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Marina Jacob Lopes da Silva IGUALDADE E AÇÕES AFIRMATIVAS SOCIAIS E RACIAIS NO ENSINO SUPERIOR: O que se discute no STF? Monografia apresentada à Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público SBDP, sob a orientação da Professora Flávia Scabin. SÃO PAULO 2009

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  • Marina Jacob Lopes da Silva

    IGUALDADE E AES AFIRMATIVAS SOCIAIS E

    RACIAIS NO ENSINO SUPERIOR:

    O que se discute no STF?

    Monografia apresentada Escola

    de Formao da Sociedade Brasileira de

    Direito Pblico SBDP, sob a orientao da

    Professora Flvia Scabin.

    SO PAULO

    2009

  • 2

    Agradecimentos:

    A Flvia Scabin, pelos inmeros incentivos, conselhos e ensinamentos.

    A Mariana Barbosa, pelos valiosos conselhos durante a banca.

    A Gilson Maroni Cabral, Mrcia Rosa Morila Jacob Abdala e Marlia Bravo

    Jacob por conseguir, com muito custo e dias perdidos, que as peas

    processuais apenas constantes no balco em Braslia chegassem a minhas

    mos. Sem a ajuda destas pessoas esta monografia no teria sido sequer

    realizada por simples falta de material. Muito Obrigada!

    A minha famlia, Eduardo, Ana Maria e Brbara por entender, apoiar e

    investir em minhas opes acadmicas.

    A Glenda e aos meus colegas da Escola de Formao 2009 pela

    oportunidade de crescermos juntos.

    As minhas amigas da FDUSP, sala 181-XII, Ana Teresa, Gabriella, Karine

    Maiza, Mariana, e especialmente, Ana Carolina: no apenas pelas correes

    feitas nesta monografia, mas por me ajudar a conciliar este trabalho com

    aulas, trabalhos e provas da faculdade.

    E, principalmente, agradeo ao Ivan. Obrigada pela compreenso e apoio

    nestes momentos de intenso trabalho como em todos os demais. E

    tambm, claro, pela pacincia em me ouvir dissertando horas e horas sobre

    este assunto.

  • 3

    Sumrio

    ndice de Siglas..................................................................................5

    1. Introduo ................................................................................ 6

    2. Metodologia .............................................................................. 7

    3. Consideraes Preliminares: o que significa ter direito igualdade?

    Limites de uma anlise jurdica .......................................................... 13

    4. Delimitando conceitos controversos: Aes Afirmativas ................. 16

    5. Delimitando conceitos controversos: Igualdade ............................ 20

    5.1 O Paradoxo da Igualdade ....................................................... 21

    5.2 Material e Formal .................................................................. 22

    5.3 Isonomia e fator discriminante ................................................ 23

    5.4 Redistribuio e Reconhecimento............................................. 24

    6. Aes no STF e seu contexto ..................................................... 28

    6.1 ADI 2858 e ADI 3197: Cotas nas estaduais do Rio de Janeiro ...... 28

    6.2 ADI 3330: o ProUni ............................................................... 38

    6.3 A ADPF 186: as cotas raciais na UNB ....................................... 43

    6.4 Quem est por trs destas aes? ........................................... 47

    7. Principais Argumentos Anlise Crtica ....................................... 49

    7.1 Argumentos descartados pelo tempo e pela experincia. .............. 49

    7.2 O mrito e o vestibular: falso pressuposto .................................. 51

    7.3 Art. 3, IV e a Conveno Internacional sobre a Eliminao de Todas

    as Formas de Discriminao Racial ..................................................... 54

    7.4 No h mesmo outras alternativas? ........................................... 55

    7.5 Discriminao reversa.............................................................. 57

    7.6 Tabu mestio-brasileiro: um racismo, o mito e a gentica............. 58

    8. Afinal de contas, que igualdade pretendemos atingir? ..................... 64

  • 4

    9. O que podemos esperar do Tribunal ............................................. 66

    10. Concluso ................................................................................ 68

    11. Anexos .................................................................................... 72

    Anexo I - ndices das peas processuais analisadas .............................. 72

    Anexo II: Tabelas de classificao dos argumentos ............................... 76

    Bibliografia ...................................................................................... 94

    Sites consultados ............................................................................. 96

  • 5

    ndice de Siglas

    ADI(s): Ao(es) Direta(s) de Inconstitucionalidade

    ADPF: Arguio de Preceito Fundamental

    AGU: Advocacia Geral da Unio

    CF: Constituio Federal de 1988

    CONFENEN: Confederao Nacional dos Estabelecimentos de Ensino

    DEM: Partido dos Democratas

    FENAFISCO: Federao Nacional dos Auditores-Fiscais da Previdncia Social

    IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    Inf.: Informaes

    MC: Medida Cautelar

    MEC: Ministrio da Educao

    PFL: Partido da Frente Liberal (atual DEM)

    PGR: Procuradoria Geral da Repblica

    PGU: Procuradoria Geral da Unio

    PI: Petio Inicial

    ProUni: Programa Universidade para Todos

    RJ: Estado do Rio de Janeiro

    SADE: Sistema de Acompanhamento de Desempenho dos Estudantes do

    Ensino Mdio

    SAT: Scholastic Aptidude Test

    STF: Supremo Tribunal Federal

    UENF: Universidade Estadual do Norte Fluminense

    UERJ: Universidade Estadual do Rio de Janeiro

    UnB: Universidade de Braslia

  • 6

    1. Introduo

    A Declarao de Independncia Americana, em 1776, trouxe pela

    primeira vez a frmula: todos os homens so criados livres e iguais 1. A

    partir da, a maioria das constituies democrticas e tratados

    internacionais de consagram o princpio da igualdade no rol de seus direitos

    fundamentais. Nossa Constituio Federal de 1988 (CF), conhecida como

    Constituio Cidad, no uma exceo.

    Porm, sculos se passaram e ainda vemos uma longa distncia entre

    os enunciados que postulam a igualdade e os fatos verificados

    cotidianamente. Diante disto, buscam-se remdios para dar efetividade a

    todas estas normas. Neste contexto, surgem as aes afirmativas como

    remdios de curto e mdio prazo, os quais visam diminuir injustias sociais

    ou econmicas.

    Mesmo contendo a finalidade legtima de concretizar a igualdade,

    estas polticas pblicas geram grandes polmicas, quando, por exemplo, se

    escolhe determinado grupo e o favorece para compens-lo por uma

    discriminao histrica. Dentre outros argumentos, os crticos costumam

    alegar uma ofensa ao prprio princpio da igualdade, ou seja, o mesmo

    princpio usado para posies altamente antagnicas.

    sobre esta polmica que a monografia tratar, no a partir apenas

    de teorias, mas com base nos casos concretos sobre o tema em pauta no

    Supremo Tribunal Federal (STF).

    1Disponvel em: http://www.embaixada-

    americana.org.br/index.php?action=materia&id=645&submenu=106&itemmenu=110

    acesso em 27/10/09.

    http://www.embaixada-americana.org.br/index.php?action=materia&id=645&submenu=106&itemmenu=110http://www.embaixada-americana.org.br/index.php?action=materia&id=645&submenu=106&itemmenu=110

  • 7

    2. Metodologia

    Essa monografia visa explicar o desenvolvimento do conflito sobre

    aes afirmativas no STF e como o princpio da igualdade tem sido usado

    como argumento, tanto para defender quanto para rechaar essas polticas.

    Para um maior aprofundamento da pesquisa, percebeu-se a necessidade de

    delimitao do tema proposto para um ramo especifico de ao afirmativa.

    As aes afirmativas no ensino superior foram escolhidas por este ser

    considerado um perpetuador de desigualdades2, portanto, modific-lo seria

    um caminho para diminuir a distncia entre diferentes classes sociais ou at

    mesmo raciais. A reverso deste quadro passa pela ao educacional, pois o

    maior nvel de ensino propicia uma mobilidade social ascendente para os

    grupos desfavorecidos da populao. Maiores nveis de educao resultam

    em melhores condies de disputa nos postos de trabalho, permitindo,

    desta forma, acesso maior remunerao e autoridade.3

    A entrada em uma boa universidade um primeiro passo frente a um

    leque de oportunidades. Alm disto, a formao de uma elite cultural e

    burocrtica funo do ensino superior. Se os estudantes forem

    homogneos, vindos de um mesmo modelo social e racial, os altos nveis de

    comando de governos e empresas tambm sero pouco diversificados.

    Inclui-se o fato de que, em geral, filhos de pais com ensino superior

    completo tendem a tambm se graduar, obtendo melhores posies

    profissionais, proporcionando uma melhor educao aos seus filhos que

    tambm se graduaro e assim sucessivamente. Forma-se um ciclo vicioso e

    altamente excludente.

    2 A. C. ALMEIDA. A cabea do Brasileiro, Rio de Janeiro: Record, 2007, pp. 267-69. A

    pesquisa mostra que o maior apoio, seja no combate pobreza ou ao se incentivar negros, se d nas polticas universitrias. As pessoas podiam dizer se eram a favor ou contra as

    seguintes polticas: [1] que o governo facilitasse as empresas a construrem fbricas nos

    locais onde estavam as minorias ou [2] que gastasse mais dinheiro nas escolas l localizadas ou [3] que distribua bolsas de estudo para membros das minorias. A alternativa [3] recebeu

    mais respostas favorveis, no caso de bolsa para pobres 91% e para negros 75%.

    3 L. Jaccoud M. Theodoro. Raa e educao: os limites das polticas universalistas in S. A.

    dos SANTOS, (org). Aes Afirmativas e Combate ao Racismo nas Amricas, Braslia:

    Ministrio da Educao Coleo Educao para Todos, 2005, p.105.

  • 8

    Dada a importncia do ensino superior no contexto do

    desenvolvimento da sociedade brasileira, a anlise de quem tem acesso a

    ele relevante. O Brasil possui um alto dficit na relao candidato/vaga

    em algumas instituies, especialmente nas pblicas e um grande espao

    de vagas ociosas em outras instituies, sendo a maioria privada. Muitas

    vezes, isto ocorre no por falta de alunos interessados, mas devido ao custo

    da mensalidade e da manuteno do aluno no curso (livros didticos,

    alimentao, etc.), j que pela renda de grande parte das famlias

    brasileiras, no h possibilidade em custear o valor destas aulas. Soma-se o

    fato do ensino superior de alta qualidade ser extremamente competitivo. Se

    o nmero de vagas inferior ao nmero de concorrentes ou se disponho de

    nmero limitado de bolsas de estudos para alunos necessitados, h a

    necessidade de seleo. E esta, segundo a CF, deve ser feita baseada na

    capacidade de cada um (art. 208, V).

