13339177 introducao a suma teologica

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Introduo Filosofia de S. Toms de Aquino

H. D. Gardeil

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PRIMEIRA PARTE: INTRODUO GERAL E LGICA INTRODUO HISTRICA E LITERRIA. NOO GERAL DE FILOSOFIA. INTRODUO LGICA. A PRIMEIRA OPERAO DO ESPRITO. A DEFINIO E A DIVISO. UNIVERSAIS, PREDICVEIS E PREDICAMENTOS. A SEGUNDA OPERAO DO ESPIRITO. O SILOGISMO. A INDUO. A DEMONSTRAO. TPICOS - SOFISMAS - RETRICA. CONCLUSO. SEGUNDA PARTE: COSMOLOGIA INTRODUO. OS PRINCPIOS DO SER MVEL. A NATUREZA. AS CAUSAS DO SER MVEL. O MOVIMENTO. AS CONCOMITANTES DO MOVIMENTO. PRIMEIRA PARTE: INFINITO, LUGAR, VAZIO E ESPAO. AS CONCOMITANTES DO MOVIMENTO. SEGUNDA PARTE: O TEMPO. A PROVA DO PRIMEIRO MOTOR. TERCEIRA PARTE: PSICOLOGIA PREFCIO INTRODUO A VIDA E SEUS GRAUS DEFINIO ARISTOTLICA DA ALMA AS POTNCIAS DA ALMA A VIDA VEGETATIVA A VIDA SENSITIVA: O CONHECIMENTO SENSVEL O CONHECIMENTO INTELECTUAL. POSIO DO TRATADO DA INTELIGNCIA NOO GERAL DO CONHECIMENTO O OBJETO DA INTELIGNCIA HUMANA O OBJETO PRPRIO DA INTELIGNCIA HUMANA O OBJETO ADEQUADO DA INTELIGNCIA HUMANA A INTELIGNCIA HUMANA E A VISO DE DEUS FORMAO DO CONHECIMENTO INTELECTUAL A ATIVIDADE DA INTELIGNCIA A VOLTA S IMAGENS O PROGRESSO DO CONHECIMENTO HUMANO O CONHECIMENTO DO SINGULAR E DO EXISTENTE O CONHECIMENTO DA ALMA POR SI MESMA CONCLUSO: POSIO DA TEORIA DO CONHECIMENTO INTELECTUAL EM S. TOMS A VONTADE A VONTADE E AS OUTRAS FACULDADES DA ALMA

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QUARTA PARTE: METAFISICA INTRODUO O SER O SER - ESTUDO CRITICO OS TRANSCENDENTAIS EM GERAL OS TRANSCENDENTAIS EM PARTICULAR. O UNO. OS TRANSCENDENTAIS EM PARTICULAR. O VERO. OS TRANSCENDENTAIS EM PARTICULAR. O BEM. OS TRANCENDENTAIS. CONCLUSO. AS CATEGORIAS A SUBSTNCIA OS ACIDENTES O ATO E A POTNCIA ESSNCIA E EXISTNCIA A CAUSALIDADE

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PRIMEIRA PARTE: INTRODUO GERAL E LGICA I INTRODUO HISTRICA E LITERRIA 1.O problema intelectual da Cristandade no tempo de S. Toms. A obra de S. Toms considerada, mais ainda do que a de outros grandes filsofos, como um imponente monumento, encarado facilmente como uma pea nica e fora de todo contexto histrico. certo que, no que toca verdade, tem-se de reconhecer que esta obra tem um valor absoluto e, portanto, transcendente. A olh-la mais de perto, porm, percebese que ela traz igualmente, sob muitos aspectos, a marca do seu tempo. Isso evidente no que diz respeito ao gnero literrio de seus escritos e um pouco menos, talvez, no tocante ao seu contedo. Chegar-se-, portanto, a uma compreenso mais adequada do pensamento de S. Toms quando se levar em conta s condies concretas de sua formao e a maneira pela qual ela foi expressa. com relao a este ponto de vista que iremos nos situar nesta primeira parte. 2. Cristandade e cultura antiga. At os tempos modernos, o pensamento do Ocidente esteve condicionado por um acontecimento maior: o encontro da mensagem evanglica ou, da sabedoria crist, com a cultura da antigidade. Todos os grandes problemas intelectuais giravam at ento, em torno dessa conjuno. Teramos de esperar o fim da Renascena para que os espritos se vissem dominados por outras preocupaes, nascidas do choque da prpria sabedoria crist, ento toda penetrada pelo helenismo, com uma concepo das coisas que o progresso das cincias e das tcnicas renovara completamente. O interesse no mais em torno de um passado que sobrevive, mas de um futuro que se delineia. Voltando ao problema geral do helenismo e do cristianismo, tentemos inicialmente dar uma idia dessas duas foras. O que impressiona no primeiro instante, a oposio entre a sabedoria evanglica e a sabedoria pag, que o Apstolo deveria acentuar de maneira to brilhante: oposio concernente ao princpio dessas sabedorias, de um lado a f, do outro a razo natural; oposio relativa a seus contedos, uma vez que o cristianismo se apresenta sobretudo como uma mensagem de salvao, enquanto que a sabedoria antiga se ordenava para uma viso cientificamente organizada do mundo; oposio, finalmente, quanto aos destinatrios: os simples, as multides, clientela privilegiada do Evangelho, em face das classes cultivadas que visavam principalmente as lies dos filsofos da Grcia. O Cristianismo a sabedoria da Cruz, que parece nada ter em comum com a sabedoria do mundo. Entretanto, observando melhor, verifica-se logo que entre as duas sabedorias h tambm pontos de contato. No se pode deixar de reconhecer, com efeito, que a mensagem crist bem mais provida de filosofia do que nos pareceu a princpio. No h na Escritura, doutrinas, a do Logos por exemplo, bastante prximas das concepes gregas, para que se tenha invocado, a seu respeito, uma influncia determinante do pensamento pago? Ao inverso, no encontramos nos tesouros da sabedoria helnica muitos elementos que j prenunciam o Cristianismo?

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Se, portanto, entre os dois grandes fatores culturais era de se prever uma luta, que efetivamente se realizou, tentativas de harmonizao ou de assimilao recproca no podiam deixar de se produzir. A histria dessas tentativas, mais ou menos bem sucedidas, a prpria histria do pensamento cristo durante quinze sculos. 3. A obra realizada at o sculo XIII. O problema se coloca desde as primeiras geraes crists, No sculo II, So Justino se esfora por explicitar as relaes de uma sabedoria pag que apreciava, e a que no pde totalmente renunciar, com a f pela qual derramar o seu sangue No sculo seguinte, sabese, em Alexandria que necessrio buscar o centro intelectual ativo da cristandade. Ali, Clemente; em seu PROTRPTICOS Ou em seus STROMATEIS, prossegue a obra de conciliao. No sculo V, com Santo Agostinho, Bocio e o Pseudo-Dionsio, que se tornaro como que os trs preceptores do Ocidente medieval, se conclui esta primeira fase da assimilao viva da filosofia grega. A que resultados exatamente se chegou at ento? Em santo Agostinho encontramos o primeiro grande sistema de filosofia crist. No que no pensamento deste Doutor um conjunto especulativo orgnico se ache constitudo por fora da f, mas, sim, que o exerccio terico da razo a reconhecido como legtimo e que, de fato, considervel a parte da especulao filosfica. A obra original de santo Agostinho, com relao ao pensamento antigo, sobretudo representada pela assimilao do neo-platonismo, ento a filosofia mais atuante, e cuja pea mestra era a teoria das idias. O Doutor de Hipone, colocando as "idias" em Deus, conseguia dar uma unidade satisfatria ao mundo de Plato e ao da Bblia. Esta tarefa de assimilao das especulaes platnicas ser continuada paralelamente, algumas dcadas mais tarde, por Dionsio que toda a Idade Mdia identificaria com o discpulo de Arepago. Aristteles, por sua vez, ser introduzido sobretudo por Bocio, graas ao qual sua obra atingir as escolas do Ocidente. Mas capital observar aqui que o Aristteles dos escritos de Bocio quase exclusivamente o Aristteles do Organon. Quando o conjunto dos tratados do Estagirita se perder, dele no restar praticamente seno esta parte de sua filosofia. Se se tentar, portanto, estabelecer o balano do que possui o Ocidente logo depois da queda de Roma e da submerso de sua cultura pelos brbaros, deve-se enumerar, em primeiro plano com as artes liberais, herana da literatura do baixo-imprio, esse conjunto de concepes neo-platnicas que Dionsio e sobretudo Santo Agostinho, haviam incorporado sua viso crist do mundo, e a Lgica de Aristteles, conservada por Bocio. Todo o resto da filosofia antiga, ou quase, vai se perder. A poca patrstica termina, pois, antes que a obra da confrontao das duas sabedorias tenha podido ser conduzida a seu termo. A tarefa mais rdua, a assimilao do sistema de Aristteles, est apenas comeada. Vai ser necessrio esperar que novamente surja o conflito helenismo-cristianismo, para que a totalidade do primeiro destes conjuntos volte a ser colocada em circulao. No se pode deixar de invocar, aqui, grandes etapas percorridas pelo pensamento cristo antes da maior crise do sculo XIII, crise a que S. Toms ser justamente chamado a dar uma soluo. A reconstruo da cultura ocidental data da Renascena carolngea. necessrio, porm, esperar o sculo X11 para que a vida intelectual tome uma verdadeira amplitude. At ento permanece em voga sobretudo o conjunto das idias divulgadas pelos mestres que j apresentamos. Entretanto, os acontecimentos decisivos se preparam: o conjunto da filosofia de Aristteles est em vias de ser traduzido, e misturado aos comentrios dos rabes e dos Judeus, comea a penetrar nas escolas do Ocidente. com -5-

essa nova introduo do peripatetismo na cristandade que se inicia efetivamente a histria do pensamento de S. Toms. 4. A Introduo da Filosofia de Aristteles no Ocidente. As primeiras tradues latinas que deviam possibilitar ac Ocidente o conhecimento das principais partes da obra do Es. tagirita, foram empreendidas na segunda metade do sculo XII. Eram tradues feitas do rabe, e num ambiente que estava, ento em estreito contato com a cultura muulmana de Toledo. Juntamente com os escritos de Aristteles, foi traduzido um certo nmero de escritos de seus comentadores antigos (Alexandre de Aphrodise, Thmistius, Philopon) e rabe-judeus (Alkindi, Alfarabi, Avicena, Avicebron). A leitura destes tratados, que abrem um novo mundo aos professores de teologia cristos, provocou um verdadeiro choque. Temos um sinal inequvoco disto na srie de interdies de que foram objeto por parte das autoridades eclesisticas que temiam um pensamento aparentemente to pouco assimilvel. O problema que, no fundo, este acontecimento levantava diante da inteligncia crist era o da escolha entre uma filosofia de inspirao peripattica, e uma outra, que at ento tivera o apoio dos telogos, e que era dominada pela influncia de Plato. Tentemos representar o que podiam trazer para o pensamento cristo, de positivo e de negativo, as especulaes das duas grandes filosofias. O platonismo se apresentava garantido pelo seu reconhecimento de um mundo superior, o das idias, e de uma intuio direta desse mundo. A partir desse ponto mximo, o universo se desenvolvia hierarquicamente, segundo um processo de emana ao no qual se experimenta causualidade divina. No homem, a distino da alma com relao ao corpo se via particularmente acentuada. Em face dsse idealismo espiritualista, no qual o acrdo com o pensamento religioso parecia to fcil de se realizar, em vista da impreciso de alguns de seus temas que o tornavam mais fcilmente flexvel, o aristotelismo, pelo contrrio, apresentava-se como um empirismo cientfico. Sua doutrina do conhecimento, sua antropologia, sua fsica, tinham mais clareza e objetividade. Em metafsica havia igualmente progresso no que concernia determinao dos conceitos fundamentais, assim como no seu rigor sinttico. Mas para um cristo, alm de algumas incertezas, essa metafsica oferecia dificuldades considerveis. A eternidade do mundo e da matria, admitidas como postulados, no vo de encontro ao dogma da criao? A espiritualidade do conhecimento humano, sua aptido para atingir as verdades superiores, no se encontram comprometidas pela implicao por demais marcante da vida intelectual na dos sentidos? Pode-se falar ainda de Causa criadora e de Providncia, com ste ato puro concentrado sbre si mesmo, que coroa o sistema? Essas lacunas e essas obscuridades, assim como uma ambincia positiva e cientfica, colocaro os pensadores religiosos, tanto os do Islam quanto os do Cristianismo, em guarda contra as especulaes do Estagirita. Dominados por seu valor racional sem par, les no podero evitar de se perguntar se os valres religiosos, que evidentemente colocam acima de tudo, no sairiam perdendo em aliar-se com um pensamento espiritualmente to pouco acolhedor. Essa atitude de reserva mais ou menos hostil em relao obra reconquistada de Aristteles ser, no incio do sculo XIII, a mais comum. Por causa da influncia dominante que no cessar de exercer sbre os espritos o pensamento do doutor de Hipona, falar-se- a seu respeito de agostinismo. Ao lado de alguns seculares e de muitos pregadores, ste movimento doutrinal abranger o conjunto dos mestres franciscanos, tendo Alexandre de Hales e S. Boaventura na liderana. -6-

