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Marina Jacob Lopes da Silva
IGUALDADE E AES AFIRMATIVAS SOCIAIS E
RACIAIS NO ENSINO SUPERIOR:
O que se discute no STF?
Monografia apresentada Escola
de Formao da Sociedade Brasileira de
Direito Pblico SBDP, sob a orientao da
Professora Flvia Scabin.
SO PAULO
2009
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Agradecimentos:
A Flvia Scabin, pelos inmeros incentivos, conselhos e ensinamentos.
A Mariana Barbosa, pelos valiosos conselhos durante a banca.
A Gilson Maroni Cabral, Mrcia Rosa Morila Jacob Abdala e Marlia Bravo
Jacob por conseguir, com muito custo e dias perdidos, que as peas
processuais apenas constantes no balco em Braslia chegassem a minhas
mos. Sem a ajuda destas pessoas esta monografia no teria sido sequer
realizada por simples falta de material. Muito Obrigada!
A minha famlia, Eduardo, Ana Maria e Brbara por entender, apoiar e
investir em minhas opes acadmicas.
A Glenda e aos meus colegas da Escola de Formao 2009 pela
oportunidade de crescermos juntos.
As minhas amigas da FDUSP, sala 181-XII, Ana Teresa, Gabriella, Karine
Maiza, Mariana, e especialmente, Ana Carolina: no apenas pelas correes
feitas nesta monografia, mas por me ajudar a conciliar este trabalho com
aulas, trabalhos e provas da faculdade.
E, principalmente, agradeo ao Ivan. Obrigada pela compreenso e apoio
nestes momentos de intenso trabalho como em todos os demais. E
tambm, claro, pela pacincia em me ouvir dissertando horas e horas sobre
este assunto.
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Sumrio
ndice de Siglas..................................................................................5
1. Introduo ................................................................................ 6
2. Metodologia .............................................................................. 7
3. Consideraes Preliminares: o que significa ter direito igualdade?
Limites de uma anlise jurdica .......................................................... 13
4. Delimitando conceitos controversos: Aes Afirmativas ................. 16
5. Delimitando conceitos controversos: Igualdade ............................ 20
5.1 O Paradoxo da Igualdade ....................................................... 21
5.2 Material e Formal .................................................................. 22
5.3 Isonomia e fator discriminante ................................................ 23
5.4 Redistribuio e Reconhecimento............................................. 24
6. Aes no STF e seu contexto ..................................................... 28
6.1 ADI 2858 e ADI 3197: Cotas nas estaduais do Rio de Janeiro ...... 28
6.2 ADI 3330: o ProUni ............................................................... 38
6.3 A ADPF 186: as cotas raciais na UNB ....................................... 43
6.4 Quem est por trs destas aes? ........................................... 47
7. Principais Argumentos Anlise Crtica ....................................... 49
7.1 Argumentos descartados pelo tempo e pela experincia. .............. 49
7.2 O mrito e o vestibular: falso pressuposto .................................. 51
7.3 Art. 3, IV e a Conveno Internacional sobre a Eliminao de Todas
as Formas de Discriminao Racial ..................................................... 54
7.4 No h mesmo outras alternativas? ........................................... 55
7.5 Discriminao reversa.............................................................. 57
7.6 Tabu mestio-brasileiro: um racismo, o mito e a gentica............. 58
8. Afinal de contas, que igualdade pretendemos atingir? ..................... 64
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9. O que podemos esperar do Tribunal ............................................. 66
10. Concluso ................................................................................ 68
11. Anexos .................................................................................... 72
Anexo I - ndices das peas processuais analisadas .............................. 72
Anexo II: Tabelas de classificao dos argumentos ............................... 76
Bibliografia ...................................................................................... 94
Sites consultados ............................................................................. 96
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ndice de Siglas
ADI(s): Ao(es) Direta(s) de Inconstitucionalidade
ADPF: Arguio de Preceito Fundamental
AGU: Advocacia Geral da Unio
CF: Constituio Federal de 1988
CONFENEN: Confederao Nacional dos Estabelecimentos de Ensino
DEM: Partido dos Democratas
FENAFISCO: Federao Nacional dos Auditores-Fiscais da Previdncia Social
IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
Inf.: Informaes
MC: Medida Cautelar
MEC: Ministrio da Educao
PFL: Partido da Frente Liberal (atual DEM)
PGR: Procuradoria Geral da Repblica
PGU: Procuradoria Geral da Unio
PI: Petio Inicial
ProUni: Programa Universidade para Todos
RJ: Estado do Rio de Janeiro
SADE: Sistema de Acompanhamento de Desempenho dos Estudantes do
Ensino Mdio
SAT: Scholastic Aptidude Test
STF: Supremo Tribunal Federal
UENF: Universidade Estadual do Norte Fluminense
UERJ: Universidade Estadual do Rio de Janeiro
UnB: Universidade de Braslia
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1. Introduo
A Declarao de Independncia Americana, em 1776, trouxe pela
primeira vez a frmula: todos os homens so criados livres e iguais 1. A
partir da, a maioria das constituies democrticas e tratados
internacionais de consagram o princpio da igualdade no rol de seus direitos
fundamentais. Nossa Constituio Federal de 1988 (CF), conhecida como
Constituio Cidad, no uma exceo.
Porm, sculos se passaram e ainda vemos uma longa distncia entre
os enunciados que postulam a igualdade e os fatos verificados
cotidianamente. Diante disto, buscam-se remdios para dar efetividade a
todas estas normas. Neste contexto, surgem as aes afirmativas como
remdios de curto e mdio prazo, os quais visam diminuir injustias sociais
ou econmicas.
Mesmo contendo a finalidade legtima de concretizar a igualdade,
estas polticas pblicas geram grandes polmicas, quando, por exemplo, se
escolhe determinado grupo e o favorece para compens-lo por uma
discriminao histrica. Dentre outros argumentos, os crticos costumam
alegar uma ofensa ao prprio princpio da igualdade, ou seja, o mesmo
princpio usado para posies altamente antagnicas.
sobre esta polmica que a monografia tratar, no a partir apenas
de teorias, mas com base nos casos concretos sobre o tema em pauta no
Supremo Tribunal Federal (STF).
1Disponvel em: http://www.embaixada-
americana.org.br/index.php?action=materia&id=645&submenu=106&itemmenu=110
acesso em 27/10/09.
http://www.embaixada-americana.org.br/index.php?action=materia&id=645&submenu=106&itemmenu=110http://www.embaixada-americana.org.br/index.php?action=materia&id=645&submenu=106&itemmenu=110
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2. Metodologia
Essa monografia visa explicar o desenvolvimento do conflito sobre
aes afirmativas no STF e como o princpio da igualdade tem sido usado
como argumento, tanto para defender quanto para rechaar essas polticas.
Para um maior aprofundamento da pesquisa, percebeu-se a necessidade de
delimitao do tema proposto para um ramo especifico de ao afirmativa.
As aes afirmativas no ensino superior foram escolhidas por este ser
considerado um perpetuador de desigualdades2, portanto, modific-lo seria
um caminho para diminuir a distncia entre diferentes classes sociais ou at
mesmo raciais. A reverso deste quadro passa pela ao educacional, pois o
maior nvel de ensino propicia uma mobilidade social ascendente para os
grupos desfavorecidos da populao. Maiores nveis de educao resultam
em melhores condies de disputa nos postos de trabalho, permitindo,
desta forma, acesso maior remunerao e autoridade.3
A entrada em uma boa universidade um primeiro passo frente a um
leque de oportunidades. Alm disto, a formao de uma elite cultural e
burocrtica funo do ensino superior. Se os estudantes forem
homogneos, vindos de um mesmo modelo social e racial, os altos nveis de
comando de governos e empresas tambm sero pouco diversificados.
Inclui-se o fato de que, em geral, filhos de pais com ensino superior
completo tendem a tambm se graduar, obtendo melhores posies
profissionais, proporcionando uma melhor educao aos seus filhos que
tambm se graduaro e assim sucessivamente. Forma-se um ciclo vicioso e
altamente excludente.
2 A. C. ALMEIDA. A cabea do Brasileiro, Rio de Janeiro: Record, 2007, pp. 267-69. A
pesquisa mostra que o maior apoio, seja no combate pobreza ou ao se incentivar negros, se d nas polticas universitrias. As pessoas podiam dizer se eram a favor ou contra as
seguintes polticas: [1] que o governo facilitasse as empresas a construrem fbricas nos
locais onde estavam as minorias ou [2] que gastasse mais dinheiro nas escolas l localizadas ou [3] que distribua bolsas de estudo para membros das minorias. A alternativa [3] recebeu
mais respostas favorveis, no caso de bolsa para pobres 91% e para negros 75%.
3 L. Jaccoud M. Theodoro. Raa e educao: os limites das polticas universalistas in S. A.
dos SANTOS, (org). Aes Afirmativas e Combate ao Racismo nas Amricas, Braslia:
Ministrio da Educao Coleo Educao para Todos, 2005, p.105.
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Dada a importncia do ensino superior no contexto do
desenvolvimento da sociedade brasileira, a anlise de quem tem acesso a
ele relevante. O Brasil possui um alto dficit na relao candidato/vaga
em algumas instituies, especialmente nas pblicas e um grande espao
de vagas ociosas em outras instituies, sendo a maioria privada. Muitas
vezes, isto ocorre no por falta de alunos interessados, mas devido ao custo
da mensalidade e da manuteno do aluno no curso (livros didticos,
alimentao, etc.), j que pela renda de grande parte das famlias
brasileiras, no h possibilidade em custear o valor destas aulas. Soma-se o
fato do ensino superior de alta qualidade ser extremamente competitivo. Se
o nmero de vagas inferior ao nmero de concorrentes ou se disponho de
nmero limitado de bolsas de estudos para alunos necessitados, h a
necessidade de seleo. E esta, segundo a CF, deve ser feita baseada na
capacidade de cada um (art. 208, V).
