da verdade acerca da propiciação e da expiação em seu sistema sacrificial, sobrecarregadas de conceitos pervertidos de conciliação. Deus, em sua soberania, usa a insensatez humana da arrogância cultural a fim de preparar comunidades étnicas para ouvir e receber o evangelho.

A compreensão de que Deus Espírito Santo é o verda-deiro mensageiro do evangelho, que vai sempre adiante de nós, preparando pessoas para ouvir e receber o evangelho, nos faz clamar com Paulo, "pois tal obrigação me é imposta. E ai de mim, se não anunciar o evangelho!" (1Co 9.16).

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2 PADRÕES NO MOVIMENTO DA CONTEXTUALIZAÇÃO PARA O SINCRETISMO

o decorrer do movimento missionário moderno, a missão N/ da igreja tem sido expressa em termos de indigeniza-

ção.1 Nos escritos de Henry Venn, Rowland Allen, Melvin Hodges e outros, o alvo da indigenização é uma igreja que seja autogovernada, autossustentável e autopropagadora. As tentativas de indigenizar (em diferentes graus) as formas do culto, a música, a arquitetura da igreja e os padrões de evan-gelização têm sido tanto encorajadas quanto desencorajadas por missionários e suas agências. De modo semelhante, as igrejas mais jovens têm respondido tanto de forma positiva quanto negativa às próprias tradições culturais.

'Barbara Burns esclarece o termo: "Na história de missões indigeniza-ção remonta ao século 19, sendo usado em referência a igrejas que sejam autossustentadas, autogovernadas e autopropagadoras. Portanto, não deve ser associado à palavra índio, como o uso popular pode sugerir; autóctone talvez seja a associação mais adequada, embora isso não signifique inde-pendência da igreja global nem origem na cultura do povo, pois descreve algo relevante para a cultura, mas não guiada por esta, e sim pela Bíblia".

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CONTEXTUALIZAÇÃO: UMA TEOLOGIA DO EVANGELHO E CULTURA

O DEBATE INDIGENIZACÃO—CONTEXTUALIZACÃO

Desde que a era colonial chegou ao fim, após a Segunda Guerra

Mundial, as igrejas mais jovens — em sua busca por uma identi-dade própria e entusiasmo por participar da vida das novas nações

que surgiram — têm demonstrado uma crescente frustração com

o conceito de igreja indigenizada, uma formulação do século xix.

As igrejas urbanas têm sentido o impacto da revolução tecnoló-

gica moderna e do desvio para o secularismo. A independência

trouxe consigo novos fatores sociais, econômicos e políticos que

têm afetado radicalmente o estilo de vida do povo. O crescente

conhecimento nas áreas da antropologia e da sociologia tem aju-

dado a criar uma nova autoconsciência e sensibilidade cultural.

No início de 1972, uma nova palavra, contextualização,

começou a ser empregada por Shoki Coe e Aharon Sapsezian,

diretores do Theological Education Fund [Fundo de Educa-

ção Teológica (FET)]. O relatório elaborado pelo FET naquele ano, Ministério e contexto, sugeriu que o termo contextuali-

zação dá a entender tudo quanto está envolvido no já conhe-

cido termo "indigenização", embora procure abrir caminhos

além dele, levando em conta "o processo de secularização, a

tecnologia e a luta pela justiça humana que caracterizava o

momento histórico das nações do Terceiro Mundo".2 O rela-tório introduz o Terceiro Mandato do FET como uma resposta "à crise generalizada da fé e à busca por significado na vida;

às questões urgentes do desenvolvimento humano e da justiça

social; à dialética entre uma civilização tecnológica universal e as situações locais, culturais e religiosas".3

'Diretoria do FET, Ministry in Context (Londres: Theological Education Fund, 1972), p. 20.

3Ibid., p. 13.

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PADRÕES NO MOVIMENTO DA CONTEXTUALIZAÇÃO PARA O SINCRETISMO

A contextualização, segundo alega-se, é a capacidade de responder de modo relevante ao evangelho dentro do cenário em que a própria pessoa se encontra. Não é simplesmente uma palavra da moda ou um lema, mas uma necessidade teológica exigida pela natureza encarnacional da Palavra.

Em que medida, porém, é necessário substituir "indige-nização" por "contextualização"? James O. Buswell insiste que devemos pensar duas vezes antes de rejeitar termos como "indígena", "indigenato" e "indigenização".4 Sugere que a pala-vra indigenização, que significa "dar fruto ou gerar de dentro", não é um conceito estático. Orienta-se para o futuro tanto quanto as pessoas que a usam. Ele entende que é especialmente apropriada para a igreja como o local em que o cristianismo é indígena dentro de uma cultura. O termo é menos abstrato e técnico do que contexto, e mais simbólico e eficaz. É mais facilmente compreendido por pessoas comuns. Afinal de con-tas, não é tanto a palavra empregada quanto o significado que cresce em torno dela que é importante. Em vez de criar novas palavras, termos mais antigos devem receber novo significado e os abusos cometidos em relação a eles devem ser detidos.

As preocupações dos defensores da contextualização são válidas. Além de voltar o evangelho para os valores culturais tradicionais, devemos levar em conta questões contemporâneas sociais, econômicas e políticas implicadas nas lutas de classes, na riqueza e na pobreza, nos subornos e na corrupção, na política baseada no poder, nos privilégios e na opressão — enfim, toda sorte de fatores que perfazem a sociedade e os relacionamentos entre uma comunidade e outra. A contextualização leva a sério

`James O. Buswell, "Contextualization: Theory, Tradition and Method", in: Theology and Mission, ed. David J. Hesselgrave (Grand Rapids: Baker Book House, 1978), p. 93-94.

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CONTEXTUALIZAÇÃO: UMA TEOLOGIA DO EVANGELHO E CULTURA

fatores contemporâneos na mudança cultural. AI Krass ilustra essa consciência de modo vívido quando escreve: "A indigeni-zação diz respeito à cultura tradicional, ao tipo de coisa acerca do qual se lê na National Geographic. A contextualização, por outro lado, diz mais respeito ao tipo de coisa acerca do qual se lê em revistas como a Time. Diz respeito à história atual da cultura do mundo"? No entanto, não seria verdade dizer que não havia consciência acerca do segundo tipo de preocupações antes do nascimento da nova terminologia há cinco anos,' mas não pode haver dúvida de que elas receberam novo destaque nas nações em desenvolvimento na era pós-colonial.

A contextualização faz parte de um debate teológico mais amplo. A mudança das questões da indigenização para as da contex-tualização faz parte de uma preocupação teológica muito mais ampla no sentido de compreender a função da igreja no mun-do. Durante as últimas duas décadas, o processo de seculari-zação da teologia cristã ganhou ímpeto. Na Assembleia Geral do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), em Upsala, 1968, foi introduzido o conceito da união da igreja como um sinal da união da humanidade. Na Assembleia do CMI, em Nairóbi, 1975, Philip Potter endossou esse alvo quando disse: "Quero conservar sempre diante das nossas mentes o fato de que o mo-vimento ecumênico diz respeito à oikoumene, a totalidade da raça humana à medida que ela se esforça para descobrir o que significa ser uma pessoa humana no propósito de Deus".7

'The Other Side (março de 1978), p. 62.

°Como o autor escreveu esta obra em 1979, o leitor deve ter em mente essa data sempre que o autor fizer uma referência temporal. Aqui, especi-ficamente, a data à qual ele se refere é 1974, ou seja, cinco anos antes de 1979 (N. do E.).

7David M. Paton (ed.), Breaking Barriers, Nairobi 1975 (Londres: SPCK; Grand Rapids: Eerdmans, 1976), p. 254.

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PADRÕES NO MOVIMENTO DA CONTEXTUALIZAÇÃO PARA O SINCRETISMO

Desde Upsala, a missão, como história da salvação, tem-se tornado progressivamente a salvação da história e do mundo mais do que da igreja. A linha entre a igreja e o mundo ofus-cou-se. A Comissão sobre Missão e Evangelização Mundial da Conferência "Salvação Hoje", em Bangcoc, 1972-1973, focali-zou-se na humanização, em grande medida descrita em termos sociais, econômicos e políticos. Demonstrou-se muito interesse no presidente Mao como um salvador contemporâneo. Em Nairóbi, praticamente não houve nenhuma discussão sobre a Segunda Vinda de Cristo ou sobre o destino espiritual e final da humanidade. A escatologia era decididamente a escatologia realizada no mundo secular contemporâneo em termos da luta por libertação e da busca pelo desenvolvimento humano.

Em contraste com essa tendência, o Congresso Interna-cional de Evangelização Mundial, em 1974, em Lausanne, reafirmou a igreja como o agente de Deus no evangelismo. O Pacto declarou: "A igreja ocupa o ponto central do propósito divino para com o mundo, e é o agente que ele promoveu para difundir o evangelho" (§ 5).

Outro aspecto de preocupação mais ampla que foi foca-lizado em Nairóbi foi o de procurar comunhão dentro do arcabouço da união da humanidade. A comunhão mundial era vista como busca comum de pessoas de várias religiões, culturas e ideologias que procuram transcender as limitações da sua própria comunidade religiosa ou local. Combinado ao conceito da comunhão havia o do diálogo mediante o qual comunidades diferentes aprendem a aceitar umas às outras e a crescer juntas em direção à verdade. A consulta em Chiang Mai, Tailândia, sobre o "Diálogo com povos de religiões e ideologias vivas", em abril de 1977, esclareceu muitos dos mal-entendidos acerca de diálogo e comunidade, mas não

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CONTEXTUALIZAÇÃO: UMA TEOLOGIA DO EVANGELHO E CULTURA

acabou, de modo algum, com a apreensão de um pequeno grupo — nós, os evangélicos que estávamos presentes — de que a comunhão mundial pressupunha em última análise o universalismo e de que o diálogo possa ser buscado indepen-dentemente da evangelização e de um apelo à conversão. Agora é popular falar da teoria dialógica.

Os evangélicos estão igualmente preocupados com as dimensões mais amplas da fé cristã, porque elas são de importân-cia bíblica. Logo, qualquer discussão sobre a contextualização do evangelho em termos da obra de Deus no mundo das estru-turas econômicas e políticas não pode ser separada da obra de evangelização e indigenização da igreja. As questões contem-porâneas no debate da contextualização e no modo tradicional de entender a indigenização são igualmente importantes para uma teologia evangélica do evangelho e da cultura.

UMA AVALIAÇÃO DE MODELOS DA TEOLOGIA CONTEXTUALIZANTE

Qualquer análise crítica da contextualização deve ser global; entretanto, para os propósitos deste estudo, os padrões da con-textualização serão limitados, em grande medida, a partes sele-cionadas do grupo formado pelos países em desenvolvimento. Partindo de uma ampla generalização, podemos falar em dois níveis de contextualização: o cultural e o teológico. O primei-ro diz respeito primordialmente a duas camadas superficiais da cultura discutidas no primeiro capítulo, a saber: as instituições da família, do direito, da educação, o nível observável do com-portamento cultural e o uso de artefatos. Tendem a ser uma preocupação de antropólogos e sociólogos, cuja abordagem é mais fenomenológica e voltada para a etnoteologia.

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PADRÕES NO MOVIMENTO DA CONTEXTUALIZAÇA0 PARA O SINCRETISMO

Por sua vez, as camadas mais profundas da cultura, a saber, a cosmovisão e a cosmologia, bem como os valores morais e éticos que delas derivam, são preocupação primária do teó-logo. Não é de se admirar que esses dois grupos — antropó-logos e sociólogos de um lado e teólogos de outro — tenham desconfianças mútuas, uma vez que falam linguagens dife-rentes, abordam a cultura de perspectivas diferentes e buscam resultados diferentes. A Consulta sobre Evangelho e Cultura, realizada em Willowbank, Bermuda, em janeiro de 1978, foi uma tentativa de ajudar teólogos e antropólogos evangélicos a começar a falar uns com os outros, e, mais propriamente, a escutar uns aos outros.

Além disso, em termos gerais, pode ser útil falar em duas abordagens à contextualização: a existencial e a dogmática. A primeira pressupõe uma abordagem existencial à teologi-zação que é especialmente popular em círculos ecumênicos, e a maior parte da literatura contemporânea sobre a contex-tualização é escrita a partir desse ponto de vista. A segunda abordagem começa com uma teologia bíblica autorizada cuja compreensão dogmática é contextualizada em determinada situação cultural. Evidentemente, as duas abordagens não são alternativas irreconciliáveis, mas o ponto de partida para fazer teologia determinará o produto final. Para a prática teoló-gica, cada abordagem traz consigo seus próprios pressupos-tos e entendimentos prévios. Neste capítulo, procuraremos fazer uma avaliação crítica da contextualização existencial e, no capítulo seguinte, examinaremos o argumento em prol da contextualização dogmática.

A contextualização existencial envolve a interação de dois princípios básicos: a relatividade essencial de texto e contexto e o método dialético de busca pela verdade. Esse é o pressuposto

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CONTEXTUALIZAÇÂO: UMA TEOLOGIA DO EVANGELHO E CULTURA

da teologia existencial ocidental. No entanto, aceita-se em grande escala que toda teologia, inclusive a teologia bíblica, é condicionada culturalmente e, portanto, relativa em certo sentido. Entende-se que fazer teologia é um processo humano falível, de modo que nenhuma teologia é perfeita e absoluta.'

A falha de comunicadores missionários em reconhecer o grau do condicionamento cultural da sua própria teologia tem sido devastadora para muitas igrejas dos países em desenvolvi-mento, criando um tipo de imperialismo teológico ocidental e estrangulando os esforços dos cristãos de determinados locais para fazer teologia dentro da sua própria cultura. Infelizmente, a imposição dos sistemas teológicos ocidentais muitas vezes é perpetuada pelos próprios teólogos locais. Lembro-me do desalento que senti quando um líder de uma das igrejas "indí-genas" no Japão expressava seu entusiasmo por traduzir um manual de sistemática norte-americano, de três volumes, para o japonês, sem qualquer desejo aparente de avaliar de forma crítica o próprio sistema altamente impregnado de cultura.

Toda tentativa de tomar a teologia relevante às pessoas num determinado contexto cultural será, necessariamente, cultural-mente condicionada, porque a teologia que comunica é sempre missiológica. Isso, no entanto, não deve ser confundido com a natureza e a função do condicionamento cultural na revelação bíblica, em que a soberania de Deus está operando de uma maneira sem igual. Isso é discutido com mais pormenores a seguir.

A abordagem da contextualização existencial pressupõe que o texto e o contexto são condicionados culturalmente, e rela-tivos um ao outro. Essa posição normalmente rejeita qualquer

'Ver Charles H. Kraft, "The Contextualization of Theology", Evangelical Missions Quarterly, 14 (1978), 31-36.

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PADRÕES NO MOVIMENTO DA CONTEXTUALIZAÇÃO PARA O SINCRETISMO

entendimento da revelação verbal proposicional como algo obje-tivo e revestido de autoridade, tendo por base que o conhecimento nunca está livre da subjetividade. Ela não só nega a possibilidade de uma teologia bíblica única, como também fala em algo con-trário, ou seja, de teologias bíblicas, no plural, sendo cada uma condicionada pela comunidade de fé do próprio autor.'

