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A ANIMAÇÃO CULTURAL, OS ESTUDOS DO LAZER E OS ESTUDOS CULTURAIS: DIÁLOGOS Prof. Dr. Victor Andrade de Melo Universidade Federal do Rio de Janeiro 1 “Incorporo a revolta Dança do intelecto e Dilaceração dionisíaca Obsessiva idéia de fundar uma nova ordem Frente às categorias exauridas da arte E a indignação da rebeldia ética A quase catatonia do quase cinema E o súbito epifânico do Éden Samba, o dono do corpo Expressão musical das etnias negras ou mestiças No quadro da vida urbana brasileira” Waly Salomão “Experimentar o experimental Experimentar o experimental A fala da favela O nódulo decisivo nunca deixou de ser o ânimo de plasmar uma linguagem convite para uma viagem” Waly Salomão “Eu gostaria de propor que a pedagogia, como prática crítica e performática, seja considerada um princípio definidor para todos os trabalhadores culturais – jornalistas, artistas performáticos, advogados, acadêmicos, representantes da mídia, assistentes sociais, professores e outros – que trabalham com a cultura, com a composição (musical, literária etc.), com os estudos literários, com a arquitetura e em campos populares afins” Henry Giroux Introdução: primeiras aproximações Como qualquer ocorrência histórica, o conceito de cultura não pode ser encarado de forma homogênea e uniforme, como algo dado a priori ou que possua uma suposta essencialidade. Suas definições, arranjos, ocorrências modificam-se no decorrer do tempo em função das relações de poder e dos interesses envolvidos nos embates e tensões entabuladas pelos atores sociais que por motivos diversos transitam no campo gerador e gerado ao redor do conceito. 1 . Coordenador do Grupo de Pesquisa “Anima”: Lazer, Animação Cultural e Estudos Culturais; Pesquisador Associado do Programa Avançado de Cultura Contemporânea/UFRJ. 1

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Page 1: 13294073 Animacao Cultural Estudos Culturais

A ANIMAÇÃO CULTURAL, OS ESTUDOS DO LAZER E OS ESTUDOS CULTURAIS: DIÁLOGOS

Prof. Dr. Victor Andrade de Melo Universidade Federal do Rio de Janeiro1

“Incorporo a revolta Dança do intelecto e

Dilaceração dionisíaca Obsessiva idéia de fundar uma nova ordem

Frente às categorias exauridas da arte E a indignação da rebeldia ética

A quase catatonia do quase cinema E o súbito epifânico do Éden

Samba, o dono do corpo Expressão musical das etnias negras ou mestiças

No quadro da vida urbana brasileira”

Waly Salomão

“Experimentar o experimental Experimentar o experimental

A fala da favela O nódulo decisivo nunca deixou de ser o ânimo

de plasmar uma linguagem convite para uma viagem”

Waly Salomão

“Eu gostaria de propor que a pedagogia, como prática crítica e performática, seja considerada um princípio definidor para todos os trabalhadores culturais – jornalistas, artistas performáticos, advogados, acadêmicos, representantes da mídia, assistentes sociais, professores e outros – que trabalham com a cultura, com a composição (musical, literária etc.), com os estudos literários, com a arquitetura e em campos populares afins”

Henry Giroux

Introdução: primeiras aproximações

Como qualquer ocorrência histórica, o conceito de cultura não pode ser encarado

de forma homogênea e uniforme, como algo dado a priori ou que possua uma suposta

essencialidade. Suas definições, arranjos, ocorrências modificam-se no decorrer do

tempo em função das relações de poder e dos interesses envolvidos nos embates e

tensões entabuladas pelos atores sociais que por motivos diversos transitam no campo

gerador e gerado ao redor do conceito.

1 . Coordenador do Grupo de Pesquisa “Anima”: Lazer, Animação Cultural e Estudos Culturais; Pesquisador Associado do Programa Avançado de Cultura Contemporânea/UFRJ.

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Uma primeira acepção de cultura, corrente no século XVI, a relacionava ao

cuidado de lavouras e animais. Vale lembrar que a palavra cultura é derivada do latim

“colere”, que pode ser traduzido para colono, colônia. Logo, metaforicamente o

conceito passou a ser utilizado para definir o cultivo de faculdades mentais. É

importante também destacar que desde o final do século XV, paulatinamente e ainda

embrionariamente, se organizava um mercado relacionado às “belas artes”, que

futuramente se aproximaria, quase se misturando, das dimensões relacionadas à cultura,

algo fundamental para que possamos refletir sobre sua configuração contemporânea.

No século XVIII, no âmbito dos debates sobre os conceitos de cultura e

civilização, a vemos majoritariamente compreendida como um processo de progresso

intelectual e espiritual, algo que deve ser pensado tanto no que se refere aos indivíduos

quanto à sociedade. Assim sendo, uma cultura não seria só aquilo o que ela é (caráter

descritivo), como também aquilo que se espera que ela seja (caráter normativo).

Nessa compreensão está a base de um entendimento de cultura impregnado pelas

conotações imperialistas típicas da virada dos séculos XVIII e XIX. Além disso, o

próprio contexto da modernidade a traz cada vez mais para o centro das atenções, já que

o grande desafio passa a ser manipular e reformular códigos que pudessem legitimar o

poder de um relativamente novo grupo de poder: a burguesia. A cultura passa a ser

compreendida como um treinamento das faculdades para dar conta do rápido processo

de transformação2.

Na transição do século XIX para o XX, a cultura ganha ainda mais destaque,

conseqüência do crescimento das cidades, que se tornam arenas de grande circulação

financeira, onde se identifica uma valorização do luxo, das formas de consumo e dos

hábitos de lazer. O desenvolvimento de tecnologias, que tinham incrementado a

produção, também influencia na criação e aperfeiçoamento de novas formas de

diversão, onde podemos destacar o cinema como elemento-chave de compreensão, por

sua relação com a eletricidade, a velocidade, a fugacidade, a imagem. Estamos nos

referindo ao nascimento de uma “sociedade do espetáculo” e aos primeiros passos de

estruturação de uma cultura de massas3. Cada vez mais a cultura se tornará um palco de

disputas e uma necessidade estratégica de controle.

2 . Procurei discutir tais questões a partir do diálogo com a obra de E.P.Thompson em artigo publicado no ano de 2001. 3 . Maiores informações podem ser obtidas no estudo de Leo Charney e Vanessa Schwartz (2001).

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Não surpreende, então, que, nas primeiras décadas do século XX, fossem

comuns as compreensões de que a cultura, já bastante relacionada à arte e ao mercado

constituído a seu redor, deveria ser entendida como um elemento de distinção social,

algo somente acessível em sua plenitude a uma minoria, ligada às elites econômicas,

que deveria selecionar e dar “alguma cultura” a uma maioria, para que esta aprendesse a

se comportar. Constrói-se fortemente um discurso de que estaria afastada da política,

como uma forma “isenta” de preservação de determinados sentidos sociais

absolutamente ideais e interessantes aos projetos dos detentores dos principais

mecanismos de poder.

Quando chega a segunda metade do século XX, influência denotada do

pensamento da antropologia, e expressando as mudanças teóricas no interior dessa área

de conhecimento, a cultura passa a ser compreendida de forma ampliada como um

modo de viver, ou melhor, como um conjunto de normas, hábitos, valores,

sensibilidades que concedem sentido e significado à vida em sociedade. Também nesse

momento do capitalismo tardio percebe-se uma estruturação mais clara de algo que

vinha se delineando no decorrer da história: a força e influência dos meios de

comunicação na difusão cultural.

É importante perceber que: A mecanização, a estandardização, a superespecialização e a divisão do trabalho, que antes determinavam apenas a esfera da produção de mercadorias nas fábricas, penetram agora em todos os setores da existência – da agricultura à recreação e, é claro, à produção cultural (...) Nunca se produziu tanta cultura e nem tantos meios de comunicação diferentes como a partir dos anos 1960, e nem nunca ela foi tão claramente um produto feito e consumido para azeitar o funcionamento do sistema vingente (Cevasco, 2003, p.69).

Se a produção cultural sempre esteve ligada aos interesses das camadas

dominantes, no capitalismo tardio se torna ainda mais estratégica, um fórum de luta dos

mais importantes: “As artes e as práticas culturais em geral não apenas refletem essa

situação determinante: elas também produzem significados e valores que entram

ativamente na vida social, moldando seus rumos” (Cevasco, 2003, p.112).

Na sociedade contemporânea o grande poder da cultura, como disciplinadora e

reguladora, embora também sejam observadas iniciativas de resistência e subversão, nos

faz entender que a vida cotidiana não é mais balizada tão diretamente pelas antigas

demonstrações de força dos meios de produção, algo típico nas origens da sociedade

capitalista.