Note-se que essa capacidade denominada pela doutrina de princpio
meritocrtico no tem um contedo claro. H um problema ftico nesta
seleo para o ensino superior no pas. Pesquisas demonstram que apenas
4% dos pretos e pardos tm ensino superior completo enquanto nos
brancos esse nmero mais que o dobro, 13,4%4.Surge, pelos nmeros, o
questionamento se h igualdade de condies para o acesso (art. 206, I) no
ensino superior pelo vestibular, se este meio realmente seleciona aqueles
com maior capacidade e sobre o tipo de igualdade tratada neste artigo
(formal ou material) e, ainda, se esta dicotomia clssica das igualdades
suficiente para classificar casos to complexos como se os benefcios so
meramente raciais, meramente sociais ou ambos5.
Diversas leis ou atos normativos das prprias universidades tem sido
criados para a implementao de cotas ou benefcios para estudantes de
4 Fonte: IBGE Em 1997, 9,6% dos brancos e 2,2% dos pretos e pardos tinham nvel
superior completo no pas; em 2007, esses percentuais eram, respectivamente, de 13,4% e
4,0%. Ou seja, o hiato entre os dois grupos, que era de 7,4 pontos percentuais em 1997,
passou para 9,4 em 2007. Disponvel em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1233&id
_pagina=1 Acesso em: 13/09/2009
5 Ver tpico 5.4 Reconhecimento e de Redistribuio
http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1233&id_pagina=1http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1233&id_pagina=1
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minoria raciais e estudantes de escolas pblicas, provocando calorosas
discusses doutrinrias permeadas por ideologias, interesses e, at
mesmo, militncia sobre a constitucionalidade ou no destas aes.
Porm, apesar da discusso, o STF ainda no se posicionou
definitivamente sobre o tema, ou seja, no houve nenhum caso julgado.
O que no significa que o tema nunca tenha sido levado corte. Na
verdade, h casos importantes a serem julgados e com base neles que
esta pesquisa foi realizada.
Para objeto de pesquisa foram selecionadas todas as aes sobre
ensino superior e aes afirmativas no controle concentrado de
constitucionalidade. Deste modo, apenas os argumentos gerais e abstratos
seriam levantados. Evita-se assim o risco de se cair em argumentos de
exceo6, por exemplo, como o caso do RE (Recurso Extraordinrio)
5972857, ainda no julgado, no qual um estudante de baixa renda oriundo
de escola particular pleiteia uma vaga no curso de Administrao noturno
na UFGRS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), pois nela teria sido
aprovada, se no fora a reserva de vagas para estudantes de ensino pblico
e negros. A principal argumentao do caso gira em torno da real
necessidade do candidato, sendo filho de pais humildes que priorizaram a
escola particular, enxugando o oramento.8
6 Consideramos como argumentos de exceo aqueles que no atacam as aes afirmativas per si, mas pleiteiam alguma modificao para que determinada e certa pessoa (o autor da
ao) seja includo como beneficirio das aes afirmativas. Ainda que estas aes possam
contar com crticas ao sistema como um todo, elas contm especificidades que trariam grandes inconvenientes para a anlise delimitada aqui proposta. Por exemplos, discusses
sobre a documentao e prova de afrodescendncia.
7 O RE 597285/ RS e a ADPF 186 foram usados para a convocao do Min. Ricardo
Lewandowiski de uma audincia pblica que tem como assunto Polticas de Ao Afirmativa
de Reserva de Vagas no Ensino Superior. Para mais informaes vide tpico 6.3 A ADPF 186: as cotas raciais na UnB.
8 Veja o seguinte trecho exemplificativo: Antes de adentrar no mrito, ressalta-se que o
Impetrante vem de famlia humilde, sendo que seus pais, com pouqussimos recursos lutaram com suas foras, sem qualquer benefcio do Estado ou privilgios para ingressar na
carreira pblica, competindo por vagas de igual para igual, com outras pessoas com recursos
financeiros e intelectuais. No entanto, seus pais obtiveram sucesso, mesmo lutando contra as injustias sociais que deveriam ser exterminadas e no meramente prometidas pelo
Poder Pblico, ou ento, disfaradas como forma de encobrir tamanha falhas e negligncias,
como o caso da educao. Diga-se que a luta dos pais do Impetrante mesmo com parcos
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importante ressaltar que esta preferncia por argumentos gerais e
abstratos no impede uma anlise das nuances de cada ao afirmativa
questionada. Pelo contrrio, a constatao de questionamentos gerais
posterior ao entendimento do desenho da poltica pblica adotada, j que
diferenas na elaborao do sistema de favorecimentos podem gerar graves
distores nos resultados obtidos, como provar esta monografia.
A escolha desta anlise de controle concentrado tambm
fundamentada no fato de que, se fosse includa a pretenso de se analisar o
controle difuso haveria, em outras instncias, um nmero maior de aes,
inclusive j julgadas, como pode ser comprovado pelo anexo da ADPF 186.
Sendo assim, uma eventual pesquisa que se proponha a uma anlise de
casos para verificar quais so os principais motivos de litigncia neste tema
de forma comparativa no controle no-concentrado, deveria buscar aes
de todo o judicirio e at algumas instncias administrativas das prprias
universidades.
Foram encontradas em bibliografia9 e em notcias10 quatro aes no
controle concentrado: ADI 2848, ADI 3197, ADI 3330, ADPF 186. Tem-se
fortes indcios que estas so a totalidade dos casos, ou seja, at setembro
de 2009, haviam quatro aes, que questionavam leis ou resolues
recursos foi vencida, uma vez que ambos obtiveram xito nos concursos que fizeram, podendo, mas claro, com grande dificuldades e enxugando o oramento matricular o seu
filho em escola particular para lhe garantir uma herana que ningum lhe arrancar, ou seja,
a Educao. Petio Inicial do RE 597285 DF, de relatoria do Min. Ricardo Lewandoski.
9 O site da SBDP na Pgina Inicial > Material Didtico > Escola de Formao
(http://www.sbdp.org.br/material_ver.php?idConteudo=1 - acesso em 20/10/09) contm
duas das quatro aes analisadas, a ADI 2858 e a ADI 3330. Alm disto, a Conectas Direitos
Humanos sempre pleiteia sua participao como amicus curiae nos casos de ao afirmativa no ensino superior. No site (http://www.conectas.org/stfemfoco/home/processos/amicus -
acesso em 20/10/09) esto listados os amici propostos para trs das quatro aes
encontradas, sendo que a ADPF 186 ainda muito recente. Neste site descobriu-se a ADI 3197 que ainda no constava na relao da autora.
10 Aps a escolha do tema ter sido feita e, no dia 21 de julho de 2009 o site do STF
divulgou uma notcia intitulada DEM ajuza ao contra o sistema de cotas raciais institudo por universidades pblicas disponvel em:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=110990&caixaBusca=N
acesso em 20/10/09. Essa notcia traz informaes sobre a ADPF 186 protocolada um dia antes. Esta ao foi includa para a anlise. Outras pesquisas no site na parte de Pgina
Inicial > Imprensa > Noticias STF demonstraram a inexistncia de outras aes de controle
concentrado.
http://www.sbdp.org.br/material_ver.php?idConteudo=1http://www.conectas.org/stfemfoco/home/processos/amicushttp://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=110990&caixaBusca=N
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administrativas cujo objeto central eram aes afirmativas e o ensino
superior no STF.
Como o site do STF no mantm um banco de dados para pesquisa
em palavras-chaves sobre aes em andamento, este meio no pode ser
utilizado para a seleo das aes, mas foi essencial na obteno da peas
processuais. Das quatro aes analisadas, duas tinham todas as peas
processuais no site (ADPF 186 e ADI 3197) enquanto as peas das outras
duas (ADI 2858 e ADI 3330) tiveram que ser conseguidas por cpia no
balco em Braslia. Das quatro apenas a ADI 2858 foi concluda, pois houve
perda de objeto julgada monocraticamente. Como as outras ainda no
foram julgadas e mesmo a ADI 2858 no recebeu julgamento de mrito,
pensou-se em outro modo de se analisar este tema, antes mesmo das
decises.
Deste modo, esta monografia visa analisar no os acrdos, mas a
trajetria destas aes. Analisaremos a coerncia interna de todas as peas
processuais que contm argumentao11 a ser considerada pelos ministros
do STF em seus votos. H inmeros argumentos nestas peas, diversos
interesses, pontos de vista, valores, ideologias, etc. e se pretende estudar a
relao entre eles.
A questo central como o conceito de igualdade tem sido
construdo nestas aes e com quais outros conceitos cada viso da
igualdade relacionada. Para isto, realizaram-se as seguintes perguntas:
[1] Como funciona cada tipo de ao afirmativa questionada? [2] Quais so
os argumentos principais apresentados a serem considerados pelo STF? [3]
Qual a relao deste princpio da igualdade com outros argumentos
principais (por exemplo, mrito, inexistncia de raas, etc.)
Para responder estas perguntas o trabalho ter trs fases: a primeira
ser terica e explicar os conceitos principais usados como base para o
11 As peas analisadas foram: peties iniciais, pedidos de informaes dos requeridos, informaes da AGU, Informaes da PGU, Informaes da PGR, despachos, amici curiae,
relatrios, votos j proferidos e decises de medida cautelar. No sero analisados os
apensos ou as chamadas juntadas por linha.
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restante da monografia; a segunda ser descritiva e tratar sobre os casos
individualmente considerados dizendo como funciona cada poltica
questionada e quais so os argumentos mais trazidos pelas peas
processuais em caso de benefcios raciais e sociais, evidenciando as
diferenas entre eles. A terceira parte ser qualitativa e tratar da coerncia
dos argumentos comuns das aes chegando a concluses a partir das
primeiras.
Dados a limitao de tempo e de tema, no sero analisados todos os
argumentos das quatro aes, mas apenas aqueles que tenham estrita
relao com as perguntas realizadas. No sero analisados argumentos
formais ou em relao competncia para a implementao dessas polticas
pblicas, pois, vale dizer, o que se busca uma anlise do tema, e no das
aes individualmente consideradas.