Uma menção especial pode ser feita a duas tentativas importantes de fazer teologia nos países em desenvolvimento com base na contextualização existencial. Uma delas foi feita por um missionário europeu que trabalhou nos Camarões, na África, e a outra, por um cidadão de Sri Lanka de tradição tâmil. Ambos pertencem a mais de uma cultura.

Daniel Von Allmen, da Suíça, foi membro da Faculdade de Teologia Protestante em Yaounde, nos Camarões. Seu artigo, "The Birth of Theology" [O nascimento da teologia],l° foi uma extensa resposta ao ataque feito pelo dr. Byang Kato con-tra a cristianização do paganismo nas tendências teológicas na África." Daniel argumenta que todas as teologias, a começar pela teologia paulina, são resultado de contextualização. Não pode haver uma teologia dogmática definitiva, porque a teolo-gia sempre está em mudança. Seguindo Bultmann, argumenta que o evangelho é a pregação viva da fé da igreja e sua reflexão sobre o evento de Cristo — o Cristo crucificado e ressurreto. A teologia é a reflexão sobre essa pregação viva.

Na mesma linha de Ernst Kãsemann, ele vê muitas con-textualizações do "evento" na igreja primitiva. Argumenta que

"Essa questão veio à tona na consulta de Bermuda. Para uma defesa da pluralidade das teologias bíblicas, ver Partnership, 15 de fev. de 1978. n. 10.

mDaniel von Allmen, "The Birth of Theology", International Review of Missions, 44 (1975), 37-52.

11 WET Theologícal News, monografia n. 6 (abril de 1973).

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CONTEXTUALIZAÇÃO: UMA TEOLOGIA DO EVANGELHO E CULTURA

a teologia do Novo Testamento é contextualizada segundo for-mas culturais do judaísmo helenístico, que era influenciado por "um deus que morre e ressuscita" das religiões de mistério. Nas suas cartas, Paulo tanto corrige quanto adapta esse evangelho helenizado, e assim estabelece um modelo para contextuali-zação da teologia na África e em outros lugares. A teologia contextualizada é um processo de correção e adaptação.

Von Allmen argumenta que a teologia começa na experiên-cia da pregação e é expressa primeiramente na adoração, e não nas formulações doutrinárias.12 O relacionamento entre doutrina, fé e adoração também é questão de debate entre os evangélicos.2

Um corolário significante dessa abordagem dialética é que não pode haver nem africanização nem contextualização de uma teologia existente. Von Allmen argumenta: "Qualquer teologia autêntica deve sempre começar de novo a partir do ponto focal da fé, que é a confissão do Senhor Jesus Cristo, o qual morreu e ressuscitou por nós; e deve ser edificada ou reedificada (seja na África, seja na Europa) de uma maneira que tanto seja fiel ao impacto interior da revelação cristã quanto esteja em harmonia com a mentalidade da pessoa que a formula"." Desse modo, o florescimento de uma teologia

'2Von Allmen, p. 41-42.

13Charles R. Taber argumenta que a teologia segue a fé. Escreve: "Os apóstolos tiveram um encontro pessoal com Deus na pessoa de Jesus Cris-to, sobre o qual refletiram e o qual interpretaram tendo como pano de fundo sua própria experiência". "Is There More Than One Way To Do It Theology?" Gospel and Context, 1 (1978), 5. Por sua vez, Ralph Martin argumenta que somente com base no fato de a igreja primitiva possuir um corpo claramente definido de verdade revelada é que podemos explicar a consciência cristã acerca da entidade distintiva da igreja e de sua adoração. Adoração na Igreja Primitiva (São Paulo, Edições Vida Nova, 2012), p. 63s.

"Von Allmen, p. 50.

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PADRÕES NO MOVIMENTO DA CONTEXTUALIZAÇÃO PARA O SINCRETISMO

verdadeiramente africana pressuporá uma situação de tabula rasa, ou seja, o surgimento de uma teologia despida das teolo-gias existentes, especialmente das ocidentais. Ele conclama os africanos a terem consciência do valor que a sua cultura tem "em si mesma, e não apenas do seu valor relativo", para que uma teologia africana verdadeira venha a nascer.

Nessas declarações, Von Allmen quase absolutizou a cultura local. Ele desconsiderou a continuidade da sucessão apostólica em termos de verdade e experiência, enculturada no curso da história da igreja. Em vez de ensinar uma teologia existente, até mesmo uma dita teologia do Novo Testamento, ele sugere que o educador teológico dê alta prioridade ao estudo da história das tradições na igreja primitiva, para que assim se capacite a "descobrir as forças que governam a formação daquela teologia, a fim de que, por conseguinte, possa ser guiado pelo mesmo dinamismo enquanto se entrega à tarefa de criar uma teologia contemporânea, seja na África, seja na Europa"." Essa aborda-gem pode levar à redução da teologia a um estudo comparativo de diferentes tradições culturais cristãs.

Em relação à segunda tentativa que mencionamos, vol-tamo-nos para S. Wesley Ariarajah, um ministro da Igreja Metodista de Sri Lanka. No artigo "Towards a Theology of Dialogue' [Rumo a um teologia do diálogo], ele argumenta de modo semelhante em prol da contextualização de uma compreensão existencial radical da fé cristã. Ariarajah acre-dita que um dos pecados do passado tenha sido "absolutizar a religião e a teologia cristãs, subentendendo que as demais

p. 51.

1°S. Wesley Ariarajah, "Towards a Theology ofDialogue", The Ecumenfral Review, 29 (1977), 3-11.

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CONTEXTUALIZAÇÃO: UMA TEOLOGIA DO EVANGELHO E CULTURA

religiões eram falsas".12 Sugere que "todas as religiões procu-ram anunciar sua experiência religiosa dentro do arcabouço de uma 'história' da natureza do mundo, do homem, de Deus e do destino da vida". Individualmente falando, nenhuma história é mais válida do que as outras. "De todas as histó-rias, nenhuma tem valor duradouro em si mesma, contudo elas oferecem um arcabouço no qual a comunidade celebra sua fé e experiência"." A história judaico-cristã da "criação--queda-redenção" não é mais válida do que a história hindu sobre carma, renascimento e unidade essencial entre o homem e Deus. E ainda acrescenta: "Qualquer pessoa que se aproxima de outra com uma suposição a priori de que sua história é 'a única história verídica' mata o diálogo antes de ele começar".19

Desse modo, para Ariarajah, o texto e o contexto têm valor apenas relativo, e a experiência existencial da fé é a inte-ração dialética entre ambos. Ele aceita o ponto de vista crítico ocidental de que não há apenas um Jesus no Novo Testamento, mas pelo menos cinco, e de que os materiais neotestamentá-rios podem ser entendidos somente como "declarações de fé" dos escritores.20 Todas as escrituras, inclusive a Bíblia, são um "material confessional, refletem a fé e a crença das pessoas que as compuseram num determinado tempo".21

Ariarajah coloca sua contextualização no contexto do uni-versalismo. Todos os seres humanos, e não apenas os cristãos, fazem "parte da atividade de Deus no mundo e compartilham

"Ibid., p. 4.

"Ariarajah, p. 5.

1 Ibid. 20Ibid., p. 8.

21Ibid., p. 9.

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de um futuro comum".22 Assim, o centro da atividade de Deus é "a comunidade humana". Não há nada específico acerca da comunidade cristã, sendo que sua autorrealização não "exclui a atividade deliberada de Deus em outras religiões e através delas". Ele afirma que a história da salvação é a história da toda a humanidade e que "a história humana é a arena do propósito salvífico de Deus". Na melhor das hipóteses, a comunidade cristã é "a comunidade do sinal, provisória".23

Ao reagir contra o "cativeiro teutônico" da teologia dogmática cristã, Ariarajah fez do existencialismo ocidental radical a base para fazer teologia num contexto ceilonês. Essa reação exagerada à teologia ocidental é compreensível em um momento em que o cristianismo era tão frequentemente identificado com o imperialismo colonial, e o missionário ocidental era insensível aos valores culturais dos converti-dos. Choan-seng Song, de Taiwan, expressa o mesmo senti-mento profundo quando diz: "Tais dogmatismo e militância demonstrados pelo cristianismo missionário fizeram com que o Evangelho de Jesus Cristo parecesse ser negativo e exclusivo, não somente no que diz respeito às demais cren-ças religiosas como também às expressões culturais asiáti-cas como um todo [...]. Parece que quanto mais dogmático fosse o cristão, tanto melhor se tornaria como missionário ou evangelista".24 Um dos resultados infelizes desse tipo de reação exagerada é a incapacidade de distinguir a teologia bíblica e a teologia ocidental.

22Ibid., p. 4.

23Ibid., p. 11.

24Choan-seng Song, Christian Mission in Reconstruction: An Asian Attempt (Madras: CLS, 1975), p. 177.

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A DINÂMICA DO SINCRETISMO CULTURAL E TEOLÓGICO

A avalanche de livros e artigos da África, Ásia e América Latina não nos deixa dúvida alguma de que as teologias dos países em desenvolvimento se tornaram célebres. Por exemplo, um sim-pósio recente, What Asian Christians Are Thinking [O que os cristãos asiáticos estão pensando], inicia com a exposição do dr. E. P. Nacpil acerca de uma questão, "The Criticai Asian Principie" [O princípio asiático crítico], como princípio situa-cional, hermenêutico, missiológico e educacional?' Na África, há uma explosão de pensamento criativo, e publicações fluem da caneta de pessoas como C. G. Baeta, John S. Mbiti, Bolaji Idowu, Harry Sawyerr, Kwesia Dickson e dr. L. O. Sanneh. Na América Latina, os pensadores criativos incluem Rubem Alves, Hugo Assmann, Emílio Castro, Orlando Costas, Gustavo Gutiérrez, J. Miguez-Bonino e René Padilla.

O sincretismo é a tentativa de conciliar crenças e práti-cas religiosas diversas ou conflitantes num sistema unificado. Na Assembleia do cmi em Nairóbi, M. M. Thomas procurou redimir o termo quando falou de um "sincretismo cristocên-trico". O relatório da assembleia, no entanto, claramente se opôs a todas as formas de sincretismo, "incipientes, nascen-tes, ou desenvolvidas", a despeito dos fortes protestos de certo número de teólogos indianos e filipinos, os quais argumen-tavam que o próprio cristianismo era sincretista. Hoje, em geral, aceita-se que o termo deva ter uma conotação negativa.

A preocupação contemporânea no sentido de contextua-lizar o evangelho em culturas específicas levantou o problema

25E. P. Nacpil: "The Critical Asian Principie", What Asian Christians Are Thinking, ed. D. J. Elwood (Quezon City, Filipinas; New Day, 1976), p. 3-6.

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do sincretismo de uma maneira nova. O assunto é discutido em toda conferência de estudos que abranja o tema evangelho e cultura. O Relatório de Willowbank declarou: "À medida que a igreja procura expressar sua vida em formas culturais locais, logo tem de enfrentar o problema de elementos culturais que são malignos ou tenham associações malignas. Como a igreja deve reagir a eles? Elementos que são intrinsecamente falsos ou malignos claramente não podem ser assimilados no cristia-nismo sem cair no sincretismo. Isso é um perigo para todas as igrejas em todas as culturas".26 Em Lausanne, um dos grupos de estudo de teologia dedicou atenção especial ao problema.27 Byang Kato endossou a petição de George Peters no sentido de salvar as igrejas africanas da "cristianização do paganismo, uma ameaça real para a futura igreja evangélica nesse continente".2s

Por um lado, há necessidade de fazer tentativas ousadas e criativas em que se utilizem formas culturais que possam ser batizadas em Cristo sem negar o evangelho. A consulta de Chiang Mai, "Diálogo na Comunidade", afirmou com razão a necessidade de uma "tradução" genuína da mensagem cristã em cada tempo e lugar, indo além da tradução verbal da mensagem ao expressá-la em "termos artísticos, dogmáticos, litúrgicos e, acima de tudo, em termos relacionais que sejam apropriados para transmitir a autenticidade da mensagem de formas auten-ticamente autóctones".29 Uma fobia doentia de sincretismo pode aleijar a indigenização e a contextualização autênticas.

26The Willowbank Report, p. 26.

27Byang H. Kato, "The Gospel, Cultural Context and Religious Syncre-tism", Let the Earth Hear His Voice, p. 1216-1228.

2'Ibid., p. 1223.

29S. J. Samartha (ed.), Faith in the Midst of Faiths: Reflections on Dialogue in Community (Genebra: CMI, 1977), p. 148.

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Por outro lado, são reais os perigos de comprometer-se a autenticidade da fé e da vida cristãs, como se vê na luta da igreja primitiva contra o gnosticismo e, mais tarde, no comprome-timento do evangelho com as ditas "religiões civis" do Oci-dente. A mensagem de Chiang Mai foi resumida na história dos pequenos lagartos tailandeses que sobem pelas paredes das casas e cujos ruídos são interpretados como "Bem-vindos" às aventuras da fé exploratória e "Tomem cuidado" com os perigos do sincretismo.3°

O sincretismo como princípio dinâmico pode ser inten-cional ou pode ser um movimento inconsciente de assimilação. O mitraísmo e o maniqueísmo na igreja primitiva procura-ram assimilar a fé cristã. A teosofia, a Missão Ramakrishna, a Fé Bahai são tentativas modernas autoconscientes de formar uma síntese. Kato se refere a sementes de sincretismo lançadas nos departamentos de religião comparada nas universidades da África. Em Ibadã, Nigéria, há uma revista de estudos reli-giosos chamada Orita (uma palavra iorubá que significa jun-ção). O desenho da capa dessa revista simboliza o cristianismo, o islamismo e a religião tradicional africana como tendo um centro comum.3'

No decorrer da história da teologia cristã ocidental, a veracidade do evangelho tem sofrido com uma assimilação inconsciente de crenças e práticas conflitantes. Agostinho não conseguiu se libertar completamente do neoplatonismo. Tomás de Aquino fez uma síntese da fé bíblica e da filosofia aristo-télica. A teologia liberal moderna tem sido profundamente influenciada no Ocidente pelas filosofias do Iluminismo, da

30Ibid., p. 149.

31Kato, p. 1220.

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ciência evolucionista e do existencialismo, e no Oriente, pelas filosofias do hinduísmo e do budismo.

No debate contemporâneo sobre evangelho e cultura, há dois tipos de perigos sincretistas, sendo um deles cultural e o outro teológico. Os antropólogos são mais sensíveis ao pri-meiro e os teólogos, ao segundo.

O sincretismo cultural assume duas formas. Pode resultar de uma tentativa entusiasta de traduzir a fé cristã por meio do uso acrítico de símbolos e práticas religiosas da cultura receptora, resultando em uma fusão de crenças e práticas cristãs e pagãs. Isso fica evidente na América Latina, onde a Igreja Católica Romana, desde a conquista pelos espanhóis no século 16, tem acomodado práticas nativas animistas e supersticiosas em seu ri-tual católico. Um exemplo contemporâneo de sincretismo cul-tural é a identificação inconsciente do cristianismo bíblico com o estilo de vida norte-americano ("the American way oflife"). Essa forma de sincretismo frequentemente é encontrada em congregações evangélicas, conservadoras, em bairros de classe média, no Ocidente e nos países em desenvolvimento, que pa-recem estar inconscientes de que seu estilo de vida tem mais afi-nidade com os princípios consumistas da sociedade capitalista do que com as realidades do Novo Testamento. O entusiasmo dessas congregações por evangelização e missões além-mar é usado para justificar a falta de envolvimento com problemas de racismo, pobreza e opressão na vizinhança da igreja.