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Este poder compõe um quadro de forte influência, mediada pela sua capacidade

de penetração nos lares e experiências sociais de todos nós, algo ainda mais eficaz que o

processo anterior, embora em certo sentido menos palpável e mais sutil (ainda que

quando descortinado, nada tenha de sutil). A política da cultura deixa de ser secundária,

a olhos vistos ocupando papel central nas tensões que permeiam a manutenção da

ordem social. Assim: Não mais relegada simplesmente às alturas olímpicas da cultura superior, ou sumariamente rejeitada simplesmente como um reflexo da base econômica, a cultura finalmente adquiriu seu espaço de direito, institucional e produtivamente, como um objeto crucial de debate, uma estrutura poderosa para a criação de significados que não possam ser abstraídos do poder e um local de intensas disputas sobre como as identidade devem ser moldadas, a democracia definida e a justiça social ressuscitada como um elemento sério da política cultural” (Giroux, 2003, p.17).

Guy Debord (1997) nos aponta alguns elementos para compreender esta

presença constante da cultura na sociedade contemporânea, o que inclusive trás à tona

as estratégias comerciais no âmbito do lazer/entretenimento. Segundo o autor: “na fase

primitiva da acumulação capitalista, ‘a economia política só vê no proletário o

operário’, que deve receber o mínimo indispensável para conservar sua força de

trabalho; jamais o considera ‘em seus lazeres, em sua humanidade’” (p.31). Já

contemporaneamente: “...o humanismo da mercadoria se encarrega dos ‘lazeres e da

humanidade’, simplesmente porque agora a economia política pode e deve dominar

essas esferas como economia política” (p.31).

Podemos ver que isto tem relação direta com nossos esforços de estudiosos do

Lazer e da Animação Cultural. Trata-se de compreender que nossa atuação se dará em

uma sociedade na qual um conjunto de imagens invade nosso cotidiano, que penetram

por nossos lares e nos alcançam nas ruas, de forma ora mais ora menos acintosa. O

campo do sensível explode e torna-se uma marca da contemporaneidade. No mesmo

processo, percebe-se um certo ar confuso de “ludicidade” superficial e constante,

articulando perigosamente presentismo e hedonismo: Com efeito, quer o espírito de prazer seja comercializado, quer seja recuperado pelos múltiplos embustes que conhecemos, tudo isso certamente pode remeter a uma função de compensação que reforça a sociedade estabelecida e sua alienação, e pode também ser a expressão de um desejo irreprimível de viver que atormenta o corpo social, e que nunca consegue silenciar (Maffesoli, 2004, p.72).

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Tendo em vista esse percurso histórico, temos então que considerar três

enfoques principais para a definição de “cultura”: a) o que designa manifestações,

trabalhos e práticas; b) o que designa um processo de desenvolvimento; c) o que

expressa uma forma de vida (Willians, 1969). Por certo, as três dimensões estão

articuladas e devem ser consideradas em nossas estratégias de intervenção.

Como, enquanto profissionais ligados à Animação Cultural, que têm a

responsabilidade de promover intervenções pedagógicas no âmbito do lazer/cultura,

devemos compreender o nosso papel a partir dos arranjos contemporâneos do conceito

de cultura?

Neste artigo pretendo apresentar algumas compreensões sobre as peculiaridades

e os desafios da Animação Cultural e dos Estudos do Lazer na sociedade

contemporânea estabelecendo um diálogo com alguns teóricos relacionados aos Estudos

Culturais. Procuro também interlocuções com outros autores que, mesmo não

diretamente vinculados a esta perspectiva de estudo, desenvolvem reflexões

aproximadas.

Mais do que uma definição única e absolutamente precisa de Animação Cultural,

creio que seja necessário perseguirmos um “espírito”, uma inspiração que possa

conduzir nossas ações cotidianas de intervenção. Tenho trabalhado com a possibilidade

de pensarmos em um “espírito surrealista” para a Animação Cultural, não no sentido de

reproduzir completamente o ideário do surrealismo (por exemplo, pretendo me afastar

muito da idéia de ”vanguarda”), nem tampouco o considerando restritamente como uma

escola literária ou de artes plásticas, mas como: um movimento de revolta do espírito e uma tentativa eminentemente subversiva de re-encantamento do mundo. Isto é, de reestabelecer, no coração da vida humana, os momentos “encantados” apagados pela civilização burguesa: a poesia, a paixão, o amor-louco, a imaginação, a magia, o mito, o maravilhoso, o sonho, a revolta, a utopia. Ou, se assim o quisermos, um protesto contra a racionalidade limitada, o espírito mercantilista, a lógica mesquinha, o realismo rasteira de nossa sociedade capitalista-industrial, e a aspiração utópica e revolucionária de “mudar a vida”.É uma aventura ao mesmo tempo intelectual e passional, política e mágica, poética e onírica... (Lowy, 2002, p.9).

Michael Lowy (2002) argumenta que mais do que obras artísticas, o surrealismo

é um espírito de insubmissão e de revolta que: “retira sua força positiva erótica e poética

das profundezas cristalinas do inconsciente, dos abismos insones do desejo, dos poços

mágicos do princípio do prazer, das músicas incandescentes da imaginação” (p.10).

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Desejamos, ao nos ligarmos a tal ideário, entender que quando falamos de revolução

não estamos nos referindo simplesmente a uma palavra de ordem ou um discurso

superficial e idealista. A grande contribuição da Animação Cultural é implementar uma

idéia de revolução relacionada à quebra da monotonia e à construção de uma idéia

radical de liberdade de escolha.

O animador cultural deveria se ver como um “pessimista revolucionário”. Ele

sabe que seu trabalho não é fácil, sabe que suas conquistas são distantes e árduas, sabe

que é ativo em um jogo desigual no qual possui condições mais frágeis, sabe de seus

desafios cotidianos, mas segue acreditando que há necessidade de empreender combates

contra a ordem estabelecida e crendo que tem uma contribuição efetiva a dar nesse

processo, conjugando sonho e ação, poesia e subversão.

Este trabalho dá continuidade a um processo de reflexão que vem sendo

construído em outras oportunidades4, bem como dialoga com um artigo recente de

Heloísa Buarque de Hollanda5, com quem tenho tido a feliz possibilidade de dividir

inquietações e a oportunidade de aprender constantemente. No parágrafo final, afirma a

autora: Feliz com a surpresa da descoberta de tantas homologias entre os Estudos Culturais e os Estudos do Lazer, penso que a contribuição que essa palestra sugere foi, na realidade, a oportunidade deste encontro que sinalizou para mim a urgência da formalização de uma colaboração mais estável e programática entre essas duas áreas de risco, ambas marcadas a ferro e fogo pelos traços tão complexos quanto mutantes da contemporaneidade (p.99).

Assim sendo, o que pretendo basicamente é dar prosseguimento a este processo

de busca de encontro, de perseguição de uma referência teórica que nos permita novos e

mais sólidos entendimentos sobre os desafios que se apresentam para os que militam no

âmbito da cultura e que identificam sua atuação como estratégica na construção de uma

nova ordem social.

Creio que os Estudos Culturais, em seu intuito de estabelecer uma leitura da

“alta cultura” e da “cultura popular”, bem como estabelecer um certo olhar sobre a

“cultura de massas” (na verdade, rompe-se definitivamente com uma compreensão

estática desses “níveis culturais”, agora entendidos profundamente relacionados e com

fronteiras bem pouco precisas) pode apresentar perspectivas alvissareiras para

4 . Notadamente no artigo “Educação estética e animação cultural” (Melo, 2002). 5 . Refiro-me ao artigo “A contribuição dos Estudos Culturais para pensar a Animação Cultural” (2004).

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pensarmos a Animação Cultural e os Estudos do Lazer. Como bem lembra Giroux

(2003, p.156): O insight de Cary Nelson de que os Estudos Culturais exibem uma profunda preocupação pela maneira “como objetos, discursos e práticas constroem possibilidades e limitações para a cidadania” proporciona um importante ponto de partida para designar e sustentar um projeto que una vários educadores, acadêmicos e trabalhadores culturais dentro e fora da academia.

Destaco desde já que não estou a preconizar uma relação linear entre cultura e

controle, mas compreendo isto como um processo de tensão e conflito constante. E é

exatamente por tais embates que creio que há possibilidades de intervenção no âmbito

da cultura, na medida em que se percebe um ajuste não completo, imperfeito, que deixa

espaço para a transgressão: O que o sociólogo cultural ou o historiador cultural estudam são as práticas sociais e as relações culturais que produzem não só “uma cultura” ou “uma ideologia” mas, coisa muito mais significativa, aqueles modos de ser e aquelas obras dinâmicas e concretas em cujo interior não há apenas continuidades e determinações constantes, mas também tensões, conflitos, resoluções e irresoluções, inovações e mudanças reais (Willians, 2000, p.29).