Num outro extremo, no ltimo tero do sculo, um grupo de mestres da Universidade de Paris se inclinar, com Siger de Brabant, no sentido de uma aceitao de um aristotelismo de estrita obedincia, tal como propunha o grande comentador rabe Averrois. Teses essenciais do pensamento cristo, como Providncia e imortalidade pessoal da alma, encontrar-se-o seriamente comprometidas. Atravs de censuras rigorosas, impostas em 1270 e em 1277, o Bispo de Paris, tienne Tempier, tentar reprimir os empreendimentos dsse aristotelismo por demais ortodoxo. Antes dstes ltimos acontecimentos, uma posio intermediria surgiu, - onde se mantinha o respeito pelo dogma cristo e se buscava conservar tudo o que o no-platonismo agostiniano havia podido trazer de bom, mas onde se testemunhava uma slida confiana no valor dos princpios e mtodos de Aristteles, adotada pelos dois grandes mestres dominicanos, Alberto Magno e Toms de Aquino: o primeiro voltado mais para o mundo fsico e mais interessado pela cincia, porm mais ecltico e menos profundo; o segundo conseguindo afinal, com seu gnio de sntese superior, a obra de assimilao, pelo cristianismo, dessa filosofia de Aristteles que parecia destinada a destru-lo. Em resumo, esta a significao histrica e a posio do pensamento de S. Toms de Aquino. 5. As grandes etapas na vida de S. Toms. Todos os fatos da vida de S. Toms esto longe de serem conhecidos com preciso, e sbre pontos importantes ficamos ainda na incerteza. A Historia EccIesiae de Ptolomeu de Lucques (1312-1317 ), a Historia beati Thomae de Aquino de Guilherme de Tocco (em trno de 1311) e os Atos dos processos de canonizao de Npoles (1319) e de Fossanova (1321) constituem os documentos de base de sua biografia. Entre os trabalhos modernos destacam-se primeiramente os do Padre Mandonnet op (+1936) e de Mons. Grabmann (+ 1948). O Pe. Walz op, no Dict. de Thol. cath., art. S. Toms, apresenta uma boa exposio da questo. Eis aqui, simplesmente enumeradas, as grandes etapas da vida de S. Toms. Origem. S. Toms nasceu provvelmente em 1225 no Castelo de Roccasecca, perto da cidade de Aquino, no Reino de Npoles. Pertencia a uma famlia de grandes senhores, aliados do imperador e devotados sua causa. Em Monte-Cassino (1230-1239) . Aos cinco anos de idade, o jovem Toms confiado, por seus pais, para sua primeira educao, abadia vizinha de Monte-Cassino. Pode-se crer que o desejo de v-lo um dia na direo do clebre mosteiro no deixou de influir nesta deciso. Na Universidade de Npoles (1239-1244). S. Toms aperfeioa sua formao literria e comea seus estudos de filosofia em Npoles, onde tem, em particular, como mestres: Martinho de Dacie (para a Lgica) e Pedro o Irlands (para a Fsica). Entrada na Ordem Dominicana (1244-1245 ). Em 1244, o jovem estudante toma o hbito dos Pregadores, no convento de San Domenico de Npoles. Descontentes, os pais prendem e escondem o novio que, depois de diversas peripcias, conseguir finalmente a liberdade de seguir sua vocao. Os estudos na Ordem de So Domingos (1245-1252). muito provvel que S. Toms tenha sido inicialmente estudante no Studium de Saint-Jacques de Paris (1245-1247) , e tenha seguido seu mestre Alberto Magno Colnia, onde aperfeioou sua formao (12471252) .

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S. Toms, bacharel em Paris. (1252-1256). Designado para lecionar em Paris, que era ento o centro intelectual da cristandade, S. Toms comeou, de acrdo com o costume, por "ler" a Bblia de maneira contnua e rpida (Cursorie), durante dois anos. Depois, durante outros dois anos, comentou as Sentenas de Pedro Lombardo. S. Toms, mestre em Paris (1256-1259) . Admitido como mestre ao mesmo tempo que So Boaventura, S. Toms comenta a Bblia (ordinarie), realiza suas primeiras questes disputadas (De Veritate), e empreende a composio da Summa Contra Gentiles. Estadia na Itlia (1259-1268) . A pedido do Papa, S. Toms vai Itlia para a exercer as funes de leitor da Cria. Acompanha esta a Anagni, a Orvieto e volta a Roma. Sua atividade intelectual ento das mais intensas: ensina a Sagrada Escritura (curso ordinrio para mestres), discute numerosas questes, conclui o Contra Gentiles, compe a Catena Aurea, comenta Aristteles, inicia a Suma Teolgica, etc. Professor pela segunda vez em Paris (1269-1272) . Chamado a Paris por ocasio da crise intelectual provocada pelo movimento averroista, S. Toms toma posio na polmica e prossegue incansvelmente na sua tarefa de professor e de escritor (comentrios da Sagrada Escritura, de Aristteles, Questes Disputadas, Suma Teolgica, opsculos diversos). Professor em Npoles (1271-1273). Designado para assumir a direo do nvo Studium generale em Npoles, S. Toms tem, alm dos trabalhos habituais de mestre, uma notvel atividade apostlica. Convocao ao Conclio de Lyon, doena, morte. (1274). A pedido de Gregrio IX, S. Toms parte para participar do Conclio de Lyon. Durante a viagem fica doente e morre, a 7 de maro, na abadia cisterciense de Fossanova. 6. Problemas relativos s obras de S. Toms. Falecido aos 49 anos, S. Toms teve uma prodigiosa atividade como professor e escritor: tdas as matrias filosficas e teolgicas estudadas em seu tempo foram abordadas por le. Dos numerosos trabalhos que le deixou, alguns (lies, questes disputadas), representam o fruto direto de seu ensino. Outros (Sumas, opsculos diversos) so composies livres. Alguns dstes trabalhos foram escritos por le prprio, outros smente ditados, e h ainda os que foram simplesmente reportados. Alm disto, observar-se- que numerosos apcrifos se encontram na compilao clssica dos Opera omnia, que no foram compostos com uma verdadeira preocupao crtica. Na edio Vivs por exemplo, a mais completa de tdas, so encontrados 140 escritos, agrupados em 32 volumes, sem qualquer ordem cronolgica, no havendo possibilidade de se distinguir o que e o que no verdadeiramente de S. Toms. Estas observaes - e se poderiam fazer outras anlogas mostram que a obra literria do nosso Doutor comporta muitos problemas. A primeira questo que se pode colocar a respeito das obras de um autor , evidentemente, o de sua autenticidade. Na Idade Mdia, parece no ter havido um escrpulo excessivo no que diz respeito propriedade literria e, por outro lado, pode ter havido rros ou fantasias dos copistas, sem contar que numerosos manuscritos circulam annimos. Assim, no de admirar que menos de meio sculo aps sua morte, tenha se tornado to difcil fixar com exatido a lista das obras de S. Toms. Para prevenir ste inconveniente, procurou-se ento organizar catlogos: nas primeiras dcadas do sculo XIV foi lanada tda uma srie dles. Esses catlogos permanecem como documentos de primeira ordem para determinar a autenticidade dos escritos de nosso Doutor, mas infelizmente les no coincidem entre si de maneira perfeita. Por outro lado, visvel que -8-

tambm no foram compostos com suficiente preocupao crtica. Portanto, tomados isoladamente, o seu testemunho nem sempre decisivo. Diante dessas dificuldades, os editres da Piana (sculo XVI), se contentaro em colocar prudentemente parte uma srie de escritos que les qualificaram de duvidosos. Os primeiros trabalhos de crtica realmente sria a sse respeito so os de dois dominicanos, do incio do sculo XVIII, os Padres chard e De Rubeis. Hoje, a questo foi inteiramente reformulada, notadamente pelo Pe. Mandonnet (Les crits authentiques de saint Thomas d'Aquin, 2.a ed., Fribourg (Suisse), 1910) e por Mons. Grabmann. A que resultados se chegou? Pode-se dizer que de um modo geral chegou-se a um acrdo sbre a autenticidade ou no, de quase cada uma das obras em questo. Se subsistem algumas dvidas, estas se referem smente a alguns opsculos de pouca importncia. Para o fundamento da doutrina, em todo caso, nenhum problema srio se coloca sob sse ponto de vista. - Na prtica, poder-se- utilizar o quadro preparado pelo Pe. Mandonnet, em seus crits authentiques. Este quadro agrupa 140 escritos, 75 marcados como autnticos e 65 como apcrifos. Estes ltimos, apressemo-nos em diz-lo, constituem de fato menos da dcima parte do conjunto e no compreendem qualquer das obras mais importantes. O estudante de filosofia notar que a Summa totius logicae, algumas vzes utilizada nas exposies do pensamento de S. Toms, no dle. O estabelecimento da cronologia das obras de S. Toms coloca problemas mais rduos ainda. Alguns pontos importantes esto entretanto assegurados e a. classificao aproximativa das grandes obras est quase tda realizada. Ns nos contentaremos aqui em remeter o leitor ao artigo citado, do Pe. Walz, que d, em quadro, o estado atual das pesquisas. Pode-se perguntar em que medida exigido para o estudo de S. Toms, o conhecimento da cronologia de suas obras. Em se tratando de uma filosofia em perptuo desenvolvimento, a de um Plato, por exemplo, ou a de um Fichte, claro que no se pode deixar de seguira ordem cronolgica de seus escritos, sob pena de cair-se na maior das confuses. No caso de S. Toms essa ordem no to necessria, quanto ao conjunto de seu pensamento. A parte o caso das Sentenas e de alguns opsculos que de maneira manifesta representam um estado primitivo e menos elaborado de sua doutrina, pode-se dizer que le se afirma, desde o Contra Gentiles e o De Veritate, em plena e lcida posse do que ser sua sntese definitiva. O que imediatamente, mais impressiona em S. Toms a fundamental estabilidade de um pensamento to rpidamente tornado adulto. Admitido isso, resta que le pode ter evoludo em alguns pontos particulares. Pelo menos a primeira fase de sua doutrina tem muito a ganhar quando considerada parte. H vantagem, portanto, em certos casos, e sse o caso das Sentenas, em se levar em conta a cronologia. Praticamente, o principiante em filosofia, para quem escrevemos, poder observar as seguintes discriminaes sumrias: Primeiro perodo de juventude (1252-1256) : Comentrios sbre as Sentenas, assim como os opsculos: De ente et essentia, De principiis naturae, De Trinitate. Primeiro perodo de professorado em Paris, Incio da estadia na Itlia (1256-1264) : Questes disputadas De Verilate, Contra Gentiles. Perodo de plena maturidade (1264-1274) : outras questes disputadas, Comentrios de Aristteles, Suma Teolgica, etc. Observar que o Compendium theologiae no , como durante muito tempo se acreditou, a ltima obra de S. Toms. -9-