Para a seleo de peas processuais analisadas, adotou-se como
pressuposto que o relator do caso cumpriu todas as exigncias legais e
jurisprudncias ao aceitar ou rejeitar qualquer pea apresentada. Deste
modo, com relao aos amicus curiae, um importante meio legitimador de
decises polmicas e de grande relevncia na sociedade civil, como no tema
aqui tratado, sero desconsiderados os amici no aceitos pelo relator como
integrante do processo principal.
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3. Consideraes Preliminares: o que significa ter direito
igualdade? Limites de uma anlise jurdica
O objetivo destas consideraes preliminares apenas de situar o
leitor sobre como analisar e delimitar o direito igualdade. Questionamos
qual o limite de uma anlise jurdica numa questo na qual est inserida
elementos ticos, histricos, polticos, antropolgicos, culturais e, qui,
genticos.
Ter um direito , em geral, uma questo abstrata. Nem sempre
fcil saber o que significa ter direito sade, moradia, educao, etc.
Embora possa haver outros direitos, como a aposentadoria aos 65 anos de
idade que conta com um contedo mais claro, em geral, os direitos
fundamentais so trazidos por normas com alto grau de indeterminabilidade
a priori. diferente de se ter uma coisa em si mesma palpvel e definida.
Segundo Oscar Vilhena12, ter um direito ser beneficirio de deveres
correlatos provenientes de outras pessoas ou do Estado. A noo de direito
, portanto, interligada com a de deveres. Quando falamos no direito
fundamental da igualdade, alm da j complicada questo sobre o que
significa possuir este direito igualdade ainda existe essa mesma
dificuldade em se considerar quem o agente responsvel pela obrigao
de satisfazer esse direito. Discute-se se seria apenas o Estado ou este dever
tambm atinge os particulares.
H, ainda, outra dificuldade na definio do direito de algum a
alguma coisa. Empregamos o termo direito para designar realidades
muito diferentes como numa relao contratual ou direito a no-tortura. O
direito, ora visto como uma reivindicao legal, ora como um poder, ora
como uma liberdade ou imunidade13. Isto tambm tem nexo com a
12 O. V. VIERA. Direitos Fundamentais: uma leitura da jurisprudncia do STF, So Paulo:
Malheiros, 2006, p. 21.
13 O. V. VIERA. Ob. Cit. p. 22.
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dificuldade em se definir o princpio da igualdade. Questiona-se se seria
este uma imunidade contra privilgios desmerecidos, ou, uma reivindicao
legal de ter as mesmas condies de partida de meus concorrentes em
concursos como o vestibular ou, ainda, um poder de exigir polticas pblicas
de compensao.
Obviamente, ter um direito no se confunde com ter uma presuno
absoluta. Ainda mais no contexto da nossa Constituio Federal de 1988
(CF) que possui um amplo leque de garantias expressas. H muitas
sobreposies e conflitos entre os diversos enunciados normativos
constitucionais, como, por exemplo, na proteo livre manifestao do
pensamento (art. 5, inc. IV) e intimidade (art. 5, inc. X). Estas normas,
mais especificamente, estes princpios14 so sobrepostos e no difcil
imaginar exemplos nos quais assuntos de reas privadas, se expostos em
meios de comunicao, trariam uma grave perda de honra e intimidade.
Estes direitos no so, portanto, uma esfera intransponvel. Porm, para ser
aplicados de maneira prtica, precisam ser ponderados. E somente a
partir desta ponderao no caso concreto que se consegue perceber a exata
dimenso de um direito.
Tendo esta necessidade do casusmo para conceituar um direito
fundamental como pressuposto, nesta monografia se busca analisar qual
o contedo do princpio da igualdade, ou seja, como o princpio da
igualdade tem sido usado como argumento, tanto para defender quanto
para rechaar polticas de ao afirmativa no ensino superior a partir de
uma anlise das peas processuais.
14 Adota-se nesta monografia a distino entre regras e princpios de Alexy, tambm
esclarecida por Virglio Afonso da Silva in Princpios e Regras: Mitos e Equvocos acerca de
uma distino, Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais 1 (2003): 607-630. Esta distino qualitativa e considera que princpios so deveres prima facie, ou seja, so
mandamentos de otimizao que dizem que algo deve ser realizado na maior medida do
possvel diante das possibilidades fticas e jurdicas existentes cujos conflitos so solucionados atravs da regra da proporcionalidade enquanto as regras seriam aplicadas com
base no tudo ou nada e seus conflitos se resolvem no mbito da validade (hierarquia,
especialidade, anterioridade).
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Importante ressaltar, contudo, que as expresses centrais da CF no
so consensuais. Ao contrrio, elas enfrentam constantes disputas em todos
os mbitos da sociedade, mesmo a no-jurdica.
A adoo de conceitos valorativos como liberdade e igualdade por um
meio normativo (normas constitucionais) no transformam essas
expresses polticas em tcnico-jurdicas15. Vale dizer, no se neutraliza o
significado destas expresses, nem se encerra a disputa poltica e filosfica
em torno das conseqncias de aplicao destas normas. Algo diferente
quando a legislao se utiliza de conceitos tcnico-jurdicos, como,
usucapio, resilio, apropriao indbita, etc., que por menos unanimidade
que se tenha, a discusso se concentra, em geral, nos chamados
operadores do direito.
Essa utilizao de conceitos polticos transfere para a esfera de
aplicao da CF o debate sobre o valor destes princpios. O que, em parte,
justifica o porqu dos tribunais estarem cada vez mais decidindo sobre
questes de carter poltico e moral, tendo que resolver conflitos de valores
decorrentes de conceitos imprecisos.16
15 O. V. VIERA. Ob. Cit. p.54.
16 Idem, Ibidem.
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4. Delimitando conceitos controversos: Aes
Afirmativas
Este tpico ir delimitar o conceito aes afirmativas para os fins
dessa monografia, alm de introduzir as principais polmicas desenvolvidas
no decorrer do trabalho relacionadas a este.
A expresso ao afirmativa to controversa que nem sobre a sua
origem h consenso. H autores que dizem que ela surgiu pela primeira vez
na linguagem legal norte-americana e mundial num discurso do presidente
Jonh Kenedy na criao do Comit de Oportunidades Iguais de Empregos17.
Outros autores dizem que neste contexto, ao afirmativa significava um
meio de assegurar prticas de contratao sem levar conta a raa, como se
fosse uma proibio da discriminao. Diferentemente do que hoje se
interpreta para esta expresso cujo significado est ligado a medidas
incisivas de discriminao positiva, visto pela primeira vez18 com o Plano
da Filadlfia anunciado pelo Presidente Richard Nixon em 196919
No entraremos nessa discusso terica. Por isso, adotaremos um
conceito muito citado na doutrina e reiterado nas peas processuais
analisadas. Pode-se, portanto, adotar como definio de aes afirmativas
do modo como escrito pelo Min. Joaquim Barbosa que diz:
Aes afirmativas podem ser definidas
como um conjunto de polticas pblicas e privadas
17 P. L. de MENEZES. Reserva de Vagas para a Populao Negra e o Acesso ao Ensino Superior - uma anlise comparativa dos limites constitucionais existentes entre no Brasil e
nos Estados Unidos da Amrica, Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Direito do Estado da USP, So Paulo, 2006, p. 20.
18 D. MAGNOLI. Uma gota de sangue Histria do Pensamento Racial, So Paulo: Contexto,
2009, p. 85
19 Este plano previa metas e cronogramas para incluir candidatos negros em postos de
trabalhos na construo civil da cidade. Embora o presidente Nixon negasse que tentassem impor uma reserva de vagas, alguns senadores da poca j se inflamavam contra essa
poltica de cotas, pois o empregador devia fixar metas numricas ou cronogramas para
solucionar o desequilbrio racial e de gnero.
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de carter compulsrio, facultativo ou voluntrio,
concebidas com vistas ao combate discriminao
racial, de gnero, por deficincia fsica e de origem
nacional, bem como para corrigir ou mitigar os
efeitos presentes da discriminao praticada no
passado [...] com vistas concretizao de um
objetivo constitucional universalmente reconhecido
o da efetiva igualdade de oportunidades a que
todos os seres humanos tm direito. 20
Em outras palavras, so polticas pblicas de diferenciao que do
tratamentos jurdicos diversos a determinadas pessoas, visando corrigir
desigualdades fticas, sejam estas econmicas ou sociais. Elas devem ter
um claro objetivo de integrar ou mais propriamente, igualar setores
marginalizados numa dada sociedade em que esto inseridos. Estas aes
costumam ter carter transitrio, ou seja, apenas enquanto a desigualdade
se observa.21 um reconhecimento da necessidade de tratar
diferentemente grupos de pessoas em situaes desfavorveis. Uma busca
pela real igualdade de oportunidades eliminando qualquer fonte de
discriminao direta ou indireta. No caso de as aes afirmativas estatais,
exige-se um comportamento ativo do Estado em contraposio atitude
liberal negativa de no discriminar.
Este conceito deveras amplo. Nele esto inclusas as mais diversas
polticas pblicas, que apesar da mesma finalidade concretizadora da
igualdade, atua por diferentes meios, por exemplo: a instituio de cotas ou
nveis de participao mnimos de minorias22; preferncia ou uso do fator
20 J. B. B. Gomes, A Recepo do Instituto de Aes Afirmativas pelo Direito Constitucional
Brasileiro in S. A. dos SANTOS, (org). Aes Afirmativas e Combate ao Racismo nas
Amricas, Braslia: Ministrio da Educao Coleo Educao para Todos, 2005, p. 53.
21 P. L. de MENEZES. Ob. Cit., p. 12.
22 Importante ressaltar que as aes afirmativas, embora possam ser utilizadas para tal, no se confundem com a proteo ao direito de minorias. Esta proteo muito mais ampla e
constante, diversificando-se do carter transitrio da primeira. Alm disto, o que se pretende
-
18
raa como critrio de seleo; adoo de diretrizes que produzam efeitos
para melhorar as perspectivas dos integrantes de grupos especficos;
concesso de bolsas de estudo ou cursos preparatrios para alunos carentes
visando atingir a igualdade de oportunidades com os demais candidatos em
um processo seletivo; etc.
Por este motivo, a simples nomenclatura de ao afirmativa em
uma poltica pblica no suficiente para demonstrar constitucionalidade. A
simples constatao dos resultados pretendidos, tambm no o bastante.