    Note-se que essa capacidade denominada pela doutrina de princpio

    meritocrtico no tem um contedo claro. H um problema ftico nesta

    seleo para o ensino superior no pas. Pesquisas demonstram que apenas

    4% dos pretos e pardos tm ensino superior completo enquanto nos

    brancos esse nmero mais que o dobro, 13,4%4.Surge, pelos nmeros, o

    questionamento se h igualdade de condies para o acesso (art. 206, I) no

    ensino superior pelo vestibular, se este meio realmente seleciona aqueles

    com maior capacidade e sobre o tipo de igualdade tratada neste artigo

    (formal ou material) e, ainda, se esta dicotomia clssica das igualdades

    suficiente para classificar casos to complexos como se os benefcios so

    meramente raciais, meramente sociais ou ambos5.

    Diversas leis ou atos normativos das prprias universidades tem sido

    criados para a implementao de cotas ou benefcios para estudantes de

    4 Fonte: IBGE Em 1997, 9,6% dos brancos e 2,2% dos pretos e pardos tinham nvel

    superior completo no pas; em 2007, esses percentuais eram, respectivamente, de 13,4% e

    4,0%. Ou seja, o hiato entre os dois grupos, que era de 7,4 pontos percentuais em 1997,

    passou para 9,4 em 2007. Disponvel em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1233&id

    _pagina=1 Acesso em: 13/09/2009

    5 Ver tpico 5.4 Reconhecimento e de Redistribuio

    http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1233&id_pagina=1http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1233&id_pagina=1

  • 9

    minoria raciais e estudantes de escolas pblicas, provocando calorosas

    discusses doutrinrias permeadas por ideologias, interesses e, at

    mesmo, militncia sobre a constitucionalidade ou no destas aes.

    Porm, apesar da discusso, o STF ainda no se posicionou

    definitivamente sobre o tema, ou seja, no houve nenhum caso julgado.

    O que no significa que o tema nunca tenha sido levado corte. Na

    verdade, h casos importantes a serem julgados e com base neles que

    esta pesquisa foi realizada.

    Para objeto de pesquisa foram selecionadas todas as aes sobre

    ensino superior e aes afirmativas no controle concentrado de

    constitucionalidade. Deste modo, apenas os argumentos gerais e abstratos

    seriam levantados. Evita-se assim o risco de se cair em argumentos de

    exceo6, por exemplo, como o caso do RE (Recurso Extraordinrio)

    5972857, ainda no julgado, no qual um estudante de baixa renda oriundo

    de escola particular pleiteia uma vaga no curso de Administrao noturno

    na UFGRS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), pois nela teria sido

    aprovada, se no fora a reserva de vagas para estudantes de ensino pblico

    e negros. A principal argumentao do caso gira em torno da real

    necessidade do candidato, sendo filho de pais humildes que priorizaram a

    escola particular, enxugando o oramento.8

    6 Consideramos como argumentos de exceo aqueles que no atacam as aes afirmativas per si, mas pleiteiam alguma modificao para que determinada e certa pessoa (o autor da

    ao) seja includo como beneficirio das aes afirmativas. Ainda que estas aes possam

    contar com crticas ao sistema como um todo, elas contm especificidades que trariam grandes inconvenientes para a anlise delimitada aqui proposta. Por exemplos, discusses

    sobre a documentao e prova de afrodescendncia.

    7 O RE 597285/ RS e a ADPF 186 foram usados para a convocao do Min. Ricardo

    Lewandowiski de uma audincia pblica que tem como assunto Polticas de Ao Afirmativa

    de Reserva de Vagas no Ensino Superior. Para mais informaes vide tpico 6.3 A ADPF 186: as cotas raciais na UnB.

    8 Veja o seguinte trecho exemplificativo: Antes de adentrar no mrito, ressalta-se que o

    Impetrante vem de famlia humilde, sendo que seus pais, com pouqussimos recursos lutaram com suas foras, sem qualquer benefcio do Estado ou privilgios para ingressar na

    carreira pblica, competindo por vagas de igual para igual, com outras pessoas com recursos

    financeiros e intelectuais. No entanto, seus pais obtiveram sucesso, mesmo lutando contra as injustias sociais que deveriam ser exterminadas e no meramente prometidas pelo

    Poder Pblico, ou ento, disfaradas como forma de encobrir tamanha falhas e negligncias,

    como o caso da educao. Diga-se que a luta dos pais do Impetrante mesmo com parcos

  • 10

    importante ressaltar que esta preferncia por argumentos gerais e

    abstratos no impede uma anlise das nuances de cada ao afirmativa

    questionada. Pelo contrrio, a constatao de questionamentos gerais

    posterior ao entendimento do desenho da poltica pblica adotada, j que

    diferenas na elaborao do sistema de favorecimentos podem gerar graves

    distores nos resultados obtidos, como provar esta monografia.

    A escolha desta anlise de controle concentrado tambm

    fundamentada no fato de que, se fosse includa a pretenso de se analisar o

    controle difuso haveria, em outras instncias, um nmero maior de aes,

    inclusive j julgadas, como pode ser comprovado pelo anexo da ADPF 186.

    Sendo assim, uma eventual pesquisa que se proponha a uma anlise de

    casos para verificar quais so os principais motivos de litigncia neste tema

    de forma comparativa no controle no-concentrado, deveria buscar aes

    de todo o judicirio e at algumas instncias administrativas das prprias

    universidades.

    Foram encontradas em bibliografia9 e em notcias10 quatro aes no

    controle concentrado: ADI 2848, ADI 3197, ADI 3330, ADPF 186. Tem-se

    fortes indcios que estas so a totalidade dos casos, ou seja, at setembro

    de 2009, haviam quatro aes, que questionavam leis ou resolues

    recursos foi vencida, uma vez que ambos obtiveram xito nos concursos que fizeram, podendo, mas claro, com grande dificuldades e enxugando o oramento matricular o seu

    filho em escola particular para lhe garantir uma herana que ningum lhe arrancar, ou seja,

    a Educao. Petio Inicial do RE 597285 DF, de relatoria do Min. Ricardo Lewandoski.

    9 O site da SBDP na Pgina Inicial > Material Didtico > Escola de Formao

    (http://www.sbdp.org.br/material_ver.php?idConteudo=1 - acesso em 20/10/09) contm

    duas das quatro aes analisadas, a ADI 2858 e a ADI 3330. Alm disto, a Conectas Direitos

    Humanos sempre pleiteia sua participao como amicus curiae nos casos de ao afirmativa no ensino superior. No site (http://www.conectas.org/stfemfoco/home/processos/amicus -

    acesso em 20/10/09) esto listados os amici propostos para trs das quatro aes

    encontradas, sendo que a ADPF 186 ainda muito recente. Neste site descobriu-se a ADI 3197 que ainda no constava na relao da autora.

    10 Aps a escolha do tema ter sido feita e, no dia 21 de julho de 2009 o site do STF

    divulgou uma notcia intitulada DEM ajuza ao contra o sistema de cotas raciais institudo por universidades pblicas disponvel em:

    http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=110990&caixaBusca=N

    acesso em 20/10/09. Essa notcia traz informaes sobre a ADPF 186 protocolada um dia antes. Esta ao foi includa para a anlise. Outras pesquisas no site na parte de Pgina

    Inicial > Imprensa > Noticias STF demonstraram a inexistncia de outras aes de controle

    concentrado.

    http://www.sbdp.org.br/material_ver.php?idConteudo=1http://www.conectas.org/stfemfoco/home/processos/amicushttp://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=110990&caixaBusca=N

  • 11

    administrativas cujo objeto central eram aes afirmativas e o ensino

    superior no STF.

    Como o site do STF no mantm um banco de dados para pesquisa

    em palavras-chaves sobre aes em andamento, este meio no pode ser

    utilizado para a seleo das aes, mas foi essencial na obteno da peas

    processuais. Das quatro aes analisadas, duas tinham todas as peas

    processuais no site (ADPF 186 e ADI 3197) enquanto as peas das outras

    duas (ADI 2858 e ADI 3330) tiveram que ser conseguidas por cpia no

    balco em Braslia. Das quatro apenas a ADI 2858 foi concluda, pois houve

    perda de objeto julgada monocraticamente. Como as outras ainda no

    foram julgadas e mesmo a ADI 2858 no recebeu julgamento de mrito,

    pensou-se em outro modo de se analisar este tema, antes mesmo das

    decises.

    Deste modo, esta monografia visa analisar no os acrdos, mas a

    trajetria destas aes. Analisaremos a coerncia interna de todas as peas

    processuais que contm argumentao11 a ser considerada pelos ministros

    do STF em seus votos. H inmeros argumentos nestas peas, diversos

    interesses, pontos de vista, valores, ideologias, etc. e se pretende estudar a

    relao entre eles.

    A questo central como o conceito de igualdade tem sido

    construdo nestas aes e com quais outros conceitos cada viso da

    igualdade relacionada. Para isto, realizaram-se as seguintes perguntas:

    [1] Como funciona cada tipo de ao afirmativa questionada? [2] Quais so

    os argumentos principais apresentados a serem considerados pelo STF? [3]

    Qual a relao deste princpio da igualdade com outros argumentos

    principais (por exemplo, mrito, inexistncia de raas, etc.)

    Para responder estas perguntas o trabalho ter trs fases: a primeira

    ser terica e explicar os conceitos principais usados como base para o

    11 As peas analisadas foram: peties iniciais, pedidos de informaes dos requeridos, informaes da AGU, Informaes da PGU, Informaes da PGR, despachos, amici curiae,

    relatrios, votos j proferidos e decises de medida cautelar. No sero analisados os

    apensos ou as chamadas juntadas por linha.

  • 12

    restante da monografia; a segunda ser descritiva e tratar sobre os casos

    individualmente considerados dizendo como funciona cada poltica

    questionada e quais so os argumentos mais trazidos pelas peas

    processuais em caso de benefcios raciais e sociais, evidenciando as

    diferenas entre eles. A terceira parte ser qualitativa e tratar da coerncia

    dos argumentos comuns das aes chegando a concluses a partir das

    primeiras.

    Dados a limitao de tempo e de tema, no sero analisados todos os

    argumentos das quatro aes, mas apenas aqueles que tenham estrita

    relao com as perguntas realizadas. No sero analisados argumentos

    formais ou em relao competncia para a implementao dessas polticas

    pblicas, pois, vale dizer, o que se busca uma anlise do tema, e no das

    aes individualmente consideradas.