A abertura, a versatilidade, a busca constante da reflexão e da crítica, a

característica interdisciplinar (ou, para usar um termo comum entre alguns autores, pós-

disciplinar) dos Estudos Culturais (uma necessidade, já que uma única disciplina

acadêmica, nos moldes tradicionais, não seria capaz de dar conta de compreender a

complexidade dos processos culturais), o desafio (nem sempre alcançado, mas sempre

apontado) de romper com a burocracia disciplinar universitária, tudo isso os elegem

como bons interlocutores.

Mais um ponto em comum: por se apresentarem de maneira distinta à forma

tradicional de organização do conhecimento no âmbito acadêmico, Estudos Culturais,

Estudos do Lazer e Animação Cultural sofrem com uma imprecisão quanto a seu espaço

e têm que travar verdadeiras “batalhas campais” (fazendo uso de uma expressão de

Beatriz Resende) para serem reconhecidas, respeitadas e legitimadas no mundo

universitário.

Aliás, outra (feliz) coincidência é se apresentarem como “Estudos”. Sobre esse

aspecto, se posiciona Beatriz Resende (2002): A primeira coisa que me agrada nos Estudos Culturais é apresentarem-se como estudos. Instala-se, imediatamente, uma provisoriedade, uma abertura, que me parece indispensável

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em um momento de questionamentos, de necessariamente assumirmos as dúvidas que vivemos diante do século que se inicia (p.11).

Gostaria ainda de lembrar que os momentos iniciais dos Estudos Culturais

surgem quando Raymond Willians e E.P.Thomspon, que junto com Richard Hoggart

compõe os primórdios dessa perspectiva teórica, trabalhavam como professores de

classes de trabalhadores no ensino noturno. Foi a partir dessa prática concreta, dessa

experiência de intervenção pedagógica, que se questionaram sobre o que se ensinava e

como se ensinava, tendo em vista tornar mais efetiva uma contribuição para a superação

da questão da imposição de valores por parte da classe dominante.

Hobsbawn (2001) comenta que Thompson em sua experiência docente propunha

uma relação menos rígida entre professores e alunos, desejando romper com os modelos

tradicionais de uma sala de aula. Acreditava que a experiência dos alunos deveria ser

valorizada e se constituía em excelente recurso didático, uma real necessidade no

processo pedagógico6.

Os Estudos Culturais, portanto, nascem de um compromisso de professores, que

se entendem para além de meros reprodutores de conteúdos. O próprio Willians afirma: Estamos começando a ver artigos de enciclopédia que datam o aparecimento dos Estudos Culturais a partir deste ou daquele livro de finais dos anos 50. Não acreditem em uma só palavra. A mudança de perspectiva de ensino das artes e da literatura e sua relação com a história e a sociedade contemporânea começou na Educação para Adultos, não começou em nenhum outro lugar (apud Cevasco, 2003, p.61).

Para satisfazer qualquer necessidade de uma definição mais clara e direta, tenho

definido a Animação Cultural como uma tecnologia educacional (uma proposta de

intervenção pedagógica), pautada na idéia radical de mediação (que nunca deve

significar imposição), que busca contribuir para permitir compreensões mais

aprofundadas acerca dos sentidos e significados culturais (considerando as tensões que

nesse âmbito se estabelecem) que concedem concretude a nossa existência cotidiana,

construída a partir do princípio de estímulo às organizações comunitárias (que

pressupõe a idéia de indivíduos fortes para que tenhamos realmente uma construção

democrática), sempre tendo em vista provocar questionamentos acerca da ordem social

6 . Mas à frente, comenta Hobsbawn: “Como professor Thompson é relembrado com acuidade por seus ex-alunos não acadêmicos. Severo mas gentil, incisivo mas elegante, polêmico, carismático, inteligente, eloqüente. Amante do debate, neles provocou a curiosidade pela história e literatura. Ou mais, suscitou o apreço por essas duas matérias” (p.27).

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estabelecida e contribuir para a superação do status quo e para a construção de uma

sociedade mais justa.

É uma proposta de Pedagogia Social que não se restringe a um campo único de

intervenção (pode ser implementada no âmbito do lazer, da escola, dos sindicatos, da

família, enfim, em qualquer espaço possível de educação), nem pode ser compreendida

por somente uma área de conhecimento.

Considerando este conceito, quero correr o risco de afirmar que Willians e

Thompson eram animadores culturais em sua experiência e que, logo, é dessa dimensão

que nascem os Estudos Culturais. Logo, talvez ambas as perspectivas tenham mesmo

mais em comum do que podemos a princípio supor, como já identificara Hollanda em

seu artigo (2004).

Trata-se de uma relação original: os Estudos Culturais nascem como Animação

Cultural. Logicamente que nunca reivindicaram isto, nem seria o caso de reivindicarem.

Falo do sentido inicial da proposição dos autores pioneiros. E, de forma ousada, quero

afirmar que creio que a Animação Cultural pode resgatar alguns dos projetos originais

dos Estudos Culturais, de certa forma esquecidos, abandonados ou hoje menos

valorizados em função dos caminhos pelos quais essa outrora “não disciplina” vem

percorrendo nos últimos anos.

Aliás, Henry Giroux vem a algum tempo chamando a atenção para a necessidade

de promover encontros mais férteis e freqüentes entre educadores e os estudiosos dos

Estudos Culturais. Para ele, o trabalho de ambos tem uma série de pontos em comum e

uma colaboração mais efetiva deveria ser urgentemente encaminhada: Ainda assim, embora ambos os grupos compartilhem de certas práticas pedagógicas e ideológicas, eles raramente falam entre si, em parte por causa das barreiras disciplinares e fronteiras institucionais que atomizam, isolam e impedem que os trabalhadores culturais trabalhem em colaboração no contexto desses limites (2003, p.151).

Ainda mais provocador, para Giroux a questão não está apenas em pensar em

práticas transgressoras no âmbito da arte e da cultura, mas pensar em uma articulação

ampla e radical entre artistas, educadores e todos os tipos de trabalhadores culturais, à

busca de construção de modelos alternativos de política e de intervenção cultural. Para

ele, logo, é necessário tornar o pedagógico uma característica definidora dos Estudos

Culturais, o que, como vimos, nada mais é do que insistir na radicalidade da proposta

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dos seus intelectuais de origem. E assim sendo, alerta para algo que precisa ser

considerado com muito cuidado por todos nós. Deveríamos: acentuar a dimensão da ação – um trabalho contínuo, informado por uma política cultural que traduza o conhecimento novamente para a prática, coloque a teoria no espaço político ativo e revigore o pedagógico como uma prática através da qual as lutas coletivas possam ser travadas para reviver e manter a estrutura das instituições democráticas (2003, p.157).

Relação entre cultura, política e economia

Willians e Thompson se debatiam contra uma tradição que separava a cultura do

âmbito da política e da economia. Afirmam que a cultura tem uma função social, é um

campo válido de lutas, ainda mais forte na contemporaneidade, mesmo que não deva ser

encarada como único espaço de contestação: Williams não partilha o idealismo de pensar que somente a luta cultural será capaz de efetuar essa mudança, mas a própria situação geral contemporânea – de uma sociedade altamente complexa que tem seu funcionamento afinado pela comunicação de massa e seus procedimentos confirmados pela educação, pelo menos nos países centrais, de grande parte da população – determina que a cultura seja um campo de lutas relevantes (Cevasco, 2003, p.55).

Um dos conceitos mais interessantes a ser resgatado do pensamento de Willians

é o de materialismo cultural, relacionado com a compreensão de que existe uma relação

intensa entre fenômenos culturais e socioeconômicos: Nessa altura ficou ainda mais evidente que não podemos entender o processo de transformação em que estamos envolvidos se nos limitarmos a pensar as revoluções democrática, industrial e cultural como processos separados. Todo nosso modo de vida, da forma de nossas comunidades à organização e conteúdo da educação, e da estrutura da família ao estatuto e do entretenimento, está sendo profundamente afetado pelo progresso e pela interação da democracia e da indústria, e pela extensão das comunicações (Willians apud Cevasco, 2003, p.12).

Assim sendo, os bens culturais devem ser compreendidos no interior da lógica

de produção, relacionados com os valores e sensibilidades que concedem existência

concreta a sociedade. Isto não significa que se resumam ou se expliquem linearmente

pelas questões econômicas, mas é uma conclamação para que percebamos as complexas

articulações que se estabelecem.

