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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO stricto sensu - MESTRADO EM DIREITO
CARLA BACILA SADE
A CONSCIÊNCIA DA ANTIJURIDICIDADE NOS CRIMES ECONÔM ICOS
CURITIBA 2012
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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO stricto sensu - MESTRADO EM DIREITO
CARLA BACILA SADE
A CONSCIÊNCIA DA ANTIJURIDICIDADE NOS CRIMES ECONÔM ICOS
CURITIBA 2012
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CARLA BACILA SADE
A CONSCIÊNCIA DA ANTIJURIDICIDADE NOS CRIMES ECONÔM ICOS
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba, como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Direito.
Orientador: Professor Doutor Fábio André
Guaragni
CURITIBA 2012
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CARLA BACILA SADE
A CONSCIÊNCIA DA ANTIJURIDICIDADE NOS CRIMES ECONÔM ICOS
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Direito pelo Centro Universitário Curitib a. Banca Examinadora constituída pelos seguintes profe ssores: Presidente: _________________ __________________ FÁBIO ANDRÉ GUARAGNI
Orientador ___________________________________ PAULO CÉSAR BUSATO (MEMBRO EXTERNO) ___________________________________ LUIZ ANTONIO CÂMARA (MEMBRO INTERNO)
Curitiba, 18 de dezembro de2012.
18
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar penso que sempre se deve agradecer aos pais, os meus:
José Carlos e Cleusa. Não como uma obrigação, mas por todo amor, dedicação e
sacrifícios que, mesmo após nos ofertarem o maior presente que é a vida, ainda nos
doam, assim, gratuitamente. E junto deles meus irmãos, Bruno e Youssef, e todo
restante da nossa família, pessoas que amo mesmo quando ausente, como no
período do mestrado.
Agradeço especialmente ao meu orientador, prof. Dr. Fábio André Guaragni,
pela paciência sem fim e pela inspiração intelectual. Falo sem hesitar que é uma das
pessoas que mais admiro no mundo.
Se eu fosse pensar especificamente no mestrado, o obrigada maior seria aos
meus colegas Almério, Maria Fernanda, Wilson e Felipe, pois com certeza absoluta
sem o apoio deles a “estrangeira” jamais teria conseguido finalizar esse processo.
Mas mais do que isso, agradeço pela amizade de vocês, que é o que de mais
precioso construímos nesse tempo.
E por falar em amizade, deixo um abraço especial a todos os amigos, o que
faço na pessoa querida do Leonardo De Bem, a quem jamais vou conseguir
agradecer todo o apoio e companheirismo, e também dos amados Camile, Danuza,
Renata , Fábio, Samuele Cláudia.
E o que seria de mim sem a AngelaSchilings e a sua gestalt terapia....
Fim. Ufa.
19
RESUMO
Propõe-se, nesta pesquisa, analisar a consciência da ilicitude enquanto elemento da culpabilidade e suas dificuldades especificas concernentes ao Direito Penal Econômico. Para tanto, parte-se do conceito e da evolução histórica da culpabilidade como categoria dogmática do delito, passando do seu conteúdo estritamente psicológico para o psicológico-normativo, dentro do qual foi inserida a consciência da ilicitude como elemento do dolo, até que deste se desvinculou, aí já na forma potencial, agregando-se à culpabilidade puramente normativa da teoria finalista e suas sucessoras. A liberdade, baseada no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, é o ponto de partida para a análise da consciência da ilicitude em sua configuração atual, no sentido de que se estabeleçam limites corretos de avaliação deste elemento, sempre com o objetivo de efetivação do princípio da culpabilidade. Por isso buscou-se encontrar na doutrina um fundamento para a consciência da ilicitude potencial e critérios de análise dela e da evitabilidade do erro no caso concreto, rejeitando-se o dever geral de informação e vinculando a busca da informação a um motivo concreto, sempre que o critério da valoração paralela na esfera do profano se mostrar insuficiente, o que é comum relativamente aos tipos penais dos crimes socioeconômicos. Palavras-chave: Direito Penal econômico, culpabilidade, liberdade humana, consciência da ilicitude, evitabilidade do erro, dever de informação, critérios de análise.
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ABSTRACT The purposeofthisresearchistoanalyzetheconsciousnessofunlawfulness as anelementofculpabilityandtheirspecificdifficultiesconcerningtheEconomic Criminal Law. Therefore, it isstartedwiththe concepto f culpabilityanditshistoricalevolution as dogmaticcategoryofcrime, passingthroughits contentstrictlypsychologicalto a contente psychological-normative, in whichwasinsertedtheconsciousnessofunlawfulness as anelementofintent, untilthey aredisassociated, therealready as potentialconsciousness, beingaddedtothetpurelynormativeculpability in the finalista theoryand its successors. Freedom, basedontheconstitutionalprincipleofhumandignity, isthestarting point for theanalysisofconsciousnessorawareness in its currentconfiguration, in orderto set limitsto a correctassessmentofthiselement, alwaysaimingtherealizationoftheprincipleofculpability. Soit wastriedtofind a foundation for thedoctrinefor potencial consciousnessofwrongdoingandcriteria for analyzing it andavoidableerror in theconcretcases, rejectingthe general dutyofinformationandlinkinginformationseekingtoa concrete reason, alwayswhenparallelvaluation in thesphereofthe profane proves itselfinsufficient, whichis common onthetypesof criminal socialeconomicoffenses. Keywords : Criminal Economic Law, culpability, humanfreedom, consciousnessofworngdoing, avoidableerror, dutytoseek forinformation, analysiscriteria.
21
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 13
1 CULPABILIDADE ................................................................................................. 16
1.1 CONCEITO DE CULPABILIDADE ......................................................................16
1.2 PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE ...................................................................... 18
1.3 DO CONTEÚDO PSICOLÓGICO AO CONTEÚDO NORMATIVO DA
CULPABILIDADE ............................................................................................... 21
1.3.1 Conteúdo psicológico da culpabilidade ........................................................... 21
1.3.1.1 A tese da irrelevância da consciência da ilicitude......................................... 26
1.3.2 Conteúdo psicológico-normativo da culpabilidade .......................................... 27
1.3.2.1 Teorias do dolo e Teorias da culpabilidade ................................................. 34
1.3.2.1.1 Teoria estrita do dolo................................................................................ 35
1.3.2.1.2 Teoria limitada do dolo........................................................ ..................... 37
1.3.3 Conteúdo normativo da culpabilidade............................................................. 43
1.3.3.1 Teoria extremada da culpabilidade .............................................................. 47
1.3.4 Culpabilidade nas teorias funcionalistas. . ...................................................... 48
1.3.4.1 Teoria limitada da culpabilidade................................................................... 56
1.4 FUNDAMENTOS MATERIAIS DA CULPABILIDADE NOS AUTORES ATUAIS.
.................................................................................................................................. 58
1.4.1 Culpabilidade como poder agir de outro modo............................................... 58
1.4.2 Culpabilidade como atitude interna juridicamente reprovada ......................... 59
1.4.3 Culpabilidade como poder responder pelo próprio caráter ............................. 60
1.4.5 Culpabilidade como atuação injusta apesar da existência de acessibilidade
normativa.................................................................................................................. 62
2. A CONSCIÊNCIA DA ANTIJURIDICIDADE ....................................................... 65
2.1 A CONSTITUIÇÃO COMO PONTO DE PARTIDA: liberdade como expressão da
Dignidade da Pessoa Humana, princípio da culpabilidade e culpabilidade como
poder agir de outro modo......................................................................................... 65
2.1.1 Culpabilidade como poder agir de outro modo em Schünemann................... 70
2.1.2 Culpabilidade como poder agir de outro modo em Vives Antón ..................... 73
2.2 O ELEMENTO CONSCIÊNCIA DA ANTIJURIDICIDADE ................................. 77
22
2.2.1 Conhecimento e compreensão....................................................................... 79
2.2.2 Conhecimento efetivo, conhecimento atual e conhecimento atualizável. ....... 82
2.2.3 Conhecimento Potencial da antijuridicidade. .................................................. 84
2.2.4 Objeto da consciência..................................................................................... 90
2.2.4.1 Conteúdo material (ou teoria tradicional) ..................................................... 90
2.2.4.2 Conteúdo Formal.......................................................................................... 92
2.2.4.3 Conteúdo Intermediário (ou teoria intermediária). ........................................ 95
2.3 FUNDAMENTO DE PUNIBILIDADE A PARTIR DA CONSCIÊNCIA DA
ILICITUDE EFETIVA (ATUAL OU ATUALIZÁVEL) E DA POTENCIAL (ERRO
EVITÁVEL)................................................................................................................97
2.4 ACESSO À CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE..................................................... 101
2.4.1 Esforço de consciência ou reflexão............................................................... 102
2.4.2 Função de apelo do tipo penal. ..................................................................... 103
2.4.3 Busca da informação..................................................................................... 104
3 CRITÉRIOS DE AFERIÇÃO DA CONCIÊNCIA DA ILICITUDE E DA
EVITABILIDADE DO ERRO DE PROIBIÇÃO NO DIREITO PENAL
ECONÔMICO.................................................................................................................
............... 106
3.1 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O ERRO DE PROIBIÇÃO NO DIREITO
PENAL ECONÔMICO ........................................................................................... 106
3.2 VALORAÇÃO PARALELA NA ESFERA DO PROFANO ................................ 111
3.2.1 A valoração paralela na esfera do profano nos crimes econômicos e
desreferencialização ética ..................................................................................... 114
3.2.2 A valoração paralela na esfera do profano nos crimes econômicos e a
subcultura empresarial .......................................................................................... 121
3.3 DEVER DE INFORMAÇÃO ............................................................................. 126
3.3.1 Motivo Concreto para se informar ................................................................. 127
3.3.1.1 Dúvida ........................................................................................................ 129
3.3.1.2 Atividade Regulamentada .......................................................................... 130
3.3.1.3 Lesão a bem jurídico ou dano à coletividade ............................................. 131
3.3.2 Confiabilidade da fonte de informação .......................................................... 132
3.3.3.Relevância da informação no caso concreto ................................................ 133
3.3.4 Princípio da coincidência entre consciência do injusto e momento do fato... 134
CONCLUSÃO ........................................................................................................ 137
23
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 142
24
INTRODUÇÃO
Os delitos econômicos, a despeito de estarem perfeitamente inseridos na
sistema jurídico-penal geral, apresentam peculiaridades que, por vezes, implicam
em maiores dificuldades de aplicação e análise dos conceitos dogmáticos que
funcionam adequadamente ao direito penal clássico.
Dentre todos os aspectos da problemática que envolve o manejo da teoria do
direito penal no campo socioeconômico, a consciência da ilicitude é um dos pontos
mais controversos e nebulosos, tendo em vista que, de regra, não há coincidência
entre os valores tutelados pelo direito penal econômico e as pautas valorativas
tradicionais, o que implica em grandes obstáculos para a afirmação da culpabilidade
do agente.
Apesar disso, é fácil constatar na doutrina brasileira uma total omissão
relativa ao tema. Não apenas são repetidos sem maiores digressões o elemento da
potencial consciência da ilicitude como pilar da categoria dogmática da
culpabilidade, e como o seu critério de avaliação unicamente o da valoração paralela
na esfera do profano (este já mais raro de ser comentado), como os
questionamentos de maior relevo são sumariamente ignorados. Quando qualquer
dificuldade aparece, é vinculada a um suposto dever geral de informação.
Não se discute o confronto do princípio da culpabilidade com a consciência
meramente potencial, não se questiona o dever geral de informação que afrontaria o
princípio da legalidade, e menos ainda são discutidos quais subcritérios devem guiar
a atividade daquele que pretenda avaliar a incidência, ou não, no caso concreto, do
erro de proibição.
No que tange os delitos econômicos, grande dificuldade reside no fato de que
a consciência da ilicitude é avaliada, consoante doutrina dominante, a partir do
critério da valoração paralela na esfera do profano e, como já dito, nessa seara não
há correspondência com a estrutura cultural clássica como ocorre com os delitos
tradicionais. Esse problema motivou o início da pesquisa, que se desenvolve em três
momentos, correspondentes aos três capítulos em que foi estruturada.
No primeiro capítulo, é analisada a culpabilidade, mais especificamente
enquanto categoria dogmática do conceito de crime. Foi traçado todo o seu
desenvolvimento histórico, desde o surgimento, em combate à responsabilização
25
objetiva, passando por sua concepção puramente psicológica, para após começar a
agregar elementos normativos, o que conduziu, ao final, à caracterização da
culpabilidade somente normativa, acepção com a qual até o momento atual se
trabalha.
Oportunamente dentro daqueles momentos históricos são avaliados, ainda no
primeiro capítulo, as teorias do dolo e da culpabilidade, que indicavam a relação
entre dolo, consciência da ilicitude e culpabilidade, refletindo no tratamento do erro
de proibição.
A questão da liberdade humana é central nesse ponto de desenvolvimento da
dogmática penal, em especial porque define a concepção sobre o conteúdo da
culpabilidade. Somente de indivíduo é livre eu posso responsabilizá-lo por suas
escolhas e somente se, podendo escolher e sabendo o significado da sua conduta,
não agir conforme o Direito, estará sujeito às sanções penais, já que poderia ter
agido de outro modo.
Por isso é que no segundo capítulo, antes de se adentrar às especificidades
da consciência da ilicitude, é traçado um possível ponto de partida para a afirmação
da liberdade e da culpabilidade enquanto poder-agir-de-outro-modo. Após, é então
avaliada toda a formatação da consciência da antijuridicidade, sempre se
confrontando com as peculiaridades do direito penal econômico, que muito embora
não tenha uma consciência da ilicitude própria, submetendo-se à conceituação
geral, apresenta dificuldades particulares.
A potencialidade como forma mínima de consciência da ilicitude exigida para
a afirmação da culpabilidade ( ou o erro evitável) mereceu bastante atenção neste
segundo capítulo, em especial o seu fundamento material, o que, mais uma vez, é
ponto totalmente ausente de discussão no Brasil, pois sempre se lança mão de um
suposto dever geral de informação para justificar o afastamento do erro de proibição.
Logo, no terceiro capítulo, não se poderia deixar de definir quais são os
critérios para a constatação da consciência da ilicitude, tendo sido destacados tanto
a valoração paralela na esfera do leigo, como o dever de informação, que chega
nesse momento amparado pelo motivo concreto para a busca da informação. O
critério da valoração paralela é analisado, considerando as características do Direito
Penal econômico, diante do contexto de desorientação ética afirmado
sociologicamente por diversos autores que se ocupam em estudar a pós
modernidade. Esse mesmo critério é confrontado com a perspectiva da subcultura
26
empresarial, sob a qual também terá sua eficácia para o afastamento do erro de
proibição questionada.
Ainda no terceiro capítulo, é detalhado o critério do dever de informação, que
ganha contornos específicos a partir de subcritérios que consistem na motivação
concreta para a se informar, entrando em cena a questão da dúvida, da inserção em
atividade regulamentada, da lesão a outrem ou à coletividade, bem ainda discussões
sobre a confiabilidade da fonte de informação, a relevância da informação hipotética
e o princípio da coincidência entre a consciência do injusto e o momento do fato.
O que se pretende, com o presente estudo, analisar as questões mais
controvertidas sobre a consciência da ilicitude e seus reflexos no Direito Penal
econômico, esclarecendo critérios e fundamentos de aplicação desse conceito da
categoria dogmática da culpabilidade, com o objetivo de tornar menos arbitrária a
análise do erro de proibição nos casos concretos.
27
1 CULPABILIDADE
A análise da consciência da ilicitude, enquanto elemento da culpabilidade,
depende diretamente da concepção que se tenha da dela enquanto categoria
dogmática do delito e do conteúdo que a ela se dê. Definidos esses parâmetros, só
então é possível avaliar as configurações de seus elementos.
1.1 Conceito de culpabilidade
Em Direito Penal, à expressão culpabilidade podem ser atribuídos alguns
sentidos que se diferenciam entre si. Comumente, fala-se em três noções diversas
de culpabilidade, sendo a primeira identificada como o antagonismo da
responsabilidade objetiva, a segunda representa a culpabilidade como fundamento
da pena, e a terceira consistiria em culpabilidade como um fator de determinação da
pena aplicada ao caso concreto 1.
Enquanto conceito contrário à responsabilidade objetiva, a culpabilidade
impede seja responsabilizado alguém que não tenha agido com dolo ou culpa,
“exigência que se soma à relação de causalidade para reconhecer a possibilidade
de impor pena”2, expressando-se no princípio geral do nulla poena sine culpa. Nas
palavras de Hirsch:
Por conseguinte, o princípio da culpabilidade marca também a oposição a uma responsabilidade pelo resultado referida exclusivamente à imputação de fatos objetivos.3
Já a culpabilidade como elemento de determinação da pena está
apresentada no artigo 59 do Código Penal brasileiro, funcionando como critério de
graduação da reprimenda a ser aplicada, ou seja, como seu limite4, já que se
estabelece “uma relação entre culpa e castigo”5. Para Hirsch, trata-se do
1 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal . São Paulo: Saraiva, 2008. p. 16. 2 BUSATO, Paulo. MONTES HUAPAYA, Sandro. Introdução ao Direito Penal. Fundamentos para um sistema penal democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.p.144. 3 HIRSCH, Hans Joachim. Derecho Penal. Obras Completas . Tomo I. Trad. José Cerezo Mir e Edgardo Alberto Donna. Buenos Aires: Rubinzal- Culzoni, 1998. p. 151. 4 BITENCOURT, Cezar Roberto. op cit.. p. 16. 5 BUSATO, Paulo. MONTES HUAPAYA, Sandro. op cit. p. 143-144.
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“reconhecimento das circunstâncias individuais que são significativas para a pena
concreta”.6 Para Salo de Carvalho, a culpabilidade, tanto como vinculação subjetiva
do autor ao fato, quanto como limite de aferição da pena, é pilar de um Direito Penal
garantista que busca a eficácia normativa dos Direitos humanos.7
Na terceira acepção, a culpabilidade é compreendida como “categoria
dogmática”8 do sistema jurídico penal. Como camada autônoma, ela surgiu com a
separação entre injusto e culpabilidade, quando a distinção entre os elementos
objetivos e subjetivos implicava numa divisão sistemática, na qual os primeiros
ficavam no injusto, enquanto os somente psicológicos formavam a culpabilidade9.
Aqui, quer como integrante do conceito de crime ou pressuposto de
aplicação da pena, dependerá da verificação de seus componentes, que seriam a
imputabilidade, a consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa e é
conceituada de forma geral como “reprovação do autor pelo injusto”10, podendo ser
conceituada como “um juízo de reprovação sobre o sujeito (quem é reprovado), que
tem por objeto a realização do tipo de injusto (o que é reprovado) e por
fundamento...o poder de não fazer o que faz (porque é reprovado)”11
Winfried Hassemer aponta que o princípio da culpabilidade apresenta-se
em quatro dimensões: possibilitar a imputação subjetiva (vincular o autor ao ‘seu’
fato), excluir a responsabilidade pelo resultado (azar)12, diferenciar graus de
participação interna e dar proporcionalidade às respostas jurídico-penais.
Busato e Montes Huapaya, citando García-Pablos de Molina, apresentam
ainda um quarto sentido para a culpabilidade, afirmando-a como “um conceito
político criminal” que abarcaria “os princípios de responsabilidade pessoal ou
responsabilidade subjetiva, de responsabilidade pelo fato, da presunção de
6 HIRSCH, Hans Joachim. op cit. p. 151. 7 CARVALHO, Salo. Pena e garantias: uma leitura do garantismo de Luig i Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 124. 8 BUSATO, Paulo. MONTES HUAPAYA, Sandro. op cit. p. 143-144. 9 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña e outros. Madri: Civitas, 2006. p. 794. 10 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1. 6ª. Ed. São Paulo: RT, 2006.p. 571. 11 SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal. Parte Geral . 3a ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 282. 12 “Aquí se afirma y se presupone más que en el primer estadio de la imputación subjetiva; aquí se desarrolla la categoría de la responsabilidad; aquí se diferencian modos de causación. Aquí se afirma que culpable de una lesión sólo puede ser quien por lo menos hubiera podido gobernar el acontecer lesivo” em HASSEMER, Winfried. ¿Alternativas al principio de culpabilidad?. Trad. Francisco Muñoz Conde. Disponível em www.juareztavares.com/textos/hassemer_alternativa_culpabilidade.pdf Pesquisado em 29.10.2012.
29
inocência e da individualização da pena”, explicando que as funções da
culpabilidade como limite ao jus puniendi são as que melhor identificam seu
conteúdo atualmente13.
1.2 Princípio da Culpabilidade
O princípio da culpabilidade, expresso na fórmula nulla poena sine culpa,
tem origem no reconhecimento da autonomia moral do ser humano e deste “de
modo universal”, baseado na filosofia cristã da Idade Média, segundo a qual Deus
dotou o homem de livre arbítrio para que escolhesse entre o bem e o mal, e nisso se
constituía a base moral de reprovação, permitindo desenvolvimento do conceito de
imputação de uma ação que “pertenceria ao autor que livremente optou por ela”14.
Antes disso, predominava a noção de responsabilidade penal objetiva,
sendo esta inicialmente centrada no grupo, para progressivamente adquirir caráter
pessoal15.
No Direito religioso dos romanos, por exemplo, a punição independia de
culpa, pois se entendia que a ofensa casual ao direito era tão gravosa quanto a
ofensa dolosa, já que ambas provocavam a cólera dos deuses que deveria ser
aplacada por expiações, motivo que levava inclusive à punição dos impúberes16.
O que interessava inicialmente para a aferição da autoria de um delito era
a exterioridade fenomenológica. Atribuía-se o resultado àquele que o tivesse
causado imediatamente, independentemente da existência de qualquer vínculo
psíquico entre autor e resultado.
Ou seja, a responsabilidade era vista apenas na relação seqüencial de
causa e efeito, independendo da possibilidade de prever e evitar o resultado, pois
“desconsiderava-se a existência de alguma ligação, além da simples causalidade
13 BUSATO, P. MONTES HUAPAYA, S. op.cit. p. 144. 14 BUSATO, P. MONTES HUAPAYA, S. op.cit. p. 144. 15 LOBATO, José Danilo Tavares. Da evolução dogmática da culpabilidade. Em GRECO, Luís. LOBATO, Danilo. Org. Temas de Direito Penal. Parte Geral . Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 301. 16 LISZT, Franz Von. Direito Penal Allemão . Trad. José Higyno Duarte Pereira. Rio de Janeiro: F. BRIGUIET e C. Editores, 1899. p. 250.
30
física, entre o fato causado e o agente. O direito penal era, então, um puro direito
penal do resultado. A responsabilidade era objetiva.”17
Não demorou a que se questionasse a diferença entre uma causação
evitável e uma causação inevitável do resultado, criando-se a idéia de evitabilidade
do fato. E, nos dizeres de Francisco de Assis Toledo, “tal constatação pode parecer
óbvia, evidente por si mesma, mas apesar disso, representou difícil, tardia e
importante conquista da humanidade”.18
Em decorrência dessa idéia de evitabilidade do fato, principalmente da
verificação de que o homem pode prever acontecimentos e querer ou não que eles
ocorram, passam a integrar a noção de crime componentes anímicos como a
previsibilidade e a voluntariedade, que mais adiante no curso do desenvolvimento
teórico vão dar origem aos elementos cognitivo e volitivo do dolo.19
E é dentro desse movimento evolutivo que nasce o Princípio da
Culpabilidade. Segundo tal princípio, é preciso que haja uma ligação subjetiva entre
o autor e o resultado ofensivo ao bem jurídico protegido. Assim, um fato só pode ser
imputado a alguém se este tem com o resultado um nexo psíquico, também
chamado de nexo de subjetividade.
Nesse momento, os conceitos de dolo e culpa começam a ser construídos
para figurarem, adiante, como elementos do crime. Tiveram como base a
previsibilidade e a voluntariedade que, nesta fase, faziam parte de uma concepção
unitária de crime.
Franz Von Liszt, desde o século XIX, avaliava que a culpabilidade já
naquela época era produto de um longo desenvolvimento que o autor assumia como
não concluído, ressaltando sua importância ao afirmar que “é pelo aperfeiçoamento
da doutrina da culpa que se mede o progresso do Direito Penal” 20.
A mesma importância foi apontada por Ernst Von Beling21 salientando que
para um Direito Penal que elege um comportamento ilícito culpável para imposição
de uma pena em toda sua amplitude seria adequado que possuísse um conceito de
culpabilidade unitariamente cerrado. 17 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 218. 18 Id. 19 Idem. p. 219. 20 LISZT, Franz Von. Op. cit . p. 250. 21 BELING, Ernst Von. Esquema de derecho penal: la doctrina del delicto-t ipo. Trad. Sebastian Soler da 11a ed. Alemã de 1930. Análise de Carlos M. de Elía. Buenos Aires: Libreria El Foro, 2002. p. 105.
31
Ainda hoje a culpabilidade é ponto central da Teoria do Crime, e máxime
quando se defronta seu conteúdo a um contexto social líquido e tão diverso daquele
no qual foi inicialmente elaborada é que se pode continuar afirmando não estar
concluído o desenvolvimento de seu conteúdo e, nas palavras de Hassemer,
“constitui um dos instrumentos mais difíceis e obscuros do sistema jurídico-penal”22.
E, segundo Zaffaroni, ainda assim constitui, junto com o princípio da
lesividade, um dos limites dentro dos quais a teoria do delito deve ser desenvolvida,
por ser o princípio mais importante dentro do Estado de Direito, já que “sua violação
importa o desconhecimento da essência do conceito de pessoa”23.
Quase que unanimemente a doutrina levanta a bandeira do “nulla poena
sine culpa”, porém, nem todos mantém-se fiéis ao conteúdo essencial do princípio,
por vezes sendo fácil notar a manutenção da nomenclatura, mas com a substância
totalmente desnaturada, em especial nas teorias funcionalistas mais modernas,
muito embora a abertura para o paulatino distanciamento que ocorreu entre a
categoria da culpabilidade na teoria do delito e o princípio da culpabilidade tenha se
dado bem anteriormente a essas concepções atuais.
Na verdade não é difícil perceber que as dificuldades práticas impostas
pelo necessário respeito ao princípio da culpabilidade foram, ao longo dos últimos
séculos, ocasionando elaborações teóricas que cada vez mais retornam a caminho
da responsabilização objetiva, tanto que até mesmo o dolo tem sido objeto de
normativização24. Aliás, se fosse representada a trajetória em um gráfico, seria uma
curva de Gauss quase completa25.
22 HASSEMER, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal. Trad. Francisco Muñoz Conde e Luis Arroyo Zapatero. Barcelona: Bosch, 1984. p. 270. 23 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. SLOKAR, Alejandro. ALAGIA, Alejandro. Derecho Penal. Parte General . 2a. Ed. Buenos Aires: Ediar, 2002. p.139 e 140. 24 Sobre o tema: “Esse salto de um conceito de vontade psicológico-descritivo para um conceito normativo-atributivo não é explicado com a devida clareza pela doutrina dominante; p.ex., declara Lackner que “[...] aqui a vontade incondicionada de realização decorre do agir apesar da certeza”; Roxin diz que aqui “pode-se dizer que a morte foi querida, apesar de não ser almejada” em PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa . Trad. Luís Greco. Barueri: Manole, 2004, p. 32 e ss; e ainda “La “decisión” a que aquí nos referimos no precisa por tanto ser un acto de la voluntad reflexivo del tipo de una “resolutión”. Quien cuenta con la possibilidad de un resultado típico y, a pesar de todo, ello no le hace desistir de su proyecto, se ha decidido así” em ROXIN, C. Derecho penal… p. 229. No Brasil, explicando essa tendência de normativização do dolo: “Ou seja, o dolo não é algo que existe, que seja constatável, mas sim o resultado de uma avaliação a respeito dos fatos que faz com que se impute a responsabilidade penal. Para esta tendência, o que se faz para determinar o dolo não é mais que atribuir ou imputar a alguém o conhecimento e a vontade de realização do fato delitivo. BUSATO, P. C. ; MARTÍNEZ- BUJÁN PEREZ, C. ; DÍAZ PITA, M. M. . Modernas Tendências sobre o Dolo em Direito penal. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 105. 25 Curva de Gauss é uma curva em forma de sino utilizada geralmente em gráficos para representar dados estatísticos.
32
1.3 Do conteúdo psicológico ao conteúdo normativo d a culpabilidade
O progresso histórico da teoria do delito passa principalmente pela evolução
da culpabilidade. Cada uma das fases de desenvolvimento da culpabilidade lhe
implicavam não apenas um conteúdo, como também lhe conferiam formatação
diversa. Assim se passou de uma responsabilização objetiva, quando não havia
culpabilidade, até se chegar à culpabilidade normativa, com a qual se trabalha hoje
nos sistemas jurídico penais.
1.3.1 Conteúdo psicológico da culpabilidade
Foi também no período medieval26 que a responsabilidade objetiva, ainda
muito influente naquele período, foi substituída pela culpabilidade de conteúdo
psicológico, muito embora ainda não houvesse a divisão sistemática que conferiu
autonomia à culpabilidade como estrato do crime, o que somente ocorreu no período
clássico.
Depois da afirmação do princípio da culpabilidade, na dogmática moderna,
a primeira construção teórica do delito foi a Teoria da Imputação. Desenvolvida no
século XIX, a Teoria da Imputação foi estruturada no pensamento Hegel. Para
concluir-se pela existência do crime, a análise era feita em três etapas.
Primeiramente era verificada a imputabilidade. Na segunda etapa, chamada
“imputatio facti” , havia dois aspectos a serem verificados: o externo ou objetivo, que
era a ligação entre a conduta e o resultado; e o aspecto subjetivo, que se tratava do
nexo psicológico. Finalmente na terceira fase dava-se a ‘imputatio juris” , que se
caracteriza hoje como a antijuridicidade. 27
A antijuridicidade passa, mais tarde, a ser analisada já no plano objetivo,
quando Liszt transporta a idéia de Ihering para os ilícitos criminais, esclarecendo que
“Crime é o injusto contra o qual o Estado comina pena e o injusto, quer se trate de
26 BUSATO, P. MONTES HUAPAYA, S.. op.cit. p. 145. 27 GUARAGNI, Fábio André. As teorias da conduta em Direito Penal. 2ª.ed. rev. e at. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 57 a 59.
33
delito do direito civil, quer se trate do injusto criminal, isto é, do crime, é a ação
culposa e contraria ao direito.” 28
Liszt conceituava crime como a ação ilegal culposa, acrescida da análise
sobre a punibilidade29. Em um primeiro momento, determinava-se o nexo causal e
seu confronto com a norma, para somente depois passar ao nexo psíquico que
determinaria ser o fato punível ou não. Assim, dividia-se o crime em dois lados,
objetivo e subjetivo.
Na mencionada obra de Liszt, de 1899, ao esmiuçar seu conceito de
crime, o autor analisa a existência de uma ação ilegal (aspectos objetivos), para
após analisar o que denomina de ação culposa (lato sensu), e justifica:
“Não basta que o resultado possa ser objectivamente referido ao acto de vontade do agente; é também necessário que se encontre na culpa a ligação subjetiva. Culpa é a responsabilidade pelo resultado produzido.”30
Havia, então, uma estruturação primária do delito que separava de um
lado todos os elementos tidos como objetivos e, de outro, aqueles considerados
subjetivos, sendo a culpabilidade o conjunto destes.31 Explicava Hans Welzel que
naquele momento residiu o começo da dogmática moderna, que divide externo e
interno, objetivo e subjetivo, sendo que o externo-objetivo formava a antijuridicidade
e o interno-objetivo a culpabilidade.32
Ou seja, do lado objetivo estava o injusto, ou a causação física de um
resultado socialmente danoso, e ainda não se diferenciava tipicidade de
antijuridicidade. Já o lado subjetivo compunha-se pela culpabilidade, causação
psíquica desse mesmo resultado, na forma de dolo (quando se representava ou
queria causar o resultado antijurídico) ou culpa (quando o resultado era
conseqüência de negligência, imperícia ou imprudência), e naquela época, segundo
narrou Beling, frequentemente se afirmava que apenas interessava a atitude
28 LISZT, Franz Von. Op. cit . p. 183. 29 LISZT, Franz Von. Op. cit . p. 183.: “D'estas definições resulta immediatamente a construcção systematica da theoria do crime. Devemos considerar o crime primeiramente como injusto, e portanto: a) como acção, b) como acção contraria ao direito, c) como acção culposa; ao que accresce d) a indagação da differença entre o injusto punível e o não punível. 30 LISZT, F. V. Op. cit . p. 249. 31 ZAFFARONI, E. R. PIERANGELI, J. H. Op.cit. .p. 573. 32 WELZEL, Hans. Derecho Penal. Parte General . Trad.Carlos Fontán Balestra. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1956. p. 151.
34
espiritual do autor em relação à execução do fato, tendo esta fase interna duas
graduações, que seriam a intenção e a negligência.33
Este modelo desenvolveu-se sob a perspectiva causal-naturalista, que por
seu método empírico obrigava a explicação dos conceitos da ciência penal através
de descrições, daí porque Zaffaroni comentar que naquela época “a culpabilidade
não era mais que a descrição de algo, concretamente, de uma relação psicológica,
mas não contém qualquer elemento normativo, nada de valorativo...”34, pois
buscava-se a maior aproximação possível das ciências do ser.
As premissas metodológicas da época, sob influência do positivismo,
pretendiam impor à análise científica uma absoluta neutralidade descritiva,
predominando um pensamento mecanicista e o dogma causal, que “diluíram de
forma redutiva a culpabilidade, convertendo-a em uma simples conexão causal
subjetiva simultânea e paralela ao nexo de atribuição objetivo”.35
Isto fica claro na obra de Liszt, pois não compunham a culpabilidade por
ele delineada quaisquer aspectos valorativos. Para ele, podiam ser conteúdo da
ação culposa o dolo ou a culpa strito sensu. Quanto ao dolo, Liszt adotava a Teoria
da Representação36, elencando como requisitos a representação do ato voluntário, a
previsão do resultado (quando necessário) e a representação da causalidade. Já
quanto à culpa strito sensu, eram seus requisitos, a falta de precaução quando do
ato voluntário e a falta de previsão, devendo apenas ser “possível” ao agente prever,
possibilidade esta que se extraía da capacidade mental afirmada.37
33 BELING, E.V. Op cit . p. 105 e 110/111. Este autor, contudo, considerava essa concepção estritamente psicológica um abandono do requisito da culpabilidade. 34 ZAFFARONI, E. R.. PIERANGELI, J.H. Op.cit. .p. 573. 35 FERNANDEZ, Gonzalo. A fundação da teoria normativa da culpabilidade . In REINHARD, Frank. Sobre la estructura del concepto de culpabilidad. Trad. Gustavo Eduardo Aboso. Montevideu-Buenos Aires: Editorial B e F y Julio César Faria Editor, 2004. 36 Ressalvando que à época não havia um desenvolvimento tão aprofundado, são teorias acerca do conteúdo do dolo, numa classificação mais moderna: Teorias da Vontade - Para elas, o dolo exige sempre um requisito de vontade. Partem de uma oposição entre o “querido”e o “não-querido”, na qual se fundamenta o desvalor diferenciado entre dolo e culpa. Mesmo aquelas que não se utilizam de tais expressões, mas propõem para ocupar o lugar do elemento volitivo, um substituto para a vontade, incluem-se nesse grupo. Vertentes: Teoria da Aprovação ou Consentimento, Teoria da Indiferença, Teoria da Vontade de Evitação Idônea, Teoria do Levar a Sério o Perigo da Realização do Tipo. Teorias da Representação – Propõem que a diferenciação entre dolo e culpa seja feita com base nos elementos intelectuais (de conhecimento). Para esse grupo de teorias, a disposição interna do autor com relação ao resultado não importa, bastando que se configure, dentro de certos parâmetros, construídos de forma diferente por cada uma delas, o elemento cognitivo. Vertentes: Teoria da Representação ou da Possibilidade, Teoria da Probabilidade. Em ROXIN, Claus. Derecho Penal... p.430 e ss; PUPPE, Ingeborg. A distinção… p. 45 e ss e JESCHECK, Hans Heinrich. Tratado de derecho penal. Parte General. Granada, 2002.p.321 e ss. 37 LISZT, Franz Von. Op. cit . p. 270 e 291.
35
Para o referido jurista, o dolo não compreendia a consciência da
ilegalidade e esta tampouco era requisito que o complementasse, o que, segundo
ele, se fosse requerido, paralisaria a administração da justiça sob o encargo de
comprovar esse conhecimento em cada caso. Era o entendimento do Tribunal do
Império Alemão daquela época e também não havia reconhecimento legal da
consciência da ilegalidade.38
O autor austríaco, entretanto, reconhecia uma exceção a esse
regramento, que se dava nos casos de estar incluída na qualificação legal do crime
a circunstância da ilegalidade, quando, então, deveria ser exigida, o que se deveria
fazer de modo estritamente objetivo, ou seja, sem análise da boa ou má-fé do
agente39.
Francisco de Assis Toledo afirma que a teoria psicológica da culpabilidade
elaborada como apresentado acima não pode ser suposta como “histórica e
cronologicamente a primeira que se construiu a respeito da culpabilidade”40, já que o
dolo no direito romano não era apenas psicológico:
Ao contrário, apresentava-se mais complexo e enriquecido. Distinguiam, com efeito, os romanos, duas espécies de dolo: o dolus malus e o dolus bônus. O dolus bônus era empregado para designar a astúcia, a sagacidade para enganar. O dolus malus era essa mesma astúcia quando empregada não simplesmente para enganar, mas para a obtenção de um proveito ilícito; era a intenção má, perversa, que dirigia um ato criminoso.41
Ou seja, este dolo era claramente um elemento anímico-intencional
avaliado como mal, perverso. E por isso pode-se identificá-lo como “valorado,
normativo, adjetivado de mau”. Porém, o positivismo colocou de lado qualquer
discussão que implicasse em considerações teleológicas ou filosóficas, como a
questão do determinismo ou do livre arbítrio, optando pelo primeiro,
desconsiderando o elemento da consciência da ilicitude, e foi isso que possibilitou
que a culpabilidade tomasse a forma puramente psicológica.42
A teoria psicológica da culpabilidade foi o formato que dominou a estrutura
desse aspecto do crime sob o panorama causal-naturalista, e como tal enfrentou
inúmeros questionamentos dos quais decorreram a sua superação.