    Para a seleo de peas processuais analisadas, adotou-se como

    pressuposto que o relator do caso cumpriu todas as exigncias legais e

    jurisprudncias ao aceitar ou rejeitar qualquer pea apresentada. Deste

    modo, com relao aos amicus curiae, um importante meio legitimador de

    decises polmicas e de grande relevncia na sociedade civil, como no tema

    aqui tratado, sero desconsiderados os amici no aceitos pelo relator como

    integrante do processo principal.

  • 13

    3. Consideraes Preliminares: o que significa ter direito

    igualdade? Limites de uma anlise jurdica

    O objetivo destas consideraes preliminares apenas de situar o

    leitor sobre como analisar e delimitar o direito igualdade. Questionamos

    qual o limite de uma anlise jurdica numa questo na qual est inserida

    elementos ticos, histricos, polticos, antropolgicos, culturais e, qui,

    genticos.

    Ter um direito , em geral, uma questo abstrata. Nem sempre

    fcil saber o que significa ter direito sade, moradia, educao, etc.

    Embora possa haver outros direitos, como a aposentadoria aos 65 anos de

    idade que conta com um contedo mais claro, em geral, os direitos

    fundamentais so trazidos por normas com alto grau de indeterminabilidade

    a priori. diferente de se ter uma coisa em si mesma palpvel e definida.

    Segundo Oscar Vilhena12, ter um direito ser beneficirio de deveres

    correlatos provenientes de outras pessoas ou do Estado. A noo de direito

    , portanto, interligada com a de deveres. Quando falamos no direito

    fundamental da igualdade, alm da j complicada questo sobre o que

    significa possuir este direito igualdade ainda existe essa mesma

    dificuldade em se considerar quem o agente responsvel pela obrigao

    de satisfazer esse direito. Discute-se se seria apenas o Estado ou este dever

    tambm atinge os particulares.

    H, ainda, outra dificuldade na definio do direito de algum a

    alguma coisa. Empregamos o termo direito para designar realidades

    muito diferentes como numa relao contratual ou direito a no-tortura. O

    direito, ora visto como uma reivindicao legal, ora como um poder, ora

    como uma liberdade ou imunidade13. Isto tambm tem nexo com a

    12 O. V. VIERA. Direitos Fundamentais: uma leitura da jurisprudncia do STF, So Paulo:

    Malheiros, 2006, p. 21.

    13 O. V. VIERA. Ob. Cit. p. 22.

  • 14

    dificuldade em se definir o princpio da igualdade. Questiona-se se seria

    este uma imunidade contra privilgios desmerecidos, ou, uma reivindicao

    legal de ter as mesmas condies de partida de meus concorrentes em

    concursos como o vestibular ou, ainda, um poder de exigir polticas pblicas

    de compensao.

    Obviamente, ter um direito no se confunde com ter uma presuno

    absoluta. Ainda mais no contexto da nossa Constituio Federal de 1988

    (CF) que possui um amplo leque de garantias expressas. H muitas

    sobreposies e conflitos entre os diversos enunciados normativos

    constitucionais, como, por exemplo, na proteo livre manifestao do

    pensamento (art. 5, inc. IV) e intimidade (art. 5, inc. X). Estas normas,

    mais especificamente, estes princpios14 so sobrepostos e no difcil

    imaginar exemplos nos quais assuntos de reas privadas, se expostos em

    meios de comunicao, trariam uma grave perda de honra e intimidade.

    Estes direitos no so, portanto, uma esfera intransponvel. Porm, para ser

    aplicados de maneira prtica, precisam ser ponderados. E somente a

    partir desta ponderao no caso concreto que se consegue perceber a exata

    dimenso de um direito.

    Tendo esta necessidade do casusmo para conceituar um direito

    fundamental como pressuposto, nesta monografia se busca analisar qual

    o contedo do princpio da igualdade, ou seja, como o princpio da

    igualdade tem sido usado como argumento, tanto para defender quanto

    para rechaar polticas de ao afirmativa no ensino superior a partir de

    uma anlise das peas processuais.

    14 Adota-se nesta monografia a distino entre regras e princpios de Alexy, tambm

    esclarecida por Virglio Afonso da Silva in Princpios e Regras: Mitos e Equvocos acerca de

    uma distino, Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais 1 (2003): 607-630. Esta distino qualitativa e considera que princpios so deveres prima facie, ou seja, so

    mandamentos de otimizao que dizem que algo deve ser realizado na maior medida do

    possvel diante das possibilidades fticas e jurdicas existentes cujos conflitos so solucionados atravs da regra da proporcionalidade enquanto as regras seriam aplicadas com

    base no tudo ou nada e seus conflitos se resolvem no mbito da validade (hierarquia,

    especialidade, anterioridade).

  • 15

    Importante ressaltar, contudo, que as expresses centrais da CF no

    so consensuais. Ao contrrio, elas enfrentam constantes disputas em todos

    os mbitos da sociedade, mesmo a no-jurdica.

    A adoo de conceitos valorativos como liberdade e igualdade por um

    meio normativo (normas constitucionais) no transformam essas

    expresses polticas em tcnico-jurdicas15. Vale dizer, no se neutraliza o

    significado destas expresses, nem se encerra a disputa poltica e filosfica

    em torno das conseqncias de aplicao destas normas. Algo diferente

    quando a legislao se utiliza de conceitos tcnico-jurdicos, como,

    usucapio, resilio, apropriao indbita, etc., que por menos unanimidade

    que se tenha, a discusso se concentra, em geral, nos chamados

    operadores do direito.

    Essa utilizao de conceitos polticos transfere para a esfera de

    aplicao da CF o debate sobre o valor destes princpios. O que, em parte,

    justifica o porqu dos tribunais estarem cada vez mais decidindo sobre

    questes de carter poltico e moral, tendo que resolver conflitos de valores

    decorrentes de conceitos imprecisos.16

    15 O. V. VIERA. Ob. Cit. p.54.

    16 Idem, Ibidem.

  • 16

    4. Delimitando conceitos controversos: Aes

    Afirmativas

    Este tpico ir delimitar o conceito aes afirmativas para os fins

    dessa monografia, alm de introduzir as principais polmicas desenvolvidas

    no decorrer do trabalho relacionadas a este.

    A expresso ao afirmativa to controversa que nem sobre a sua

    origem h consenso. H autores que dizem que ela surgiu pela primeira vez

    na linguagem legal norte-americana e mundial num discurso do presidente

    Jonh Kenedy na criao do Comit de Oportunidades Iguais de Empregos17.

    Outros autores dizem que neste contexto, ao afirmativa significava um

    meio de assegurar prticas de contratao sem levar conta a raa, como se

    fosse uma proibio da discriminao. Diferentemente do que hoje se

    interpreta para esta expresso cujo significado est ligado a medidas

    incisivas de discriminao positiva, visto pela primeira vez18 com o Plano

    da Filadlfia anunciado pelo Presidente Richard Nixon em 196919

    No entraremos nessa discusso terica. Por isso, adotaremos um

    conceito muito citado na doutrina e reiterado nas peas processuais

    analisadas. Pode-se, portanto, adotar como definio de aes afirmativas

    do modo como escrito pelo Min. Joaquim Barbosa que diz:

    Aes afirmativas podem ser definidas

    como um conjunto de polticas pblicas e privadas

    17 P. L. de MENEZES. Reserva de Vagas para a Populao Negra e o Acesso ao Ensino Superior - uma anlise comparativa dos limites constitucionais existentes entre no Brasil e

    nos Estados Unidos da Amrica, Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Direito do Estado da USP, So Paulo, 2006, p. 20.

    18 D. MAGNOLI. Uma gota de sangue Histria do Pensamento Racial, So Paulo: Contexto,

    2009, p. 85

    19 Este plano previa metas e cronogramas para incluir candidatos negros em postos de

    trabalhos na construo civil da cidade. Embora o presidente Nixon negasse que tentassem impor uma reserva de vagas, alguns senadores da poca j se inflamavam contra essa

    poltica de cotas, pois o empregador devia fixar metas numricas ou cronogramas para

    solucionar o desequilbrio racial e de gnero.

  • 17

    de carter compulsrio, facultativo ou voluntrio,

    concebidas com vistas ao combate discriminao

    racial, de gnero, por deficincia fsica e de origem

    nacional, bem como para corrigir ou mitigar os

    efeitos presentes da discriminao praticada no

    passado [...] com vistas concretizao de um

    objetivo constitucional universalmente reconhecido

    o da efetiva igualdade de oportunidades a que

    todos os seres humanos tm direito. 20

    Em outras palavras, so polticas pblicas de diferenciao que do

    tratamentos jurdicos diversos a determinadas pessoas, visando corrigir

    desigualdades fticas, sejam estas econmicas ou sociais. Elas devem ter

    um claro objetivo de integrar ou mais propriamente, igualar setores

    marginalizados numa dada sociedade em que esto inseridos. Estas aes

    costumam ter carter transitrio, ou seja, apenas enquanto a desigualdade

    se observa.21 um reconhecimento da necessidade de tratar

    diferentemente grupos de pessoas em situaes desfavorveis. Uma busca

    pela real igualdade de oportunidades eliminando qualquer fonte de

    discriminao direta ou indireta. No caso de as aes afirmativas estatais,

    exige-se um comportamento ativo do Estado em contraposio atitude

    liberal negativa de no discriminar.

    Este conceito deveras amplo. Nele esto inclusas as mais diversas

    polticas pblicas, que apesar da mesma finalidade concretizadora da

    igualdade, atua por diferentes meios, por exemplo: a instituio de cotas ou

    nveis de participao mnimos de minorias22; preferncia ou uso do fator

    20 J. B. B. Gomes, A Recepo do Instituto de Aes Afirmativas pelo Direito Constitucional

    Brasileiro in S. A. dos SANTOS, (org). Aes Afirmativas e Combate ao Racismo nas

    Amricas, Braslia: Ministrio da Educao Coleo Educao para Todos, 2005, p. 53.

    21 P. L. de MENEZES. Ob. Cit., p. 12.

    22 Importante ressaltar que as aes afirmativas, embora possam ser utilizadas para tal, no se confundem com a proteo ao direito de minorias. Esta proteo muito mais ampla e

    constante, diversificando-se do carter transitrio da primeira. Alm disto, o que se pretende

  • 18

    raa como critrio de seleo; adoo de diretrizes que produzam efeitos

    para melhorar as perspectivas dos integrantes de grupos especficos;

    concesso de bolsas de estudo ou cursos preparatrios para alunos carentes

    visando atingir a igualdade de oportunidades com os demais candidatos em

    um processo seletivo; etc.