Alm dos fins, a anlise dos meios se faz fundamental. Apenas tendo
conscincia da poltica em sua totalidade se pode fazer um juzo de valor
moral e jurdico desta. Em outras palavras, devem ser verificados aspectos
relacionados [1] aos fins, [2] aplicao prtica e [3] aos resultados.
Portanto, necessria uma anlise crtica e casustica para se verificar quais
so os benefcios e/ou malefcios trazidos.
H diversas posies sobre as polticas de ao afirmativa23,
normalmente, condicionadas ao modo de execuo destas. Em carter
geral, podemos afirmar que as principais justificativas para estas polticas
so: justia compensatria ou correo dos efeitos presentes de atos
discriminatrios passados; justia distributiva ou busca de igualdade justa e
eficiente; preveno de discriminao futura; proteo diversidade; etc.
J as crticas negativas so: discriminao reversa pelo uso de
critrios arbitrrios na definio dos beneficiados; risco de
institucionalizao da discriminao pela relevncia social negativa dada aos
fatores discriminantes; comprometimento do sistema meritocrtico;
concesso de benefcios para indivduos que no se encontram em situao
desvantajosa j que as minorias no so uniformes; criao de uma elite
dentro das prprias minorias favorecidas pelo mesmo motivo anterior;
penalizao de indivduos inocentes; estigmatizao dos beneficiados que
atravs das aes afirmativas corrigir desigualdades decorrentes de diversas injustias
socialmente produzidas. No seria um fim legtimo se as aes afirmativas aniquilassem com a diversidade inata de uma sociedade plural. Para mais informaes vide P. L. de MENEZES.
Ob. Cit., p. 20
23 Idem, pp. 16-20
-
19
desvalorizaria sua conquista; equvocos na seleo dos critrios distintivos,
a desigualdade econmica seria a maior razo da discriminao, enquanto
as polticas se utilizam de outros critrios como a raa ou gnero; criao
de guetos separando aqueles que foram aprovados mediante benefcios
daqueles que contaram apenas com seus mritos.
-
20
5. Delimitando conceitos controversos: Igualdade
Neste captulo se far um breve relato das quatro teorias relevantes
para o tema proposto, citadas pelas peas processuais sobre qual seria o
contedo da igualdade e como atingi-lo.
Inicialmente, mister diferenciar direitos e privilgios. H uma linha
divisria, ainda que pouco ntida, entre um direito fundamental
justificadamente atribudo a uma categoria de pessoas e um privilgio
indevidamente conferido a outros grupos de pessoas. Mesmo que ambos
tenham a mesma estrutura (por exemplo, iseno fiscal) dificilmente
encontraramos uma justificao moral para a concesso de privilgios (por
exemplo, para os considerados nobres). J a distribuio de um direito
fundamental de forma desigual tem por finalidade gerar igualdade material
entre as diversas categorias de pessoas (por exemplo, iseno fiscal para
aqueles considerados de baixa renda). Seria passvel de justificao se
fosse demonstrvel que h um nexo de causalidade entre as diferenas
especficas daquele grupo e os direitos voltados a equipar-los24.
Importante ressaltar, como visto no captulo anterior, que para as
aes afirmativas serem consideradas constitucionais, estas devem
constituir direitos aos seus beneficiados. De modo nenhum, pode-se
defender concesses de privilgios no justificveis moralmente. Cabe a
quem defende as aes afirmativas o nus argumentativo de inclu-la como
um direito e a quem a considera inconstitucional, o nus de dizer o porqu.
A igualdade um direito fundamental reconhecido como alto valor
moral atribudo a todos os homens que justificam a idia de contrato e a
aplicao de leis abstratas e universais, como visto na Declarao dos
Direitos do Homem e do Cidado de 1789 (todos os homens nascem livres
e iguais).
24 O. V. VIERA. Ob. Cit., p. 25.
-
21
Mas este valor moral uma reivindicao social e politicamente
construda, pois como dito na introduo desta monografia, h uma grande
distncia entre estes postulados e a realidade no que concerne a igualdade.
preciso ter isto em mente como ponto de partida ao se atentar para as
diversas teorias.
5.1 O Paradoxo da Igualdade
Casos como as aes afirmativas so caracterizados por constiturem
uma coliso entre normas de direitos fundamentais idnticos. Quem
defende acredita estar atuando em nome da igualdade, quem o rechaa tem
plena convico de que a prtica dessas polticas faria perecer um pilar do
Estado Moderno: a igualdade. Est em jogo: igualdade versus igualdade.
O jurista Robert Alexy considera que esses conflitos de colises de
direitos fundamentais idnticos relativos titulares diferentes ocorre
quando comparamos o lado ftico e o lado jurdico deste mesmo direito. Por
exemplo, ao verificar a igualdade jurdica, consideramos todos iguais, e,
deste modo, seria inconstitucional tratar pobres e ricos diferentemente ao
pagamento de custas processuais. Mas se atentarmos a igualdade ftica,
a opo de absteno que se mostra anti-isonmica, j que retiraria dos
necessitados o acesso a justia25.
Quanto mais se amplia o principio da igualdade, mais as buscas pelas
igualdades jurdicas e fticas se tornaram um paradoxo.
Ainda, quanto mais se intensificam princpios de um Estado Social,
mais forte se torna esse paradoxo. Numa CF recheada de direitos sociais ao
lado dos direitos liberais, como a brasileira, esses conflitos so cada vez
mais presentes. A proibio de no discriminao favorece uma igualdade
25 ALEXY, Robert. Coliso e ponderao como problema fundamental da dogmtica dos direitos fundamentais. Palestra proferida no Rio de Janeiro, na Fundao Casa de Rui
Barbosa, em outubro de 1988. Trad. Gilmar Ferreira Mendes, no prelo.
-
22
jurdica enquanto a reduo das desigualdades sociais vai ao encontro de
uma igualdade ftica.
5.2 Material e Formal
A afirmao de que os homens so iguais em direitos, como feita no
art. 1 da Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado firma a
igualdade jurdico-formal. O princpio teria como destinatrio tanto o
legislador, ao escrever a norma, como o aplicador, ao cumprir para todos o
que a norma diz, sem distino.
Neste contexto, a igualdade formal tem carter negativo, de no-
discriminao, de absteno do Estado e visa abolir os privilgios e regalias
de extratos sociais, como a iseno de impostos do clero e da nobreza na
Idade Mdia. Foi este o sentido da igualdade tal como defendido na
concepo liberal da Revoluo Francesa e Americana. A lei deve ser
genrica e abstrata, tratar todos da mesma forma, sem levar em
considerao as distines entre os grupos pertencentes sociedade.26
A igualdade formal, com o tempo, se tornou mantenedora do status
quo da sociedade. Percebeu-se a insuficincia em se tratar todos de
maneira geral e abstrata. Havia a necessidade de especificar o sujeito de
direito em sua particularidade, assim determinadas violaes exigiriam
respostas individualizadas. Mais ainda, notou-se que deveria ser conferida
uma maior proteo para alguns setores da sociedade em face de sua maior
vulnerabilidade27. Este seria o conceito de igualdade material visando uma
igualdade de condies e de oportunidades, produto de um Estado Social de
Direito. o desigualar para igualar.
26 J. A. da SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, 31 ed., So Paulo: Malheiros, 2008, pp. 213-4
27 F. PIOVESAN. Ao Afirmativa sob a perspectiva dos direitos humanos in S. A. dos
SANTOS, (org). Aes Afirmativas e Combate ao Racismo nas Amricas, Braslia: Ministrio
da Educao Coleo Educao para Todos, 2005, p. 36.
-
23
5.3 Isonomia e fator discriminante
Celso Antnio Bandeira de Mello um autor de maior uso recorrente
pelas partes nos processos analisados. A doutrina defendida por ele
utilizada tanto para apoiar quanto para negar a constitucionalidade das
aes afirmativas, dada a grande margem interpretativa dos pressupostos
dados.
De maneira geral, o autor defende qualquer fator residente nas
coisas, pessoas ou situaes, inclusive o racial, pode ser utilizado como
discriminante legitimadamente aceito, desde que possua vinculo de
correlao lgica entre a peculiaridade diferencial escolhida e a finalidade
pretendida28. Diz ainda, que o art. 5, caput29 da CF no barreira
insupervel a desequiparao baseada nesses elementos, pois h a
possibilidade de justificativa no incompatvel com interesses prestigiados
na Constituio.
S haveria ofensa ao principio da igualdade, chamado pelo autor de
isonomia, quando a norma: singulariza atual e definitivamente um
destinatrio determinado; adota como critrio discriminador elemento no
residente nos fatos, situaes ou pessoas por tal modo desequiparadas;
atribui tratamentos jurdicos diferentes em ateno ao fator de discrmen
adotado que no guarda relao de pertinncia lgica com a disparidade;
suponha uma relao de pertinncia do discrmen adotado, mas na prtica
haja efeitos contrrios dos protegidos constitucionalmente; a interpretao
dela extrai distines que no foram professadamente assumidos, ainda que
implicitamente30.
Esta teoria tem como principal avano esclarecer que uma
desigualao no , por si s, inconstitucional. Porm a correlao lgica
28 C. A. B. de MELLO, O Contedo Jurdico do Princpio da Igualdade, 3 ed., So Paulo: Malheiros, 2006, p.17.
29 Todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza [...]
30 Idem. pp.47-8.
-
24
entre o fator discriminante e a discriminao legal decidida em funo dele
pode ser enviesada para ambos os lados, como j foi salientado. Caso se
considere que a raa um elemento impeditivo de acesso ao ensino
superior, um sistema de cotas ou distribuio de bolsas raciais atingiria o
objetivo de incluso. Agora, caso se aceite, que apesar do racismo e do
preconceito, a raa no um fator impeditivo, pois o vestibular s afere o
mrito e no a cor dos candidatos perde-se este vinculo lgico. O nus
argumentativo enorme para ambos os lados.