38 LISZT, Franz Von. Op. cit . p. 285. 39 Idem. p. 286 e 287. 40 TOLEDO, F.A. op. cit. p. 220. 41 Id. 42 id.
36
Beling, por exemplo, analisando o entendimento do Tribunal Supremo
alemão daquela época, que admitia excepcionalmente a consciência da
antijuridicidade como requisito quando o texto da lei mencionava pressupostos de
antijuridicidade ou punibilidade, criticava que, tal interpretação decorria de pura
textualidade e não havia lógica em se ter o dolo em certos grupos de delito como
algo diferente do que era em outros.43
Reinhard Frank, em sua obra de 1907, apontou duas grandes
contradições da Teoria Psicológica. No caso do estado de necessidade,
considerando-se que culpabilidade era somente dolo e culpa, restaria
incompreensível a sua exclusão se o autor sabe exatamente o que faz.44 Sobre essa
contradição, Busato e Montes Huapaya explicam que “enfrentam-se aqui os casos
de estado de necessidade justificante e obediência hierárquica, pois nestes casos,
apesar de existir a relação psíquica, a reprovação ao autor do injusto desaparece”.45
Também na conduta de um doente mental haveria que se afirmar a
relação psíquica, estando preenchida a culpabilidade, razão pela qual o delito não
poderia ser negado, defeito que a teoria psicológica tentou contornar com a
definição da imputabilidade como pressuposto do crime. Frank expunha tratar-se de
contrassenso teórico, pois sendo a imputabilidade pressuposto da culpabilidade e o
dolo uma forma dela, como seria possível explicar haver dolo na conduta do doente
mental?46
Daí que a questão das causas de exclusão da pena existentes no Direito
Penal vigentes naquele momento histórico e da imputabilidade demonstravam
claramente que a culpabilidade era mais do que apenas as suas duas espécies de
vínculo psíquicos. 47
Mas uma lacuna teórica evidenciava-se nos casos de culpa
inconsciente48, já que nesta não se verificava vínculo psicológico a ser descrito, pois
sem ao menos haver previsibilidade por parte do agente, não era possível falar em
nexo subjetivo, ou “não é constatável relação psíquica com o resultado”.49
43 BELING, E. V. op cit. p. 112 e 113. 44 FRANK, Reinhard. Sobre La estructura Del concepto de culpabilidad. Trad. Gustavo Eduardo Aboso. Montevidéu: Julio Cesar Faira Editor, 2004. p.30 e 31. 45 BUSATO, P. C. HUAPAYA, J. M. op.cit. p. 147 . 46 FRANK, H. op. cit. p. 34. 47 Idem. p. 33. 48 LOBATO, J. D. T. op.cit. p. 303. 49 ROXIN, C. Op. cit. p.794.
37
Outra situação prática que identificava a falibilidade da teoria dizia respeito
à “impossibilidade de definir a tentativa”50. Como o esquema causal-naturalista de
análise do crime era irracional, não permitia, por exemplo, antes de seu segundo
momento, quando então se analisaria o vínculo subjetivo que constituiria a finalidade
da conduta, diferenciar uma tentativa de homicídio de uma lesão corporal, já que em
ambas o resultado antijurídico (analisado em primeiro lugar) é idêntico.51
Esses problemas da teoria psicológica da culpabilidade, aliados aos
demais que se viam como conseqüência da teoria causal-naturalista de crime,
ocasionaram o desenvolvimento da estrutura da culpabilidade, o que se deu sob a
perspectiva neokantista. Logo, “o antigo conceito de culpabilidade (dolo e culpa)
ficou para a posteridade só como princípio”52, princípio este que contraria a
imposição de responsabilidade objetiva.
1.3.1.1 A tese da irrelevância da consciência da il icitude.
Era própria das teorias psicológicas a concepção de que a ausência de
consciência da ilicitude não afetava a responsabilidade criminal, unanimidade que
apenas passou a ser contestada após o enraizamento do princípio da culpabilidade,
quando este passou a ser estudado com mais profundidade e enquanto “máxima
político-criminal fundamental”.53
Posteriormente, e justamente em razão do aprofundamento do princípio
da culpabilidade, a partir da distinção entre erro de fato e erro de direito, passou-se a
dar tratamento diverso excluindo-se o dolo nos casos de erro de fato e mantendo a
irrelevância apenas para o erro de direito.
Conforme explica Figueiredo Dias, no máximo o que se encontrava em
algumas legislações – como a italiana, por exemplo - eram limitações à incidência
dessa regra, ou relativamente a um grupo de pessoas ou para a o desconhecimento
da lei não penal ou extra penal, o que tinha como consequência a violação do
50 GUARAGNI, F.A. op cit . p. 89. 51 Idem. p. 90. 52 BUSATO, P. C. HUAPAYA, J. M. op.cit. p. 148. 53 DIAS, Jorge Figueiredo. Direito Penal… p. 491.
38
“princípio da culpa em todos os casos em que aquela falta não devesse ser
censurada ao agente”54.
Ao comentar a legislação portuguesa, Figueiredo Dias ressalta a
importância de que se preserve, em se tendo consagrado no ordenamento jurídico o
princípio da culpabilidade, todas as suas “consequências lógico-materiais” que a lei
expressamente não contrarie, concluindo que isso deve ser atendido especialmente
no que diz respeito à falta de consciência do ilícito. E a consciência da ilicitude
constitui elemento essencial ao juízo de culpa (lato sensu).55 Com essa conclusão, a
doutrina passou a incorporar nos elementos do dolo também a análise sobre a
licitude do fato, dando origem às teorias do dolo, que depois foram superadas pelas
teorias da culpabilidade, como se verá adiante.
1.3.2 Conteúdo psicológico-normativo da culpabilida de
Das críticas à teoria causal e com a ruptura do paradigma naturalista,
surgiram as primeiras vinculações do Direito Penal a concepções ético-sociais,
colocando estas como parâmetro principal na verificação da ocorrência do crime, já
que aos poucos os elementos do conceito de crime assim se condicionavam.56
Isso porque, conforme explica Zaffaroni, as dificuldades demonstravam
que a concepção do delito dividido em objetivo e subjetivo não condizia com a
realidade e tal incompatibilidade se dava pois “o conteúdo da vontade da conduta ia
parar na culpabilidade, e uma vontade sem conteúdo é inimaginável.”57
Assim, o conteúdo psicológico da culpabilidade foi ultrapassado já nas
primeiras décadas do século XX, sendo pioneiro o trabalho de Frank, que, como
visto, partiu da verificação de que no estado de necessidade exculpante o conceito
psicológico não era suficiente e também a imputabilidade não era pressuposto da
culpabilidade, mas a integrava.58
Na obra de Frank de 1907, já referenciada, ele introduziu ao conceito de
culpabilidade um elemento normativo, dando o primeiro passo para que se a
54 DIAS, Jorge Figueiredo. Direito Penal… p. 492. 55 Idem p. 493 e 494. 56 GUARAGNI, F.A. op cit. p. 96 57 ZAFFARONI, E. R.. PIERANGELI, J.H. op.cit..p. 376. 58 ROXIN, C. op. cit. p. 794-795.
39
concebesse como “reprovabilidade do ato praticado”59. Logo, a imputação seria a
culpabilidade formal, enquanto a reprovabilidade seria a culpabilidade material.60
Frank explica, em sua obra “Sobre a estrutura do conceito de
culpabilidade”, que a discussão sobre a essência do vínculo psíquico não importava
tanto, naquele momento, quanto a insuficiência da culpabilidade somente assim
caracterizada.61
Inicialmente, Frank identificou que as circunstâncias concomitantes, que
compunham o contexto fático no qual o ato criminoso era praticado eram utilizadas
nas decisões judiciais para a medição da culpabilidade e mesmo em sentido leigo
circunstâncias desfavoráveis significavam menor culpabilidade e, sendo assim, “era
estranho que essa interpretação comum básica não encontrasse eco na lei”.62
Ele exemplificava com o crime de infanticídio no caso da mulher solteira,
pois, a despeito do dolo, ela era considerada menos culpável, e seria uma
decorrência lógica que, se as circunstâncias podiam atenuar a culpabilidade,
também pudessem eventualmente chegar a excluí-la. Portanto, a conjuntura sob a
qual foi realizada a ação deveria ser sopesada.63
Assim como outros doutrinadores do mesmo período, Frank não se
contrapunha ao dolo e culpa como integrantes da culpabilidade, mas entendia-os
como elementos de um conceito mais amplo e complexo, que levasse em conta as
circunstâncias concomitantes, a imputabilidade e que exprimisse um juízo de
reprovabilidade ao autor, em retribuição ao comportamento proibido.
Por isso, o principal momento representativo do início da concepção
normativa da culpabilidade, que mais tarde se purificaria ao serem deslocados para
o tipo seus elementos psicológicos, se deu com o trabalho de Reihard Frank ao
definir culpabilidade como reprovabilidade:
“Na busca de uma expressão adequada que contenha os mencionados componentes do conceito de culpabilidade, não encontro outra melhor que reprovabilidade. Culpabilidade é reprovabilidade.”64
59 TOLEDO, F. A. op. cit. p. 223. 60 MEZGER, Edmund. Derecho Penal. Libro de estúdio. Parte general. Buenos Aires: Editorial Bibliográfica Argentina, 1958. p. 185. 61 FRANK, Reihard. Sobre La estructura Del concepto de culpabilidad. Trad. Gustavo Eduardo Aboso. Montevidéu: Julio Cesar Faira Editor, 2004. p. 25. 62 FRANK, H. op. cit . P. 28 e 29. 63 Idem.p 30 e 31. 64 Idem.p. 39.
40
É nesse momento, então, e a partir do panorama axiológico neokantista,
que a culpabilidade deixa de ser apenas o vínculo psicológico entre o autor e o
resultado, para englobar elementos normativos, cuja valoração corresponderia à
censurabilidade ou reprovabilidade. 65
Em resumo, a teoria frankiana assinalava que a culpabilidade compunha-
se por 3 elementos, sendo todos igualmente relevantes para sua verificação66: i) a
imputabilidade, que para ele poderia ser pressuposto da culpabilidade, mas via mais
vantagens em tê-la como integrante, configurada pela ‘normalidade mental do
sujeito’67; ii) a relação psíquica do autor com o fato (dolo ou culpa); iii) a normalidade
das circunstâncias sob as quais se atua, pois “o que é possível em geral, em um
caso particular pode ser impossível.”68
Transportados os conceitos para as noções utilizadas hoje na teoria do
crime, a normalidade mental seria a imputabilidade, a relação psíquica seria um dos
elementos subjetivos (dolo ou culpa), e a normalidade das circunstâncias seria a
exigibilidade de conduta conforme o direito.
O laço de união proposto entre esses elementos estava no conceito de
culpabilidade como reprovabilidade69, esta que para Frank parecia um resumo de
cada um dos seus componentes70. Para ser culpável, portanto, não mais bastava
atuar com dolo ou culpa, mas era preciso que, além disso, fosse censurável o ato ao
autor, do qual se exigia uma conduta conforme a norma71, tendo Frank partido da
idéia de atitude anti-social de Radbruch.72
Observe-se, no entanto, que o estrato da culpabilidade não perdeu seus
elementos psicológicos, mas apenas foi complementada por aporte normativo
necessário à solução das questões controversas que haviam decorrido da
concepção da teoria psicológica.
Também é importante apontar que em Frank o dolo permanece dolo
avalorado, ou seja, não contém em si a consciência da antijuridicidade73, o que ele
65 GUARAGNI, F.A. op.cit. p. 99. 66 FRANK, H. op. cit . P. 41. 67 ROXIN, C. op. cit. p. 795. 68 FRANK, H. op. cit . P. 41. 69 ROXIN, C. op. cit. p. 795. 70 FRANK, H. op. cit . P. 40. 71 TOLEDO, F. A. op. cit. p. 223. 72 LOBATO, J.D.T. op. cit. p. 303. 73 Idem. p. 304.
41
justifica74 em razão de não se poder admitir que, por exemplo, na legítima defesa
putativa, não haveria dolo. Além disso, se o legislador, na elaboração dos tipos
penais, respeita a ordem ético-social, pode presumir o desrespeito à norma de dever
quando afirmada a atuação consciente (dolosa), que permanece sendo reprovável
ante a ignorância da lei.
O conceito normativo teve um desenvolvimento ulterior muito importante
com Goldschimidt, deduzindo a reprovabilidade, que Frank não havia detalhado, da
infração de uma norma de dever.
Goldschmidt, assim como Freudenthal ao desenvolver a noção de
exigibilidade, tomou por base o trabalho de Frank com a proposição de responder
algumas perguntas: i) o que quer dizer a característica normativa da culpabilidade
(funda-se no suposto de fato psíquico ou é um 3o elemento)? ii) Sendo 3o elemento,
é uma característica positiva ou negativa (causa de desculpa)? iii) A culpabilidade
pode ser graduada e o fim é um elemento seu? E ainda que não seja um vício de
caráter, este é um fator determinante na culpabilidade?75
Baseado em Kant, Goldschmidt partiu da ideia de liberdade (como um a
priori) para concluir pela existência de uma norma de dever76 que impõe ao indivíduo
que se motive em conformidade com o ordenamento jurídico quando da
representação de que sua conduta pode resultar proibida e a reprovabilidade,
consequentemente, é “o não se deixar motivar pela representação do dever”77.
Claus Roxin, ao analisar o trabalho de Goldschmidt, explica que para
este último, junto à norma jurídica que determinava externamente a conduta, dando
a ela o caráter antijurídico, existiria uma norma de dever segundo a qual cada um
deveria “dispor sua conduta interna do modo necessário para que se possa
corresponder às exigências impostas pelo ordenamento jurídico à sua conduta
externa”, muito embora essa norma de dever pudesse ser quebrada sem
culpabilidade, quando das causas de exculpação, baseando estas na inexigibilidade,
74 FRANK, H. op. cit . P. 55 e ss. 75 GOLDSCHMIDT, James. La concepción normativa de la culpabilidad. Trad. Margarethe de Goldschmidt e Ricardo Núñez. Montevidéu-Buenos Aires: B de F Editor, 2002. p. 86. 76 Segundo ele, a norma juridica de ação dirige-se à conduta externa (antijuridicidade) e a norma juridica de dever dirige-se à conduta interna (culpabilidade). GOLDSCHMIDT, James. op. cit . p. 98. 77 DONNA, Edgardo A. Breve sínteses del problema de la culpabilidade nor mativa (prólogo ). in GOLDSCHMIDT, James. op. cit . p. 22.
42
casos em que desapareceria “o não deixar-se motivar pela representação do dever
apesar de sua exigibilidade e contrariedade ao dever”.78
Esse conceito de contrariedade ao dever, colocado no centro das teorias
sobre a culpabilidade também de Mayer e Dohna79, ganhou bastante relevância no
trabalho de James Goldschmidt, para quem a norma de dever deveria ser
independente e autônoma, repousando sobre ela a culpabilidade.
Em Goldschmidt, reprova-se o autor da conduta por esta ser a expressão
de que o motivo de obediência ao Direito sucumbiu, prevalecendo qualquer outro,
quando o motivo de obediência deve vencer, independente de qual seja ele e, por
isso, o teórico alemão falava80 que não há uma exigência de “pureza de
sentimentos”.
Apesar da concordância em muitos pontos, enquanto Frank declarava
supérfluo o conceito de causas de exculpação81, Goldschmidt via na motivação
anormal uma “situação extraordinária de motivação”82 e, enquanto tal, um
pressuposto negativo (causa de exculpação), ou seja, uma exceção à
reprovabilidade.
Os dois autores divergiram também relativamente à imputabilidade, que
para Frank era elemento da culpabilidade, integrando-a, enquanto para Goldschmidt
era pressuposto.83
Mezger, outro defensor da teoria psicológico-normativa, também via a
culpabilidade como um juízo de reprovação, concebendo o dolo como dolus malus,
ou seja, ao qual se integrava a noção de consciência da antijuridicidade. Porém,
esta formulação não foi uma inovação sua, conforme esclarece Francisco Muñoz
Conde:
Também o conhecimento da antijuridicidade como elemento do dolo ou da culpabilidade e, portanto, a relevância do erro de direito, ou em terminologia mais moderna, erro de proibição, como causa de exclusão ou atenuação da responsabilidade penal, pode considerar-se hoje como um dos aportes característicos da dogmática jurídico penal alemã da República de Weimar. Frente a uma jurisprudência do Reichsgericht, vinculada ao princípio "error iuris nocet" e que, portanto, considerava irrelevante o desconhecimiento da antijuricidade, a doutrina alemã, sobretudo a partir de Binding, mantinha que
78 ROXIN, C. op. cit. p. 796. 79 DONNA, E. op. cit. p.24. 80 GOLDSCHMIDT, James. op. cit . p. 91. 81 FRANK, R. op. cit . p. 52 e ss. 82 GOLDSCHMIDT, James. op. cit . p. 108 a 110. 83 FRANK, H. op. cit . p. 35. e GOLDSCHMIDT, James. op. cit . p. 140.
43
o conhecimento da significação antijurídica dos fatos era também um elemento integrante do conceito de dolo, concedendo ao erro sobre a antijuridicidade a mesma importância que o ero sobre os fatos.84
Outros exemplos anteriormente a Mezger, como Binding85 e Beling86,
traziam a consciência sobre a antijuridicidade do fato como elemento integrante do
dolo, muito embora sejam considerados como autores da Teoria Psicológica.
A estruturação do delito permanecia dividida em aspectos internos
(objetivos) e externos (subjetivos, psíquicos), isso porque
O homem tem uma dupla natureza, material e psíquica. Também sua conduta, na convivência humana, apresenta sempre, em consequência, um aspecto externo, perceptível fisicamente, e outro interno e psíquico. Não com toda exatidão, mas de forma compreensível e corrente, denominam-se, respectivamente, aspecto “objetivo e subjetivo do fato punível. Em tal sentido, todo fato punível contém necessariamente relações objetivas e subjetivas. Toda a teoria do delito está compenetrada deste contraste e dessa união.87
Para Mezger, não era possível negar que a reprovação pessoal ao autor
tinha um papel no terreno do ético88, sendo quem desenvolveu a noção de valoração
paralela na espera do profano, a qual será aprofundada quando do exame da
consciência da ilicitude, mas que, em resumo, afirma que a compreensão da
antijuridicidade não depende do conhecimento da lei, bastando para sua
configuração que o autor entenda o significado social de sua ação.89
Contudo, isso não excluía a importância da concepção jurídico penal de
culpabilidade, a qual, para o autor alemão, era formada pela vontade do fato e pelo
84 También el conocimiento de la antijuricidad como elemento del dolo o de la culpabilidad y, por tanto, la relevancia del error de derecho, o en terminología más moderna, error de prohibición, como causa de exención o de atenuación de la responsabilidad penal, puede considerarse hoy como una de las aportaciones características de la Dogmática jurídicopenal alemana de La República de Weimar. Frente a una jurisprudencia del Reichsgericht, aferrada al principio "error iuris nocet" y que, portanto, consideraba irrelevante el desconocimiento de la antijuricidad, la doctrina alemana, sobre todo a partir de BINDING, mantenía que el conocimiento de la significación antijurídica de los hechos era también un elemento integrante del concepto de dolo, concediendo al error sobre la antijuricidad la misma importancia que al error sobre los hechos. MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger y el derecho penal de su tiempo. 4ª ed. rev. e atual. Valencia: Tirant to Blanch, 2003. p. 58. 85 DONNA, E. in GOLDSCHMIDT, J. op. cit. p. 14. 86 BELING, E.V. op. cit . p. 110 e 111. 87 MEZGER, E. op. cit. p. 78 e 79. 88 MEZGER, E. op. cit . p. 195. 89 CRUZ, Flávio Antônio da. O tratamento do erro em um Direito Penal de bases d emocráticas. Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris Editor, 2007. p. 264.
44
conhecimento do fato, abrangendo este a ciência das diferentes circunstâncias
fáticas e ainda a consciência da antijuridicidade.90
Para ele, a consciência do injusto era não só um ponto de partida, como
também um elemento da culpabilidade, posição que poderia, na ausência desse
componente, ser ocupada pelo que chamou de “atitude hostil ao Direito”91.
Uma das críticas que se fazia à teoria era em razão de casos práticos nos
quais se verificava a que o agente sabia o que fazia, mas a noção de conduta
proibida não era por ele percebida. Um exemplo no qual Mezger admitia a presença
do dolo, porém não do conhecimento da antijuridicidade da conduta, era o caso dos
criminosos habituais, nos quais não se poderia afirmar a consciência atual da
ilicitude.92 Tentando contornar a falha da teoria psicológico-normativa neste ponto,
Mezger desenvolveu essa ideia de culpabilidade pela condução de vida:
Mas o direito vigente reconhece, ainda quando o autor não podia atuar de outra maneira, uma culpabilidade pela conduta de vida... Não é decisivo que o autor tenha podido atuar de outra maneira, senão que se tenha podido exigir dele uma conduta diferente.93
Outro autor que se destacou como defensores desta teoria psicológico-
normativa da culpabilidade foi Freudenthal, para quem a culpabilidade era
“contrariedade evitável ao dever jurídico do fato individual”94. Para ele, a reprovação
dependia da análise de como deveria ter o autor agido nas circunstâncias do caso
concreto, para que se pudesse afirmar a exigência de uma atuação diversa.95
Em todas as posições, nas quais o dolo é um capítulo da culpabilidade
(Frank), um pressuposto da culpabilidade (Goldschmidt), ou um componente
desvalorado dela (Mezger), ou qualquer possível variante, era fácil perceber a
heterogeneidade do conteúdo que esta teoria atribuía à culpabilidade.96 Houve uma
acentuação da característica normativa, mas manteve-se a mistura de elementos
psicológicos e valorativos, muito embora a identificação do dolo se desse de
maneira diversa.
90 MEZGER, E. op. cit . p. 247. 91 Idem. p. 251. 92 TOLEDO, F.A. op. cit . p. 226. 93 MEZGER, E. op. cit . p. 193. 94 LOBATO, J.D.T. op cit . p. 304. 95 DONNA, E. op. cit . prefácio em GOLDSCHMIDT, J. op. cit. p. 25. 96 ZAFFARONI, E. R.. PIERANGELI, J.H. op.cit .p. 574.
45
Portanto, o dolo, nesse período ainda localizado na culpabilidade,
abarcava os elementos cognitivo e volitivo, sendo que o primeiro era composto pelo
conhecimento do fato e pela consciência da ilicitude. Era o chamado dolus malus.97
Foi com Graf Zu Dohna que essa conformação começou a receber os primeiros
golpes decisivos para seu abandono.
Ainda sob a perspectiva neokantiana, Graf Zu Dohna contestou a
conformação do dolus malus, que continha em si a consciência da ilicitude,
apontando que a valoração do objeto (reprovabilidade) não poderia, logicamente,
estar inserida dentro do objeto valorado, crítica rebatida por Mezger com a invenção
da distinção do dolo enquanto situação de fato (objeto da valoração) e enquanto
forma de culpabilidade (juízo valorativo)98, resposta cuja ausência de sentido não
retirava a propriedade da observação de Dohna.
Mesmo assim, a teoria não conseguiu escapar às críticas. As principais
diziam respeito ao relativismo valorativo e sua desvinculação de categorias pré-
jurídicas, o que permitia que cada autor construísse um sistema dogmático diferente
e não havia um conceito de culpabilidade unitário que permitisse segurança teórica
do sistema, não raro estando os elementos em total desordem. Zaffaroni bem
resume a problemática ao afirmar que do ponto de vista sistemático, a teoria
psicológico normativa era uma teoria de “meio do caminho”99
1.3.2.1 Teorias do dolo e Teorias da culpabilidade
Dividem-se em dois grandes grupos as teorias que explicam a relação
entre dolo, consciência da antijuridicidade e culpabilidade, bem como as
consequências para a teoria do erro.
As chamadas teorias do dolo, segundo Mezger, seriam aquelas que
posicionavam a consciência da ilicitude dentro do dolo e este como elemento da
culpabilidade, sendo desenvolvidas dentro do período da culpabilidade psicológico
normativa, enquanto as teorias da culpabilidade seriam aquelas nas quais a
consciência da antijuridicidade é elemento à parte do dolo e este dirige-se tão
97 GUARAGNI, F. A. op. cit . p. 99. 98 MEZGER, E. op.cit . p. 190. 99 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. SLOKAR, Alejandro. ALAGIA, Alejandro. Derecho Penal. Parte General . 2a. Ed. Buenos Aires: Ediar, 2002. P. 664.
46
somente às circunstâncias de fato do tipo penal, concebidas a partir da Teoria
Finalista.100
Figueiredo Dias, ao explicar a controvérsia construtivo-sistemática entre
as teorias do dolo e da culpabilidade, afirma que para a primeira o agente só
responderá a título de dolo quando, além dos elementos típicos, ele representou
também o significado daquele conjunto factual para a ordem jurídica e conclui:
“A falta de consciência atual da ilicitude é igualada à falta de representação de um elemento constitutivo do tipo, o que só pode significar que a ilicitude é, de igual modo que o conhecimento do tipo, parte constitutiva do dolo”101
A conclusão do professor português, no entanto, inverte a lógica da
construção sistemática das teorias do dolo, pois não é o fato de que a consciência
atual da ilicitude é equiparada à consciência dos elementos típicos que permite a
conclusão de se tratar de um elemento do dolo, mas ao contrário: por ser elemento
do dolo é que o conhecimento exigido em ambos os casos era o mesmo, o que
inclusive posteriormente se verá ter sido o grande problema enfrentado pelas teorias
do dolo.
1.3.2.1.1 Teoria estrita do dolo
Para a maior parte dos autores102 anteriores à consolidação da Teoria
Finalista de Welzel, o dolo pertencia à categoria dogmática da culpabilidade e tinha
como um de seus elementos a consciência da antijuridicidade. Essa estrutura trazia
consigo algumas consequências lógicas.
Dentre esses efeitos lógicos necessários, era certo concluir que, se o
conhecimento requerido no dolo era atual, ou seja, precisaria estar presente no
momento do fato, a atualidade deveria abranger também a consciência da ilicitude.
Contudo, essa concepção tinha como implicação uma série de resultados práticos
indesejados, pois, se levado a risca, muitos crimes restariam impunes.
100 MEZGER, Edmund. Derecho Penal. Libro de estúdio. Parte general. Buenos Aires: Editorial Bibliográfica Argentina, 1958. p.252. 101 DIAS, Jorge Figueiredo. O problema da consciência…p. 146. 102 Por todos, MEZGER, Edmund. Derecho Penal. Libro de estúdio. Parte general. Buenos Aires: Editorial Bibliográfica Argentina, 1958. p. 193 e ss.
47
É que verificada a ausência de consciência atual, só restaria a
possibilidade de punição na modalidade culposa, desde que esta estivesse tipificada
e o erro fosse evitável, sendo que nos demais casos tornava-se obrigatória exclusão
do dolo e da culpabilidade, o que conduziria, sob umas perspectiva político-criminal,
a “lacunas de punibilidade insuportáveis.”103
Bajo Fernandez, ao comentar a teoria estrita do dolo no que se refere às
dificuldades dela decorrentes também ressalta que na falta da consciência atual, o
que justificaria a punição a título de culpa seria “a omissão do dever de cuidado
dirigido ao conhecimento da antijuridicidade do fato”104. O problema é que, na maior
parte das vezes, não havia previsão da modalidade culposa e, por essa razão se
falava em impunidade insuportável. Mas o que importa destacar nesse fato é que o
problema a ser resolvido poderia ser traduzido na seguinte pergunta: como punir os
casos em que o agente omitiu o cuidado dirigido ao conhecimento da antijuridicidade
do fato quando a modalidade culposa do crime a que se refere não for prevista?
Ou seja, a tarefa dos dogmáticos da época era encontrar uma saída para
que essa falta de cuidado devido relativamente ao conhecimento da antijuridicidade
fosse punida a título de dolo (já que não era possível introduzir uma modalidade
culposa em cada tipo penal existente) sem que isso expressa ou muito
evidentemente contrariasse o princípio da culpabilidade.
E diz-se importante de destaque essa questão porque, conforme será
visto adiante, foi justamente da busca para uma resposta desse questionamento que
se construiu a ideia de consciência da ilicitude potencial e, portanto, não é difícil
entender porque até hoje a maioria da doutrina a assenta no dever de informação.
Outro ponto que a teoria estrita do dolo não conseguia justificar a punição
daquele autor que, incorrendo a dúvida sobre a proibição, colocasse a si mesmo em
ignorância propositalmente, a chama ignorantia affectata do direito canônico,
segundo Francisco de Assis Toledo.105
103 DIAS, Jorge Figueiredo. Direito Penal… p. 495 e 496. Conferir também DIAS, Jorge Figueiredo. O problema da consciência da ilicitude em Direito Penal. 5a. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. p. 154 a 158. WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal. Trad. Luiz Regis Prado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 115 e 166. 104 BAJO FERNANDEZ, Miguel. El error de prohibicion en el derecho penal economi co . Disponível em http://www.miguelbajo.com/publicacion/normal/026.pdf. Pesquisado em 03.11.2012. 105 ASSIS TOLEDO, F. Princípios básicos… , p. 257.
48
1.3.2.1.2 Teoria limitada do dolo
Determinados a corrigir as incongruências oriundas das teorias estritas do
dolo, estabeleceu-se a necessidade de equiparar ao conhecimento atual sobre a
ilicitude todas as situações em que essa ausência decorra do fato das concepções
do agente serem “de todo incompatíveis com os princípios da ordem jurídica sobre o
lícito e o ilícito”.106
Assim, a teoria limitada do dolo buscava ser um aperfeiçoamento da
teoria extremada, e para tanto seus defensores encontraram fórmulas de presunção
da consciência da ilicitude.
Beleza dos Santos, citado por Figueiredo Dias, propunha a punibilidade
pelo delito na forma dolosa sempre que “o agente sabia que sua conduta era ilegal
ou socialmente imoral; ou, embora não o soubesse, todavia pudermos afirmar que,
se tivesse conhecimento daquela ilegalidade ou imoralidade, não teria deixado de
proceder como fez”.107
Claro que uma definição como essa é evidentemente impraticável, pois
além de se exigir uma suposição sobre o conhecimento do agente (se ele
soubesse), ainda seria necessário dela supor a consequência exata, em termos de
comportamento do agente, de tal conhecimento imaginado. E não é possível extrair
certezas de suposições questionáveis.
Outra saída para o problema desenvolvida dentro das Teorias do Dolo foi
a culpabilidade pela conduta de vida de Mezger108, que mantinha a concepção da
teoria extremada, ou seja, a consciência da antijuridicidade atual, mas, na sua falta,
a punição se justificava em razão da “inimizade ao Direito” ou da “cegueira jurídica”.
Dito de outro modo, essa “atitude hostil ao Direito” tinha o efeito de substituir a
consciência da ilicitude atual.109
São insubstituíveis as palavras de Mezger ao explicar a necessária sã
concepção do Direito que fundamentava a punição quando ausente a consciência da
antijuridicidade:
106 DIAS, Jorge Figueiredo. Direito Penal… p. 497 107 Id. 108 MEZGER, Edmund. Derecho Penal. Libro de estúdio. Parte general. Buenos Aires: Editorial Bibliográfica Argentina, 1958. p.256. 109 Id.
49
“Diremos, resumiendo, lo siguiente: en el derecho vigente, la forma básica jurídico-penal de la culpabilidad exige, con respecto a las circunstancias de hecho, sin excepciones, el dolo; y, con respecto a la antijuridicidad del hecho, exige el dolo o una actitud del autor incompatible con una sana concepción de lo que es el derecho y el injusto. Aquí se debe destacar nuevamente y con el mayor énfasis, que la "con- ciencia de la antijuridicidad" de que se trata significa siem- pre y solamente la injusticia del hecho total, y que no abar- ca nunca las distintas circunstancias de hecho (§59, párra- fo 1), aun en el caso de que las mismas sean señaladas, a este respecto, como características del deber jurídico"110
Concepções deste gênero implicavam em um Direito Penal de autor, que
resultava na punição do indivíduo pelo que ele é e não pelo fato específico
praticado.
E ainda que em muitos autores não se identifique, foi também dentro da
teoria limitada do dolo que se deu o desdobramento da consciência atual da ilicitude
para a consciência potencial, o que geralmente – e equivocadamente- é atribuído à
teoria extremada da culpabilidade e como consequência da Teoria da Ação Finalista.
Claudio Brandão, citando Córdoba Roda, afirma que a potencial
consciência da ilicitude teve como ponto de partida o Projeto Gürtner, um projeto de
1936, cuja redação dizia:
“Actúa dolosamente quien lleva a cabo el hecho con conciencia y voluntad, siendo conciente de obrar el injusto o de infringir la ley (parágrafo a, párrafo 2)... El error es relevante si se basa en una actitud que es incompatible con una concepción sana de Derecho y injusto(parágrafo b)”111
Não apenas a leitura da redação do projeto, que claramente adere à
concepção de Mezger que, ao contrário, não admitia a consciência potencial, mas o
estudo da obra do próprio jurista alemão demonstram que a ideia de consciência da
antijuridicidade potencial teve outra origem.
A constatação é bem evidente em Mezger quando, tratando do
conhecimento da antijuridicidade da ação requerido no dolo, analisava as
divergências doutrinárias da época a respeito do objeto de conhecimento da e
destacava a existência de quatro grupos distintos112, dentre os quais aquele que
110 MEZGER, Edmund. Derecho Penal. Libro de estúdio… p.255. 111 BRANDÃO, Cláudio . A consciência da antijuridicidade no moderno Direit o Penal . Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 34, n.136, p. 55-61, 1997. 112 O primeiro grupo exigiria no dolo o conhecimento da antijuridicidade, e este “exigiria do sujeito um juízo jurídico da ação”. O segundo grupo exige no dolo a consciência de que se atua contra um dever, mas num sentido não jurídico e sim “como oposição aos mandados da ética, da moral, dos costumes,
50
defendia “um desconhecimento culposo da antijuridicidade ou da natureza contrária
ao dever da conduta” e, na mesma linha, segundo o autor alemão, “Com frequência
se fala também, em igual sentido, da possibilidade do conhecimento da
antijuridicidade ou da possibilidade de conhecer o caráter contrário ao dever da
conduta”.113
Mezger apontou que o dolo (na época uma das formas de culpabilidade),
para esta concepção, “para ser culpabilidade, deve ser, pelo menos,
desconhecimento culposamente produzido” [grifou-se], explicação que extraiu,
conforme referências114, das obras de Merkel, Frank e Hippel, dentre outros.
A percepção interessante nessa crítica, já apontada no item anterior, é
justamente a forma como a “potencial consciência da ilicitude” foi inicialmente
construída, com base na noção de uma atuação negligente, que, portanto,
pressupunha um dever geral de atenção ao Direito.
Outro jurista que demonstra essa compreensão comum à época, no
sentido de que o agente que poderia saber que o que faz é errado deveria ser
reprovado pela atuação displicente em relação ao Direito, é Eduardo Correia,
mencionado por Figueiredo Dias. Para aquele autor português, quando inexistisse
consciência do ilícito, o agente mesmo assim deveria ser punido a título de dolo
(“ainda que, em rigor, a censura do facto seja a da mera negligência”) sempre que
se verificar “uma particular culpa na formação ou na preparação da
personalidade”.115
da cultura, etc”. O terceiro grupo está explicado no neste parágrafo da presente pesquisa e o quarto seria aquele que ainda naquela época se vinculava ao error iuris nocet e considerava irrelevante a consciência da ilicitude. MEZGER, E. Tratado de Derecho Penal... p. 144 a 150. 113 MEZGER, Edmund. Tratado de Derecho Penal. Madrid: Ed. Revista de Derecho Privado, 1957. P. 146. 114 As referências apontadas por Mezger na nota de rodapé 29 são, in verbis: “En este sentido: Adolf MERKEL, Lb.(1889), 67-69. M. E. Mayer en los pasajes citados sub 2. Max Rümelin: Das Verschulden in Strafund Zivilrecht (1909), 26, 34, y ZStW. 41, 495. FRANK. § 59, III, 2. De manera muy clara, después de haber sostenido antes en la VDA., III, 592-593, una opinion algo distinta, ahora tambien v. HIPPEL: Straf, II, 344-346 y siguientes, y de modo parcial (*) en los casos en que el delito, con arreglo a la interpretación, consiste en un ataque consciente contra el ordenamento jurídico, como ocurre en los §§ 242, 263, 253 del Código Penal común y en el § 134, número I, de la Ordenanza aduanera, etc. (340). La conjunction de dolo y culpa que en la página 342, nota 4, de la obra de v. Hippel (Strafrecht, II) se considera como de Derecho positive, no aparece demonstrada – abstracción hecha de los nuevos preceptos de la Ordenanza sobre el error y de la Ordenanza tributaria del Reich -, puesto que precisamente no se da en el § 259 del Código. Véase sobre el total problema también HEIMS: ZStW., 40, 380 y siguientes, 743 y siguientes, y 41, 74 y siguientes.” . MEZGER, Edmund. Tratado de Derecho Penal. Madrid: Ed. Revista de Derecho Privado, 1957. P. 146. 115 DIAS, Jorge Figueiredo. Direito Penal… p. 498.
51
Também da leitura da obra de Welzel do mesmo período é possível
extrair essa relação de paralelismo ao crime culposo sob a qual a potencial
consciência da ilicitude foi formulada, observe-se:
Una excepción poco tenida en cuenta en su significado la constituyen, ciertamente, los delitos culposos. En ellos, desde hace mucho, se ha reprochado al autor la lesión de diligencia, solamente cuando conoció su deber objetivo de diligencia o pudo conocerlo con la diligencia necesaria (compárese RG., 60-408, 61-429, para el alcance del deber del juramento en el 163). En cambio, el Tribunal Supremo alemán ha rechazado, decididamente, hasta en los últimos tiempos, las consecuencias correspondientes para la reprochabilidad del dolo @G., 2-269).116
Welzel, no parágrafo anterior a este, comentava sobre a dificuldade
enfrentada até que se quebrasse o preceito do error iuris nocet, pois havia sempre
um temor de que isso implicaria em uma escusa absolutória cômoda e, por isso, por
tanto tempo se impediu o “reconhecimento da consequência logicamente obrigatória
do conceito de culpabilidade”117
Então, o autor alemão critica a demora deste reconhecimento
comparando com os crimes culposos, nos quais o dever de cuidado só poderia ser
imputado ao agente quando o conhecia ou “poderia conhecê-lo com a diligência
necessária”. Ou seja, o “poder conhecer” depende de uma atitude diligente, que
quando não existe (negligência), justifica a punição do crime culposo. Assim,
também a falta de conhecimento da antijuridicidade quando “podia conhecer” se
não tivesse sido displicente, justificaria a punição no dolo. Tanto que Welzel usa a
expressão “consequências correspondentes para a reprovabilidade do dolo”. [grifou-
se]
Em outra passagem, ao comentar a reprovabilidade nas teorias da
culpabilidade, novamente Welzel volta a referir que o “poder conhecer” dependeria
de uma conduta do autor, anteriormente ao fato, não negligente, quando falava “pero
puede conocerla con alguma diligencia.”118 [grifou-se]
Ainda que num segundo momento de sua teoria se observe a tentativa de
Welzel de fugir dessa intersecção entre culpa (strito sensu) e erro evitável (potencial
consciência da ilicitude), a explicação não convence. Veja-se: quando criticando a
116 WELZEL, Hans. Derecho Penal. Parte General . Trad.Carlos Fontán Balestra. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1956. p. 172. 117 Id. 118Id.