Na ótica do materialismo cultural, os produtos não são meramente objetos, mas

práticas sociais. Nosso papel enquanto animadores culturais seria fundamentalmente o

de contribuir no processo de desvendar das condições em que se apresentam na

sociedade, pensando perspectivas de intervenção que considerem suas diversas formas

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de estruturação de sentidos e significados, considerando também os movimentos

alternativos de contestação. É esse processo complexo de tensão entre o “dominante” e

o “dominado”, é essa não linearidade que permite a ascensão de resistências, que devem

sempre nortear nosso olhar cuidadoso: o potencial dissidente deriva-se em última análise não de qualidades essenciais individuais (ainda que os indivíduos tenham qualidades), mas dos conflitos e contradições que a ordem social inevitavelmente produz em seu próprio interior, na exata medida em que ela tenta se sustentar. Apesar de seu poder, as formações ideológicas hegemônicas estão sempre, na prática, sob pressão, na tentativa de substanciar sua asserção de maior plausibilidade em face de diversas turbulências...O conflito e a contradição surgem a partir das próprias estratégias com que as ideologias hegemônicas tentam conter as expectativas que elas precisam gerar. É aí que a falha – a inabilidade ou recusa de se identificar como o dominante pode ocorrer e, a partir disso, a dissidência” (Cevasco, 2003, p.128).

Cultura de minoria e cultura em comum: caminhos

Essa compreensão também aponta os limites da intervenção do animador

cultural. Se todos os grupos apresentam possibilidades de resistência em sua experiência

concreta, parece-nos inadequado considerá-los como vítimas que necessitam de nossa

indicação linear sobre o que deve ou não ser feito.

Vale lembrar que um dos debates de Willians e Thompson se dava exatamente

contra uma longa tradição inglesa que acreditava que a cultura era um privilégio de

poucos, de uma elite, que deveria conduzir a organização social da maioria, que

supostamente não teria condições de escolher seus caminhos em meio a uma sociedade

turbulenta. Deveríamos tomar cuidado para não reproduzir esta idéia, mesmo que

norteada por um suposto sentido contrário.

Para Willians não se trata de uma minoria decidir e difundir para a massa o que

deve ser acessado, mas sim de compreender a necessidade de construir uma “cultura em

comum”. O desafio central parece ser criar condições para que todos possam ter acesso

aos meios de produção cultural, entendendo que os de “baixo” também produzem

cultura. A questão é criar mecanismos para garantir constantes fluxos e contra-fluxos

culturais, encarando todos como potenciais produtores culturais, não somente

consumidores.

Aliás, temos trabalhado com a idéia de que a questão é sempre estimular uma

postura produtiva, o que significa também a possibilidade de dialogar criticamente com

o que tem sido historicamente produzido. Dialogando com as idéias de Michel Onfray

(2001), procuro chamar a atenção para este aspecto, levantando a necessidade de

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estarmos atentos à perspectiva de formação de sujeitos fortes. Fazendo uso das palavras

de Debord (1997): “O sujeito da história só pode ser vivo produzindo a si mesmo,

tornando-se mestre e possuidor de seu mundo que é a história, e existindo como

consciência de seu jogo” (p.50).

Nesse processo de construção de uma “cultura em comum”, não parece

adequado nem a supervalorização das manifestações relacionadas à “alta cultura”, nem

tampouco as ligadas à “cultura popular”, uma divisão que já não mais se sustenta em

uma sociedade em que ambas se encontram bastante midiatizadas e mercadorizadas;

uma divisão para qual devemos trabalhar para extinguir definitivamente.

Isso não significa qualquer forma de desrespeito às tradições culturais, muito

pelo contrário, antes uma conclamação para que não as compreendamos como privilégio

de uma minoria que decide o que pode ou não ser difundido e acessado. A questão é

procurar garantir o acesso e pensar no estímulo à procura.

O aumento da acessabilidade provavelmente vai potencializar o processo de

circularidade cultural, interferindo na própria tradição, muitas vezes encarada

equivocadamente de forma estática, museificada. Isso por certo assusta os detentores do

privilégio de acesso: Devemos aceitar, com franqueza, que se propagarmos nossa cultura nós a estaremos modificando: uma parte do que oferecemos será rejeitado, outra será objeto de crítica radical. E é assim que tem de ser, pois nossas artes, agora, não estão em condições de continuar incontestadas até a eternidade (...) Levar nossas artes a novos públicos é estar certo de que nossas artes serão modificadas. A mim, por exemplo, isso não assusta. (...) Não espero que os trabalhadores ingleses darão seu apoio a obras que, depois de uma preparação paciente e adequada, não consigam aceitar. O verdadeiro crescimento será lento e desigual, mas a provisão estatal, francamente, deveria crescer nessa direção, em vez de ser um meio de desviar dinheiro público para a preservação de uma cultura fixa, fechada e parcial. Ao mesmo tempo, se entendermos o processo de desenvolvimento cultural, sabemos que este é feito de ofertas contínuas para uma aceitação comum; e que, portanto não devemos tentar determinar de antemão o que deve ser oferecido, mas desobstruir os canais e permitir todos os tipos de oferta, tendo o cuidado de abrir bem o espaço para o que for difícil, dar tempo suficiente para o que for original, de modo que o que se tenha seja desenvolvimento real, e não apenas a confirmação ampliada de antigas regras (Willians apud Cevasco, 2003, p.140).

Uma política cultural séria, que tivesse compromisso com a maioria da

população, deveria, de acordo com este pensamento, reverter completamente suas

prioridades, abandonando a idéia de simples oferecimento de atividades a partir de

grandes eventos. Deveria investir na idéia de um projeto estratégico de formação,

considerando a multiplicidade de manifestações culturais:

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Para Williams a questão nodal é verificar que a cultura é produzida de forma muito mais extensa do que querem fazer crer os defensores da cultura de minorias. Longe de desprezar o que comumente se designa como as grandes obras da Cultura, é preciso se apropriar dessa herança comum retida nas mãos de poucos, por meio da abertura do acesso aos meios de produção cultural (Cevasco, 2003, p.23).

A crítica de Richard Shusterman (1998) é ainda mais contundente: “Enormes

somas são destinadas à aquisição e à proteção de obras de arte, enquanto quase nada é

investido em educação estética, que permitiria que essas obras fossem melhor

aproveitadas no enriquecimento da vida de maior número de pessoas” (p.47). É óbvio

que o autor não está a desvalorizar as instituições tradicionais do campo artístico, mas a

questionar se estas não deveriam ser repensadas tendo em vista alcançar extratos

maiores da população.

Svetlana Alpers (2001) assim define a questão: “Quero argumentar que o efeito

do museu é um modo de ver. E, ao invés de ultrapassá-lo, é preciso tentar trabalhar com

ele” (p.134). Diria que é preciso sim ultrapassá-lo, no sentido de sua forma de

organização atual, mas jamais pensar em abandoná-lo. A própria autora afirma mais à

frente: “...os museus não são os melhores meios de se oferecer educação geral sobre as

culturas. Não que as culturas não sejam a soma de seus produtos materiais, mas talvez

livros e/ou filmes realizem de modo mais eficiente essa tarefa”. Enfim abandoná-los

nunca, reificá-los jamais, repensá-los urgentemente.

Há ainda outra importante discussão: quem estabelece o que é tradição? O que

chamamos de tradição? Como chegou a ser assim denominada? Como se anexam

valores positivos ou negativos a determinadas manifestações? Por que algumas são tidas

como positivas enquanto outras não? Parece fundamental que o animador cultural tenha

muito cuidado com os cânones, não no sentido de negá-los, mas no intuito de não

idolatrá-los a partir de julgamentos a priori: Willians questiona quem tem o poder de atribuir esse valor cultural e reapropria esse poder para usos democráticos. Se cultura é tudo o que constitui a maneira de viver de uma sociedade específica, devem-se valorizar, além das grandes obras que codificam esse modo de vida, as modificações históricas desse modo de vida (Cevasco, 2003, p.51).

Com isso afirmamos que uma das tarefas dos animadores culturais é mesmo

questionar e problematizar os conceitos de arte e de estética construídos pela ideologia

dominante. Tenho encontrado eco para essa preocupação no pensamento de John

Dewey (que aliás, comumente, de forma satírica e crítica, chamava as instituições de

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arte de “salão de beleza de nossa civilização”), muito bem recuperadas por Richard

Shusterman (1998). Logo no prefácio, o autor deixa claro o sentido de sua investida: A estética torna-se muito mais central e significativa quando admitimos que, ao abranger o prático, ao refletir e informar sobre a práxis da vida, ela também diz respeito ao social e ao político. A ampliação e a emancipação do estético envolve, do mesmo modo, uma reconsideração da arte, liberando-a do claustro que a separa da vida e das formas mais populares de expressão cultural. Arte, vida e cultura popular sofrem hoje destas divisões fortificadas e da conseqüente identificação restritiva da arte com belas-artes (p.15).