5.4 Redistribuio e Reconhecimento
Outro modelo de anlise, proposto por Nancy Fraser, nos ajuda a
melhor compreender essa diferena entre cotas para negros e cotas para
estudantes oriundos de colgios pblicos.
instintivamente diversa uma ao afirmativa para negros e uma,
ainda que seja de igual modo executada, que favorea estudantes oriundos
de escola pblica. Embora todas digam respeito busca pela justia ou
equidade, esta no parece ser algo homogneo31.
Nancy Fraser traz outra espcie de raciocnio dentro de uma anlise
de polticas pblicas para pases cuja diversidade marca distintiva:
Igualdade de Reconhecimento e Igualdade de Redistribuio32. Ambos os
conceitos esto inseridos num contexto em que a luta por reconhecimento
est cercada por uma desigualdade econmica. A questo central desta
proposio desenvolver uma teoria crtica de reconhecimento que
identifique e defenda apenas aquelas verses de polticas culturais de
31 N. FRASER. From Retribution to Recognition? Dilemmas of Justice in a 'Post-Socialist' Age in New Left Review, issue: 212, vol. a, 1995.
32 Idem, ibidem.
-
25
valorizao das diferenas que possam ser coerentes se combinadas com as
polticas sociais de igualdade.
Busca-se uma resposta para o dilema: como se valoriza a cultura
diferente, ainda mais, como se ressalta a diversidade, se no posso trat-lo
como diferente graas ao princpio da igualdade?
Fraser defende que para a concepo de justia atual tanto o conceito
de redistribuio quanto o reconhecimento so necessrios. As polticas
pblicas devem adot-los de forma compatvel e no-excludente.
Inicialmente, Fraser prope distinguir dois tipos de injustias. A
primeira diz respeito a uma injustia socioeconmica enraizada na estrutura
poltico-econmica da sociedade capitalista. Como exemplo, temos a
explorao trabalhista e a marginalizao econmica. O segundo tipo de
injustia seria aquela cultural ou simblica que tem origem nos modelos de
(sub)representao. Tanto a dominao cultural quanto o no-
reconhecimento e o desrespeito a caractersticas personalssimas podem ser
considerados exemplos tpicos. Essa diferena , como j se disse, analtica.
Na prtica h uma grande zona de interseco. Uma grande divergncia
econmica propicia uma diferena cultural ainda maior.
Apesar da diferena entre uma injustia socioeconmica e uma
injustia cultural h alguns pontos em comum: ambas so cotidianamente
realizadas na sociedade ps-moderna, compartilham das mesmas razes em
processos ou prticas que colocam em desvantagem sistemtica
determinados grupos de pessoas para beneficiar a outras e, principalmente,
ambas precisam ser remediadas.
Assim, Fraser distinguiu no apenas os dois tipos de injustias, mas
tambm os dois tipos de soluo. O remdio para injustias econmicas
seria uma reestrurao poltica e econmica, por exemplo, revertida em um
aumento de salrio mnimo, uma reorganizao da diviso de trabalho ou
alguma outra transformao na base econmica. Considerando todas estas
possveis solues para igualar as pessoas, dentre outras, Fraser
-
26
denominou um termo genrico: redistribuio. O remdio para injustias
culturais algum tipo de mudana cultural ou simblica. Como por
exemplo, polticas de valorizao da diversidade, ou ainda algo, uma
mudana de representao, interpretao e comunicao que vise
transformar o senso comum de toda populao. Embora esses remdios
sejam diferentes entre si, todos fazem parte do termo genrico:
reconhecimento.
Alm desta diviso, Fraser defende no seu texto que h um campo
intermedirio entre ambas as injustias, e, consequentemente, entre ambos
os remdios. Este campo chamado de injustias bivalentes. Ou seja, h
algumas situaes em que h um forte carter tanto poltico econmico
quanto cultural. Em situaes em que as dimenses esto to interligadas
que no se pode buscar uma prevalncia do tipo de injustia sofrida ambos
os remdios so necessrios. Tanto o reconhecimento quanto a
redistribuio.
Usando esta terminologia empregada por Fraser poderamos
distinguir as propostas de cotas raciais e sociais. A questo econmica
clara quando se diz respeito a estudantes oriundos de escolas pblicas ou a
algumas limitaes salariais impostas na lei. Obviamente uma questo de
redistribuio.
J a questo racial trazida pela prpria Fraser33 como uma tpica
injustia bivalente, ou seja, envolve tanto uma injustia socioeconmica
quanto uma injustia cultural. Se por um lado, a escravido trouxe um
grave legado de excluso profissional e financeira, nunca superado sendo
que at hoje os negros tm salrios menores que brancos na mesma
posio. Por outro, as correntes racistas do sculo XX consideravam o
negros como raa inferior em inteligncia e tradio. O esteretipo da pele
escura at hoje tido como negativo. O remdio necessrio seria a
redistribuio quanto o reconhecimento do papel do negro na sociedade.
33Idem, p.78.
-
27
Importa que se considere essa dupla finalidade das polticas raciais,
ainda que seja para declarar a inconstitucionalidade delas. No suficiente
uma argumentao que no veja o aspecto cultural e de insero que as
polticas de acesso ao ensino superior visam ao favorecer os negros.
Ressalta-se que a diviso de igualdade de reconhecimento e de
redistribuio no so subespcies da igualdade material. possvel buscar
uma igualdade de reconhecimento atravs de uma igualdade formal, por
exemplo, atravs da criminalizao do racismo, uma norma abstrata que
atinge a todos da mesma forma, mas que reconhece direitos. Essa
classificao igualdade material e formal no se confunde com a de
reconhecimento e redistribuio, ambas podem ser usadas para
entendermos as caractersticas da argumentao apresentadas nas peas.34
34 Em sentido diverso defende Flvia Piovesan no artigo, j citado: Ao Afirmativa
sob a perspectiva dos direitos humanos in S. A. dos SANTOS, (org). Aes Afirmativas e
Combate ao Racismo nas Amricas, Braslia: Ministrio da Educao Coleo Educao
para Todos, 2005. A autora diz na p. 36: Destacam-se, assim, trs vertentes no que tange concepo da igualdade: a) igualdade formal, reduzida formula todos so iguais perante
a lei (que, ao seu tempo, foi crucial para a abolio de privilgios); b) a igualdade material,
correspondente ao ideal de justia social e distributiva (igualdade orientada pelo critrio scio-econmico); e c) a igualdade material, correspondente ao ideal de justia enquanto
reconhecimento de identidades (igualdade orientada pelos critrios de gnero, orientao
sexual, idade, raa, etnia e demais critrios)[...].
-
28
6. Aes no STF e seu contexto
O foco desta monografia, como j salientado, no so os casos
individualmente considerados, mas o tema em comum entre eles, ou seja, a
argumentao referente constitucionalidade das aes afirmativas. As
nuances de cada caso no sero avaliadas, com exceo daquelas que
contenham estreita relao com as perguntas propostas.
Porm, ainda assim, importante entender os contextos nos quais
estas aes se inserem visando uma melhor percepo do que exatamente
est em jogo, como se d poltica em cada caso e suas diferenas. Para
isto, neste captulo se far um breve resumo dos casos analisados, dizendo
quem tem levado estas questes at a corte, como se tem desenvolvido
processualmente os casos e quais so os outros argumentos impeditivos de
aplicao das aes afirmativas, mas no relacionados diretamente ao
mrito destas (por exemplo, inconstitucionalidade formal).
6.1 ADI 2858 e ADI 3197: Cotas nas estaduais do
Rio de Janeiro
A CONFENEN props no STF duas ADIs que tratam da
constitucionalidade de um sistema de reserva de vagas para as duas
universidades estaduais do Rio de Janeiro, quais sejam: a Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade Estadual do Norte
Fluminense (UENF). Com isto, se iniciou o debate sobre cotas raciais e
sociais no STF.
O primeiro caso de controle concentrado de constitucionalidade
levado ao STF foi a ADI 2858 por volta de maro de 2003. Nela se
questiona um conjunto de trs leis35 que implementam o seguinte sistema
de reserva de vagas: 50% do total de vagas para estudantes oriundos de
35 As Leis estaduais do RJ so: Lei 3254/2000, Lei 3.708/2001 e Lei 4061/2002
-
29
escolas pblicas municipais ou estaduais do RJ, 40% do total de vagas para
negros ou pardos; 10% do total de vagas para deficientes, a ser descontado
do total de vagas dos estudantes proveniente do ensino pblico, conforme
os grficos a seguir:
-
30
Este conjunto de leis, aprovado no decorrer de trs anos, foi de difcil
aplicao, pois, ao contrrio do que pode parecer primeira vista, no h
um critrio claro e suficiente nos ndices das reservas de vagas. Explico
melhor: h duas possibilidades de interpretao na aplicao dessas leis.
Para exemplificar, criemos um universo hipottico de 100 vagas.
A ttulo de simplificao, desconsideraremos o percentual reservado
aos deficientes fsicos, j que este claro: reserva-se 10% do total de
vagas que ser descontado da reserva feita para os estudantes oriundos de
escolas pblicas, que, portanto, contara com a reserva de 40% do total de
vagas.
A primeira possibilidade de interpretao, na qual a PI se baseia,
entende que dessas 100 vagas, com base na primeira lei, 50 iro para
estudantes de escola pblica e 50 para estudantes de escolas privadas.
Depois, com base na segunda lei que reserva 40% das vagas para negros,
essas vagas receberiam uma subdiviso para a aplicao do percentual.
Ento, das 50 vagas para alunos oriundos de ensinos pblicos, 20 seriam
reservadas para negros ou pardos e 30 seriam livres das classificaes
raciais. Do mesmo modo, os estudantes oriundos de escolas privadas tm
das 50 vagas reservadas, 20 guardadas para negros ou pardos e 30 livres.
Acontece que esta interpretao no a nica possvel e nem a mais
acertada. A Lei 3708/01 estabelece cota de 40% para as populaes
negras e pardas no preenchimento das vagas relativas ao curso de
graduao. Depois, no nico diz que esta cota inclui tambm os negros
e pardos beneficiados pela lei 3524/00. Deste modo, exemplificando
naquele mesmo universo hipottico, do total de alunos que prestaram o
vestibular, classificam-se os 40% melhores colocados negros ou pardos.