A segunda forma de sincretismo cultural é mais agressiva e autoconsciente. Está de acordo com o espírito dos fariseus e judaizantes, que procuravam forçar as formas culturais de suas convicções religiosas sobre seus convertidos. Seu equivalente moderno é frequentemente visto em igrejas fundadas por mis-sões ou denominações, sob a forma de estruturas eclesiásticas

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obrigatórias ou de padrões sociais de conduta correta e de hábitos mundanos totalmente estranhos à cultura local. Aos olhos dos não cristãos desses lugares, o cristianismo traz con-sigo a imagem de uma religião estrangeira.

O sincretismo teológico alcança o próprio âmago da cultura, pois faz a junção de conceitos e imagens, bem como de valo-res morais e éticos nos níveis profundos da cosmovisão e da cosmologia. É mais destrutivo do que o sincretismo cultural, embora, na realidade, comumente leve ao sincretismo cultural do tipo acomodação. Em comparação com o sincretismo cul-tural também é mais reflexivo. Relativiza a natureza da verdade e da epistemologia, trazendo consigo a suposição de que todas as formas de verdade e práticas específicas são meras expres-sões da Verdade universal e absoluta. Esse tipo de sincretismo é geralmente uma preocupação do teólogo e do filósofo.32

O processo do sincretismo teológico normalmente ocorre com base na combinação de leis ou princípios identificáveis. Começa por negar o caráter definitivo da revelação como está registrada na Bíblia, em termos da sua verdade histórica e ver-balizada. Supõe que, uma vez que toda a teologia é cultural-mente condicionada, não é possível saber com certeza qual é a Palavra que Deus revelou. Confunde o supracultural com o cultural e reduz toda a teologia ao simples contar a histó-ria da sua experiência e fé. A Escritura não é "uma fronteira" que delimita a reflexão teológica e separa uma comunidade de outra, mas consiste, sim, em "postes que lançam luz e bri-lho sobre a experiência religiosa da comunidade".33 Não há

32Para um excelente estudo sobre sincretismo, ver W A. Visser't Hooft, No Other Name (Londres: SCM, 1963).

33Ariarajah, p. 9.

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uma escritura que seja mais válida ou verídica do que outra.

Ariarajah não vê "razão alguma para que as escrituras hindus

não sejam relevantes nem forneçam o contexto da fé em Jesus Cristo para um cristão indiano". A Escritura, as tradições e a

experiência são igualmente critérios de verdade. Infelizmente,

esse tipo de sincretismo radical é mais difundido na Ásia do

que geralmente se sabe, e se constitui numa séria ameaça à

evangelização e ao crescimento da igreja.

Um segundo elemento nesse processo teológico dinâ-mico é o princípio da universalização dos particulares da fé

cristã. É o princípio do reducionismo. Procura retroceder do

fato histórico para verdades ideais, independentes do tempo.

O Jesus da história se torna o Cristo cósmico ideal.

Gandhi, por exemplo, universalizou particulares históri-cos de Jesus Cristo e reduziu a história a uma ideia. Ele decla-

rou que tinha pouco interesse num Jesus histórico. Para ele,

o Sermão do Monte ainda seria verídico mesmo se Jesus não

passasse de fruto da imaginação do autor. Contudo, partindo

do pressuposto de que Jesus fosse uma figura histórica, Gan-

dhi foi capaz de escrever: "Deus não carregou a cruz apenas há dezenove séculos, ele também a carrega hoje, e morre e res-

suscita dia após dia. Haveria pouco consolo para o mundo se

tivesse de depender de um Deus histórico que morreu há dois

mil anos. Não preguem o Deus da história, mas mostrem-no

como ele vive hoje através de vocês".34 Ele rejeitava a possibili-

dade de uma ressurreição corporal de Jesus Cristo, pela simples razão de que as leis da natureza são "imutáveis, inalteráveis, e

34Mahatma Gandhi, Young India, 11 de ag. de 1927, citado em The Message ofJesus Christ (Bombaim: Bharatiya Vidya Bhavan, 1963), p. 38.

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por não existirem milagres no sentido de violação ou inter-rupção das leis da natureza"."

O mesmo princípio aplica-se à redução do pessoal ao impessoal, de modo que Deus, como alguém pessoal e moral, é uma forma de realidade inferior ao Absoluto. A tentativa de interpretar o Deus cristão em termos do Absoluto de Shankara tem atraído alguns teólogos cristãos indianos, especialmente os católicos romanos. A exegese que Raymond Panikkar fez do primeiro versículo do Brahma Sutra é uma tentativa eru-dita de fazer essa ligação.3° As tentativas de demonstrar o rela-cionamento interconexo entre o Pessoal e a Totalidade e de preencher a lacuna entre o Criador e a criatura nas teologias panenteístas de Teilhard de Chardin e J. A. T. Robinson refle-tem um espírito sincretista semelhante.

Um terceiro princípio no sincretismo teológico é o da complementaridade, em que a soma total de verdades parti-culares é maior do que a expressão de qualquer verdade única. A verdade encontra-se no consenso ou na síntese de verdades particulares. Na busca contemporânea pela união da humani-dade e pelo diálogo entre as religiões, esse princípio tem um apelo especial.

Por exemplo, ao interpretar a natureza da condição huma-na, são feitas tentativas para aceitar sua descrição por diferen-tes tradições religiosas como mutuamente complementares. Ariarajah argumenta que é cegueira deliberada insistir que a história da "criação-queda-redenção" seja a única descrição verdadeira da condição humana. Ele vê a descrição advaita da

35Mahatma Gandhi, Harijan, 17 de abril de 1937, ibid., p. 73.

36Raymond Panikkar, The Unknown Christ of. Hinduism (Londres: Darton Longman and Tood, 1964).

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condição humana como avidya (ignorância), o conceito Salve Siddhanta de anayam (o poder egoísta da individuação) e o entendimento budista de anicca, anatta e dukkha (a mudança condicional, a falta de mudança e a mudança como a fonte da dor e da ansiedade) como fornecedores, todos eles, de arca-bouços teológicos significativos em que se expressa o conceito cristão da alienação.

Embora seja verdadeiro que o hinduísmo e o budismo realmente oferecem percepções válidas sobre certos aspectos da condição humana, em sentido algum podem ser considerados iguais ao conceito bíblico do pecado, porque não começam com a doutrina bíblica de Deus. Em última análise, esse prin-cípio da complementaridade leva ao universalismo na salvação e na ética.

Um segundo exemplo é a tentativa de Harry Sawyerr de mostrar que o relato em Gênesis 3 acerca do pecado não está à altura da situação africana em que, por exemplo, os mitos tri-bais axânti, iorubá e mande interpretam o pecado como uma violação da harmonia da sociedade.37 Embora essa análise tal-vez seja uma descrição precisa da alienação dentro da socie-dade tribal, também é uma explicação inadequada e parcial do entendimento bíblico do pecado.

Um quarto princípio é o da absorção progressiva, segun-do o qual todas as reivindicações acerca do caráter singular e definitivo do supracultural são absorvidas por ideias e prá-ticas naturalistas e humanistas. A graça divina é absorvida pela lei natural. Empregando o modelo de Francis Schaeffer, natureza "devora" a graça. O sincretismo é religião normativa

37Harry Sawyerr, comentários sobre "Is There More Than One Way to Do Theology?", Gospel in Context, 1 (1978), p. 34,35.

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para a humanidade caída. Todas as reivindicações de uma Escritura revestida de autoridade, de uma encarnação sem igual e de uma salvação particular são progressivamente ab-sorvidas num relativismo cultural.

Na síntese entre a fé cristã e outras religiões, a mensa-gem bíblica é progressivamente substituída por pressupostos e dogmas não cristãos, e as expressões cristãs de uma vida re-ligiosa de adoração, testemunho e ética conformam-se cada vez mais às expressões da parte não cristã no diálogo. No fim, a missão cristã é reduzida a uma dita "presença cristã" e, na melhor das hipóteses, a uma preocupação social huma-nista. O sincretismo resulta na morte lenta da igreja e no fim da evangelização.

TRÊS MODELOS DE SINCRETISMO TEOLÓGICO NA ÍNDIA

Em qualquer levantamento sobre o recente desenvolvi-mento da teologia cristã na Índia, as reflexões teológicas de Brahmabandhab Upadhyaya, A. J. Appasamy e P. Chenchiah estão entre os mais frequentemente citados estudos de casos de contextualização teológica.'" A contribuição importante que cada um deles tem feito para nossa compreensão da situação cultural da Índia e suas reflexões sobre aspectos das verdades bíblicas são habilmente descritas por esses escritores e por ou-tros. O alvo limitado deste capítulo é demonstrar o padrão

"Ver Robin Boyd, An Introduction to Indian Christian Theology (Madras: CLS, 1969 e 1975); Horst Bürkle e Wolfgang M. W Roth (eds.), Indian Voices in Today's Theological Debate (Madras: CLS, 1972, edição em in-glês); S. J. Samartha, The Hindu Response to the Unbound Christ (Madras: CLS, 1974).

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PADRÕES NO MOVIMENTO DA CONTEXTUALIZAÇÃO PARA O SINCRETISMO

comum do seu movimento que parte da indigenização e con-textualização rumo ao sincretismo.

Brahmabandhab Upadhyaya (1861-1907), um hindu convertido ao cristianismo católico romano, foi o pioneiro do uso de Shankara como instrumento filosófico para a exposição da teologia cristã, a qual ele interpretava segundo uma pers-pectiva tomista. Procurava indigenizar o cristianismo puro nos termos da cultura védica hindu pura, usando as catego-rias monistas não duais de advaita vedanta, que, segundo ele acreditava, representavam o ponto mais alto do hinduísmo. Procurava igualar Deus como "pura existência" com Brahman descrito como Sat, Cit e Anand (existência, inteligência e bem-aventurança). Ao relacionar a Trindade cristã com esses conceitos, acreditava que estava preservando um conceito mais sublime de Deus do que é possível numa interpretação personalista. Passou a interpretar a encarnação em termos de Visnu, o Deus manifesto, ao invés de em termos de Krishna, um avatar que, sendo contingente e finito, pertence ao âmbito de maya (ilusão) e do mundo criado.

A teologia de Upadhyaya é um exercício na teologia natural. Seus escritos traçam uma progressão na qual sua teologia natural absorve sua teologia revelada. Por exemplo, a expiação tornou-se uma transferência vicária de sofri-mento mediante uma identificação mística segundo o padrão do deus hindu Shiva, o aspecto manifesto do Brahman não manifesto. Robin Boyd sugere que a relevância dele se acha em sua tentativa pioneira de isolar o hinduísmo cultural do hinduísmo religioso e de fundir o hinduísmo cultural com a tradição cristã.39 Por mais válida que essa reflexão possa ser, o

'Boyd (1975), p. 69.

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resultado prático da sua teologia natural foi uma experiência religiosa sincretista que aceitava, cada vez mais, costumes de rituais hindus, inclusive a adoração aos deuses hindus como avatar. Na ocasião da sua morte prematura, ele foi cremado de acordo com os ritos hindus. Já no final da sua vida não seguia doutrina alguma da igreja nem tinha interesse algum pela evangelização.

A. J. Appasamy (1891-1975) nos seus anos iniciais pro-curou "apropriar-se do espírito do melhor que a Índia tinha para oferecer" em termos da tradição filosófica da vishishta advaíta de Ramanuj a, em cuja filosofia semipersonalista achou uma porta para o misticismo do quarto Evangelho. A fim de interpretar o Evangelho segundo João como bhakti marga (o caminho da devoção e do amor), foi forçado a entrar no processo reducionista de sua interpretação do relacionamento entre o Pai e o Filho, do pecado com relação ao carma, e de um virtual universalismo na salvação. Em seu sistema havia pouco lugar para a ressurreição ou a graça. Havia poucas refe-rências ao Espírito Santo. A educação de Appasamy foi, em grande medida, baseada na tradição da erudição liberal e da filosofia neoplatonista. Mesmo assim, como homem de igreja dedicado e finalmente como bispo da Igreja do Sul da Índia, sua teologia tornou-se cada vez mais conservadora e bíblica, e tornou-se bem conhecido por sua obra evangelística. Sua peregrinação teológica4° é um exemplo significativo de um teólogo que reverteu o desvio da indigenização rumo ao sin-cretismo, à medida que passou a envolver-se mais na evange-lização e nos cuidados pastorais.

40A. J. Appasamy, My Theological Quest (Bangalore: Christian Institute for Study of Religion and Society, 1964).

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PADRÕES NO MOVIMENTO DA CONTEXTUALIZAÇA0 PARA O SINCRETISMO

P. Chenchiah (1886-1959) nasceu em uma família hindu e foi batizado quando tinha quinze anos de idade, juntamente com o pai. Tornou-se um advogado bem-sucedido e serviu durante alguns anos como juiz de um estado independente. Reagiu fortemente contra o livro de Kraemer The Christian Message in a Non-Christian World [A mensagem cristã em um mundo não cristão] e, juntamente com outros, publicou a famosa obra Rethinking Christianity in India [Repensando o cristianismo na Índia] imediatamente antes da Conferência da IMC, em Tambaram, Madras, em 1938. Foi atraído pelo gnosticismo de Sri Aurobindo e pelas ciências naturalistas do Ocidente. De Aurobindo aprendeu o princípio da integração, mediante o qual níveis inferiores da consciência são sublima-dos em níveis superiores. Da evolução emergente de Henri Bérgson aprendeu que a evolução do espírito é um fluxo puro da força vital no mundo. Chenchiah tinha uma devoção sincera a Cristo, mas no fim era a um Cristo ariano que ele adorava. Rejeitava a cruz como sacrifício expiatório e pen-sava acerca da evangelização em termos de reproduzir a Cristo ou "tornar-se" Cristo no caminho de evolução ascendente da humanidade. A despeito do seu entendimento criativo acerca da yoga do espírito e de Cristo como o novo homem," não seguia doutrina alguma da igreja e tinha pouco interesse pela evangelização como é tradicionalmente entendida. Não seria falso dizer que, no fim, sua teologia era uma teologia cristã hinduísta, em vez de uma teologia cristã indiana.

O dr. Saphir P. Athyal lembrou os participantes da con-sulta sobre evangelho e cultura, em Bermuda, que a famosa

;'Com frequência, tem-se notado que o pensamento de Chenchiah an-tecedeu o de Teilhard de Chardin, ou foi paralelo a ele.

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CONTEXTUALIZAÇAO: UMA TEOLOGIA DO EVANGELHO E CULTURA

ilustração de Sadhu Sundar Singh, "a água da vida numa taça indiana", não é tão simples quanto parece. Sugeriu o símbolo do arroz, que, ao ser plantado, morre, e depois irrompe da terra como algo inteiramente novo, embora permaneça fiel àquilo que foi originalmente plantado. O evangelho, quando plantado em outra cultura, brota fiel à sua natureza imutável, apesar de estar arraigado em um novo solo cultural.