7. As Obras de S. Toms quanto ao seu gnero literrio. Ao primeiro contato, o leitor moderno das grandes obras medievais no pode deixar de ficar confundido pelos mtodos de exposio nelas utilizados. H, evidentemente, muita diferena com relao aos nossos livros atuais. Portanto, no ser suprfluo, para introduzir ao estudo de S. Toms, dizer alguma coisa sbre os processos literrios da poca. Como os autores de ento, antes de tudo, so professres e, como os escritos que les deixaram so em grande parte fruto de sua atividade professoral, ser til uma informao a respeito desta. (Para todo ste pargrafo, Cf. CHENU, Introduction d l 'etude de saint Thomas d'Aquin; Paris, Vrin, 1950). 8. Os processos medievais de ensino. Tda a pedagogia medieval base de leitura de textos: "Duas coisas principalmente concorrem para a aquisio da cincia, a leitura e a meditao" Hughes S. Victor Didascalicon, L.1,c.1 Atravs da meditao d-se a assimilao pessoal da doutrina, enquanto que pela leitura ela transmitida a outrem, ou dle recebida. Este ltimo processo to usado como mtodo de ensino que o professor toma o nome de "leitor... lector", e o prprio ato de ensinar consiste em "ler. . . legere". Lem-se, por exemplo, as Sentenas. Observar-se- que ste costume de ler os textos no deve deixar de ter relao com a tradicional lectio monstica, a qual era smente um meio de edificao. Essa prtica generalizada da leitura se deve, por um lado, ao respeito muito grande que ento se tinha pelos textos escritos. So poucos os que os possuem, e os livros, at a inveno da imprensa, eram raros e preciosos. So verdadeiros tesouros que se exploravam com o maior cuidado. Pode-se supor, por outro lado, que a teologia, base de textos, no deixou de ter uma influncia sbre o mtodo das outras disciplinas. Seja como fr, essa prtica da "leitura" fazia com que os autores que se liam fssem respeitados. O texto sagrado porque le a expresso do pensamento de um mestre reconhecido. Assim que, ao lado da autoridade sem par da Sacra pagina, a Idade Mdia venerar a autoridade dos Padres, a de S. Agostinho em particular, dos quais jamais se poder apontar um rro. Ao lado das autoridades prpriamente sagradas, haver as autoridades do terreno profano cujos textos sero "lidos" tambm com o maior respeito: os de Aristteles em filosofia e de Donat em gramtica, os de Ccero e Quintiliano em retrica, os de Galileu em medicina, os do Corpus luris em direito. Isto faz com que haja, em um nvel inferior ao da escrita inspirada que evidentemente est parte, todo um escalonamento de autoridades de maior ou menor pso, a dos Sancti, a dos Philosophi e finalmente a dos Magistri, que se tem plena liberdade de no seguir. Na prtica, a "leitura" escolar se revestia de formas bastante variadas. Podia comportar smente breves anotaes, chamadas glosas, que figuravam nos manuscritos entre as linhas (glossa interlinearis) ou nas margens (glossa marginalis). As vzes o comentrio do mestre se estendia em uma ampla exposio, como por exemplo os comentrios de S. Toms sbre - 10 -

Aristteles. Outras vzes, ainda, o mestre que lia desenvolvia pessoalmente o pensamento do autor em questo, ou o parafraseava, como no caso de Avicena ou de Alberto o Grande. No h dvida de que sse mtodo de "leitura" das autoridades, que a princpio foi a fonte de um enriquecimento e de um desenvolvimento autnticos da vida intelectual, poderia levar com o tempo, ao perigo de afastar, cada vez mais a ateno dos objetos reais, para se concentrar na anlise abstrata das frmulas e das noes. A escolstica decadente incorrer nessa falta que a conduzir a um verbalismo bastante vazio. Porm sses excessos no condenam o mtodo no que le pde ter de fecundo durante tanto tempo. Um texto necessriamente apresenta dificuldades ou, se se prefere, faz surgir questes: assim que o leitor ser naturalmente conduzido da lectio quaestio que significa na ordem literria, que os Comentrios se sobrecarregaro de Questes. Essas questes podem nascer, seja de uma expresso que exigia maior preciso, seja de uma frmula que se prestava a equvoco, seja do confronto de vrias interpretaes contrrias, etc. Progressivamente, cada vez mais tomando corpo, essas explicaes complementares vo tender a se tornar a prpria forma do ensino escolar. Por exemplo, o que se deu com o comentrio das Sentenas de S. Toms, onde a exposio de Lombardo fica reduzida, simplesmente, a uma muito breve divisio textus, enquanto a doutrina do comentador se estende amplamente em longas sries de artigos. Mera dificuldade textual a princpio, a Questo se tornou um simples processo de exposio cuja autonomia se afirmava cada vez mais. Coloca-se em questo os problemas, no porque se tenha dvidas realmente sbre suas solues, mas porque se acredita que assim les sero melhor apresentados. Da dificuldade original no resta mais, nesse estgio, seno a frmula, comandada por um "Utrum" ou um "Quomodo", seguidas de uma forma estereotipada de soluo. sse processo se tornou um gnero literrio prprio, que logo se separou da expositio textus, da qual no mais do que uma superfetao. A soluo de uma questo, sobretudo a partir do sic et non de Abelardo, colocava em jgo, naturalmente, opinies ou autoridades contrrias. Alguns se contentavam em expr o conflito em uma obra escrita, mas tambm havia quem preferisse coloc-lo em cena, por meio de um debate pblico, onde os contraditores seriam personagens vivos. De processo literrio, a questo passava ento para o gnero dos exerccios acadmicos: surgia a Questo disputada. No sculo XIII, sse exerccio ter um lugar to importante, que ao lado das lies e dos sermes que lhe eram designados, cada mestre deveria, obrigatriamente, realizar disputas: "legere, disputare, praedicare", tais so suas funes habituais. bom saber que os textos das Questes disputadas, encontrados nas obras dos mestres medievais, no reproduzem ao p da letra a disputa realizada na sesso solene de defesa das teses, mas sim um arranjo metdico das anotaes tomadas logo aps, e que, alm disto, deviam ser dadas em aulas, dentro do currculo normal numa segunda reunio. No seio dsse gnero de exerccios escolares desenvolve-se um tipo especial de questes disputadas, o Quodlibet, assim denominado porque, por ocasio dessas reunies podiam-se levantar no importa que questes considerao do mestre defensor. Os Quodlibets eram realizados duas vzes por ano, antes das festas do Natal e da Pscoa e se revestiam de uma particular solenidade. Pode-se imaginar o quanto deviam exigir, da parte do mestre, de incomura solidez e universalidade de saber! O certo que a essa prova nem todos se submetiam e, as colees de Quodlibets so relativamente raras. O intersse dessas questes reside mais na atualidade dos assuntos tratados do que na amplitude das exposies, qual fatalmente,, prejudicavam a disperso e o imprevisto das discusses.

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Os esclarecimentos precedentes nos colocam finalmente em condio de compreender a razo e de perceber o intersse dos artigos que compem muitas obras medievais, e em particular a Suma Teolgica de S. Toms. O artigo, tal como se encontra nessas obras, no seno a reduo das grandes disputas que acabam de ser descritas. Da mesma forma que elas, le comea por uma questo, "Circa primum quaeritur...", aps o que vem a discusso, formada antes de tudo pelo enunciado do pr ("videtur quod..."), e do contra ("sed contra..."), que no correspondiam necessriamente tese sustentada pelo autor, embora na Suma Teolgica seja ste o caso mais freqente. Na realidade, essas preliminares constituem como que um primeiro manejar de armas, que a determinao magistral contida no corpo do artigo ("respondeo, dicendum quod. . . ") vem concluir. Finalmente vm as respostas aos argumentos "contra", onde de ordinrio nota-se a preocupao de salvaguardar, atravs de distines convenientes, a parte de verdade que podiam conter as objees. Sob a tcnica um pouco pesada e uniforme dessas Sumas medievais esconde-se uma vida intensa de discusses e de pesquisas expressivas de uma poca em que a curiosidade e a agilidade intelectual foram notveis. B possvel que sse formalismo tenha tido seus inconvenientes, porm ele foi sobretudo um instrumento de anlise e de exposio de incontestvel eficcia. 9. Classificao, quanto ao gnero literrio, das obras de S. Toms. Todos os gneros literrios acima definidos se encontram nas obras de S. Toms: lies, seguidas de explicaes, nos comentrios filosficos e escritursticos; sistemas de questes ainda ligadas a um texto, como no caso de todas as Sentenas e do De Trinitate; Questes disputadas e Quodlibets; escritos sistemticos independentes, mas onde se encontra ainda a diviso em questo, a Suma teolgica, por exemplo;, obras mais livres, agrupadas de ordinrio sob o ttulo de opsculos; finalmente vrias sries de sermes ou de collationes, aos quais seria necessrio acrescentar, para ser completo, alguns trechos de poesia religiosa. 10. Os comentrios sbre Aristteles. Os comentrios constituem a base de todo estudo direto da filosofia de S. Toms. Disso decorre seu intersse para ns. Parece terem sido temas de aulas privadas dadas pelo mestre a seus irmos de religio. Sabe-se que no sculo XIII os textos de Aristteles, da mesma forma que os de outros autores gregos, no foram prticamente acessveis aos ocidentais seno em tradues latinas. Que texto teria S. Toms podido consultar? O trabalho de traduo de Aristteles parece ter sido efetuado em trs etapas. At a metade do sculo XII tem-se um conjunto de tradues feitas principalmente do grego das quais algumas remontam a Bocio. No final dsse sculo, provocando a crise de que j falamos, novas tradues foram feitas, porm agora do rabe que por sua vez no remontava, sem dvida, ao texto primitivo seno atravs de verses srias. evidente que os resultados s poderiam ser muito imperfeitos. Para remediar sse estado de coisas, decidiu-se refazer o trabalho, partindo do grego. S. Toms deve ter sido um dos incentivadores dsse trabalho de aperfeioamento. Em todo caso, foi a seu pedido que Guillaume de Moerbeke, que ento se achava com ele na curia pontifical, se dedicou, a partir do texto original grego, a fazer uma nova verso latina. Foi essa verso que serviu habitualmente a S. Toms em seus comentrios, e que se acha nas - 12 -