    Por este motivo, a simples nomenclatura de ao afirmativa em

    uma poltica pblica no suficiente para demonstrar constitucionalidade. A

    simples constatao dos resultados pretendidos, tambm no o bastante.

    Alm dos fins, a anlise dos meios se faz fundamental. Apenas tendo

    conscincia da poltica em sua totalidade se pode fazer um juzo de valor

    moral e jurdico desta. Em outras palavras, devem ser verificados aspectos

    relacionados [1] aos fins, [2] aplicao prtica e [3] aos resultados.

    Portanto, necessria uma anlise crtica e casustica para se verificar quais

    so os benefcios e/ou malefcios trazidos.

    H diversas posies sobre as polticas de ao afirmativa23,

    normalmente, condicionadas ao modo de execuo destas. Em carter

    geral, podemos afirmar que as principais justificativas para estas polticas

    so: justia compensatria ou correo dos efeitos presentes de atos

    discriminatrios passados; justia distributiva ou busca de igualdade justa e

    eficiente; preveno de discriminao futura; proteo diversidade; etc.

    J as crticas negativas so: discriminao reversa pelo uso de

    critrios arbitrrios na definio dos beneficiados; risco de

    institucionalizao da discriminao pela relevncia social negativa dada aos

    fatores discriminantes; comprometimento do sistema meritocrtico;

    concesso de benefcios para indivduos que no se encontram em situao

    desvantajosa j que as minorias no so uniformes; criao de uma elite

    dentro das prprias minorias favorecidas pelo mesmo motivo anterior;

    penalizao de indivduos inocentes; estigmatizao dos beneficiados que

    atravs das aes afirmativas corrigir desigualdades decorrentes de diversas injustias

    socialmente produzidas. No seria um fim legtimo se as aes afirmativas aniquilassem com a diversidade inata de uma sociedade plural. Para mais informaes vide P. L. de MENEZES.

    Ob. Cit., p. 20

    23 Idem, pp. 16-20

  • 19

    desvalorizaria sua conquista; equvocos na seleo dos critrios distintivos,

    a desigualdade econmica seria a maior razo da discriminao, enquanto

    as polticas se utilizam de outros critrios como a raa ou gnero; criao

    de guetos separando aqueles que foram aprovados mediante benefcios

    daqueles que contaram apenas com seus mritos.

  • 20

    5. Delimitando conceitos controversos: Igualdade

    Neste captulo se far um breve relato das quatro teorias relevantes

    para o tema proposto, citadas pelas peas processuais sobre qual seria o

    contedo da igualdade e como atingi-lo.

    Inicialmente, mister diferenciar direitos e privilgios. H uma linha

    divisria, ainda que pouco ntida, entre um direito fundamental

    justificadamente atribudo a uma categoria de pessoas e um privilgio

    indevidamente conferido a outros grupos de pessoas. Mesmo que ambos

    tenham a mesma estrutura (por exemplo, iseno fiscal) dificilmente

    encontraramos uma justificao moral para a concesso de privilgios (por

    exemplo, para os considerados nobres). J a distribuio de um direito

    fundamental de forma desigual tem por finalidade gerar igualdade material

    entre as diversas categorias de pessoas (por exemplo, iseno fiscal para

    aqueles considerados de baixa renda). Seria passvel de justificao se

    fosse demonstrvel que h um nexo de causalidade entre as diferenas

    especficas daquele grupo e os direitos voltados a equipar-los24.

    Importante ressaltar, como visto no captulo anterior, que para as

    aes afirmativas serem consideradas constitucionais, estas devem

    constituir direitos aos seus beneficiados. De modo nenhum, pode-se

    defender concesses de privilgios no justificveis moralmente. Cabe a

    quem defende as aes afirmativas o nus argumentativo de inclu-la como

    um direito e a quem a considera inconstitucional, o nus de dizer o porqu.

    A igualdade um direito fundamental reconhecido como alto valor

    moral atribudo a todos os homens que justificam a idia de contrato e a

    aplicao de leis abstratas e universais, como visto na Declarao dos

    Direitos do Homem e do Cidado de 1789 (todos os homens nascem livres

    e iguais).

    24 O. V. VIERA. Ob. Cit., p. 25.

  • 21

    Mas este valor moral uma reivindicao social e politicamente

    construda, pois como dito na introduo desta monografia, h uma grande

    distncia entre estes postulados e a realidade no que concerne a igualdade.

    preciso ter isto em mente como ponto de partida ao se atentar para as

    diversas teorias.

    5.1 O Paradoxo da Igualdade

    Casos como as aes afirmativas so caracterizados por constiturem

    uma coliso entre normas de direitos fundamentais idnticos. Quem

    defende acredita estar atuando em nome da igualdade, quem o rechaa tem

    plena convico de que a prtica dessas polticas faria perecer um pilar do

    Estado Moderno: a igualdade. Est em jogo: igualdade versus igualdade.

    O jurista Robert Alexy considera que esses conflitos de colises de

    direitos fundamentais idnticos relativos titulares diferentes ocorre

    quando comparamos o lado ftico e o lado jurdico deste mesmo direito. Por

    exemplo, ao verificar a igualdade jurdica, consideramos todos iguais, e,

    deste modo, seria inconstitucional tratar pobres e ricos diferentemente ao

    pagamento de custas processuais. Mas se atentarmos a igualdade ftica,

    a opo de absteno que se mostra anti-isonmica, j que retiraria dos

    necessitados o acesso a justia25.

    Quanto mais se amplia o principio da igualdade, mais as buscas pelas

    igualdades jurdicas e fticas se tornaram um paradoxo.

    Ainda, quanto mais se intensificam princpios de um Estado Social,

    mais forte se torna esse paradoxo. Numa CF recheada de direitos sociais ao

    lado dos direitos liberais, como a brasileira, esses conflitos so cada vez

    mais presentes. A proibio de no discriminao favorece uma igualdade

    25 ALEXY, Robert. Coliso e ponderao como problema fundamental da dogmtica dos direitos fundamentais. Palestra proferida no Rio de Janeiro, na Fundao Casa de Rui

    Barbosa, em outubro de 1988. Trad. Gilmar Ferreira Mendes, no prelo.

  • 22

    jurdica enquanto a reduo das desigualdades sociais vai ao encontro de

    uma igualdade ftica.

    5.2 Material e Formal

    A afirmao de que os homens so iguais em direitos, como feita no

    art. 1 da Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado firma a

    igualdade jurdico-formal. O princpio teria como destinatrio tanto o

    legislador, ao escrever a norma, como o aplicador, ao cumprir para todos o

    que a norma diz, sem distino.

    Neste contexto, a igualdade formal tem carter negativo, de no-

    discriminao, de absteno do Estado e visa abolir os privilgios e regalias

    de extratos sociais, como a iseno de impostos do clero e da nobreza na

    Idade Mdia. Foi este o sentido da igualdade tal como defendido na

    concepo liberal da Revoluo Francesa e Americana. A lei deve ser

    genrica e abstrata, tratar todos da mesma forma, sem levar em

    considerao as distines entre os grupos pertencentes sociedade.26

    A igualdade formal, com o tempo, se tornou mantenedora do status

    quo da sociedade. Percebeu-se a insuficincia em se tratar todos de

    maneira geral e abstrata. Havia a necessidade de especificar o sujeito de

    direito em sua particularidade, assim determinadas violaes exigiriam

    respostas individualizadas. Mais ainda, notou-se que deveria ser conferida

    uma maior proteo para alguns setores da sociedade em face de sua maior

    vulnerabilidade27. Este seria o conceito de igualdade material visando uma

    igualdade de condies e de oportunidades, produto de um Estado Social de

    Direito. o desigualar para igualar.

    26 J. A. da SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, 31 ed., So Paulo: Malheiros, 2008, pp. 213-4

    27 F. PIOVESAN. Ao Afirmativa sob a perspectiva dos direitos humanos in S. A. dos

    SANTOS, (org). Aes Afirmativas e Combate ao Racismo nas Amricas, Braslia: Ministrio

    da Educao Coleo Educao para Todos, 2005, p. 36.

  • 23

    5.3 Isonomia e fator discriminante

    Celso Antnio Bandeira de Mello um autor de maior uso recorrente

    pelas partes nos processos analisados. A doutrina defendida por ele

    utilizada tanto para apoiar quanto para negar a constitucionalidade das

    aes afirmativas, dada a grande margem interpretativa dos pressupostos

    dados.

    De maneira geral, o autor defende qualquer fator residente nas

    coisas, pessoas ou situaes, inclusive o racial, pode ser utilizado como

    discriminante legitimadamente aceito, desde que possua vinculo de

    correlao lgica entre a peculiaridade diferencial escolhida e a finalidade

    pretendida28. Diz ainda, que o art. 5, caput29 da CF no barreira

    insupervel a desequiparao baseada nesses elementos, pois h a

    possibilidade de justificativa no incompatvel com interesses prestigiados

    na Constituio.

    S haveria ofensa ao principio da igualdade, chamado pelo autor de

    isonomia, quando a norma: singulariza atual e definitivamente um

    destinatrio determinado; adota como critrio discriminador elemento no

    residente nos fatos, situaes ou pessoas por tal modo desequiparadas;

    atribui tratamentos jurdicos diferentes em ateno ao fator de discrmen

    adotado que no guarda relao de pertinncia lgica com a disparidade;

    suponha uma relao de pertinncia do discrmen adotado, mas na prtica

    haja efeitos contrrios dos protegidos constitucionalmente; a interpretao

    dela extrai distines que no foram professadamente assumidos, ainda que

    implicitamente30.

    Esta teoria tem como principal avano esclarecer que uma

    desigualao no , por si s, inconstitucional. Porm a correlao lgica

    28 C. A. B. de MELLO, O Contedo Jurdico do Princpio da Igualdade, 3 ed., So Paulo: Malheiros, 2006, p.17.

    29 Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza [...]

    30 Idem. pp.47-8.

  • 24

    entre o fator discriminante e a discriminao legal decidida em funo dele

    pode ser enviesada para ambos os lados, como j foi salientado. Caso se

    considere que a raa um elemento impeditivo de acesso ao ensino

    superior, um sistema de cotas ou distribuio de bolsas raciais atingiria o

    objetivo de incluso. Agora, caso se aceite, que apesar do racismo e do

    preconceito, a raa no um fator impeditivo, pois o vestibular s afere o

    mrito e no a cor dos candidatos perde-se este vinculo lgico. O nus

    argumentativo enorme para ambos os lados.