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"Ni0A vai COMPREENDENDO A

TEOLOGIA BÍBLICA

13 ma questão central do debate teológico de hoje diz res-peito ao modo que usamos a Bíblia. É claro que essa

questão tem sido central a cada era da igreja cristã, mas agora está em evidência por causa de avanços nos estudos de crí-tica bíblica; de novos insights oriundos das ciências sociais, da antropologia cultural e sociologia culturais; do impacto da tecnologia e da teoria política na rápida mudança cultu-ral e por questões levantadas pela comunicação transcultural em escala global. O modo que usamos a Bíblia dependerá da compreensão que tivermos da tarefa hermenêutica em nossa abordagem relativa à contextualização.

A AUTORIDADE DA BÍBLIA NOS MOVIMENTOS ECUMÊ NICOS CONTEMPORÂNEOS

A Assembleia de Nairóbi, em 1975, foi uma crise de fé para o cmi.1 Os fundadores do cmi acreditavam que a Bíblia era normativa em relação à sua mensagem para o mundo, e a es-

'Bruce J. Nicholls, "Nairobi 1975: A Crisis of Faith for the WCC", Themelios, 1 (1975), p. 66-75.

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CONTEXTUALIZAÇÃO: UMA TEOLOGIA DO EVANGELHO E CULTURA

cola da "teologia bíblica" dominada por Karl Barth chegou ao apogeu na Assembleia de Nova Deli, em 1961. Nela, a fra-se "segundo as Escrituras" foi acrescentada à declaração dou-trinária do movimento. Apesar disso, na quarta conferência da Comissão sobre Fé e Ordem, em Montreal, em 1963, revelou-se um novo ponto crítico no modo de o movimento ecumêni-co compreender as Escrituras. A unidade da eclesiologia do Novo Testamento foi questionada e o problema hermenêutico da relevância da mensagem bíblica para o mundo moderno foi levantado com seriedade.

Essas questões foram exploradas ainda mais e um estudo sobre a "autoridade da Bíblia" foi recomendado pela reunião da Comissão sobre Fé e Ordem, em Bristol, em 1967. Dez grupos de estudo regionais estudaram em detalhes diferentes elementos do problema. O relatório final, representando um consenso dos grupos, foi aprovado pela Comissão sobre Fé e Ordem, em Louvain, Bélgica, em 1971. Essa declaração tor-nou-se o documento de trabalho do movimento ecumênico.

Os evangélicos sempre sustentaram que a Bíblia é nor-mativa e é a autoridade definitiva em questões de fé e prática. No contexto das alegações feitas pelos estudiosos da crítica, os evangélicos têm demonstrado preocupação com a natureza do processo de escrituração e questões tais como a infalibilidade e a inerrância. A declaração do Pacto de Lausanne sobre a autori-dade e o poder da Bíblia tem sido aceita em grande escala; mas, para alguns evangélicos, não foi longe o suficiente. A questão premente agora é a da hermenêutica e das perguntas levantadas pelo condicionamento cultural de nossa compreensão teológica.

Entre os estudiosos, supõe-se de modo generalizado que toda teologia é condicionada pela cultura. Essa declaração precisa ser avaliada com cuidado. Embora seja verdade que tentativas no

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sentido de contextualizar a teologia — feitas por teólogos tanto de igrejas antigas quanto mais novas — tenham sido condicio-nadas por uma larga gama de fatores culturais, permanece a per-gunta crucial: De que maneira e até que ponto a mensagem da própria Bíblia é condicionada pelo ambiente cultural de seus autores? Até que ponto a mensagem bíblica é transcultural e como esse "âmago do evangelho" pode ser claramente identifi-cado e externado? Qual é a natureza do controle de Deus sobre esses fatores culturalmente condicionantes no que diz respeito à inspiração do processo de composição das Escrituras?

Essas questões vieram à tona na Consulta sobre Evangelho e Cultura, da Comissão de Lausanne, realizada nas Bermudas, em 1978. Uma das questões centrais do debate era se seria correto falar de "teologia bíblica" ou de "teologias bíblicas", no plural. Essa questão tem efeitos de longo alcance para nossa aborda-gem em relação à contextualização do evangelho, ao processo de "fazer teologia" num mundo culturalmente pluralista.

Entendendo nossos pré-entendimentos. É essencial distinguir, de um lado, entre nosso pré-entendimento, ou seja, nossos pres-supostos e relacionamentos vivenciais prévios acerca da natu-reza da autoridade bíblica e, de outro, nosso pré-entendimento acerca da nossa própria cultura e das culturas daqueles aos quais comunicamos o evangelho. O primeiro é uma tentativa de compreender a teologia bíblica e dogmática, que é a preocupa-ção deste capítulo; o segundo diz respeito à contextualização da teologia, que é a preocupação do próximo capítulo.

Rudolph Bultmann argumentou que não existe evangelho puro nem exegese neutra ou destituída de pressupostos, de modo que a tarefa hermenêutica é circular, com interação constante entre objeto e sujeito, entre texto e intérprete. É um processo dialético em que nada pode haver de definitivo,

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somente uma aproximação da verdade da Palavra de Deus em uma cultura ou circunstância específica. Bultmann chamou a atenção para o pré-entendimento do intérprete como sendo o fator crítico nesse processo. Esse pré-entendimento é essen-cialmente um compromisso prévio quanto ao modo que o evangelho deve ser interpretado para determinada cultura. O Relatório de Louvain reconheceu algumas diferenças marcan-tes entre o modo tradicional e o modo contemporâneo e ecu-mênico de entender o compromisso prévio com a autoridade da Bíblia e seu uso. O Relatório descreve o pré-entendimento da abordagem tradicional (evangélica) como autoritário, dog-mático e legalista por usar a Bíblia como padrão ou norma para todo problema e situação.2 A autoridade da Bíblia vem de fora da nossa experiência. É um livro inspirado cuja auto-ridade depende do fato da sua inspiração.

O consenso refletido no Relatório Louvain revela um pré--entendimento diferente da Bíblia. Declara que, por autori-dade da Bíblia "queremos dizer que ela se torna a Palavra de Deus audível e, assim sendo, é capaz de levar os homens à fé".3 Essa autoridade subjetiva é experimentada quando as pessoas ouvem Deus lhes falar. Um dos grupos de estudo achava que seria mais apropriado falar do "papel", da "influência" ou da "função" da Escritura, em vez de sua autoridade. Ainda assim, a Bíblia tem um caráter supraindividual de autoridade como "o documento da fé da igreja".4 Não fica claro como esses dois conceitos se relacionam entre si. O Relatório argu-menta que a crítica histórica tem mostrado a diversidade do

2"The Authority of the Bible" The Louvain Report em The Ecumenical Review (outubro de 1971), p. 434.

3lbid., p. 426.

Ibid., p. 427.

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testemunho bíblico, e que os eventos registrados nunca são "meros fatos", embora estejam, sim, "sempre acessíveis a nós na roupagem da sua interpretação pelos autores bíblicos".' Desse modo, cada interpretação é vinculada a uma situação específica, historicamente condicionada, sendo que algumas têm maior importância do que outras. De modo semelhante, as interpretações contemporâneas são determinadas por sua própria situação, e devem ser vistas como "o prolongamento do processo interpretativo que é reconhecido na Bíblia". Desse modo, "não há como escapar de perspectivas condicio-nadas pela situação".6

Ao rejeitar a doutrina tradicional da inspiração, o Rela-tório define a inspiração em termos do caráter inspirador de encontros reais com Deus. Isso levantou a pergunta sobre por que isso deveria aplicar-se somente à Bíblia. O Relatório per-gunta: "Por que Basílio, Agostinho, Tomás, Lutero ou algum autor moderno não deve ser inspirado também? Certamente, foi o trabalho de interpretação deles que levou ao fato de a Bíblia falar mais uma vez com nova autoridade".7 A conclusão é que não há nenhuma linha divisória sólida entre os escritos canônicos e não canônicos. A fronteira é fluida.

A FORMAÇÃO DE NOSSOS PRÉ-ENTENDIMENTOS

Há três fatores que determinam o pré-entendimento do intér-prete. Em primeiro lugar, há fatores ideológicos que refletem a cosmovisão e o sistema de valores do intérprete. Em segundo lu-gar, há fatores culturais que refletem a influência das instituições

p. 428.

°Ibid., p. 431.

'Ibid., p. 435.

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e dos costumes da sociedade — sistemas jurídicos, educacionais, econômicos e políticos. Em terceiro lugar, há a interação com o fator supracultural, que pode sobrepujar todos os demais.

O fator supracultural é a conversão a Cristo e a aceitação, pela fé, do seu senhorio sobre a criação e a história, ou é a rejei-ção de Cristo em favor do humanismo secular ou do ateísmo marxista, ou é um retorno a outros deuses, principados ou potestades religiosos. Por exemplo, Mahatma Gandhi, embora fosse profundamente influenciado pelo evangelho, nunca aceitou o senhorio de Cristo, e, portanto, seu uso da Bíblia sempre partia da perspectiva de uma cosmovisão monista hindu. Assim, foi levado ao pré-entendimento de que a Ver-dade é Deus. O pré-entendimento de um muçulmano acerca da natureza de seu encontro com Alá inevitavelmente o leva a rejeitar a possibilidade da encarnação de Cristo e da cruz. O pré-entendimento budista a respeito da natureza da situação humana determina sua interpretação da natureza da salvação, e assim por diante.

Uma conversão radical a Cristo produz uma hermenêutica radicalmente nova. A experiência radical de Paulo na estrada para Damasco transformou totalmente seu modo de entender o Antigo Testamento. A conversão de Lutero deu-lhe uma perspectiva totalmente nova da justificação pela fé. A realidade do impacto do Espírito Santo sobre a vida de uma pessoa é um fator supracultural que modifica todos os demais.

Os evangélicos hoje reconhecem a importância dos fato-res culturais no pré-entendimento. Andrew Kirk se refere a três desses fatores: os sinais dos tempos, as questões sociais da injus-tiça e da opressão, e as atitudes para com a evangelização.' É

'Andrew Kirk, "The Use of the Bible in Interpreting Salvation Today: An Evangelical Perspective", Evangelical Review of Theology, 1 (1977), 12-14.

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idealista sugerir que um teólogo cristão, asiático, africano ou latino-americano possa libertar-se totalmente da interpretação ocidental europeia ou americana e começar do zero, baseado em sua própria cultura. Os fatores culturais são por demais inter-relacionados para isso.

Os teólogos asiáticos que conheço, do mesmo modo que missionários, têm sido influenciados por uma pluralidade de fatores culturais. Foram influenciados pelas culturas religiosas tradicionais do seu país — hindu, budista, islâmica ou ani-mista. Têm sido influenciados pelo materialismo secular do Ocidente. Sua própria herança cristã e eclesiástica, a posição econômica e social de sua família, a política da sua comuni-dade local, sua educação secular e, em especial, sua educa-ção teológica, especialmente em nível universitário, são todos fatores importantes na formulação das questões e atitudes pré-vias com as quais abordam a Bíblia.

Os fatores ideológicos obviamente desempenham um papel central na determinação do nosso pré-entendimento acerca da natureza da autoridade bíblica e do modo que devemos usá-la. Já fizemos referência a certo número de teólogos asiáticos — Ariarajah, Upadhyaya, Appasamy e Chenchiah — cujo entendimento da Bíblia tem sido determinado, de modo sig-nificativo, por suas posições ideológicas distintas.

Um breve panorama dos diferentes pré-entendimentos de alguns teólogos ocidentais contemporâneos, cuja influência sobre a formação do pré-entendimento de teólogos de países em desenvolvimento foi profunda, nos capacitará a ver a com-plexidade dos problemas hermenêuticos modernos.

O pré-entendimento de Rudolph Bultmann sobre o con-dicionamento cultural da teologia remonta à influência que exerceram sobre ele teologias relativizantes da época de Adolf

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von Harnack e, em última análise, à influência de Friedrich Schleiermacher. Ao postular perguntas acerca da condição humana, Bultmann se inspira em Emanuel Kant, Sõren Kierkegaard e Martin Heidegger (para quem a própria lin-guagem é interpretação). Ele entende a Palavra de Deus como uma conclamação existencial para viver uma vida aberta para o futuro. Sua aceitação de uma cosmovisão científica mecani-cista exclui qualquer reconhecimento relevante de elementos supraculturais na história bíblica. Bultmann demitiza os mitos do Novo Testamento, até chegar a um núcleo não dogmáti-co do evangelho, o qual ele tenta reinterpretar para o mundo moderno em termos do seu próprio pré-entendimento do pre-dicamento humano. A nova hermenêutica de Ernst Fuchs e de Gerhard Ebeling apenas leva a obra de Bultmann uma etapa à frente num uso subjetivamente determinado da linguagem e teologia do Novo Testamento. 9 Sua hermenêutica unilate-ral, que praticamente desconsidera o lugar de argumentos e declarações racionais, influenciou profundamente as teologias contemporâneas dos países em desenvolvimento.

O pré-entendimento de Barth sobre a filosofia existencial influenciou sua hermenêutica "cristológica", mediante a qual testou cada passagem da Escritura. Esse "cristomonismo", usando o termo descritivo de Paul Althaus, forçou Barth a uma exegese duvidosa de passagens às quais o teste cristológico não podia ser aplicado. Por contraste, Alan Richardson, da British Biblical Theology School [Escola de Teologia Bíblica Britâ-nica], enfatizou de tal maneira a revelação como um evento histórico que a tarefa hermenêutica é restrita a um estudo da Bíblia como recitação e confissão. Wolfhart Pannenberg

9Ver A. C. Thiselton, "The New Hermeneutic", New Testament Interpre-tation, ed. Howard Marshall (Exeter: Paternoster Press, 1977), p. 323-329.

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começa pela revelação como história verificável aberta a todos, porém realizada no evento de Cristo. Ele rejeita a distinção nítida entre evento e interpretação, vendo cada evento como algo dirigido pelo Espírito.

A redução da revelação ao evento interpretado e a limita-ção da fé a algo baseado no conhecimento histórico eliminam da categoria "Palavra de Deus" qualquer compreensão de um elemento verbal e proposicional na revelação divina. A Escritura como um todo já não tem valor normativo e o conteúdo da fé fica sem definição. Somos gratos pela ênfase da nova herme-nêutica no papel da experiência de vida do próprio intérprete em sua tarefa exegética e expositiva, mas é necessário um cor-retivo e equilíbrio. Isso nos leva a um novo entendimento da nossa tarefa teológica e evangélica.

REFORMANDO O PRÉ—ENTENDIMENTO DOS PRÓPRIOS EVANGÉLICOS

Todos os pré-entendimentos descritos até agora têm uma ên-fase comum em uma base subjetiva para reconhecimento da autoridade das Escrituras e, de diferentes maneiras, apelam a métodos reducionistas para determinar a Palavra de Deus. As teologias resultantes desses pré-entendimentos são refle-xões sobre seu próprio encontro com Deus e sua tentativa de tornar essa experiência relevante para outras pessoas. O pré--entendimento reconhecido pelos evangélicos supõe que a Bíblia tem uma autoridade sem igual, outorgada por Deus, que transcende a experiência que temos com ela.