Posteriormente, subdividem-se estes negros, j classificados, em outras
duas classes: provenientes de ensino pblico ou de privado. Suponhamos
que destes 40% aprovados, 30 negros ou pardos sejam oriundos de escolas
particulares e 10 provenientes de ensino pblico. Neste ponto, completa-se
o nmero de vagas restantes com os alunos livres de classificao racial, ou
seja, sero aprovados 20 alunos no negros ou pardos oriundos do ensino
-
31
particular e 40 alunos no negros ou pardos provenientes de colgios
pblicos.
Note-se que apesar do nmero total das vagas reservadas para
negros ou pardos serem os mesmos em ambos os casos (40), as pessoas
classificadas nelas, no o so, necessariamente. Se pegssemos o segundo
exemplo dos 30 negros aprovados de ensino mdio particular e
aplicssemos as cotas nos moldes do primeiro exemplo, 10 perderiam o
direito a vaga para 10 negros ou pardos de colgios pblicos.
No se trata de discutir qual modelo de reserva de vagas melhor ou
pior para atender os objetivos pretendidos, mas de perceber uma
dificuldade bsica de se entender a lei. O que demonstra uma total falta de
tcnica legislativa, que pode at impedir que os objetivos traados pelas
polticas sejam atendidos. A criao de leis em momentos diversos no
escusa o legislador de pensar o ordenamento como um todo, ou pelo
menos, de entender todo o sistema de reserva de vagas da mesma
universidade, independentemente se para negros ou estudantes de escolas
pblicas, como parte da mesma poltica de ao afirmativa. No se pode
pretender criar uma poltica pblica de insero de modo aleatrio e
recortado.
Apenas um exame foi realizado sob a gide destas leis. O vestibular
2003, unificado para vagas da UENF e da UERJ, j tinha iniciado. Para
cumprir as prescries das leis o vestibular teve que ser dividido em dois
com grau de dificuldade similar: o SADE (Sistema de Acompanhamento de
Desempenho dos Estudantes do Ensino Mdio), destinado a alunos que
pleiteavam as vagas reservadas para alunos oriundos de colgio pblicos, e
o chamado "Vestibular Estadual", destinado aos alunos que concorriam s
vagas livres36. Para aplicar o percentual relativo a cotas para negros as
universidades no utilizaram nem a primeira nem a segunda interpretao
apresentada acima, criando uma terceira corrente interpretativa, no para
seguir a lei a risca, mas para conseguir, de alguma forma, implementar
aquela poltica pblica.
36 http://www.uerj.br/modulos/kernel/index.php?pagina=915 - acesso em 09/11/2009.
http://www.uerj.br/modulos/kernel/index.php?pagina=915
-
32
O edital da primeira fase do SADE previa No preenchimento das
vagas do SADE ser verificado o percentual de candidatos autodeclarados
negros ou pardos, para atendimento cota de 40% . J o da segunda fase
dizia: A UERJ e a UENF, por fora da Lei n 3.708/2001 e do Decreto n
30.766/2002, reservaro 40% (quarenta por cento) do total de vagas
relativas aos seus cursos de graduao para candidatos que se
autodeclararem negros ou pardos, obedecidos os critrios definidos no art.
3 do referido Decreto. O percentual acima ser calculado sobre o
somatrio das vagas destinadas ao Vestibular SADE/2003 e ao Vestibular
Estadual/200337. Ou seja, para o calculo de 40% das vagas reservadas
seria utilizado o nmero total de vagas oferecidas pela universidade,
independente das cotas para estudantes de escola pblica, at este ponto,
todas as correntes interpretativas esto de acordo. A grande diferena na
hora de selecionar quem ocupar essas vagas e o edital da segunda fase, j
no seu captulo 8 diz: Feita classificao, conforme item 8.1, para efeito
de clculo do percentual de 40% dos candidatos negros ou pardos
autodeclarados, sero considerados, inicialmente, os candidatos do
Vestibular SADE/2003. Caso este percentual no seja atingido, sua
complementao dar-se- com os candidatos negros ou pardos
autodeclarados do Vestibular Estadual/2003. No foi utilizada nem a
interpretao da PI, nem a proposta por esta monografia. Para a contagem
do percentual de 40% as universidades obedeceram aos seguintes passos:
[1] classificar, na reserva de vagas de 50%, os melhores estudantes
oriundos de colgios pblicos. [2] observar quantos alunos aprovados em
[1] so negros e pardos. [3] verificar se com os alunos de [2] a cota de
40% j preenchida e caso no seja, quantificar o nmero de alunos
negros ou pardos que faltam para completar esta cota. [4] completar a cota
de 40% de alunos negros ou pardos com os estudantes melhores
classificados e assim autodeclarados do vestibular estadual (oriundos de
37 Edital disponvel em:
http://www.vestibular.uerj.br/portal_vestibular_uerj/sade_2003/exame_discursivo/ed_editai
s_e_anexos_edital_de_convocacao.html - acesso em 10/11/2009.
http://www.vestibular.uerj.br/portal_vestibular_uerj/sade_2003/exame_discursivo/ed_editais_e_anexos_edital_de_convocacao.htmlhttp://www.vestibular.uerj.br/portal_vestibular_uerj/sade_2003/exame_discursivo/ed_editais_e_anexos_edital_de_convocacao.html
-
33
escola particulares) [5] preencher o restante das vagas os alunos oriundos
de escolas particulares, obedecendo a classificao do vestibular estadual.
Novamente, percebe-se a gravidade de leis desconexas. Vale
relembrar que no se discute qual o melhor modelo de aplicao, mas a
incapacidade legislativa em no definir com exatido qual o modelo que
est sendo proposto.
Neste aspecto, outra observao se faz necessria: no se encontra
essa discusso em nenhuma das peas processuais da ADI 2858. Nem as
informaes da governadora, nem a Assemblia Legislativa do RJ
questionam o molde de aplicao interpretado pela PI. As peas apenas
copiam as leis, como se fosse suficiente para a aplicao prtica. A
discusso se torna muito mais ideolgica e sem base prtica se no se
busca entender o que a lei diz e quem est sendo efetivamente beneficiado.
Todos os trs modelos de interpretao so passveis de criticas e elogios,
mas necessrio, antes de qualquer afirmao, ver o que de fato
realizado. No pretendo defender um argumento estritamente jurdico que
se baseasse exclusivamente na letra da lei, mesmo porque, j vimos que
isto no possvel no caso do direito igualdade pelo seu alto grau de
indeterminabilidade a priori. O que acredito ser de fundamental importncia
saber sobre para quem se est reservando vagas, at para poder
questionar se a finalidade da poltica atingida, quando, por exemplo, se
reservam vagas para estudantes negros ou pardos oriundos do ensino
particular.
Dada a dificuldade prtica de aplicao destas leis, j densamente
demonstrada, pouco tempo depois, mais propriamente, no dia 05 de
setembro de 2003 as leis que originaram a ao foram revogadas e
substitudas pela Lei estadual 4.151/03 RJ, causando a perda de objeto da
ADI 2858, prejudicando-a sem exame de mrito.
Esta nova lei constituiu um modelo de reserva de vagas mais claro, e
finalmente, aplicvel, simplificado e adotando novos nmeros. Na
elaborao do projeto houve a participao da UENF e da UERJ, diretas
-
34
interessadas, sendo que a ltima props alteraes nos projetos de cotas38
para unificar as duas modalidades (negros e estudantes oriundos de escola
pblica). O que de fato aconteceu.
O resultado foi uma lei com a inteno clara de proteger
primeiramente os alunos carentes, um remdio de distribuio, assim
definidos valendo-se dos critrios scio-econmicos oficiais a ser definido
pelas universidades39. Para estes alunos, h reserva de 20% se o aluno for
oriundo de escolas pblicas de ensino mdio estaduais, municipais ou
federais situadas no RJ; 20% se o aluno se autodeclarar negro e 5% se for
deficiente fsico ou pertencente a outras minorias tnicas. Os candidatos a
qualquer uma das reservas s concorriam por uma das modalidades,
mesmo se fizessem jus a mais de uma delas, como consta no art. 1 4 da
Lei 4.151/03 RJ.
Observe que quando a raa se torna uma varivel nesta poltica,
temos um remdio tanto de redistribuio quanto de reconhecimento. J foi
dito que a raa sofre injustias bivalentes. Nota-se que o critrio de renda
38 http://www.uerj.br/modulos/kernel/index.php?pagina=915 acesso em 09/11/2009.
39 Para o primeiro vestibular institudo sob a gide do novo sistema, em 2004, s poderiam ser inscritos estudantes com renda familiar mensal per capita de no mximo R$300,00
lquidos. Fonte: http://www.uerj.br/modulos/kernel/index.php?pagina=915 acesso em
09/11/2009.
http://www.uerj.br/modulos/kernel/index.php?pagina=915http://www.uerj.br/modulos/kernel/index.php?pagina=915
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35
uma limitao das cotas para negros, deixando claro que no se pretende
beneficiar negros com alto valor aquisitivo, mas pretendem dar um bnus
adicional para aqueles que, alm de pobres, sofrem um conjunto de
preconceito e excluso racial.
J em maio de 2004, a CONFENEN protocolou o segundo caso sobre
aes afirmativas no STF, a ADI 3197, contra esta lei acima descrita.
Uma questo relevante do argumento da CONFENEN o sumio dos
pardos. A requerente alega, tendo como base uma notcia publicada pelo
Jornal do Brasil escrita por Ali Kamel, que devido presso do movimento
negro foi retirada da lei a expresso parda j que muitos assim
considerados tinham nariz afilado, cabelo liso e pele de tom claro40.
Argumenta ainda que negro sinnimo de preto. Apesar de nem as
informaes da assemblia legislativa nem as informaes da governadora
negarem esse argumento, ele no verdadeiro. O IBGE utiliza a expresso
negros para incluir os pretos e pardos. A lei deveria ter sido mais clara,
mas isto no significa que os pardos esto excludos do sistema de cotas.
