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#11

www.criticaeconomica.net

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ÍNDICE

Esta edição da Crítica é aberta por um artigo de Henrique Pinto sobre a ideologia do “empreendedorismo” e outros truques do neoliberalismo, a que ele chama de “fracassado”. Fracassado será porventura, mas como assinala, muito poderoso. É aliás o que se reflecte nos temas que aqui são debatidos: os 60 anos do antepassado da União Europeia, os resultados orçamentais, a venda do Novo Banco e a exploração do petróleo.

Finalmente, esta edição inclui um estudo sobre o ordenamento territorial e a questão da regionalização de Portugal.

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#11

ÍNDICE

DebatesEmpreendedorismo e economia social – truques de um neoliberalismo fracassado e moribundo, Henrique Pinto ...................................................................... 05

A venda do Novo BancoA Sr. Verstager manda, Ricardo Cabral ......................................................................... 11

Os resultados orçamentaisAgora, não dormir sobre os louros, Ricardo Cabral .....................................,.............. 13

Ultimato, só o futurista, Paulo Coimbra......................................................................... 15

Aquelas horas em que a troika esteve em parte alguma, Francisco Louçã........,...... 17

60 anos da UEPouco para celebrar, Viriato Soromenho Marques ........................................................ 20

Lembra-me um sonho lindo, Pedro Adão e Silva ......................................................... 21

O futuro da “desunião”?, Ricardo Cabral ..................................................................... 22

Em Roma já não sobra nada, Francisco Louçã ............................................................ 24

Há petróleo na costaPetróleo: um governo sem máscara, João Camargo .................................................. 26

Três motivos pelos quais o Estado deve cancelar os contratos de prospecção e exploração de petróleo e gás em Portugal, Ricardo Paes Mamede ....................... 28

EstudoOrdenamento territorial do espaço continental em Portugal, Ernesto V. S. Figueiredo ............................................................................ 31

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ÍNDICE

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HENRIQUE PINTO*

“Dacché esiste l’umanità, le generazioni che hanno sacrificato più tempo al lavoro sono quelle che hanno avuto la sfortuna di nascere sotto il capitale.”

“Se per il capitalista il tempo è denaro, perl’ozioso o il vedente il loro ‘capitale’ è il tempo.” “Solo il movimento artistico ha perseverato nel ‘diritto all’ozio’.” Maurizio Lazzarato, Il governo dll’uomo in-debitato

CONDIÇÃO DE TODAS AS COISAS: CONTINGÊNCIA E JUSTIÇA

Há uma vida que estudo a condição humana, e com ela a condição de todas as coisas. O facto de existirmos sem razão, e do diálogo-cooperação se colocarem como interacção absolutamente necessária à sustentabilidade de tudo o que existe, estão na génese das revira-voltas por que tenho passado, e dos contínuos processos de construção de mim mesmo e das causas que abraço.

Não nascemos livres nem iguais, mas temos em comum, para além da absoluta necessidade da “Contingência” ou deste “Super Caos” que nos deu à luz, e a que chamo de Gratuidade (“gra-tuitus” – sem razão), a capacidade de pensar o Eterno, manifesto numa obstinada esperança que não desiste nunca de desejar e esperar a JUSTIÇA em cada embate com o mundo, com os outros. Como o afirma o filósofo francês Quentin Meillassoux, se existe algum agir que possa alguma vez estar à altura da dignidade do pensamento e traduzir os seus mais altos anseios, esse chama-se Justiça – realidade que não existe, que não tem rosto, que não é propriedade de partido, religião ou governo algum, que é pura ilusão, mas que incansavelmente desejamos e esperamos quando o emprego se perde, a mulher dos nossos sonhos nos morre nos braços, as crianças são vitimas da guerra e engolidas pelo mar, os inocentes morrem em

Empreendedorismo e Economia Social Truques de um Neoliberalismo fracassado

e moribundo1

DEBATES

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01. DEBATES

selas de prisão, os animais se violentam e torpedeiam e as plantas com tantos ecossistemas se tornam cinza em dias e noites quentes de verão.

Com maior ou menor consciência, é por esta imanente e objectiva ilusão que vivemos, e por ela ansiamos por entre as mais terríveis barbáries e catástrofes. E é com base numa contínua e actualizada reflexão sobre as exigências inerentes à nossa condição, que abordo criticamente actuais formas de governo individual e colectivo.