O Pacto de Lausanne declara: "Afirmamos a inspira-ção divina, a veracidade e autoridade das Escrituras, tanto do Antigo como do Novo Testamento, em sua totalidade, como única Palavra de Deus escrita, sem erro em tudo o

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que ela afirma, e a única regra infalível de fé e prática" (5 2). A declaração doutrinária da World Evangelical Fellowship [Comunhão Evangélica Mundial], que remonta à World Evangelical Alliance [Aliança Evangélica Mundial] de 1846, faz uma afirmação semelhante, assim como também o fazem as declarações das igrejas e organizações paraeclesiásticas evangélicas pelo mundo afora, independentemente de suas próprias culturas.

Embora o uso de certos termos como infalível, inerrante, autógrafo possam ter tido suas origens em certos fatores his-tóricos da igreja ocidental, os evangélicos acreditam que por trás deles há verdades supraculturais que são inerentes à pró-pria Palavra de Deus. Warfield e os estudiosos que o suce-deram demonstraram a racionalidade do testemunho bíblico para a própria inspiração e autoridade da Bíblia, bem como do ensino e exemplo supremos de nosso Senhor no uso do Antigo Testamento. No espírito de Agostinho, os evangélicos afirmam: "Aquilo que a Escritura diz, Deus diz". Eles aceitam o modo bíblico de entender a Palavra de Deus como: evento interpretado, palavra verbal profética, ensino dogmático, pro-nunciamentos escatológicos e, acima de tudo, como a Pessoa de Cristo e sua obra. A autoridade da Bíblia é derivada da autoridade de Cristo.

A questão crítica no pré-entendimento evangélico é seu entendimento da inspiração da Escritura. James Packer a des-

creveu como "uma atividade mediante a qual Deus — que, em sua providência, exerce domínio sobre toda a expressão humana — leva homens específicos a falar e escrever de tal maneira que seu pronunciamento foi e continua sendo o pro-nunciamento dele através deles, estabelecendo normas de fé e

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prática".1° Os evangélicos reconhecem que esse pré-entendi-mento tanto é um ato de fé resultante da aceitação de Cristo como Senhor quanto uma fé razoável, pois a erudição crí-tica, em vez de refutar com garantida certeza as reivindicações teológicas e factuais do texto bíblico, tem buscado resolver cada vez mais as discrepâncias e dificuldades que refutariam a infalibilidade bíblica. Ao mesmo tempo, os evangélicos não desconhecem as questões críticas ainda não resolvidas e têm o cuidado de não impor sobre o texto um conceito de iner-rância que vá além do tipo de inerrância que a Bíblia ensina acerca de si mesma.

Certo número de considerações importantes decorrem desse pré-entendimento. A inspiração sem igual dos livros ca-nônicos, os quais Deus levou a igreja a reconhecer como tais, garante a unidade e a racionalidade essenciais da mensagem bíblica. É, portanto, correto falar de uma teologia unitária ou não fragmentada. Reconhecendo os aspectos característicos da herança e da situação cultural dos escritores bíblicos, também é correto falar de uma teologia paulina, de uma teologia joanina e assim por diante, e vê-las como elementos legítimos da teo-logia bíblica única, além de notar que seus "centros relacionais" são mantidos em união numa harmonia divina. O pluralismo teológico da Bíblia é um pluralismo de complementaridade dentro de um único todo global, divinamente controlado.

As limitações de compreensão que o intérprete tenha dessa teologia bíblica e sua tentativa de contextualizá-la não devem ser confundidas com a autenticidade da própria teologia bíblica. A Bíblia não é um consenso de teologias, mas sim a Palavra de

"'James Packer, "Hermeneutics and Biblical Authority", Themelios, 1 (1975), 4.

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Deus integrada. Da crença na inspiração sem igual das Escrituras pelo Espírito Santo decorre a confiança na obra do Espírito Santo em iluminar corretamente a mente do crente humilde.

O princípio reformado da perspicuidade é um corolário válido dessa crença. Lutero o vinculava ao sacerdócio de todos os crentes. A Bíblia é compreensível dentro dos seus próprios termos e é seu intérprete mais fiel. Ela deve ser interpretada no sentido literal ou pretendido pelos escritores como prosa, poesia, tipologia, literatura apocalíptica e assim por diante. Os reforma-dores procuravam corrigir a alegorização excessiva de Orígenes e da igreja medieval por meio desse princípio. Os evangélicos reconhecem que a Bíblia é culturalmente condicionada e que, pela providência divina, isso também está sob o controle da sua revelação sem igual. Mesmo assim, esse fato não anula a pers-picuidade essencial da Bíblia. Por exemplo, a despeito da nossa falta de conhecimento do autor e do contexto específico em que foi escrita, a mensagem da Epístola aos Hebreus é clara em seus fundamentos para todos quantos reconhecem o senhorio de Cristo e "conhecem as Escrituras e o poder de Deus".

A PROVIDENCIA SOBERANA DE DEUS NO CONDICIONAMENTO CULTURAL DA BÍBLIA

Os evangélicos reconhecem a conexão inseparável entre o evento bíblico e sua interpretação. Em termos conceituais, há um relacionamento inseparável entre o conteúdo e a forma da Palavra de Deus. Os dois são envolvidos pelo Espírito Santo de modo que a Palavra registrada nas Escrituras é a Palavra autoritativa que Deus determinou. Esse conteúdo/forma bí-blico leva consigo uma objetividade própria. Não depende da relatividade da cultura do intérprete nem da cultura em que ele o contextualiza.

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Deus, em sua soberania, escolheu a cultura semítica dos hebreus por meio da qual revelou sua Palavra. Se tivesse esco-lhido uma forma cultural chinesa ou indiana, o conteúdo da Palavra teria sido diferente, visto que mudar radicalmente a forma, que traz consigo uma cosmovisão e um conjunto de valores próprios, é mudar o conteúdo. Da mesma maneira, o Deus encarnado assumiu a forma de filho e não de filha. Aqueles que vivem em uma cultura religiosa na qual deusas amorais são adoradas e práticas culturais místicas são associa-das à adoração de uma Mãe Divina compreenderão por que Deus não se revelou como uma filha.

Em sua sabedoria, Deus escolheu Abrão de uma cultura mesopotâmica e, através dos seus descendentes, formou uma cultura transmissora que refletia a interação entre conteúdo supracultural e forma cultural. Há, portanto, uma qualidade sem igual na cultura hebraica da Bíblia, tanto no Antigo Testamento quanto no Novo. Não se trata simplesmente de uma cultura sem igual que levava as marcas da interação divino-humana. Na providência de Deus, essa cultura con-seguiu transmitir fielmente a qualidade sem igual da mensa-gem divina da criação, do pecado, da redenção e, sobretudo, da encarnação e ressurreição do Filho divino.

Jesus Cristo nasceu judeu, e é uma afronta à soberania divina falar de um Cristo negro ou de um Cristo indiano ou italiano. Se a cultura tribal hindu, budista ou europeia pagã de dois mil anos atrás — cada uma com a cosmovisão, os valores morais e as instituições que lhes eram próprios — tivesse sido a transmissora do evangelho, o conteúdo do evangelho teria sido radicalmente alterado. Mbiti e outros estudiosos africa-nos têm notado a afinidade entre muitos conceitos e práticas africanas e o Antigo Testamento, mas mesmo aqui se deve seriamente questionar se a cosmovisão da religião tradicional africana teria sido uma forma adequada ao conteúdo bíblico.

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O Antigo Testamento reflete a interação profunda entre a Palavra supracultural revelada e a vida cultural dos hebreus e das nações ao seu redor. Na formação do povo da aliança como "meu povo", Deus transformou algumas dessas formas culturais, tais como a circuncisão, para seus próprios propó-sitos, e rejeitou outras, tais como a idolatria. Deus chamou Abrão e sua família para um relacionamento de aliança, exi-gindo fé e obediência. A história dos patriarcas é a história de uma progressiva desculturação de elementos que estavam em conflito com a autorrevelação divina, tais como os concei-tos cananeus do deus El, dos baalins e provavelmente o nome pessoal de lave como o Senhor Deus. Durante a peregrina-ção dos israelitas como nômades na Terra Prometida, seguida por seu cativeiro no Egito e, mais tarde, durante a viagem no deserto, elementos indesejáveis da cultura circundante foram progressivamente enfraquecidos e eliminados. A idolatria, a moralidade sexual pagã e práticas econômicas e políticas cor-ruptas foram submetidas ao juízo de Deus.

Além disso, os profetas do Senhor, de Moisés a João Batista, repreenderam tentativas falsas de contextualização e apontaram para a futura vinda do reino de Deus sobre a terra e seu senho-rio sobre o novo povo da aliança com Deus. A história dos juí-zes, do reino institucionalizado, do exílio e do remanescente restaurado indica a soberania divina preservando a Palavra de Deus contra o condicionamento corrupto da cultura pagã.

Todas as culturas humanas têm a tendência natural de har-monizar uma mensagem transcultural dentro da sua própria cosmovisão e prática culturais. O Antigo Testamento é, em grande medida, o registro da luta contra a tendência sincre-tista de baalização da adoração a jávé, que continuou desde os patriarcas até o exílio. Em tempos de autoconfiança e inde-pendência, quando Israel tinha orgulho da sua nacionalidade, era um povo vitorioso sobre seus inimigos e estava em plena

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posse da sua terra, sua fé era notória e falsamente condicionada pelas culturas circunvizinhas. Nesses tempos, ideias religiosas e práticas culturais pagãs, tais como os casamentos mistos, eram encorajadas. Apesar disso, Deus levantava seus juízes e profetas, tais como Samuel, Elias e Jeremias, que conclamavam o povo ao arrependimento e à pureza da fé. Deus punia os israelitas, permitindo que seus inimigos os subjugassem. No sofrimento, clamavam por misericórdia e aprendiam, uma vez mais, a con-fiar nas promessas da aliança de Deus e a obedecer às suas leis.

Em tempos de fé e dependência do Senhor, o povo de Deus reconhecia o senhorio divino sobre todo seu comporta-mento, o grau de falso condicionamento cultural pelas culturas vizinhas era mínimo e as repreensões dos profetas tornavam--se eficazes. Esse reconhecimento do senhorio de Deus sobre a história, por parte do povo da aliança, transformou o con-dicionamento cultural de problema e maldição em canal de revelação e graça. A função transformada da circuncisão é um caso típico, embora a degeneração posterior a tenha transfor-mado em pedra de tropeço para a fé verdadeira.

Na época do Novo Testamento, os escritores bíblicos, cuja autoridade e mensagem pertenciam à tradição apostólica da igreja primitiva, escreveram a partir de um arcabouço cultural hebraico. Mesmo assim, cumprindo a comissão do Senhor no sentido de comunicar o evangelho a todo o mundo, o que incluía as culturas helenísticas além da judaica, os escritores do Novo Testamento fizeram uso de formas contemporâneas de expressão religiosa como meios de comunicação. Adota-ram e transformaram algumas formas linguísticas helenísticas e pagãs, e rejeitaram outras.

Por exemplo, uma palavra-chave como eros (amor sensual) era rejeitada, ao passo que conceitos como mythos ("mito") e daiman ("demônio") foram usados somente em sentido nega-tivo. Fizeram uso de palavras que tanto a Septuaginta quanto

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a filosofia helenística tinham em comum, tais como kyrios ("senhor"), logos (palavra), e sof& (salvador), mas utilizavam formas consistentes com o uso hebraico.

Algumas palavras que se destacavam na cultura helenís-tica, tais como mystérion (mistério), foram transformadas e usadas num contexto totalmente novo. Nos cultos helenísticos, mystérion pertencia à prática cultural em que os participantes recebiam uma iniciação secreta, a fim de experimentar a iden-tificação com a divindade e seu poder cósmico. Paulo empre-gava mystérion no sentido judaico de revelação especial feita por Deus acerca dos seus planos para o futuro. O poder de Deus era desvendado na revelação do segredo, e não no fato de guardá-lo (Ef 1.9; 3.3; 6.19; Cl 1.26,27).

Metamorphosis (transformação ou transfiguração) é um exemplo de um dos poucos casos em que um termo religioso grego, que não parece ter qualquer fundamento veterotes-tamentário ou judaico, recebeu um novo sentido bíblico." Entretanto, é preciso dar mais atenção à aplicação desses modelos bíblicos ao problema da comunicação transcultural em nossos próprios contextos.

PRINCÍPIOS HERMENÊUTICOS PARA ENTENDER A TEOLOGIA BÍBLICA

Devemos reunir alguns princípios hermenêuticos que até agora têm estado nas entrelinhas de nossa discussão. A primeira tarefa do intérprete é ouvir a Palavra de Deus conforme é dada, por meio da pluralidade dos escritores bíblicos, e compreendê-la de tal maneira que possa interpretá-la fielmente para outras pessoas. Para discernir esses princípios hermenêuticos no pro-

'Para esses exemplos e outros, ver W A. Visser't Hooft, 62-68.

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cesso de comunicação transcultural o intérprete evangélico confia nas próprias Escrituras. Entre esses princípios estão:

1. O princípio da fé-compromisso como estilo de vida. Re-sultantes da conversão, os pontos de partida necessá-rios para a compreensão da Bíblia são a confiança que descansa no Pai celestial, submissão total ao senho-rio de Cristo e sensibilidade e obediência ao Espírito Santo. Àqueles que estavam confusos acerca da res-surreição, Jesus disse: "Este é o vosso erro: não conhe-ceis as Escrituras nem o poder de Deus" (Mt 22.29). Sem viver a vida da fé, ninguém pode compreender a verdade da Palavra de Deus. O dito de Anselmo, credo ut intelligam ("creio a fim de que possa entender"), está no coração da tradição evangélica histórica. É fundamental para a compreensão da teologia bíblica verdadeira e para a contextualização fiel.

2. O princípio objetivo-subjetivo de distanciamento do texto e identcação com ele. Uma hermenêutica biblicamen-te determinada envolve um processo bidirecional de encontro entre o intérprete e a Palavra de Deus, de um lado, e entre o intérprete e a cultura do recep-tor, do outro lado. Esse processo bidirecional procu-ra manter o equilíbrio entre a autoridade objetiva da Palavra de Deus e a experiência subjetiva da inter-pretação. O princípio amplamente aceito do círculo hermenêutico de Bultmann precisa de nova interpre-tação pelos evangélicos.12

'2Ver René Padilla, "Hermeneutics in Culture", Gospel and Culture, Bermuda, 1978.

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O princípio objetivo-subjetivo envolve tanto o encontro do intérprete com a Palavra de Deus, com sua própria cultura e a cultura do receptor, como sua resposta diante delas. Pressupõe um processo bidire-cional de distanciamento do texto (envolvendo o es-tudo crítico e a reflexão) e, posteriormente, uma fusão ou identificação com o texto (envolvendo a dedicação e a obediência).13 A tarefa da exegese é a recupera-ção do sensos literalis, o significado literal ou natural do texto, que envolve o uso correto de ferramentas linguísticas e do método histórico, tradicionalmente conhecido como método "histórico-gramatical". O propósito desse método é descobrir o que o escritor bíblico disse e deve ser distinguido do método his-tórico-crítico mais especulativo, que visa descobrir a intenção do autor. Ao procurar distanciar-se do texto, o intérprete buscará, de modo crítico, deixar que seu pré-entendimento seja corrigido pelo próprio texto, reconhecendo sua autoridade objetiva e harmonia interna. Usando a célebre frase de Ernst Fuchs: "Os textos devem nos traduzir antes que possamos tra-duzi-los".14 Desse modo, o intérprete procurará tan-to relacionar uma passagem da Escritura com outra quanto interpretar uma passagem à luz de outra.