Alm disto, nestas universidades, utilizado o mtodo da autodeclarao
para o estudante concorrer a essas vagas. O que dificultaria ainda mais
uma suposta proibio de pardos concorrem por este sistema.
H que se fazer uma crtica com relao demora do STF,
particularmente, neste caso. A PI, protocolada em 2004, pedia uma medida
cautelar para impedir que o vestibular daquele mesmo ano fosse feito sob a
gide desta lei. Mas, somente em junho de 2007 o Min. relator, Seplveda
Pertence, por um despacho comunicou que no julgaria a medida cautelar,
pela seguinte justificativa:
Inegvel o relevo de direitos e garantias
fundamentais da questo, bem como os princpios
constitucionais aparentemente em conflito, o que
exige um debate amplo e maduro, especialmente
tendo em vista as polticas pblicas e suas
40 ADI 3107. Petio Inicial, p.9.
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36
conseqncias que a deciso do Supremo Tribunal
Federal seja pela constitucionalidade ou pela
inconstitucionalidade acarretar. Esse o quadro,
apesar da urgncia tpica que tal discusso exige
do Tribunal, prudente a reflexo mais profunda
[...]41
Aparentemente, ainda no refletimos o suficiente j que o caso ainda
no terminou. No se questiona que este seja, de fato, um hard case, como
disse a AGU42. Porm, levar mais de trs anos para comunicar que no ir
julgar a medida cautelar me parece exagerado, ainda mais vindo do tribunal
orgulhoso por ser o mais eficiente do pas43.
Neste mesmo documento, o relator pediu novamente informaes
assemblia legislativa e ao governo do estado do RJ. Estas foram prestadas
nas iguais palavras de trs anos antes. Perderam a oportunidade de prestar
informaes sobre como o sistema foi recebido pela sociedade acadmica,
se estava funcionando.
Ademais, a lei j fora modificada, em 2007, incluindo na cota de 5%
alm dos deficientes e integrantes de outras minorias tnicas, tambm os
filhos de policiais civis e militares, bombeiros militares e inspetores de
segurana e administrao penitenciria, mortos ou incapacitados em razo
do servio.
Posteriormente, a Lei 5346, de 11 de dezembro de 2008 instituiu um
novo sistema de cotas e revogou expressamente no apenas a lei objeto
41 ADI 3197. Despacho do dia 08 de junho de 2007, p.639.
42 ADI 3197. Informaes prestadas pela Advocacia Geral da Unio, p. 710
43 No ano de 2008, foram protocolados 100.781 processos. J os julgados foram 130.747
processos. O saldo positivo de quase 30.000 processos nico em todo o judicirio brasileiro. Fonte:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=movimentoProce
ssual acesso em 12/11/2009,
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=movimentoProcessualhttp://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=movimentoProcessual
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37
desta ADI, como tambm a Lei 5074/07. Obviamente, apesar de ainda no
ter sido julgado pelo STF, a ADI 3197 perdeu o objeto.
Em relao a argumentaes comuns, ambas as aes dois
argumentos so bastante relevantes: a falta de legitimidade ativa da
CONFENEN e a falta de competncia legislativa do estado do Rio de Janeiro
alegando ser de competncia da unio o sistema de ao afirmativa
supostamente integrante das diretrizes e bases da educao.
Outra questo exclusiva destes casos o fato do beneficio ser
subordinado aferio de critrios territoriais no caso dos favorecimentos
para estudantes de escola pblica. Na Lei 3524/00 os estudantes deveriam
cursar integralmente o ensino fundamental e mdio em instituies da rede
pblica dos Municpios e/ou do Estado do RJ (art. 2, I, a). Restringem-se
de maneira desnecessria os beneficirios destas normas, por exemplo,
colgios federais, ainda que cariocas, no teriam o direito s cotas e junto
com eles qualquer outro estudante migrante de outro estado que
pretendesse cursar o ensino superior no RJ, ainda que ele cumprisse os
outros requisitos. Quando surge a Lei 4.151/03 essa restrio
flexibilizada, pois ela apenas exige que o aluno tenha cursado o ensino
mdio em escolas pblicas. Alm disto, elas podem ser estaduais,
municipais e, finalmente, federais desde que situadas no RJ (art.1 2).
Mas ainda se excluem das reservas os alunos de outros entes federativos.
Esta questo nos remonta a pergunta realizada nas consideraes
preliminares, sobre quem o agente responsvel por garantir o direito
igualdade. Ainda que consideremos a resposta Estado como verdadeiro,
este no foi cumprido integralmente por esta norma. No me parece
legitimo a manifesta negao do RJ proteger estudantes de outros estados
nas suas polticas pblicas, ainda que eles satisfaam todos os demais
requisitos. Apesar de estas universidades serem estaduais e, portanto,
serem sustentadas por verbas do governo do estado do RJ, essa
discriminao, e s esta, considero como inconstitucional.
Essa limitao territorial um ponto importante dos casos. Ainda
assim apenas uma pea processual a analisa de modo profundo: a
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38
manifestao da AGU na ADI 3197. Ela declara a inconstitucionalidade da
expresso situadas no Estado do Rio de Janeiro contida na parte final do
2 do art. 1, pois no h indcio de que a mera localizao espacial da
escola pblica recomende tratamento favorecido aos seus alunos .
Enquanto todas as outras peas tratam mais de argumentos filosficos e
valorativos, acabaram por deixar escapar um ponto relevante e controverso
do caso.
6.2 ADI 3330: o ProUni
O ProUni (Programa Universidade para Todos) um modo de ao
afirmativa diverso em essncia das demais tratadas neste trabalho.
Diferentemente da poltica de reserva de vagas para estudantes
minoritrios, ele uma espcie de financiamento do estudo em
universidades privadas por parte do governo para alunos que atendam
determinados requisitos, alm de serem pr-selecionados pelo ENEN
(Exame Nacional do Ensino Mdio) bem como aprovados nos exames ou
vestibulares das universidades.
Nesta ao, alm da questo material de criao de bolsas de estudo
para alunos menos favorecidos em entidades privadas de ensino superior,
outras supostas inconstitucionalidades esto envolvidas, como: formais,
dado que o programa foi implementado via MP (medida provisria),
isenes de tributos, regulao das entidades de beneficncia social e at
mesmo a isonomia entre instituies que receberiam prioridade no
financiamento da FIESP. Porm, como o tema proposto nesta monografia se
restringe s questes de igualdade entre indivduos e aes afirmativas,
como j explicitado, limitaremos a anlise apenas s questes pertinentes
s perguntas realizadas, que, no caso concreto, constituem uma pequena
parcela da argumentao para a resoluo do caso. Com isso, no se busca
uma resposta e, menos um ainda, um modelo de voto definitivo para a ADI
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39
em sua totalidade, mas sim, verificar quais so as nuances das
desigualaes reversas propostas pela lei que constituiu o ProUni.
Alm da ADI 3330 impetrada pela CONFENEN outras duas Adis, a de
n 3314 e a de n, foram impetradas com absoluta identidade do objeto,
uma pelo partido poltico PFL (atual DEM) e outra pela FENAFISCO. Por
conta disto, estas aes foram juntadas a ADI 3330, sendo submetidas a
um julgamento nico. Posteriormente, a ADI 3397 no foi conhecida por
falta de legitimidade ativa da FENAFISCO. Mas apesar da mesma medida
ser impugnada nas trs aes, apenas a proposta pena CONFENEN alega a
violao ao princpio da igualdade entre os estudantes beneficiados e
aqueles que no cumprem os requisitos.
Com a converso da MP na Lei de n 11.906/05 a PI foi aditada. Esta
lei trouxe algumas modificaes, porm nenhuma em sua essncia. Houve,
por exemplo, a criao da bolsa parcial de 25% obedecendo aos mesmos
requisitos da bolsa parcial de 50%, e ainda algumas diferenas de
nomenclatura, por exemplo, de estudantes portadores de necessidades
especiais para o termo correto, estudantes portadores de deficincia.
Outras mudanas pontuais foram feitas na redao da lei, principalmente na
questo das entidades de beneficncias sociais, mas, como j se disse, esta
questo no ser analisada.
O perole um programa que visa um pblico alvo social e
economicamente focado. Concede bolsas de estudos em universidades
particulares, inscritas voluntariamente neste, para estudantes que atendam
os seguintes requisitos (art. 2 da Lei 11.096/05): [1] cursado o ensino
mdio completo em escola da rede pblica ou em instituies privadas na
condio de bolsista integral, [2] seja portador de deficincia ou, ainda, [3]
professor da rede pblica de ensino para os cursos de licenciatura e
pedagogia, destinados formao do magistrio da educao bsica, este
ltimo excludo o requisito da renda mxima. As bolsas sero distribudas
para brasileiros no portadores de diploma de curso superior de acordo com
a renda familiar mensal per capit, da seguinte forma (art. 1 da lei
11.096/05): [a] integrais, se a renda for de um salrio-mnimo e meio, [b]
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40
parciais de 50%, se a renda no exceder o valor de at trs salrios
mnimos ou [c] parciais de 25%, se, novamente, a renda no exceder o
valor de at trs salrios mnimos. Para melhor visualizao, vide o
esquema a seguir:
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41
O programa conta com um claro objetivo de remdio de
redistribuio44, mas no somente. No art. 7 da referida lei, esto listadas
as obrigaes da instituio de ensino que sero previstas, como clusulas
necessrias, no termo de adeso ao perole. Dentre elas esto, no inc. II, o
percentual de bolsas de estudo destinado implementao de polticas de
polticas afirmativas de acesso ao ensino superior de portadores de
deficincia ou de autodeclarados indgenas e negros, sendo que este
percentual dever ser no mnimo igual ao percentual de cidados
autodeclarados indgenas, pardos ou pretos, na respectiva unidade da
Federao, segundo o ltimo censo do IBGE (1). Interessante notar que
neste artigo se insere os remdios de reconhecimento. No so bivalentes,
pois a renda deixa de ser um requisito necessrio para a participao no
programa. Contudo, o governo deixa claro neste projeto a inteno de
resolver as dificuldades de acesso ao ensino superior, sejam elas por
conseqncias meramente sociais ou incluindo o fator raa como maior
fonte de discriminao.