edies de suas obras. Muito literal, ela se recomenda mais pela sua preciso concisa do que por sua elegncia. No dizer de Ptolomeu de Lucca, S. Toms utilizou um nvo mtodo em seus comentrios mais rigoroso do que o comumente usado. Substituiu a parfrase um pouco vaga pela anlise precisa de tdas as particularidades do texto, completada alis por um esfro de reconstruo sinttica do tratado. Acrescentemos que, se teve a preocupao pelo detalhe, e isso algumas vezes at mincia, nosso Doutor se manifestava como autntico filsofo, jamais perdendo de vista os princpios nem o conjunto. Anlise e sntese se conjugam, assim, numa harmonia genial. No h dvida de que comentando Aristteles, S. Toms desejou, ao mesmo tempo, penetrar no pensamento autntico do filsofo e descobrir, sob sua orientao, a verdade objetiva. Do ponto de vista exegtico, deve-se reconhecer que sua obra representa a mais feliz realizao de seu tempo. Regra geral, a interpretao do texto perspicaz e fiel; hoje ainda utilizada para compreender Aristteles. Entretanto, apesar de seguir conscientemente seu mestre, S. Toms permanece um filsofo pessoal. Seu comentrio, portanto, exprime tambm o seu prprio pensamento. Deve-se to smente observar que, ligado s idias de um outro, ele no tem aqui tda a liberdade suficiente para desenvolver as suas, sendo necessrio, para ter-se uma idia integral de sua filosofia, recorrer s outras de suas obras onde ela se desenvolve com plena independncia. Iniciada talvez na metade do perodo italiano de sua vida professoral, a obra de comentrio de S. Toms prosseguiu at o fim de sua carreira. Aproximadamente ir dos anos 1265-66 a 1274. Como subsistem muitas dvidas quanto data precisa de cada comentrio, bastar darmos aqui sua relao, seguindo a ordem clssica do Corpus aristotlico: Perihermeneias (autntico at II, I. 2 inclus.). Segundos Analticos. Fsica (em 8 livros). De coelo et mundo (autntico at III, I. 8 inclus.). De generatione (aut. at I, I. 17 inclus.). Meteorolgicos (aut. at II, I. 10 inclus.). De anima (em 3 livros). De sensu, De memoria. Metafsica (coment. dos 12 prim. livros). tica a Nicmaco. Poltica (aut. at III, I. 6 inclus.). 11. O Comentrio sbre as Sentenas. Sabe-se que o intersse dsse comentrio deve-se ao fato de que le representa o pensamento de juventude de S. Toms. Pertence, alis, a um tipo de obra to clssica na Idade Mdia que no ser intil dizer alguma coisa a seu respeito. O ensino dos mestres da Faculdade de Teologia estava ligado leitura da Bblia e, a primeira iniciao nesse domnio se fazia seguindo o texto das Sentenas de Pedro Lombardo. A explicao dessa obra durava dois anos e era confiada a um auxiliar do mestre que, por essa razo, tinha o ttulo de bacharel em sentenas. Normalmente, portanto, um comentrio sbre as Sentenas correspondia ao incio da carreira de um telogo.

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Compostas em trno de 1150 pelo bispo de Paris, Pedro Lombardo, as Sentenas constituam uma coleo bastante completa das principais questes teolgicas, estando estas repartidas em quatro livros, tendo por objeto: o primeiro, Deus uno e trino; o segundo, a criao; o terceiro, a redeno e a graa; o quarto, os sacramentos e os fins ltimos. sse trabalho est longe de apresentar uma estrutura sistemtica comparvel das futuras Sumas, porm isso mesmo contribuiu para seu sucesso pois dava mais lugar livre interpretao. Por outro lado, as Sentenas se recomendavam por sua ortodoxia e por uma larga informao escriturstica e patrstica. Um tal conjunto de qualidades, ao mesmo tempo positivas e negativas, devia assegurar obra de Lombardo um destino absolutamente excepcional: durante vrios sculos servir de manual de teologia e pode-se avaliar em centenas o nmero de comentrios que foram conservados. O texto que possumos corresponde ao curso efetuado por S. Toms no Studium parisiense de saint Jacques, durante os anos 1254-1256 (com possveis retoques feitos um pouco mais tarde). sse texto se liga ao gnero da lectio em seu estado de evoluo para a quaestio. Cada um dos livros de Lombardo dividido em um certo nmero de "distines" (48 no primeiro livro; 44 no segundo; 40 no terceiro; 50 no quarto), repartidas algumas vzes em vrias "lies". Obrigatriamente, distines ou lies se articulam segundo um plano tripartido compreendendo: uma divisio textus, anlise lgico-gramatical, bastante sucinta, do texto; um conjunto de quaestiones, subdivididas em artigos e s vzes em questinculas: finalmente uma expositio textus ou uma expositio litterae, onde o autor repassa muito rpidamente o texto estudado e resolve as ltimas dificuldades. Todo sse aparato, minuciosamente ordenado, desagrada um pouco ao leitor moderno, habituado a exposies contnuas e mais livres. Pelo menos ns conhecemos agora sua origem e podemos ver sua razo de ser. 12. As Sumas. S. Toms clebre em tda parte por sua Suma teolgica. Sabe-se menos, em contraposio, que esta obra pertence a um gnero literrio muito difundido em seu tempo. Mons. Glorieux (art. Sommes thologiques, no Dict. de Th. cath.) divide as sumas medievais em trs grupos, de inteno e de estrutura diferentes: as Sumas compilaes, onde domina a preocupao da compilao completa, porm no organizada sistemticamente (florilgios de textos escritursticos ou patrsticos, por exemplo. Na obra de S. Toms, a Catena aurea); as Sumas abreviadas, onde sobretudo se busca a brevidade exata (gnero lxico ou catecismo); as sumas sistemticas finalmente, que visam dar um ensinamento de conjunto orgnicamente estruturado. neste ltimo grupo que se encontram as duas grandes Sumas de S. Toms. A Suma contra os Gentios uma obra apologtica que teria sido escrita a pedido de Raimundo de Pennafort, mestre geral dos pregadores, por ocasio do problema da converso dos mouros do reino de Valncia, recentemente reconquistado pelos cristos. Deve-se observar, entretanto, que os argumentos apresentados no visam unicamente aos muulmanos. Os "gentios" so tambm os herticos, os judeus, os pagos, em uma palavra todos os heterodoxos. H concordncia em datar o incio da Contra Gentiles no final do primeiro ensinamento do mestre (1258 aproximadamente). A obra teria sido terminada na Itlia (por volta de 1263-64) . Devido ao lugar considervel que os argumentos racionais tm na Contra Gentiles, confere-se s vzes a esta obra, em paralelismo com a "Suma teolgica", o ttulo de "Suma - 14 -

filosfica". Tal designao totalmente inexata, como ressalta do conjunto de seu contedo e, de sua inteno, formalmente expressa em vrias passagens, que a defesa das verdades da f. Trata-se, portanto, de uma apologia da f catlica, sistemticamente valorizada em face dos no-crentes e de suas objees. A Summa Contra Gentiles foi dividida pelo prprio S. Toms (cf. I, c. 9 e IV, proemium) em duas grandes partes. A primeira tem como objeto as verdades da f accessveis razo, Deus (1. I), a processo das criaturas a partir de Deus (1, II), a ordenao das criaturas a Deus como ao seu fim (1. III). A segunda tem como objeto as verdades que ultrapassam a razo, quer dizer, os mistrios da f, a Santssima Trindade, a Encarnao, a Beatitude sobrenatural (1. IV). interessante observar que, diferentemente do que fz nas Sentenas ou na Suma teolgica, S. Toms no usou nesta obra o processo clssico da quaestio. Os argumentos que prope em trno de cada assunto sucedem-se em pequenos pargrafos concisos sem aparente ligao orgnica. A Suma teolgica no fruto de um ensino escolar. Tambm no , propriamente falando, uma obra de circunstncia. Ela representa mais uma iniciativa pessoal do mestre, realizada na inteno de auxiliar os estudantes principiantes. Como observa le no Prefcio da obra, stes encontram nas exposies habituais trs espcies de dificuldades: multiplicao de questes, artigos e argumentos inteis, falta de disposio metdica nas razes alagadas que aparecem ao sabor das circunstncias do texto comentado ou por ocasio das disputas e, finalmente, a fadiga e a confuso que resultam da repetio dos mesmos argumentos. A fim de evitar sses inconvenientes, S. Toms se props a expr a verdade crist com brevidade e clareza (breviter ac dilucide), quando a matria o permitia. fcil de se constatar que a apresentao exterior da Suma est perfeitamente adaptada a sses fins: diviso simples e regular em partes, questes, artigos; reduo do nmero das objees, geralmente a apenas trs, com um nico argumento sed contra; determinao sob forma condensada e clara, da doutrina, no corpo do artigo; finalmente, breve resposta s objees. Basta comparar a Suma Teolgica com outras obras da poca para que estas vantagens imediatamente apaream. A cronologia da Suma a seguinte: a I. Pars dataria da segunda metade da estadia na Itlia (a partir de 1266); a II. Pars corresponderia, sem dvida, ao segundo ensinamento parisiense (1269-1272) ; a III. Pars, finalmente, teria sido realizada em Npoles, onde S. Toms a deixou inacabada (fim de 1273). O suplemento (a partir da q. 70) no seno uma compilao de textos das Sentenas, redigido por Reinaldo de Piperno, secretrio e confidente do santo. A Suma Teolgica est construda sbre o plano, alis perfeitamente clssico, da processo das criaturas e de seu rotrno a Deus, retrno ste de incio considerado de maneira mais abstrata e do ponto de vista da moralidade e, depois, na perspectiva da Encarnao redentora ou do Christus, via. Bastar lembrar aqui os ttulos destas grandes divises: I. P. De Deus uno e trino, e da processo das criaturas a partir de Deus. II. P. Da volta da criatura racional para Deus. I-IIae, em seus princpios gerais; II-IIae, segundo as virtudes particulares. III. P. Do Cristo que, enquanto homem, para ns o caminho da volta para Deus. 13. Outras obras. - 15 -

O estudo da filosofia de S. Toms supe ainda o auxlio constante de duas outras sries de obras importantes. A primeira delas constituda pelas Questes disputadas, onde freqentemente se encontram os mais profundos desenvolvimentos de sua doutrina. J suficiente o que dissemos sbre o gnero literrio dessas obras. Acrescentemos, simplesmente, que as questes mais utilizadas em filosofia so, em primeira linha, o importante conjunto De Veritate, e, depois dle o De potentia. As questes De anima, De spiritualibus creaturis e De inalo devem tambm ser consultadas. A segunda srie compreende todo um grupo de opsculos, de tamanho alis muito varivel, entre os quais no se pode deixar de assinalar, para a filosofia: o De principiis naturae, o De aeternitate mundi, o De ente et essentia, o De unitate intellectus, e o comentrio sbre o De causis, obra de Proclus, bastante conhecida na Idade Mdia, de cuja inautenticidade aristotlica S. Toms foi o primeiro a suspeitar. 14. A Escola Tomista e a influncia de S. Toms. Neste pargrafo, pretendemos expr apenas uma viso extremamente sumria do movimento intelectual que se acha sob a influncia de S. Toms. Quando vivo ainda, S. Toms j suscitava ao mesmo tempo discpulos fervorosos e adversrios decididos. Na prpria Ordem dos Pregadores, a resistncia sua doutrina foi suficientemente sria para que um personagem to importante como ROBERT KILWARDBY arcebispo de Canturia, ousasse condenar algumas de suas teses. Entretanto, a maioria de seus irmos em religio no tardaram em se declarar de seu lado, e, desde o fim do sculo XIII, os Captulos Gerais Dominicanos tomaram oficialmente posio a seu favor. Fora da Ordem, no faltam tambm testemunhos mais laudativos, entre les, notadamente, o de GIL DE ROMA, mestre geral dos Eremitas de santo Agostinho, discpulo alis bastante pessoal do mestre. E, logo, o ttulo significativo de Doctor communis consagrar sua reputao. A mais viva oposio, no sculo XIII, vem principalmente do grupo dos telogos, sobretudo franciscanos, que permanecem mais estritamente ligados tradio agostiniana. A essa oposio, e s reaes que ela devia suscitar, se liga tda uma literatura polmica, chamada corretrios, que marca os avanos do pensamento de S. Toms no curso das dcadas que se seguiram sua morte. Entre seus partidrios, destacam-se dois inglses, GUILHERME DE MAKELFIELD e RICHARD KLAPWELL, um mestre de Saint Jacques chamado JEAN GUIDORT, e o mestre geral da Ordem, HERV DE NDLEC. O primeiro comentrio prpriamente dito da Suma teolgica foi feito por um regente de Toulouse, JEAN CAPROLUS (t 1444), que escreveu Defensiones theologicae Divi Thomae. Nesse meio tempo, S. Toms havia sido canonizado por Joo XXII, em 18 de julho de 1323. Ser declarado Doutor da Igreja universal por S. Pio V, em 21 de abril de 1557. 15. Os grandes comentadores de S. Toms e as controvrsias teolgicas dos sculos XVI e XVII. Aps um perodo de menor fecundidade, o movimento dos estudos escolsticos retoma um nvo vigor no incio do sculo XVI. Na literatura tomista, essa renovao se traduz sobretudo pela produo de tda uma srie de comentrios da Suma que, pelo menos nas - 16 -