52
proposta de punir a título de culpa todas as lacunas inadmissíveis que derivavam
das concepções da teoria do dolo, pois isso ampliaria de forma desmedida a
punibilidade, Welzel afirmava que “Essa proposta ignora, em princípio, as profundas
diferenças entre o erro de proibição evitável e a comissão culposa do fato”, diferença
que residiria, segundo ele, no fato de que no erro evitável o conteúdo da vontade é
dirigido a um fim ilícito, enquanto na comissão culposa o conteúdo da vontade seria
irrelevante.119
Luiz Regis Prado, tradutor da obra welzeliana referenciada, rebate o
argumento com total clareza e propriedade quando explica, na nota de rodapé 29,
que “Essa afirmação de Welzel não me parece de todo exata, pois de sua
concepção de injusto dos delitos culposos deriva-se logicamente a consequência de
que a vontade de realização do autor é irrelevante no que diz respeito ao fim, mas
não em relação aos meios e à forma de utilização”.120
E também porque, logo em seguida, o próprio Welzel mantém a
afirmação, ao analisar a reprovabilidade dentro da Teoria da Culpabilidade, de que
“O autor encontra maiores dificuldades não quando conhece a antijuridicidade, mas
poderia conhecê-la com um pouco mais de cuidado”121 [grifou-se].
Uma conclusão inicial básica que se pode inferir de todas essas
verificações é a de que sempre que se trabalhar com uma consciência da ilicitude
potencial, a punição somente se legitima a partir de um dever do autor frente ao
Direito, que, diga-se desde logo não pode ser o dever geral de informação, mas
pode ser construído de outra maneira, como se verá no capítulo seguinte.
Mais interessante ainda, para esta pesquisa, é notar o apontamento feito
por Mezger de que tais teorias haviam sido construídas a partir das teses
encontradas na “Ordenanza sobre el error de 1917” e no parágrafo 395 da
“Ordenanza tributaria del Reich”. Esclareça-se que este parágrafo 395 do Código
Tributário do Império trata possivelmente do crime de sonegação de imposto. E a
solução que se procurava era justamente em função “do imenso número de
Ordenações em matéria econômica e de leis sobre impostos”.122
119 WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal. Trad. Luiz Regis Prado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 119. 120 Id. 121 Idem. p. 123. 122 MEZGER, Edmund. Tratado de Derecho Penal… p. 144 a 146.
53
Merkel, citado por Mezger como um dos precursores da consciência
potencial da ilicitude, explicava que algumas leis inclusive pressupunham já a
consciência da ilicitude, ainda que permitissem ao autor contraprovar essa
presunção, e cita como exemplos dessas leis, dentre outras, a lei sobre aduanas, a
lei de imposto sobre aguardente e a lei das sociedades por ações. Merkel salientava
que “O Estado combate e apena normalmente determinados modos de agir porque
lhe parecem danosos e puníveis e, por conseguinte, em atenção a propriedades que
não dependem de suas próprias prescrições e do conhecimento que delas tenha o
agente”123
Ou seja, a potencial consciência da ilicitude originou-se de uma tese
trabalhada para um grupo de delitos que, em geral, não se encaixam na regra da
valoração profana e que, portanto, exigem o dever de informação. A potencial
consciência da ilicitude foi uma construção dogmática necessária aos crimes de
natureza econômica ou de natureza correspondente que ensejassem as mesmas
dificuldades práticas. E mais, por isso mesmo parece correto afirmar que a potencial
consciência da ilicitude, enquanto expressão de um erro evitável, dependerá
sempre, para ensejar reprovabilidade, do dever de se informar como fundamento
para a punição do agente.
Esse dever de se informar não é geral, porque a atuação em erro evitável
não é a regra, mas apenas uma forma de conciliar a necessidade de punição ainda
quando não exista a efetiva consciência da antijuridicidade. A não ser que se
pretenda concluir que a culpabilidade é construída com base na suposição de que a
regra é a atuação errônea, o que não pareceria ter sentido em termos de se exigir
punição se todos erram da mesma maneira.
E aqui abra-se um parênteses para comentar que as dificuldades relativas
à conciliação entre direito penal econômico e princípio da culpabilidade despontam
desde a época da Teoria psicológica, tanto que Beling, ao comentar o
estabelecimento definitivo da regra da nulla poena sine culpa, firmemente
expressava não haver qualquer exceção a este princípio, “salvo no Direito Penal
Financeiro, ver Ord. Imp. 357”.124
123 MERKEL, Adolf. Derecho Penal. Parte general . Trad. Pedro Dorado Montero. Montevidéu – Buenos Aires: B de F, 2004. p. 70 e 71. 124 BELING, Ernst Von. Esquema de derecho penal… . p.63.
54
Retomando-se para finalizar, o problema central do grupo das chamadas
teorias do dolo está inicialmente na não identificação de que dolo e consciência da
ilicitude exigem classes distintas de conhecimento para sua configuração.125 Num
segundo momento, identificado isso, suas soluções não conseguiam transpor a
barreira da culpabilidade estruturada tendo o dolo como seu constitutivo, o que levou
a propostas inaceitáveis que se fundavam em um direito penal de autor.
1.3.3 Conteúdo normativo da culpabilidade
A superação definitiva da concepção ‘complexa’ de culpabilidade, como
Maurach se referia ao conceito de Frank e Goldschmidt em razão de envolver
elementos psicológicos e normativos126, se deu através da elaboração da Teoria
Final da Ação.
Buscando combater a distorção que existia entre os conceitos da doutrina
causal e a realidade, Hans Welzel, ao invés de buscar seu fundamento filosófico no
idealismo neokantiano, procurou estruturar seu sistema numa matriz realista do
conhecimento. Ou seja, a própria realidade perceptível pelos sentidos é o objeto do
conhecimento, e qualquer ciência, inclusive a Ciência Penal, vincula-se, portanto, ao
mundo do ser ou das coisas:
O ordenamento jurídico pode determinar por si mesmo quais elementos ontológicos quer valorar e lhes vincular consequências jurídicas. Mas não pode modificá-los (os elementos em si) se os configura nos tipos. Pode designá-los através de palavras, assinalar seus caracteres, mas eles próprios constituem o elemento individual, material, que é a base de toda valoração jurídica possível. Os tipos podem apenas refletir esse material ontológico, previamente dado, descrevê-lo lingüística e conceitualmente, mas o conteúdo dos reflexos lingüísticos e conceituais só pode ser manifestado mediante uma profunda compreensão da estrutura essencial, ontológica, do elemento material em si mesmo. Daí se conclui, para a metodologia, que a Ciência do Direito Penal deve partir sempre, sem dúvida, do tipo..., mas deve em seguida transcendê-lo e descer à esfera ontológica, previamente dada, para compreender o conteúdo das definições e para (...) compreender também corretamente as valorações jurídicas.127
Quer significar que, para a Teoria Finalista, existem estruturas
preexistentes à Ciência do Direito Penal, conceitos que devem ter suas 125 WELZEL, H. Derecho… p. 174. 126 GUARAGNI, F. A. op. cit. p. 89 127 WELZEL, Hans. O Novo Sistema Jurídico-penal . São Paulo: RT, 2001. p. 13.
55
características definidas de modo empírico. Tais estruturas devem ser respeitadas
em sua forma e essência quando da sistematização do conceito de crime, pois do
contrário o Direito Penal não estará regulando condutas humanas.
Por isso, Welzel observou a estrutura lógico-objetiva da conduta e a
descreveu. Para tanto, dividiu a ação em duas fases, uma interna e outra externa. A
primeira delas, fase interna, se dá na “esfera do pensamento”, compondo-se de dois
momentos principais. Inicia-se com a proposição de um fim, o qual caracteriza a
finalidade da conduta. Segue-se a esse momento a escolha dos meios para
realização do fim proposto, formando-se a vontade de realização, que seria o
dolo.128 Essa escolha dos meios se faz tendo como base a capacidade que o autor
da conduta tem de prever a causalidade, de forma que, segundo Welzel:
O autor determina, com base em seu saber causal e em um movimento de retrocesso a partir do fim, os fatores causais que são necessários para sua consecução, inclusive aquele movimento corporal com o qual pode pôr em marcha toda a cadeia causal (meios da ação). Esse processo mental é chamado retrocesso, porque o fim está já determinado e é partindo dele que se leva a cabo a seleção dos fators causais necessários como meios da ação.129
Dessa estrutura da ação podemos inferir que o dolo é uma espécie de
vontade de realização, ou, nas palavras de Welzel “a vontade de realização das
circunstâncias de fato de um tipo legal”.130 Sendo a vontade elemento da ação e
sendo o tipo a descrição de ações humanas, tem-se que o dolo como elemento do
tipo penal e não mais da culpabilidade.
Ou seja, a partir dessas conclusões, o dolo, que até então fazia parte da
culpabilidade nas construções causais do crime, passa a pertencer ao tipo, como
seu elemento essencial:
O dolo e a falta de dolo não fundamentam tão-somente diferenças na culpabilidade – isso o fazem também, mas apenas de modo secundário – mas, em primeiro lugar, fundamentam as estruturas sociais diferentes de ação.131
Deve ser ressaltado, desde já, que a doutrina finalista em nenhum
momento pretendeu afastar por completo dolo e culpabilidade. A culpabilidade 128 WELZEL, Hans. O Novo Sistema Jurídico-penal ... p.13. 129 Idem. p. 28. 130 Idem. p. 36. 131 Idem. p. 43.
56
caracteriza-se no finalismo como reprovabilidade, e por isso é tida como uma carga
de valor negativa que se atribui à determinada ação humana. Por ser predicado da
ação, reflete-se sobre todos os seus componentes, dentre eles o dolo. A mudança
se dá no sentido de que o dolo, antes elemento formador da culpabilidade, agora, a
partir da Teoria Finalista da ação, passa a ser apenas qualificador de uma maior ou
menor culpabilidade. Nesse sentido:
A culpabilidade é um conceito valorativo negativo e, portanto, um conceito graduável. (...) Com base nesse critério, a vontade de ação possui (ou é portadora de) uma culpabilidade maior ou menor, é mais ou menos culpável, mas ela mesma não é a culpabilidade.132
Foi a Teoria Finalista da ação, então, vinculando a dogmática penal a
estruturas lógico-reais, uma verdadeira reação ao pensamento neokantiano, no
sentido de que era “necessário estabelecer limites ônticos ao legislador.”133
Para Welzel, culpabilidade era “a reprovabilidade da formação da
vontade”134, e, somente quando o homem atua com vontade lhe pode ser
empregado um reproche, por isso, “culpabilidade é culpabilidade de vontade”135,
muito embora se possa falar que tanto a vontade como a totalidade da ação são
culpáveis.
Na construção welzeliana, dois aspectos são fundamentais, que são: (i) o
fato da ação de vontade do autor não ter sido como demandava o direito e isso (ii)
apesar de que ela poderia ter se realizado adequadamente à norma e “nesta dupla
relação do não dever ser antijurídico frente ao poder ser adequado ao direito radica
o caráter específico da culpabilidade”.
Ou, em outras palavras: “A culpabilidade não se conforma com esta
relação e faz uma reprovação pessoal ao autor por não ter omitido a ação
antijurídica, apesar de ter podido omitir”.136
Welzel, que claramente buscava suporte na psicologia para estruturação
de seus conceitos, explicava que o processo de escolha do motivo que origina a
ação se dá em razão do sentido de valor. Surgindo os impulsos, há a escolha de um
em detrimento de outros com menor sentido de valor.
132 WELZEL, Hans. O Novo Sistema Jurídico-penal . p. 89. 133 GUARAGNI, F.A. op. cit. p. 125. 134 WELZEL, H. Derecho… . p. 152. 135 Id. 136 Idem p. 148.
57
Os atos da função do eu transcorrem no âmbito do sentido, não no da força causal: os motivos de pensamento e vontade são os fundamentos materiais, vale dizer, os não causais, sobre os quais se apoiam, segundo o sentido, os atos d pensamento e vontade. Neste processo é admitido o impulso valioso, mas desprezado o conteúdo de estímulo contrário ao valor. Somente o que nos estmula e arrasta um instinto, uma aspiração, um interesse, pode converter-se na meta de uma decisão de ação, seja instintiva ou adequada ao sentido. Mas a significação insubstituível da função de direção da vontade dirigida pelo sentido, consiste em que se abra a porta a uma orientação de nova índole da vida humana, de acordo com o sentido e valor, e possibilita desse modo ao homem a regulação de seus impulsos, o que lhe é dado como tarefa responsável, depois de anular os impulsos biológicos.137
Essa concepção se fundava antropologicamente na liberdade de vontade
e contrapunha-se à noção darwiniana de homem como um ser puramente
biológico138 (mais um entre os animais). E essa liberdade, na teoria finalista,
corresponde à possibilidade de poder se autodeterminar de acordo com o sentido139,
porém, o sentido que deveria ter para ele (o sentido que o Direito adota como certo)
e não o que de fato tem. Essa capacidade é pressuposto existencial da
reprovabilidade e independe de se o autor atua ou não.
A Teoria Finalista deslocou os elementos psicológicos que formavam a
culpabilidade – dolo (agora já natural) e culpa – para o tipo penal, reposicionando o
dolo que em Graf Zu Dohna estava apátrida140, e somente então se pôde falar em
verdadeira teoria normativa da culpabilidade141, já que nesta restaram apenas os
elementos valorativos: imputabilidade, consciência da ilicitude e exigibilidade de
conduta diversa, ou seja, todos os necessários à formação da vontade adequada
num determinado caso concreto.142
137 Los actos de la función del yo trascurren en el ámbito del sentido, no en el de la fuerza causal: los motivos de pensamiento y voluntad son los fundamentos materiales, vale decir, los no causales, sobre los cuales se apoyan, según el sentido, los actos de pensamiento y voluntad. En este proceso es admitido el impulso valioso, pero es desplazado el contenido de estímulo del impulso contrario al valor. Solamente aquello hacia lo que los estimula y arrastra un instinto, una aspiración, un interés, puede convertirse en la meta de una decisión de acción, sea instintiva o adecuada al sentido. Pero la significación insustituíble de la función de dirección de la voluntad dirigida por el sentido, consiste en que abre la puerta hacia una orientación de nueva índole de la vida humana, de acuerdo con el sentido y el valor, y posibilita de ese modo al hombre la regulación de sus impulsos, la que le es dada como tarea responsable, después de anular los instintos biológicos. WELZEL, H. Derecho… p. 157. 138 LOBATO, J.D.T. op. cit . p. 309. 139 WELZEL, H. Derecho… p. 161 a 168. 140 Idem p. 150. 141 ZAFFARONI, E.R. PIERANGELI, J.H. op.cit . p. 575. 142 WELZEL, H. Derecho… p. 169.
58
Construindo sua teoria da ação a partir do conceito de conduta captado
diretamente no mundo do ser, consolidou-se a teoria normativa pura da
culpabilidade, somente ganhando novos contornos pelas construções pós-finalistas
que se desprenderam das estruturas ontológicas que fundamentavam o sistema de
Welzel, e vão dar origem à teoria limitada da culpabilidade, que será analisada em
momento mais adiante.
1.3.3.1 Teoria extremada da culpabilidade
A teoria finalista da ação, ou o sistema de análise de crime dela derivado
finalmente (em ambos os sentidos) ultrapassou o entrave que a obrigatória
separação entre elementos objetivos e subjetivos impunha, deslocando o dolo, após
lhe ser extirpada a consciência da ilicitude, para o tipo. Assim, como teoria da
culpabilidade, a teoria extremada trabalha com a separação dos conceitos de dolo e
de culpabilidade, o que foi possível a partir dessa eliminação da categoria da culpa
(lato sensu) dos elementos psicológicos que até então a compunham, para alguns
autores como elemento e para outros como a própria forma de culpabilidade.
Esta teoria, segundo Figueiredo Dias, “repousa num puro axioma
construtivo sistemático: o de que o dolo ... se esgota em sede de tipo de ilícito
subjetivo e a culpabilidade se traduz em um mero juízo de censura e dela não faz
parte o objeto da valoração”.143
Segundo Welzel, idealizador da teoria extremada da culpabilidade, o dolo
é objeto de valoração da culpabilidade e essa vontade é reprovada quando o autor
poderia ter chegado ao conhecimento da antijuridicidade e este então converter-se-
ia em contramotivação. A falta da consciência impossibilita seja afirmada a
culpabilidade, constitui erro de proibição, não exclui o dolo e, com isso, permite a
punição dos partícipes.144
O jurista alemão afirma que a teoria da culpabilidade “baseia-se no
princípio da responsabilidade”, isso porque considera que “o homem tem a
responsabilidade de correção de sua decisão, na medida de sua capacidade de
143 DIAS, Jorge Figueiredo. Direito Penal… p. 499. 144 WELZEL, H. Derecho… p. 175 e 176.
59
conhecimento ético social” 145, mas não parece incorreto afirmar que essa
responsabilidade de correção da decisão surge com o efetivo conhecimento, e
somente surgiria do desconhecimento (como conhecimento potencial) ante um outro
fundamento.
Independente disso, a teoria extremada apresenta, na análise do erro,
conclusões muito lógicas, tomando-se por base para a distinção entre erro de tipo e
erro de proibição o objeto do erro.146 Assim, o erro de tipo recai sobre os elementos
que constituem o tipo, resultando na exclusão do dolo. O erro de proibição, por outro
lado, afeta a consciência da ilicitude, afastando a culpabilidade.
Relevante, dentro do conteúdo pesquisado sobre a teoria da culpabilidade
extremada, é notar a referência de Welzel sobre a aceitação dessa teoria naqueles
meados do século XX, que já se dava por importante parcela da doutrina, ainda era
recusada pelo Tribunal Supremo Alemão, que trabalhava sob a regra do error iuris
nocet (com respaldo no Código Penal da época, que não trazia dispositivos sobre o
erro de proibição), mas ainda assim foi reconhecida legalmente pela primeira vez
justamente na Lei Penal Econômica, em seu artigo 6o.147 Não é difícil entender que
se a demanda de correção da teoria do dolo surgiu justamente em função de crimes
desta natureza, para os quais a consciência potencial adequa-se perfeitamente e
torna viável a reprovação, não surpreende que tenham sido as primeiras legislações
a apoderarem-se de tal solução.
1.3.4 Culpabilidade nas teorias funcionalistas.
Consagrada por Claus Roxin, a concepção funcionalista estabeleceu-se
com a premissa de que toda a estrutura teórica do delito “deve ser observada,
desenvolvida e sistematizada sob o ângulo de sua função político-criminal”148
Assim, enquanto no esquema welzeliano as composições sistêmicas
vinculavam-se às estruturas lógico-reais, nas doutrinas pós-finalistas dominantes
145 WELZEL, H. O novo sistema… p. 117 e 118. 146 BITENCOUT, C.R. Tratado de Direito Penal… p. 380. 147 Ao expor a bibliografia utilizada naquele capítulo, Welzel traz essa informação e referencia a respeito dela Eb Schmidt, SJZ 48, 574; 50, 837. WELZEL, H. O novo sistema … p. 123. 148 ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal . Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 29.
60
(funcionalistas), a elaboração dos preceitos jurídico-penais se direciona pela função
que se atribui à pena e ao Direito Penal como um todo.
Roxin justifica que o Direito Penal deve ser elaborado com base em suas
finalidades valorativas, pois isso garante, de antemão, a coerência do sistema e
suas consequências:
Se deve partir da tese de que um moderno sistema de Direito penal há de estar estruturado teleológicamente, ou seja, construído atendendo a finalidades valorativas. Pois se a solução sistemática correta aparece como resultado de uma valoração prévia, estará garantido de antemão a concordância entre a consequência (congruência) sistemática e a correção material pretendida, cuja falta deu lugar a tantas dificuldades. 149
Também Jakobs adere à perspectiva funcionalista do sistema. Partindo
do pressuposto de que cada indivíduo deve guiar seu comportamento conforme seu
papel social150, explica que “junto ao sistema da natureza, determinado por leis
causais, aparece um sistema criado com intenção prática e configurado por leis do
dever ser”151 e, se o mundo normativo configura um sistema próprio, todos os
conceitos de Direito Penal seguirão a mesma lógica:
“o mundo normative configure um sistema próprio que, especialmente, não é identico ao mundo ordenado em função da satisfação ou insatisfação do indivíduo, e decide autonomamente quais são os processos no mundo dos sentidos que são relevantes para o mundo normative e qual é o significado de que se trata. Este desenvolvimento dos conceitos do Direito desde seu caráter normative a ideia da normativização, que se mostrará no que segue em alguns - desde logo não todos – dos conceitos da teoria jurídico-penal da imputação.152
149 Se debe partir de la tesis de que un moderno sistema del Derecho penal há de estar estructurado teleológicamente, o sea construido atendiendo a finalidades valorativas. Pues si la solución sistemáticamente correcta aparece como resultado de una valoración previa, estará garantizada de antemano la concordância entre la consecuencia (congruencia) sistemática y la corrección material pretendida, cuya falta ha dado lugar a tantas dificultades. ROXIN, C. Derecho Penal… p. 217. 150 JAKOBS, Günther. Dogmática de Derecho Penal y configuración normativ a de la sociedad . Madri: Civitas, 2004. p. 28. Nesse sentido também Roxin: “porque o fundamento da sanção está em que alguém infringe as exigencies de um papel social por ele assumido” em ROXIN, C. Política…, p. 33. 151 JAKOBS, Günther. Sobre la normativización de la dogmatica jurídico-p enal . Trad. Manoel Cancio Meliá e Bernardo Feijóo Sanchez. Madri: Civitas, 2003. p. 17 152 el mundo normativo configura un sistema propio, que, especialmente, no es idéntico con el mundo ordenado en firnción de satisfacción e insatisfacción del individuo, y decide autónomamente cuáles son los procesos en el mundo de los sentidos que son relevantes para el mundo normativo y cuál es el significado del que se trata. Este desarrollo de los conceptos del Derecho desde su carácter normativo es la idea de la normativización, que se mostrará en lo que sigue en algunos —desde luego que no todos— los conceptos de la teoría jurídico-penal de la imputación.JAKOBS, Günther. Sobre la normativización de la dogmatica jurídico-p enal . Trad. Manoel Cancio Meliá e Bernardo Feijóo Sanchez. Madri: Civitas, 2003. p. 18.
61
Em Roxin, a culpabilidade permanece tendo papel essencial em sua
teoria preventiva mista, pois funciona como meio de limitação da pena que não
poderá ser sobrepujada por qualquer interesse (tratamento, segurança, etc), e nesse
sentido realiza o Estado de Direito ao não deixar aberto o poder punitivo estatal, pois
tem, segundo ele, “uma função liberal absolutamente independente de toda
retribuição”, e por isso o autor alemão alega ser uma solução aos supostos defeitos
comumente apontados em relação às teorias preventivas em geral.153
A desvinculação da ideia de retribuição, em Roxin, ocorre em razão da
sua concepção de liberdade humana, que não sendo possível comprovar
empiricamente – segundo alega o jurista - , deve ser atribuída ao indivíduo como
presunção necessária à dignidade da pessoa humana e sua consideração como ser
autônomo moralmente, o que Zaffaroni chama, ao comentar a teoria de Roxin, de
“ficção de liberdade”.154
Daí porque Roxin afirmar que o princípio da culpabilidade “é o meio mais
liberal e psicológico-social mais propício para a resposta da coerção penal estatal
que até agora se encontrou” e a “sensação de justiça, a qual possui um grande
significado para a estabilização da consciência jurídico-penal, exige que nada possa
ser castigado mais duramente do que merece, e merecida é só uma pena de acordo
com a culpabilidade”155, muito embora para ele somente a medida de culpabilidade
não garanta a efetivação do fim preventivo, elaborando a concepção de
responsabilidade.156
O princípio da culpabilidade, então, substituiria o princípio da
proporcionalidade na limitação da pena, pois a proporcionalidade é utilizada até
mesmo para medidas de segurança e permite intervenções estatais muito mais
fortes do que se trabalhar com a culpabilidade como limite. Assim, a pena tem fins
preventivos especiais e gerais, mas limitada pela culpabilidade, ressaltando-se que
pode restar abaixo deste limite se assim indicado pelo seu fim principal157.
Explica o autor alemão que o conceito de reprovabilidade compreende só
de maneira incompleta a valoração que deve ser efetuada e esta não se limita à
153ROXIN, C. Derecho Penal... p. 99. 154 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. SLOKAR, Alejandro. ALAGIA, Alejandro. Derecho Penal. Parte General . 2a. Ed. Buenos Aires: Ediar, 2002. p. 665. 155 ROXIN, C. Derecho Penal... p. 100. 156 Idem. p. 101. 157 Idem. 103.
62
análise de se poder fazer uma reprovação ao autor, mas também é um juízo sobre
se se deve responsabilizá-lo por sua conduta.
Quando em 1970 inaugurava o paradigma funcionalista para a dogmática
penal, Roxin já afirmava ser “materialmente mais correto falar de responsabilidade
(Verantwortlichkeit) em vez de culpabilidade”, assinalando que “a culpabilidade é
somente um dos fatores que decidem sobre a responsabilidade penal”158, isso
porque ainda que seja verificada a possibilidade de culpabilidade, a reponsabilidade
jurídico penal, segundo ele, depende de considerações preventivas.159
Em outras palavras, a reprovabilidade é necessária, porém não suficiente
para responsabilização do autor pela conduta, pois há de ser avaliada ainda a
necessidade preventiva160:
A valoração não se atém somente à questão de se se pode formular um reproche (de culpabilidade) contra o sujeito, senão um juízo sobre si, que desde pontos de vista jurídico-penais, deve fazer-se responsável de sua conduta (...) O conceito normativo de culpabilidade deve ser aperfeiçoado na direção de um conceito normativo de responsabilidade.161
Zaffaroni contrapõe-se à construção de Roxin, pois, segundo o autor
argentino, “ao querer reduzir a culpabilidade a uma questão de oportunidade política
acaba retornando ao positivismo jurídico da forma mais furiosa”.162
Apesar do posicionamento do professor argentino - fonte sempre segura
no que diz respeito, em sentido muito amplo, à intenção de contenção do poder
punitivo do Estado-, não se vislumbra na culpabilidade de Roxin uma abertura muito
diferente daquela já existente na teoria finalista e, por isso, a crítica não parece
pertinente.
Nesse sentido, cabe ressaltar a conclusão de Paulo Busato ao comentar
a culpabilidade finalista:
158 ROXIN, C. Política… , p. 70. 159 ROXIN, Claus. Culpabilidad y prevención en derecho penal . Trad. Francisco Muñoz Conde. Madrid: Reus, 1981. p.74. 160 ROXIN, C. Derecho Penal... 796. 161 La valoración no atañe solamente a la cuestión de si se puede formular un reproche (de culpabilidad) contra el sujeto, sino que es um juicio sobre si, desde puntos de vista jurídicopenales, ha de hacérsele responsable de su conducta (...) El concepto normativo de culpabilidad ha de perfeccionarse en la dirección de un concepto normativo de responsabilidad. ROXIN, C. Derecho Penal...796 e 797. 162 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Tratado de Derecho Penal. Parte General. Tomo III. Buenos Aires: Ediar, 1981. p. 333.
63
A conversão de um conceito psicológico em um conceito normativo puro da culpabilidade, abriu a porta a uma matriz que, de certo modo, despreza a individualidade posto que converte a identificação da culpabilidade em um mero processo de atribuição. Os critérios normativos são unicamente atribuídos, e não têm nenhuma vinculação com o “ser”, adotando stantards de condutas em supressão à característica de identidade individual do culpado.163
Acrescente-se que requisito diretamente vinculado ao autor restou apenas
a imputabilidade, sendo importante mencionar a constatação de Maurach, exposta
por Busato, também sobre a teoria finalista, no sentido de que “o conteúdo da
culpabilidade tal como desenhado por Welzel não seria capaz de compor uma
reprovabilidade adequadamente pessoal do agente”. A razão para essa conclusão
seria “especialmente porque a exigibilidade de conduta diversa não é um conceito
individualizante, muito pelo contrário. Trata-se de um conceito geral, dirigido em
sentido negativo, como fórmula exculpante, não havendo aqui qualquer processo de
individualização”.164
Observando-se a estruturação teórica proposta por Roxin, constata-se
apenas que nela se assume o caráter muito pouco subjetivista herdado da
culpabilidade quando a consciência da ilicitude passou a ser potencial e a partir da
exigibilidade como acima explicado, sendo reposicionada (a culpabilidade), pelo
jurista alemão, mais adequadamente à função que já vinha exercendo, figurando
agora como limite da pena e pressuposto de uma categoria mais ampla que é a
responsabilidade penal.
Ao reestruturar a forma de imputação do injusto ao autor, que não tem
efeitos diferentes daqueles já decorrentes da culpabilidade finalista, não se está
retornando ao positivismo ou possibilitando um campo de arbitrariedade punitiva
estatal, muito pelo contrário. Expondo-se declaradamente a forma, é possível
discutir critérios para limitar essa atividade estatal penal, tanto que na própria teoria
de Roxin se percebem novos obstáculos como a “necessidade da pena” ou o
“merecimento de pena”165, ainda que aqui se pudesse opor – com razão - o
argumento da falta de lógica que reside no fato de que a consequência (efeito) do
delito está dentro do próprio conceito do delito(causa).
163 BUSATO, Paulo César. Apontamentos sobre o dilema da culpabilidade penal. Revista Liberdades, v. 8, p. 52-94, 2011. p. 56. 164 MAURACH, Reinhard. Tratado de Derecho penal. Vol. I. Trad. de Juan Córdoba Roda, Barcelona: Ariel, 1962, p. 29. apud BUSATO, Paulo César. Apontamentos sobre o dilema da culpabilidade penal. Revista Liberdades, v. 8, p. 52-94, 2011. p. 57. 165 ROXIN, C. Derecho Penal... 981 a 983.
64
Ou seja, a culpabilidade não foi em momento algum reduzida na teoria
roxiniana como diz Zaffaroni. Ela contém os mesmos requisitos166que a
culpabilidade em Welzel, acrescida da análise posterior de outros critérios dentro da
categoria da responsabilidade, mais abrangente. Aliás, se o próprio jurista alemão
tivesse mantido a nomenclatura, o que se poderia extrair de uma comparação com a
mesma categoria na Teoria Finalista seria a conclusão de que aquela se trata de
uma culpabilidade muito mais complexa e que exige um detalhamento dos critérios
punitivos muito maior e, com isso, tutela de forma mais eficiente a liberdade
individual.
Jakobs também constrói um conceito funcional de culpabilidade e diz ser
ela limite ao poder punitivo – limite que no entanto se regula pela necessidade da
pena167 -, sendo que em sua concepção a finalidade da pena se consolida com a
afirmação de um juízo positivo de culpabilidade, pois é nesse momento que se
verifica efetivamente a negativa de vigência à norma e é precisamente a ausência
de fidelidade ao direito o que se chama de culpabilidade. Nas palavras do autor:
Esta responsabilidade por um déficit de motivação jurídica dominante, em um comportamento antijurídico, é a culpabilidade. A culpabilidade se dominará, em consequência, como a falta de fidelidade ao Direito ou, brevemente, como infidelidade ao Direito.168
Zaffaroni critica a concepção de Jakobs afirmando que a culpabilidade
enquanto fidelização ao Direito significa buscar fundamento para a pena no próprio
ato de apenar, sendo apenas uma resposta à demanda do sistema, principalmente
para não se violentar o texto da lei alemã, mas na verdade o que Jakobs estaria
fazendo seria manter a nomenclatura em algo que representa uma verdadeira
renúncia ao conceito de culpabilidade.169
Essa afastamento, contudo, não é novidade das teorias funcionalistas,
mas resultado da normativização cada vez mais intensa da culpabilidade. Na
atribuição do injusto ao autor não houve uma mudança profunda, mas sim um
166 ROXIN, C. Derecho… p. 819 e ss. 167 JAKOBS, G. Derecho Penal… p. 568 e ss. 168 JAKOBS, Günther. Derecho Penal. Parte General. Fundamentos e teoria de la imputación . 2a.ed. Corregida. Trad. Joaquim C. Contreras e José Luis S. G. Murillo. Madri: Marcial Pons, 1997. p. 566. 169 ZAFFARONI, E.R.. SLOKAR, A. ALAGIA, A. Derecho Penal… p. 669.
65
esclarecimento da forma, que se construiu a partir das necessidades práticas
percebidas das consequências inconsistentes das teorias precedentes à finalista.
O distanciamento do que substancialmente implica o princípio da
culpabilidade é evidenciado em diversos autores contemporâneos. Gimbernat
Ordeig, por exemplo, citado por Zaffaroni, é explícito ao afirmar que a supressão da
culpabilidade da Teoria do Crime não afetaria praticamente nada na estrutura do
Direito Penal.170
Hirsch, referindo-se à discussão sobre o conceito de culpabilidade e seu
significado jurídico penal também conclui que “a ideia de culpabilidade se vê hoje
exposta cada vez mais a uma crítica fundamental que se estende até chegar à
exigência de sua eliminação”171
Por sua vez, Hassemer propõe a substituição do princípio da
culpabilidade pelo princípio da proporcionalidade172, certo porque, para ele – que
empresta a lógica da crítica inicialmente feita por Engisch à teoria finalista173 -, a
culpabilidade, como existe, somente seria realizável se o julgador pudesse se
colocar no lugar do julgado e, por isso, a reprovação só é possível de forma geral, o
que significa um esvaziamento do que “propriamente é a reprovação da
culpabilidade que se faz ao autor.174
É o próprio Jakobs quem claramente confronta essa proposta de
Hassemer e rejeita a utilização da proporcionalidade como substituto da
culpabilidade, argumentando que a eliminação da culpabilidade não permitiria saber
a qual sujeito se deve castigar, e explica:
170 ZAFFARONI, E.R.. SLOKAR, A. ALAGIA, A. Derecho Penal… . p. 669. Comentário com sentido semelhante em BUSATO, Paulo César. Apontamentos sobre o dilema da culpabilidade penal. Revista Liberdades, v. 8, p. 52-94, 2011. p. 48. 171 HIRSCH, Hans Joachim. Derecho Penal. Obras Completas. Tomo I. Trad. José Cerezo Mir e Edgardo Alberto Donna. Buenos Aires: Rubinzal- Culzoni, 1998. p. 152. 172 HASSEMER, Winfried. ¿Alternativas al principio de culpabilidad?. Trad. Francisco Muñoz Conde. Disponível em http://www.juareztavares.com/textos/hassemer_alternativa_culpabilidade.pdf. Pesquisado em 29.10.2012. 173 ENGISCH, Karl. La teoría de la libertad de la voluntad en la actua l doctrina filosófica del derecho penal. Montevidéu-Buenos Aires: B de F editorial, 2006. p. 76: “pero que una persona individual, que estuvo colocada en una determinada situación de obrar, hubiera podido comportarse de otra manera que como en efecto atuo, eso se podría comprobas experimentalmente solo si se pudiese se trasladas repetidas veces a esa persona con la misma y exacta individualidad, a idéntica situación concreta, y entonces se podría observer si, en alguna occasion, surge una conduta distinta de la que brotó en ese caso…” 174 HASSEMER, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal. Trad. Francisco Muñhoz Conde e Luis Arroyo Zapatero. Barcelona: Bosch, 1984. p. 295 e 299.
66
El considerar a la culpabilidade como un escalon de la imputación, es decir, de la conexión entre sujeto y acción, de suerte que el sujeto no se puede desentender del injusto de su acción. Cuando en ocasiones se afirma que la culpabilidade debería sustituirse con ventaja por el principio de proporcionalidade no se está teniendo en cuenta que la proporcionalidade no aporta imputación alguna y que, por tanto, sin el juicio de culpabilidade no consta a qué sujeto ha de castigar-se (...) Además, la proporcionalidade no puede indicar si un hecho antijurídico menoscaba la validez de la norma y en qué medida.175
Ainda dentro da vertente funcionalista, uma concepção um pouco mais
preocupada com a essência do nulla poena sine culpa é a de Zaffaroni, quando
constrói dentro da culpabilidade critérios detalhados sobre a individualidade do autor
que vinculariam o grau de reprovabilidade à vulnerabilidade do sujeito ao
cometimento do delito.
Zaffaroni, diferente dos alemães citados, declara sua opção por uma
função autoredutora do sistema, que não abre mão da vinculação do sistema
teórico do Direito Penal a dados ônticos, expondo que a construção dos conceitos
jurídicos em função política não pode ignorar o mundo que existe.176
Para esse autor, culpabilidade é “juízo que permite vincular de forma
personalizada o injusto a seu autor e, em caso de ocorrer essa vinculação, projetar-
se desde a teoria do delito como principal indicador do máximo da magnitude de
poder punitivo que se pode filtrar sobre este”177, e baseia sua construção na ideia de
vulnerabilidade do sujeito, cujos conceitos essenciais seriam:
Para ello debe tener en cuenta los siguientes conceptos: (a) el vínculo personal del injusto con el autor se establece teniendo en cuenta la forma en que opera la peligrosidad del sistema penal, que puede ser definida como la mayor o menor probabilidad de criminalización secundaria que recae sobre una persona, (b) El grado de peligrosidad del sistema penal para cada persona está dado, en principio, por los componentes del estado de vulnerabilidad de ésta al sistema penal, (c) El estado de vulnerabilidad se integra con los datos que hacen a su status social, clase, pertenencia laboral o profesional, renta, estereotipo que se le aplica, etc., es decir, por Suposición dentro de la escala social, (d) No obstante, si bien por lo general la relación entre poder y vulnerabilidad al poder punitivo es inversa, puesto que el poder opera como garantía de cobertura frente al sistema penal, el poder punitivo no se distribuye sólo por el estado de vulnerabilidad, porque si bien todas las personas que comparten un mismo estado de
175 JAKOBS, Günther. Derecho Penal. Parte General. Fundamentos y Teoría de la imputación. 2a ed. Trad. Joaquim Cuello Contreras y Jose Luis Serrano Gonzalez Murillo. Madrid: Marcial Pons, 1997. p. 667 e 668. Conf. também em JAKOBS, G. Derecho Penal… , p. 567/568. 176 ZAFFARONI, E.R.. SLOKAR, A. ALAGIA, A. Derecho Penal… . p. 386. 177 Idem. p. 654.