Pelo fato desta ao ter inmeros pontos envolvidos, desde a questo
tributria at a autonomia universitria em se submeter ao programa, a
questo da igualdade pouco aparece nas diversas peas processuais, e
quando se d, menos desenvolvida, sendo produto, muitas vezes, de
modo a reiterar a constitucionalidade da lei. Isso demonstra como os
remdios de redistribuio so aceitos, em geral, como legtimos, ou seja,
nem a PI condena como inconstitucional a poltica de financiamento de
estudo para alunos carentes. Talvez o ponto mais interessante da PI seja
quando se questiona o motivo de se exclurem do ProUni os estudantes que
contavam com uma bolsa parcial na escola privada, ou seja, se questiona a
extenso do fator de discrmen, no ele em si. Os defensores da poltica
dizem que esse argumento falacioso, pois os descontos de mensalidade
em colgios particulares fazem parte de uma poltica de competio, muitas
vezes at beneficiando irmos ou pagamentos adiantados tendo finalidade
de marketing. Caso se permitisse que esses alunos se inscrevessem no
ProUni toda a finalidade do sistema se perverteria, pois se favoreceriam
44 Vide captulo 5.4 Redistribuio e Reconhecimento.
-
42
alunos que, supostamente, teriam condies de bancar seus estudos. Esse
foi o critrio estabelecido pelo legislador, pode at ser questionvel em
determinados casos, o que no o torna inconstitucional. Como toda poltica
de ao afirmativa, o ProUni deve ser avaliado depois de alguns anos para
se observar se os seus objetivos esto sendo atingidos ou se mais pessoas
deveriam ser beneficiadas. Esse no um programa estanque, imutvel.
Caso se note discrepncias entre o pretendido e o que de fato ocorreu, cabe
ao legislador reformul-lo. E essa poltica, como disse a AGU, tem a
pretenso de buscar a gerao de externalidades sociais pela iniciativa
privada, apenas incentivada tributariamente.
Outra questo bastante freqente nas peas a do nmero ocioso de
vagas nas faculdades particulares devido falta de alunos com condies de
custear seus estudos45. O Consultor Geral da unio chega a afirmar que
nesta poltica, todos saem ganhando, desde os estudantes, as faculdades e
a sociedade. uma soluo parcial encontrada, j que o ensino superior
pblico no absorve esses alunos. Acontece uma reverso grave. O ensino
mdio pblico inferior, em qualidade, ao ensino mdio particular, ao
contrrio do que ocorre, em regra, no ensino superior. J as vagas das
faculdades privadas so preenchidas por muitos estudantes oriundos de
escola pblica ao contrrio do que ocorre, em regra, no ensino superior. De
modo nenhum a sociedade pode se satisfizer apenas com a resposta do
ProUni, outras medidas devem ser realizadas como aes afirmativas nas
faculdades pblicas ou ensino mdio pblico de maior qualidade (como as
denominadas federais).
Ainda h outro princpio muito usado para insurreies contra as
polticas de ao afirmativa, principalmente as de cotas, que no usado no
caso do ProUni: o modo de admisso no vestibular e o mrito dos
45 Mais especificamente: 37,5% das vagas em instituies privadas esto ociosas. Isso
corresponde a aproximadamente 500.000 (quinhentas mil) vagas no aproveitadas. J no ensino pblico, o nmero menor, mas, ainda expressivo, 5% das 14.863 vagas esto
desocupadas. Mas apesar deste aumento de oferta apenas 9% dos jovens de 18 a 24 anos
esto na faculdade, comparado a 27% no Chile e 80% nos EUA. Informao prestada nos autos da ADI 3330 pelo Procurador Geral da Repblica Cludio Fonteles, p. 890-891. Estes
dados deixam claro que no apenas na questo de renda em que h uma m distribuio
no Brasil.
-
43
aprovados. Como os estudantes que cumprirem os requisitos j expostos
ainda sero selecionados pelo ENEM e por outros critrios colocados pela
faculdade de maneira livre, h total conexo com a capacidade do aluno e
sua vaga custeada pelo Governo Federal. Ou seja, consegue a bolsa aquele
que alm de cumprir os requisitos tambm for aprovado no exame de
admisso. No h estudantes preteridos que ficaram de fora graas s
cotas ou outros argumentos comuns de em aes.
Outro ponto interessante a obrigatoriedade do mtodo de
autodeclarao para classificar quem sero os beneficirios. Desta forma,
excluem-se outros meios tais como: entrevistas ou fotos em que um
terceiro atesta qual a raa do individuo semelhante ao que acontece na
Universidade de Braslia (UnB).
6.3 A ADPF 186: as cotas raciais na UNB
A ADPF 186 foi proposta pelo partido poltico DEM em plenas frias
coletivas do judicirio, em julho de 2009. Este um caso que se prope a
ser paradigmtico. Na PI percebe-se uma preocupao em se limitar o que
est em jogo.
Defendem que a ao impugnar o sistema de aes afirmativas via
reserva de vagas para negros e pardos. Alegam que no se pretende
questionar a necessidade da adoo de tais medidas para concretizao de
direitos para minorias sociais, muito menos o reconhecimento de
preconceito e discriminao no Brasil. Na viso do requerente, pretende-se
discutir se a adoo de um Estado Racializado conveniente no Brasil.
Pode-se afirmar que o partido quer discutir esse modo de poltica pblica de
maneira geral. Mais do que a constitucionalidade ou no das cotas raciais na
UNB, o que est em jogo colocar o tema em pauta, dar a chance que a
deciso do STF v alm do caso concreto dando uma resposta final para
adoo de cotas no ensino superior. O DEM queria aumentar a amplitude
-
44
decisria do caso, dando carter erga omnes no apenas daquelas normas,
mas de qualquer outra que crie o mesmo tipo de ao afirmativa.
Outro ponto interessante da PI que o DEM enxerga o problema de
raas sempre ligado esfera econmica. Ou seja, se utilizarmos o critrio
de Fraser, descarta-se a ambivalncia da questo da raa e busca-se
apenas um remdio de redistribuio.
A UNB foi a primeira universidade brasileira a constituir este sistema
de cotas raciais no vestibular sem qualquer ligao com polticas
governamentais ou lei. Com base em sua autonomia universitria atravs
das instncias administrativas da faculdade foi reservado um total de 20%
das vagas de cada curso em cada perodo para negros e pardos.
Seu grfico da seguinte forma:
No h nenhuma limitao econmica. A cota visa trazer mais
diversidade e incluso racial na UNB.
Outra questo relativa ao caso diz respeito ao cabimento da ADPF
para questionar estes atos normativos.
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45
Algo exclusivo do sistema de cotas da UNB o mtodo de
classificao racial. Enquanto nas outras aes, era usado a
autoclassificao para se definir quem seria ou no beneficiado, na UNB os
candidatos que escolherem pelo sistema de cotas devem compararecer para
uma entrevista quando uma comisso verificar a autenticidade desta
declarao, conforme diz o edital:
Para concorrer ao Sistema de Cotas para
Negros, o candidato dever [...] optar, no ato da
inscrio, para concorrer preferencialmente pelo
Sistema de Cotas para Negros e, ainda, quando
convocado, comparecer em Braslia/DF para
entrevista pessoal [...] quando tambm dever
assinar declarao especfica de adeso aos
critrios e aos procedimentos inerentes ao referido
sistema. [...] Verificado pela Banca Entrevistadora
que o candidato submetido entrevista pessoal
no preenche os requisitos estabelecidos neste
edital, passar ele a concorrer apenas s vagas
oferecidas pelo Sistema Universal.46
O nico requisito que o edital coloca para que se possa concorrer no
sistema de vagas ser negro ou pardo. Por um lado, coloca-se que essa
entrevista visa impedir fraudes ou abusos e que ainda permite que o
estudante faa sua autoclassificao que apenas ser verificada por esta
comisso. De outro, se questiona como que num pas to miscigenado
como o Brasil um terceiro pode auferir a raa a qual pertence o outro, e
ainda, quais seriam os critrios a serem utilizados.
46 Edital disponvel em:
http://www.cespe.unb.br/vestibular/1VEST2009/arquivos/ED_3_2008_1_VEST_2009_ABT_F
INAL_FORM.PDF - acesso em 14/11/2009.
http://www.cespe.unb.br/vestibular/1VEST2009/arquivos/ED_3_2008_1_VEST_2009_ABT_FINAL_FORM.PDFhttp://www.cespe.unb.br/vestibular/1VEST2009/arquivos/ED_3_2008_1_VEST_2009_ABT_FINAL_FORM.PDF
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46
Muitos casos de erros dessa comisso j foram relatados pela mdia,
por exemplo, em 2008, quando gmeos idnticos foram considerados
diferentemente pela comisso47. Nesta poca a comisso avaliava os
candidatos por fotografia. Por conta disto, hoje se faz uma entrevista com
os candidatos, sendo que aqueles com sua classificao negada para o
sistema de cotas podem pedir um recurso universidade para que seus
pedidos sejam reconsiderados.
A medida cautelar48 julgada pelo Min. Gilmar Mendes na ADPF 186
teve um forte carter valorativo. O Min. dissertou sobre o histrico dessas
aes no mundo, no Brasil e na UNB. Apesar de no demonstrar qual a
opinio do Min., ele diz que olhar as aes afirmativas sobre a ptica da
fraternidade. Mesmo assim, h argumentos usados para ambos os lados,
tanto para defender as cotas da UNB como para declarar a
inconstitucionalidade. H diversas questes levantadas pelo Min. como:
Somos ou no um pas racista? Qual a forma
mais adequada de combatermos o preconceito e
a discriminao no Brasil? Desistimos da
Democracia Racial ou podemos lutar para, por
meio da eliminao do preconceito, torn-la
uma realidade? Precisamos nos tornar uma
nao bicolor para vencer as chagas da
escravido? At que ponto a excluso social
gera preconceito? 49
A MC foi negada, pois, segundo o Min. Gilmar Mendes, no havia
urgncia que se justificasse a concesso da MC j este sistema de cotas da