escolas dominicanas, tornara-se o livro regular de texto. Os mestres tomistas mais clebres dessa poca so: A. Mestres dominicanos. CAIETANO (1468-1534). Thomas de Vio, cardeal Caietano, homem de uma notvel atividade intelectual que exercia funes de primeiro plano: mestre geral dos Pregadores (1507-1510) ; e legado do papa na Alemanha (1517) . Escreveu perto de 150 obras entre as quais 120 opsculos de teologia. conhecido sobretudo pelo seu comentrio literal da Suma onde, com uma rigorosa preciso e grande clareza, se esfora por seguir com a maior exatido possvel, o pensamento de S. Toms. Seu tomismo, muito ortodoxo no conjunto, guarda uma certa liberdade, com algumas ousadias. A obra de Caietano se apresenta, em uma boa parte, como uma defesa de S. Toms contra a metafsica do sculo XVI, onde so visados notadamente o pr-nominalismo de Durando de Saint-Pourain e a filosofia de Duns Scot. SYLVESTRE DE FERRARA (1476-1538), conhecido sobretudo pelo seu excelente comentrio da Contra Gentiles. Estimulado por FRANCISCO DE VITTORIA (1480-1546), deveria surgir, entre os frades Pregadores de Salamanca, um movimento de pensamento teolgico tomista particularmente brilhante. Como o intersse dessa escola no se estende diretamente filosofia, achamos suficiente apenas alinhar, aqui, os nomes de seus principais mestres: Melchior Cano (1509-1560); Domingos Soto (1494-1560); Pedro de Soto (1518- 1563 ) ; Bartolomeu de Medina (1528-1580); Domingos Banes (1528-1604 ) . Um lugar parte deve ser dado aqui a JOO DE SO TOMS (1589-1644) que, alm de um Cursos theologicus aprecivel, deixou um Cursos philosophicus onde se encontra uma exposio metdica e relativamente completa da filosofia especulativa. Discpulo incontestvelmente fiel e profundo de S. Toms, le no teme desenvolver o pensamento do mestre, mesmo em pontos onde le foi menos explicito. Em filosofia tomista, ser sempre de grande proveito consult-lo, com a condio de no se atribuir uniformemente ao mestre o que foi dito pelo seu comentador. B. Mestres jesutas. Tendo S. Incio determinado aos seus filhos que seguissem, no sem guardar uma certa liberdade, o pensamento do Doutor Anglico, no tardou que nascesse entre os jesutas um importante movimento de filosofia e de teologia tomista. Entre os nomes que ilustram sse movimento, devem ser citados particularmente os de: FRANCISCO TOLET (1532-1596), LUS MOLINA (1536-1600), GABRIEL VASQUEZ (1551-1604), LONARDO LESSIUS (1554-1623). Em filosofia deve ser lembrado sobretudo o nome de FRANCISCO SUAREZ (15481617) . Professor na clebre universidade portugusa de Coimbra, autor de numerosas obras, Suarei escreveu o primeiro grande tratado escolstico de metafsica, independente do texto de Aristteles, suas Disputationes metaphysicae. Esprito conciliante, le se esfora por seguir um caminho mdio, onde, apesar de se inspirar em S. Toms, no teme acolher algumas idias de origem scotista ou nominalista. Seu ecletismo bem informado e claro, teve uma imensa influncia sbre o ensino posterior da escolstica. Apesar de tudo Suarei representa um tomismo, se no alienado, pelo menos fraco e diludo. C. Mestres carmelitas.

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Do ponto de vista da teologia tomista, um lugar notvel caberia aos Carmelitas de Salamanca, os "Salmanticenses", devido ao importante Cursos theologicus que les organizaram. Os 20 volumes dessa obra, escrita entre 1631 e 1701, so 0 fruto da colaborao de quatro ou cinco professres. Esse cursos, um pouco prolixo e difuso, , no conjunto, fiel a S. Toms. Algumas de suas teses, entretanto, so pessoais. 16. O movimento tomista contemporneo. E sabido que, aps um perodo de recolhimento no sculo XVIII 'e no incio do sculo XIX, a vida intelectual foi retomada com intensidade na Igreja. Em um documento que teve grandes repercusses, a encclica Aeterni Patris(1879), o papa Leo XIII aconselhou um retrno a S. Toms. Foge de nossa pretenso apresentar, a no ser sob a forma de um esbo, a histria de um movimento de pensamento que at hoje agita profundamente a Igreja contempornea. Seus resultados doutrinais, que logo vieram se acrescentar aos de pesquisas histricas e crticas cada vez mais ativas, tm sido incontestvelmente muito considerveis. 17. Obras de S. Toms. Alm da edio Piana (1570-1571), que a primeira coleo das Opera omnia, devem-se destacar as duas outras colees completas atualmente em uso: - a edio chamada de Parma (1862-1873 ), em 25 volumes e - a edio Vivs, de Paris, (1871-1880 e 1889-1890) em 34 volumes. A edio crtica definitiva ser a Leonina, da qual smente 16 volumes, contendo as duas Sumas e os comentrios lgicos e fsicos, apareceram at esta data. A Suma teolgica vem acompanhada do comentrio de Caietano. A Contra Gentiles, vem acompanhada do Comentrio de Sylvestre de Ferrara. Edies parciais de grande nmero de obras de S. Toms se acham seja em Lethielleux (Paris), seja em Marietti (Turin). Com relao s tradues francesas, necessrio assinalar pelo menos o conjunto da Suma teolgica da edio da Rvue des Jeunes (60 volumes aproximadamente j lanados ou em fase de acabamento: texto, traduo, notas explicativas.) Com relao a Aristteles, o leitor poder consultar as tradues francesas de TRICOT (Paris, Vrin) que so suficientes (Escritos Lgicos, De anima, Metafisica, alguns escritos fsicos). 18. Exposies gerais da filosofia de S. Toms. Para uma iniciao geral, recomendam-se em primeiro lugar, em francs, as obras dos trs mestres universalmente reconhecidos: A. - D. SERTILLANGES, diversos trabalhos e particularmente Saint Thomas d'Aquin (2 vol., 28 d., Paris, Aubier, 1940). J. MARITAIN, Elments de philosophie: I , Introduction; II, L'ordre des concepts (Paris, Tqui, 1920-1923) e a sntese do conjunto que constitui Les degrs du savoir (Paris, Descle de Brouwer, 1935). E. GILSON, Le Thomisme (Paris, Vrin, 50 d. 1944). - 18 -

Entre os manuais de filosofia tomista em francs basta assinalar: o Trait de Philosophie de R. JOLIVET (I, Logique et Cosmologie; II, Psychologie; III, Mtaphysique; IV, Morale) (Lyon, Vitte, 1939 e seg.) e o Manuel de Philosophie thomiste de H. COLLIN, reeditado por R. TERRIBILINI (I, Logique, Ontologie, Esthtique; II, Psychologie: Paris, Tqui, 1949-1950). A Universidade de Louvain iniciou a publicao de um conjunto de cursos de inspirao tomista. O iniciante teria proveito em consultar sobretudo: l'Introduction la Philosophie, de L. DE RAEYMAEKER (Ire d., Louvain, 1938). 19. Tbuas e repertrios. Existe uma tbua ideolgica da obra de S. Toms, a Tabula aurea de ALBERTO DE BERGAMO (os 2 ltimos vol. da ed. Vivs). Para a bibliografia geral relativa ao tomismo, cf. MANDONNET e DESTREZ, Bibliographie Thomiste, (Paris, 1921). - Desde 1923, o Bulletin thomiste (Le Saulchoir) d uma bibliografia lgica e crtica de tdas as publicaes relativas a S. Toms e sua doutrina. II NOO GERAL DE FILOSOFIA 1.Natureza da Filosofia. Em seu sentido mais geral, a filosofia no seno o que comumente se entende por sabedoria. A denominao mesma de filosofia remontaria a Pitgoras que, por modstia, e considerando que a sabedoria prpriamente s poderia convir a Deus, teria reivindicado somente o ttulo de "philosophos", isto , amigo da sabedoria. A acreditarmos no que est escrito no incio da Metafsica, a busca filosfica teria como origem o desejo inato de saber, desejo que se traduz pela surprsa ou admirao que se sente diante das coisas que ainda no se sabe e que se deseja compreender. Partindo desta constatao, vamos explicitar, com Aristteles, a noo de filosofia, distinguindo-a progressivamente das outras grandes formas do saber, quais sejam o conhecimento comum e experimental, as cincias e a teologia. 2. Filosofia e experincia. Em um grau inteiramente inferior do conhecimento, observa Aristteles (Metaf., A. C. I, 980 a 19), encontramos a sensao, tipo de conhecimento que temos em comum com os animais. Estes j tm uma perfeio mais ou menos grande segundo a sensao se acompanhe ou no de memria. Da memria, com efeito, nasce, por acumulao de lembranas, a experincia. Com o homem, ns nos elevamos mais alto, at ao nvel da arte e do raciocnio. A arte aparece quando, de uma multido de noes experimentais, se desprende um nico julgamento universal aplicvel a todos os casos semelhantes. Com efeito, formar o julgamento de que tal remdio aliviou Cllias, atingido por tal doena, depois Scrates, - 19 -