Gosto muito do pensamento de Dewey quando considera a arte como

experiência. Este autor, na verdade, não tinha por objetivo definir de forma categórica o

que é arte, mas construir conceitos que permitissem que com ela trabalhássemos de

forma a ampliar os limites de suas compreensões habituais. Não se trata de estabelecer

uma verdade acerca da arte, mas repensá-la a partir do entendimento de sua

importância, de seu papel na vida dos indivíduos, de sua função social, encarando-a

fundamentalmente enquanto uma forma específica de contato com a realidade, que traz

impactos para além da própria obra em si. É claro que proposta de Dewey apresenta

limites e é passível de críticas, mas parece que permite encaminhar profícuas

perspectivas de intervenção pela e a partir da arte.

Arte seria aquilo que as pessoas sentem como arte. A questão passa a ser que

condições os indivíduos têm para que possam desenvolver ou não seu potencial de

sentir. Obviamente há uma relação clara entre as condições objetivas (o econômico, as

possibilidades de acesso, a oportunidade de experiências, os estímulos no decorrer da

vida, por exemplo) e as vivências subjetivas. Os indivíduos deveriam ser educados e

oportunizados a ampliarem as suas possibilidades de extrair sensações de manifestações

as mais diversas possíveis. Ressignifica-se com isso o papel da arte na vida dos

indivíduos e o espaço que ocupa nas agências de formação (escola, família, tempo

livre).

Nossa compreensão é de que os indivíduos devem ser estimulados a se

compreender enquanto produtores, não aceitando os limites, muitas vezes rígidos,

impostos pelas instituições artísticas formais, o que pode desautorizar suas críticas

pessoais acerca das obras e desconsiderar sua formas específicas de manifestação a

partir de um critério duvidoso de qualidade.

14

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O posicionamento de alguém que não seja crítico profissional deve ser também

considerado e não descartado a priori como sendo “opinião de um não entendido”, ainda

mais se estiver pautado em construções de conhecimento constantes acerca do acessado.

Bem como, as manifestações artísticas não podem ter seu valor julgado de forma

apriorística, de maneira preconceituosa: o samba pode ser tão arte quanto a música

clássica; a pintura naif não é menos valorosa do que as obras expostas em famosos

museus; a dança das ruas pode ter um status artístico tão respeitável quanto o do balé

clássico. A valor da manifestação não deve ser estabelecido por algo que venha de fora,

mas construído a partir dos efeitos que ocasiona nos diferentes indivíduos, considerando

que estes devem ter acesso a processos de formação.

A experiência estética é o grande valor das obras de arte, aquilo que devem

ocasionar. Sem essa, esvazia-se a potencialidade de sua intervenção. Um quadro

bastante valorizado por uma instituição famosa não deixa de ser arte quando não é

reconhecido por um indivíduo, mas para este nem sempre é encarado como tal. O

potencial da arte está na sua experimentação e no que desencadeia a partir dessa

vivência.

A arte cumpre sua função social quando permite ao indivíduo exercer sua

possibilidade de crítica e de escolha; quando amplia, ao incomodar, as formas de ver a

realidade; quando educa para a necessidade de olhar cuidadosamente (tão importante

em um mundo de signos e símbolos); também quando desencadeia vivências prazerosas

(embora estas não devam ser consideradas como único padrão de julgamento: por vezes

não é essa a intencionalidade do artista). Quando cumpre esses papéis, a arte extravasa

sua existência para além da manifestação em si. Quando não, as obras podem não passar

de algo amorfo para alguns, privilégio de uma minoria.

Perceba-se que não estamos a falar da arte como um meio de educação. Ela é

uma parte importante de nossa vida (somente não assim reconhecida em função dos

quadros de tensões sociais) e possui uma ligação inextricável com a realidade. Portanto,

a experiência artística (compreendida, ressalte-se, enquanto produção de um objeto

específico, mas também enquanto diálogo crítico com as obras) passa a ser uma

vivência fundamental para que os seres humanos melhor compreendam o que está a seu

redor. A arte não tem uma função, é uma função. Não se trata somente de pensar em

uma educação pela arte, mas fundamentalmente em uma educação para a arte:

15

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A resposta pragmatista à acusação de que a arte é necessariamente uma força conservadora de opressão e privilégio de classe envolve uma dupla abertura. Em primeiro lugar, uma abertura do conceito de arte, a fim de incluir as artes populares, cujo apoio e satisfações se estendem para além dos limites da elite sociocultural. Em segundo lugar, uma abertura para as possíveis maneiras pelas quais as artes maiores possam desenvolver um programa político-social progressista, dedicando mais atenção às dimensões éticas e sociais de suas obras (muitas das quais já apresentam uma forte crítica em relação às limitações éticas e aos perigos socioculturais das artes maiores) (Shusterman, 1998, p.60).

Enfim, o pensamento de Dewey parece nos apontar elementos férteis de reflexão

e permite-nos coletar elementos claros para pensar a nossa intervenção: A estética de continuidade de Dewey conecta mais do que a arte e a vida; ela insiste na continuidade essencial de uma série de noções binárias tradicionais, cuja oposição, há tempos assumida, estruturou a filosofia estética: as belas-artes contra as artes aplicadas, o erudito contra o popular, a arte espacial contra a temporal, a estética contra o cognitivo, e por fim os artistas contra as pessoas comuns que constituem seu público. Com efeito, para assegurar tal continuidade em estética, Dewey estende o seu ataque à dicotomia, a fim de destruir dualidades mais básicas, que explicam e reforçam o sequestro e a fragmentação de nossa experiência da arte (Shusterman, 1998, p.244).

Quero deixar claro que não estou, nem esse é o sentido das contribuições de

Dewey e Shusterman, investindo em um esteticismo, nem tampouco em uma idéia

romântica de arte. È óbvio que a arte por si só não é suficiente para modificar a

realidade, nem linearmente podemos afirmar que um indivíduo “bem educado”

artisticamente seja alguém crítico e disposto a construir uma nova sociedade. Só estou

afirmando que se não é suficiente, é fundamental.

O que desejo aqui é recuperar os pensamentos dos autores acerca da arte para

ressaltar a necessidade de construção de uma política e de uma intervenção cultural

mais concreta e eficaz. Lamentavelmente ainda persistem posições que desconsideram a

luta no âmbito da cultura como uma possibilidade concreta de ação política, uma

verdadeira miopia com o que a sociedade contemporânea apresenta de forma explícita.

Nesse ponto, muito se aproximam conservadores, liberais, céticos e ortodoxos de

esquerda, como bem relembra Henry Giroux (2003): De acordo com estudiosos das mais diversas perspectivas ideológicas, a natureza estratégica e performática da cultura como um terreno da política, com poder para criar mudanças sociais através de expansão de identidades, de relações e de arranjos institucionais democráticos, é vista como uma ameaça às configurações estabelecidas de poder ou como um desvio cínico das “verdadeiras” lutas políticas, relacionadas com questões de classe (p.12).

Giroux faz questão de ressaltar que as lutas culturais não são secundárias ou

substitutos menores de uma suposta “verdadeira” ação política. No decorrer de seu

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livro, demonstra o quanto são possíveis atuações de mesmo porte e de grande

importância em função do quadro contemporâneo. Defende de maneira clara e convicta

uma política da cultura e uma cultura da política, ressaltando a primazia do pedagógico

nos embates que devem ser encarados. E não poupa crítica aos pensamentos

anacrônicos, esperados entre conservadores e liberais (em função de sua vinculação

política), mas inaceitáveis entre aqueles que desejam a construção de uma sociedade

mais justa: Essa posição parece parada no tempo, sofrendo um colapso sob o peso do próprio esgotamento intelectual e da exaustão política. Curvados sob o peso de uma versão de marxismo do século XIX, alguns estudiosos contemporâneos de esquerda freqüentemente se recusam a pluralizar a noção de antagonismos, reduzindo-o simplesmente a conflitos de classe, enquanto enfraquecem a força da economia política, limitando-a a um economicismo espectral (p.16).

Entre conservadores, liberais, céticos e ortodoxos de esquerda, buscamos uma

posição que, sem desconsiderar as questões de classe, as vejam não só no diálogo com

as construções culturais, bem como as vejam em si como uma construção cultural.

Nesse sentido, é necessário, sem perder o radicalismo da luta política, encontrar formas

mais eficazes de ação de acordo com os desafios que os arranjos contemporâneos nos

apresentam.