67
vulnerabilidad padecen pareja frecuencia de riesgos de criminalización, el poder punitivo también selecciona entre ellas a quienes criminaliza.178
Assim, com fundamento nessas proposições, Zaffaroni se diferencia da
maior parte da doutrina penal mundial, que como já dito encontra-se em evidente
afastamento de uma concepção de culpabilidade que realize efetivamente o
princípio da culpabilidade.
Em defesa desse sentido, o professor argentino afirma que “a
culpabilidade pela vulnerabilidade é a própria culpabilidade do delito e não um mero
corretivo da culpabilidade normativa tradicional pelo fato que poderia operar fora da
teoria do delito, em um plano da teoria da responsabilidade.179
Está evidente no cenário teórico atual a pertinência da mesma crítica que
se fez às teorias neokantistas que, amparadas em um amplo relativismo normativo,
permitiam a cada autor manejar seus conceitos conforme as necessidades da sua
construção sistemática, não havendo segurança teórica. Tanto que a categoria da
culpabilidade varia imensamente em cada autor contemporâneo.
A culpabilidade, como acima explicado, é limite do poder punitivo do
Estado, mas a possibillidade de cumprimento de sua função dependerá do conteúdo
material da culpabilidade, porque o conceito normativo só afirma que uma conduta
deve ser reprovada, mas isto tem natureza estritamente formal, e não responde à
questão de quais pressupostos materiais dependem a reprovabilidade.180
Quanto ao conteúdo material da culpabilidade, várias são as concepções
teóricas elaboradas atualmente e que serão explicadas a seguir a partir da análise
de Roxin, que se confirma na doutrina nacional com a exposição quase idêntica na
obra de Juarez Cirino.181
1.3.4.1 Teoria limitada da culpabilidade
Em se tratando de uma espécie do gênero Teorias da Culpabilidade, esta
teoria limitada, assim como a extremada, parte de uma estruturação da teoria do
178 ZAFFARONI, E.R.. SLOKAR, A. ALAGIA, A. Derecho Penal… . p. 654. 179 Idem.. p. 655. 180 ROXIN, C. op. cit. 797. 181 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral . Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 288 e ss.
68
crime que coloca o dolo como elemento do tipo penal e a consciência da
antijuridicidade como requisito da culpabilidade, o que inexoravelmente leva à
conclusão de que o erro de tipo exclui o dolo, permitindo a punição por culpa, se era
evitável e a modalidade culposa é prevista. Para ambas também, exclui a
culpabilidade o erro de proibição inevitável.
Porém, no que tange o erro relativo às causas de justificação, a
divergência é intensa. Para a teoria limitada, o erro quanto aos pressupostos fáticos
das causas de justificação deve ensejar a exclusão do dolo, a despeito do sujeito
saber o que faz e não que é errado. Ou seja, ainda quando se observe uma conduta
dolosa (com conhecimento e vontade dos elementos típicos), “todavia a falta de
consciência de estar a praticar um ilícito proviesse de ter suposto falsamente a
existência dos pressupostos materiais de uma causa de justificação”182, será
excluído o dolo.
A teoria limitada da culpabilidade surgiu como uma “complementação
lógica da teoria dos elementos negativos do tipo no nível da culpabilidade”183. Esta
teoria dos elementos negativos do tipo foi a saída que os autores alemães
encontraram para a consideração do erro quando ocorresse uma causa de
justificação putativa, pois o dispositivo do Código Penal germânico que pautava a
matéria na época regulava apenas o erro de fato.184 Ressalte-se que o dispositivo
legal alemão houvera sido construído com base na histórica distinção entre error
facti e error iuris, este até aquele momento considerado irrelevante para a lei e a
jurisprudência tudesca.
Este caminho tomado por alguns doutrinadores alemães, como Merkel e
Frank, citados por Alcides Munhoz, baseava-se na elaboração do que se chamou
“tipo total de injusto”, o qual fundia tipicidade e antijuridicidade, partindo da ideia de
que as causas de justificação são nada mais que elementos negativos do tipo.185 Em
outras palavras, os elementos constitutivos do tipo seriam positivos, justo porque o
‘constituem’ e as causas de justificação elementos negativos, já que elas o
‘desconstituem’.
182 DIAS, Jorge Figueiredo. Direito Penal. Parte Geral. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. . 500. 183 ZAFFARONI, E. R. PIERANGELI, J. H. Manual de Direito penal… p. 586. 184 MUNHOZ NETO, Alcides. A ignorância da antijuridicidade em material penal… p. 87 e 88. 185 Idem… p. 88.
69
Juarez Tavares, que defende um juízo único acerca da tipicidade e da
antijuridicidade, ainda que ele se faça em duas etapas, explica que, diferentemente
da sua posição, a teoria dos elementos negativos do tipo de Merkel “pretende fundir
esses dois elementos, de modo que o delito se constitua de apenas duas etapas: o
tipo e a culpabilidade”186 e a inexistência das causas de justificação se inseririam
como “pressuposto de realização do tipo”187, e daí a consequência de que o erro
sobre a conjuntura fática que faça o autor pensar estar amparado por uma
justificante exclui o dolo.
1.4 Fundamentos materiais da culpabilidade nos aut ores atuais
Apanhando-se a doutrina mais moderna, na esteira da exposição de Roxin, as
concepções sobre a culpabilidade hoje ainda encontram diversas variações, em
todas predominando o normativismo, mas trabalhando com fundamentos diferentes,
o que, claro, implica em repercussões nas construções sistêmicas de cada autor.
Impende, aqui, comentar, ainda que de forma breve, as principais acepções.
1.4.1 Culpabilidade como poder agir de outro modo
Para esta concepção mais tradicional, o conteúdo da culpabilidade se
define pelo “poder evitar”, tendo este como conseqüência a responsabilidade da
pessoa por haver formado ilicitamente sua vontade quando poderia tê-la formado
licitamente, ou seja, por não ter se omitido na prática da ação antijurídica quando lhe
era possível ou, ainda, que decidiu pelo injusto quando poderia ter atuado conforme
o Direito.188
A base desta concepção está em que todo ser humano é dotado de
autodeterminação moral livre e, por isso, é capaz de decidir pelo Direito e não pelo
injusto. Nas palavras de Welzel:
186 TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. 3a.ed. Amp. e Rev. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 169. 187 Idem. p. 170. 188 ROXIN, C. op. cit. p. 799.
70
El reproche de culpabilidad presupone, por lo tanto, que el autor hubiera podido formar su decisión antijurídica de acción en forma más correcta, adecuada a la norma, y esto no en el sentido abstracto de lo que hubiera podido hacer un hombre cualquiera, en lugar del autor, sino, y muy concretamente, de que ese hombre, en esa situación, hubiera podido formar su decisión de voluntad en forma adecuada a la norma.189
Essa idéia material da culpabilidade não se sustenta porque, para além
da discussão sobre a possibilidade de demonstração empírica do livre arbítrio, a
verificação de que no momento do fato o sujeito poderia ter agido de outro modo
também não é cientificamente possível e, então, a solução seria sempre a
absolvição pelo in dubio pro reo.190
Os defensores desta teoria, dominante na doutrina brasileira, tentam
salvá-la agarrando-se na idéia do “poder da pessoa média conforme a experiência”,
mas com isso somente se poderia concluir que o “poderia agir de outro modo do
sujeito” é, na realidade, a possibilidade de que outro (em seu lugar e nas mesmas
circunstancias concretas) agiria de modo diverso, empregando a força de vontade
que faltou ao sujeito em análise.191
Outros autores abraçam a concepção do poder agir de outro modo,
baseando-se, contudo, não em elementos psicológicos, mas na liberdade enquanto
realidade social, como se verá no segundo capítulo as concepções de Schünemann
e Vivés Antón.
1.4.2 Culpabilidade como atitude interna juridicame nte reprovada
Aos adeptos deste conteúdo de culpabilidade, esta é a reprovabilidade
pela atitude interna manifestada no ato, tendo como partidários, por exemplo,
Jescheck e Wessels. Para o primeiro, “o reproche vem determinado pela ausência
de atitude jurídica interna”.192 E Wessels, acompanhando Jescheck e Gallas, a
quem cita, fala que “o objeto de censura de culpabilidade é a defeituosa posição do
189 WELZEL, H. op. cit. p. 153. 190 ROXIN, C. op. cit. p. 800. 191 CÓRDOBA, Fernando Jorge. La evitabilidad del error de prohibición. Madri, Barcelo e Buenos Aires: Marcial Pons, 2012. p. 254. 192 JESCHECK, Hans Heinrich. Tratado de derecho penal. Parte General. Granada, 2002.p. 449.
71
autor para com as exigência da conduta da ordem jurídica, manifestada no fato
antijurídico”193
O problema facilmente identificável nesta acepção é que ela não
consegue ultrapassar substancialmente o caráter formal da reprovabilidade, pois não
indica nenhum critério segundo o qual se desaprove juridicamente a atitude do
sujeito. Gallas, segundo Roxin, ainda tenta indicar uma característica material que
excluiria a culpabilidade, que consistiria na “carência de poder”, esta, na verdade,
equivalente à idéia do “poder agir de outro modo”, e, portanto, sujeita às mesmas
objeções.194
Mas não é só. Na culpa inconsciente, como ficaria a avaliação da
reprovabilidade se a atitude interna do sujeito não se dirige a nada que seja contrário
a um valor. E ainda como se resolveria o caso de um criminoso sexual, cuja atitude
interna mostra-se totalmente reprovável, porém lhe falta a capacidade de inibição?
Segundo Roxin, só Schmidhäuser oferece uma definição material de
culpabilidade quando propõe a ‘atitude interna antijurídica do fato concreto’. Para
ele, “A culpabilidade jurídico-penal é o comportamento espiritual lesivo de bens
jurídicos”, ou seja, não os levou a sério. Da mesma forma que em outras doutrinas, o
contato valorativo espiritual deixa sem resposta a questão do livre arbítrio. E para
Roxin esse critério se aproxima do que ele adota como acessibilidade normativa.195
1.4.3 Culpabilidade como poder responder pelo própr io caráter
Esta concepção tem base determinista e parte da idéia de que cada um é
responsável pelas características ou propriedades que o conduziram a ser tal como
é. Na filosofia, foi Schopenhauer que inicialmente defendeu esta posição, focando
no fato de que, se o sujeito tem ciência de que uma ação diferente era possível se
ele fosse outro, então não há como negar que foi a sua condição, enquanto o que é,
decisiva para o acontecimento, ainda que para este sujeito não fosse possível outra
ação, porque ele é isso, mas uma ação diferente, em si mesma, era viável.196
193 WESSELS, Johannes. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre: Fabris Editor, 1976. P. 84 194 ROXIN, C. Derecho Penal.. . p. 800-801. 195 Idem. p. 801. 196 Idem p. 802.
72
Daí que a responsabilidade incide sobre o fato, em primeiro lugar, e sobre
seu personagem, em segundo, já que ele se sente responsável e isso o torna
responsável pelos outros.
Segundo Roxin, também no Direito Penal esta compreensão é ponto de
partida de inúmeras teorias de vários autores, que consideram uma lei fundamental
da existência que cada um responda pelo que faz enquanto emanação de sua
responsabilidade, pois o ser humano paga pelo que é, para o bem ou para o mal.
Engish, por exemplo, deduz da responsabilidade pelo caráter o dever de suportar a
pena197, enquanto Figueiredo Dias caracteriza a culpabilidade pelo dever de
responder por sua personalidade, sendo o sujeito culpável quando manifesta no fato
suas características pessoais contrárias aos valores jurídico penais198.
O que se poderia contestar em tal entendimento é ser totalmente
paradoxal reprovar alguém por algo em relação a que nada pode fazer, ou seja, em
relação a que não tem liberdade de escolha, o que sempre é respondido com
argumentos relativos à possibilidade do homem de eleição quanto ao que se torna,
pois durante a vida ele estabeleceria a sua maneira de ser, conforme o que por ele
mesmo escolheu, hipótese tão pouco demonstrável, na prática, como a do poder
agir de outro modo.199
Somente seria lógico aceitar a linha de pensamento ora exposta com a
total abdicação do reproche moral ao indivíduo, concentrando a punição penal em
uma finalidade exclusivamente preventiva, e a culpabilidade representaria, em seu
conteúdo, nada mais que responsabilidade social e não de caráter individual. Leva a
soluções tão absurdas, afirma Roxin, que, seguindo esta linha, os doentes mentais e
ainda os inimputáveis deveriam responder da mesma forma que os demais200, muito
embora o autor alemão não tenha considerado aqui que a doentes mentais e
inimputáveis não se pode atribuir a liberdade de escolha pelo que se torna, cerne da
teoria, mas que não lhe retira as demais características que a deslegitimam.
197 ENGISCH, Karl. La teoría de la libertad de la voluntad en la actua l doctrina filosófica del derecho penal. Montevidéu-Buenos Aires: B de F editorial, 2006.p. 76. 198 DIAS, J.F. O problema da consciência da ilicitude… p. 247 e ss. 199 ROXIN, C. op. cit. p. 803. 200 Idem p. 804.
73
1.4.4 Culpabilidade como atribuição segundo as nece ssidades de prevenção
geral
De acordo com as concepções de Luhmann e a teoria dos sistemas,
Jakobs desenvolveu um conceito funcional de culpabilidade, que a entende como
atribuição de prevenção geral e se vincula à segurança jurídica e a estabilização da
confiança no ordenamento, que foi perturbada pela conduta delitiva. 201 Em Jakobs,
“só o fim dota de conteúdo a culpabilidade”, sendo a prevenção geral o fim, que não
é de intimidação e sim de fidelidade ao Direito. E só quando exista a oportunidade
de assimilar o conflito de outra maneira pode entrar em discussão a exculpação.202
Esta teoria abandona a função restritiva do princípio da culpabilidade em
nome da prevenção geral, e a punibilidade do particular não depende de condições
da sua pessoa, dái porque Mariano Silvestroni afirma que é “la muerte da
culpabilidad”203.
Essa instrumentalização do indivíduo em relação aos interesses sociais é
vista desde Kant como lesiva à dignidade humana. Também não parece estabilizar
expectativas a culpabilidade concebida desta forma, na medida em que a afirmação
ou negação da culpabilidade não depende da pessoa e sim de fatores que nada tem
a ver com ela, convertendo-se num joguete de circunstâncias que revela, ao
contrário do pretendido, insegurança.204
1.4.5 Culpabilidade como atuação injusta apesar da existência de
acessibilidade normativa
Na doutrina nacional, a teoria a ser exposta neste momento recebe o
nome de dirigibilidade normativa, já que toma como ponto de partida a afirmação de
que a liberdade humana, para ser fundante no Direito Penal, não precisa ser
demonstrada em realidade, pois é possível que, pelo princípio da igualdade, o
homem seja tratado como livre pela norma, o que dispensaria o direito Penal de
201 CRUZ, F.A. op. cit. p. 225. 202 Idem 78. o. 805. 203 SILVESTRONI, Mariano. Teoria constitucional Del delito. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2004. p. 238 apud CRUZ, F. op. cit. p. 225. 204 ROXIN, C. Derecho Penal… 806.
74
adentrar na discussão filosófica sobre comprovação da liberdade ou do
determinismo do ser humano.205
Para Claus Roxin, há culpabilidade quando o sujeito estava disponível no
momento do fato para a chamada da norma segundo seu estado mental e anímico,
ou seja, quando lhe eram acessíveis as possibilidades de decisão por uma conduta
orientada conforme a norma, e quando a possibilidade psíquica de controle que
existe num adulto, na maioria das situações, existia no caso concreto. Para ele, “não
se trata de uma hipótese indemonstrável, e sim de um fenômeno empírico científico
que cada vez mais a Psicologia e a Psiquiatria tem desenvolvido critérios de
determinação da capacidade de autocontrole no caso concreto”.206
Quando existe essa acessibilidade normativa, que não se comprova pelo
livre arbítrio, parte-se da idéia de que o sujeito possui também capacidade de
comportar-se conforme a norma e, portanto, se torna culpável quando não adota as
alternativas de condutas psiquicamente disponíveis (acessíveis).
Em outras palavras, quando existe capacidade de autocontrole intacta e
com ela a acessibilidade normativa, trata-se o sujeito como livre, independente de
isso poder ser comprovado ou não, independente da existência de livre arbítrio ou
não:
La suposición de libertad es una "aserción normativa", una regla social de juego, cuyo valor social es Independiente del problema de teoría del conocimiento y de las ciencias naturales. Con la libertad no ocurre en el Derecho otra cosa que con la igualdad. Cuando el ordenamiento jurídico parte de la igualdad de todas las personas no sienta la absurda máxima de que todas las personas sean realmente iguales, sino que ordena que los hombres deben recibir un igual trato ante la ley (...) Nos sentimos autorizados a la 'aserción normativa' de que una persona cuya capacidad psíquica de control en una determinada situación (aún) está en orden también puede actuar libremente, porque la autocomprensión natural del ser humano normal se basa en esta conciencia de libertad y porque una ordenación razonable de la vida humana en sociedad no es posible sin la concesión recíproca de libertad.
Para o professor de Munique, então, a culpabilidade passa a ser um dado
misto empírico-normativo, já que se constata empiricamente a capacidade de
autocontrole e a acessibilidade normativa que com ela se produz, e se atribui
205 SANTOS, J. C. op. cit. p.290. 206 ROXIN, C. Derecho penal… p. p. 808.
75
normativamente a possibilidade, derivada desta constatação, da conduta conforme o
direito, utilizando-se do poder agir de outro modo, que é apreciado no âmbito
forense.207
As vantagens da teoria da culpabilidade defendida por Roxin, apontadas
por ele, residiriam no fato de que seu conteúdo corresponde ao Direito Penal que se
restringe ao absolutamente essencial na sociedade, embasando-se tanto numa
justificação social da pena, como na culpabilidade funcional de Jakobs, como ainda
aproxima-se a algumas concepções dos defensores da culpabilidade pelo caráter,
mas com a ressalva de que protege melhor a função de garantia liberal do Estado de
Direito, pois a culpabilidade estaria dirigida justamente contra os excessos punitivos
do Estado, confirmando que “o princípio da culpabilidade não impõe gravame ao
cidadão (porque as necessidades preventivas se imporiam com total independência
da vinculação à culpabilidade) e sim o protege”208, o que se dá conforme seu
conceito mais amplo de responsabilidade.
207 ROXIN, C. op. cit. p. 809. 208 ROXIN, C. op. cit. p. 811.
76
2. A CONSCIÊNCIA DA ANTIJURIDICIDADE
Este segundo capítulo pretende analisar a consciência da antijuridicidade
em todos os seus componentes, a fim de delimitar o campo de análise dos critérios
que serão esmiuçados no terceiro capítulo.
2.1 A Constituição como ponto de partida: liberdad e como expressão da
Dignidade da Pessoa Humana, princípio da culpabilid ade e culpabilidade como
poder agir de outro modo.
No capítulo anterior discorreu-se sobre a evolução histórica e as bases de
construção da culpabilidade e, nela, do elemento da consciência da ilicitude no
Direito Penal, sendo demonstrados olhares diversos quanto à sua conformação e,
consequentemente, seus efeitos. Para a análise nos próximo capítulos – neste
segundo e no terceiro -, há que se partir de uma determinada concepção da
categoria dogmática da culpabilidade e a Constituição é por certo um ponto de
partida juridicamente seguro.
A Constituição da República tem como sua base a Dignidade da Pessoa
Humana209 e é desta que se pode extrair a autonomia moral do homem como a
concepção antropológica constitucional, da qual decorreria o princípio da
culpabilidade e permitiria admitir a culpabilidade (categoria dogmática) como a
reprovabilidade pelo poder-agir-de-outro-modo.
Ao longo da história, inúmeras são as concepções de homem que foram
delineadas e sustentadas, inclusive servindo como base de desenvolvimento dos
diversos ramos do Direito. Assim, por exemplo, enquanto no período clássico
iluminista a autonomia moral era sustentada com base no livre arbítrio herdado das
concepções cristãs, no positivismo naturalista a ideia de determinismo decorrente do
paradigma filosófico fundado em relações de causa e efeito suprimia da ideia de
indivíduo qualquer vontade livre.
209 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (..) III - a dignidade da pessoa humana (...).BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, acesso em 16.10.2012.
77
Numa concepção antiga, aqui representada por aquela em Aristóteles, o
homem é um ser vivo, mas não apenas isto. É um animal político (social), o que
significa não só que necessita coexistir com os demais por utilidade, mas para “viver
bem”, ou seja, ser feliz, “E essa é uma característica propriamente humana”210.
Questionando a definição aristotélica, no período clássico, Descartes inclui
na concepção de homem a capacidade de pensamento, que para este autor seria o
que lhe definiria antes de qualquer outra coisa.211 Ainda que uma ideia pretendesse
se sobrepor à outra, as duas características podem ser identificadas como próprias
do ser humano: o pensamento e a sociabilidade como algo que faz sentido para o
“ser feliz”, embora posteriormente tenham sido complementadas ou mesmo limitadas
pelas consequências indesejáveis que sua noção absoluta permitiria.
Já outras concepções das ciências humanas que sobrevieram e
levantaram tanto a ignorância do homem sobre si mesmo, como sua dependência
da linguagem e da comunicação, colocaram-no, juntamente com suas crenças e
opiniões, numa perspectiva determinista e, portanto, retiraram-lhe a característica de
sujeito, mas uma concepção com tal viés, fosse adotada, abalaria as bases da
democracia.212
Em outras palavras, a noção de autonomia moral do indivíduo o assinala
enquanto sujeito e é fundamento de todas as teorias políticas desenvolvidas na
modernidade, base da qual um Estado democrático de Direito não pode prescindir e,
como consequência, tampouco pode contrariar essa premissa o Direito Penal
construído dentro deste Estado Democrático.
A autonomia não se confunde com a liberdade. Enquanto a autonomia é a
capacidade de vontade livre, a liberdade é a possibilidade de agir conforme a
vontade, muito embora em diversas teorias políticas estes conceitos sejam
equiparados. De modo ou de outro, de nada valeria a autonomia sem a liberdade.
Assim, resumidamente, o homem é um ser autônomo moralmente e isso o
caracteriza como sujeito. Para que essa autonomia se realize, ela se vincula
210 WOLFF, Francis. As quarto concepções do homem . In NOVAES, Adauto. A condição humana . São Paulo: Agir, 2008. p.40. 211 WOLFF, Francis. As quarto concepções do homem . In NOVAES, Adauto. A condição humana . São Paulo: Agir, 2008. p.43 e ss. 212 WOLFF, F. op.cit. p. 44.
78
obrigatoriamente à liberdade, e “O conceito fundamental do direito é a liberdade...o
conceito abstrato de liberdade é: possibilidade de se determinar para algo”213.
A liberdade nos Estados modernos teve suas acepções liberal e
democrática214 gradualmente integradas, mas é elemento essencial. Para Bobbio, a
confluência entre autodeterminação moral e autodeterminação coletiva determina
que o homem pode determinar livremente seu querer até onde é capaz de decidir
sozinho, e no âmbito onde é necessária uma decisão coletiva, deve participar para
que esta seja também livre determinação de sua vontade.215 A liberdade política
(coletiva), em Bobbio, apenas tem sentido como instrumento de realização da
liberdade individual através da convivência civilizada.216 Ou seja, sequer haveria
Estado, ou leis e o próprio Direito Penal se não fosse o homem um ser autônomo
moralmente. Nas palavras de Richard David Precht, “Podemos dizer que somos
livres de determinado modo, pois em larga medida somos nós que nos
determinamos”.217
Também em Kant a liberdade é evocada como condição de humanidade,
sendo que o filósofo alemão centraliza sua teoria na ideia de que o único direito
inato é a liberdade:
A liberdade (a independência de ser constrangido pela escolha alheia), na medida em que pode coexistir com a liberdade de todos os outros de acordo com uma lei universal, é o único direito original pertencente a todos os homens em virtude da humanidade destes.218 [grifou-se]
Dessa passagem o ponto que releva ao estudo e deve ser destacado é a
liberdade enquanto característica de humanidade. Ou seja, quanto mais livre, mais
se efetiva a humanidade de um indivíduo. E o contrário pode ser deduzido: quanto
menos liberdade, menos humano. Os exemplos na literatura do vínculo necessário
entre liberdade de decisão e humanidade seriam infinitos. É fácil essa percepção no
romance de Aldous Ruxley - Admirável Mundo Novo - no qual a supressão da
liberdade em nome da estabilização social fez com que aquela sociedade perdesse
213 FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. São Paulo: atlas, 1994. P. 155. 214 Para a diferença entre a o conceito de liberdade para a teoria liberal e para a teoria democrática ver BOBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2000. p.101 e ss. 215BOBBIO, N. op cit. p. 103. 216 Idem. p. 104. 217 PRECHT, Richard David. Quem sou eu? São Paulo: Ediouro, 2009. p 274. 218 KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Bauru: Edipro, 2005. p. 83.
79
seu caráter humano, o que se preserva nas personagens que se permitem outras
escolhas, escolhas livres, e são retratados como mais humanos.219
Kant afirma ainda como princípio universal do Direito a máxima liberdade
de escolha capaz de coexistir com a liberdade de todos, de modo que “todo aquele
que obstaculizar minha ação ou minha condição” – que não colide com a liberdade
de todos e é por isso justa – “me produz injustiça”220.
Nas palavras do autor:
...a lei universal do direito, qual seja, age externamente de modo que o livre uso do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal, é verdadeiramente uma lei que me impõe uma obrigação, mas não guarda de modo algum a expectativa – e muito menos impõe a exigência – de que eu próprio devesse restringir minha liberdade a essas condições simplesmente em função dessa obrigação.221
Em conclusão às lições do autor, o que se me pode impor justamente em
contraposição à minha liberdade é tão somente aquilo que implique alguma violação
à liberdade de todos, nada mais. Qualquer determinação que extrapole essa
condição viola o princípio fundamental do direito e é, portanto, ilegítima. No Direito
Penal isso repercute na aceitação de um Direito Penal de Fato e na recusa a um
Direito Penal de autor, o que tem consequências diretas para a culpabilidade e seus
elementos.
A concepção antropológica encontrada na teoria kantiana aparece
também nos estudos de Battista Mondin, para quem a autonomia (querer) e a
liberdade são as verdadeiras características do homem222:
“Homem de vontade”, “homem de caráter”, “homem decidido”, “homem livre” são expressões comuns na nossa linguagem para designar um tipo ideal de homem. Todavia, vontade, decisão, caráter e liberdade não são qualidades que se acham somente em poucos homens excepcionais, mas pertencem ao homem enquanto tal.223
219 HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. São Paulo: Globo, 2009. 220 KANT, I. op. cit p. 77. 221 KANT, I. op. cit p. 77. 222 MONDIN, Battista. O homem, quem é ele? Elementos de antropologia fil osófica . São Paulo: Paulus, 1980. p.109. 223 Id.
80
E a vinculação da autonomia à essência de humanidade, é também
afirmada pelo antropólogo italiano, ao definir humanidade enquanto uma
propriedade da vontade humana.224
Logo, não é possível compreender o ser humano sem autonomia e
liberdade, e somente é possível falar em dignidade da pessoa humana com a
garantia dessas condições inerentes ao indivíduo. Falar em dignidade humana
corresponde a afirmar sua autonomia e sua liberdade. Isso porque, fosse o homem
um ser determinado absolutamente, tal qual uma coisa, não se lhe reconheceria
qualquer dignidade.
Em seu livro Pedagogia da Autonomia, ao comentar que o ensinar exige
respeito à autonomia do ser educando, Paulo Freire vincula a autonomia à dignidade
do indivíduo, afirmando que “o respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um
imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros”225.
A ideia moderna de humanidade, inclusive, como conclui o filósofo
francês Luc Ferry, implica na consideração da liberdade como característica inerente
ao indivíduo, tendo ela e a dignidade uma origem de reconhecimento concomitante
na história do homem.226
Desse modo, quando a Constituição da República Federativa do Brasil
proclama a dignidade da pessoa humana como seu fundamento – artigo 1o, inciso III
-, só o faz porque pressupõe o homem como um ser autônomo moralmente e dotado
de liberdade, direito este que se iguala ao direito à vida, justo porque a vida, sem
autonomia e liberdade, perde o sentido e deixa de ser digna. A dignidade, tanto
quanto a vida, é intrínseca ao homem, na visão de Kant.227
No mesmo sentido, Sarlet228 afirma como núcleo da dignidade da pessoa
humana a liberdade (autonomia), entendida esta como a capacidade do homem de
se autodeterminar. E a dignidade é característica ínsita a todo indivíduo e só há
224 MONDIN, B. op cit . p.109. 225 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p.59. 226 FERRY, Luc. Aprender a viver. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 93. 227 KANT, I. op. cit. p. 81. 228 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível , in: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Dimensões da Dignidade. Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
81
dignidade com garantia da autonomia ética e, por isso, “ninguém será obrigado a
fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei”229.
E se a dignidade da pessoa humana é uma qualidade que deriva e
pressupõe a autonomia e a liberdade230, então pode-se concluir que a noção de
homem livre é a única premissa possível para a análise objeto deste estudo. A partir
desse ponto de partida, o Direito Penal deve trabalhar sob o princípio da
Culpabilidade, já analisado no capítulo anterior, e melhor o fará considerando a
categoria dogmática da culpabilidade fundada no poder agir de outro modo.
É claro que não mais o poder agir de outro modo de base psicológica,
como em Welzel, mas outras soluções possíveis têm sido apresentadas por autores
que se dedicam ao Direito Penal. Destas, analisam-se duas como pontos de partida
possíveis a partir da premissa constitucional de homem moralmente autônomo:
2.1.1 Culpabilidade como poder agir de outro modo em Schünemann:
“ A linguagem é uma pele: fricciono minha linguagem contra o
outro. Como se eu tivesse palavras à guisa de dedos, ou dedos
na ponta de minhas palavras”231
A culpabilidade em Schünemann é poder agir de outro modo, com
fundamento na liberdade do indivíduo (livre arbítrio), que independente de ser
comprovada como característica biológica, psicológica ou física, pois não deixa de
estar atestada empiricamente pela realidade social expressada na linguagem. É o
que fica claro a respeito de suas premissas na seguinte passagem:
“Certamente, o livre arbítrio não é um dado meramente biofísico, senão uma parte da chama reconstrução social da realidade e, inclusive, segundo creio, pertence a uma capa especialmente elementar, ao menos da cultura
229 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil . Artigo 5o., II, disponível em planalto.gov.br, acesso em 05.01.2012. 230 TAYLOR, Charles - Sources of the Self: the making of the modern ident ity . Cambridge: Harvard University Press, 1989. p. 97. 231 BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Maria Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 99.
82
ocidental, cujo abandono só seria concebível em caso de liquidação desta cultura em sua globalidade”232
Schünemann apoia-se na Teoria da Linguagem de Humboldt e Whorf,
para os quais a estrutura de uma língua revela uma concepção de mundo que a
acompanha e “o livre arbítrio é mais elementar das formas gramaticais” 233. A
liberdade é elemento essencial da língua em Humboldt:
“Liberdade é a razão pela qual a linguagem humana não pode ser completamente entendida por meios científicos. Quando livre, o poder mental que gera a língua “cria seu próprio acordo”, independente de causas apriorísticas. Por isso “todas as possibilidades de explicação automaticamente cessam. A linguagem humana é sempre “exalação mental”, e não interessa quanto nós consertemos ou incorporemos, desmembremos ou dissequemos, sempre sobra algo desconhecido nela, e precisamente isso que escapa ao tratamento científico é onde repousa a unidade e o fôlego” da linguagem. E por esse papel essencial da liberdade nos assuntos mentais e linguísticos estes dois não podem ser explicados por bases meramente psicológicas”234
Humboldt afirma também que “apesar da liberdade em si ser
indeterminável e inexplicável ... a pesquisa linguística deve reconhecer e respeitar o
fenômeno da liberdade”235, pois a linguagem requer a liberdade e “isso pode ser
visto como sinal certo das mais puras e mais bem sucedidas estruturas de
linguagem”236, tanto que as línguas humanas são diversas e Humboldt credita isso à
liberdade humana237.
Por isso Schünemann baseia-se na estrutura da língua, que denota
sempre construções nas quais se utilizam um sujeito ativo e um objeto de ação,
afirmando que “as formas gramaticais da voz ativa e a passiva mostram uma visão
de mundo conformada pelo sujeito ativo, e, em última instância, por sua liberdade de
ação” 238. Assim, por exemplo, ações humanas desenvolvidas sob livre arbítrio
232 SCHÜNEMANN, Bernd. La función del princípio de culpabilidad en el dere cho penal preventivo. In SCHÜNEMANN, Bernd. El sistema moderno de Derecho Penal: cuestiones fundamentals. Trad. Jesus-María Silva Sanchéz. Madri: Tecnos, 2000. p. 154. 233 Id. 234 HUMBOLDT, Wilhelm von. On language: on the diversity os human language con struction and its influence on the mental development os the human species. Trad. Peter Heath. Reino Unido: Cambridge University Press, 1999. p. xii 235 Idem. p.64. 236 Idem. p.144. 237 HUMBOLDT, Wilhelm von. On language:... xvi. 238 SCHÜNEMANN, Bernd. La función del princípio de culpabilidad en el dere cho penal preventivo. In SCHÜNEMANN, Bernd. El sistema moderno de Derecho Penal: cuestiones fundamentals. Trad. Jesus-María Silva Sanchéz. Madri: Tecnos, 2000. p. 155.
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encontram-se linguisticamente estruturadas com sujeito ativo, ação e eventualmente
objeto em diversas línguas da cultura ocidental e também no árabe239.
Para o professor alemão, enquanto tais estruturas linguísticas sejam a
base da sociedade, a liberdade não pode deixar de ser o ponto de partida”240 e
somente no momento em que o sujeito passar a achar normal se comunicar através
de estruturas que não invoquem sujeito e predicado, se poderá questionar a ideia de
liberdade de vontade e, como consequência, também questioná-la no Direito Penal,
pois, a partir da linguagem, a ideia de livre arbítrio corresponde a uma realidade
social, ainda que não se possa afirmar cientificamente como realidade psicológica.
Desse modo “seria completamente impossível por em prática um Direito Penal que
partisse da ausência do livre arbítrio no homem241
Um ponto de partida determinista implicaria em renúncia ao caráter
normativo de todo o Direito Penal, o que se ilustra muito bem pelo exemplo de
Schünemann sobre o juiz que, diante da objeção do acusado de que não tinha livre
arbítrio e somente por isso houvera praticado o crime, replicou com pesar que
também ele, juiz, carecia de livre arbítrio e não podia fazer nada senão condená-
lo242.
Para concluir, o autor em apreciação releva que, do modo como exposto,
não há qualquer necessidade de fundar as bases do Direito Penal sobre uma ficção
ou valoração em favor do autor e em relação ao conteúdo da culpabilidade afirma
categoricamente que “deve partir da possibilidade de atuar de outro modo”243.
2.1.2 Culpabilidade como poder agir de outro modo e m Vives Antón:
239 Em português, ingles, francês, espanhol, italiano e árabe, respectivamente, uma ação humana estruturada na língua com sujeito ativo, ação e objeto: Ela estuda alemão. She studies German. Elle étudie allemande. Ella estudia alemán. Lei studia tedesco. Hie btderos almani. Sobre a linguística comparada em Schunemann encontra-se: “As conclusões da linguística comparada provam que esta interpretação da estrutura gramatical básica das chamadas línguas SAE não constitui uma supervalorização de uma variação idiomática casual, em si mesma irrelevante.” SCHÜNEMANN, Bernd. La función… p. 156. 240 SCHÜNEMANN, Bernd. La función… p. 155. 241 SCHÜNEMANN, Bernd. La función… p. 157. 242 Id. 243 Idem. p. 157 e 158.
84
Vivés Antón constrói sua teoria da ação significativa baseado na
significação a partir de formas de vida, sentido este que, conforme pensamento do
segundo Wittgenstein, referido pelo espanhol, “surge da interação social mediada
por regras”244. Realidade não é apenas matéria, mas também compreensão e
interpretação, sendo que estas importam mais, na medida em que o que as pessoas
entendem de mundo é mais importante do que o mundo em si, pois essa percepção
é a realidade subjetiva. Dessa concepção decorre que as palavras não descrevem
algo estático (substrato real), mas sim expressam os significados que elas
comportam, por isso “essa estipulação definidora é uma regra que deve ser seguida,
e só em virtude disso adquire a palavra o significado que conhecemos”245.
A ação significativa de Vives Antón encontra suporte teórico não apenas
na filosofia da linguagem, mas também na ação comunicativa de Habermas, da qual
é importante citar o ponto de partida habermasiano transcrito por Vives Antón:
“Para a análise do conceito de ação é fundamental o conceito de seguir uma regra, (...). Do conceito de seguir uma regra se segue um conceito de capacidade de ação , conforme a qual o sujeito a) sabe que segue uma regra b) (se) nas circunstâncias apropriadas está em condições de dizer qual regra está seguindo, isto é, de indicar o conteúdo proposicional da ‘consciência da regra’. (...) Falamos de ‘mero’ comportamento quando não cabe pressupor uma consciência implícita de regra, mas sim uma capacidade de ação mínima, no aspecto de que o organismo de que se trate pode distinguir ‘em algum sentido’ entre fazer e deixar de fazer, por um lado, e fazer e padecer, por outro 246.
Para a presente pesquisa, é indispensável entender que “a noção de
seguir uma regra é inseparável da de cometer um erro”247, já que, conforme expõe
Vives Antón sobre o conceito de ação em Habermas, “a ação, como portadora de
sentido, é o resultado de um processo de interpretação conforme as regras”248.
Sobre os problemas enfrentados e discutidos na doutrina acerca do
conceito de conduta e sua relevância para o Direito Penal, Vives Antón entende que
o método substancial (que poderia ser representado pela noção de conduta em
244 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos del sistema penal. Acción Significativa y Derechos Constitucionales. Valência: Tirant lo Blan ch, 2011. p. 205. 245 VIVES ANTÓN, T. S. Fundamentos del sistema penal… p. 206. 246 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa: complementos y es tudios previos. Madri: Cátedra, 1989. p. 233 apud VIVES ANTÓN, T. S. Fundamentos del sistema penal… p. 209. 247 VIVES ANTÓN, T. S. Fundamentos del sistema penal… p. 207. 248 Idem p. 210.