    5.4 Redistribuio e Reconhecimento

    Outro modelo de anlise, proposto por Nancy Fraser, nos ajuda a

    melhor compreender essa diferena entre cotas para negros e cotas para

    estudantes oriundos de colgios pblicos.

    instintivamente diversa uma ao afirmativa para negros e uma,

    ainda que seja de igual modo executada, que favorea estudantes oriundos

    de escola pblica. Embora todas digam respeito busca pela justia ou

    equidade, esta no parece ser algo homogneo31.

    Nancy Fraser traz outra espcie de raciocnio dentro de uma anlise

    de polticas pblicas para pases cuja diversidade marca distintiva:

    Igualdade de Reconhecimento e Igualdade de Redistribuio32. Ambos os

    conceitos esto inseridos num contexto em que a luta por reconhecimento

    est cercada por uma desigualdade econmica. A questo central desta

    proposio desenvolver uma teoria crtica de reconhecimento que

    identifique e defenda apenas aquelas verses de polticas culturais de

    31 N. FRASER. From Retribution to Recognition? Dilemmas of Justice in a 'Post-Socialist' Age in New Left Review, issue: 212, vol. a, 1995.

    32 Idem, ibidem.

  • 25

    valorizao das diferenas que possam ser coerentes se combinadas com as

    polticas sociais de igualdade.

    Busca-se uma resposta para o dilema: como se valoriza a cultura

    diferente, ainda mais, como se ressalta a diversidade, se no posso trat-lo

    como diferente graas ao princpio da igualdade?

    Fraser defende que para a concepo de justia atual tanto o conceito

    de redistribuio quanto o reconhecimento so necessrios. As polticas

    pblicas devem adot-los de forma compatvel e no-excludente.

    Inicialmente, Fraser prope distinguir dois tipos de injustias. A

    primeira diz respeito a uma injustia socioeconmica enraizada na estrutura

    poltico-econmica da sociedade capitalista. Como exemplo, temos a

    explorao trabalhista e a marginalizao econmica. O segundo tipo de

    injustia seria aquela cultural ou simblica que tem origem nos modelos de

    (sub)representao. Tanto a dominao cultural quanto o no-

    reconhecimento e o desrespeito a caractersticas personalssimas podem ser

    considerados exemplos tpicos. Essa diferena , como j se disse, analtica.

    Na prtica h uma grande zona de interseco. Uma grande divergncia

    econmica propicia uma diferena cultural ainda maior.

    Apesar da diferena entre uma injustia socioeconmica e uma

    injustia cultural h alguns pontos em comum: ambas so cotidianamente

    realizadas na sociedade ps-moderna, compartilham das mesmas razes em

    processos ou prticas que colocam em desvantagem sistemtica

    determinados grupos de pessoas para beneficiar a outras e, principalmente,

    ambas precisam ser remediadas.

    Assim, Fraser distinguiu no apenas os dois tipos de injustias, mas

    tambm os dois tipos de soluo. O remdio para injustias econmicas

    seria uma reestrurao poltica e econmica, por exemplo, revertida em um

    aumento de salrio mnimo, uma reorganizao da diviso de trabalho ou

    alguma outra transformao na base econmica. Considerando todas estas

    possveis solues para igualar as pessoas, dentre outras, Fraser

  • 26

    denominou um termo genrico: redistribuio. O remdio para injustias

    culturais algum tipo de mudana cultural ou simblica. Como por

    exemplo, polticas de valorizao da diversidade, ou ainda algo, uma

    mudana de representao, interpretao e comunicao que vise

    transformar o senso comum de toda populao. Embora esses remdios

    sejam diferentes entre si, todos fazem parte do termo genrico:

    reconhecimento.

    Alm desta diviso, Fraser defende no seu texto que h um campo

    intermedirio entre ambas as injustias, e, consequentemente, entre ambos

    os remdios. Este campo chamado de injustias bivalentes. Ou seja, h

    algumas situaes em que h um forte carter tanto poltico econmico

    quanto cultural. Em situaes em que as dimenses esto to interligadas

    que no se pode buscar uma prevalncia do tipo de injustia sofrida ambos

    os remdios so necessrios. Tanto o reconhecimento quanto a

    redistribuio.

    Usando esta terminologia empregada por Fraser poderamos

    distinguir as propostas de cotas raciais e sociais. A questo econmica

    clara quando se diz respeito a estudantes oriundos de escolas pblicas ou a

    algumas limitaes salariais impostas na lei. Obviamente uma questo de

    redistribuio.

    J a questo racial trazida pela prpria Fraser33 como uma tpica

    injustia bivalente, ou seja, envolve tanto uma injustia socioeconmica

    quanto uma injustia cultural. Se por um lado, a escravido trouxe um

    grave legado de excluso profissional e financeira, nunca superado sendo

    que at hoje os negros tm salrios menores que brancos na mesma

    posio. Por outro, as correntes racistas do sculo XX consideravam o

    negros como raa inferior em inteligncia e tradio. O esteretipo da pele

    escura at hoje tido como negativo. O remdio necessrio seria a

    redistribuio quanto o reconhecimento do papel do negro na sociedade.

    33Idem, p.78.

  • 27

    Importa que se considere essa dupla finalidade das polticas raciais,

    ainda que seja para declarar a inconstitucionalidade delas. No suficiente

    uma argumentao que no veja o aspecto cultural e de insero que as

    polticas de acesso ao ensino superior visam ao favorecer os negros.

    Ressalta-se que a diviso de igualdade de reconhecimento e de

    redistribuio no so subespcies da igualdade material. possvel buscar

    uma igualdade de reconhecimento atravs de uma igualdade formal, por

    exemplo, atravs da criminalizao do racismo, uma norma abstrata que

    atinge a todos da mesma forma, mas que reconhece direitos. Essa

    classificao igualdade material e formal no se confunde com a de

    reconhecimento e redistribuio, ambas podem ser usadas para

    entendermos as caractersticas da argumentao apresentadas nas peas.34

    34 Em sentido diverso defende Flvia Piovesan no artigo, j citado: Ao Afirmativa

    sob a perspectiva dos direitos humanos in S. A. dos SANTOS, (org). Aes Afirmativas e

    Combate ao Racismo nas Amricas, Braslia: Ministrio da Educao Coleo Educao

    para Todos, 2005. A autora diz na p. 36: Destacam-se, assim, trs vertentes no que tange concepo da igualdade: a) igualdade formal, reduzida formula todos so iguais perante

    a lei (que, ao seu tempo, foi crucial para a abolio de privilgios); b) a igualdade material,

    correspondente ao ideal de justia social e distributiva (igualdade orientada pelo critrio scio-econmico); e c) a igualdade material, correspondente ao ideal de justia enquanto

    reconhecimento de identidades (igualdade orientada pelos critrios de gnero, orientao

    sexual, idade, raa, etnia e demais critrios)[...].

  • 28

    6. Aes no STF e seu contexto

    O foco desta monografia, como j salientado, no so os casos

    individualmente considerados, mas o tema em comum entre eles, ou seja, a

    argumentao referente constitucionalidade das aes afirmativas. As

    nuances de cada caso no sero avaliadas, com exceo daquelas que

    contenham estreita relao com as perguntas propostas.

    Porm, ainda assim, importante entender os contextos nos quais

    estas aes se inserem visando uma melhor percepo do que exatamente

    est em jogo, como se d poltica em cada caso e suas diferenas. Para

    isto, neste captulo se far um breve resumo dos casos analisados, dizendo

    quem tem levado estas questes at a corte, como se tem desenvolvido

    processualmente os casos e quais so os outros argumentos impeditivos de

    aplicao das aes afirmativas, mas no relacionados diretamente ao

    mrito destas (por exemplo, inconstitucionalidade formal).

    6.1 ADI 2858 e ADI 3197: Cotas nas estaduais do

    Rio de Janeiro

    A CONFENEN props no STF duas ADIs que tratam da

    constitucionalidade de um sistema de reserva de vagas para as duas

    universidades estaduais do Rio de Janeiro, quais sejam: a Universidade do

    Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade Estadual do Norte

    Fluminense (UENF). Com isto, se iniciou o debate sobre cotas raciais e

    sociais no STF.

    O primeiro caso de controle concentrado de constitucionalidade

    levado ao STF foi a ADI 2858 por volta de maro de 2003. Nela se

    questiona um conjunto de trs leis35 que implementam o seguinte sistema

    de reserva de vagas: 50% do total de vagas para estudantes oriundos de

    35 As Leis estaduais do RJ so: Lei 3254/2000, Lei 3.708/2001 e Lei 4061/2002

  • 29

    escolas pblicas municipais ou estaduais do RJ, 40% do total de vagas para

    negros ou pardos; 10% do total de vagas para deficientes, a ser descontado

    do total de vagas dos estudantes proveniente do ensino pblico, conforme

    os grficos a seguir:

  • 30

    Este conjunto de leis, aprovado no decorrer de trs anos, foi de difcil

    aplicao, pois, ao contrrio do que pode parecer primeira vista, no h

    um critrio claro e suficiente nos ndices das reservas de vagas. Explico

    melhor: h duas possibilidades de interpretao na aplicao dessas leis.

    Para exemplificar, criemos um universo hipottico de 100 vagas.

    A ttulo de simplificao, desconsideraremos o percentual reservado

    aos deficientes fsicos, j que este claro: reserva-se 10% do total de

    vagas que ser descontado da reserva feita para os estudantes oriundos de

    escolas pblicas, que, portanto, contara com a reserva de 40% do total de

    vagas.

    A primeira possibilidade de interpretao, na qual a PI se baseia,

    entende que dessas 100 vagas, com base na primeira lei, 50 iro para

    estudantes de escola pblica e 50 para estudantes de escolas privadas.

    Depois, com base na segunda lei que reserva 40% das vagas para negros,

    essas vagas receberiam uma subdiviso para a aplicao do percentual.

    Ento, das 50 vagas para alunos oriundos de ensinos pblicos, 20 seriam

    reservadas para negros ou pardos e 30 seriam livres das classificaes

    raciais. Do mesmo modo, os estudantes oriundos de escolas privadas tm

    das 50 vagas reservadas, 20 guardadas para negros ou pardos e 30 livres.

    Acontece que esta interpretao no a nica possvel e nem a mais

    acertada. A Lei 3708/01 estabelece cota de 40% para as populaes

    negras e pardas no preenchimento das vagas relativas ao curso de

    graduao. Depois, no nico diz que esta cota inclui tambm os negros

    e pardos beneficiados pela lei 3524/00. Deste modo, exemplificando

    naquele mesmo universo hipottico, do total de alunos que prestaram o

    vestibular, classificam-se os 40% melhores colocados negros ou pardos.