Há também em minhas preocupações uma provocação a muitas propostas

correntes de intervenção no âmbito do lazer e da Animação Cultural. No meu modo de

entender, persiste uma preocupação exacerbada com a questão do “desenvolvimento de

novos valores” (com a construção de uma nova ética, algo muitas vezes eivado de uma

forte carga moralista) e uma sutil desconsideração com a questão da educação de novos

olhares, novas sensações, novas sensibilidades. Não desejo renegar a questão do

conteúdo, mas ressaltar que a questão da forma é tão importante quanto, e que pela

forma também chegamos ao conteúdo. E que a forma é em si um conteúdo.

No fundo, sinto-me tocado e provocado por uma posição de Shusterman, quando

considera que a ética e a estética não são campos absolutamente unidos e idênticos, nem

tampouco completamente distintos, sugerindo uma estetização da ética: A idéia aqui, para resumir numa frase seus aspectos mais salientes, é que as considerações estéticas são ou deveriam ser cruciais, e talvez superiores, na determinação de como escolhemos conduzir ou moldar nossas vidas e de como avaliamos o que é uma vida ideal (Shusterman, 1997, p.197).

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Considerando as peculiaridades, esta posição se aproxima da idéia de “estética

generalizada” do filósofo francês Michel Onfray (2001):

Contra a estética particular, submetida aos imperativos separados, e com muita freqüência colocados como auxiliar do poder dominante, ela visa à ultrapassagem das oposições entre a arte e a vida, a rua e o museu, não para fazer como ocorre freqüentemente, da vida e da rua referências e critérios novos, mas para convocar a arte e o museu a uma dinâmica ascendente” (p.220).

Mesmo que não concordemos de forma absoluta com essas reflexões, e que

tenhamos que reconhecer alguns de seus limites, problemas e mesmo riscos (ligados a

determinados “equívocos” conceituais, muito bem discutidos por Shusterman no

capítulo final de seu livro), creio que nós animadores culturais teremos que no mínimo

estar mais atentos para a questão da educação estética em nossas propostas de

intervenção.

A cultura de massas e a perspectiva de mediação

Não se trata portanto de uma supervalorização ou de uma desvalorização da arte,

mas de entendê-la inserida no contexto sócio-econômico: para que todos tenham acesso

a todo o seu potencial; é necessário pensar nos meios de produção. A posição teórica dos Estudos Culturais se distingue por pensar as características da arte e da sociedade em conjunto, não como aspectos que devem ser relacionados mas como processos que têm diferentes maneiras de se materializar, na sociedade e na arte. Os projetos artísticos e intelectuais são constituídos pelos processos sociais, mas também constituem esses processos na medida em que lhes dão forma (Cevasco, 2003, p.64).

A Animação Cultural é fundamentalmente um processo de intervenção que se

constitui “a favor”, não necessariamente “contra” algo. É pensar uma iniciativa de

“alfabetização” cultural em várias vias. Não é só para a escrita que somos educados

cotidianamente, como também para os sons, olhares, paladares, sensações em geral.

Potencializar e ampliar tais importantes dimensões humanas para ser um apontamento

necessário. Não se trata de substituir uma coisa por outra, mas pensar que tudo pode ser

acessado desde que os indivíduos sejam educados para exercer conscientemente seu

direito de escolha.

Uma vez mais quero recuperar fortemente a idéia de que tenhamos uma postura

pedagógica (o que não significa “didatismos”) perante a cultura, até mesmo porque esta

tem se tornado cada vez mais uma experiência pedagógica em si, de formação e difusão

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Page 19: 13294073 Animacao Cultural Estudos Culturais

de valores e sensibilidades relacionadas a nossa vida cotidiana, a nossa experiência

social. Obviamente que estou longe de considerar a pedagogia em sua versão

conservadora. Desejo uma pedagogia (escolar ou não-escolar) que permita e estimule ao

indivíduo se posicionar mais criticamente e mais ativamente perante aos diferentes

arranjos sociais. Ou como de forma bela define Giroux (2003): Uma pedagogia sem garantias, uma pedagogia que, devido à sua natureza contingente e contextual, traga a promessa de produzir uma linguagem e um conjunto de relações sociais pelas quais os impulsos e as práticas justas de uma sociedade democrática possam ser experimentados e relacionados com o poder da autodefinição e da responsabilidade social (p.21).

É nesse sentido que tratamos a Animação Cultural como uma proposta de

“alfabetização cultural”, nas suas potencialidades e limites, como bem definida por

Gioux (2003, p.45): Recusando um pragmatismo do mercado e uma alfabetização enraizada nos limites exclusivos da cultura modernista da imprensa, as formas mais fortes de crítica emergem de uma noção pluralizada de alfabetização que valoriza a cultura impressa e a visual. Além disso, a alfabetização como discurso crítico também proporciona uma base mais complexa para o poder, para a formação de identidades e para a materialidade do poder, enquanto enfatiza que, apesar de a própria alfabetização não garantir coisa alguma, ela é uma condição essencial para o protagonismo, para a auto-representação e para uma noção substantivada da vida pública democrática.

Mas, para tal, quais deveriam ser os parâmetros que norteariam nossa atuação?

Vale a pena lembrar que há um debate de alguns teóricos ligados aos Estudos Culturais

com o pensamento de Antônio Gramsci, embora todos reconheçam sua importância e

sua influência. Questiona-se seu denotado interesse pela questão da organização das

camadas populares, o que pode sugerir um certo direcionismo exacerbado, algo

potencialmente perigoso. Richard Johnson chama a atenção para que tenhamos claro

que fazemos parte do mesmo processo que desejamos criticar. Portanto, devemos estar

atentos aos limites de nossa atuação: Eles (os intelectuais) podem, tal como os conhecimentos acadêmicos e profissionais, policiar a relação entre o público e o privado ou eles podem criticá-la. Eles podem estar envolvidos na vigilância da subjetividade dos grupos subordinados ou nas lutas para representá-los mais adequadamente do que antes. Eles podem se tornar parte do problema ou da solução. (...) Nós precisamos fazer perguntas não apenas sobre objetos, teorias e métodos, mas também sobre os limites e os potenciais políticos das diferentes posições em torno do circuito (Johnson, 2000, p.53).

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Quero mais uma vez recuperar aqui uma outra tradição de pensamento crítico,

pautada nas idéias de E.P.Thopmson7 e outros estudiosos dos Estudos Culturais.

Segundo Sérgio Silva (2001), este intelectual construiu: Uma outra tradição marxista, que não pode jamais deixar de ser crítica em relação a todo e qualquer poder instituído. Uma tradição que não pode viver só de Marx, que precisa escarafunchar eternamente a história real, os modos de dominação e as formas de resistência; não apenas a resistência presente no cenário político oficial, mas também aquela diária, incansável (...). Essa tradição certamente constitui um instrumento indispensável na luta contra um pensamento que – na ciência e na mídia – serve de fundamento à ideologia do progresso, da modernização, do desenvolvimento, do capital (p.69).

Gosto da posição de Guy Debord (1997) quando crê que a principal forma de

lidar com a força da “sociedade do espetáculo” é partir da organização de conselhos

comunitários, interclasses e intercategorias, soberanos, que não devem se submeter

linearmente a qualquer outro movimento, que de forma alguma podem reproduzir os

mecanismos usados pela indústria cultural. O autor conclama uma atuação coerente,

que, em suas palavras, “não combata a alienação sob formas alienadas”.

A idéia de projetos de vanguarda, uma idéia bastante moderna, parece deslocada

no âmbito das peculiaridades do capitalismo tardio8. O próprio poder da cultura de

massas acaba por “fagocitar” alguns projetos de contraposição, sem falar nas

dificuldades de fazer a ponte entre as provocações dos artistas e o gosto do grande

público: Existem, no momento, poucas áreas tão bloqueadas pelo desacordo e pela incompreensão quanto a relação entre, de um lado os teóricos e os praticantes de vanguarda das artes e, de outro, aquelas pessoas interessadas em uma iniciação mais de base (...). De forma similar, é difícil dar uma idéia de quão mecânica, quão inconsciente das dimensões culturais continua a ser a política da maior parte das frações de esquerda (...) estamos falando não apenas de desenvolvimentos teóricos, mas também de algumas das condições para alianças políticas eficazes (Johnson, 2000, p.110).

Assim, a idéia de mediação parece mesmo ser fundamental para lidamos com a

intervenção no âmbito da cultura. Tenho pensado na idéia de estabelecimento de uma

certa “desorganização”: o processo de educação se daria pela busca de instaurar um

incômodo. Na verdade, a Animação Cultural carrega em si um paradoxo, já que

inicialmente instala um certo desânimo, compreensível em uma ordem social que

7 . Sobre as contribuições de Thomson para pensar o lazer, ver estudo de Melo (2001). 8 . Uma reflexão interessante sobre um dos movimentos de vanguarda, o surrealismo, e sua relação com os princípios do marxismo, pode ser encontrada no estudo de Michel Lowy (2002).