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Welzel) é tão inadequado quanto o método atributivo ( como a noção de conduta em
Roxin ou Jakobs), pois ambos referem-se a um objeto.249
A partir da ação significativa, o tipo penal não é descrição de um substrato
real, mas sim a expressão linguística de um significado social de conduta, como se
percebe na seguinte passagem na qual o professor espanhol elucida a concepção
significativa da ação:
“A ação não é, pois, um fato específico; nem pode definir-se como substrato da imputação jurídico-penal (...) Definirei, pois, a ação como sentido que, conforme um sistema de normas, pode atribuir-se a determinados comportamentos humanos. Se opera, assim, um giro copernicano na teoria da ação: já não é o substrato de um sentido, mas, ao contrário, o sentido de um substrato”250
Tendo este ponto de partida, e substituindo a pretensão de verdade
buscada por muitas teorias penais até o finalismo por uma pretensão de justiça,
Vives Antón propõe que a pretensão de validade da norma penal se componha de
quatro outras: de relevância, de ilicitude, de reprovação e de necessidade da
pena251, sendo importante para esta pesquisa a terceira, que vai delimitar o
conteúdo da culpabilidade.
A pretensão de reprovação recai sobre o autor, dizendo-lhe que realizou
“uma ação ilícita, muito embora lhe fosse juridicamente exigível agir de outro
modo”252. Ou seja, o conteúdo da culpabilidade é um dever-agir-de-outro-modo,
porque o poder para tanto é presumido a partir da consideração do infrator como
pessoa em atitude participativa e não objeto, afirmando ainda Vives Antón que “a
reprovação restitui ao delinquente sua dignidade de ser racional”253. Carlos Martinez-
Buján Pérez então, alinhado à esta teoria, conclui que “o juízo de culpabilidade dirá
se era possível exigir da pessoa que realizou uma ação determinada ter obrado
conforme a norma penal”254. Segundo Paulo Busato, é o que “tradicionalmente se
chamaria de um juízo de culpabilidade”.
249 VIVES ANTÓN, T. S. Fundamentos del sistema penal…p. . 220. 250 VIVES ANTÓN, T. S. Fundamentos del sistema penal… p. 221. 251 Idem. p. 488 a 495. 252 No mesmo sentido Buján Pérez afirma que a partir da pretensão de reprovação, dirige-se ao autor um reproche jurídico em razão de ter “realizado uma ação ilícita, muito embora lhe fosse juridicamente exigível atuar de outro modo, isto é, de forma adequada ao Direito” MARTINEZ - BUJAN PÉREZ, C. Derecho penal economico... p.. 445. 253 VIVES ANTÓN, T. S. Fundamentos del sistema penal… p. 494. 254 MARTINEZ - BUJAN PÉREZ, C. op cit. p. 449.
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Para que possa pretender-se reprovar o autor, Vives Antón explica que o
sujeito deve ser imputável e deve ter agido conhecendo ou podendo conhecer a
ilicitude de sua ação.255 Adicionalmente, Buján Perez afirma que se pode chegar à
conclusão, “partindo dos postulados propostos por Vives (...) que a diferença entre o
comportamento humano culpável e o que não é reside na normalidade ou
anormalidade do processo motivador”256. Esta conclusão parece correta se
considerarmos a lição de Busato, para quem “a ação é fundamentalmente a
expressão de um atuar incondicionado pelo meio, pois do contrário, não transmite
este sentido senão o mero sentido de acontecimento”257
Claramente essa concepção também parte da ideia de liberdade e
autonomia, mas essa premissa não é algo a ser comprovado empiricamente, senão
o sentido de como as interações sociais se desenvolvem. Wittgenstein, citado pelo
catedrático de Valencia, ao comentar a dúvida determinista, aponta o sentido
expressado na linguagem: “Normalmente, não falamos desta maneira. Falamos de
tomar decisões”258. Por isso Vives Antón conclui pela culpabilidade como poder-agir
de-outro-modo:
“Vivemos segundo a ideia de que nós podemos atuar de outro modo diferente do que fazemos e de que os demais também podem fazê-lo. Essa ideia (a ideia de que, dentro de certas margens, somos livres) está ancorada no mais profundo de nosso modo de atuar, de pensar e de falar. (...) A dúvida determinista não se limita, pois, a por em tela o juízo da culpabilidade; senão que, involuntariamente , vai muito além: como acabou de se afirmar, toda a linguagem da ação acaba deslegitimada por ela”259
Esse é também o entendimento de Paulo Busato, quando, ao discorrer
sobre a liberdade de ação, conclui que ela deve ser “reconhecida a partir de uma
determinada concepção de mundo, o que leva forçosamente a uma opção” e
explica:
“Ou se concebe o mundo e as coisas do mundo a partir da compreensão da capacidade de autodeterminação impelida pela racionalidade, ou
255 VIVES ANTÓN, T. S. Fundamentos del sistema penal… p. 494. 256 MARTINEZ - BUJAN PÉREZ. op cit. p. 449. 257 BUSATO, Paulo César. Direito penal e ação significativa… p. 208. 258 WITTGENSTEIN, Ludwig. Ocasiones filosóficas. p. 414 apud VIVES ANTÓN, T. S. Fundamentos del sistema penal… p. 863. 259 VIVES ANTÓN, T. S. Fundamentos del sistema penal… p. 865.
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simplesmente não se concebe assim o mundo, perdendo qualquer sentido a própria ideia de regulamentação normativa pelo direito”260
Há ainda que se ressaltar, como característica da teoria proposta por
Vives Antón, que ora se tenta expor sucintamente, a diferenciação entre a
culpabilidade jurídica e a culpabilidade ética. Enquanto esta última necessitava da
comprovação total da capacidade do sujeito de agir de outro modo, a jurídica
contenta-se com a prova de aspectos parciais.261 Busato afirma que “a norma em
questão pretende valer em face daquele autor determinado, pelo que se lhe
identifica como pessoa que tem uma atitude participativa em face da realização do
delito”262.
Logo, percebe-se que tanto a partir da perspectiva de Schünemann,
quanto desta ofertada por Vives Antón, é possível sustentar o conteúdo da
culpabilidade no poder agir de outro modo. Obviamente, partindo de concepções
diferentes, as repercussões para a teoria do delito em cada um dos autores serão
também diversas, mas como a consciência potencial da ilicitude recai em ambas
numa análise normativa dos critérios de determinação da exigibilidade de busca da
informação, não haveria incompatibilidade em apresentá-las – as duas - como
possibilidades de pontos de partida do presente estudo.
É que sendo a culpabilidade um poder agir de outro modo, é lógico que
demande o conhecimento da ilicitude da conduta, pois não haveria sentido ordenar
ao sujeito um comportamento diverso se o mesmo não sabe – ou não pode saber –
que sua ação está em desconformidade com o Direito.263
Isso pode ser afirmado, muito embora se possa colocar em questão o fato
de que se admitindo a liberdade como demonstrável (Schünemann), ainda que não
psicologicamente, mas através da linguagem, isso redundaria em proceder da
mesma forma em relação à potencial consciência da ilicitude, caindo então nos
mesmo problema de que somente critérios normativos poderão permitir sua aferição
no caso concreto, o que se admite desde o início a partir a teoria de Vives Antón.
260 BUSATO, Paulo César. Direito penal e ação significativa. .. . p. 199. 261 VIVES ANTÓN, T. S. Fundamentos del sistema penal… p. 855. 262 BUSATO, Paulo César. Direito penal e ação significativa… p. 207. 263 Como se entenderá em tópicos adiante, aqui denota-se uma adoção da teoria intermediária quanto ao conteúdo do objeto da consciência da ilicitude. Mas a frase poderia ser construída diversamente, caso a concepção fosse outra: “…em desconformidade com a ordem social”(teoria tradicional) ou “…em desconformidade com o Direito Penal”(teoria formal)
88
2.2 O elemento consciência da antijuridicidade
O preceito do error juris nocet sempre teve muita força até que se
reconhecesse a consciência da antijuridicidade como elemento da culpabilidade,
segundo o qual se reprova o autor não apenas porque conhece a realização da
conduta, mas também porque conhece sua licitude.264 O jurista alemão explicava
que “o conhecimento da antijuridicidade não é o que se reprova no autor, e sim
porque se reprova o autor pelo dolo antijurídico”, ou seja, reprova-se porque,
conhecendo a ilicitude, pode omitir a decisão antijurídica.265
Quando se emprega o termo consciência da antijuridicidade na doutrina,
não é raro encontra-lo com significados diferentes: como potencial consciência da
ilicitude, como conhecimento efetivo da ilicitude ou como consciência atual da
ilicitude, devendo ser sempre indicado com clareza, pois, admitindo-se uma ou outra
noção, as consequências para a conformação da culpabilidade são muito diversas.
A legislação brasileira, segundo inteligência que se extrai do artigo 21 do
Código Penal266, exige, para que se possa afirmar culpável o autor de uma conduta
antijurídica, além da imputabilidade e de circunstâncias objetivas que tornem exigível
a conduta, que ele ao menos pudesse conhecer o caráter ilícito do fato por ele
praticado. Ou seja, estabelece ser punível a conduta daquele autor que teve ao
menos a possibilidade de compreender a ilicitude do fato, mas isso sempre que a
própria lei não exigir conhecimentos efetivos de aspectos particulares do complexo
de que depende a configuração do crime.267
Assim, um fato somente é reprovável se o autor conheceu exatamente ou
poderia ter conhecido exatamente seu conteúdo jurídico de desvalor.268 A
reivindicação da consciência da antijuridicidade como elemento do conceito de crime
é decorrência obrigatória do princípio da culpabilidade, que o impõe enquanto
264 WELZEL, H. Derecho penal… p. 172. 265 WELZEL, H. Derecho penal… p. 175. 266 Art. 21 - O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço. Parágrafo único - Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência. In BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm, acesso em 20.09.2012. 267 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. SLOKAR, Alejandro. ALAGIA, Alejandro. Derecho Penal. Parte General . 2a. Ed. Buenos Aires: Ediar, 2002. p.676. 268 WELZEL, H. Derecho penal… p. 169.
89
componente essencial da reprovabilidade, na medida em que o agente que toma
uma decisão, só pode ser responsável por ela se compreende o significado, perante
o ordenamento jurídico, da sua ação. E nesse sentido parece haver um consenso na
doutrina nacional e estrangeira.
Jakobs, após breve recapitulação sobre as teorias do dolo e da
culpabilidade, conclui que independente de qual delas se adote, “todas as versões
mencionadas (...) tem em comum que definitivamente a consciência da
antijuridicidade é relevante para a responsabilidade”269.
Daí porque Zaffaroni afirmar que “O exercício do poder punitivo sem essa
possibilidade de compreensão ou abaixo do limite de compreensão razoavelmente
exigível, implica uma clara violação do princípio da culpabilidade, especialmente
quando se apela à regra do error juris nocet”270
Não há que se confundir a consciência da ilicitude com a consciência
moral, principalmente no estudo do Direito Penal, que tem sua base principal de
construção dogmática na Alemanha, onde a linguagem dispõe de dois termos
diferentes que, em português, se traduzem como consciência, unicamente. Assim,
“Bewusstsein é consciência como a soma de representações, reconhecimento de si
e do mundo ou conhecimento reflexivo das coisas, enquanto Gewissen é a
consciência moral, como conhecimento interior do bem e do mal, em sentido
parecido ao superego psicanalítico ou a voz da consciência na linguagem
corrente”271
E também é importante anotar a relação de contrariedade entre a
consciência da antijuridicidade e o “autor por consciência” ou “consciência
dissidente”. A discrepância reside justamente na diferença acima demarcada entre a
consciência da ilicitude e a consciência moral. Sendo a consciência moral sinônimo
de ética individual, é fácil entender que esta nem sempre vá coincidir com os valores
tutelados pelo direito. Como efeito, dizer que uma autoria foi por consciência pode
significar justamente o contrário do requerido pelo Direito, se a consciência individual
conflitar com o ordenamento, ou, nas palavras de Zaffaroni quando o sujeito “revive
o drama de Antígona no conflito entre o imperativo da ética individual e os valores
objetivados juridicamente”, de tal modo que não poderia agir conforme a norma sem
269 JAKOBS, G. Derecho… p. 657. 270 ZAFFARONI, E. R. SLOKAR, A. ALAGIA, A. Derecho Penal… p.677/678. 271 Idem. p.678.
90
molestar sua consciência moral.272 O mesmo ocorre, muito embora o termo seja
mais expressivo do sentido para a ciência do Direito, com a expressão consciência
dissidente. Ela é dissidente do esperado pelo Direito. São exemplos os crimes
praticados por convicção política ou religiosa.
Importa, assim, analisar a consciência da antijuridicidade de modo
decomposto, a fim de que seja delimitado de forma detalhada o conceito.
2.2.1 Conhecimento e Compreensão
A compreensão, seria, dentro do caminho da elaboração intelectual de
cada indivíduo capaz, um passo além do simples conhecimento, que, no entanto, é
seu pressuposto lógico. A compreensão seria conhecer e internalizar, ou, em outra
palavra, introjetar, para usar os termos comumente repetidos pela doutrina.273
Hassemer explica que “a compreensão pressupõe uma abordagem do
sentido”274, consistindo em uma aproximação do sujeito que entende ao objeto
entendido. Transportando a ideia para a consciência da ilicitude e desdobrando o
raciocínio, o sujeito que compreende a antijuridicidade é aquele que está mais
próximo da ilicitude, e quando mais a compreensão lhe seja difícil, mais distante do
caráter ilícito de sua conduta ele está enquanto sujeito. Por isso é possível dizer que
no caso dos delitos econômicos, sendo certo que a compreensão da ilicitude é mais
difícil, haja vista que o valor tutelado não corresponde às pautas valorativas sociais
tradicionais, seus agentes encontram-se sempre subjetivamente mais distantes do
caráter ilícito do fato.
Internalizar ou introjetar é apreender o sentido, aderir a um determinado
significado de algo, aceitar como certo e incorporar à pauta valorativa que guia as
decisões do indivíduo (ética individual). O termo “penetrar” utilizado por Zaffaroni ao
discorrer sobre o significado de compreensão na filosofia parece ser muito acertado
e o mais representativo se fosse preciso escolher um deles, pois a compreensão no
sentido necessário à definição de consciência da ilicitude seria a penetração no
espírito do indivíduo do significado de algo:
272 ZAFFARONI, E. R. SLOKAR, A. ALAGIA, A. Derecho Penal… p.678. 273 ZAFFARONI, E. R. SLOKAR, A. ALAGIA, A. op cit. p.676. 274 HASSEMER, Winfried. Direito Penal Libertário. Trad. Regina Greve. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 16.
91
Incluso semánticamente, en castellano comprender significa entender, alcanzar, penetrar, pero también contener, incluir en sí alguna cosa, como que deriva de la raíz indoeuropea ghend (literalmente coger, agarrar), lo que confirma el sentido filosófico y jurídico-penal, que no se conforma con el mero conocimiento o posibilidad de conocimiento.275
Na esteira da lição de Silva Dias, quando o sujeito participa num mundo
de significados, pode-se afirmar que ele teve “a experiência de desvalor de onde
provém a reação censória” e essa experiência não está necessariamente vinculada
a um sentimento de culpa por parte do autor, que somente se daria com a
internalização do significado, da qual independe “a atribuição de culpa jurídico-
penal”, bastando para esta que o sentido seja acessível ao autor.276
Aliás, em Carlos Gómez-Jara Díez, apoiado em Jakobs, é justamente a
participação na produção comum de sentido, ou “a quem se reconhece a
competência para emitir esboços do mundo social”, o que justifica fazer o sujeito
responsável penalmente.277
Zaffaroni apresenta esclarecedor exemplo que demonstra bem a distância
entre o conhecer e o compreender, explicando que uma pessoa pode chegar a
conhecer os valores de uma cultura diversa da sua e inclusive respeitá-los, mas isso
não depende de que os tenha internalizado ou seja, que aqueles valores tenham
sentido para o indivíduo que os conheceu.
(…)el antropólogo cultural conoce los valores de la cultura diferenciada y ajena que estudia, pero no por ello los comprende; los conoce y los explica, sabe el alcance que tienen en la sociedad o en la ley que los consagra, se abstiene de violarlos porque quiere seguir investigando y, para ello, no quiere que lo expulsen de la sociedad que observa, pero en cuanto termina su labor profesional sigue comportándose conforme a los valores de su propia cultura. De allí que la comprensión no sea el mero conocimiento de un dato de ¡a realidad sino una instancia superior de incorporación.278
Também pela a ideia de que os valores assimilados pelo indivíduo são
aqueles que compartilha com os membros de um grupo que formam o seu “mundo”
e com os quais participa na atribuição dos significados sociais, Zaffaroni frisa a
275 ZAFFARONI, E. R. SLOKAR, A. ALAGIA, A. op cit. p.676. 276 DIAS, Augusto Silva. Ramos emergentes do Direito Penal relacionados com a proteção do futuro. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. p. 170 e 171. 277 JARA DÍEZ, Carlos Gomez. La culpabilidad penal de la empresa. Madri: Marcial Pons, 2005. P. 286. 278 ZAFFARONI, E. R. SLOKAR, A. ALAGIA, A. op cit. p.678.
92
necessidade de que o sujeito reconheça a si mesmo enquanto pessoa e reconheça
o outro como outro, porque do contrário não será capaz de assimilar um desvalor
jurídico.
Nas palavras do autor argentino:
quien no sea capaz de vivenciar su condición de persona no podrá comprender un desvalor jurídico en el marco de una comunidad de individuos. Quien no distingue el Yo del Tú, no puede tener realmente un Yo, porque permanece sin saber que hay un mundo en el que puede ser de alguna forma, lo que para él será inalcanzable. Por ende, no es posible formular requerimiento alguno al que no vivencia a los demás como personas, puesto que no puede valorar ni comprender la valoración ajena y, por consiguiente, la jurídica.279
É que o indivíduo que está no mundo está imerso num mundo de
significações, que “são os para que de cada coisa” e esse sentido das coisas é a
sua cultura, que “permite sua cotidianeidade e possibilita sua autenticidade”280. Mas
não há em todo mundo real uma universalidade de significações e quando os
autores se remetem ao mundo do indivíduo querem se referir à sua esfera de
sociabilidade, ou o lugar de atuação de seu personagem social e ainda o que ele
entende por mundo.
Daí porque Zaffaroni afirmar que a compreensão de mundo do polinésio,
do esquimó, do legislador que tipifica o concubinato ou a bruxaria são diferentes. E
são essas peculiaridades que podem em algumas circunstâncias extremas originar a
prática de um comportamento em relação ao qual não se verificaria a potencial
consciência da ilicitude que tornaria exigível a abstenção da ação. Por isso, Augusto
Silva Dias explica que “o sujeito da culpa não é um indivíduo isolado e abstrato,
mas o indivíduo concreto ‘lançado’ (Heidegger) na interação comunicativa de um
determinado mundo da vida”281.
Conclui-se, portanto, que quando se fala em consciência da ilicitude, se
está falando em conhecimento e não compreensão, porque não seria legítimo exigir
do indivíduo que internalizasse e incorporasse à sua conduta valores e significações
que não correspondem à sua concepção de mundo ou de si mesmo, ou seja, “não
279 ZAFFARONI, E. R. SLOKAR, A. ALAGIA, A. op cit. p.678. 280 Idem. p.680. 281 DIAS, Augusto Silva. Ramos emergentes do Direito Penal relacionados com a proteção do futuro. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. p. 169.
93
se pode exigir que incorpore às suas próprias pautas de conduta outras diferentes
(…) não se pode exigir que assimile como parte de sua própria estrutura de pautas
de conduta, que vivencie esses valores como próprios”282
Por isso Zaffaroni, na mesma passagem, vai referir que, partindo-se da
noção filosófica de compreensão como assimilação do valor, chega-se à conclusão
de que em regra o autor de um fato criminoso quase nunca compreende a ilicitude
da sua ação, pois se compreendesse completamente não cometeria o injusto e, por
essa razão, “se a lei exigisse a compreensão efetiva da antijuridicidade, seria mister
concluir por uma inculpabilidade geral”.
2.2.2 Conhecimento efetivo, conhecimento atual e co nhecimento atualizável.
Quando se trata do tipo de conhecimento exigido para a conformação do
dolo, é possível registrar duas características, o conhecimento deve ser efetivo e
atual ou atualizável.283 E desde logo se exclua dessa classificação aquilo que foi
conhecido e, posteriormente, totalmente esquecido, apagado, porque ao contrário do
que defende Roxin284, não se pode dizer conhecido e atualizável, tomando-se por
base que o que é conhecido é aquilo que está à disposição do indivíduo, e o que foi
esquecido não está.
Tomando-se por base a definição do termo efetivo no Dicionário Houaiss
da língua portuguesa, que amolda-se perfeitamente à noção de efetividade
transmitida pela doutrina quando se refere a essa necessidade, temos que
conhecimento efetivo é aquele “realmente disponível”285 ou aquele que se contrapõe
ao conhecimento potencial. Conhecimento potencial, na verdade, é um não-
conhecimento, mas apenas uma possibilidade de conhecimento, como detalhado
adiante.
Além de efetivo, o conhecimento deve ser atual (quando sobre ele
focaliza-se a atividade consciente) ou atualizável (não é o foco da atividade 282 ZAFFARONI, E. R. SLOKAR, A. ALAGIA, A. op cit. p.680. 283 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1. 6ª. Ed. São Paulo: RT, 2004.p. 459. 284 ROXIN, C. Derecho… p. 874. 285 São as demais definições, não tão precisas, mas aplicáveis na expreesão do sentido aqui desejado: “ capaz de produzir um efeito real”; “que realmente se exerce, se cumpriu ou se produziu”; “o que realmente existe ou funciona; o real, a realidade”. HOUAISS, Antônio. VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. p. 723.
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consciente, mas podem vir a ser se recordados). Tanto o conhecimento atual,
quanto o conhecimento atualizável, são efetivos. Com relação a esse grau de
atualização, o dolo nem sempre precisa de conhecimento atual, permitindo que seja
também integrado por alguns conhecimentos atualizáveis. Assim:
...existem alguns conteúdos de consciência que não podem ser separados de outros em que “se pensa”, o que significa que quando focalizamos a consciência sobre alguns objetos há um co-pensar em outros, que não podem ser separados dos anteriores, sem qualquer necessidade de que expressamente pensemos nos segundos.286
Em sentido semelhante, Buján Pérez afirmar que “há um acordo em
entender que o conhecimento atual não implica exigir um processo de reflexão ou
nítida representação, bastando, ao contrário, uma co-consciência de realizar algo
injusto”.287
E por que seria importante, para o presente estudo, essas conceituações,
se a consciência da ilicitude é meramente potencial? Explica-se: o critério de
aferição da consciência da ilicitude baseado na valoração paralela na esfera do
profano foi elaborado por Mezger dentro de uma conceituação psicológico-normativa
da culpabilidade e a partir das teorias do dolo, que incorporavam a consciência da
ilicitude como elemento do dolo e, como consequência, também exigia o mesmo tipo
de conhecimento e grau de atualização. Por isso não havia qualquer inconveniente
na utilização do critério da valoração profana que comprovaria – ou não – um
conhecimento atual ou atualizável, mas sempre efetivo, o que de fato se pode extrair
das circunstâncias concretas do autor do fato ou, na expressão de Figueiredo Dias,
de sua historicidade concreta288. A conclusão em relação ao conhecimento
potencial, todavia, não é a mesma, já que mesmo esses elementos concretos de
historicidade individual não podem conduzir à certeza de algo que não existe, mas
poderia ser que viesse a existir, ainda mais se considerada que a ideia da
consciência potencial foi definitivamente implantada na dogmática moderna através
da Teoria Finalista, que buscava sempre afirmar seus conceitos no substrato real.
Em relação ao grau de conhecimento exigido na consciência da ilicitude,
Jakobs entende que há responsabilidade penal quando o autor tem consciência da
286 ZAFFARONI, E. R.. PIERANGELI, J. H. op cit ..p. 460. 287 MARTINEZ - BUJAN PÉREZ, Carlos. Derecho penal economico y de la empresa. Parte General . 2.ed. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2007. p. 453. 288 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal… p. 452.
95
antijuridicidade atualmente no momento do fato ou ao menos atualizável.289 O autor
alemão fala também na consciência da ilicitude condicionada, que se daria quando o
autor, embora não saiba, “considera seriamente que seu comportamento pode ser
contrário à norma”290
Claus Roxin também coloca em questão a consciência eventual da
antijuridicidade, nos casos em que o sujeito não vê com clareza a situação jurídica,
considerando provável que esteja permitida, mas com a possibilidade de estar
proibida.291 Este autor distingue ainda a consciência eventual própria, quando há
dúvida por parte do sujeito em uma situação jurídica indiscutível e a consciência
eventual imprópria, quando a situação jurídica em si for discutida.292
Ocorre que nas situações definidas por Jakobs como consciência
condicionada e por Roxin como consciência eventual, a dúvida concreta, por
qualquer das razões apresentadas, já ensejaria o dever de informação que, se não
realizado, configura o erro evitável, podendo-se dizer que a classificação é
desnecessária, tendo utilidade apenas como análise de situações concretas.
2.2.3 Conhecimento Potencial da antijuridicidade.
O conhecimento potencial é um não conhecimento, ou desconhecimento.
Nas palavras de Carlos Martínez-Buján Pérez, “um conhecimento potencial não é
um conhecimento em sentido estrito, porque (as palavras são de Schmidhäuser) ‘um
conhecimento que não se tem, e que somente se pode adquirir, não é ainda
conhecimento.293 Porém, nesta matéria, o legislador teve que escolher entre o
conhecimento da ilicitude como base de emanação do mandato normativo e a
premissa da responsabilidade como ponto de partida294, que permite trabalhar com a
consciência apenas potencial, tendo optado por esta última ao regular no artigo 21
do Código Penal295 a consciência da ilicitude potencial como suficiente para
289 JAKOBS, G. Derecho Penal… p. 668. 290 Idem. p. 671. 291 ROXIN, C. Derecho Penal… p. 874. 292 Nota de rodapé número 39 em ROXIN, C. Derecho Penal… p. 874. 293 MARTINEZ - BUJAN PÉREZ, Carlos. Derecho penal economico … . p. 455. 294 BACIGALUPO ZAPATER, E. Evitabilidad… p. 27. 295 Art. 21 - O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço.
96
configuração da culpabilidade. Nos casos de erro evitável, ou consciência potencial
da ilicitude, a punibilidade tem lugar pois “o autor poderia ter tido a consciência da
antijuridicidade que realmente não teve ao executar o fato, ou seja, porque poderia
agir de outra maneira”296. Por isso Augusto Silva Dias afirma que a consciência
potencial da ilicitude equivale ao erro censurável. 297
Repisando as evidências mostradas no capítulo anterior, foi ainda no
período da teoria psicológico-normativa que a consciência da ilicitude, naquele
momento ainda elemento do dolo, foi elaborada enquanto consciência potencial,
pois esta era uma das possíveis soluções para as lacunas de punibilidade que
decorriam de ser-lhe exigido o conhecimento atual, muitas vezes não verificado no
caso concreto. A origem dessa elaboração teórica está explicitada em Mezger, tendo
sido criada vinculada não apenas à ideia de evitabilidade dos delitos culposos, como
ao contexto fático de inflação legislativa em matéria econômica.298
A proximidade do conhecimento da ilicitude potencial com a estrutura do
crime culposo é importante para a compreensão de que ele está sempre vinculado a
um dever semelhante ao dever de cuidado, na medida em que impõe ao cidadão
não se posicionar de modo indiferente ao Direito, mas antes ter uma atitude diligente
em relação a este. Claro que isso não determina a busca constante de informação
ou mesmo que todos leiam o Código Penal (o que aliás, em tempo de inflação
legislativa penal extravagante sequer seria suficiente) e por isso o erro evitável
também deve aliar-se, no caso real, a um motivo concreto que faça emergir tal dever
e somente assim se pode atribuir culpabilidade ao sujeito.
Olhando-se para a estrutura da conduta: no crime doloso com consciência
da antijuridicidade: a finalidade é ilícita e isso é sabido pelo agente no momento em
que toma a decisão de executar a conduta. No crime doloso sem consciência da
antijuridicidade: a finalidade é ilícita e isso não é sabido pelo agente no momento da
decisão, sendo que ele coloca em marcha um curso causal sem saber que lesionará
um bem jurídico, o que acaba fazendo pelo descuido de não se informar. No crime
culposo, a finalidade é indiferente, mas acaba chegando a um resultado ilícito, que Parágrafo único - Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência. In BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm, acesso em 20.09.2012. 296 BACIGALUPO ZAPATER, E. Evitabilidad… p. 28. 297 DIAS, Augusto Silva. Ramos emergentes do Direito Penal relacionados com a proteção do futuro. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. p. 180. 298 MEZGER, E. Tratado… , p. 144.
97
não é admitido pelo agente: coloca em marcha um curso causal sem saber que
lesionará um bem jurídico, mas acaba fazendo isso por descuido na execução da
conduta. E não se pode desconsiderar que a consciência da ilicitude do fato é
determinante da decisão inicial. E aqui vale a ponderação de Roxin:
Sin embargo, la teoría de la culpabilidad pierde poder de convicción y la teoría del dolo gana plausibilidad en la misma medida en que la dañosidad social de una conducta ya no sea deducible sin más del conocimiento de las circunstancias determinantes del injusto jurídicopenal.299
Tanto no crime doloso praticado em erro evitável quanto no crime culposo,
o agente não sabe que sua conduta lesionará um bem jurídico, ainda que a
reprovabilidade nos dois casos seja diferenciada, pois como explica Roxin “A quem
por indiferença absoluta não se preocupa com a lei, não há de ser julgado, em caso
de infração desta, mais benignamente do que aquele que conscientemente a
burlou”300, e explica que na verdade o crime doloso é punido não pela desobediência
em si, mas porque o sujeito “desdenha de modo intolerável o interesse de outros ou
da comunidade”.301
Cordoba Roda, avaliando o tratamento do erro evitável na legislação
espanhola na segunda metade do século XX, aponta que havia uma proposta para
que o erro de proibição vencível fosse configurado como imprudentia iuris, que
constituiria um tipo culposo genérico, aplicável ainda quando a imprudentia facti não
fosse prevista.302
Analisando-se a totalidade das situações levadas em conta para a
afirmação da consciência potencial daquele que age em erro evitável e
considerando que o que de fato determina a punibilidade é a negligência em relação
ao dever de se informar, não é errado concluir que na essência pune-se uma
atuação culposa, já que a dolosa, sem a soma desta (no caso por exemplo em que
não se chegue a conclusão de que era evitável), restaria com a culpabilidade
excluída. São casos em que o agente sabe o que faz, quer fazer, não sabe que o
que faz é errado, mas não sabe por culpa. Também tanto no delito culposo quanto
nas situações de erro evitável, somente haverá punição se houver lesão do bem
299 ROXIN, C. Derecho… p. 864. 300 ROXIN, C. Derecho… p. 863. 301 Idem. p. 864. 302 CÓRDOBA RODA, Juan. El Conocimiento de la antijuricidad en la teoría de l delito. Barcelona: Bosch, 1962. p. 134.
98
jurídico. Daí porque Jakobs comparar que “o autor do delito imprudente se encontra
sempre em erro de proibição”303 e por isso para ele a evitabilidade constitui um
problema exclusivamente normativo no sentido de imputar ou não a
responsabilidade pelo erro.304
A jurisprudência alemã, citada por Roxin, admite claramente que a
provocação do erro é culposa e aí reside a razão pela qual é punível a conduta:
"Si el sujeto omitió de manera contraria a deber informarse como le era exigible, ha provocado así culpablemente el error de prohibición, siendo indiferente qué información habría obtenido."305
Bajo Fernandez, comentando artigo respectivo do Código Penal Espanhol
vigente antes da reforma legislativa penal havida naquele país em 1983306, observa
que o erro de proibição vencível era punido a título de imprudência (se prevista) e
isso representava quase a totalidade dos crimes econômicos, isso porque no direito
penal econômico a consciência da antijuridicidade basicamente depende do
conhecimento exato da norma jurídica.
Continuado em Roxin, ao explicar porque o conhecimento potencial não
constituiria em uma punição pela conduta de vida, o autor mais uma vez afirma que
a reprovabilidade no caso do erro evitável se dá por infrações de cuidado que
posteriormente produzirão infrações jurídicas, explicando que “se trata aqui de algo
paralelo à "provocação culpável por empreendimento ou assunção na imprudência
de fato”, e conclui sobre a similaridade entre o erro evitável e o crime culposo
exemplificando:
Así, del mismo modo que el reproche de imprudencia contra un conductor que en el momento del hecho no podía evitar el choque por ser corto de vista se puede fundamentar sin dificultad en que se puso al volante sin gafas, la "imprudencia de Derecho" que se encierra en el e rror de prohibición vencible se puede vincular a infracciones previas del cuidado especificables en concreto.307 [grifou-se]
303 JAKOBS, G. Derecho penal… p. 673. 304 Idem. p. 674. 305 ROXIN, C. Derecho… p. 874 306 BAJO FERNANDEZ, Miguel. El Error de prohibición en el Derecho Penal Económi co . Disponível em www.miguelbajo.com/publicacion/normal/026.pdf, pesquisado em 15.10.2012. p. 07. 307 ROXIN, C. Derecho Penal… p. 883 e 883.
99
São duas as conclusões que se podem extrair especificamente neste
ponto, e a partir das explicações apontadas: a um, que não está muito claro na
doutrina a diferença entre a punibilidade do erro evitável e a punibilidade pela
conduta de vida. Analisando-se a transcrição acima, o argumento de Roxin não
consegue justificar ou diferenciar o erro evitável da culpabilidade pela conduta de
vida por uma constatação muito simples: no seu exemplo do crime culposo, a falta
de cuidado é no momento do fato, enquanto no erro evitável ocorre em momento
anterior. Não é demais lembrar que ambas – conduta de vida e consciência da
ilicitude potencial - são soluções encontradas para o mesmo problema, conquanto a
segunda seja mais eufêmica e talvez por isso seja adotada pela doutrina majoritária,
mas em essência a diferença não sobrevive a uma reflexão mais profunda (ou nem
isso).
A dois, a legitimidade da punição nas situações de erro evitável está
ancorada muito mais em razões político-criminais do que no próprio princípio da
culpabilidade e na subjetivação do injusto que ele obrigaria. No caso dos crimes
econômicos, para os quais a própria consciência potencial foi criada, a distância é
muito maior, pois o desconhecimento é mais profundo na medida em que há uma
inflação legislativa muito especifica por área, e nem sempre o sujeito que se envolve
na atividade nela adentra já com todos esse conhecimentos técnicos.
São relevantes e devem ser levados em conta também os argumentos
apresentados por Bacigalupo com base em Torio308, ainda que a solução final deste
não seja político-criminalmente satisfatória. Para ele, aquele que age em erro
vencível deveria estar imune ao direito, salvo nos casos do hoje chamado Direito
Penal nuclear. O autor objeta que na punição pelo erro vencível o legislador
resolveu um problema de justiça utilizando-se de critérios utilitários e abandona a
perspectiva da culpabilidade em prol da prevenção geral. Alega também que a
punibilidade do erro evitável coopera com o fortalecimento do princípio da
inescusabilidade da ignorância da lei, sendo que, em pertinente observação, “seria
injusto condenar um trabalhador por ignorar o que também ignora um juiz”.
308 Reforma penal y penitenciaria, 1980, p. 249 e ss apud BACIGALUPO ZAPATER, Enrique. La evitabilidad o vencibilidad del error de prohibició n. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 14. São Paulo: RT, 1996. p. 29.
100
De todo modo, o requisito do conhecimento potencial permanece sendo
unanimidade na doutrina309, muito embora apenas em poucas obras se consiga
encontrar um tratamento aprofundado do tema, no sentido da sua legitimação ou ao
menos de questionar os seus contornos de aplicação prática, de modo que se
pudesse manter próximo o princípio da culpabilidade.
Por fim, relembre-se as considerações traçadas no primeiro capítulo
quanto à desvinculação do princípio da culpabilidade que a consciência potencial
representa, chegando Roxin a afirmar que “a diferença valorativa decisiva não está
na presença ou ausência da consciência da antijuridicidade”, pois a análise que
importa para a imputação subjetiva é de se o sujeito atuou “conforme parâmetros
que, em uma contemplação objetiva, coincidem com os do Direito”310
Foi também verificado no capítulo anterior que o “poder agir de outro
modo” tem como base, além da liberdade, já tomada aqui como premissa, a
consequente capacidade do sujeito de se motivar a seguir a norma que, afirmada
pela imputabilidade, e como não pode ser comprovada no caso concreto, presume-
se no como um dever motivar-se conforme a norma a partir da liberdade de escolha
admitida como característica genérica do ser humano.311 Esse dever, entretanto,
precisa de um fundamento, que, segundo recente estudo de Alaor Leite, decorre da
Teoria das Normas.
E aqui desde logo se anote que não há coerência em se exigir uma
abstenção de alguém que, muito embora pudesse ter atingido o conhecimento, isso
efetivamente não ocorreu, pois a norma secundária de abstenção surge apenas do
conhecimento efetivo, como se verá detalhadamente na sequencia, daí porque Leite
afirma que no caso da consciência potencial, é imperioso estabelecer outros critérios
que tornem legítima a exigência de abstenção312, o que se verá detalhadamente
adiante.
2.2.4 Objeto da consciência
310 ROXIN, C. Derecho Penal… p. 864. 311 CORDOBA, F.J. Evitabilidade do erro de proibição … p. 23 a 50. 312 LEITE, Alaor. Existem deveres gerais de informação no Direito Pen al: violação de um dever, culpabilidade e evitabilidade do erro de proibição. Revista dos Tribunais (São Paulo), São Paulo, v.101, n.922 , p. 323-340, ago. 2012.
101
Quanto ao objeto da consciência da ilicitude - antijuridicidade - é possível
identificar três grandes grupos que analisam sua substância segundo bases
diversas313. Contemporaneamente, é primordial a análise do conteúdo do
conhecimento na consciência da ilicitude por se tratar de um dos pilares de limitação
do jus puniendi estatal, na medida em que deve conciliar pretensões político-
criminais com a análise da efetiva possibilidade de internalização das normas diante
de um ambiente social multicultural, pluralista e fragmentário.
Especificamente na seara dos crimes econômicos, as características
próprias destes delitos acabam por fazer emergir ainda mais dificuldades no
tratamento do erro de proibição decorrente da ausência de consciência da ilicitude
potencial, e também na identificação da evitabilidade do erro, além de existirem
diversas situações que em a própria lei demanda o conhecimento efetivo da
antijuridicidade.
2.2.4.1 Conteúdo material (ou teoria tradicional)
Segundo um critério material, o objeto do conhecimento na consciência da
ilicitude seria a contradição da conduta com a moral comum, com os valores sociais.
Segundo Rodrigo Rios, tomaram posição nesse sentido na doutrina Sauer, Gallas,
Hippel, Mayer e Kaufmann, sendo que atualmente é sustentada apenas por
Schmidhauser314.