Nesse processo, a resposta do intérprete é de fu-são ou identificação com a mensagem do texto. Esse princípio tem sido sempre bem compreendido pelos

'Tara uma discussão evangélica recente, ver A. C. Thiselton, "Unders-tanding God's Word Today", Obeying Christ in a Changing World, ed. John R. W Stott (Londres: Collins, 1977), 1, 90-120.

14Citado em New Testament Interpretation, p. 313.

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COMPREENDENDO A TEOLOGIA BÍBLICA

evangélicos, especialmente pelos que pertencem à tra-dição pietista. O intérprete recebe a Palavra como a palavra de Deus para seu próprio coração. Esse prin-cípio reforça o princípio da perspicuidade como obra iluminadora do Espírito Santo. É ilustrado pela ora-ção do salmista, que é também um texto-chave do movimento da União Bíblica: "Guardei a tua palavra no meu coração para não pecar contra ti" (S1119.11). Essa "fusão de horizontes" (usando a expressão cunha-da por Hans-Georg Gadamer) é fundamental para qualquer método exegético que leve à compreensão da teologia bíblica e dogmática.

O mesmo processo bidirecional é essencial no encon-tro do intérprete com o receptor da Palavra e sua respec-tiva cultura, bem como na resposta que dá a eles. Essa é a tarefa de contextualização da teologia, a qual se insere no âmbito da missão da igreja no mundo. Seu alvo é a comunicação transcultural para evangelizar e servir. Boa parte do mal-entendido relacionado à contextualização surgiu devido à falta de distinção entre o processo bidi-recional de contextualizar a Palavra para uma situação cultural específica e a tarefa exegética de compreender a teologia bíblica ou dogmática como base autorizada sobre a qual se pode contextualizar a teologia.

Quando o intérprete se distancia da situação cultu-ral (a sua própria e a do receptor), exerce o ministério profético. Já nos referimos ao funcionamento do prin-cípio profético no condicionamento cultural da pró-pria Bíblia; o mesmo princípio é válido no processo da contextualização. Mediante o princípio profético, o intérprete julga criticamente sua própria cultura e

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CONTEXTUALIZAÇÃO: UMA TEOLOGIA DO EVANGELHO E CULTURA

seu pré-entendimento, bem como o pré-entendimen-to das posições culturais e do comportamento daque-les aos quais a mensagem é proclamada.

Um só exemplo basta. Com frequência, tem sido apontado que a categoria de Deus como "pai" é inade-quada em sociedades matrilineares, como, por exem-plo, entre certas tribos da África e da Ásia e, portanto, em casos como esses, símbolos alternativos para Deus devem ser considerados.15 Em vez de semiabsolutizar a instituição cultural local da família e acomodar a Pala-vra de Deus a ela, o princípio profético permitirá que a revelação bíblica julgue a imagem que o intérprete tem de "pai". Isso quer dizer que o conceito de Deus como pai precisará de explicação cuidadosa ao ser traduzido e interpretado numa sociedade matrilinear. Acomodar uma imagem pagã sem o poder transformador do prin-cípio profético somente abre a porta ao sincretismo.

O distanciamento, porém, deve ser seguido pela identificação com a cultura do receptor. Por exemplo, a ternura e a paciência de Deus seriam prontamente entendidas numa sociedade matrilinear. A encarnação é o modelo absoluto dessa identificação, pois envol-ve tanto renúncia quanto identificação. Não haverá qualquer comunicação transcultural sem essa identi-ficação. Ela começa como atitude mental (Fp 2.5) e leva à prática da servidão sacrificial (Fp 2.5-8). Esse é o chamado missionário da igreja, o preço a ser pago pela contextualização verdadeira.

3. O princípio da vida da comunidade crista' como corpo. A tarefa hermenêutica não é particular ou puramente in-

15Ver Sawyer, p. 34-35.

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COMPREENDENDO A TEOLOGIA BÍBLICA

dividual; é responsabilidade de todo o corpo de Cristo e deve ser empreendida no ambiente da comunidade cristã. Em seu conjunto, o povo de Deus é um sacer-dócio real, uma família da fé edificada sobre o funda-mento dos apóstolos e profetas, sendo Jesus Cristo a pedra de esquina (Ef 2.20). O Espírito Santo ilumina o intérprete, de forma individual, dentro do contexto da igreja. A verdadeira contextualização do evangelho ocorre na igreja, e não no mundo. Não é obra de homem, mas sim de Deus.

Dois aspectos desse princípio da vida do corpo são importantes para a tarefa hermenêutica. Em primeiro lugar, há o aspecto do reconhecimento de que o Es-pírito dá dons aos membros do corpo. Nem todos são apóstolos, profetas, mestres, pastores ou socorrem os outros, mas todos dependem uns dos outros para a edi-ficação do corpo de Cristo. Aquele que estuda a Bíblia, portanto, com toda sua perícia no método histórico--gramatical da exegese, precisa do evangelista com seu dom da pregação. O pastor, com seu conhecimento dos princípios antropológicos e sociológicos, complementa o ministério do profeta. A hermenêutica pode ser leva-da a efeito somente no contexto do corpo inteiro.

Em segundo lugar, o corpo tem uma dimensão histórica. O processo de interpretação que temos hoje é, na realidade, uma continuação do processo de interpretação que ocorreu ao longo de toda a história da igreja. A contextualização não foi algo que come-çou quando o termo foi cunhado. Logo, o intérprete verdadeiro procurará compreender os comentários e documentos teológicos escritos pelos pais da igreja, reformadores e teólogos de outras culturas. O evan-

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gélico discernirá boas interpretações da Palavra de Deus nos escritos de estudiosos católicos e ortodoxos. Os credos e as confissões da igreja serão utilizados no processo interpretativo. Um conhecimento proficien-te da história da igreja fornecerá equilíbrio a qualquer reação exagerada contra formas ocidentais de teologia contextualizada. Muitas questões de contextualização enfrentadas hoje nos países em desenvolvimento são, em essência, semelhantes àquelas que foram enfren-tadas pelos pais da igreja primitiva e, mais tarde, pelos reformadores europeus.

4. O princípio da missão no mundo. O meio onde a tarefa hermenêutica se desenvolve é a missão de Deus no mundo. A hermenêutica começa com o reconheci-mento da distinção entre dois reinos supraculturais —o reino de Deus e o reino de Satanás — e a distinção entre a igreja e o mundo. O impacto do secularismo sobre a teologia tem sido no sentido de obscurecer a distinção entre a igreja e o mundo de tal maneira que o mundo, mais do que a igreja, passa a ser o centro da atividade de Deus. O ápice desse processo de se-cularização é a salvação de toda a história como está exposto em teologias da libertação contemporâneas. Entretanto, somente quando os aspectos distintivos da Bíblia forem mantidos é que o processo de contextua-lização do evangelho para uma situação específica se conformará à norma da teologia bíblica. A missão da igreja no mundo é, em termos gerais, adoração e co-munhão, serviço e justiça social, bem como evange-lização e discipulado. Uma teologia contextualizada que não sirva a essa missão é uma teologia mutilada.

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it A DINÂMICA DA COMUNICAÇÃO TRANSCULTURAL

Acontextualização do evangelho, tarefa da comunicação transcultural, possui três centros ou focos: o evangelho

enculturado da Bíblia, o mensageiro ou comunicador que pertence à outra cultura e o receptor do evangelho que res-ponde a partir do contexto da sua própria cultura. Ainda que o comunicador venha a incorporar o mesmo contexto cultural do receptor, ele sempre é um centro focal distinto, porque não somente forma seu pré-entendimento a partir da sua própria cultura e de outras, mas também tem sua própria experiência supracultural singular com o Deus vivo. A dinâ-mica da comunicação transcultural é sempre missiológica e, portanto, é sempre tridimensional.

DA TEOLOGIA BÍBLICA PARA A TEOLOGIA CONTEXTUALIZADA

A teologia contextualizada, diferentemente da teologia bí-blica dogmática, é sempre relativa. O comunicador tem um conhecimento falível do evangelho. Qualquer formulação

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CONTEXTUALIZAÇÃO: UMA TEOLOGIA DO EVANGELHO E CULTURA

contextualizada e específica da teologia pode ser válida e fiel ao evangelho, mas não pode alegar que abrange a totalidade da Palavra de Deus revelada. Todas as formulações contextuali-zadas mantêm-se inadequadas. Há, portanto, uma relatividade na compreensão da mensagem completa de Deus. O processo hermenêutico de distanciamento e identificação, exercido sob o senhorio de Cristo e do Espírito Santo, deve garantir uma apro-ximação progressiva entre a compreensão que o comunicador tem do evangelho e a formulação do evangelho na Bíblia.

A cultura humana é sempre um processo dinâmico ao enredo da vida. Reúne tradições do passado, corresponde e se acomoda à modernidade de uma sociedade tecnológica e cada vez mais urbana e, além disso, está em constante intera-ção com os principados e poderios supraculturais. Como já vimos, cada geração aprende de novo sua própria cultura e a formula. Há, portanto, um grau considerável de flexibilidade e relatividade no centro focal da cultura humana.

A contextualização dos centros relacionais. A história da igreja é uma história de teologias contextualizadas que são respostas variadas à obra do Espírito de Deus em contextos históricos específicos. Quanto mais fiéis são aos fatos dados da teologia bíblica, tanto mais complementares e menos con-traditórias se tornam. Por exemplo, o modo de Lutero com-preender a justificação pela fé como centro relacional para sua teologização foi a resposta bíblica necessária ao pensamento confuso de uma igreja medieval corrupta. Embora o lutera-nismo seja uma teologia contextualizada ocidental, sua for-mulação da justificação pela fé é extremamente relevante para todo o mundo não ocidental. No contexto da noção hindu de carma e da total falta da segurança da salvação, creio que o resgate da justificação pela fé é uma das maiores necessidades

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pretenderem satisfazer a sede espiritual das pessoas que vivem neste mundo, elas devem constantemente se sujeitar às normas da teologia bíblica.

Começando a partir do círculo da fé-compromisso. A comu-nicação transcultural do evangelho não passa sem desafios. Desde a Segunda Guerra Mundial, a relevância do evangelho para o mundo moderno tem sido desafiada em muitos aspec-tos. A aceleração rápida do processo da secularização fez com que as reivindicações do evangelho parecessem irrele-vantes para muitos que são pobres e oprimidos. O ateísmo do marxismo materialmente determinado negou a existência de Deus. A psicologia behaviorista de B. E Skinner e outros proclamou que o homem é senhor de seu destino. O surgi-mento e, em alguns casos, a recuperação do zelo missionário por parte das religiões mundiais forçaram muitos cristãos a aceitarem um status quo e a se voltarem da evangelização para o diálogo na busca por harmonia na comunidade mundial.

A contextualização da teologia bíblica num mundo em transformação exige que reconsideremos todo o processo de fazer teologia. Contudo, a própria Bíblia insiste no fato de que o ponto de partida deve ser do círculo da fé-compromisso para a autorrevelação de Deus em Cristo. Com o enfraquecimento da certeza quanto ao conhecimento do conteúdo da fé cristã, muitos teólogos e comunicadores estão, na prática, fazendo com que o contexto cultural seja o ponto de partida. Esse é o caminho da "teologia natural", que leva a um beco sem saída. Todavia, conforme tem demonstrado a história da teologia natural desde Tomás Aquino até o tempo presente, não é pos-sível passar do Deus dos filósofos para o Deus de Abraão, de Isaque e de Jacó, que é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. "Acerca dele", diz Klaas Runia, "somente se pode falar a partir

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A DINÂMICA DA COMUNICAÇÃO TRANSCULTURAL

do círculo da fé".1 Não há como progredir da natureza para a graça. O ataque constante de Karl Barth contra a teologia natural é bem fundamentado. O mistério da fé começa com o conhecimento de Cristo, não com a filosofia e a tradição humanas (Cl 2.1-8).

Os escritores bíblicos, os apologistas antigos e os evange-listas cristãos, no entanto, sempre procuraram algum terreno comum com base no qual pudessem defender a fé e proclamar o evangelho. O discurso de Paulo no Areópago (At 17.19-34) é o exemplo clássico. A filosofia é uma cabeça de ponte para proclamar o evangelho. Narayan Vaman Tilak, o Charles Wesley da Índia, declarou que veio para Cristo "atravessando a ponte de Tukaram" (poeta hindu do movimento bhakti, do século dezessete, na Índia ocidental). As evidências e o argu-mento racional preparam o terreno para a fé e a confirmam, mas não comprovam o argumento da fé. O diálogo verdadeiro entre cristãos e pessoas de outras religiões e ideologias começa com a premissa do cristão confessando sua fé em Cristo.

Se o ponto de partida é o círculo da fé-compromisso, o conteúdo da fé é a qualidade única dos atos do Deus trinitário.2 A doutrina do Deus trino e uno na Escritura não é uma dou-trina racionalmente formulada. O dogma surgiu séculos mais tarde, com Atanásio e Agostinho, no contexto da controvérsia acerca da divindade de Cristo e da natureza de sua pessoa. Em uma fase posterior, ocorreu um debate semelhante acerca

'Klass Runia: "The Trinitarian Nature of God as Creator and Man's Authentic Relationship with Him: The Christian Worldview", Let the Earth Hear His Voice, p. 1009. Em vários assuntos deste capítulo, baseei-me no excelente estudo do dr. Runia.

2Ler Lesslie Newbigin, The Relevante of Trinitarian Doctrine for Today's Mission (Londres: Edinburgh House Press, 1963).

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do Espírito Santo. Embora acreditemos que as formulações de Calcedônia sejam fiéis ao ensino bíblico sobre o Deus trino e uno, a linguagem empregada talvez não seja a mais apro-priada num contexto cultural diferente. A natureza trinitária de Deus foi a teologia funcional daqueles que foram singu-larmente inspirados em resposta à autorrevelação progressiva do próprio Deus. A Trindade é um mistério divino por ser supracultural. A unidade de Deus, manifesta "em três manei-ras pessoais diferentes", está além da compreensão especulativa ou racional de qualquer sistema religioso ou filosófico.3

Ao longo da história da igreja, foram muitas as tentativas de tornar a doutrina da Trindade mais aceitável, mediante o emprego de analogias e ilustrações extraídas, em grande parte, da própria criação. Alguns compararam a Trindade aos três estados da água — o sólido, o líquido e o gasoso —, outros, aos elementos constituintes do Sol — sua orbe, luz e energia —, e ainda outros, aos símbolos matemáticos: um elevado à ter-ceira potência é igual a um. Agostinho empregou a analo-gia da raiz, do tronco e do galho das árvores. George David empregou a terminologia de "um eu relacional comparti-lhado", extraída da psicologia.`'

Essas analogias podem confirmar a fé, mas não a geram. Geralmente levam consigo o perigo do modalismo, em que Deus aparece em três formas, como no caso do trimurti hindu. O uso cristão do termo pessoa é pouco satisfatório, pois carrega conotações de individualismo que conduzem a um triteísmo falso. Runia, porém, conclui: "Deus não somente se revela como Pai, Filho e Espírito Santo, como também Deus é Pai, Filho e

3Runia, p. 1019.