depois vrios outros individualmente considerados, o fato da experincia. Porm declarar que tal remdio aliviou a todos os indivduos atingidos pela mesma doena, isto j pertence arte. Com a arte ns estamos no plano do conhecimento verdadeiramente racional, que se distingue do grau inferior do saber, nisso que o homem no se contenta mais em constatar simplesmente a existncia dos fatos, mas procura-lhe tambm a razo explicativa ou a causa. A cincia, que se encontra no mesmo nvel, acrescenta arte o carter de conhecimento desinteressado. O sbio busca o saber pelo saber, e sem se preocupar diretamente com sua utilidade ou aceitao. Destas consideraes resulta que a filosofia, que eminentemente cincia, um conhecimento pelas causas: "Philosophia est cognitio per causas". Na mesma ordem de idias procurou-se, hoje, precisar as relaes da filosofia com o senso comum, que tambm uma forma no cientificamente elaborada de conhecimento. Basta reproduzir aqui a concluso do estudo que Maritain consagrou a sse assunto (lements de Philosophie thomiste, 1. Introduction gnrale Ia philosophie, pp. 87-94) : "A filosofia no fundamentada sbre a autoridade do senso comum tomado como consenso geral ou como instinto comum da humanidade, ela deriva todavia do senso comum se se considera nle a inteligncia dos princpios imediatamente evidentes. Ela superior ao senso comum como o estado perfeito ou "cientfico" de um conhecimento verdadeiro superior ao estado imperfeito ou "vulgar" dste mesmo conhecimento. Todavia, a filosofia pode ser, por acidente, julgada pelo senso comum". Exprimindo-se assim, Maritain entende colocar a filosofia tomista, na qual le pensa, entre as afirmaes simplistas da escola escocesa, e algumas pretenses da crtica moderna. A filosofia no tem de buscar outro fundamento seno ela mesma, sendo ela o estado superior e cientfico da possesso dos princpios. Todavia, ela est em acrdo e em continuidade com o conhecimento vulgar dsses mesmos princpios. Disto pode-se concluir, como precedentemente, que a filosofia se distingue das formas comuns do saber pelo seu carter de cincia ou de conhecimento explicativo. 3. Filosofia e cincias. A filosofia uma cincia, mas h outras disciplinas que merecem ste ttulo: a matemtica ou a fsica, por exemplo. Como estas formas de saber se distinguem umas das outras? Para Aristteles, a diferena procede de que a filosofia no explica pelas mesmas causas que as cincias particulares. As causas formam, com efeito, uma ordem, uma hierarquia; existem causas inferiores e causas de grau mais elevado. Uma vez que eu descobri uma causa, posso procurar a causa dessa causa, e assim sucessivamente. . . desta maneira que eu explicaria sucessivamente o eclipse pela interposio da lua, a interposio pelas leis mecnicas do sistema solar, estas leis pela gravitao, a gravitao, talvez, pela estrutura da matria, e a matria por Deus. A filosofia , nessa linha de procura, a explicao pelas causas mais elevadas, pelas causas primeiras, quer dizer, por causas que se bastam a si mesmas e alm das quais nada mais h a procurar. Tal a razo formal pela qual a filosofia se distingue das cincias particulares. Rigorosamente falando, esta definio s convm, de maneira adequada, metafsica. Entretanto, ela pode ser estendida a todos os domnios do

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saber, lgica, cosmologia, psicologia etc., por onde, independentemente do caminho trilhado, se tem acesso tambm ao nvel superior de explicao. Pode-se observar, alis, que as causas mais elevadas so ao mesmo tempo as mais universais: a gravitao, por exemplo, explica mais fatos do que tal lei particular de mecnica celeste e Deus, que est no pice, explica tudo. Portanto, absolutamente nada h que no esteja compreendido no objeto da filosofia, a qual tem, desta forma, o mximo de extenso. Assim que podemos dizer, em concluso, que "a filosofia o conhecimento pelas causas primeiras e universais": "Sapientia est cognitio per primas et universales causas". Encontrar-se- uma exposio desenvolvida desta doutrina no incio da Metafsica (A, C. 1-2; cf. Coment. de S. T., 1, 1. 1-3) . Ela se acha excelentemente condensada neste texto da Suma contra os Gentios (III, e. 25): "H em todo homem um desejo natural de conhecer a causa daquilo que percebe. , portanto, em conseqncia da admirao sentida em face dos objetos, mas cuja causa lhe permanece escondida, que o homem se pe a filosofar. Uma vez descoberta a causa, seu esprito se tranqiliza. Mas a busca no cessa at que se tenha chegado primeira causa, porque s quando esta conhecida que se considera conhecer de uma maneira perfeita." "Naturaliter inest omnibus hominibus desiderium cognoscendi causas eorum quae videntur: unde propter admirationem eorum quae videbantur, quorum causa latebant, homines primo philosophari caeperunt; invenientes causam quiescebant. Nec sistit inquisitio quousque perveniamus ad primam causam, et tunc perfecte nos scire arbitramur quando primam causam cognoscimus". Tendo distinguido filosofia e cincias, resta-nos precisar suas respectivas relaes. Esta questo, por demais complexa, no pode ser convenientemente elucidada em uma simples introduo. Digamos em sntese que, por um lado, a filosofia, a ttulo de sabedoria, tem um certo poder de organizao superior, e mesmo de apreciao dos resultados, ou de julgamento, em face das cincias inferiores; e que, por outro lado, estas cincias guardam no interior de seu domnio prprio sua autonomia, quanto ao mtodo que empregam e sua realizao. Esta soluo, observa Maritain, ainda um meio-trmo entre as afirmaes extremas daqueles que colocam, como Descartes, as cincias particulares em continuidade imediata com a filosofia, e daqueles para quem a filosofia nada teria de comum com as cincias. De fato, a linha de diviso da filosofia e das cincias est longe de permanecer constante. Na antigidade e na Idade Mdia, a filosofia teve tendncia a absorver o conjunto dos conhecimentos cientficos. Tdas as cincias da natureza lhe pertenciam. Smente as matemticas e, em um outro domnio, as artes tcnicas, podiam se prevalecer de uma existncia relativamente independente. No corpo unificado do saber cientfico, a metafsica tem evidentemente um lugar eminente, pois ela constitui a Filosofia primeira, a fsica tendo por sua vez, em Aristteles, o lugar de Filosofia segunda. Depois da Renascena o saber ficou mais fragmentado. Ao lado dos filsofos, aparecem os sbios, no sentido moderno da palavra e, independentemente da filosofia, se multiplicam disciplinas particulares pretendendo estabelecer-se por si mesmas. Depois das matemticas, foram em seguida as cincias da natureza que reivindicaram um estatuto autnomo. Hoje, com a constituio de

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uma psicologia ou de uma sociologia cientfica, a especializao atingiu o prprio domnio das coisas do esprito. 4. Filosofia e Teologia. A filosofia sempre reivindicou as prerrogativas de cincia suprema, de uma sabedoria, sapientia. Porm os cristos conhecem uma outra sabedoria que para les tem mesmo mais valor, a teologia. Haveria, portanto, duas sabedorias? Em princpio, no pode haver e no h seno uma nica Sabedoria, que a de Deus. Mas como h, do ponto de vista da criatura, duas ordens, a ordem natural e a ordem sobrenatural, deve-se reconhecer, do lado do homem, a existncia de duas cincias supremas correspondentes, a sabedoria natural e a sabedoria sobrenatural. O que distingue formalmente estas duas sabedorias sua luz, o lumen: a primeira, a filosofia, est sob o lumen rationis, e a segunda, a teologia, sob o lumen lidei. A filosofia considera as verdades enquanto elas so acessveis razo, e a teologia enquanto reveladas) Disto resulta que, tendo sua luz e, portanto, seus princpios prprios, a filosofia uma cincia autnoma e que, remontando at causa primeira, ela bem merece o ttulo de sabedoria. Entretanto, ela no deixa de ser inferior teologia, porque s indiretamente atinge Deus, a partir das criaturas, e sobretudo porque o lumen rationis menos elevado que o lumen lidei. Provindo de uma mesma fonte, que a Sabedoria divina, e tendo objetos que parcialmente coincidem (algumas verdades so comuns razo e f), filosofia e teologia tm necessriamente relaes recprocas. Trs afirmaes principais podem explicit-las. Existe harmonia entre as duas sabedorias. Devido sua origem comum que a Sabedoria divina, filosofia e teologia no podem se contradizer em face de um mesmo objeto. No h duas verdades, como sustentaram mais ou menos abertamente os averroistas ou, como se diz de maneira corrente, existe acrdo entre a razo e a f. A teologia tem um poder extrnseco de regncia sbre a filosofia. A ttulo de sabedoria suprema, a teologia pode exercer e de fato tem exercido uma dupla influncia sbre a filosofia. Uma influncia positiva antes de tudo, de direo, na medida em que ela prope filosofia problemas ou solues de ordem filosfica, e sbre os quais os filsofos no tinham pensado. Foi assim, por exemplo, que histricamente, o problema da criao e a afirmao correlativa da. dependncia absoluta das criaturas com relao a Deus, entraram no plano da especulao racional. Deve-se, entretanto, especificar que esta influncia de direo, por mais real e eficaz que seja, permanece de alguma forma exterior filosofia, que possui seus princpios e seu mtodo prprio. - Uma influncia negativa de salvaguarda. Sem ter de intervir no prprio processo da reflexo filosfica, a teologia tem, a ttulo de sabedoria suprema, o direito de julgar as concluses desta, e portanto, de as declarar falsas se elas so manifestamente contrrias a seus dados mais certos. ste poder pertence evidentemente teologia, nicamente na medida em que as proposies filosficas tenham qualquer relao com o dado revelado. A filosofia fornece teologia seu instrumento racional. A filosofia, por sua vez, presta servio teologia assegurando-lhe o conjunto dos instrumentos racionais que lhe so necessrios para se constituir em cincia. Como nesta funo ela permanece, entretanto, sempre subordinada cincia do revelado, diz-se-que ela age a ttulo de serva da teologia, ancilla theologiae. ste problema das relaes entre a filosofia e a teologia, que aqui no pudemos seno aflorar, foi objeto de uma reflexo contnua no curso da histria do pensamento cristo, e - 22 -

no podia deixar de ser assim, uma vez que o esprito humano se via solicitado pelos dois lados ao mesmo tempo. At o sculo XIII, o pensamento cristo ocidental foi sobretudo representado por esta grande corrente de especulaes que, remontando ao doutor de Hippone, conhecida sob o nome de agostinismo. Pensava-se ento como telogo, ou como cristo, utilizando-se evidentemente dos recursos do pensamento racional, mas sem se ter a preocupao de desenvolver sistemticamente a ste. A teologia absorvia de certa forma a filosofia, a tal ponto que o limite dos dois saberes permanecia um pouco incerto. - A descoberta, no sculo XIII, da fsica e da metafsica de Aristteles, colocando os cristos pela primeira vez em face de um poderoso sistema racional foi ocasio para uma grande perturbao nos espritos. O problema das relaes entre as duas sabedorias surgiu, ento, e de maneira por demais aguda. S. Toms iria superar essa crise dando, de maneira muito clara filosofia, seu estatuto autnomo de cincia, sem por isso, evidentemente, subtra-Ia regulamentao suprema da sabedoria revelada. - No sem intersse assinalar que, hoje, essa questo tem sido de nvo objeto de vivas discusses na Frana, discusses suscitadas por estudos de Brhier que pretende sustentar, sem razo, que a filosofia medieval no era uma verdadeira filosofia, uma vez que havia: sido elaborada sob o domnio do dogma. (cf. sbre ste debate, La philosophie chrtienne, Juvisy, 1933). Juntando um a um todos os elementos que acabamos de explicitar, distinguindo sucessivamente a filosofia da experincia, das cincias e da teologia, chegamos a uma frmula, desta vez completa: "A filosofia o conhecimento, pelas causas primeiras e mais universais, obtido luz da razo natural" . ... Philosophia est cognitio per primas et universales causas sub lumine naturali rationis. Uma ltima dificuldade se coloca. At aqui temos considerado a filosofia sobretudo sob o seu aspecto de conhecimento desinteressado ou de cincia especulativa. No vemos porm nela, de maneira corrente, tambm uma arte de viver, quer dizer, uma cincia essencialmente prtica? No h nela, por ste fato, uma dualidade de objeto, comprometendo necessriamente a unidade do saber? - Responderemos a esta dificuldade fazendo observar que o princpio ltimo da ordem especulativa , ao mesmo tempo, princpio primeiro da ordem prtica. Nle, tdas as linhas de causalidade e de explicao se encontram. Deus, concretamente, ao mesmo tempo causa do ser e do agir que nle encontram, um e outro, sua razo de ser. No h, portanto, seno uma s sabedoria que , ao mesmo tempo, especulativa e prtica. Precisemos, entretanto, que nas condies de fato do destino do homem, que sobrenatural, a filosofia moral, por si mesma, incapaz de determinar o fim ltimo da vida e de indicar os meios que permitiro eficazmente atingi-lo. 5. Diviso segundo Aristteles e S. Toms. Aristteles e, em seguida, S. Toms nos deixaram uma teoria da organizao do saber que, a despeito de algumas incertezas, slida em suas grandes linhas. A diviso mais geral do saber a que se encontra na Metafsica (E, c. I), exposta tambm em outros lugares: cincias especulativas, prticas e tcnicas (literalmente "poiticas", de poiein, fazer). As cincias especulativas ou teorticas so aquelas que no tm outro fim seno o puro conhecimento. As cincias prticas e as cincias tcnicas so ordenadas - 23 -