Assis Toledo também cita como representantes Mayer e Kaufmann,
afirmando que baseavam-se em uma concepção material do injusto por exigirem o
conhecimento da antisociabilidade, da imoralidade do comportamento ou da lesão
de um interesse.315
Jorge Figueiredo Dias também filia-se a esta corrente, conforme se extrai
da seguinte passagem:
313 CÓRDOBA RODA, Juan. El Conocimiento de la antijuricidad en la teoría de l delito. Barcelona: Bosch, 1962. p. 89 e 90. 314 SILVA, Robson Antônio Galvão da; RIOS, Rodrigo Sanchez. Desconhecimento do injusto, desconhecimento da lei e crimes econômicos. In: XVII Encontro Preparatório do Conpedi, 2008, Salvador. Anais do XVII Encontro Preparatório do Conpedi, 2008. p. 07 a 09. 315 TOLEDO, F.A. Princípios básicos… p. 258.
102
O papel fundamental cabe aqui à ideia de que (ao menos no âmbito do chamado direito penal de justiça) não é a punibilidade que fundamenta o ilícito material, mas este – o violar ou por em perigo bens jurídicos comunitariamente relevantes e, por conseguinte, a danosidade social – que fundamenta aquela. Daí supor a culpa tão-só que o agente tome consciência da ilicitude material (sc, da danosidade social e consequente dignidade penal) do fato que pratica e não da proibição legal que a ele está ligada.316
Esta concepção parte da ideia de que o autor somente seria culpável se
pudesse vislumbrar a contradição entre seu comportamento e a ordem social, que
para Mayer correspondia às normas de cultura, já que a obrigatoriedade da lei,
segundo este autor, citado por Rios, descansa na coincidência existente entre as
normas jurídicas e as normas de cultura. Seguindo a mesma linha, Kaufmann,
também referenciado em Rios, via o objeto como sendo a antijuridicidade material, o
que contava com grande vantagens de ordem processual, porém não para os crimes
de natureza econômica, em relação aos quais há antijuridicidade formal e não
material no sentido da “imoralidade da conduta”.317
Um posicionamento que se encaixa na concepção material, porém a partir
da ideia de ação significativa, é o de Augusto Silva Dias para quem o autor de um
fato criminoso, para ser culpável, deve ter apontada pelo juiz uma relação
comunicativa entre suas representações e as normas jurídico-penais, o que seria
indispensável para a consciência da ilicitude. Observe-se a seguinte passagem, que
deixa clara a sua opção pela concepção material:
“Punir concretamente alguém fora deste contexto de experiência partilhada de dano e de consciência generalizada da ofensa – o que acontece sempre que o ilícito típico se afasta do modelo da ofensa – traduz-se numa violação do princípio da culpabilidade e do princípio da confiança dos cidadãos acerca das reações do poder punitivo” 318
Para Dias, punir “fatos que não encontram ressonância nas
representações de desvalor do mundo da vida” é “defraudar expectativas acerca do
punível e do não punível”, razão pela qual ele coloca como inadequados ao contexto
da culpabilidade, em razão da opacidade do desvalor do fato, os crimes de risco, de 316 DIAS, J. F. O problema… p. 209. 317 SILVA, Robson Antônio Galvão da; RIOS, Rodrigo Sanchez. Desconhecimento do injusto, desconhecimento da lei e crimes econômicos. In: XVII Encontro Preparatório do Conpedi, 2008, Salvador. Anais do XVII Encontro Preparatório do Conpedi, 2008.p.07. 318 DIAS, Augusto Silva. Ramos emergentes do Direito Penal relacionados com a proteção do futuro. Coimbra: Coimbra Editora, 2008. p. 172.
103
perigo presumido, de desobediência e os delitos cumulativos. Em relação a estes,
diz Dias, “O Estado actua nas ‘costas’ dos cidadãos”.319
No campo da criminalidade socioeconômica, isso significaria a eliminação
de quase que a totalidade dos delitos, solução impensável se analisada sob uma
perspectiva político-criminal necessária no contexto da sociedade de risco. Daí
porque qualquer autor funcionalista poderia responder que não é a criminalização de
tais condutas que se contrapõe à teoria, mas esta deve ser adequada de modo a
compatibilizar a punição de delitos com essas características, sem, contudo, abrir
mão do princípio da culpabilidade.
Esse critério também não satisfazia politico-criminalmente as situações
dos criminosos habituais, quando evidenciado que se lhes alijou todo sentimento
moral, ou ainda aqueles autores que praticam o fato visando um bem social, como
no caso da delinquência política.320
Também não corresponde satisfatoriamente às necessidades político-
criminais o critério apoiado na danosidade social, pois além de muitos tipos legais
não corresponderem à pauta valorativa tradicional, há ainda a tutela de bens
supraindividuais cuja lesão no caso particular não consegue ser sentida, como no
caso dos crimes ambientais, em que a conduta do agente, de forma isolada,
pareceria carente de efetiva danosidade ao ambiente, porém, o que se considera é a
somatória de ações daquele gênero.
Atualmente, porém, há um certo consenso em torno da necessidade de
separação entre Direito e Moral, mesmo porque, conforme alerta Roxin, não deve
bastar para a culpabilidade a possibilidade de conhecimento da moral, quando esta
se diluiu na sociedade atualmente “líquida”, para usar a expressão de Bauman.321
2.2.4.2 Conteúdo Formal
A teoria formal, ou o critério formal nas palavras de Roda, vê como objeto
da consciência da ilicitude a punibilidade. Enquanto uma vertente mais extremista 319 Id. 320 SILVA, Robson Antônio Galvão da; RIOS, Rodrigo Sanchez. Desconhecimento do injusto, desconhecimento da lei e crimes econômicos. In: XVII Encontro Preparatório do Conpedi, 2008, Salvador. Anais do XVII Encontro Preparatório do Conpedi, 2008. p. 08. 321 Como exemplo, representando todas as obras do mesmo autor que assim referenciam: BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p.25.
104
exige que o conhecimento seja da punição no âmbito penal, outra mais ponderada
admite o conhecimento de que o fato estaria sujeito a uma sanção jurídica.322
Seguindo a linha de pensamento que defende a necessidade de
conhecimento da punição penal para que se conforme o requisito da consciência da
ilicitude, as concepções de Zaffaroni e Silva Sanchez são representativas. Para o
primeiro, o princípio da culpabilidade deve se refletir na estrutura dogmática penal da
maneira mais ampla, e, como consequência, ainda que se perquira a consciência da
antijuridicidade apenas em sua forma potencial, não deveria bastar ao Direito Penal
o conhecimento da contrariedade do comportamento ao Direito, “senão que também
se requer que o agente saiba que essa contrariedade está tipificada penalmente, é
dizer, que se trata de antijuridicidade com relevância penal”323
Silva Sanchez exprime o mesmo entendimento ao declarar acertada as
manifestações sobre o tema que sustentam ser preciso “que o sujeito conheça a
antijuridicidade penal de sua conduta, é dizer, que saiba que confronta normas
jurídico penais”.324
É relevante apontar que nesses dois autores ora referenciados o
tratamento da matéria exprime uma visão geral objetivada à contenção do Direito
Penal e efetivação de sua característica de ultima ratio. Porém, isso não implica
dizer que o autor do fato deve conhecer exatamente o tipo penal correspondente ao
seu comportamento, mas simplesmente que é uma conduta proibida na esfera
penal, daí porque não valer aqui a crítica de Assis Toledo, e a de mesmo conteúdo
de Roxin325, no sentido de que uma tal concepção demandaria de todo cidadão a
leitura do Código Penal.
Em Jakobs, a exigência é mais flexível. Para o jurista alemão, “não é
necessário o conhecimento da punibilidade”, admitindo ele, todavia, que somente se
pode exaurir a concepção sobre a importância do injusto conhecendo-se a sanção
penal.326 Para a conformação da culpabilidade, entretanto, basta o conhecimento da
322 MEZGER, E. Tratado… p. 144 e 145. 323 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. SLOKAR, Alejandro. ALAGIA, Alejandro. Derecho Penal. Parte General . 2a. Ed. Buenos Aires: Ediar, 2002. p.682. 324 SILVA SANCHEZ, Jesus-Maria. Observaciones sobre el conocimiento «eventual» de l a antijuricida. Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales. p. 647 e ss. Disponível em www.cienciaspenales.net, consulta em 12.10.2012. 325 A exigência, para Roxin, é desnecessária na medida em que o cidadão comum já identifica proibição com punição penal e assim “a consciência da antijuridicidade se vinculará à consciência da punibilidade”. ROXIN, C. Derecho Penal… 868. 326 JAKOBS, G. Derecho Penal. Parte General. Fundamentos y teoría de la imputación. 2a ed. Madrid: Marcial Pons, 1997. p. 667.
105
contrariedade à norma enquanto uma perturbação social (que é o fundamento
material da antijuridicidade), o que não exclui a responsabilidade daquele autor com
consciência dissidente, ou, em suas palavras:
“basta que conheça a importância da norma em questão para o ordenamento ao qual pertence, ainda quando considere equivocado tal ordenamento. Assim pois, se trata do conhecimento da perturbação social em relação a um ordenamento conhecido (não necessariamente reconhecido)”327
Jakobs também esclarece que a consciência da ilicitude enquanto
conhecimento da contrariedade à norma deve ser analisada individualmente em
relação a cada injusto, e não pode ser tomada como uma consciência sobre a
ilicitude geral da situação fática, citando o seguinte exemplo:
“O autor dispara contra um pássaro na suposição errônea de que se trata de uma espécie suscetível de caça e que tem período de vedação à caça, mas sem saber que no lugar em que se encontra não pode utilizar armas de fogo.”328
Assim, o professor tudesco reconhece a possibilidade de reconhecimento
de um erro de proibição parcial se considerado o fato globalmente, pois “em relação
às normas ignoradas inevitavelmente, ou mesmo imaginadas, não há
responsabilidade”329.
A concepção formal mais ponderada em Jakobs vincula-se à sua premissa
de função preventiva geral do Direito Penal, pois a coação psicológica pela norma só
pode exercer influência sobre o autor que conhece a sanção jurídica decorrente da
prática daquela ação não permitida, o que explica também sua conclusão de que a
consciência do ilícito é totalmente assimilada (não que essa totalidade seja
necessária para a culpabilidade) quando ele sabe sobre o tipo penal e as
penalidades a ele correspondentes.
2.2.4.3 Conteúdo Intermediário (ou teoria intermedi ária).
327 Idem. p. 668. 328 JAKOBS, G. Derecho Penal… p. 671. 329 Idem. p.671.
106
A chamada Teoria Intermediária parece ser a preferida pela doutrina,
tendo como principal representante Claus Roxin. Parte-se das críticas às teorias
material e formal, pois enquanto conhecer a imoralidade seria insuficiente, conhecer
a punibilidade seria desnecessário. A noção principal dos adeptos da teoria
intermediária é de que o conteúdo objeto de apreciação na consciência da ilicitude é
a possibilidade de conhecimento da violação de um bem jurídico.
Roxin alerta que muito embora a consciência da contrariedade da conduta
às normas sociais seja um meio de acesso à proibição jurídica e, por essa razão,
pode ser utilizada para a avaliação da evitabilidade do erro, “por regra geral só se
pode formular uma reprovação íntegra de culpabilidade quando o sujeito desatende
conscientemente proibições e mandatos jurídicos”330.
Filiando-se esta teoria intermediária, verifica-se também Buján Pérez, para
quem na consciência da ilicitude “basta que o sujeito considere provável que sua
ação ou omissão é contrária ao ordenamento jurídico”331. Ou ainda, em outra
passagem do mesmo autor:
“Por último, a respeito do objeto do conhecimento da antijuridicidade, cabe assinalar (em conformidade com a opinião dominante) que em princípio deve-se partir da ideia de que é suficiente que o sujeito tenha conhecimento da antijuridicidade geral dos fatos que realiza, isto é, basta com a crença de que está violando uma norma jurídica em geral (ou contrariedade genérica ao Direito)”332
Destaque-se o entendimento de Roxin, alinhado ao de Maurach, no
sentido de que não basta, para a conformação da consciência da ilicitude, o
conhecimento de se tratar de uma infração disciplinar, pois o Direito Penal trabalha
com regras gerais de conduta, enquanto as infrações disciplinares são de ordem
interna de determinada atividade.333 O mesmo se dá referentemente ao
conhecimento da jurisprudência, pois o sujeito, conhecendo-a, mas considerando-a
incoerente, ainda pode incorrer em erro de proibição, sendo que também é possível
a situação contrária, quando a jurisprudência permite a conduta, mas o autor a sabe
proibida juridicamente.334
330 ROXIN, C. Derecho Penal… p. 866. 331 MARTINEZ - BUJAN PÉREZ, Carlos. Derecho penal económico.. . p.454. 332 Idem. p. 456. 333 ROXIN, C. Derecho Penal… p. 867. 334 Idem. p. 868.
107
No campo do Direito Penal Econômico, Buján Pérez questiona se, a
despeito de em geral não haver essa exigência, não deveria ser requisito para a
culpabilidade na seara de delitos socioeconômicos o conhecimento da punibilidade
penal, ou “conhecimento do caráter penal da proibição do fato”. Isso porque,
segundo o autor espanhol, se trata de um conjunto de delitos vinculado a um Direito
Penal acessório e diferentemente dos crimes clássicos, o cidadão não identifica tão
facilmente a proibição com proibição penal e “normalmente terá uma
representação335 do jurídico-penalmente proibido inferior à real”
Segundo o pensamento roxiniano, “o conhecimento da proibição deveria
bastar em todo caso ao sujeito para motivar-se a uma conduta fiel ao Direito”,
decorrendo logicamente que tanto faz conhecer especificamente a punição. Não que
o efetivo conhecimento da punição, e além, da punição penal, seja irrelevante. Roxin
afirma que realmente há uma culpabilidade mais exacerbada naquele que pratica o
fato sabendo ser crime, mas isso não é o limite entre uma conduta culpável e não
culpável, constituindo apenas critério de medição da pena segundo o grau de
reprovabilidade da conduta.336
Logo, somente se teria erro de proibição quando o agente suponha que
sua conduta é aprovada pelo ordenamento jurídico nas circunstâncias concretas do
caso, e não estariam aqui abarcados os casos do autor por consciência ou por
convicção quando sabem que a conduta, embora lhes tenha sentido, não é aceita
juridicamente, ainda que em tais casos também isso possa ter algum reflexo na
medida da pena.
Analisando a consciência da antijuridicidade direcionada à lesão ao bem
jurídico, Roxin chega à mesma conclusão de Jakobs337 quanto à possível
divisibilidade da consciência da antijuridicidade no caso concreto, pois pode suceder
reconhecer a atuação injusta em relação a um bem e não a outro, em uma situação
de concurso formal na qual sua conduta reflita-se sobre ambos, porém com
consciência da antijuridicidade relativamente a um e em erro invencível em relação a
outro. Ocorreria, por exemplo, com o sujeito que realizou uma exploração de
basalto, matéria-prima pertencente à União, sem autorização legal do Departamento
Nacional de Produção Mineral e sem a devida licença de operação emitida pelo
335 MARTINEZ - BUJAN PÉREZ, Carlos Martínez. Op cit. p. 456 e 457. 336 ROXIN, C. Derecho Penal… p. 867 e 868. 337 Conferir em JAKOBS, G. Derecho Penal… p. 671. e ROXIN, C. Derecho Penal… p. 869.
108
órgão estadual de proteção ambiental, sendo incurso nas sanções previstas nos
arts. 2º da Lei nº 8.176/91 e 55 da Lei nº 9.605/98, quando acreditasse que somente
a autorização legal seria suficiente (relativa ao crime contra a ordem econômica),
estando em erro de proibição quanto à segunda conduta (crime ambiental), pois
informou-se no órgão competente e equivocadamente lhe confirmaram que o
documento estadual era desnecessário.
2.3 Fundamento de punibilidade a partir da consciên cia da ilicitude efetiva
(atual ou atualizável) e da potencial (erro evitáve l):
Em recente estudo sobre o tema da consciência da ilicitude, mais
especificamente sobre o dever geral de informação na consciência da ilicitude
potencial, Alaor Leite questiona “o título de legitimidade da punição do sujeito que
atua em erro de proibição evitável”338, em aguda crítica à total ausência de
discussão da questão pela doutrina brasileira, como também apontado por Robson
Galvão e Rodrigo Rios339, mesmo que na prática se verifique a aberrante constante
aplicação da regra do error juris nocet, “cujo caráter insustentável se reconhece hoje
com caráter geral”340. Nas palavras de Leite:
“O sono tranquilo dos penalistas foi conquistado através de um engodo. É estranho que os fundamentos da punição do sujeito que atua em erro de proibição evitável não sejam sentidos como um escândalo, como uma artimanha que conjuga o abandono prima facie do error juris nocet e a sua sobrevivência insistente na prática. O fundamento da culpabilidade do sujeito que atua em erro de proibição evitável não pode estar na violação de um dever geral de informação. Restam duas opções: ou se afirma que a punição em erro de proibição evitável é ilegítima, e todo aquele que atue sem consciência da ilicitude deve ser absolvido, ou se lhe empresta fundamento diverso da ideia de uma violação de um dever geral de informação. Está claro, e penso que posso partir desse consenso político criminal, que o Estado pode, sim, punir o sujeito em erro de proibição evitável. O que não está claro é quando essa punição encontra guarida em fundamentos legítimos e, em última análise, como pode ser definido o erro de proibição evitável.”341
338 LEITE, Alaor. Existem deveres gerais de informação no Direito Pen al: violação de um dever, culpabilidade e evitabilidade do erro de proibição . Revista dos Tribunais (São Paulo), São Paulo, v.101, n.922 , p. 323-340, ago. 2012. p.326. 339 SILVA, Robson Antônio Galvão da; RIOS, Rodrigo Sanchez. Desconhecimento do injusto, desconhecimento da lei e crimes econômicos. In: XVII Encontro Preparatório do Conpedi, 2008, Salvador. Anais do XVII Encontro Preparatório do Conpedi, 2008. 340 ROXIN, C. Derecho Penal… p. 880. 341 LEITE, Alaor. Existem deveres … . p.329 e 330.
109
Para chegar a essa conclusão, Leite parte de três objeções ao consenso
doutrinal sobre o suposto dever geral de informação que sustenta a punibilidade do
erro de proibição evitável. A primeira seria a violação do princípio da legalidade.
Partindo-se do texto constitucional, é fácil compreender o argumento do autor, pois o
artigo 5o, II da Constituição da República estabelece que “Ninguém será obrigado a
fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”342 e “esse dever geral
de informação, cuja violação justificaria a punição do sujeito no erro de proibição
evitável, não possui existência jurídica”343, donde decorre bastante clara a
contradição com a garantia constitucional.
A objeção já aparecia em Francisco de Assis Toledo que, após explicar a
construção de Welzel, contrapunha o dever genérico de informação ao dispositivo
constitucional citado. Toledo apoiava-se em Binding, para quem admitir que a
transgressão de uma proibição desconhecida se transforme em delito por ser
culposo o desconhecimento seria criar um especial crime comissivo baseado na
infração de duas normas: culposamente, da preceptiva e sem culpa da proibitiva e
para Binding, citado por Toledo, “uma tal criatura não pode ser senão monstruosa”344
A segunda objeção se dirige à violação do princípio da culpabilidade, pois
o dever de se informar, se também desconhecido, geraria um novo dever de se
informar e assim ao infinito, concluindo o autor que nesta fórmula defendida pela
doutrina majoritária a lesão está evidente. Bacigalupo também se manifesta no
mesmo sentido:
“La teoria que entende la evitabilidad como infracción de un deber requiere afirmar la existencia de un deber general de conocer el derecho. Pero, este caminho parece no tener salida en una teoria de las normas, pues de esta manera, el problema se volverá a plantear respecto del conocimiento de este deber de conocer el derecho y ello requereria entonces otro nuevo deber de conocer el derecho, y así ad infinitud”345
Um outro argumento que retrata o malferimento ao princípio da
culpabilidade seria de que “o estabelecimento de um dever geral de adquirir
342 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1 988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, acesso em 16.10.2012. 343 LEITE, Alaor. Existem deveres … 2. p.328. 344 TOLEDO, F. A. Princípios… p. 261. 345 BACIGALUPO, Enrique Zapater. La Evitabilidad o Vencibilidad Del Error de Prohibi ción... p. 28.
110
conhecimentos jurídicos sugere a suposição errônea de que a culpabilidade deve se
determinar conforme parâmetros objetivos e não segundo as capacidades
individuais do sujeito”346.
Por fim, a terceira recusa seria em relação à alegada premissa político
jurídica que, segundo Leite, partiria da ideia da “onipresença das proibições penais”
e de que os cidadãos devem sempre “lembrar que podem estar violando uma norma
penal”347.
Apesar da precisão das duas primeiras objeções, e da pertinência dos
argumentos refletidos na terceira, a ideia de “onipresença das proibições penais”
não pode ser tomada como ponto de partida das teorias majoritárias, senão como
efeito do caminho de elaboração sistemática que levou as concepções dominantes
ao beco confortável da consciência da ilicitude potencial vinculada a um dever geral
de informação.
Isso porque, como ficou claro nesta pesquisa, os entraves teóricos às
lacunas de punibilidade verificadas nas situações práticas foram guiando a
formatação do requisito da culpabilidade que consistia na mais pura expressão do
poder agir de outro modo por ter consciência do que age em desacordo com a
norma para uma conceituação mais flexível e que atendesse justamente as
características próprias dos delitos econômicos e ainda a situação de inflação
legislativa nesse campo, que atualmente vem a se repetir. Não se quer dizer com
isso que os argumentos de Leite não sejam válidos, mas o são em relação à
conjuntura enquanto consequência e não como premissa construtivo sistêmica.
E qual seria então a solução de fundamento para a legitimação da punição
do erro de proibição evitável? O próprio Alaor Leite expõe um caminho coerente,
recorrendo à teoria das normas. É preciso entender antes, na esteira da lição de
Silva Sanchez, que “as normas primárias (como normas de conduta) expressam o
objetivo de regulação do Direito penal mediante o estabelecimento de diretivas de
conduta”348
Pois bem, o raciocínio é simples: no caso do agente conhecer
efetivamente a ilicitude do fato, surge para ele um comando de abstenção ou, “no
caso dos delitos omissivos, pratique a ação mandada”, isso porque ele detém “total
346 ROXIN, C. Derecho penal… p. 879. 347 LEITE, Alaor. Existem deveres … . p.329. 348 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Aproximatión al Derecho Penal contemporâneo . Barcelona: Bosch, 1992. p. 373.
111
controle sobre a situação e as consequências”. Mas essa abstenção categórica não
pode ser exigida no caso de desconhecimento, ou possível conhecimento, pois
deste deriva a consciência de ações que são de um lado possivelmente proibidas e
de outro possivelmente permitidas.349 Roxin explica que “quando alguém não tem a
possibilidade de acessar o conhecimento do injusto, não é acessível para ele o
mandado da norma”350
Daí porque sustentar Leite ser necessária “uma nova razão que faça surgir
a norma secundária”, ou que imponha o comando desejado, já determinado pelo
consenso na doutrina (em forma de repetição passiva) a respeito do dever geral de
informação, que seria o “informe-se”. Conforme explica o autor, “essa norma já não
contém mais uma proibição categórica, mas uma proibição dilatória, na plástica
construção de Velten: o conteúdo da norma secundária é ‘informe-se’ e não
‘abstenha-se’” 351. Mas, essa norma secundária deve emergir de algum dado
concreto, assim como a abstenção categórica surgia do conhecimento da ilicitude.
Havendo no erro evitável um desconhecimento, a norma secundária “informe-se” há
de vincular-se a outro dado concreto, que seria o “motivo concreto para se
informar”352, o qual será detalhado adiante.
E mesmo para a concepção de Vives Antón, que rejeita a teoria da
norma353 da forma como proposta por Alaor Leite, as conclusões poderiam ser
aplicadas, pois também o autor espanhol constrói a sua teoria da norma penal sendo
esta “entendida como diretiva de conduta”354, ou, nas palavras de Busato, um
“comando pretendido”355. E isso pressupõe, logicamente, o conhecimento do seu
sentido, pois somente através dele o sujeito pode guiar-se conforme o
comportamento esperado. A compatibilização desta diretiva, que está dentro da
pretensão de ilicitude em Vives Antón, pressupõe “a pretensão de relevância” e esta
“cursa, em primeiro termo, como uma pretensão de inteligibilidade”356. Como se vê,
349 LEITE, Alaor. Existem deveres … . p.330. 350 ROXIN, C. Derecho. Penal… p. 878. 351 LEITE, Alaor. Existem deveres gerais de informação no Direito Pen al: violação de um dever, culpabilidade e evitabilidade do erro de proibição . Revista dos Tribunais (São Paulo), São Paulo, v.101, n.922 , p. 323-340, ago. 2012. p.330 e 331. 352 LEITE, Alaor. Existem deveres gerais de informação no Direito Pen al: violação de um dever, culpabilidade e evitabilidade do erro de proibição . Revista dos Tribunais (São Paulo), São Paulo, v.101, n.922 , p. 323-340, ago. 2012. p.330 e 331. 353 Conferir toda a crítica em VIVES ANTÓN, T.S. Fundamentos del sistema penal... p. 357 e ss. 354 VIVES ANTÓN, T.S. Fundamentos del sistema penal... p.492. 355 BUSATO, P. C. Direito Penal e Ação Significativa… p. 198. 356 VIVES ANTÓN, T.S. Fundamentos del sistema penal... p.491.
112
deste ponto de partida também poderiam ser desenvolvidas as mesmas
considerações.
2.4 Acesso à consciência da ilicitude
Estabelecida a forma pela qual se poderia - num Direito Penal democrático
e vinculado ao princípio da culpabilidade (ainda que não de forma estancada) -,
justificar a punição do autor de um fato no qual se verifica um desconhecimento da
ilicitude, porém, em erro evitável, o que se pode ter como regra no casos dos delitos
econômicos, dadas as suas características especiais, é preciso que se definam
critérios de análise dessa imputação subjetiva de bases normativas.
A simples remissão à uma consciência potencial, a ser comprovada
mediante uma valoração paralela na esfera do profano, que quando não solvia o
caso jogava a responsabilização sobre a base de um dever geral de informação, não
se sustenta diante da reflexão histórica sobre a forma como surgiram esses critérios,
até hoje, repetidos pela doutrina, e que acabam por permitir a continuidade, teórica e
prática, da regra do error juris nocet muito mais intensamente na seara do direito
penal econômico. O que, repita-se, não é à toa, já que essa construção foi feita sob
medida para crimes desta natureza, justamente na busca de se encontrar uma forma
de punir a ausência de conhecimento da ilicitude, pois de um lado se mostrava uma
lacuna de punibilidade e de outro uma incompatibilidade entre a punição e o
Princípio da Culpabilidade.
Assim, é um consenso entre os doutrinadores, qualquer que seja a linha
de construção sistemática seguida, que a responsabilização penal se dê àquele que
ao menos teve acesso ao conteúdo da proibição, quer enquanto dano social,
contrariedade ao ordenamento jurídico ou punibilidade especificamente penal, pois,
como ressalta Roxin, “Quem não tem a capacidade de acesso ao conhecimento da
norma não é normativamente acessível (cerca de § 19, n. 34 ss.) e age sem culpa,
e tampouco pode ser punido”357.
357 ROXIN, C. Derecho penal… p. 862 e 863.
113
Esse acesso pode se dar por alguns meios citados entre os estudiosos do
tema, que seriam: esforço de consciência ou reflexão, função de apelo do substrato
típico e dever de informação.
2.4.1 Esforço de consciência ou reflexão
Quanto ao acesso à proibição através do esforço de consciência ou
reflexão, é logica a conclusão, desde o estudado até aqui, que se dará somente nos
casos em que o conhecimento esteja disponível ao agente, ou seja, trata-se de um
conhecimento efetivo atualizável, certo porque para o desconhecimento não há
esforço de consciência ou reflexão que possam suprir essa falta. Por essa razão,
todos os autores que mencionam o esforço de consciência ou a reflexão o fazem
vinculando diretamente com a ordem moral e os crimes tradicionais, como se
percebe claramente na seguinte passagem de Jescheck, quase idêntica à de
Welzel358 sobre o mesmo assunto:
“quando o fato não só constitui uma infração jurídica senão também um atentado insuportável contra a ordem moral (ignorância crassa), o erro é por regra geral de natureza vencível, pois a valoração normativa se origina diretamente do sentimento jurídico e, por isso, é reconhecível através de um esforço de consciência”359
Ou seja, na esteira de Welzel, e demonstrando a coincidência entre
esforço de consciência e reflexão, “Ao autor é reprovável o erro sobre a
antijuridicidade de sua conduta na medida em que poderia assegurar-se dela
mediante a própria reflexão a respeito dos valores ético-sociais fundamentais da
vida comunitária que o cerca”.360
Juarez Cirino dos Santos se posiciona contra a utilização do esforço de
consciência, inclusive adjetivando-o de “primitivo”361, porém, logo em seguida o
substitui pela reflexão, que em essência não se diferencia do primeiro, nem
enquanto meio de acesso à proibição, tampouco em alcance. Isso porque a reflexão
somente será útil quando se tratar de um tipo penal que tutele valor coincidente com
358 WELZEL, H. O novo sistema… p. 133. 359 JESCHECK, H. H. Tratado… p. 493. 360 WELZEL, H. O novo sistema… p. 134. 361 SANTOS, J.C. Direito Penal. Parte Geral . Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 308.
114
a ordem cultural e quando houver um conhecimento efetivo não atual, mas já tendo
tocado o sujeito em algum momento da vida. Todavia, novamente se diga que não é
necessário que o sujeito tenha assimilado o valor tutelado como um valor seu, até
porque, se o tivesse, não praticaria o fato injustificadamente.
Em resumo, pode-se dizer que esse meio de acesso é válido para o
conhecimento atualizável da ilicitude, porquanto o desconhecimento jamais poderá
ser sanado por qualquer tipo de reflexão. Assim, por exemplo, o comerciante que
envia caixas de produtos para que tenham as datas de validade da embalagem
adulteradas, recebendo-as dias depois, pode, no momento em que os expõe à
venda362, não estar pensando sobre a impropriedade para consumo ou a
incompatibilidade com as prescrições legais, mas há o que Zaffaroni chama de co-
consciência363, podendo o conteúdo da ilicitude ser atingido mediante simples
reflexão.
2.4.2 Função de apelo do tipo penal.
Todo aquele que tem conhecimento acerca de uma proibição, sempre que
se deparar com uma conduta típica estará advertido sobre a possibilidade de sua
proibição, ainda que possa pensar estar a prática justificada.364 Isso porque
supostamente esta “função de chamada de atenção do dolo típico deveria induzir a
um exame especialmente cuidadoso do suposto de fato”365. O mesmo é referido por
Augusto Silva Dias, ao discorrer sobre a interpretação equivocada do valor limite
num ato administrativo.366
Maiwald, citado por Flávio Cruz, explica que essa função de apelo
“poderia residir na ponderação de que o conhecimento correto da significação
362 Lei 8.137/1990. Art. 7° Constitui crime contra as relações de consumo: (...) II - vender ou expor à venda mercadoria cuja embalagem, tipo, especificação, peso ou composição esteja em desacordo com as prescrições legais, ou que não corresponda à respectiva classificação oficial; (...) IX - vender, ter em depósito para vender ou expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em condições impróprias ao consumo; BRASIL. Lei. 8.137 de 27 de dezembro de 1990. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8137.htm, consulta em 13.10.2012. 363 ZAFFARONI, E.R. SLOKAR, A. ALAGIA, A. op cit p.522. No mesmo sentido, mas usando a expressão “co-conhecidos” ROXIN, C. Derecho… p. 873 e 874. 364 CRUZ, Flávio Antônio. O tratamento do erro em um direito penal de bases d emocráticas . Porto Alegre: Fabris Editor, 2007. p. 284. 365 ROXIN, C. Derecho penal… p. 584. 366 DIAS, Augusto Silva. Ramos emergentes do direito penal relacionados… p. 178.
115
transmite ao autor aquela chamada que pretende a redação do tipo, e que está
dirigido a reflexionar sobre a existência da proibição da ação”367.
Serve esse meio de acesso à consciência da ilicitude perfeitamente à
teoria dos elementos negativos do tipo e à concepção material da antijuridicidade
como coincidência entre norma penal e valor socialmente reprovado, o que da
mesma forma se reflete no direito penal tradicional, mas a função de chamada torna-
se absolutamente insuficiente para todos os demais ilícitos penais nos quais esse
paralelismo não seja verdadeiro, como é o caso da imensa maioria dos tipos penais
relativos ao direito penal socioeconômico.
2.4.3 Busca da informação
A busca da informação consiste numa ação do sujeito, anterior à prática
do fato doloso, no sentido de assegurar-se sobre a proibição ou não da conduta,
para que então possa se motivar a não praticá-la. Segundo Roxin, teoricamente se
poderia dizer que qualquer erro de proibição é vencível através da busca da
informação, pois sempre é possível, informando-se, acessar o conhecimento acerca
da proibição.368
Porém, o aparente exagero apontado pelo autor alemão advém da
confusão entre busca da informação enquanto meio de acesso à consciência da
ilicitude e dever de informação enquanto critérios que guiarão a análise da
evitabilidade do erro no caso concreto. Enquanto instrumento de acesso a busca da
informação é ilimitada (ou limitada apenas ao final pela obtenção da informação), e
já como dever este será pautado por diversos limites (de quando surge e até que
ponto vai), os quais configurados eximirão o sujeito da sua culpabilidade por erro de
proibição.
Assim, por exemplo, o sujeito X que confia no contador A para lhe orientar
sobre o pagamento de um determinado tributo, o que A faz de maneira equivocada e
acaba levando X a praticar a conduta antijurídica em erro de proibição, certamente
chegaria ao conteúdo da proibição caso continuasse se informando ad infinitum
367 MAIWALD, Manfred. Conocimiento del ilícito y dolo en el derecho penal. p. 41. apud CRUZ, Flávio Antônio. O tratamento do erro em um direito penal de bases d emocráticas . Porto Alegre: Fabris Editor, 2007. p. 285. 368 ROXIN, C. Derecho penal… p.879.
116
(informação enquanto meio de acesso). Mas, encontrando o limite da confiabilidade
da fonte ( informação enquanto dever) configurará a inevitabilidade do erro de
proibição. Quando surge o dever e quais são seus limites é o objeto do próximo
capitulo.
117
3 CRITÉRIOS DE AFERIÇÃO DA CONCIÊNCIA DA ILICITUDE E DA
EVITABILIDADE DO ERRO DE PROIBIÇÃO NO DIREITO PENAL ECONÔMICO
O Direito Penal Socioeconômico tem como característica estar
“impregnado de remissões explícitas a normas extrapenais ou termos normativos
jurídicos, e que tipifica delitos que não são diretamente lesivos para bens jurídicos
individuais”369, razões que colocam em relevo a questão da consciência da ilicitude e
da evitabilidade do erro, justamente porque se verifica maior dificuldade na
composição desses elementos do conceito de culpabilidade enquanto poder agir de
outro modo.
Como visto no capítulo anterior, não é possível presumir legitimamente
um dever geral de informação que sustente a punibilidade do autor de um fato
criminoso. Partindo-se do exposto relativamente à fundamentação possível para a
imposição de um tal dever, concluiu-se que há de se vincular a possibilidade de
consciência da antijuridicidade a um motivo que no fato concreto faça surgir a norma
secundária “informe-se” e, consequentemente, permita a responsabilização penal
pela afirmação da evitabilidade do erro de proibição.
Considerando todo o pesquisado até aqui, é possível identificar alguns
critérios de análise desta responsabilidade. Quais são eles, suas dificuldades e seus
limites é o que se pretende tratar nas próximas páginas, pois no campo do direito
penal socioeconômico, tendo em vista o que foi dito, a importância de que sejam
estabelecidos estes limites coincide com a concretização da garantia do princípio da
culpabilidade.
3.1 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O ERRO DE PROIBIÇÃO NO DIREITO
PENAL ECONÔMICO
Antes de adentrar nos critérios de avaliação da consciência potencial da
ilicitude nos crimes econômicos, há que se expor, ainda que brevemente, as
modalidades e efeitos do erro de proibição, ressaltando, entretanto, que qualquer
369 MARTINEZ - BUJAN PÉREZ, C. Derecho penal económico … p. 456.
118
caso pode ser trabalhado a partir dos mesmos critérios de análise da evitabilidade,
inclusive aqueles que na essência se constituem erro de proibição, mas são tratados
como erro de tipo pela legislação brasileira.
É certo que não há uma consciência da ilicitude específica para os crimes
econômicos e, em consequência, não há que se falar em categorias de erro que
sejam exclusivas do direito penal socioeconômico, sendo que o tratamento se guiará
pelas diretivas gerais. Entretanto, o tema assume especial importância quando se
verifica que político-criminalmente há interesse na tutela dos bens abarcados pelos
tipos penais econômicos, mas na prática a análise da consciência da ilicitude ainda
segue parâmetros nebulosos, abrindo caminho para decisões jurisprudenciais que
não primam por soluções tecnicamente claras.
O problema é de tamanha relevância, que algumas legislações inclusive
oferecem regras diferentes “segundo se trate do Direito penal nuclear ou de um
direito penal acessório como o socioeconômico”, para o qual a legislação
portuguesa, por exemplo, confere tratamento semelhante ao defendido pela teoria
do dolo.370
Erro é o conhecimento equivocado ou falso371. O erro de proibição é
aquele que incide sobre a ilicitude da conduta praticada, que o autor
equivocadamente supõe tratar-se de um comportamento lícito.372 O agente perde,
em decorrência do erro, a compreensão da proibição jurídica do fato373. Nas
palavras de Welzel, “é o erro sobre a antijuridicidade do fato, com pleno
conhecimento da realização do tipo (por conseguinte, com dolo)”, e detalha o autor
alemão:
“ ‘O autor sabe o que faz, mas erroneamente crê que é permitido’(BGH2,197); não conhece a norma jurídica, ou não a conhece bem (interpreta-a mal) ou supõe equivocadamente que concorre uma causa de justificação. Cada um desses erros exclui a reprovabilidade se for escusável, ou a diminui”374
370 BALCARCE, Fabián I. Derecho penal Económico . Tomo I. Córdoba: Mediterránea, 2003. P. 145. 371LEITE, Alaor. ASSIS, Augusto. O erro. Especial foco no erro de proibição . In BUSATO, Paulo César. Direito penal baseado em casos. Curitiba: Juruá, 2012. p. 302. 372 BITENCOURT, Cezar Roberto. Erro jurídico penal. São Paulo: RT, 1996. p. 60. 373 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal Brasileiro . Vol. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 499. 374 WELZEL, H. O novo sistema jurídico penal …p. 127.