4George David, The Eclipse and Rediscovery of Person (Bombay: TRACI, 1976). Ver também TRACHETSJourna/ (abril de 1978), p. 43-50.

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Espírito Santo".5 Este é o mistério da nossa fé: as doutrinas reve-ladas antecedem a experiência que temos delas, mas a sistemática e a contextualização dessas doutrinas decorrem de experiência que temos de Deus a partir do círculo da fé-compromisso.

O EVANGELHO É A REVELAÇÃO DE DEUS COMO CRIADOR-SALVADOR

Muita confusão teológica tem sido criada pelo fato de alguns isolarem o Deus Salvador do Deus Criador e obscurecerem a distinção entre sua obra de criação e sua obra de redenção. Qualquer contextualização legítima do evangelho deve refle-tir a norma bíblica da inseparável, porém distinta, obra do Criador-Salvador.

A declaração-base da criação (Gn 1-2) não é uma fór-mula objetiva e isolada, mas sim a confissão do povo da aliança, Israel, que experimentou a graça salvífica de Deus, mediada por Moisés e pela Lei, e para quem foi revelada a doutrina da criação. A inserção do relato da criação no Pentateuco situa o ato original de Deus no contexto de seus atos salvíficos. Por contraste, o relato védico situa a criação num contexto mito-lógico em que os deuses e a criação pertencem a um sistema fechado, como acontece nos relatos babilônicos.

No Novo Testamento, a obra de Deus como Criador sem-pre aparece no contexto de sua obra como Salvador. A obra de Deus na criação e na encarnação culmina na ressurreição de Cristo. Na descoberta da ressurreição corpórea de Jesus Cristo, Tomé exclama: "Senhor meu e Deus meu!" (Jo 20.28). As gran-des passagens cristológicas de Paulo, especialmente Efésios 1, Filipenses 2.5-11 e Colossenses 1.15-20, mantêm Deus em

5Runia, p. 1020.

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Cristo como Criador e Salvador. Em Romanos 8, a redenção de toda a criação encontra-se no contexto dos filhos de Deus, que exclamam: "Aba, Pai". A obra de Deus como Salvador, a começar com a Queda, leva à expiação na cruz, de uma vez por todas, e culmina com a volta do Rei e o estabelecimento do reino de Deus na terra. Essas duas linhas da atividade de Deus, a criação e a redenção, encontram-se na encarnação, morte e ressurreição de Jesus Cristo, o Filho de Deus.

Na interpretação dessa mensagem a povos de outra cul-tura, o senhorio de Cristo como Criador-Salvador é o uni-versal imutável e a norma mediante a qual todas as formas culturais de entender a criação e a redenção devem ser julgadas e/ou rejeitadas ou transformadas.

O Deus trino e uno sempre se revela como o Deus vivo. Ele é a vida eterna. A marca central que distingue os seres humanos dos animais é o fato de que Deus criou os seres humanos com capacidade de experimentar essa vida. Na cria-ção, foi por um ato sobrenatural que as pessoas foram criadas à imagem de Deus. Na redenção, é por um ato sobrenatural de Deus, o Espírito Santo, que elas nascem de novo e recebem a vida eterna. Deus é um espírito que transcende a criação, porém, é imanente a ela. O Deus vivo é um Deus santo, e seu Espírito, um Espírito Santo. Porque o Deus vivo é trino e uno, ele é o comunicador eterno e a natureza da sua comunicação é o amor. Deus é amor. O Pai sempre ama o Filho, o Filho sempre ama o Pai e o Espírito Santo é o agente desse relacio-namento de amor. O Deus vivo é soberano sobre a criação e a redenção. Ele predestina e sabe de antemão; ele é liber-dade absoluta. O mundo provém dele e depende dele; ele não depende do mundo. Tanto a criação quanto a redenção são obra do amor de Deus.

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Uma doutrina completa do Criador-Salvador é fundamen-tal para qualquer contextualização fiel da teologia, e é a base para avaliar todas as demais compreensões religiosas acerca da criação e redenção. A falsa contextualização começa com um entendimento inadequado do Deus trino e uno como Criador--Salvador. As religiões naturais sempre são reducionistas. Redu-zem o Deus pessoal vivo a um princípio ou absoluto impessoal. Reduzem o amor e a santidade a destino e capricho. Reduzem a liberdade do amor à escravidão à lei. Todas as religiões e filo-sofias naturais — quer sejam o neoplatonismo, o idealismo, o positivismo lógico e o existencialismo do Ocidente, quer sejam o advaita vedanta da Índia, ou o moralismo do confucionismo, a impeimanência da realidade do budismo, ou o mundo dos espíritos das religiões tradicionais africanas — ficam aquém do Deus trino e uno da Bíblia. O Alá do islamismo também é uma redução racional do Deus trino e uno.

Diante desse pano de fundo de religião natural normativa, o Deus que possui três centros relacionais fica em contraste com todas as formas de reivindicações orientais ou ocidentais ao panteísmo. Na fé de Israel, o povo da aliança, e da igreja, há um verdadeiro misticismo de estar "em Cristo" e de pertencer a um só corpo, mas nunca há uma perda de distinção pessoal como no panteísmo. A distância entre a criação e a redenção nunca é fechada. No Deus Criador-Salvador trino e uno, não há lugar para o deísmo religioso, como no judaísmo e no islamismo, em que a predestinação é reduzida ao fatalismo, o amor à submissão à lei, e o Deus soberano a um Deus que não podia sofrer.

Além disso, não há lugar para o panenteísmo da humanista teologia do processo, que procura ligar ou fundir o pessoal e a totalidade, o Criador e o Redentor, o céu e o inferno. O panen-teísmo é a base de boa parte do universalismo contemporâneo,

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a esperança da teologia dialógica. É o caminho normativo para uma síntese de verdade e erro no plano da relatividade. Tanto no Ocidente quanto nos países não ocidentais, as teologias panenteístas atuais são, talvez, a maior ameaça à evangelização e ao crescimento da igreja.

Além do mais, a marca distintiva da imagem de Deus nos seres humanos é o relacionamento especial entre Deus e as pessoas, simbolizado no relacionamento entre Pai e Filho, mediante o qual o Filho pode chamar Deus de Pai.' Tal rela-cionamento aponta para a nova criação, para a adoção na família de Deus (Rm 8.15; Gl 4.5). Cristo é o primeiro dessa nova criação; em sua ascensão, ele manifesta o mesmo rela-cionamento sem igual com o Pai que manifestou em sua vida encarnada. A igreja, como família da fé que reflete a novidade desse relacionamento, deve ser o lugar onde a contextualização dessa métafora pai-filho é mais claramente manifestada num mundo de relacionamentos humanos corrompidos. A igreja deve tornar-se a grande família de Deus.

DE ALIENAÇÃO E IDOLATRIA PARA MORTE E NOVA CRIAÇÃO

O problema humano é um problema de alienação. É um pro-blema de dupla alienação em relação a Deus e ao próximo. A principal dificuldade na comunicação do evangelho é que a humanidade, seja individualmente seja como grupo social, não reconhece a verdadeira natureza dessa alienação. Pode ser que alguns estejam obcecados com o problema da avidya ou ignorância acerca de sua verdadeira união com Deus, de modo que essas pessoas, como os sadhus indianos, permaneçam

°Runia, p. 1011.

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indiferentes às necessidades sociais e econômicas do seu pró-ximo e às injustiças sociais. Outros, no entanto, podem estar tão obcecados com os problemas da pobreza, do desemprego, da injustiça social e da corrupção política que já não têm consciência da sua alienação em relação a Deus. Essa dupla ce-gueira é encontrada em qualquer cultura religiosa ou secular.

A doutrina bíblica da alienação começa em Gênesis 3, texto que relata o momento em que o homem e a mulher rejeitam o conhecimento de Deus, rebelam-se contra seu senhorio e pro-curam se tornar iguais a Deus. Paulo faz uma interpretação teo-lógica cuidadosamente redigida dessa alienação (Rm 1.18-32). O pecado em sua forma definitiva é descrito como idolatria, na qual a criatura cria uma divindade à sua própria imagem ou à imagem do mundo criado e, através de uma identificação mágica, aplaca ou controla seus deuses, para então se tornar escravo da sua própria criação. O fim é a sujeição aos poderes demoníacos e a morte espiritual e eterna. As teologias contextua-lizadas ocidentais nem sempre têm reconhecido a importância do pecado como idolatria, embora tenham algum conheci-mento das ciências ocultas, que são uma forma de poder demo-níaco de identificação mística. Em religiões que reconhecem um Deus supremo, a idolatria pode assumir a forma de mani-pulação das palavras sagradas da Escritura, ou de submissão à lei, com o intuito de controlar a Deus. Seja por um processo de misticismo, seja pelo racionalismo, em todo caso o homem é seu próprio salvador, é quem salva a si mesmo da alienação. A alienação descrita em Gênesis 3 inevitavelmente leva à forma de alienação descrita em Gênesis 4, em que pessoas oprimem umas às outras e o resultado é violência e morte. Visto que a Queda afetou todo ser humano e a totalidade da criação, as formas de alienação social, econômica e política, que tiveram início em

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Gênesis 4, desembocam na fragmentação final da língua e da comunidade descrita em Gênesis 11.

O profeta é o agente de Deus para proferir julgamento contra todas as formas de alienação. Os profetas de Israel e de Judá repreendiam tanto a idolatria religiosa quanto a injus-tiça social. Amos, por exemplo, repreendeu o culto sincretista de Israel (2.4; 4.4,5; 5.21) e os ricos, inclusive suas esposas, por causa de sua riqueza desproporcional (3.5; 4.1; 6.4) e da opressão que infligiam aos pobres (2.6; 6.1-7). Logo, a con-textualização verdadeira do evangelho exige tanto renovação espiritual quanto justiça social.

O evangelho traz uma dimensão nova e mais profunda de alienação àquelas culturas que interpretam a alienação exclu-sivamente em termos de desonra social, como na sociedade budista. O evangelho oferece uma nova perspectiva sobre a alienação às sociedades legalistas, tais como as que seguem o islamismo e pouco sabem acerca do amor e do perdão; às sociedades que temem o mundo dos espíritos e também àque-las que temem a polícia secreta dos governos seculares. As for-mas de alienação do século xx são apenas as velhas formas de alienação do século xix com roupagem nova. O Relatório de Willowbank sugere que o canibalismo hoje assume a forma de injustiça social que devora a viúva pobre; o estrangulamento é a opressão dos pobres; o infanticídio é o aborto; o parricídio é a criminosa falta de cuidado para com cidadãos mais idosos; a prostituição ritual é a promiscuidade sexual; e as guerras tribais são a Primeira e a Segunda Guerra Mundial.'

O ministério profético do evangelho exige que haja em toda cultura uma desculturalização dos acréscimos feitos à fé

7 The Willowbank Report, p. 31-32.

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verdadeira. Desde Moisés até João Batista, os profetas bíblicos condenaram os elementos da cultura que eram contrários à

Palavra de Deus. Ao mesmo tempo, o ministério profético cumpre e recria as verdades de todas as culturas. O evangelho renova e transforma aqueles elementos da cultura que são leais à revelação geral de Deus. Conforme declarou o Pacto de Lausanne: "Porque o homem é criatura de Deus, parte de sua cultura é rica em beleza e em bondade" (5 10). No nível cultu-ral mais profundo, o da cosmovisão, o evangelho toma a cons-ciência que os africanos têm da realidade espiritual e oferece novas dimensões para que compreendam o trabalho secular e a adoração como aspectos que abrangem a totalidade da vida.

Como notamos, no entanto, o ponto de partida não é a cultura, mas sim a Palavra de Deus. Assim como algumas teo-logias ocidentais, muitas teologias contemporâneas de países não ocidentais procuram encontrar no evangelho e na vida da igreja áreas de realização das crenças e práticas de outras crenças religiosas. Esse é o caminho da teologia natural, que inevitavelmente leva ao sincretismo.

O evangélico, no entanto, começa o processo de contex-tualização com a revelação sem igual e definitiva de Deus em Cristo e com o evangelho, o qual interpreta no contexto da sua própria cultura e da cultura do receptor. Para fazer isso de modo relevante, deve entender o contexto cultural e as ques-tões por este levantadas. Deve estudar tanto a Bíblia quanto o jornal. Mas o processo de teologizar é uma via de mão única. O evangelho julga a totalidade da cultura, e não apenas uma parte dela, destruindo o que é contrário à Palavra de Deus e

criando de novo aquilo que é fiel à revelação universal que Deus deu à humanidade. Esse é o caminho do profeta e do

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CONTEXTUALIZAÇÃO: UMA TEOLOGIA DO EVANGELHO E CULTURA

pastor controlados pelo Espírito. Podemos ilustrar esse pro-

cesso nas áreas da adoração e da família na cultura indiana.

A adoração é a expressão mais profunda de uma cosmo-

visão religiosa, e tanto beleza quanto feiura estão invariavel-

mente associadas a ela, assim como na arte, na música e na

poesia religiosas. É na adoração que a verdadeira contextuali-

zação deve ser mais claramente vista, expressando a verdadeira

adoração a Deus. No nível dos valores morais, a contextua-

lização do evangelho levará ao julgamento e à renovação da

consciência como resposta sensível do ser humano à Palavra

do Deus vivo e aos ditames da sua lei moral.

Por exemplo, o conceito hindu de carma, em sua essência,

tem um vislumbre da injunção bíblica: "Aquilo que o homem

semear, isso também ceifará". Mas isso deve ser purificado

de acréscimos religiosos, filosóficos e pagãos, se for usado na

interpretação da lei de Deus descrita no Antigo Testamento e

no manifesto ético do Sermão do Monte. Na cultura hindu,

carma comumente é algo divorciado daquele que faz a lei e

se torna um princípio absoluto ao qual até mesmo os deuses

estão sujeitos. É o abuso da lei bíblica, fazendo da lei um cami-

nho da salvação (como no judaísmo). A lei torna-se, portanto,

um senhor de tal maneira tirano que o perdão é impossível e

qualquer ideia de expiação vicária é absurda. Termina numa

linha de desespero, ausência de significado e silêncio. Logo,

a contextualização da lei bíblica destruirá tudo quanto é falso

e maligno no carma e criará de novo tudo quanto é verídico

de acordo com a Palavra de Deus. O carma fica sendo, então,

um ponto de encontro e uma ponte religiosa e cultural para

comunicar o evangelho aos hindus.