    Posteriormente, subdividem-se estes negros, j classificados, em outras

    duas classes: provenientes de ensino pblico ou de privado. Suponhamos

    que destes 40% aprovados, 30 negros ou pardos sejam oriundos de escolas

    particulares e 10 provenientes de ensino pblico. Neste ponto, completa-se

    o nmero de vagas restantes com os alunos livres de classificao racial, ou

    seja, sero aprovados 20 alunos no negros ou pardos oriundos do ensino

  • 31

    particular e 40 alunos no negros ou pardos provenientes de colgios

    pblicos.

    Note-se que apesar do nmero total das vagas reservadas para

    negros ou pardos serem os mesmos em ambos os casos (40), as pessoas

    classificadas nelas, no o so, necessariamente. Se pegssemos o segundo

    exemplo dos 30 negros aprovados de ensino mdio particular e

    aplicssemos as cotas nos moldes do primeiro exemplo, 10 perderiam o

    direito a vaga para 10 negros ou pardos de colgios pblicos.

    No se trata de discutir qual modelo de reserva de vagas melhor ou

    pior para atender os objetivos pretendidos, mas de perceber uma

    dificuldade bsica de se entender a lei. O que demonstra uma total falta de

    tcnica legislativa, que pode at impedir que os objetivos traados pelas

    polticas sejam atendidos. A criao de leis em momentos diversos no

    escusa o legislador de pensar o ordenamento como um todo, ou pelo

    menos, de entender todo o sistema de reserva de vagas da mesma

    universidade, independentemente se para negros ou estudantes de escolas

    pblicas, como parte da mesma poltica de ao afirmativa. No se pode

    pretender criar uma poltica pblica de insero de modo aleatrio e

    recortado.

    Apenas um exame foi realizado sob a gide destas leis. O vestibular

    2003, unificado para vagas da UENF e da UERJ, j tinha iniciado. Para

    cumprir as prescries das leis o vestibular teve que ser dividido em dois

    com grau de dificuldade similar: o SADE (Sistema de Acompanhamento de

    Desempenho dos Estudantes do Ensino Mdio), destinado a alunos que

    pleiteavam as vagas reservadas para alunos oriundos de colgio pblicos, e

    o chamado "Vestibular Estadual", destinado aos alunos que concorriam s

    vagas livres36. Para aplicar o percentual relativo a cotas para negros as

    universidades no utilizaram nem a primeira nem a segunda interpretao

    apresentada acima, criando uma terceira corrente interpretativa, no para

    seguir a lei a risca, mas para conseguir, de alguma forma, implementar

    aquela poltica pblica.

    36 http://www.uerj.br/modulos/kernel/index.php?pagina=915 - acesso em 09/11/2009.

    http://www.uerj.br/modulos/kernel/index.php?pagina=915

  • 32

    O edital da primeira fase do SADE previa No preenchimento das

    vagas do SADE ser verificado o percentual de candidatos autodeclarados

    negros ou pardos, para atendimento cota de 40% . J o da segunda fase

    dizia: A UERJ e a UENF, por fora da Lei n 3.708/2001 e do Decreto n

    30.766/2002, reservaro 40% (quarenta por cento) do total de vagas

    relativas aos seus cursos de graduao para candidatos que se

    autodeclararem negros ou pardos, obedecidos os critrios definidos no art.

    3 do referido Decreto. O percentual acima ser calculado sobre o

    somatrio das vagas destinadas ao Vestibular SADE/2003 e ao Vestibular

    Estadual/200337. Ou seja, para o calculo de 40% das vagas reservadas

    seria utilizado o nmero total de vagas oferecidas pela universidade,

    independente das cotas para estudantes de escola pblica, at este ponto,

    todas as correntes interpretativas esto de acordo. A grande diferena na

    hora de selecionar quem ocupar essas vagas e o edital da segunda fase, j

    no seu captulo 8 diz: Feita classificao, conforme item 8.1, para efeito

    de clculo do percentual de 40% dos candidatos negros ou pardos

    autodeclarados, sero considerados, inicialmente, os candidatos do

    Vestibular SADE/2003. Caso este percentual no seja atingido, sua

    complementao dar-se- com os candidatos negros ou pardos

    autodeclarados do Vestibular Estadual/2003. No foi utilizada nem a

    interpretao da PI, nem a proposta por esta monografia. Para a contagem

    do percentual de 40% as universidades obedeceram aos seguintes passos:

    [1] classificar, na reserva de vagas de 50%, os melhores estudantes

    oriundos de colgios pblicos. [2] observar quantos alunos aprovados em

    [1] so negros e pardos. [3] verificar se com os alunos de [2] a cota de

    40% j preenchida e caso no seja, quantificar o nmero de alunos

    negros ou pardos que faltam para completar esta cota. [4] completar a cota

    de 40% de alunos negros ou pardos com os estudantes melhores

    classificados e assim autodeclarados do vestibular estadual (oriundos de

    37 Edital disponvel em:

    http://www.vestibular.uerj.br/portal_vestibular_uerj/sade_2003/exame_discursivo/ed_editai

    s_e_anexos_edital_de_convocacao.html - acesso em 10/11/2009.

    http://www.vestibular.uerj.br/portal_vestibular_uerj/sade_2003/exame_discursivo/ed_editais_e_anexos_edital_de_convocacao.htmlhttp://www.vestibular.uerj.br/portal_vestibular_uerj/sade_2003/exame_discursivo/ed_editais_e_anexos_edital_de_convocacao.html

  • 33

    escola particulares) [5] preencher o restante das vagas os alunos oriundos

    de escolas particulares, obedecendo a classificao do vestibular estadual.

    Novamente, percebe-se a gravidade de leis desconexas. Vale

    relembrar que no se discute qual o melhor modelo de aplicao, mas a

    incapacidade legislativa em no definir com exatido qual o modelo que

    est sendo proposto.

    Neste aspecto, outra observao se faz necessria: no se encontra

    essa discusso em nenhuma das peas processuais da ADI 2858. Nem as

    informaes da governadora, nem a Assemblia Legislativa do RJ

    questionam o molde de aplicao interpretado pela PI. As peas apenas

    copiam as leis, como se fosse suficiente para a aplicao prtica. A

    discusso se torna muito mais ideolgica e sem base prtica se no se

    busca entender o que a lei diz e quem est sendo efetivamente beneficiado.

    Todos os trs modelos de interpretao so passveis de criticas e elogios,

    mas necessrio, antes de qualquer afirmao, ver o que de fato

    realizado. No pretendo defender um argumento estritamente jurdico que

    se baseasse exclusivamente na letra da lei, mesmo porque, j vimos que

    isto no possvel no caso do direito igualdade pelo seu alto grau de

    indeterminabilidade a priori. O que acredito ser de fundamental importncia

    saber sobre para quem se est reservando vagas, at para poder

    questionar se a finalidade da poltica atingida, quando, por exemplo, se

    reservam vagas para estudantes negros ou pardos oriundos do ensino

    particular.

    Dada a dificuldade prtica de aplicao destas leis, j densamente

    demonstrada, pouco tempo depois, mais propriamente, no dia 05 de

    setembro de 2003 as leis que originaram a ao foram revogadas e

    substitudas pela Lei estadual 4.151/03 RJ, causando a perda de objeto da

    ADI 2858, prejudicando-a sem exame de mrito.

    Esta nova lei constituiu um modelo de reserva de vagas mais claro, e

    finalmente, aplicvel, simplificado e adotando novos nmeros. Na

    elaborao do projeto houve a participao da UENF e da UERJ, diretas

  • 34

    interessadas, sendo que a ltima props alteraes nos projetos de cotas38

    para unificar as duas modalidades (negros e estudantes oriundos de escola

    pblica). O que de fato aconteceu.

    O resultado foi uma lei com a inteno clara de proteger

    primeiramente os alunos carentes, um remdio de distribuio, assim

    definidos valendo-se dos critrios scio-econmicos oficiais a ser definido

    pelas universidades39. Para estes alunos, h reserva de 20% se o aluno for

    oriundo de escolas pblicas de ensino mdio estaduais, municipais ou

    federais situadas no RJ; 20% se o aluno se autodeclarar negro e 5% se for

    deficiente fsico ou pertencente a outras minorias tnicas. Os candidatos a

    qualquer uma das reservas s concorriam por uma das modalidades,

    mesmo se fizessem jus a mais de uma delas, como consta no art. 1 4 da

    Lei 4.151/03 RJ.

    Observe que quando a raa se torna uma varivel nesta poltica,

    temos um remdio tanto de redistribuio quanto de reconhecimento. J foi

    dito que a raa sofre injustias bivalentes. Nota-se que o critrio de renda

    38 http://www.uerj.br/modulos/kernel/index.php?pagina=915 acesso em 09/11/2009.

    39 Para o primeiro vestibular institudo sob a gide do novo sistema, em 2004, s poderiam ser inscritos estudantes com renda familiar mensal per capita de no mximo R$300,00

    lquidos. Fonte: http://www.uerj.br/modulos/kernel/index.php?pagina=915 acesso em

    09/11/2009.

    http://www.uerj.br/modulos/kernel/index.php?pagina=915http://www.uerj.br/modulos/kernel/index.php?pagina=915

  • 35

    uma limitao das cotas para negros, deixando claro que no se pretende

    beneficiar negros com alto valor aquisitivo, mas pretendem dar um bnus

    adicional para aqueles que, alm de pobres, sofrem um conjunto de

    preconceito e excluso racial.

    J em maio de 2004, a CONFENEN protocolou o segundo caso sobre

    aes afirmativas no STF, a ADI 3197, contra esta lei acima descrita.

    Uma questo relevante do argumento da CONFENEN o sumio dos

    pardos. A requerente alega, tendo como base uma notcia publicada pelo

    Jornal do Brasil escrita por Ali Kamel, que devido presso do movimento

    negro foi retirada da lei a expresso parda j que muitos assim

    considerados tinham nariz afilado, cabelo liso e pele de tom claro40.

    Argumenta ainda que negro sinnimo de preto. Apesar de nem as

    informaes da assemblia legislativa nem as informaes da governadora

    negarem esse argumento, ele no verdadeiro. O IBGE utiliza a expresso

    negros para incluir os pretos e pardos. A lei deveria ter sido mais clara,

    mas isto no significa que os pardos esto excludos do sistema de cotas.