119
Importa lembrar que para Welzel, que adotava a teoria extremada da
culpabilidade, em se tratando de erro sobre as causas de justificação, não havia
diferença se ele atingisse os pressupostos fáticos da justificante, sua existência ou
seus limites, o que para a teoria limitada é de substancial importância, na medida em
que configurará erro de tipo no primeiro caso e de proibição apenas nos dois
últimos. De todo modo, ainda que resulte em consequências diversas, em essência
o erro recai sobre a compreensão da licitude da ação e pode ser cotejado pelos
critérios que em seguida serão desenhados.
O erro de proibição não se vincula aos elementos do tipo e não tem
relação com dolo e culpa, pois se relaciona diretamente com o caráter proibido da
ação típica. O autor está consciente do que faz, mas entende que está autorizado a
atuar desta maneira.375
Não é diferente sob a perspectiva da teoria da ação significativa de Vives
Antón, pois o erro sobre a proibição é exatamente o reverso do conhecimento da
ilicitude e ocorrerá, conforme salienta Buján Pérez, sempre que o agente “realizou o
fato com um conhecimento equivocado acerca do seu significado ilícito”376. As
consequências do erro, segundo o espanhol, serão aquelas da teoria da
culpabilidade, as quais seriam “plenamente coerentes com as premissas sobre as
quais se assenta a concepção de Vives”, referindo-se à teoria da ação significativa
de Vives Anton, já mencionada no segundo capítulo deste trabalho.
A essência do erro de proibição tem especial importância no que tange os
delitos econômicos, uma vez que, de regra, não há correspondência entre o valor
tutelado e a pauta valorativa social clássica, de modo que, seguindo-se a lógica
tradicional e com base apenas no critério da valoração profana, que neste campo do
direito penal socioeconômico é insuficiente para a análise concreta, muitos seriam
os casos de erro de proibição, restando enfraquecida a proteção almejada
principalmente em razão da sociedade de risco.
O erro de proibição será direto quando o sujeito ignorar a existência da
norma proibitiva, ou, sabendo-a existente, interpreta que não tem vigência ou não é
375 SORIA, Germán Darío. Posición de garante y error de prohibición en la em presa . In RUBINSKA, Ramiro M. ALMENAR, Daniel Schurjin. Derecho penal económico. Tomo I. Buenos Aires, Madri e Barcelona: Marcial Pons, 2010. p. 799. 376 MARTINEZ - BUJAN PÉREZ, C.. op cit. p. 459.
120
aplicável à sua situação.377 Nestes casos, o agente “atua com convicção de que sua
conduta não está proibida pela ordem normativa – erro sobre a ilicitude da conduta
(sobre a existência da própria norma legal e sobre o âmbito de sua abrangência)” 378.
Cezar Roberto Bitencourt, ao discorrer sobre o erro de proibição direto,
encaixa os erros de proibição dos crimes culposos dentro desta classificação, no
caso, por exemplo, em que “o agente equivoque-se sobre qual é o dever objetivo de
cuidado”379. Contudo, parece mais acerta a compreensão de Welzel380, que iguala
essa situação ao erro relativo ao dever jurídico nos crimes omissivos e, portanto,
classificar-se-ia como erro mandamental, sendo este o que recai sobre uma norma
que “manda fazer”381 e pode incidir tanto nos crimes omissivos próprios, como
impróprios.
Se o equívoco, todavia, se der relativamente à permissão da conduta
típica, ocorre um erro de proibição indireto, pois aqui o sujeito “pensa que sua ação
é lícita por estar amparada por uma eximente”382, quer o erro recaia sobre a
existência da causa de justificação, quer sobre seus limites, lembrando que o erro
sobre a conjuntura fática será tratado como erro de tipo, em vista da adoção da
teoria limitada da culpabilidade.
Assis Toledo383 aponta alguns tipos de erro que, segundo ele, de regra
não serão erro de proibição, já que constituem ignorantia legis, e dirigem-se à lei e
não à ilicitude da conduta. São eles: erro sobre a eficácia da lei, erro sobre a
vigência da lei, erro de subsunção e erro de punibilidade. Entretanto, no caso
concreto, mesmo tais situações podem configurar erro de proibição, devendo serem
analisados também conforme os critérios expostos na sequencia, especialmente o
erro de subsunção, bastante comentado nas doutrinas de Claus Roxin e Günther
Jakobs, como por exemplo na seguinte passagem do primeiro autor:
377 SORIA, Germán Darío. Posición de garante y error de prohibición en la em presa . In RUBINSKA, Ramiro M. ALMENAR, Daniel Schurjin. Derecho penal económico. Tomo I. Buenos Aires, Madri e Barcelona: Marcial Pons, 2010. p. 801. 378 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal Brasileiro . Vol. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 499. 379 BITENCOURT, C. R. Tratado… p. 394 e 395. 380 WELZEL, H. O novo sistema jurídico penal …p. 128. 381 BITENCOURT, C. R. Tratado… p. 394 e 395. 382 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal Brasileiro . Vol. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 499. 383 TOLEDO, F.A. Princípios básicos… p. 270 e 271.
121
“Um erro de subsunção é um erro de interpretação. O sujeito interpreta equivocadamente um elemento típico de modo que chega à conclusão de que não se realizará mediante sua conduta. Tal erro pode ser um erro de tipo ou um erro de proibição ou ainda só um erro irrelevante de punibilidade, se ocultar ao sujeito o conteúdo de significado social de um elemento ou só a proibição específica do tipo ou só a punibilidade de sua atuação (...) Portanto, um erro de subsunção não é necessariamente um erro de proibição. Muito embora seja na maioria das vezes, porque se produz principalmente em supostos de conceitos normativos complicados, nos quais a interpretação decide sobre o caráter permitido ou proibido de uma conduta.”384
Finalmente, importa a definição de erro escusável (invencível) e
inescusável (vencível). O primeiro é aquele que se pode desculpar, pois não
poderia, no caso concreto, ter sido evitado, diferentemente do segundo que, com
através da reflexão ou da busca de informação poderia ter sido vencido. A questão
da vencibilidade é a que mais interessa a este estudo. Segundo Fernando Córdoba,
“A pergunta pela evitabilidade do erro de proibição não é outra coisa que a pergunta
por condições para imputação da culpabilidade no caso de desconhecimento da
norma”385. E conforme ressalta Alaor Leite, é fundamental “compreender
corretamente a distinção entre conceito e evitabilidade do erro de proibição”386.
O brasileiro explica que a análise inicial é sobre a existência ou não do
erro de proibição, resposta que será “um tudo ou nada, um sim ou não: ou se afirma
a consciência do injusto, ou se afirma o erro de proibição”, sendo que neste último
caso a resposta ao caso concreto não é definitiva, pois passa-se então à análise
sobre a evitabilidade do erro, que ao contrário da análise anterior “não é um tudo ou
nada, mas sim um mais ou menos”, ou seja, é uma análise normativa flexível, ou,
para usar a expressão do autor, mais “elástica”. Significa que somente se analisa a
evitabilidade “após já estar decidida definitivamente a existência de um erro de
proibição 387.
A evitabilidade, então, dependerá da avaliação do erro de proibição
através de alguns critérios que, ao final, responderão sobre a afirmação da
culpabilidade, reduzida ou não. Para a análise sobre a configuração da consciência
da antijuridicidade ou do erro de proibição, parte-se do critério da valoração paralela
384 ROXIN, C. Derecho… p. 872. 385 CÓRDOBA, F.J. op. cit. p. 49. 386 LEITE, Alaor. ASSIS, Augusto. O erro. Especial foco no erro de proibição . In BUSATO, Paulo César. Direito penal baseado em casos. Curitiba: Juruá, 2012. p. 302. 387 Id.
122
na esfera do profano, enquanto o dever de informação será “o critério reitor da
análise da evitabilidade de erros de proibição”388
Como elucida Augusto Silva Dias, “toda imputação necessita de
mediadores normativos, pois toda ela envolve uma comunicação entre as normas e
os respectivos destinatários infratores”389, devendo serem levados em consideração
diversos fatores como as alternativas de ação naquela situação concreta, a
experiência profissional, o quadro emocional, etc. O estabelecimento de critérios é
fundamental para “possibilitar a imputação nos seus vários níveis ou fases, pondo
em contato o comportamento lesivo e o agente que o praticou com as exigência da
normatividade jurídico-penal”390. Ademais, a maior ou menor rigidez dos critérios que
delimitam a evitabilidade vai sempre depender dos motivos político-criminais
envolvidos.391
3.2 VALORAÇÃO PARALELA NA ESFERA DO PROFANO
O critério da valoração paralela na esfera do profano foi desenvolvido
ainda quando predominavam as teorias do dolo. Para Mezger, a culpabilidade era
dolo ou culpa e o primeiro era composto também pela consciência da ilicitude,
conforme já visto neste estudo. Ao analisar o conhecimento da significação
necessário ao dolo, mais especificamente no que concernia os elementos
normativos do tipo, Mezger alertou que sua comprovação, no caso concreto,
dependeria de um juízo valorativo do juiz, ato posterior do qual dependeria a
caracterização do tipo.392
Àquela época, narra Mezger, era discrepantes as opiniões acerca de se
essa valoração – relativa aos elementos normativos - deveria ser abarcada pelo
dolo. Sobre o tema, os posicionamentos correspondiam àqueles acima expostos a
respeito do conteúdo da antijuridicidade enquanto objeto de conhecimento (capítulo
II deste trabalho). 388 LEITE, Alaor. ASSIS, Augusto. O erro. Especial foco no erro de proibição . In BUSATO, Paulo César. Direito penal baseado em casos. Curitiba: Juruá, 2012. p. 304. 389 DIAS, A.S. op. cit. p. 181. 390 Idem. 182. 391 SORIA, Germán Darío. Posición de garante y error de prohibición en la em presa . In RUBINSKA, Ramiro M. ALMENAR, Daniel Schurjin. Derecho penal económico. Tomo I. Buenos Aires, Madri e Barcelona: Marcial Pons, 2010. p. 804. 392 MEZGER, E. Tratado… p. 133 e 134.
123
Uma posição mais extremada, entendia que o agente deveria subsumir o
ato à lei, como o juiz faria em sua análise, e o erro seria um erro de subsunção. Ao
contrapor esse posicionamento de Liszt sobre o erro de subsunção, tanto Beling
quanto Frank já haviam se referido ao “argumento dos profanos” e Mezger, ao
comentar a quaestio, ressalta que “não é possível falar de uma subsunção por parte
do sujeito, a quem concebemos como profano, sem conhecimentos jurídicos”393 .
Uma segunda corrente defendia que o dolo exigiria o conhecimento da
lesão ao bem jurídico, que consistiria no direito alheio ou na posição jurídica alheia.
Deve ser considerada, segundo os partidários desse entendimento (entre eles Frank
e Merkel), “uma referencia do mundo de representação do agente ao objeto de
proteção ou bem jurídico que em cada caso se trata”394.
O jurista alemão, contudo, acreditava ser mais correto o entendimento
segundo o qual, em relação às características típicas normativas, para o dolo,
bastava que o sujeito conhecesse a sua significação:
“Porém, certamente é necessário para tal conhecimento da significação, uma valoração paralela do autor na esfera do profano, ou, dito mais claramente: uma apreciação da característica do tipo no círculo de pensamentos da pessoa individual e no ambiente do a utor, que marche na mesma direção e sentido da valoração legal judic ial ”395 [grifou-se]
É relevante notar que o critério exigia uma apreciação pelo autor do
significado do elemento no mesmo sentido da apreciação judicial, ou seja, haveria
uma coincidência entre o ambiente de valores no qual estava o autor imerso e os
valores objeto de análise judicial. A valoração profana era aplicada para a análise
dos elementos normativos do tipo e em seguida foi também indicada por Mezger
como o método de análise da consciência da ilicitude.
Outro ponto muito importante diz respeito ao fato de que o critério da
valoração paralela na esfera do leigo (ou profano) foi criado para o exame de um
conhecimento atual ou atualizável, próprio do dolo. Esse grau de conhecimento
logicamente se exigia também em relação à ilicitude, já que a consciência da
ilicitude era elemento integrante do dolo e, por isso “deve conhecê-la o sujeito que
atua dolosamente”396. E explica Mezger:
393 MEZGER, E. Tratado… p. 134 e 135. 394 MEZGER, E. Tratado… p. 135 e 136. 395 MEZGER, E. Tratado… p. 137. 396 MEZGER, E. Tratado… p. 140.
124
“Agora bem, culpabilidade é a ação como expressão juridicamente desaprovada da personalidade, consciente de seu fim, do sujeito: para que seja tal expressão na forma perfeita do dolo é preciso que o agente conheça a significação da sua ação. Deve havê-la contemplado à luz de alguma valoração humana (Kohlrausch, 187)”397
Esse critério desde então vem sendo a principal, e na maioria da vezes
única, ferramenta de diagnóstico da potencial consciência da ilicitude, muito embora
um não tenha sido criado para o outro, pois como já analisado anteriormente, a
potencial consciência da ilicitude desenvolveu-se como solução à parte justamente
para as lacunas de punibilidade decorrentes das teorias do dolo e justamente porque
se exigia esse conhecimento atual ou atualizável é que as lacunas existiam.
E como seu ponto de partida era insuficiente para tratar todos os tipos
penais existentes, em especial aqueles relacionados à criminalidade econômica,
cujas diretrizes de conduta não coincidem com valores tradicionalmente abarcados
pela ordem moral, era incontornável que a valoração na esfera do leigo findasse
também insuficiente. Retomando: o conhecimento atual ou atualizável do dolo é
totalmente compatível com o critério da valoração profana - e em consequência com
a historicidade concreta-, mas esse tipo de conhecimento era impraticável a
determinados tipos de crimes e, por isso, se criou a saída da consciência potencial,
à qual obviamente os derivados de uma consciência atual ou atualizável não se
amoldam adequadamente para a observação do caso concreto.
Tanto é assim que o próprio Welzel adotou a análise a partir da valoração
do leigo, mas viu-se posteriormente obrigado a lançar mão do dever de
informação398 para “completá-la”, pois do contrário exatamente as mesmas lacunas
de punibilidade – que eram especificamente relativas aos crimes econômicos399 -
permaneceriam existindo. Daí que a potencial consciência da ilicitude foi criada para
permitir a punibilidade onde existiam lacunas, mas isso somente era possível
397 MEZGER, E. Tratado… p. 141. 398 WELZEL, H. O novo sistema jurídico penal… p. 135. 399 Nesse sentido, basta lembrar a passage de Mezger comentando a solução legislativa que determinava a prescindibilidade da consciência da ilicitude (naquele momento atual ou atualizável) para determinados tipos de crimes: “Aqui se viu obrigada a legislação do Reich, frente ao imenso número de Ordenações em matéria econômica e de leis sobre impostos da época da guerra e do pós guerra e de uma defeituosa jurisprudência do Tribunal do Reich no ponto do erro, a criar um estado jurídico claro e induvidável”. A outra solução para este problema foi a criação da consciência da ilicitude potencial, como já anteriomente mencionado. MEZGER, E. Tratado… p. 144.
125
aliando-se a valoração profana ao dever de informação. Por isso, sempre que a
consciência for potencial, implicará na análise também do dever de informação.
A valoração paralela na esfera do profano é repetidamente trazida pela
doutrina como o critério para a análise da potencial consciência da ilicitude e, como
visto, consiste na avaliação de se era possível ao autor acessar o conteúdo da
proibição de acordo com as normas culturais nas quais está inserido. E quando no
caso concreto ela não se mostra suficiente para aferir a consciência da ilicitude,
doutrina e jurisprudência apoiam-se no dever de informação, porém não se encontra
definido quando, como e através de que meios se passa de um para o outro.
Aqui é imprescindível sejam repisados os esclarecimentos de Alaor Leite:
a análise sobre o erro de proibição é um “tudo ou nada”, ou seja, se sujeito tinha
consciência da ilicitude (atual ou atualizável), não há erro e, do contrário, afirma-se o
erro de proibição. Afirmado o erro de proibição, só então passa-se à análise de sua
evitabilidade, a partir do dever de informação e aqui a avaliação é mais “elástica”.
O que se conclui, e parece não ser questionável, é que o critério da
valoração paralela na esfera do profano apenas será totalmente satisfatório quando
se estiver diante de uma consciência da ilicitude atual ou atualizável. Para além
disso, entra em jogo o dever de informação e todos os subcritérios dos quais
depende a sua afirmação, e que serão comentados adiante.
Essa é uma deficiência básica do critério da valoração profana que
decorre da sua própria natureza e é bastante acentuada no direito penal econômico.
Todavia, mesmo para as situações em que seria substancialmente efetivo, tem
encontrado algumas dificuldades, as quais se passa a expor:
3.2.1 A valoração paralela na esfera do profano nos crimes econômicos e
desreferencialização ética:
O critério da valoração paralela do leigo, como delineado acima, trabalha
com a noção de valores socioculturais e com a percepção pelo sujeito ativo do
significado, nessa esfera profana, da sua conduta frente a essa tabua valorativa. Por
essa razão, para o Direito Penal Econômico, o estudo do campo filosófico que
trabalha os parâmetros de certo e errado adquire fundamental importância no que
126
toca a culpabilidade enquanto requisito para a confirmação do caráter delituoso da
conduta e a consciência da ilicitude como pilar do princípio da culpabilidade.
Assim, poder entender o conteúdo de proibição implica na possibilidade de
compreensão, pelo sujeito, do sentido de valor atribuído às condutas, e, em
consequência, daquilo que é certo ou errado dentro do orbe social no qual está
inserido. Observe-se desde logo que não se exige o conhecimento específico do
texto legal proibitivo ou mesmo que há uma sanção penal imposta, mas tão somente
se analisa se o indivíduo teve acesso às pautas valorativas comuns naquele
universo cultural, donde se poderia dele exigir que as seguisse.
Portanto, merece atenção o contexto ético atual. Etimologicamente, a
palavra ética, do grego ethos e êthos, remete tanto à idéia de valores comuns que
expressam a compreensão de ‘Bem’ em uma determinada coletividade, como esta
mesma idéia de Bem incorporada pelo indivíduo, que o efetiva em suas ações
diárias dando-lhes sentido:
“... encontramos as duas vertentes clássicas da reflexão ética: a subjetiva, centrada em torno do comportamento individual, e a objetiva, fundada no modo coletivo de vida. Essas duas vertentes foram cumpridamente exploradas pelo pensamento grego. Na primeira delas, a individual, a regra de vida proposta foi a virtude (aretê, ...); na segunda, a lei (nómos). (...) Como se vê, o raciocínio passa, insensivelmente, da vida individual à social, dos hábitos pessoais às leis, do êthos ao ethos, e vice e versa.” 400
De modo ou de outro, e ainda quer quando se atenha ao conceito de ética
ou o confronte com o de moral, não se discorda que, em última análise, está se
trabalhando com balizamentos de certo ou errado a partir de uma determinada
perspectiva. Esse balizamento certo/errado se conecta diretamente com a
consciência do ilícito e o critério da valoração leiga, não se podendo deixar de
atentar ao fato de que, repita-se, o critério basta tão somente quando o valor
tutelado pelo tipo penal encontre correspondência na esfera cultural profana, o que
em sede de delito econômico torna-se mais raro.
Pois bem. Segundo ensina Fábio Konder Comparato, “Foi durante o
período axial que se enunciaram os grandes princípios e se estabeleceram as
400 COMPARATO, Fábio Konder. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 96.
127
diretrizes fundamentais de vida, em vigor até hoje”401, referindo-se aos valores
sociais, ou chamada vida ética, e que deu origem à ética tradicional.
Por período axial entende-se o eixo histórico da humanidade402 sob o qual
giram ora pretensões de universalização de valores éticos, ora sua separação,
concluindo-se que “Toda lógica da evolução da humanidade, a partir do período
axial, obedece a esse movimento dual, de choque e aproximação entre os povos; de
perda e reconstrução da antiga unidade ética”403. Constata-se, sociologicamente,
que se vivencia hoje um dos extremos do movimento dual referido por Comparato. É
a chamada pós-modernidade, uma condição sociocultural decorrente da crise das
ideologias reinantes no século XX.
Inicialmente, é importante pontuar que para o contexto a ser delineado a
seguir, não há consenso em relação ao termo pelo qual se lhe denomina. A maior
parte dos autores utiliza, de fato, a expressão “pós-modernidade”, querendo exprimir
a superação da condição moderna, pontuando não se tratar de uma continuidade.
Zygmunt Bauman, por exemplo, popularizou a expressão sociedade pós-
moderna em sua obra “Mal estar da pós-modernidade”, mas atualmente prefere o
termo “líquido” ou “modernidade líquida” para definir o contexto social atual404. Já
401 COMPARATO, Fábio Konder. Op.cit. p. 38. “Numa interpretação que Toynbee considerou iluminante, Karl Jaspers sustentou que o curso inteiro da História poderia ser dividido em duas etapas, em função de uma determinada época, entre os séculos VIII e II a. C., a qual formaria, por assim dizer, o eixo histórico da humanidade. Daí a sua designação, para essa época, de período axial (Achsenzeit)” 402 COMPARATO, Fábio Konder. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 41. Em suma, antes do período axial, em todas as civilizações a vida ética era dominada pelas crenças e instituições religiosas, sem que houvesse nenhuma distinção objetiva entre religião, moral e direito. Além disso, a humanidade constituía uma espécie de arquipélago, onde as ilhas culturais tinham o seu próprio ideário e as suas próprias instituições de poder, pois cada sociedade estava intimamente ligada aos seus deuses particulares, de todo estranhos aos das sociedades vizinhas, e mesmo inimigos destas. A partir do período axial, igualmente, no mundo todo, mas de modo mais profundo e em ritmo mais célere nas civilizações da bacia do Mediterrâneo, observa-se uma evolução em sentido inverso: os agrupamentos locais tendem a se aproximar uns dos outros pela difusão dos meios técnicos, a prática das relações de comércio e a ambição política de conquista; enquanto os componentes da vida ética – a religião, a moral e o direito – começam a apresentar, internamente, uma tendência à desconexão. Tal se deu por efeito de dois fatores principais: o nascimento da filosofia ou saber racional e o surgimento das primeiras religiões universais, como os monoteísmos missionários (não o monoteísmo original dos judeus, que conservou o caráter de uma religião nacional) e o budismo. Ambos os fatores históricos representaram um movimento convergente de superação do ideário tradicional. Doravante buscou-se, em todas as áreas culturais do planeta, um fundamento absoluto e transnacional para a vida ética. 403 COMPARATO, Fábio Konder. Op.cit. p. 41. 404 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida . Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BAUMAN, Zygmunt. Vida Para Consumo . Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
128
Gilles Lipovetsky adota a expressão "hipermodernidade". Este autor não considera
ter havido uma ruptura com a modernidade, e sim uma exacerbação das
características modernas como individualismo, consumismo, ética hedonista,
relativização de tempo e espaço.405
Fato é que, a despeito do nome que se dê a tal condição social
contemporânea, algumas características lhe são marcantes e desenham o contexto
sociológico no qual está inserido o Direito Penal Econômico e todas as categorias da
estrutura do delito. A sacralidade da religião foi transferida para a sacralidade do
indivíduo, “é uma religião na qual o homem é ao mesmo tempo crente e Deus”,
enquanto senhor dos seus valores.406
A compreensão dessa conjuntura pós-moderna parte, necessariamente,
da avaliação da frustração das expectativas sociais criadas pelas perspectivas que
os desenvolvimentos tecnológicos, intelectuais e científicos em geral cunharam
como promessa de um mundo menos desigual e mais justo.
Segundo David Lyon, “o pós-moderno...refere acima de tudo ao
esgotamento da modernidade”. O crescimento econômico alavancado pelo
desenvolvimento científico mostrava-se bom e ruim, simultaneamente. A razão, ao
mesmo tempo em que prometia a total libertação do homem, foi confrontada com os
irracionalismos das drogas e de novas religiões. Entrou em crise a legitimação da
política. O debate intelectual passou a girar em torno da determinação de se a
conjuntura emergia representava o caos ou oportunidade. 407
Nesse mesmo sentido explicou Chevitarese sobre as expectativas que se
insinuavam no contexto da modernidade e acabaram frustradas como se reconhece
na conjuntura pós-moderna:
“A aplicação ampla da racionalidade na organização social prometia a segurança de uma sociedade estável, democrática, igualitária (incluindo o fim de estados teocráticos, de perseguições sociais produzidas pela superstição, de abusos de poder por parte dos governantes, etc). A possibilidade de domínio científico representava o
2000. BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas desde el mundo líquido . Barcelona: Paidós, 2010. 405 LIPOVETSKY, Gilles e CHARLES, Sébastien. Os Tempos Hipermodernos . São Paulo: Barcarolla, 2004. 129 p. 406 “ha illustrato come la sacralità dele religoni sia stata transferita ala sacralità dell’individuo (...) La morale ormai instituzionalizzata dela individualizzazione, dunque, non è semplicemente “una saggia economia dell’esistenza: è una religione nella quale l’uomo à al contempo credente e Dio”. BECK, Ulrich. Il dio personale. La nascita della religiosità seco lare . Bari: Laterza, 2009. p. 116. 407 LYON, David. Pós-modernidade. São Paulo: Paulus, 1998. p. 16.
129
aceno de uma ambicionada segurança, que nos afastaria dos infortúnios ligados a imprevisibilidade do mundo natural (desde condições climáticas e de relevo, a doenças físicas e mentais): a natureza deveria submeter-se ao poder da Razão humana. Estes foram sonhos demasiadamente caros para a humanidade, pelos quais se permitiu a hipervalorização do conhecimento objetivo e científico. O que Ken Wilber, p.ex., prefere chamar de desastre da modernidade: “uma patologia, que logo permitiu que uma poderosa ciência monológica colonizasse e dominasse as outras esferas (a estético-expressiva e a religiosa-moral)”408
Dentre os autores que estudam o tema, J-F Lyotard, na obra "A condição
pós-moderna", caracteriza esta pelo fim das metanarrativas, ou seja, pela
descredibilização dos grandes sistemas filosóficos nos quais se baseavam
consciência e ação individuais, conceitos fundamentais para a categoria da
consciência da antijuridicidade. Com isso, as ciências já não conduziriam às
verdades e, sem essa garantia, gera-se insegurança. Há uma deslegitimação dos
discursos últimos que embasam os discursos menos fundamentais:
“o pós-moderno, enquanto condição da cultura nesta era [pós-industrial], caracteriza-se exatamente pela incredulidade perante o metadiscurso filosóficometafísico, com suas pretensões atemporais e universalizantes”409
Já Habermas relaciona o conceito de pós-modernidade a tendências
políticas e culturais neoconservadoras, determinadas a combater os ideais
iluministas410. Certo é que a pós modernidade traz como peculiaridade principal
justamente a quebra das bandeiras sociais, ou, em outras palavras, o
desmoronamento do que se poderia pretender como ética universalizada,
conclusões que se extraem das principais obras de Zygmunt Bauman411.
Segundo Sebástien Charles, verifica-se um esfacelamento do campo
político, o que também se nota relativamente à esfera cultural:
“Nós vivemos um momento de crispação, tratando-se das tendências atuais. Crispação em nível social, com o questionamento das vantagens adquiridas, hoje ameaçadas pela lógica liberal e a globalização desenfreada que fazem de cada indivíduo um
408 CHEVITARESE, L.: “As ‘Razões’ da Pós-modernidade ”. In: Analógos. Anais da I SAF-PUC. RJ: Booklink, 2001. 409 LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. 410 HABERMAS, Jürgen. Modernidade: um projeto inacabado . São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 411 Como nas obras: Mal estar da pós modernidade, Vida para consumo, Modernidade líquida, Em busca da política, dentre outras.
130
concorrente potencial para todos os outros; crispação em nível político, com a continuidade de discursos extremistas de esquerda e de direita, e o desaparecimento dos grandes projetos políticos que mobilizavam a população e davam sentido ao futuro, indicando um caminho a ser seguido; (...) crispação no que concerne aos valores, com o surgimento de questões inéditas que o progresso da ciência e a extensão da esfera dos direitos individuais tornaram inevitáveis (clonagem, eutanásia, casamento entre pessoas do mesmo sexo, adoção de crianças por casais homossexuais, etc)”412
Daí porque Guaragni e D’Aquino concluem que “os grandes enredos de
interpretação do mundo” desmoronaram, gerando uma desreferencialização
valorativa. Esta “dissolução de grandes tábuas de valores” pelas quais todos se
guiavam reflete-se em não se poder esperar uma visão de mundo homogênea, já
que o “caldo cultural dentro do qual é possível ao agente perceber e internalizar o
que o universo social em que vive considera correto ou não” está diluído e essas
constatações vinculam-se diretamente ao critério da valoração profana, conforme
apontam os autores:
“De fato, em universo social no qual se constata a inexistência de fundamentos éticos para forjar tábuas de valor, fragiliza-se grandemente a ideia de que o leigo perceba a ilicitude de eventua is comportamentos que pratique com a naturalidade do ar que respira .413
Diante desse contexto, o Direito assume papel essencial na manutenção
do espaço convivial414, através da garantia de bens jurídicos cujo valor a ser tutelado
não encontra correspondência na estrutura cultural tradicional. É o que ocorre, por
exemplo, no ramo do Direito Penal Econômico, no qual muitas vezes o valor
protegido está alheio à percepção de sentido comum. Para os pós-modernos, as
perspectivas elaborados pela modernidade para a humanidade, tendo como base o
racionalismo intelectualista consagrado pelo iluminismo, aliado às conquistas
tecnológicas e científicas, restaram frustradas. O que encontramos no lugar são
apenas respostas incertas para os questionamentos mais básicos, inseguranças e
412 CHARLES, Sébastien. Cartas sobre a hipermodernidade. São Paulo: Barcarolla, 2009. p. 16. 413 GUARAGNI, F. A. ; DAQUINO, D. B. . "Póstuma Modernidade" e Erro de Proibição . Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 88, p. 45-60, 2011. 414Arruda e Gonçalves falam na preservação das capacidades conviviais. ARRUDA JUNIOR, Edmundo Lima de; GONÇALVES, Marcus Fabiano. Fundamentação ética e hermenêutica: alternativas para o direito . Florianópolis: CESUSC, 2002. Em Tughendat, é o campo mínimo que possibilite a experiência comunitária. TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre Ética . 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes. 2007.
131
relativismos. Não se chegou a um bem universal e a sociedade perfeita não foi
alcançada. Guaragni e D’Aquino falam até mesmo em criação do valor pelo Direito:
“Estes setores do direito penal intervêm em novas realidades a partir de uma criação artificiosa do valor a ser protegido, que não coincide com bandeiras coletivas de vida ou tábuas coletivas de valor, pela exata razão de que estas bandeiras ou tábuas caíram. Desta maneira, ao invés de o direito penal recolher valores que o universo social pretende sejam protegidos, apresenta-se antes como um ramo do direito que cria o valor a ser protegido e o impõe ao universo social, sem que se reconheça de maneira cristalina a própria existência da demanda social de tutela.”415
No mesmo sentido alertou Figueiredo Dias em longo estudo sobre a
consciência da ilicitude:
“E sistema de valores de que, por certo, a consciência cultural dos nossos dias se vai progressivamente afastando, quando tem de se haver com sociedades definitivamente pluralistas que aceitam a historicidade e relatividade das concepções axiológicas e não estão dispostas a renunciar, por nenhum preço, a esta convicção”416
Como consequência lógica da conjuntura retratada, há um
enfraquecimento da efetividade do critério de análise da consciência da ilicitude da
consistente na valoração paralela na esfera do profano e, em contrapartida, um
fortalecimento da válvula de escape da responsabilização criminal consistente no
dever de informação, e por isso o estabelecimento de limites e subcritérios ao dever
de informação assume tanta relevância, notadamente no Direito Penal Econômico.
3.2.2 A valoração paralela na esfera do profano nos crimes econômicos e a
subcultura empresarial:
A noção de subcultura foi desenvolvida e consagrada na obra de Albert
Cohen, Delinquent Boys417, estendendo-se a vários domínios da sociologia, e não
415 GUARAGNI, F. A. ; DAQUINO, D. B. . "Póstuma Modernidade" e Erro de Proibição . Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 88, p. 45-60, 2011. 416 DIAS, Jorge Figueiredo. O problema da consciência da ilicitude em Direito P enal. p. 3. 417 Delinquent Boys – 1955 : a grande contribuição desta obra está na explicação de como surgem as subculturas delinqüentes, as quais seriam fruto de uma resposta coletiva às experiências de frustração nas tentativas de aquisição de status no contexto da sociedade respeitável e da sua cultura. SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 241 e ss.
132
apenas ao problema criminal. Subcultura significa, em simples palavras a cultura
dentro da cultura418, que nada mais seria do que uma cultura própria de um
subconjunto dentro de uma estrutura cultural mais ampla e diversa da primeira.
Uma conceituação rasa sobre cultura, apenas para fins de delitimar o alcance
do termo no presente estudo, pode ser do de Dias e Costa419, segundo o qual
“cultura são modelos coletivos de ação, identificáveis nas palavras e na conduta dos
membros de uma dada comunidade, dinamicamente transmitidos de geração para
geração e dotados de certa durabilidade”. Tendo este conceito de cultura como
referência, não é difícil identificar o de subcultura, desde já se ressaltando que se
trata de um conceito relativo, pois pode ter certa continuidade com a cultura
dominante, confrontá-la, ou também porque não se descarta a ideia de existir uma
subcultura da subcultura.
Todavia, a ideia de subcultura implica a existência de padrões normativos
opostos ou, pelo menos, divergentes dos que presidem a cultura dominante, por isso
alguns autores utilizam-se do termo ‘contracultura’. Segundo as teorias da
subcultura delinqüente, o crime resulta da interiorização e da obediência a um
código moral ou cultural que torna um modelo de comportamento imperativo. Assim
como se verifica num comportamento conforme a lei, também a delinqüência
significa a conversão de um sistema de crenças e valores em ações.
Para estas teorias, o “delinquente” é visto como normal, bem como o são o
processo de aprendizagem, socialização e motivação. Assim, ao obedecer às
normas subculturais, o sujeito pretende nada mais que corresponder às expectativas
dos outros significantes que definem o seu meio cultural e funcionam como grupo de
referência para efeitos de status e sucesso.420
Tal processo é obrigatoriamente coletivo e interativo-dialógico, pois pressupõe
a existência de certo número de atores em interação recíproca, sendo que a
interação realiza-se sobretudo através de gestos, chamados gestos exploratórios, os
quais vão ser rejeitados ou recepcionados pelo grupo, surgindo assim a subcultura,
como resultado do intenso diálogo e compromisso coletivo.
Walter Miller apontou que a motivação subjacente consiste numa tentativa do
ator para aderir a modelos de conduta e atingir padrões de valor, tal como eles são
418 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 241 e ss. 419 DIAS, Jorge Figueiredo. ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia. O homem delinquente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra editor, 1997. p. 288 e ss. 420 Idem. p. 291.
133
definidos na sua comunidade. Da obra Cloward and Ohlin421 se extrai que a
subcultura pode legitimar e apoiar atividades ilícitas, disciplinadas e racionais, como
meio para obtenção de lucro econômico.
É certo que a análise de todos esses autores em suas obras não tratava de
crimes econômicos422, tampouco do ambiente empresarial, pois focavam-se na
delinquência juvenil e das classes mais baixas como um meio de realização do
indivíduo em relação a um status social que não conseguiam seguindo a cultura
dominante. Contudo, os conceitos centrais podem ser transportados para a presente
análise no sentido de se identificar uma subcultura empresarial, pautada muitas
vezes por valores que contrariam aqueles tutelados pelo Direito Penal Econômico e,
em tal medida, prejudicam substancialmente a utilização do critério da valoração
paralela na esfera do profano para a afirmação da consciência da ilicitude, ainda que
potencial.
Especificamente no âmbito empresarial, o desnorteamento ético decorre
de dois fatores principais. A um: a responsabilidade social enquanto guia e limite da
atividade empresarial, bem como as pautas valorativas da atividade, somente
entraram em cena na segunda metade do século XX, ou seja, já em meio ao
movimento de desorientação ética social geral:
Até os anos 50, o conceito de ética empresarial ainda não havia entrado em nosso vocabulário. Os aspectos morais das atividades econômicas, quando considerados, o eram no contexto da ética social, girando sobretudo em torno da questão trabalhista.423
A dois, decorre da percepção pelos envolvidos de tratar-se de esfera de
atuação com regras próprias que não necessariamente refletem as regulamentações
ético-sociais eleitas pela coletividade na qual a mesma atividade se insere:
As questões éticas podem ser classificadas em quatro categorias: conflito de interesses, equidade e honestidade, comunicações e relacionamentos dentro da empresa. (...) Questões relacionadas com equidade e honestidade surgem com frequência porque muita gent e acredita que
421 Delinquency and opportunity (1960). SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 241 e ss. 422 MOLINA, Garcia Pablos de. GOMES, Luiz Flávio. Criminologia . São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. P. 364. 423 LEISINGER, Klaus M. SCHMITT. Karin. Ética empresarial. Responsabilidade global e gerenciamento moderno . Petrópolis: Vozes, 2001. p.13.
134
o mundo dos negócios é um jogo com regras próprias, não regido pelas regras que se aplicam à sociedade. 424
Alie-se a essas duas circunstâncias a hipervalorização das relações de
consumo e das metas de mercado, que quando pouco pressionam e no limite
obrigam seja a atividade empresarial organizada em determinado sentido, pois
contrariar o fluxo implicaria em abrir mão da subsistência do próprio
empreendimento pretendido e “Como não são financeiramente autossuficientes,
muitas pessoas têm que participar do jogo mesmo contra sua vontade”425.
Eric Beversluis resume a linha de raciocínio comumente observada
relativamente à improbidade na atividade empresarial:
1- As relações nas empresas são um subconjunto de relações humanas, regido por regras próprias que, em uma sociedade de mercado, envolvem concorrência, maximização de lucros e promoções no emprego.
2- A atividade empresarial, portanto, pode ser considerada um jogo, do qual as pessoas participam, e que é comparável, em certos aspectos, a esportes competitivos como o basquete ou o boxe.
3- As regras comuns e a moralidade não são observadas em jogos como o basquete e o boxe.