DESIGUALDADE E O ENFRAQUECIMENTO DAS DEMOCRACIAS: REDISTRIBUIÇÃO VOLUNTÁRIA E IMPOSTOS

Nasci no seculo XX, no Ocidente, e nunca conheci senão o liberalismo, esta realidade que tem na produção da liberdade a sua condição, como o sublinhava Michel Foucault - uma liberdade-que no liberalismo, como o aponta Maurizio Lazzarato (um foucaultiano também ele), é sempre liberdade de propriedade e dos proprietários.

A nossa realidade não é certamente a do domínio, exploração e protecção, típicos de socieda-des com população predominantemente escrava e feudal, muito menos a de um tempo pré-estatal, em que clãs e tribos partilhavam entre si dádivas, presentes, e as dívidas eram fini-tas e canceláveis. No entanto, uma certa forma de solidariedade comunal existe hoje na ideia de Nação, como o domínio directamente exercido sobre populações está hoje presente na realidade do Estado, sendo o Capital o que hoje traduz uma troca económica feita não apenas de produtos, mas de trabalho, serviços, investimentos. A nossa realidade é feita hoje de Nação, Estado e Capital e são estes os ingredientes que se apresentam necessários à reprodução de um sistema dito capitalista, como o refere Slavoj Žižek, ao invocar, em Kojin Karatani, o desen-volvimento progressivo das trocas entre humanos ao longo do tempo.

Os centros de um capitalismo global são hoje múltiplos, com diferenças específicas, mas todos eles defendem o capitalismo. O americano insiste sobre o neoliberalismo capitalista, o europeu sobre o que resta do estado social capitalista, o chinês sobre o autoritarismo capitalista dos valores orientais e o sul-americano sobre o capitalismo populista. O que coloca cada um destes e outros sistemas em profunda crise e questionamento é a lógica que lhes é imanente, produtora de uma sempre crescente desigualdade e de um real enfraquecimento das democracias. Um sistema que prometia justiça, bem-estar, trabalho, igualdade, liberdade, revelou-se e continua a ser um total fracasso, um real e doloroso drama na vida de milhões de pessoas.

Ao tentar recuperar uma ancestral troca de dádivas entre pessoas, Peter Sloterdijk propõe que as desigualdades se corrijam através de uma redistribuição da riqueza pelos mais pobres. Em vez da transformação do modo de produção capitalista, Sloterdijk limita a intervenção sobre o sistema a uma correcção operada através de uma distribuição da riqueza feita voluntariamente pelos mais ricos. Por seu lado, Thomas Piketty, defende uma maciça regulamentação estatal feita através de uma pesada cobrança de impostos. Sem que se posicionem contra a

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maquinaria capitalista, ambos têm clara noção de que para surtirem algum efeito, estas me-didas teriam de ser aplicadas globalmente. O problema porém, concordando com Žižek, é que a visão kantiana de uma ampla e Mundial Federação de Estados, como nova ordem mundial, se revela impossível. É verdade que as questões ambientais, a crise dos migrantes- refugia-dos, o terrorismo, as off-shores, a protecção social, a propriedade intelectual, as tecnologias e comunicações, entre outros temas, exigem, clamam por uma intervenção global. Mas como defende Žižek, neste emergente mundo de múltiplos centros, a humanidade procura ainda as regras que deveriam regular as relações entre si. Face à sua ausência, o que acontece é que antigos e novos superpoderes se provocam, medindo forças, tentando cada um, na defesa e gestão de interesses próprios, impor sobre os outros a sua versão de hipotéticas regras globais. Por outro lado, o que Žižek chama de principal contradição da Nova Ordem Mundial é a estrutural impossibilidade de se encontrar uma ordem politica global que corresponda ao capitalismo económico global. Uma democracia à escala mundial ou um governo mundial podem de facto não existir de todo, como ele o diz, por razões estruturais. Por conseguinte, na política parece que os oprimidos da economia hão-de estar sempre de volta.

EMPREENDEDORISMO E ECONOMIA SOCIAL: COMO O CAPITALISMO LIDA COM CRISE DE SI MESMO

Mas como está a economia neoliberal a contornar ou a resolver a crise que a interroga?