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estimula o contentamento fácil e uma postura pouco reflexiva. É bem possível que

sejam comuns, por parte do público, resistências quando tentamos apresentar

alternativas, algo que deve ser entabulado com cuidado e inserido em um esforço

pedagógico contínuo. Nas palavras de Shusterman e Dewey: A verdadeira experiência do nirvana, eterna e imóvel, assim como a experiência estética que permanecesse sempre a mesma, seria insuportavelmente enfadonha. Precisamos de perturbação e desordem (...) Trata-se tanto de uma perturbação estimulante na direção do novo, como de uma ordem concluída do velho (...) Beleza viva, a experiência estética brilha não apenas por ser rodeada pela morte da desordem e da rotina monótona, mas também porque sua própria trajetória cintilante desenha o processo de morte durante a vida (1997, p.268).

No fundo, a Animação Cultural é uma proposta de educação que, ao buscar

quebrar uma certa unilateralidade no processo de comunicação, parte do princípio da

“deseducação”, da desestabilização. Gosto muito da provocação de José Celso Martinez

Côrrea: O teatro não pode ser um instrumento de educação popular, de transformação de mentalidades na base do bom meninismo. A única possibilidade é exatamente pela deseducação, provocar o espectador, provocar sua inteligência recalcada, seu sentido de beleza atrofiado.

Hoje parece ser corrente o discurso acerca do papel de mediador que deve

assumir o animador cultural, todavia devemos estar atentos aos diversos sentidos que

podem ser construídos ao redor deste conceito. Devemos buscar alguns parâmetros mais

seguros para esta definição, tendo em vista as peculiaridades da contemporaneidade. A

reflexão de Beatriz Resende bem resume os desafios com os quais temos que lidar: Se hoje o intelectual não tem mais a função de porta-voz dos que não tem voz – que preferem falar por si mesmos -, tarefa de mediador entre poderosos e oprimidos, como acontecia com o intelectual moderno, resta-lhe ainda a função crítica que os distingue dos especialistas. É por acreditarmos na possibilidade de se desenvolver uma reflexão a partir de espaços de livre circulação de idéias e de estarmos convencidos da necessidade de se ocupar um lugar crítico, que apostamos no debate em torno dos Estudos Culturais (2002, p.22).

Longe do sentido moderno de vanguarda e libertos dessa falsa (e farsante)

responsabilidade de “falar pelos outros”, um projeto estratégico de mediação parece

estar apontado a partir da própria cultura de massas, não a “demonizando” ou a julgando

de forma linear e maniqueísta. Será que os meios de comunicação em si são ruins ou

complicado é uso majoritário que se faz deles na sociedade contemporânea? Será que

são homogêneos ou há alternativas? Como lidar com possíveis potenciais de

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emancipação construídos pela própria cultura de massas, a partir da idéia de

reapropriação e ressignificação?

É certo que não podemos negligenciar a força da cultura de massas9, a partir do

ponto de vista que: Cada vez mais o sistema, agora planetário, necessita de uma sociedade de imagens voltada para o consumo para “resolver” as contradições que continua criando. Se antes a cultura podia até ser vista como o espaço possível de contradição, hoje ela funciona de forma simbiótica com o capital: a produção de mercadorias serve a estilos de vida que são criações da cultura, e até mesmo a alta especulação financeira se apóia em argumentos culturais (Cevasco, 2003, p.135).

Isso não significa que sua influência seja monolítica e que não existam

alternativas. O fundamental parece ser aprender a lidar criticamente com a força dos

meios de comunicação, o que está diretamente relacionado a um processo de educação

da sensibilidade, um projeto de educação estética. Como bem aponta Cevasco (2003): Mais do que defender o passado, a questão mais premente é tentar ganhar o futuro: facilitar o acesso e a expansão da cultura nas novas condições sociais, e não confundir – problema recorrente no pensamento conservador – meios com mensagem. Não existe nenhum determinismo tecnológico que obrigue os meios de comunicação de massa a disseminar, como o fazem, lixo cultural. Para um pensamento progressista, seria mais relevante pensar em modos de utilizá-los para fins de expansão e enriquecimento culturais (p.47).

Michel Onfray (2001) também chama a atenção para esta dimensão, ressaltando

o equívoco das propostas que sugerem o abandono e recusa de qualquer “cultura

burguesa”. Argumenta que o uso é que é de interesse da burguesia, mas isso não

significa uma marca essencial; conclama, logo, a um entendimento histórico da cultura.

Recupera ainda a idéia, a partir de uma leitura de Gramsci, de cultura como

possibilidade de resistência, inclusive no interior do mercado: Escapar do mercado não significa jamais comparecer lá onde ele organiza a encenação de suas cerimônias de autocelebração e auto-satisfação (...) Pois o inimigo não é o local onde se fala, em absoluto, mas aquilo que se diz nesse local. O gramsciano cultural supõe não a condenação dos meios midiáticos, mas a de seus fins dentro de um mundo liberal preocupado somente com o mercado (p.234).

Podemos traçar um quadro simplificado relativo a posições perante a cultura de

massas (CM), onde acreditamos que a de número 2 pode ser mais interessante para o

projeto da Animação Cultural:

9 . Uma interessante discussão sobre a cultura de massas pode ser encontrada no estudo de Debord (1997).

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Posição 1 Posição 2

Qualidade

Sempre ruim, duvidosa

Mau gosto

Heterogênea

Carrega contradições

Mercado

Controlado e controlador

Impositor

Também media

Tem poder, mas não é soberano

Público

Homogêneo

Controlado e passivo

Heterogêneo

Resiste; pode reelaborar

Arte

A CM nunca é arte

A CM é ruim, a arte boa

Há coisas da CM que são arte

Não há oposição entre CM e Arte

Educação

Trata-se de contrapor a CM

Trata-se de negar a CM

Trata-se de dialogar com a CM

Trata-se de mediar com a CM

Ênfase

Preocupação na emissão Preocupação na recepção

Estudos Culturais e Animação Cultural: desafios em comum

Os próprios desdobramentos e dimensões recentes dos Estudos Culturais

apresentam os desafios com os quais temos que lidar para continuar pensando na

Animação Cultural. De um lado, há conquistas que merecem ser cuidadosamente

consideradas: o reconhecimento da importância dos movimentos sociais, notadamente

do feminismo mais recentemente, o que também trás à tona as discussões ligadas a

gênero; a compreensão de que devemos falar de culturas e não uma cultura única; o

interesse pelas formas populares de cultura; a expansão da noção de poder;

preocupações mais denotadas com os sujeitos e com as subjetividades; o

reconhecimento das teorias de recepção ativa.

De outro lado, há também problemas que merecem tanta consideração quanto os

avanços observados. Por exemplo, a institucionalização dos Estudos Culturais trouxe

dificuldades para pensar a atuação dos intelectuais de acordo com os projetos de seus

autores originais. Como conciliar a universidade com a prática política? Mesmo que se

pense em uma nova tarefa para os intelectuais, os encontros com os movimentos sociais

são sempre problemáticos, inclusive em função dos limites internos burocráticos do

campo universitário e científico, que acabam por valorizar outras dimensões que

23

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chegam à beira de desestimular as atividades de encontro com a concretude da

intervenção.

Johnson bem define os problemas que acometem áreas de estudo com as

características dos Estudos Culturais, da Animação Cultural e dos Estudos do Lazer,

pressionadas pelo que chama de “política miúda e cotidiana da Universidade”: As formas acadêmicas de conhecimento (ou alguns aspectos dela) parecem ser, agora, parte do problema e não da solução. Na verdade, o problema continua o mesmo de sempre: o que se pode aproveitar dos interesses e dos saberes acadêmicos para se obter elementos de conhecimento útil (Johnson, 2000, p.17).

Vejamos os desafios que são apontados para os Estudos Culturais, que bem

expressam o semelhante para a Animação Cultural: Seu futuro está, como diz Raymond Willians, na tentativa, nem sempre bem-sucedida, de levar o melhor que se pode conseguir em termos de trabalho intelectual até pessoas para quem esse trabalho não é um modo de vida ou um emprego, mas uma questão de alto interesse para que entendam as pressões que sofrem, pressões de todos os tipos, das mais pessoais às mais amplas (Cevasco, 2003, p.78).