4- Logicamente, portanto, se a atividade empresarial é um jogo como o basquetebol e o boxe, então as regras éticas comuns não se aplicam a ela.426 [grifo meu]
Assim é que o cotidiano da atividade empresarial cria um universo cultural
no qual a busca de resultados se sobrepõe à moralidade, e as práticas que em tese
consubstanciariam crimes são exercitadas dentro de parâmetros de normalidade
habitual:
A dinâmica de uma organização implica a existência de projetos, estruturas (as relações) e capacidade construtiva (incluindo recursos). A idéia de valores compartilhados atravessa esses fatores constitutivos da organização, permitindo um desenvolvimento eqüitativo e, portanto, sustentável. De uma perspectiva oposta, um aspecto crítico da realidade organizacional e das formas de condução é a injustiça derivada dos relativismos e dos manejos de poder, que busca resultados sem reparar a imoralidade dos meios, utilizando a ideologia da luta pela sobrevivência.427
424 FERREL, O.C. FRAEDRICH, Jonh. FERREL, Linda. Ética Empresarial . Dilemas, tomadas de decisão e casos. 4ª.Ed. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Reichmann & Affonso Ed., 2001. p. 43. 425 Id. p. 32. 426 BEVERSLUIS, Eric H. Beversluis. Is there no such a thing as business ethics? Jounal of Business Ethics. apud FERREL, O.C. FRAEDRICH, Jonh. FERREL, Linda. Op. cit. p. 31 e 32. 427 ETKIN, Jorge. Capital social y valores . Buenos Aires: Granica, 2007. p.269. La dinámica de una organización implica la existencia de proyectos (el rumbo), estructuras (las relaciones) y capacidad constructiva (incluidos los recursos). La idea de valores compartidos atraviesa estos factores constitutivos de la organización, permite um desarollo eqüitativo y, por lo tanto, sustentable. Desde
135
Não é de se admirar que a rotina da função empresária na qual se
inserem os eventuais autores de condutas delituosas específicas deste ramo de
atuação cause em tais indivíduos uma percepção desvirtuada do sentido valorativo
de seus comportamentos:
Os membros das camadas mais elevadas de direção parecem fazer um julgamento mais positivo da situação ética de suas empresas. Para muitos o mundo está em ordem. Como quase sempre a identificação pessoal com a empresa se intensifica nas camadas mais elevadas, isto não provoca surpresa – mas não significa que daí se possa concluir para uma maior qualidade ética do alto empresariado. Se o alto empresariado não percebe nenhum problema ético, isto pode ter duas explicações: as dificuldades morais são empurradas para baixo, ou existem falhas de percepção ou do sentido da realidade .[grifou-se]
As perspectivas criminológicas que buscam possibilidades de paralisar o
alargamento quase que irrefreável da apreensão em sentido de normalidade das
práticas delituosas no âmbito econômico apontam também no sentido de que uma
das questões fundamentais é que os autores de crimes dessa natureza não se
enxergam como autores de delitos. Ou seja, não atingem a compreensão de
desvaloração de seu comportamento:
Do também difundido psicograma de Mergen, há em geral coincidência que na personalidade do delinqüente econômico encontram-se estas cinco características: 1- pertencimento às classes sociais mais altas – nota essencial, 2- inteligência e astúcia, 3- especial periculosidade, 4- Não consideração de seus atos como criminosos, ainda qu e consciente da ilegalidade , 5- situação econômica relativamente folgada. Tudo isto permite uma execução técnica planejada, organizada e profissionalmente assessorada que facilita o objetivo ulterior de autopreservar a impunidade, dando lugar às dificuldades consideradas.428
una perspectiva opuesta, un aspecto crítico de la realidad organizacional y de las formas de conducción es la injusticia derivada del relativismo y los manejos del poder, que busca resultados sin reparar em la inmoralidad de los médios, utilizando la ideologia de la lucha por la supervivencia. 428 GERSCOVICH, Carlos G. Derecho Econômico Cambiário y Penal. Buenos Aires: Lexis Nexis, 2006. p. 299. Desde el también difundido ‘psicograma’ de Mergen, hay en general coincidência em que la personalidad del delincuente econômico tiene estas cinco características: 1- pertenencia a las capas sociales altas –nota esencial-; 2- inteligência y astucia; 3- especial peligrosidad; 4- la no consideración de sus actos como ‘criminales”, aunqu e sea conciente de su ilegalidad; 5- una situatión económica relativamente holgada. Todo esto le permite una ejecución técnica planificada, organizada y profesionalmente asesorada que le facilita el objetivo ulterior de autopreservar la impunidad, dando lugar a las dificultades ya consideradas.
136
De tudo isso se pode extrair o ponto central da problemática: se
evidenciada a desorientação ética que caracteriza a pós modernidade, carente de
tábuas valorativas coletivas e identificado o viés que essa desreferecialização
assume no campo do direito empresarial, os reflexos na possibilidade do sujeito
compreender o valor que viola com seu comportamento cotidiano e interacional são
diretos.
Sim, pois:
A valoração paralela do comportamento, enquanto desvalioso, na esfera leiga ou profana do agente, vai sofrendo adições de dificuldade à medida que o direito penal investe sobre novas realidades. Afinal, se a percepção de valores outrora sólidos se esmaece , com mais razão este efeito se opera em relação a novos valores encampados por normas penais.”.429
E mais, em decorrência do exposto acima, a solução dos casos concretos
envolvendo delitos econômicos cada vez mais demandará o reconhecimento do erro
de proibição, com consequente afastamento da punibilidade penal, o que deixaria
descobertos de tutela penal importantes valores que correspondem ao mínimo
ético430 necessário à sobrevivência social. Por isso conclui Jorge Figueiredo Dias:
Talvez que, na verdade, em nenhum tempo como no nosso se tenha cometido um tão grande número de crimes em que deveria suscitar-se a questão da consciência da ilicitude431
Como se percebe facilmente, a desreferencialização valorativa pós
moderna apresenta reflexos diretos na teoria do delito, no que se refere ao erro de
proibição e, em especial, no campo dos delitos econômicos praticados através da
atividade empresarial, tendo em vista as regras próprias impostas pela subcultura
empresarial que busca em primeiro lugar o lucro e a concretização das metas da
empresa relativas à concorrência e efetividade da atividade.
429 GUARAGNI, Fábio André. D’AQUINO. Dante Bruno. Póstuma modernidade e erro de proibição… p.51. 430 TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre Ética . 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes. 2007. p.143. 431 DIAS, Jorge Figueiredo. O problema da consciência. p. 2.
137
3.3 DEVER DE INFORMAÇÃO
Consoante todo o fundamento já explicitado no capítulo anterior, o dever
de informação é um critério complementar à valoração paralela na esfera do
profano, sempre que esta não concluir por um conhecimento efetivo, atual ou
atualizável, afirmando-se assim o erro de proibição, que a partir de então merecerá a
apreciação sobre sua evitabilidade ou inevitabilidade, o que perpassará pelos
subcritérios analisados na sequencia. É oportuno lembrar que não havendo
consciência efetiva, não surge a norma secundária de abstenção, que poderá ser
substituída pela norma secundária “informe-se”, desde que presente um motivo
concreto.
A teoria do dever de se informar foi sustentada por diversos autores e
admitida pela jurisprudência alemã em 1952. Modernamente, está baseada na sua
função, estabelecendo o dever de informação não como um dever jurídico, mas
como uma carga (Obliegenheit) do indivíduo para consigo mesmo, no sentido de que
deve buscar a informação, pois deve “evitar comportamentos antijurídicos”432. Esse
princípio de responsabilidade é base da culpabilidade desde Welzel, segundo o qual
“toda pessoa é portadora da responsabilidade pela conformidade ao Direito de suas
decisões , dentro dos limites de sua capacidade de compreensão ético-social”433.
Significa dizer que os limites da sua capacidade de compreensão ético
social serão avaliadas pelo critério da valoração profana, a partir de sua
historicidade concreta, e após deve ser verificado se de fato havia o dever de
informação que configurará a evitabilidade do erro.
Para Horn, cuja teoria é explicada por Fernando Córdoba, a finalidade de
uma ação de conhecimento é logicamente conhecer algo que não se conhece. Por
isso, surge o dever de informação apenas quando o agente sabe que há algo ali que
não conhece.434 Parece, entretanto, que esta solução apenas transfere o problema
essencial da consciência da ilicitude, para o qual a pequena “correção” - que
consiste em admitir a mera na potencialidade - foi criada.
Segundo explica Jakobs, em âmbitos não regulamentados
especificamente, o dever de exame da licitude surge sempre a partir de estereótipos
432 CÓRDOBA, J.F. La evitabilidad… p. 151. 433 WELZEL, H. O novo sistema … p. 73. 434 CÓRDOBA, F.J. op. cit. p. 56.
138
de comportamento, definidos a partir da sociedade e não do indivíduo435. Isso
significa, segundo Fernando Córdoba, que para o surgimento do dever, basta que o
comportamento não esteja socialmente estereotipado como lícito, e este seria um
critério geral.436
Há que se ressaltar, ainda, que o dever relativo à evitabilidade do erro de
proibição não será mais ou menos restrito que o dever de cuidado nos crimes
culposos , devendo se guiar pela “função do que é necessário e razoável exigir do
autor para assegurar o conhecimento das normas”437. Assim, por exemplo, no caso
da medida do dever exigido em caso de erro sobre os limites de uma causa
justificante, devem ser considerados o fator tempo, a excitação, o medo, o
nervosismo.
Tomando-se por base a concepção da ação significativa, Bujan Pérez
alerta que, na análise da evitabilidade do erro e do dever de informação, dados
psicológicos devem sempre ser preteridos, pois somente critérios normativos devem
ser esgrimidos.438
3.3.1 Motivo Concreto para se informar
Repetidas vezes nessa pesquisa já se ressaltou que o dever de
informação não pode ser um dever geral, do qual se lança mão em todo e qualquer
caso que o critério da valoração paralela seja insuficiente, pois o dever de
informação deve sempre estar vinculado a um motivo concreto, não havendo que se
falar em evitabilidade “se o autor não foi impulsionado por circunstância alguma a
examinar a situação e se, portanto, não viu nenhuma razão para iniciar uma ação de
conhecimento”439
Roxin salienta que a o motivo concreto pode ocorrer em 3 situações, que
vinculam a capacidade do autor de examinar a situação jurídica da conduta: quem
tem uma dúvida sobre a conformidade do comportamento ao Direito, quem se acha
435 JAKOBS, G. Dogmática… p. 190. 436 CÓRDOBA, F.J. op. cit. p. 179 e 185 a 187. 437 CÓRDOBA, F.J. op. cit. p. 192. 438 MARTINEZ - BUJAN PÉREZ, C. op. cit. p. 464. 439 CÓRDOBA, F.J. op. cit. p. 52.
139
em setor da vida regulado especificamente ou quem tem consciência de que
prejudica outros ou a coletividade.440
Rudolphi, citado por Fernando Córdoba, avalia que a evitabilidade do erro
é recortada de modo indevido quando se conforma com a comprovação objetiva de
que o autor tinha capacidade de conhecer a antijuridicidade, pois “só a existência
dessa possibilidade ainda não coloca o autor em situação de conhecer, através de
um ato de liberdade, a antijuridicidade do seu comportamento no momento do fato”.
E explica o autor alemão, em esclarecedora passagem que demonstra que a análise
pura e simples da historicidade concreta do autor não é suficiente para definir a
evitabilidade do erro:
“Aplicado ao nosso problema isto significa: se ao autor falta, no momento do fato, toda razão para pensar na antijuridicidade de seu comportamento, se para ele não tem nenhum sentido informar-se sobre a qualidade jurídica de sua conduta – por exemplo, se não tem a mínima dúvida acerca da sua licitude - , então não está capacitado a aproveitar , através de um ato de liberdade, uma possibilidade de conhecer a antijuridicidade de sua conduta, que tem disponível objetivamente. Falta-lhe um motivo com sentido para esforçar-se pelo conhecimento da antijuridicidade. (...) então não só deve ter uma possibilidade de conhecer a antijuridicidade, mas também uma razão para aproveitar essa possibilidade”441
Germán Dario Sória salienta que o autor, além de razões para pensar na
antijuridicidade de sua conduta, deve ainda ter a possibilidade de esclarecer a
situação jurídica.442 Também Bacigalupo, opondo-se ao extremismo de Torio que
entendia não haver compatibilidade entre o princípio da culpabilidade e a
consciência potencial , alega que no erro evitável não se pune a ignorância total do
Direito e sim o autor que teve razões para pensar na antijuridicidade e não
esclareceu a situação jurídica para orientar seu comportamento conforme as
normas443.
O motivo concreto, ainda que não de forma expressa e delimitada,
aparecia já na concepção de Welzel sobre o dever de informação, afirmando ele que
“Nas disposições penais que têm caráter predominante, ou exclusivo, de ordenação
440 ROXIN, C. Derecho … p. 885. 441 CÓRDOBA, F.J. op. cit. p. 53. 442 SORIA, Germán Darío. Posición de garante y error de prohibición en la em presa . In RUBINSKA, Ramiro M. ALMENAR, Daniel Schurjin. Derecho penal económico. Tomo I. Buenos Aires, Madri e Barcelona: Marcial Pons, 2010. p. 804. 443 BACIGALUPO ZAPATER, Enrique. La evitabilidad o vencibilidad del error de prohibi ción . In Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 14. São Paulo: RT, 1996. p. 29.
140
– como no Direito Penal administrativo – a reprovabilidade do erro de proibição pode
basear-se unicamente no fato de que o autor não tenha se informado, ou não tenha
se informado suficientemente, quando as circunstâncias do caso concreto lhe davam
motivo para tanto. Assim, por exemplo, aquele que deseja dedicar-se ao comércio
de vinho deve se informar sobre as disposições jurídicas pertinentes”444.
Assim, na esteira da doutrina majoritária, consistem em motivos concretos
que implicarão na busca, pelo autor, da informação e determinarão a evitabilidade
do erro: a dúvida sobre a licitude do comportamento, a inserção em atividade
regulamentada especificamente, a lesão a outrem ou à coletividade.
3.3.1.1 Dúvida
É consenso que a dúvida sobre a proibição de uma conduta já é suficiente
para delimitar a evitabilidade do erro, vez que impõe ao sujeito informar-se sobre a
licitude de seu comportamento antes de praticá-lo. Saliente-se aqui que a dúvida
não será aferida a partir de sua natureza psicológica, conforme explica Alaor Leite,
para quem “o correto é trabalhar com um conceito menos psicológico e mais
normativo de dúvida, o que auxiliará sobremaneira na resolução dos problemas da
evitabilidade da dúvida sobre a proibição”445
São casos de dúvida a chamada consciência condicionada (Jakobs) ou
consciência eventual (Roxin) da ilicitude, por isso se disse que a classificação era
desnecessária, já que entrarão na regra geral da dúvida enquanto motivo concreto
para a busca da informação. Para Roxin, “o sujeito, ao ter em conta a possibilidade
de um comportamento antijurídico, está consciente de todos os modos de uma
eventualidade que deveria induzi-lo a abster-se” do comportamento duvidoso.446
Em princípio, a dúvida leva à consciência eventual e, portanto, ao erro
vencível, e não existiria um autêntico erro de proibição quando o autor não levasse
em conta tais dúvidas sobre o injusto, porque “se confia negligentemente na
conformidade ao Direito de sua conduta”, esse erro é vencível.447
444 WELZEL, H. O novo sistema… p. 135. 445 LEITE, Alaor. ASSIS, Augusto. O erro. Especial foco no erro de proibição . In BUSATO, Paulo César. Direito penal baseado em casos. Curitiba: Juruá, 2012. p. 303. 446 ROXIN, C. Derecho… p. 876. 447 ROXIN, C. Derecho… p. 886.
141
Leite assevera que existe quase um consenso em se fixar a evitabilidade
do erro e afirmar a culpabilidade quando o sujeito agiu em dúvida sobre a proibição
da conduta, mas na verdade há algumas situações em que mesmo a dúvida não
pode ensejar tal juízo. Tem-se, por exemplo, a situação do caso concreto trabalhado
no artigo acima referenciado, no qual os sujeitos se encontravam em situação de
“dúvida sobre deveres que se autoexcluem”, porque estariam agindo contrariamente
ao Direito tanto com a prática do ato, quanto com a omissão da prática do ato.
Nesses casos, geralmente a solução adentrava no campo da exigibilidade,
mas Leite explica a desnecessidade de uma solução desse gênero, que configura
uma “dogmática de mal compostas feições”. A confusão, segundo o autor brasileiro,
se dá por se desconsiderar que a análise da evitabilidade é flexível e que a
existencia da dúvida não significa, ao contrário de como trata a doutrina, de
afirmação da consciência da ilicitude eventual em qualquer caso .448 Roxin também
alerta que “mais difícil resultará a valoração quando o sujeito, em caso de dúvidas
irresolúveis sobre o injusto, se encontre diante de uma situação na qual qualquer
conduta seja possivelmente antijurídica.”449
Outra situação peculiar se dá quando o agente está em dúvida sobre duas
situações que sabe ilícitas , mas no cumprimento de um dever. Aqui, Roxin explica
que a solução se dará ou pela saída da exigibilidade ou pela análise do limite do
cumprimento do dever.
Por fim, não se pode ignorar também o fato de que a própria conjuntura de
desreferencialização ética haverá de prejudicar o surgimento da dúvida sobre a
licitude do comportamento.
3.3.1.2 Atividade Regulamentada
Nos âmbitos de acesso restrito, ou seja, atividades profissionais ou
similares que somente podem ser exercidas por pessoas com conhecimentos
específicos450, os personagens seguem regras mais rígidas, pois trata-se de um
espaço com regulamentação especial. Ainda que se possa objetar que, diante da
448 LEITE, Alaor. ASSIS, Augusto. O erro. Especial foco no erro de proibição . In BUSATO, Paulo César. Direito penal baseado em casos. Curitiba: Juruá, 2012. p. 305 e 306. 449 ROXIN, C. Derecho… p. 875 e ss. 450 CÓRDOBA, F.J. op. cit. p. 179.
142
sociedade líquida, há uma dificuldade muito maior do sujeito identificar o papel que
está assumindo e que vai lhe impor informa-se, este dever de informação surge com
a simples inserção na atividade, sendo esta um motivo concreto que faz surgir a
norma secundária “informe-se”.
É claro que, como já dito, a análise é normativa e se desenrola em um
espaço flexível, de modo que também aqui devem ser considerados o tempo de
inserção na atividade, que permitisse ao sujeito buscar a informação de forma
adequada, bem ainda a dificuldade de acesso a tais informações. Roxin exemplifica
o trânsito e o exercício profissional como atividades regulamentas especificamente,
nas quais preceitos específicos devem ser respeitados451, e em tais casos o erro
será vencível:
“Também é vencível, por regra geral, o erro de proibição quando o sujeito não se esforça em alcançar conhecimentos jurídicos necessários, em que pese sabe que o setor no qual pretende atuar está sujeito a uma normatização específica. (...) Não é necessário que o cidadão conheça as normas muito específicas vigentes a respeito da atividade, mas quem trabalha nesses setores deve contar, em caso de infringir os preceitos correspondentes, com uma punição por delito doloso, quando não se colocou a par deles”452
Segundo Augusto Silva Dias, interessam especialmente dois aspectos: “as
regras, institucionalizadas ou juridificadas, de organização do setor da atividade em
causa” e o “padrão mediador usado para (o aplicador) estabelecer a comunicação
entre as normas jurídicas e o mundo do agente”.453 E Darío Soria alerta que as
exigências em relação ao dever de se informar para aqueles que atuam num setor
da vida especialmente regulado são muito maiores.454
3.3.1.3 Lesão a bem jurídico ou dano à coletividade
451 ROXIN, C. Derecho… p. 883. 452 Idem. p. 886. 453 DIAS, A.S. op. cit. p. 181. 454 SORIA, Germán Darío. Posición de garante y error de prohibición en la em presa . In RUBINSKA, Ramiro M. ALMENAR, Daniel Schurjin. Derecho penal económico. Tomo I. Buenos Aires, Madri e Barcelona: Marcial Pons, 2010. p. 804.
143
Configura também um motivo concreto que faz nascer o dever de
informação o ciência sobre a lesão a outrem ou à coletividade, decorrente da
conduta praticada. Em outras palavras, ainda que o sujeito pense que sua conduta é
lícita, caso vislumbre estar prejudicando terceiro ou a coletividade, deve buscar
informação sobre eventual proibição.
Roxin exemplifica que “quem sabe que com uma determinada conduta no
tráfico mercantil prejudica de maneira substancial os interesses patrimoniais de
outro, deve motivar-se a examinar sua conduta”455
3.3.2 Confiabilidade da fonte de informação
Se o autor buscou a informação, como saber se deve continuar
procurando ou se pode dar-se por satisfeito no sentido de que não está proibida a
conduta? Córdoba afirma que “o erro de proibição deve ser considerado inevitável
quando o autor podia confiar na informação recebida”456, análise que será feita no
caso concreto, normativamente. Certo é que, como ressalta Bacigalupo, a
informação sempre oferece melhores possibilidades quando provém de uma fonte
confiável.457
Parte da doutrina salienta que aquele que busca a informação deve fazê-
lo com uma pessoa versada no assunto e através de um exame cuidadoso da
situação fática e jurídica, mas a opinião majoritária prefere não vincular a
confiabilidade da fonte a um conhecimento técnico.458 Esse, contudo, não é o
posicionamento de Rudolphi, ao qual se alinha Córdoba, pois o autor alemão coloca
como requisito de confiabilidade o conhecimento da matéria pela pessoa consultada
e o exame cuidadosa. Caso o próprio autor tenha conhecimento técnico, não se
exige que consulte um terceiro.459
O posicionamento majoritário, representado por Roxin460, considera que o
leigo não teria capacidade para avaliar a idoneidade da fonte, sendo mais plausível
que se verifiquem todas as circunstâncias nas quais a informação foi obtida, 455 ROXIN, C. Derecho… p. 887. 456 CÓRDOBA, F.J. op. cit. p. 211. 457 BACIGALUPO ZAPATER, E. op. cit. p. 38. 458 CÓRDOBA, F.J. op. cit. p. 212. 459 Idem. p. 213 a 222. 460 ROXIN, C. Derecho… p. 887 e ss.
144
afirmando-se normativamente se, para aquele caso concreto, o sujeito poderia
considera-la confiável. No mesmo sentido Neumann:
“Não se pode reclamar que uma pessoa que informa tenha estado realmente em condições de partilhar uma informação jurídica correta, pois o leigo não está capacitado para avaliar a competência na matéria do seu interlocutor; deve bastar que pudesse considerá-lo versado na matéria. Para isso o leigo pode (e na prática: deve) orientar-se sobre a qualificação formal de quem fornece a informação , contando que circunstâncias especiais não sugiram dúvidas acerca de sua confiabilidade”461
Roxin cita o exemplo do cidadão que consulta um advogado e, como tal,
deve ser considerado fonte confiável, pois se pode “partir da base de que um
advogado, que foi aprovado nos exames necessários requeridos, pode lhe dar um
conselho jurídico no qual se fiar”462 . Na mesma linha, se uma instância oficial
tolerou determinada conduta, essa informação seria suficiente para fundamentar a
inevitabilidade do erro.463
Outra importante fonte de informação é a jurisprudência, que quando
contraditória deixará a problemática mais complexa, mas em todo caso deve ser
considerado inevitável o erro do autor que se comportou em um dos sentidos
admitidos.464
É claro que, muito embora não se encontre na doutrina esse critério, não
se pode deixar de considerar a função que determinada pessoa ocupa em um órgão
teoricamente capacitado para fornecer a informação, pois a confiabilidade, nesse
caso, não se fia na pessoa do funcionário, senão no fato de que ocupa, no órgão,
posição da qual se presume a possibilidade de repassar informações confiáveis.
Assim, se o representante de uma empresa procura o órgão ambiental
competente para esclarecer uma dúvida sobre os termos do licenciamento, e
posteriormente acaba praticando um crime ambiental pois a informação repassada
estava equivocada, não há que se falar em erro evitável.
3.3.3.Relevância da informação no caso concreto
461 NEUMANN, Ulfrid. Der Verbotsirrtum , 1993, p. 793 e ss. apud CÓRDOBA, F.J. op. cit. p. 228. 462 ROXIN, C. Derecho… p. 888. 463 Idem. p. 889. 464 BACIGALUPO ZAPATER, E. op. cit. p. 38.
145
Se o sujeito não buscou obter a informação, crendo na conformidade de
sua conduta ao Direito, nem por isso há de ser considerado evitável seu erro, pois
antes disso deve-se verificar a relevância da informação, no caso concreto, que
obteria caso a tivesse perquirido. Roxin explica que:
“Se alguém atuou sem se informar de nada, na crença da conformidade de sua conduta ao Direito e tem ao seu lado uma jurisprudência que ele desconhece, deve ser considerado erro de proibição invencível no caso da jurisprudência ter mudado posteriormente de opinião, pois mesmo a informação completa não lhe daria motivo para outra conduta. Sem dúvida, em muitos casos recorrer a informações jurídicas pode ser um meio para aceder ao conhecimento da proibição, mas nem sempre e não é sua omissão, senão a capacidade de acessar o conhecimento, que converte o fato em culpável”465
No mesmo sentido Alaor Leite explica que essa análise de relevância da
informação hipotética vai determinar a punibilidade do agente, pois no caso concreto
deve ser afirmado que aquela informação, caso obtida, levaria a uma consciência
segura do injusto em razão de sua eficácia.466
3.3.4 Princípio da coincidência entre consciência d o injusto e momento do fato
Se o poder agir de outro modo depende de uma alternativa de
comportamento, diversa do fato antijurídico, “então a capacidade de conhecer e
motivar-se de acordo com a norma deve estar presente no momento do fato”467. É
esse também o posicionamento de Jakobs, ao discorrer sobre os requisitos da
consciência da antijuridicidade:
“A consciência do injusto há de se referir ao momento do fato. Não tem que consistir em uma reflexão consciente, mas sim ao menos em uma experiência liminar (Miterleben) do injusto do comportamento, o que se pode deduzir, por exemplo, da configuração clandestina do fato, ou da tentativa de não ser descoberto”468
465 ROXIN, C. Derecho… p. 878 e 879. 466 LEITE, Alaor. ASSIS, Augusto. O erro. Especial foco no erro de proibição . In BUSATO, Paulo César. Direito penal baseado em casos. Curitiba: Juruá, 2012. p. 305 e 306. 467 CÓRDOBA, F.J. op. cit. p. 34. 468 JAKOBS, G. Derecho… p. 669.
146
Transportado para o dever de informação, o princípio deve ser
flexibilizado, na medida em que o cuidado do sujeito em assegurar-se de que sua
conduta não está proibida pelo ordenamento é anterior à pratica do fato em si. Ao
comentar o dever de informação e o momento de sua observância, que é anterior à
pratica do comportamento, Alaor Leite ressalta que passa-se muito, mas muito longe
do que ordena o princípio da culpabilidade, e o fato delituoso cometido pelo sujeito
parece já ter saído de cena há tempos”469
Roxin também questiona o fato de que a vencibilidade do erro é afirmada
com base em uma provocação culpável anterior à comissão do fato, afirmando que
“com isso se entra num âmbito problemático desde a perspectiva do Estado de
Direito da culpabilidade de autor ou pela condução de vida”470 e explica porque não
deve ser assim considerado:
“quem omite informar-se a tempo sobre os preceitos respectivos no tem possibilidade de reparar no momento da comissão do fato. Se se considera, como resulta adequado, vencíveis tais erros de proibição e se quer apenar o sujeito, há de se recorrer aqui, portanto, às omissões anteriores. Aí não se está atendendo a uma culpabilidade pela condução de vida, pois o fundamento do reproche de culpabilidade não é a condução geral da vida, nem a evolução do caráter do sujeito, senão concretas infrações de cuidado que poderiam ser esperadas a partir das infrações jurídicas da índole das posteriormente produzidas.”471
Em outras palavras, Roxin quer dizer que com a imposição do dever de
informação prévio à prática da conduta não se abandona o terreno da culpabilidade,
pois esta ampara-se em faltas de cuidado delimitadas e que permitiriam ao autor
supor que a ação produtora de resultado poderia ocorrer.472 Na mesma linha de
pensamento, Fernando Córdoba também explica que “se trataria só da
reprovabilidade de omissões suficientemente determinadas e não da reprovabilidade
de qualidades do caráter”473.
Assim, em resumo e para finalizar, o critério inicial para a verificação da
consciência da ilicitude é o da valoração profana. Quando este chegar à conclusão
de que houve erro de proibição, a análise é deslocada para a evitabilidade do erro,
469 LEITE, Alaor. Existem deveres gerais de informação no Direito Pen al: violação de um dever, culpabilidade e evitabilidade do erro de proibição. Revista dos Tribunais (São Paulo), São Paulo, v.101, n.922 , p. 323-340, ago. 2012. 470 ROXIN, C. Derecho… p. 883. 471 Id. 472 Idem. p. 884. 473 CÓRDOBA, F. J. op. cit. p. 301.
147
que será avaliada a partir do dever de informação, sendo considerado evitável o erro
sempre que o agente deixou de buscar a informação, mesmo tendo estado diante de
um motivo concreto, quer seja a dúvida, a inserção em atividade regulamentada ou a
lesão a terceiro ou à coletividade. E se ele deixou realmente de se informar, a
evitabilidade depende ainda da relevância concreta da informação hipotética, sendo
considerados nessa baliza ainda outros fatores como tempo e confiabilidade da
fonte.
148
CONCLUSÃO
A culpabilidade, enquanto categoria dogmática da estrutura sistemática
do conceito de crime, vincula-se diretamente ao princípio da culpabilidade. Os
debates em torno tanto do princípio da culpabilidade, quanto da culpabilidade como
elemento do delito, são inúmeros, especialmente porque se levado às últimas
consequências, o princípio acabaria por, na prática, inviabilizar a punição de
inúmeros fatos que político-criminalmente interessam serem responsabilizados
criminalmente em razão do valor que tutelam.
Analisando-se o desenvolvimento da categoria dogmática da
culpabilidade, não é difícil perceber que todas as reestruturações que sofreu foram
no sentido de conciliar os resultados práticos ao nullo crimen sine culpa.
Inicialmente, a sistematização caminha no sentido de efetivar cada vez mais o
princípio. Foi assim, por exemplo, que a a culpabilidade deixou de ser apenas o
vínculo psicológico para abarcar também a consciência da ilicitude, deixando a
culpabilidade de ser exclusivamente psicológica para ser psicológico-normativa. Foi
assim também, a regra do error juris nocet, tão enraizada na dogmática penal,
perdeu força para que se admitisse o erro de proibição. Nesse momento, a
consciência da antijuridicidade era elemento integrante do dolo e, como tal, exigia
um conhecimento efetivo, atual ou atualizável.
As lacunas de punibilidade originadas dessa estruturação alimentaram
diversas discussões e proporcionaram o desenvolvimento de teorias diversas para a
solução da questão, o que advinha principalmente das legislações em matéria penal
econômica, como apontaram Mezger e Merkel. As razões eram evidentes: como o
conhecimento exigido pelo dolo era apenas o efetivo e a análise da consciência da
ilicitude baseava-se na percepção, pelo autor do fato, do significado de sua conduta
como contrária à estrutura cultural, e tendo-se em conta a inflação legislativa em
matéria econômica e sua característica de tipos penais diferentes do direito penal
nuclear, se as soluções para os casos concretos fossem rigorosamente técnicas,
haveria a afirmação de muitos erros de proibição com a exclusão da culpabilidade.
Estando diante desse cenário, enquanto o Tribunal do Império alemão
permanecia trabalhando com base no error juris nocet, admitindo tão somente o erro
relativo às circunstâncias fáticas, Mezger criou a figura da culpabilidade pela
conduta de vida, enquanto outros autores, dentre eles Merkel, para o mesmo
149
problema encontraram a saída da consciência potencial da ilicitude, que foi desde
então admitida e repetida por todas as construções dogmáticas posteriores. A partir
da consciência potencial, o autor do fato não precisava mais saber que o que fazia
era errado, bastava que pudesse saber para que se afirmasse a culpabilidade.
Parece inquestionável que nesse momento o passo não foi em direção à efetivação
do princípio da culpabilidade, mas ao contrário, afinal poder saber que o que faz é
errado é menos do que saber que o que faz é errado. A partir desse momento,
exige-se menos para que se possa punir, o que, contudo, nunca deixou de ter um
fundamento político criminal que consistia em sanar as referidas lacunas de
punibilidade.
A culpabilidade, com a teoria finalista da ação de Welzel, passou a ser
puramente normativa, o que foi mantido nas construções posteriores, parecendo
haver um consenso em torno do elemento da consciência da ilicitude potencial,
ainda que a questão da liberdade humana, enquanto fundamento da culpabilidade
como poder agir de outro modo, permaneça sendo discutida, chegando-se a falar
inclusive num abandono do princípio da culpabilidade por parte de alguns autores.
Observando-e a evolução histórica da culpabilidade, bem como a imensa
diversidade das elaborações sistemáticas em torno dela, não seria possível a
continuação da pesquisa sem que se optasse por um dos caminhos. A busca de
amparo foi então a Constituição de 1988, da qual, tendo por base o princípio da
dignidade da pessoa humana, decorre uma concepção de homem como ser
autônomo, livre, e que, por isso, pode agir de outro modo, desde que lhe seja
acessível o conhecimento das proibições.
E fala-se em consciência como conhecimento e não compreensão, pois
esta demandaria a internalização, por parte de todos, do sentido do valor tutelado e,
na esteira de Zaffaroni, parece correto que a mesma concepção de Dignidade da
Pessoa Humana não permitiria, e tampouco seria mesmo possível, obrigar alguém a
ver sentido em determinado valor a ponto de tomá-lo como seu. Para respeitá-lo,
entretanto, basta que conheça.
E conhecendo o sentido da proibição, nasce o dever de abster-se da
conduta. Esse é o fundamento material do elemento da consci6encia da ilicitude,
pois é básico que só se pode punir aquele que sabe que o comportamento
executado é proibido. No caso da consciência potencial, todavia, a fundamentação é
absolutamente deixada de lado pela doutrina brasileira, que se satisfaz com a
150
evitabilidade do erro e o genérico dever de informação que tem aleatoriamente
servido de muleta para a exclusão do erro de proibição nos casos concretos. A
situação ganha maior vulto em se tratando dos delitos econônimos, tanto porque os
tipos penais são formulados com base bastante técnica, como principalmente
porque os valores por eles tutelados fogem àqueles tradicionalmente já incorporados
nas pautas valorativas sociais e comuns.
Isso não quer dizer que o Direito cria o valor, mas atento às necessidades
sociais e de manutenção dos espaços conviviais, seleciona bens jurídicos que
merecem proteção e deles extrai os valores que, num segundo momento sim,
podem partir do Direito para a sociedade, através da proibição das condutas. Mas
ficava faltando um elo de conexão que justificasse punir o indivíduo totalmente
afastado do significado social de determinada conduta proibida em razão dos -
chamados por Augusto Silva Dias - ramos emergentes do Direito Penal.
A consciência potencial restava sem fundamento, o dever geral de
informação era facilmente objetado em razão do princípio da legalidade, e político-
criminalmente afirmar o erro de proibição em todos os casos não interessava. Foi em
Claus Roxin e, posteriormente, em Alaor Leite, que o estudo encontrou um caminho
razoável para a concepção da consciência potencial sem o genérico dever de
informação que tem aleatoriamente servido de muleta para a exclusão do erro de
proibição nos casos concretos.
Haveria que se exigir sim um dever de informação, mas ele precisava
estar ancorado a alguma teoria da norma que, quando o sujeito não tivesse a
consciência efetiva geradora da norma de abstenção, fizesse emergir a norma de
busca informação, e assim se estabelecem critérios que revelam um motivo concreto
para que o sujeito, na vida prática, deva atentar-se a esclarecer a licitude ou ilicitude
de sua conduta.
Não que para isso se precise abrir mão do critério da valoração paralela
na esfera do profano, muito pelo contrário. A valoração paralela será sempre o
primeiro critério de análise e, pela historicidade concreta de vida, referida por
Figueiredo Dias, analisa-se se o indivíduo tinha um conhecimento efetivo atual ou
atualizável da proibição. Se sim, estará afirma a consciência da ilicitude e a
culpabilidade. Se não, afirma-se o erro de proibição e passa-se à analise da
evitabilidade do erro. Aqui, a valoração paralela do leigo, de acordo com a sua
historicidade concreta, demonstrará a possibilidade do sujeito acessar o conteúdo da
151
proibição que, contudo, somente lhe ensejará a responsabilização penal se ao lado
dela existir também um dever de se informar.
O critério da valoração paralela encontra algumas dificuldades específicas
no campo do Direito Penal Econômico, tendo em vista a conjuntura de
desorientação ética, o que torna ainda mais difícil acesso a valores tutelados, bem
como a percepção de que se assume um determinado papel social do qual
decorrem muitos dos deveres de informação.
Particularmente no ramo empresarial, outra dificuldade relativa ao critério
da valoração leiga é a subcultura empresarial, a partir do momento em que os
indivíduos inseridos naquele orbe com regras e valores próprios, os quais por vezes
contrariam a ordem cultural geral, têm mais dificuldade em perceber a ilicitude dos
seus atos, quer pela normalidade com qual são praticados naquele meio, quer pela
contradição com o objetivo primordial que é o lucro.
Nesse sentido, o critério da valoração paralela perde força, ao passo que
o dever de informação terá maior relevância.
Retomando: afirmado o erro de proibição e afirmada a possibilidade de
acesso ao conteúdo da proibição través da valoração paralela, há que se verificar se
existe, no caso concreto, um motivo relevante que vincule o dever de informação.
Esse motivo relevante poderá ser a dúvida sobre a licitude da conduta, e aqui
entram os casos de consciência eventual (Roxin) ou condicidonada (Jakobs). Pode
considerar-se motivo também a inserção em uma atividade que possui
regulamentação específica, em relação à qual o tempo de desenvolvimento da
atividade é muito importante para a verificação da evitabilidade do erro. Ou ainda, a
lesão a outrem ou à coletividade.
A avaliação sobre a evitabilidade do erro requer ainda outros cuidados.
Tendo se informado o sujeito, há que se avliar a confiabilidade da fonte de
informação. Ainda que ele tenha se informado, se a fonte não poderia ter sido
considerada por ele confiável, o erro será considerado evitável. Ao contrário, para o
sujeito que não se informou, a evitabilidade não consitui o erro de pronto, deve ainda
ser avaliada a relevância da informação hipotética (tivesse ele se informado,
conseguiria acesso ao conteúdo da proibição?). E somente após percorrido todo
esse caminho é que se poderá então afirmar a culpabilidade com base na
evitabilidade do erro.
152
Desse modo, parece que o princípio da culpabilidade ganha maior
efetividade e há mais segurança jurídica para a aplicação dos conceitos relativos ao
erro de proibição, o que é muito importante para o Direito Penal Econômico que
quase sempre liga-se às atividades regulamentadas especificamente e a bens
jurídicos supraindividuais, em relação aos quais a percepção do dano é mais difícil.
153
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