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A DINÂMICA DA COMUNICAÇÃO TRANSCULTURAL

Em qualquer cultura a família é uma instituição crítica para o processo da contextualização. Deus criou o ser humano, macho e fêmea, sendo a família a unidade relacional básica da sociedade (Gn 2.18-24). O casamento e a família pertencem à ordem da criação e podem ser desfrutados por pessoas de todas as culturas que vivam segundo o princípio da criação, definido em Gênesis 2.24. Mbiti fala com apreciação calorosa do lar africano como o centro da criação e educação dos filhos, com seu forte senso de mútua interdependência e força sustentadora em tempos de necessidade.' Isso se aplica igualmente a muitas culturas asiáticas. Em Nova Délhi, muitos hindus, muçulmanos e sikhs vivem uma vida satisfatória em família. Mas, infeliz-mente, quando as pessoas pervertem o entendimento bíblico do pai como o cabeça da família, abusam do sexo fora do casa-mento, aderem ao divórcio e ao novo casamento, praticam o homossexualismo e abandonam os idosos, então, o casamento e a família como concebidos naquela cultura ficam sujeitos ao julgamento de Deus. A contextualização do evangelho na cul-tura hindu não destruirá o sistema familiar hindu, mas con-denará elementos que são contrários ao modelo bíblico. Por exemplo, quando um jovem se casa, seu relacionamento primá-rio deixará de ser com sua mãe e passará a ser com a sua esposa, de modo contrário à tradição hindu. Ao mesmo tempo, trans-formará os conceitos biblicamente válidos do sistema familiar indiano, tais como o respeito para com os pais e o costume de compartilhar de acordo com a necessidade. Esse modelo serve para condenar o individualismo e a falência conjugal de muitas famílias nucleares ocidentais. O conceito bíblico trará consigo novos elementos de perdão e graça para o casamento, um novo

8Mbit, p. 31-32.

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CONTEXTUALIZAÇÃO: UMA TEOLOGIA DO EVANGELHO E CULTURA

entendimento da base para casamentos arranjados e entrega de dote, o que enriquecerá o casamento de modo a transformá-lo em um casamento e um lar verdadeiramente cristãos e verda-deiramente indianos.

OS UNIVERSAIS E AS VARIÁVEIS NA IGREJA AUTÓCTONE

Muitas igrejas hoje vivem uma crise de identidade. Esse é es-pecialmente o caso de igrejas que são comunidades pequenas compostas por minorias socialmente fracas, que lutam para sobreviver em situações hostis. Elas tendem a reagir de forma exagerada ou na identificação com sua cultura nacional, ou na rejeição a ela, geralmente em favor de uma cultura ociden-tal herdada do movimento missionário. Conforme declarou o Pacto de Lausanne: "A igreja deve estar no mundo; o mundo não deve estar na igreja" (§ 12).

Sempre há uma tensão dinâmica entre os universais supra-culturais da igreja, que todas as igrejas pelo mundo afora têm em comum, e as variáveis culturais peculiares à igreja de cada país. Com relação à natureza supracultural da igreja como corpo de Cristo, deve haver entre todas as igrejas uma "corres-pondência formal" com o conceito de igreja determinado por Deus e dado nas Escrituras. Com relação às culturas específi-cas em que a igreja é contextualizada, esperamos que o evan-gelho tenha um impacto dinâmico em seu estilo de vida que seja equivalente ao impacto que o povo de Deus na Bíblia teve sobre sua respectiva sociedade. A menos que seja mantida essa tensão criativa entre a "correspondência formal" dos universais e a "equivalência dinâmica" das variáveis culturais, não haverá contextualização verdadeira da igreja.

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A DINÂMICA DA COMUNICAÇÃO TRANSCULTURAL

Os universais da igreja são os universais do reino de Deus expressos em termos de uma nova humanidade, uma nova sociedade e uma nova esperança escatológica. A nova humani-dade é o novo homem em Cristo, que está sendo conformado à imagem de Cristo, a glória de Deus (2Co 4.4). Essa nova huma-nidade se torna visível mediante os frutos do Espírito, como vir-tudes que têm expressão universal (G15.22). Na medida em que Cristo é Senhor do seu povo, a igreja é o agente visível do reino. Os sinais do reino incluem evidências do poder de Cristo para curar cegos, coxos e leprosos, ressuscitar mortos (Mt 11.2-5) e demonstrar esse poder sobre os principados e poderios.

A igreja universal tem em comum uma esperança, a consu-mação do reino no último dia, o Dia do Senhor, quando toda a criação, hoje sujeita à escravidão, será libertada (Rm 8.19-23). Ela compartilha de uma só fé-compromisso em Cristo, de um só enfoque de adoração, de uma koinonia ou comunhão que transcende todas as barreiras de raça, posição social e sexo. É uma igreja peregrina que, desde Abraão, aguarda a cidade que tem fundamentos, da qual Deus é o arquiteto e construtor (Hb 11.10). A universalidade da igreja é manifesta nos abso-lutos morais derivados das leis morais do Antigo Testamento e do Sermão do Monte no Novo Testamento; esses absolutos julgam os padrões éticos de todas as culturas.

No nascimento e crescimento de igrejas locais deve haver uma progressão em termos de conformidade com o padrão de comportamento que foi pouco a pouco desenvolvido ao longo da história bíblica. Algumas categorias de comporta-mento moral, tais como discriminação social, escravidão e poligamia, somente poderão lentamente desaparecer quando a igreja crescer em sujeição a Cristo e a seu reino, como acon-teceu na história bíblica.

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CONTEXTUALIZAÇÃO: UMA TEOLOGIA DO EVANGELHO E CULTURA

O padrão de vida e testemunho da igreja retratada no Novo Testamento era simples e flexível. As estruturas e os padrões de comportamento da igreja desenvolveram-se de acordo com as necessidades da nova comunidade. O Novo Testamento nos dá um esboço acerca da vida da igreja, e não um plano detalhado. A mesma coisa deve ocorrer hoje. Os tipos de estrutura e governo da igreja, suas formas de adora-ção, os sacramentos e a comunhão fraternal, os métodos de comunicação do evangelho e os padrões para servir no mundo devem refletir as variáveis culturais e satisfazer as necessidades específicas de cada comunidade.

Mbiti acertadamente apela em favor de um uso sensível e sensato das formas culturais africanas na adoração, na comu-nidade, no crescimento e na educação dos membros da igreja, na ética e nos valores cristãos, no serviço e no testemunho cristãos." Ele aponta para vários elementos da vida e da adora-ção africanas que têm muito em comum com a cultura semí-tica bíblica, mas reconhece que muitos outros elementos estão sujeitos ao julgamento do evangelho. E conclui: "Creio que a África seja espiritualmente capaz de trazer sua contribuição em termos de glória para a cidade de Deus, por meio de ele-mentos de nossa religiosidade e cultura — elementos curados, salvos, purificados e santificados pelo Evangelho".'"

Essa proveitosa declaração traz consigo, no entanto, sementes da teologia natural. Seria melhor inverter a ordem e dizer que a glória da cidade de Deus é vista na cura, salvação, purificação e santificação dos elementos da espiritualidade africana. As dife-renças talvez pareçam pequenas, mas as consequências para a

9Ibid., p. 31-34.

'"Ibid., p. 36.

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A DINÂMICA DA COMUNICAÇÃO TRANSCULTURAL

compreensão teológica são grandes. É uma diferença de meto-dologia e da maneira segundo a qual fazemos teologia.

Sem os princípios de correspondência formal às Escrituras não é possível fazer juízos de valor corretos sobre esses fato-res culturais variáveis. O princípio da equivalência dinâmica é necessariamente subjetivo. No curso da história da igreja, a acomodação a acréscimos culturais e o provincianismo têm destruído a vida de muitas igrejas. A igreja local ou nacional nunca deve ficar aprisionada em sua própria cultura.

O ministério de ensino é uma área crucial para a eficá-cia ou o fracasso da contextualização da igreja. O currículo de nossas instituições teológicas, conceitos de imperialismo teológico ou excelência teológica e métodos de verificação do conhecimento adquirido facilmente se tornam ferramentas a serviço do provincialismo. A transferência de modelos de ensino teológico de uma cultura para outra pode tornar-se um grave empecilho à proclamação eficaz do evangelho e à edificação de igrejas que sejam biblicamente fiéis e cultu-ralmente relevantes. Os educadores evangélicos dedicados ao ensino teológico na África, Ásia e América Latina estão reco-nhecendo a necessidade de associações evangélicas de escolas e teólogos, a fim de cuidar de modo eficaz dessas questões.

A COMUNICAÇÃO TRANSCULTURAL DO EVANGELHO

A tensão dinâmica entre universalidade e convertibilidade no processo de indigenização da igreja também se aplica à co-municação do evangelho. A contextualização somente pode ocorrer no contexto da missão. Andrew Kirk diz com proprie-dade: "Creio que o único contexto apropriado para o pensa-mento teológico sério é o crescimento da igreja em sua tríplice

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CONTEXTUALIZAÇÃO: UMA TEOLOGIA DO EVANGELHO E CULTURA

missão de adoração, evangelização e engajamento profético e diaconal no mundo"." A contextualização é uma tarefa mis-siológica. O modelo missiológico supremo é a encarnação. Nossa missão segue o modelo da dele: "Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio" (Jo 20.21).

O Relatório de Willowbank chamou a atenção para a dupla ação na mente de Cristo, levando-o a renunciar seu estado, independência e imunidade de divindade e a identificar-se (sem perda da sua própria identidade) conosco, especialmente com os pobres e oprimidos.12 A comunicação transcultural é um cha-mado para ser um humilde mensageiro do evangelho. Porque o evangelho não é algo negociável, seu mensageiro deve assumir o papel de servo que o Mestre assumiu, a fim de evitar a arro-gância da superioridade teológica e cultural. "Uma igreja que prega a cruz deve ser ela mesma marcada pela cruz" (5 6).

O Espírito Santo sempre é o missionário transcultural. Vai adiante para preparar o caminho para o evangelho, faz uso da ira humana em seu louvor, transforma Nabucodonosor e Ciro em servos do Senhor. Convence do pecado e do juízo até mesmo aqueles que nunca ouviram falar no nome de Cristo. Na revelação geral de Deus à humanidade, fala a todos os povos através do testemunho da natureza e das incitações da consciência, de modo que todos são indesculpáveis.

A revelação salvífica e a graça salvífica sempre são sobre-naturais e supraculturais. A comunicação transcultural eficaz exige uma distinção teológica clara entre a revelação geral e a revelação especial de Deus, embora no processo da conver-são e nova criação nunca possam ser separadas. A revelação é

"J. Andrew Kirk, Gospel ín Context, I (1978), p. 25.

u2The Willowbank Report, p. 17-18.

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A DINÂMICA DA COMUNICAÇÃO TRANSCULTURAL

unitária. A primeira sem a última é ineficaz; a última sem a pri-meira carece da base do conhecimento de Deus como Criador.

A única base para a salvação da humanidade no decurso da história humana é o caráter definitivo e a eficácia da cruz, quer aqueles que se arrependem e creem compreendam sua plena implicação, quer não. É somente com base nisso que o Espírito Santo pode agradar-se em chamar à salvação alguns que nunca ouviram o nome de Cristo. A Escritura, em grande medida, silencia sobre essa questão intrigante e devemos resis-tir à tentação de especular. Nossa tarefa é comunicar fielmente o evangelho, fazendo uso das pontes que o Espírito Santo pre-parou de muitas e diferentes maneiras.

Através de um conhecimento das escrituras e costumes religiosos de outras culturas, o fiel comunicador do evan-gelho perceberá elementos da revelação geral de Deus e será capaz de usá-los eficazmente, como pontes para comunicar a consciência do pecado e o chamado para crer. Em algumas culturas, o conceito do "sacrifício de sangue" pode ser usado como ponte; noutras, um "filho da paz". O islamismo, por seu relacionamento especial com o Antigo Testamento e o evan-gelho, tem muitos elementos dotados de um grau daquilo que Kenneth Cragg chamou de "convertibilidade". O reconhe-cimento da unidade divina, a obrigação de prestar a Deus a correta adoração, a total rejeição da idolatria, conforme encontra-se expresso na adoração, oração, jejuns, arquitetura e caligrafia islâmicos, são elementos que podem ser transfor-mados e utilizados na evangelização transcultural.

A conversão verdadeira envolve uma transformação radi-cal da cultura inteira: de cosmovisão, valores, instituições e costumes. O evangelho rejeita os elementos que são con-trários à revelação de Deus, converte aqueles que refletem o

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CONTEXTUALIZAÇÃO: UMA TEOLOGIA DO EVANGELHO E CULTURA

homem feito à imagem de Deus e cria elementos novos que

são característicos ao evangelho.

A convertibilidade não se limita às culturas tradicionais, mas se estende às verdades da cultura secular e tecnológica.

M. M. Thomas chamou a atenção para elementos na cultura

secular moderna que libertam da superstição e para seu papel na humanização como salvação oferecida por Cristo, o verda-

deiro homem.13

A verdadeira contextualização na missão tanto diz respeito

às necessidades das pessoas na sociedade quanto às necessida-des em seu relacionamento com Deus. Tanto diz respeito à

opressão do homem pelo homem quanto à supressão de Deus pelo homem. Envolve as macroestruturas sociais, econômicas

e políticas da sociedade e o impacto que a tecnologia e a pro-

paganda ideológica modernas têm sobre elas. A contextua-

lização ocupa-se com os principados e poderios nas regiões

celestiais, e com as estruturas institucionais de poder dos

sistemas políticos capitalistas e socialistas. A evangelização, portanto, como meio de reconciliação entre Deus e os seres

humanos, não deve ser isolada do serviço e da justiça social,

mediante os quais as pessoas se reconciliam umas com as

outras. A contextualização envolve o ministério tanto do pro-

feta quanto do evangelista. Os profetas evangélicos normalmente têm se mostrado

fortes em repreender pecados individuais e pessoais cometidos

contra Deus e o próximo, mas com frequência têm se mostrado

fracos em discernir a natureza de pecados sociais, como triba-lismo, racismo, monopólios econômicos, chantagem política,

abuso dos recursos ambientais e guerras motivadas por cobiça.

'3Ver M. M. Thomas, Salvation and Humanisation (Bangalore: CLS, 1971).

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A DINÂMICA DA COMUNICAÇÃO TRANSCULTURAL

Tais pecados costumam ser encobertos por estruturas sociais aceitáveis e poucos são os profetas que os denunciam. O Relatório Willowbank declara: "Talvez a forma mais insidiosa de sincre-tismo no mundo atual seja a tentativa de mesclar um evan-gelho privatizado de perdão pessoal a uma atitude mundana (e até mesmo demoníaca) para com as riquezas e o poder".14

A verdadeira e fiel comunicação do evangelho começa com a contextualização do próprio evangelho na vida do comunicador. Essa contextualização ocorre por meio da ado-ração e comunhão, do serviço diaconal e da justiça profética, do testemunho e discipulado evangelísticos. A contextuali-zação exige aceitar de bom grado o senhorio de Cristo bem como servir e sofrer com alegria em prol dos outros. A igreja, como povo de Deus, é chamada para proclamar o evangelho todo ao mundo todo, traduzindo-o em formas culturais rele-vantes, a fim de produzir o mesmo fruto de amor e justiça que caracterizava os indivíduos, famílias e comunidades que com-punham a igreja primitiva. O evangelho permanecerá imu-tável, mas a igreja, segundo a analogia do plantio do grão de arroz, compartilhará da continuidade do corpo universal de Cristo e da particularidade das culturas nacionais históricas, porém mutáveis. A igreja no mundo é chamada para ser um modelo do futuro reino, o sal que preserva e a luz que penetra num mundo corrompido que perdeu seu caminho.

Uma teologia dinâmica do evangelho e da cultura é o fun-damento necessário para o cumprimento da Grande Comissão e para a obra do Espírito Santo no sentido de recriar o ser humano na sociedade à imagem de Cristo, o Criador-Salvador. A Deus seja toda a glória!

14The Willowbank Report, p. 26.

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