ao. As cincias prticas concernem ao humana ou moral (ao imanente, dir-se-, porque tal ao no sai do sujeito) e, as tcnicas, atividade exterior ou fabricao (ao transitiva, quer dizer que sai do sujeito para um objeto). Essas cincias tcnicas so, no sentido mais geral dado aqui a ste trmo, as artes. Assim aparecem, em Aristteles, as divises supremas do saber. Como se v, o ponto de vista da finalidade do saber que as diferencia. S. Toms adotou essa diviso geral unificando, s vzes, os dois ltimos grupos, uma vez que, um e outro tendo uma finalidade prtica, tm uma afinidade particular. Porm no primeiro livro de seu comentrio sbre as ticas, em um texto notvel, le distingue uma quarta ordem de conhecimentos filosficos, a rationalis philosophia (lgica). Aristteles no a havia mencionado em sua classificao, sem dvida porque a considerava mais como o instrumento geral, organon, da filosofia, do que como uma uma de suas partes. De qualquer forma, eis o que diz S. Toms: " prprio do sbio pr ordem nas coisas. A razo disso que a sabedoria a perfeio suprema da razo e o prprio da razo conhecer a ordem... Ora, uma ordem pode relacionar-se com a razo de quatro maneiras diferentes. H uma ordem que a razo no estabelece, mas apenas conhece e considera: a ordem das coisas da natureza. H uma outra que a prpria razo, ao mesmo tempo que a conhece, a estabelece (considerando facit), dentro de sua prpria atividade: quando, por exemplo, ela ordena seus conceitos uns com relao aos outros, bem como os smbolos dsses conceitos, que so palavras dotadas de significao. A terceira ordem aquela em que a razo, ao mesmo tempo que a conhece, a estabelece, desta vez nas operaes da vontade. A quarta ordem, enfim, a que a razo, ao mesmo tempo que conhece, estabelece, nas coisas exteriores de que ela prpria causa: um armrio, uma casa, por exemplo. Ora, como a atividade da razo s se torna perfeita por um hbito, conclui-se que as diversas cincias se dividem exatamente segundo essas diferentes ordens que a razo considera como algo que lhe prprio. Com efeito, cabe filosofia da natureza tomar como objeto a ordem que a razo humana considera mas no estabelece. A ordem que a razo humana conhece e estabelece em seu prprio ato, constitui a filosofia racional (lgica)... A ordem das aes voluntrias pertence s especulaes da filosofia moral... A ordem, finalmente, que a razo estabelece quando conhece, nas coisas que lhes so exteriores, constitui as artes mecnicas". Deixando de lado o caso da lgica, que pode ser encarado seja como instrumento de tda a filosofia (Aristteles, habitualmente), seja como uma cincia especial (S. Toms no texto precedente), ste quadro corresponde bem diviso tripartida clssica do aristotelismo, e ns poderemos, em definitivo, adotar a classificao seguinte: Rationalis philosophia vel Logica (Cincia ou Organon) Philosophia speculativa Philosophia practica (Activa: Moralis philosophia; Factiva: Artes)

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No menos importante a subdiviso, feita por Aristteles, das cincias teorticas ou especulativas em trs partes, segundo o que se chama os trs graus de abstrao. Essa diviso no tem por princpio a distino exterior ou material dos objetos, mas uma distino de estrutura inteligvel ou notica: o grau de imaterialidade. Quanto mais um objeto de cincia imaterial, quer dizer, elevado acima das condies da matria, mais le inteligvel em si, mais o conhecimento que se tem dle de um grau elevado. Na filosofia de S. Toms, o fundamento profundo e a razo prpria da inteligibilidade como, alis, da capacidade intelectual, a imaterialidade. Os homens, assim, so mais elevados do que os animais na escala dos sres dotados de conhecimento. E os anjos, por sua vez, o so mais do que os homens. Isto psto, vejamos como se definem os trs graus de abstrao e, por ste mesmo fato, as trs grandes partes da filosofia terica que lhes correspondem. O primeiro esfro da inteligncia abstrativa consiste em considerar as coisas sensveis independentemente de seus caracteres individuais: o homem, por exemplo, sem o que prprio a cada homem em particular. Neste caso, eu abstraio de "tal matria" ou da "matria individual", a matria signata vel individuali, conservando os caracteres sensveis comuns, materia sensibilis. A ste primeiro grau de abstrao corresponde a filosofia da natureza ou cosmologia, a fsica de Aristteles. O segundo esfro da inteligncia abstrativa consiste em considerar as coisas independentemente de suas qualidades sensveis e de seus movimentos, para reter to smente as determinaes de ordem quantitativa, figura geomtrica, relaes numricas, etc . . . Mantm-se, entretanto, ainda neste nvel, o que na matria se relaciona com a ordem quantitativa: a matria inteligvel, materia intelligibilis. A ste segundo grau de abstrao correspondem as cincias matemticas. Finalmente, a inteligncia abstrativa considera as coisas independentemente de tda matria, no retendo seno as suas determinaes absolutamente imateriais: abstrao separativa da matria inteligvel e do movimento: a materia intelligibili et motu. Ao terceiro grau de abstrao corresponde a metafsica (filosofia primeira ou teologia conforme as designaes de Aristteles). E S. Toms conclui (Metafsica, VI, 1. 1, n.o 1166): "H, portanto, trs partes na filosofia teortica: a matemtica, a fsica e a teologia, que a filosofia primeira". "... tres ergo sunt partes philosophiae theoricae, scilicet mathematica, physica et theologia quae est philosophia prima." 6. As classificaes modernas e a Escolstica. Na filosofia moderna, a questo da classificao das cincias se complicou e se desenvolveu considervelmente. Est inteiramente fora de nossas pretenses nos determos na histria desta renovao. Entretanto, no podemos aqui nos desinteressar totalmente de algumas concepes que, provindo de sistemas mais recentes, acabaram por agir de modo bastante profundo sbre a doutrina tradicional que expusemos, resultando numa verdadeira transformao desta. Na origem da evoluo a respeito da qual vamos falar, deve ser lembrada a influncia principal da classificao do filsofo alemo Wolff (sculo XVIII). Wolff, em seus famosos manuais, distinguia inicialmente trs grandes gneros de conhecimento: o conhecimento histrico (experimental), o conhecimento filosfico e o conhecimento matemtico. As matemticas se viam assim excludas da filosofia. Depois, considerando que nossa alma - 25 -

tem duas faculdades principais, a inteligncia e a vontade, e que elas podem igualmente falhar, le designa duas outras partes da filosofia para dirigi-Ia: a lgica, para a razo, e a filosofia prtica para a vontade. Finalmente, observando que existem noes gerais comuns a tda a filosofia, le coloca ainda parte uma seco especial, a ontologia. As principais partes da filosofia so portanto, na ordem em que convm estud-las: a lgica, a ontologia, a fsica, a cosmologia, a teologia natural, a filosofia prtica. Haveria muito a dizer a respeito desta classificao e sbre os princpios que a inspiraram. Basta aqui observar que ela introduz duas importantes inovaes: a diviso da fsica em uma cosmologia e em uma psicologia nitidamente separadas, e a da metafsica em ontologia e em teodicia. Da por diante, numerosos manuais, mesmo em filosofia aristotlica, adotaro essas subdivises e sses ttulos. Na poca contempornea, novos domnios do saber filosfico tiveram a tendncia de se constituir de maneira independente; pensamos especialmente na sociologia, que muito se desenvolveu e, na teoria crtica do conhecimento. Ainda aqui, a escolstica julgou dever-se mostrar receptiva. Que devemos pensar, em tomismo autntico, dessa evoluo da classificao recebida dos antigos? Certamente, nada impede que se faam subdivises e mesmo que se multipliquem nos grandes planos do saber; porm, algumas destas subdivises podem ser feitas de uma maneira inoportuna, correndo o risco de comprometer a solidez do edifcio. No h dvida, por exemplo, de que a constituio universalmente recebida agora, de uma psicologia separada da filosofia da natureza, se ela se justifica, tem o inconveniente de encobrir a continuidade no menos real destas duas disciplinas. De conseqncia mais deplorvel ainda, apresenta-se o desmembramento da metafsica, a nica sabedoria dos antigos, em ontologia, teodicia e, algumas vzes, em crtica. Neste ponto pelo menos, o uso, que tem sua origem em Wolff, deve ser abandonado. Uma nica cincia suprema, a metafsica, tem valor crtico, e terminando em Deus como em seu trmo natural. Levandose em conta essas observaes, pode-se organizar da maneira seguinte uma exposio moderna da filosofia de S. Toms: I. Lgica (cincia propedutica) II. Filosofia da natureza - psicologia (em continuidade) III. Metafsica (incluindo Teodicia e Crtica) IV. Moral e Sociologia III INTRODUO LGICA 1.Definio da Lgica. da natureza do homem dirigir-se pela razo. Porm, esta faculdade no exerce seu poder de direo apenas sbre atividades que lhe sejam exteriores e dependam de outras potncias, tais como a vontade ou a sensibilidade. Ela dirige igualmente os seus prprios atos e, nesta ao de dirigir como nas outras, ela ajudada por uma tcnica especial: a arte racional ou Lgica, que a torna apta a realizar sua tarefa com xito. De uma maneira geral, pode-se definir esta arte com S. Toms: "a arte que dirige o prprio ato da razo, quer dizer, que nos faz proceder, neste ato, com ordem, com facilidade e, sem rros". "ars... directiva ipsius actus rationis; per quam scilicet homo in ipso actu rationis ordinate et faciliter et sine errore procedat". - 26 -