Trata-se então de construir uma teoria cujos ganhos não sejam somente

acadêmicos, mas que recupere a idéia de uma interlocução clara com a prática; um

projeto político claro de ação. A Animação Cultural só pode ser construída a partir de

uma necessidade de intervenção. Consideremos com cuidado o alerta de Johnson (2003,

p.97): Uma vez que as relações sociais fundamentais não foram transformadas, a análise social tende, constantemente, a retornar às suas velhas ancoragens, patologizando as culturas subordinadas, normalizando os modos dominantes, ajudando, na melhor das hipóteses, a construir reputações acadêmicas sem retornos proporcionais àquelas pessoas e àqueles grupos que são representados. Além da posição política básica (de que lado estão os pesquisadores?), muito depende das formas teóricas específicas de trabalho, muito depende do tipo de etnografia.

Estar atento e debater contra uma determinada tendência interna da universidade

parece ser algo fundamental. Vale o alerta de Cevasco: A postura “política” dos estudos literário radicais em nossos dias é, na pior das hipóteses, um maneirismo residual de grupo; em sua forma mais típica, apresenta-se como combinação de uma crença fantasiosa em uma “subversão” ordinaire, com um desdém versado por idéias revolucionárias, constituindo-se em credo mutante que pode ser chamado de anarco-reformismo. E no centro dessa subcultura está sua realização lendária, algo que ninguém, de nenhuma facção específica, jamais pensaria em inventar, a quimera institucional denominada “Teoria” com T maiúsculo. O trabalho teórico é indispensável a qualquer investigação produtiva e precisa ser defendido como tal. Mas a cultura contemporânea da Teoria é uma mistificação acadêmica, uma singularidade artificial que tende a relativizar e igualar as idéias heterogêneas que lhe são peculiares, e a inibir o

24

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entendimento dos antagonismos e das verdadeiras incomensurabilidades do mundo real de teorias, no plural. As teorias racionais submetem-se apenas a teorias mais potentes, e quase com certeza não serão mais conciliatórias. Mas a Teoria, tomando erroneamente coleguismo profissional por um consenso significativo de standards de julgamento, conduz seus devotos a uma política de adaptação constante às novidades (Cevasco, 2003, p.144).

Assim, apresentamos nossas críticas a uma política científica e acadêmica

meritocrática, pautada fundamentalmente em parâmetros numéricos; a grupelhos

fechados que se negam ao debate, acreditando em velhas bíblias, construídas em cima

de maniqueísmos e considerações pouco concretas, palavras de ordem pronunciadas de

dentro da academia, nunca a partir do diálogo e da compreensão dos movimentos

sociais; bem como a um setor da universidade que exalta às beiras da acriticidade um

novo assistencialismo critico que perambula entre os movimentos sociais (muitos dos

chamados “projetos sociais”), que serve para que os intelectuais durmam melhor sem

que precisem pensar o quanto se afastaram da militância e das intervenções diretas na

realidade; para concretizar isso, chamam-se os grupos sociais para seus eventos, suas

vernissages e constroem-se falsas impressões de contribuição para a inclusão social.

Ao mesmo tempo, abandonam-se as lutas internas das universidades,

acreditando que são menores ou perdas de tempo. Insistimos na idéia de que tais debates

devem ser travados, e isso significar colocar em cheque os próprios padrões de

autoridade construídos no cerne da academia, empreendendo esforços de construção de

uma nova autoridade que possa efetivamente contribuir para a superação dessa ordem

social, não mais a maquiagem borrada de uma ausência de intervenção concreta.

Imersos nesse palco de disputas teóricas desconectadas de uma preocupação

concreta com a realidade, os intelectuais perdem de vista a necessidade de inserção na

construção de uma nova ordem social (muitas vezes se escondendo por trás de seus

discursos engajados) e jogam para escanteio a materialidade das relações econômicas e

históricas. Essa crescente substituição do valor de uso pelo valor abstrato por que se pode trocar as mercadorias, de utilidade por prazer de consumo, tem reflexo nas próprias posições intelectuais: as teorias (os “produtos” do trabalho intelectual) se separam cada vez mais da vida social e substituem uma tomada de posições na prática concreta por conversas abstratas, um valor de uso da teoria por um valor abstrato, a prática social pela prática puramente teórica (Cevasco, 2003, p.159).

Quero reforçar essa preocupação fazendo uso das palavras de Giroux, por crer

que este alerta trata-se de algo fundamental para todo e qualquer intelectual,

notadamente para os que, como os ligados à Animação Cultural, tem uma

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responsabilidade imediata de pensar e implementar processo de intervenção, tendo

portanto que enfrentar um debate sério no âmbito de seus locais de trabalho: Em vez de realizar o trabalho de união entre debates público e intelectual ou de implementar um projeto político que uma as estratégias de entendimento e de envolvimento social, a teoria se torna menos um meio para a melhoria social do que um fim para o avanço profissional. Separada de lutas concretas e de debates públicos mais amplos, a teoria assume um papel debilitante, ao privilegiar o domínio da retórica, de um prazeroso jogo de palavras e de clareza intelectual, sobre a tarefa politicamente responsável de desafiar a inércia dos entendimentos de senso comum do mundo, abrindo possibilidades para novas abordagens à reforma social, ou discutindo os problemas sociais mais urgentes, contribuindo para o aumento da democracia transnacional e multicultural (2003, p.81).

Concordo com Beatriz Resende (2002) quando ela compartilha com Stuart Hall

a compreensão de que existe uma diferença entre entender o sentido político do trabalho

intelectual e o trabalho intelectual por política. Mas ressalvo que não podemos (e não

creio que esse seja o objetivo de Resende) utilizar tal diferenciação como uma forma de

ficarmos acomodados enquanto intelectuais.

Cabe-nos continuar tensionando com os rígidos limites do mundo acadêmico,

sem o qual os Estudos Culturais correm o risco de perder uma de suas principais

contribuições. E para os militantes da Animação Cultural essa parece ser uma

compreensão fundamental.

Enfim, a Animação Cultural tem que estar atenta para o fato de que: As qualidades humanas e a dimensão sensorial da experiência são objetificadas ou separadas das pessoas e de suas atividades, de maneira se tornar produtos em si, reificadas ou estetizadas. O problema é, então, como reverter ou romper esse processo de modo a reaver ou reafirmar todas as qualidades humanas que a mercadoria nega por abstração (Cevasco, 2003, p.76).

O desafio da Animação Cultural passa a ser de ressaltar seu papel enquanto

tecnologia educacional que pode contribuir para a construção de uma nova ordem

social. Pensando na já discutida articulação entre teoria e prática, entre produção e

intervenção, os três modelos de pesquisa em Estudos Culturais, propostos por Johnson

(2003), parecem apontar caminhos para avançarmos: a) preocupações com a produção,

uma luta para transformar os meios de produção cultural e desenvolver alternativas de

contraposição; b) preocupações com o texto, focalizadas na forma dos bens culturais,

identificando possibilidades de uma prática cultural comprometida com a

transformação; c) preocupações com a cultura vivida, apoiando, defendendo e

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estimulando os diferentes arranjos de vida de grupos subordinados, sempre a partir da

idéia de mediação.

Para concluir, quero recuperar algumas posições críticas de Francis Mulhern aos

Estudos Culturais. Sem negar suas contribuições, o autor desconfia que grande parte dos

estudos filiados atualmente a esta corrente teórica pode até tentar promover aspirações

emancipatórias, mas são mais propostas românticas do que um projeto político claro de

intervenção. Desconfia de que o atual estágio desta outrora não-disciplina (ou pós-

disciplina) dificulta o propagar do que chama de uma “autoconsciência irônica”, uma

necessidade intelectual para os que se relacionam com os Estudos Culturais. E termina

de forma arrasadora: Atualmente, os Estudos Culturais estão não só fomentando a dissolução da política na cultura, mas, nesse processo, também desperdiçando o legado de seus pioneiros. Eles não deixam espaço para a política além da prática cultural, ou para a solidariedade política além dos particularismos de diferenças culturais. Na verdade, quase não há espaço para uma política de contestação cultural. Nem espaço nem, na verdade, necessidade de luta, se toda a cultura popular, abstraída da “alta” cultura e das realidades históricas de desigualdade e da dominação, já é ativa e crítica; se a televisão e o consumismo já são teatros de subversão. Mas, se nada existe além dessas manifestações culturais, então a subordinação das massas, sua submissão ao capitalismo consumista, deve ser tão completa como os expoentes da Kulturkritik supuseram que era. E o maior paradoxo dos estudos culturais é esse: que eles acabam confirmando e mesmo louvando esse juízo de valor antidemocrático (1997, p.58).

Longe de concordar ou discordar completamente de Mulhern, considero

interessante no mínimo ter suas palavras como um alerta. E tendo em conta o escopo de

preocupações e de desdobramentos que têm sido construídos ao redor da Animação

Cultural, podemos afirmar que se constitui em uma bela provocação para que os

Estudos Culturais relembrem e retomem seus projetos originais, na mesma medida que

estes apresentam provocações para pensar os caminhos da Animação Cultural.

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