    Alm disto, nestas universidades, utilizado o mtodo da autodeclarao

    para o estudante concorrer a essas vagas. O que dificultaria ainda mais

    uma suposta proibio de pardos concorrem por este sistema.

    H que se fazer uma crtica com relao demora do STF,

    particularmente, neste caso. A PI, protocolada em 2004, pedia uma medida

    cautelar para impedir que o vestibular daquele mesmo ano fosse feito sob a

    gide desta lei. Mas, somente em junho de 2007 o Min. relator, Seplveda

    Pertence, por um despacho comunicou que no julgaria a medida cautelar,

    pela seguinte justificativa:

    Inegvel o relevo de direitos e garantias

    fundamentais da questo, bem como os princpios

    constitucionais aparentemente em conflito, o que

    exige um debate amplo e maduro, especialmente

    tendo em vista as polticas pblicas e suas

    40 ADI 3107. Petio Inicial, p.9.

  • 36

    conseqncias que a deciso do Supremo Tribunal

    Federal seja pela constitucionalidade ou pela

    inconstitucionalidade acarretar. Esse o quadro,

    apesar da urgncia tpica que tal discusso exige

    do Tribunal, prudente a reflexo mais profunda

    [...]41

    Aparentemente, ainda no refletimos o suficiente j que o caso ainda

    no terminou. No se questiona que este seja, de fato, um hard case, como

    disse a AGU42. Porm, levar mais de trs anos para comunicar que no ir

    julgar a medida cautelar me parece exagerado, ainda mais vindo do tribunal

    orgulhoso por ser o mais eficiente do pas43.

    Neste mesmo documento, o relator pediu novamente informaes

    assemblia legislativa e ao governo do estado do RJ. Estas foram prestadas

    nas iguais palavras de trs anos antes. Perderam a oportunidade de prestar

    informaes sobre como o sistema foi recebido pela sociedade acadmica,

    se estava funcionando.

    Ademais, a lei j fora modificada, em 2007, incluindo na cota de 5%

    alm dos deficientes e integrantes de outras minorias tnicas, tambm os

    filhos de policiais civis e militares, bombeiros militares e inspetores de

    segurana e administrao penitenciria, mortos ou incapacitados em razo

    do servio.

    Posteriormente, a Lei 5346, de 11 de dezembro de 2008 instituiu um

    novo sistema de cotas e revogou expressamente no apenas a lei objeto

    41 ADI 3197. Despacho do dia 08 de junho de 2007, p.639.

    42 ADI 3197. Informaes prestadas pela Advocacia Geral da Unio, p. 710

    43 No ano de 2008, foram protocolados 100.781 processos. J os julgados foram 130.747

    processos. O saldo positivo de quase 30.000 processos nico em todo o judicirio brasileiro. Fonte:

    http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=movimentoProce

    ssual acesso em 12/11/2009,

    http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=movimentoProcessualhttp://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=movimentoProcessual

  • 37

    desta ADI, como tambm a Lei 5074/07. Obviamente, apesar de ainda no

    ter sido julgado pelo STF, a ADI 3197 perdeu o objeto.

    Em relao a argumentaes comuns, ambas as aes dois

    argumentos so bastante relevantes: a falta de legitimidade ativa da

    CONFENEN e a falta de competncia legislativa do estado do Rio de Janeiro

    alegando ser de competncia da unio o sistema de ao afirmativa

    supostamente integrante das diretrizes e bases da educao.

    Outra questo exclusiva destes casos o fato do beneficio ser

    subordinado aferio de critrios territoriais no caso dos favorecimentos

    para estudantes de escola pblica. Na Lei 3524/00 os estudantes deveriam

    cursar integralmente o ensino fundamental e mdio em instituies da rede

    pblica dos Municpios e/ou do Estado do RJ (art. 2, I, a). Restringem-se

    de maneira desnecessria os beneficirios destas normas, por exemplo,

    colgios federais, ainda que cariocas, no teriam o direito s cotas e junto

    com eles qualquer outro estudante migrante de outro estado que

    pretendesse cursar o ensino superior no RJ, ainda que ele cumprisse os

    outros requisitos. Quando surge a Lei 4.151/03 essa restrio

    flexibilizada, pois ela apenas exige que o aluno tenha cursado o ensino

    mdio em escolas pblicas. Alm disto, elas podem ser estaduais,

    municipais e, finalmente, federais desde que situadas no RJ (art.1 2).

    Mas ainda se excluem das reservas os alunos de outros entes federativos.

    Esta questo nos remonta a pergunta realizada nas consideraes

    preliminares, sobre quem o agente responsvel por garantir o direito

    igualdade. Ainda que consideremos a resposta Estado como verdadeiro,

    este no foi cumprido integralmente por esta norma. No me parece

    legitimo a manifesta negao do RJ proteger estudantes de outros estados

    nas suas polticas pblicas, ainda que eles satisfaam todos os demais

    requisitos. Apesar de estas universidades serem estaduais e, portanto,

    serem sustentadas por verbas do governo do estado do RJ, essa

    discriminao, e s esta, considero como inconstitucional.

    Essa limitao territorial um ponto importante dos casos. Ainda

    assim apenas uma pea processual a analisa de modo profundo: a

  • 38

    manifestao da AGU na ADI 3197. Ela declara a inconstitucionalidade da

    expresso situadas no Estado do Rio de Janeiro contida na parte final do

    2 do art. 1, pois no h indcio de que a mera localizao espacial da

    escola pblica recomende tratamento favorecido aos seus alunos .

    Enquanto todas as outras peas tratam mais de argumentos filosficos e

    valorativos, acabaram por deixar escapar um ponto relevante e controverso

    do caso.

    6.2 ADI 3330: o ProUni

    O ProUni (Programa Universidade para Todos) um modo de ao

    afirmativa diverso em essncia das demais tratadas neste trabalho.

    Diferentemente da poltica de reserva de vagas para estudantes

    minoritrios, ele uma espcie de financiamento do estudo em

    universidades privadas por parte do governo para alunos que atendam

    determinados requisitos, alm de serem pr-selecionados pelo ENEN

    (Exame Nacional do Ensino Mdio) bem como aprovados nos exames ou

    vestibulares das universidades.

    Nesta ao, alm da questo material de criao de bolsas de estudo

    para alunos menos favorecidos em entidades privadas de ensino superior,

    outras supostas inconstitucionalidades esto envolvidas, como: formais,

    dado que o programa foi implementado via MP (medida provisria),

    isenes de tributos, regulao das entidades de beneficncia social e at

    mesmo a isonomia entre instituies que receberiam prioridade no

    financiamento da FIESP. Porm, como o tema proposto nesta monografia se

    restringe s questes de igualdade entre indivduos e aes afirmativas,

    como j explicitado, limitaremos a anlise apenas s questes pertinentes

    s perguntas realizadas, que, no caso concreto, constituem uma pequena

    parcela da argumentao para a resoluo do caso. Com isso, no se busca

    uma resposta e, menos um ainda, um modelo de voto definitivo para a ADI

  • 39

    em sua totalidade, mas sim, verificar quais so as nuances das

    desigualaes reversas propostas pela lei que constituiu o ProUni.

    Alm da ADI 3330 impetrada pela CONFENEN outras duas Adis, a de

    n 3314 e a de n, foram impetradas com absoluta identidade do objeto,

    uma pelo partido poltico PFL (atual DEM) e outra pela FENAFISCO. Por

    conta disto, estas aes foram juntadas a ADI 3330, sendo submetidas a

    um julgamento nico. Posteriormente, a ADI 3397 no foi conhecida por

    falta de legitimidade ativa da FENAFISCO. Mas apesar da mesma medida

    ser impugnada nas trs aes, apenas a proposta pena CONFENEN alega a

    violao ao princpio da igualdade entre os estudantes beneficiados e

    aqueles que no cumprem os requisitos.

    Com a converso da MP na Lei de n 11.906/05 a PI foi aditada. Esta

    lei trouxe algumas modificaes, porm nenhuma em sua essncia. Houve,

    por exemplo, a criao da bolsa parcial de 25% obedecendo aos mesmos

    requisitos da bolsa parcial de 50%, e ainda algumas diferenas de

    nomenclatura, por exemplo, de estudantes portadores de necessidades

    especiais para o termo correto, estudantes portadores de deficincia.

    Outras mudanas pontuais foram feitas na redao da lei, principalmente na

    questo das entidades de beneficncias sociais, mas, como j se disse, esta

    questo no ser analisada.

    O perole um programa que visa um pblico alvo social e

    economicamente focado. Concede bolsas de estudos em universidades

    particulares, inscritas voluntariamente neste, para estudantes que atendam

    os seguintes requisitos (art. 2 da Lei 11.096/05): [1] cursado o ensino

    mdio completo em escola da rede pblica ou em instituies privadas na

    condio de bolsista integral, [2] seja portador de deficincia ou, ainda, [3]

    professor da rede pblica de ensino para os cursos de licenciatura e

    pedagogia, destinados formao do magistrio da educao bsica, este

    ltimo excludo o requisito da renda mxima. As bolsas sero distribudas

    para brasileiros no portadores de diploma de curso superior de acordo com

    a renda familiar mensal per capit, da seguinte forma (art. 1 da lei

    11.096/05): [a] integrais, se a renda for de um salrio-mnimo e meio, [b]

  • 40

    parciais de 50%, se a renda no exceder o valor de at trs salrios

    mnimos ou [c] parciais de 25%, se, novamente, a renda no exceder o

    valor de at trs salrios mnimos. Para melhor visualizao, vide o

    esquema a seguir:

  • 41

    O programa conta com um claro objetivo de remdio de

    redistribuio44, mas no somente. No art. 7 da referida lei, esto listadas

    as obrigaes da instituio de ensino que sero previstas, como clusulas

    necessrias, no termo de adeso ao perole. Dentre elas esto, no inc. II, o

    percentual de bolsas de estudo destinado implementao de polticas de

    polticas afirmativas de acesso ao ensino superior de portadores de

    deficincia ou de autodeclarados indgenas e negros, sendo que este

    percentual dever ser no mnimo igual ao percentual de cidados

    autodeclarados indgenas, pardos ou pretos, na respectiva unidade da

    Federao, segundo o ltimo censo do IBGE (1). Interessante notar que

    neste artigo se insere os remdios de reconhecimento. No so bivalentes,

    pois a renda deixa de ser um requisito necessrio para a participao no

    programa. Contudo, o governo deixa claro neste projeto a inteno de

    resolver as dificuldades de acesso ao ensino superior, sejam elas por

    conseqncias meramente sociais ou incluindo o fator raa como maior

    fonte de discriminao.