Poster. Analt. I, L 1, n 1 Porm a atividade racional, objeto da lgica, interessa a outras partes da filosofia. Se, por exemplo, eu vier a concluir que a alma imortal porque, no sendo composta ela incorruptvel, eu toquei em uma questo metafsica, a da imortalidade da alma, coloquei um fato de conscincia do qual a psicologia poder reivindicar a anlise, e, ao mesmo tempo, utilizei as leis lgicas do raciocnio. Estes trs pontos de vista formalmente distintos se encontram em tda e qualquer atividade do esprito. , portanto, indispensvel definir a Lgica com mais preciso a fim de distingu-la da metafsica e sobretudo da psicologia, com as quais fcilmente se levado a confundi-la. 2. Objeto formal da Lgica. A definio aquilo que nos manifesta a essncia ou a natureza de uma coisa, o que ela : quid est. Nos sres da natureza, a definio designa principalmente a forma, que o princpio de determinao. A definio das potncias e das disposies que se relacionam com seu exerccio (tecnicamente, os "habitus") se depreende a partir do objeto, que representa, na circunstncia, um papel anlogo ao da forma para as substncias materiais. Diz-se que as potncias e suas disposies operativas so especificadas por seus objetos, como os sres da natureza o so por sua forma: potentiae vel habitus specificantur ab objecto. A vista assim especificada pela cr, a inteligncia pelo ser, o habitus matemtico pelo ser quantificado. Isto se deve ao fato de que, potncias e habitus no so, em sua prpria essncia seno tendncias, e uma tendncia no tem significao a no ser pelo fim ou pelo objeto para o qual orientada. Em filosofia escolstica, distingue-se o objeto material e o objeto formal. O objeto material constituido pela realidade total que se encontra em face da potncia ou do habitus: as coisas visveis, por exemplo, para a vista. O objeto formal o ponto de vista preciso que visado pela potncia ou pelo habitus: o colorido no exemplo precedente. S o objeto formal pode servir de princpio de especificao, uma vez que, uma mesma realidade material pode ser considerada sob vrios pontos de vista diferentes: o nariz achatado por exemplo, sob seu aspecto fsico ou segundo sua curva geomtrica. Se a lgica pois, uma disposio dessa potncia operativa que a inteligncia, e portanto um habitus, definir-se-, como as realidades de sua ordem, ou seja, por seu objeto. E, conseqentemente, por sse objeto que ela se distinguir das outras disciplinas. O objeto formal da lgica o ser de razo lgico ou as segundas intenes. Vamos explicar, logo de incio, o que se deve entender por ser de razo. S. Toms (Metaf., IV, 1. 4, n. 547) distingue duas modalidades essenciais do ser da natureza, ou o ser real, e o ser de razo. O ser real aqule que existe ou pode existir independentemente de qualquer considerao do esprito. O mundo que me rodeia, com tdas as suas possibilidades efetivas de transformao, pertence realidade do ser que, pense-se ou no se pense nela, existe. O ser de razo aqule que, apesar de estar representado maneira de um ser real, no pode existir independentemente do pensamento que o concebe. Por exemplo, as privaes, as negaes e um certo nmero de relaes. O nmero negativo, o gnero animal no existem, como tais, seno na inteligncia que os representa. Os escolsticos distinguem ainda o ser de razo fundamentado na realidade, cum fundamento in re, do ser de razo no fundamentado na realidade, sine fundamento in re. O primeiro, - 27 -

embora no exista verdadeiramente seno no esprito, tem um fundamento objetivo; o segundo seria pura construo subjetiva. O ser de razo se divide em negaes e relaes. Essa diviso essencial e necessria, pois o ser de razo s pode ser ou alguma coisa que, por natureza, se oponha realidade, ou ento esta categoria mais exterior e, portanto, mais independente da substncia que a relao. O ser de razo lgico pertence a esta ltima categoria da relao de razo. Ele designa o objeto de nosso pensamento considerado no entrelaamento de relaes que le recebe no esprito, pelo fato de ser le concebido pelo prprio esprito. Se, por exemplo, eu formo os conceitos de "homem" ou de "animal", stes conceitos, considerados em sua universalidade, no existem como tais na realidade. Da mesma forma, se eu pronuncio ste julgamento: "o homem um animal", o trmo "homem" em sua funo de sujeito, e o trmo "animal" considerado com predicado, no tm evidentemente realidade seno no esprito que julga. Observe-se todavia, que les no so sem fundamento na realidade uma vez que correspondem a uma ordem real das naturezas e dos indivduos. Percebe-se melhor, agora, como o ponto de vista prprio da lgica se distingue do da metafsica e do da psicologia. Como o metafsico, ou o fsico, o lgico est voltado para o objeto do conhecimento, porm no o estuda em sua natureza ou em suas propriedades: le o considera smente segundo a ordem das relaes que se situam na vida racional. Como o psiclogo, o lgico observa a atividade do esprito, mas enquanto aqule se detm no aspecto subjetivo do pensamento ou em sua qualidade fsica, ste no retm seno a ordem Qbjetiva engendrada por seu prprio funcionamento: ordo quem ratio considerando facit in proprio actu, diz S. Toms. Poder-se- dizer, na terminologia escolstica, que a psicologia considera de incio o conceito formal, quer dizer a idia enquanto atividade do esprito, a metafsica ou a fsica o conceito objetivo em seu contedo de realidade positiva, enquanto que a lgica considera igualmente o conceito objetivo, porm enquanto le organizado pelo pensamento. Assim, no exemplo proposto acima, da demonstrao da imortalidade da alma, o metafsico se interessar pela relao de natureza que se associa incorruptibilidade e, portanto, imortalidade da alma; o psiclogo pelos atos da inteligncia; o lgico pelas condies formais do concatenamento dos trs conceitos de alma, considerada como sujeito, de imortalidade, considerada como predicado, e de incorruptibilidade, em sua funo de trmo mdio. Para concluir, diremos, firmados nas explicaes precedentes, que a metafsica considera o objeto pensado, a psicologia o pensamento do objeto, e a lgica o objeto do pensamento. O objeto da lgica tambm freqentemente caracterizado pela expresso de segundas intenes. Que devemos entender por isto? As primeiras intenes designam 'nossos conceitos considerados em sua relao imediata com a realidade, ou em sua aptido para represent-la; correspondem ao olhar direto do esprito sobre as coisas. Por segundas intenes, deve-se entender stes mesmos conceitos nas relaes objetivas que eles recebem pelo fato de serem pensados. O conceito de "homem", por exemplo, considerado como primeira inteno, exprime a realidade mesma da natureza humana; a ttulo de segunda inteno, ele designa esta natureza humana no estatuto de idia universal de que ela se revestiu no esprito. A filosofia da realidade se detm nas primeiras intenes, enquanto que a lgica vai s segundas intenes que no so outra coisa seno o ser de razo lgica. 3. A Lgica como cincia e arte. - 28 -

J tradio fazer a seguinte pergunta: a lgica uma cincia ou uma arte? Para Aristteles, a cincia o conhecimento desinteressado pelas causas, cognitio per causas; e a arte, o conhecimento enquanto regula a atividade exterior, recta rabo factibilium. No se pode certamente recusar lgica o ttulo de cincia, uma vez que ela pretende explicar pelas causas, e mesmo pelas causas as mais elevadas; o silogismo, por exemplo, pode ser justificado por reduo aos primeiros princpios da vida do esprito. A lgica nos leva, portanto, a um conhecimento cientfico das atividades racionais. Entretanto, a lgica tambm, e mesmo de preferncia, uma arte, porque ela preceptiva e pretende regular a atividade do esprito. S. Toms, que reconhecia lgica as prerrogativas e o ttulo de cincia, rationalis scientia, a v de preferncia em sua funo de arte, considerando-a mesmo a arte por excelncia, dirigindo as outras artes: ais artium. A denominao de Organon ou de instrumento, que prevaleceu para designar o corpo dos escritos lgicos de Aristteles, est dentro do sentido desta interpretao. A lgica aparece portanto, em definitivo, em peripatetismo, mais como uma introduo filosofia, como uma propedutica do que como uma de suas partes integrantes. Tudo o que acabamos de dizer se deduz claramente dste texto do Comentrio de S. Toms sbre os Segundos Analticos (I, 1. I, ns 1-2) do qual j citamos um fragmento: "... necessrio que exista uma certa arte que dirija o prprio ato da razo, graas qual o homem possa proceder neste ato com ordem, facilidade e sem rro. Trata-se da arte lgica ou cincia racional. A qual racional no smente no sentido em que ela conforme razo, o que comum a tdas as artes, mas tambm pelo fato de que ela se relaciona ao prprio ato da razo como sua matria prpria. Eis porque, nos dirigindo no ato da razo, de onde as artes procedem, ela parece ser a arte das artes." " ... ars quaedam necessaria est, quae sit directiva ipsius actus rationis; per quam scilicet homo in ipso actu rationis ordinate et faciliter et sine errore procedat. Et haec est ars logica, id est rationalis scientia. Quae non solum rationalis est ex hoc quod est secundum rationem, quod est omnibus artibus commune; sed etiam ex hoc quod est circa ipsum actum rationis sicut circa propriam materiam. Et ideo videtur esse ars artium; quia in actu rationis nos dirigit, a quo ommes artes procedunt." 4. As trs operaes do esprito. A lgica, como se viu, a cincia e a arte da atividade racional do esprito. O ato prprio dessa atividade o raciocnio, quer dizer, o "discurso" organizado pelo qual se avana no conhecimento da verdade. Porm, h outros atos ou outras operaes que entram como elementos na estrutura do raciocnio. A primeira tarefa que se impe a de distinguir e de definir essas diversas atividades, o que nos assegurar um primeiro princpio de diviso de nossa cincia. Uma anlise elementar permite distinguir trs operaes do esprito. A simples apreenso, ato simples do esprito, dirigida para um objeto simples ou concebido como tal. a atividade elementar da vida do pensamento, aquela pela qual se apreendem noes simples tais como: "homem", "quadrpede", "branco". O julgamento, ato igualmente indiviso, mas aplicado sbre um objeto complexo: nomeverbo, ou sujeito-cpula-predicado. Ex.: "a chuva cai", "ste muro branco". No h julgamento sem que haja pelo menos dois trmos presentes, mas o julgamento nem por isto deixa de ser uma atividade simples, uma vez que le a afirmao ou a negao da prpria - 29 -

unidade dsses dois trmos. S. Toms designa habitualmente essa operao pelas significativas expresses de "compositio" e de "divisio", segundo o julgamento seja afirmativo ou negativo. O raciocnio, principal objeto da lgica, um ato complexo, aplicado sbre uma matria complexa. essencialmente, uma marcha, um progresso do esprito, a partir de verdades reconhecidas, para a aquisio de novas verdades. Vejamos, por exemplo, ste raciocnio disposto em silogismo: Todo ser que se dirige pela razo livre. Ora, o homem se dirige pela razo. Logo o homem livre. visvel que de duas verdades reconhecidas nas duas primeiras proposies eu passo aquisio de uma terceira verdade, que se acha expressa na concluso. Tais so as trs operaes do esprito. fcil reconhecer que o raciocnio, terceira operao do esprito, constitudo essencialmente de julgamentos, segunda operao do esprito, e que stes, por sua vez, tm como elementos simples apreenses, a primeira operao do esprito. Alguns lgicos modernos, impressionados pelo lugar excepcionalmente importante que o julgamento tem na vida do esprito, pretenderam fazer dle a atividade elementar e primeira do pensamento. Segundo essa concepo, a primeira operao do esprito desaparece, ou pelo menos aparece smente como uma diviso abstrata do julgamento, que fica smente le, como um ato real e completo. - Temos de reconhecer, com sses lgicos que o julgamento constitui, sob um certo ponto de vista, a atividade mais perfeita do esprito. O prprio raciocnio tem como trmo um julgamento-concluso. Porm no menos verdade que, anteriormente ao julgamento, a simples apreenso permanece a atividade elementar do pensamento, e uma atividade psicolgicamente discernvel. O julgamento, com efeito, essencialmente uma sntese de dois trmos preexistentes. Como que essa sntese poderia ter uma realidade se os trmos que ela pressupe no foram apreendidos anteriormente? Se se levam em conta as distines que acabamos de estabelecer, poder-se- dividir a lgica em trs partes, correspondendo cada uma delas a uma das trs operaes do esprito, e das quais as duas primeiras sero como uma introduo terceira: Lgica da simples apreenso Lgica do julgamento Lgica do raciocnio Essa diviso corresponde prpria ordem do Organon de Aristteles que trata: nas Categorias, da simples apreenso; no Perihermeneias, do julgamento; e nos Analticos e livros seguintes, do raciocnio (cf. S. Toms, II Analticos, I, 1. 3, ns 4-6, e Perihermeneias, I, 1. 1, n.os 1-2). Eis aqui ste ltimo texto, que traz um bom resumo do que acabamos de dizer: " ... existe uma dupla operao da inteligncia: por uma, denominada "inteleco dos indivisveis" (indivisibilium inteligentia), essa faculdade percebe a essncia de cada coisa, nela mesma. A outra operao a da inteligncia que compe e que divide.

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Deve-se acrescentar uma terceira operao, a do raciocnio, pela qual a razo, partindo do que conhecido, vai procura do que desconhecido. Dessas operaes, a primeira orde