    Pelo fato desta ao ter inmeros pontos envolvidos, desde a questo

    tributria at a autonomia universitria em se submeter ao programa, a

    questo da igualdade pouco aparece nas diversas peas processuais, e

    quando se d, menos desenvolvida, sendo produto, muitas vezes, de

    modo a reiterar a constitucionalidade da lei. Isso demonstra como os

    remdios de redistribuio so aceitos, em geral, como legtimos, ou seja,

    nem a PI condena como inconstitucional a poltica de financiamento de

    estudo para alunos carentes. Talvez o ponto mais interessante da PI seja

    quando se questiona o motivo de se exclurem do ProUni os estudantes que

    contavam com uma bolsa parcial na escola privada, ou seja, se questiona a

    extenso do fator de discrmen, no ele em si. Os defensores da poltica

    dizem que esse argumento falacioso, pois os descontos de mensalidade

    em colgios particulares fazem parte de uma poltica de competio, muitas

    vezes at beneficiando irmos ou pagamentos adiantados tendo finalidade

    de marketing. Caso se permitisse que esses alunos se inscrevessem no

    ProUni toda a finalidade do sistema se perverteria, pois se favoreceriam

    44 Vide captulo 5.4 Redistribuio e Reconhecimento.

  • 42

    alunos que, supostamente, teriam condies de bancar seus estudos. Esse

    foi o critrio estabelecido pelo legislador, pode at ser questionvel em

    determinados casos, o que no o torna inconstitucional. Como toda poltica

    de ao afirmativa, o ProUni deve ser avaliado depois de alguns anos para

    se observar se os seus objetivos esto sendo atingidos ou se mais pessoas

    deveriam ser beneficiadas. Esse no um programa estanque, imutvel.

    Caso se note discrepncias entre o pretendido e o que de fato ocorreu, cabe

    ao legislador reformul-lo. E essa poltica, como disse a AGU, tem a

    pretenso de buscar a gerao de externalidades sociais pela iniciativa

    privada, apenas incentivada tributariamente.

    Outra questo bastante freqente nas peas a do nmero ocioso de

    vagas nas faculdades particulares devido falta de alunos com condies de

    custear seus estudos45. O Consultor Geral da unio chega a afirmar que

    nesta poltica, todos saem ganhando, desde os estudantes, as faculdades e

    a sociedade. uma soluo parcial encontrada, j que o ensino superior

    pblico no absorve esses alunos. Acontece uma reverso grave. O ensino

    mdio pblico inferior, em qualidade, ao ensino mdio particular, ao

    contrrio do que ocorre, em regra, no ensino superior. J as vagas das

    faculdades privadas so preenchidas por muitos estudantes oriundos de

    escola pblica ao contrrio do que ocorre, em regra, no ensino superior. De

    modo nenhum a sociedade pode se satisfizer apenas com a resposta do

    ProUni, outras medidas devem ser realizadas como aes afirmativas nas

    faculdades pblicas ou ensino mdio pblico de maior qualidade (como as

    denominadas federais).

    Ainda h outro princpio muito usado para insurreies contra as

    polticas de ao afirmativa, principalmente as de cotas, que no usado no

    caso do ProUni: o modo de admisso no vestibular e o mrito dos

    45 Mais especificamente: 37,5% das vagas em instituies privadas esto ociosas. Isso

    corresponde a aproximadamente 500.000 (quinhentas mil) vagas no aproveitadas. J no ensino pblico, o nmero menor, mas, ainda expressivo, 5% das 14.863 vagas esto

    desocupadas. Mas apesar deste aumento de oferta apenas 9% dos jovens de 18 a 24 anos

    esto na faculdade, comparado a 27% no Chile e 80% nos EUA. Informao prestada nos autos da ADI 3330 pelo Procurador Geral da Repblica Cludio Fonteles, p. 890-891. Estes

    dados deixam claro que no apenas na questo de renda em que h uma m distribuio

    no Brasil.

  • 43

    aprovados. Como os estudantes que cumprirem os requisitos j expostos

    ainda sero selecionados pelo ENEM e por outros critrios colocados pela

    faculdade de maneira livre, h total conexo com a capacidade do aluno e

    sua vaga custeada pelo Governo Federal. Ou seja, consegue a bolsa aquele

    que alm de cumprir os requisitos tambm for aprovado no exame de

    admisso. No h estudantes preteridos que ficaram de fora graas s

    cotas ou outros argumentos comuns de em aes.

    Outro ponto interessante a obrigatoriedade do mtodo de

    autodeclarao para classificar quem sero os beneficirios. Desta forma,

    excluem-se outros meios tais como: entrevistas ou fotos em que um

    terceiro atesta qual a raa do individuo semelhante ao que acontece na

    Universidade de Braslia (UnB).

    6.3 A ADPF 186: as cotas raciais na UNB

    A ADPF 186 foi proposta pelo partido poltico DEM em plenas frias

    coletivas do judicirio, em julho de 2009. Este um caso que se prope a

    ser paradigmtico. Na PI percebe-se uma preocupao em se limitar o que

    est em jogo.

    Defendem que a ao impugnar o sistema de aes afirmativas via

    reserva de vagas para negros e pardos. Alegam que no se pretende

    questionar a necessidade da adoo de tais medidas para concretizao de

    direitos para minorias sociais, muito menos o reconhecimento de

    preconceito e discriminao no Brasil. Na viso do requerente, pretende-se

    discutir se a adoo de um Estado Racializado conveniente no Brasil.

    Pode-se afirmar que o partido quer discutir esse modo de poltica pblica de

    maneira geral. Mais do que a constitucionalidade ou no das cotas raciais na

    UNB, o que est em jogo colocar o tema em pauta, dar a chance que a

    deciso do STF v alm do caso concreto dando uma resposta final para

    adoo de cotas no ensino superior. O DEM queria aumentar a amplitude

  • 44

    decisria do caso, dando carter erga omnes no apenas daquelas normas,

    mas de qualquer outra que crie o mesmo tipo de ao afirmativa.

    Outro ponto interessante da PI que o DEM enxerga o problema de

    raas sempre ligado esfera econmica. Ou seja, se utilizarmos o critrio

    de Fraser, descarta-se a ambivalncia da questo da raa e busca-se

    apenas um remdio de redistribuio.

    A UNB foi a primeira universidade brasileira a constituir este sistema

    de cotas raciais no vestibular sem qualquer ligao com polticas

    governamentais ou lei. Com base em sua autonomia universitria atravs

    das instncias administrativas da faculdade foi reservado um total de 20%

    das vagas de cada curso em cada perodo para negros e pardos.

    Seu grfico da seguinte forma:

    No h nenhuma limitao econmica. A cota visa trazer mais

    diversidade e incluso racial na UNB.

    Outra questo relativa ao caso diz respeito ao cabimento da ADPF

    para questionar estes atos normativos.

  • 45

    Algo exclusivo do sistema de cotas da UNB o mtodo de

    classificao racial. Enquanto nas outras aes, era usado a

    autoclassificao para se definir quem seria ou no beneficiado, na UNB os

    candidatos que escolherem pelo sistema de cotas devem compararecer para

    uma entrevista quando uma comisso verificar a autenticidade desta

    declarao, conforme diz o edital:

    Para concorrer ao Sistema de Cotas para

    Negros, o candidato dever [...] optar, no ato da

    inscrio, para concorrer preferencialmente pelo

    Sistema de Cotas para Negros e, ainda, quando

    convocado, comparecer em Braslia/DF para

    entrevista pessoal [...] quando tambm dever

    assinar declarao especfica de adeso aos

    critrios e aos procedimentos inerentes ao referido

    sistema. [...] Verificado pela Banca Entrevistadora

    que o candidato submetido entrevista pessoal

    no preenche os requisitos estabelecidos neste

    edital, passar ele a concorrer apenas s vagas

    oferecidas pelo Sistema Universal.46

    O nico requisito que o edital coloca para que se possa concorrer no

    sistema de vagas ser negro ou pardo. Por um lado, coloca-se que essa

    entrevista visa impedir fraudes ou abusos e que ainda permite que o

    estudante faa sua autoclassificao que apenas ser verificada por esta

    comisso. De outro, se questiona como que num pas to miscigenado

    como o Brasil um terceiro pode auferir a raa a qual pertence o outro, e

    ainda, quais seriam os critrios a serem utilizados.

    46 Edital disponvel em:

    http://www.cespe.unb.br/vestibular/1VEST2009/arquivos/ED_3_2008_1_VEST_2009_ABT_F

    INAL_FORM.PDF - acesso em 14/11/2009.

    http://www.cespe.unb.br/vestibular/1VEST2009/arquivos/ED_3_2008_1_VEST_2009_ABT_FINAL_FORM.PDFhttp://www.cespe.unb.br/vestibular/1VEST2009/arquivos/ED_3_2008_1_VEST_2009_ABT_FINAL_FORM.PDF

  • 46

    Muitos casos de erros dessa comisso j foram relatados pela mdia,

    por exemplo, em 2008, quando gmeos idnticos foram considerados

    diferentemente pela comisso47. Nesta poca a comisso avaliava os

    candidatos por fotografia. Por conta disto, hoje se faz uma entrevista com

    os candidatos, sendo que aqueles com sua classificao negada para o

    sistema de cotas podem pedir um recurso universidade para que seus

    pedidos sejam reconsiderados.

    A medida cautelar48 julgada pelo Min. Gilmar Mendes na ADPF 186

    teve um forte carter valorativo. O Min. dissertou sobre o histrico dessas

    aes no mundo, no Brasil e na UNB. Apesar de no demonstrar qual a

    opinio do Min., ele diz que olhar as aes afirmativas sobre a ptica da

    fraternidade. Mesmo assim, h argumentos usados para ambos os lados,

    tanto para defender as cotas da UNB como para declarar a

    inconstitucionalidade. H diversas questes levantadas pelo Min. como:

    Somos ou no um pas racista? Qual a forma

    mais adequada de combatermos o preconceito e

    a discriminao no Brasil? Desistimos da

    Democracia Racial ou podemos lutar para, por

    meio da eliminao do preconceito, torn-la

    uma realidade? Precisamos nos tornar uma

    nao bicolor para vencer as chagas da

    escravido? At que ponto a excluso social

    gera preconceito? 49

    A MC foi negada, pois, segundo o Min. Gilmar Mendes, no havia

    urgncia que se justificasse a concesso da MC j este sistema de cotas da