A Crise do Subprime não só agudizou um insustentável estado de coisas, como as soluções encontradas não têm sido outra coisa que remendo em pano velho. A economia neoliberal é hoje a economia da dívida infinita, impagável e é com ela que uma verdadeira reconfiguração do individuo trabalhador e da forma de como este deve ser governado se definem e implemen-tam. Da passividade e fechamento dos regimes disciplinares actuados pelas escolas, fábricas, prisões, clinicas… e do tratamento biopolítico das populações de que tanto falou Foucault, pas-samos a um individuo constituído capital humano, empreendedor de si. A dualidade capita-lista e trabalhador assalariado dos séculos XVIII-XIX, iguais ao abrigo da lei, deixa de existir para existir apenas o capitalista, empreendedor de si, patrão e proprietário. O grande e último triunfo do capitalismo dá-se de facto quando este consegue tornar cada trabalhador assala-riado num capitalista. “Todos proprietários” foi slogan, há uns anos, da campanha de Sarkozy na França, como a construção de “sociedades de proprietários” também foi horizonte na de George W. Bush, nos Estados Unidos da América. No actual cenário da economia mundial, o da dívida soberana, social e particular, acesso a direitos e deveres fundamentais não se fazem no âmbito de um contrato social celebrado sobre a confiança entre sujeitos livres e de direitos, mas sobre uma relação credor-devedor, dentro da qual estes direitos e deveres básicos surgem privatizados e como dívida de cada um. Outro aspecto importante é que ao colocar sobre os ombros do empreendedor de si os riscos e custos de uma Nação, de um Estado e do Capital, a economia da dívida é também moralizadora, ou seja, geradora de uma nova subjetivação do ser humano.

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01. DEBATES

O empreendedor, antes de ser candidato a alguma coisa, é o individuo que o neoliberalismo tornou capaz de prometer e de cumprir o que promete, o individuo que se culpabiliza pelo in-cumprimento no pagamento da dívida, e pelo seu insucesso. Este é o capital humano a quem se fala de autonomia e liberdade, mas que nunca se tem por norma, nem se pode avaliar a partir de si mesmo, mas sempre a partir das entidades que lhe concedem o crédito e das con-dições que o viabilizam.1 Esta é a pessoa processualmente escrutinada, avaliada, a que preci-sa de coaching, de regulares actualizações e validações de antigas e novas competências. O empreendedor de si não tem apenas o seu presente hipotecado, como a dívida lhe confisca o tempo e as possibilidades de um futuro diferente. Mais, o desespero, o drama, as perdas de saúde física e mental, no cumprimento do pagamento da dívida, tornam-se frequentemente-puro divertimento para o credor observador-escrutinador.

Hoje são todos chamados, convocados, obrigados a serem empreendedores. Ficar de fora significa deixar de existir, ou existir num estado de pura natureza. Também as organizações, sobretudo as que dependem de dinheiros públicos, são hoje obrigadas a serem organizações empreendedoras.2 Com as organizações, também os utentes dos serviços sociais do Estado se veem obrigados a serem gestores de si mesmos, dos subsídios, das míseras pensões, dos apoios que recebem. O RSI não tem de ser só conquistado, merecido através do cumprimen-to de um específico contrato, como também tem de ser bem gerido. Para todos estes são os cursos de formação profissional, muita da literacia financeira em voga, os workshops de culi-nária, conduzidos por conceituados chefes de cozinha, as dinâmicas que visam a aquisição e o melhoramento de competências. Nunca como hoje houve em cada esquina, em cada bairro, tantas agências de coaching, consultadoria, validação de conhecimentos e competências, es-pecialistas capazes de fazer render e multiplicar o capital adormecido ou pouco rentabilizado e valorizado em cada um. E ai de quem falhar em todo este processo.

Sem representar uma total ruptura com a economia da dívida, a Economia Social será sempre um seu remendo. Esta procura repor níveis de equidade, inclusão, justiça, gratuidade dentro dela, mas a verdade é que a relação credor-devedor permanece o campo, a estrutura de fun-do onde os players ou protagonistas são os mesmos: por um lado, o empreendedor precário, pobre ou não, desempregado de longa duração, jovem, migrante… com o seu projecto, candidato a fundos públicos ou particulares; por outro, o distribuidor de riqueza em forma de crédito, prémio, fundo social nacional ou europeu. A filantropia de quem tem muito dinheiro,

1 De facto, como explica Lazzarato, o capitalismo nunca foi liberal mas sempre “capitalismo de Estado”. O liberalismo é apenas uma pos-sível forma de subjetivação do “capitalismo de Estado”. Na crise, os neoliberais não procuram governar o menos possível, pelo contrário, procuram governar tudo até ao mais ínfimo detalhe. Não produzem liberdade, mas a sua limitação. Não propõem articular a relação entre Mercado Livre e Estado de Direito, mas suspendem a já enfraquecida democracia (cf. Maurizio Lazzarato (2013), Il governo dell’uomo indebitato, p. 8).

2- É óbvio que muitas delas nunca deveriam ter existido por variadíssimas razões - e seria certamente dictatorial, antidemocrático, que o Estado alguma vez tentasse travar ou impedir a sua criação. Mas fazer depender a acção social do Estado das organizações existentes, como acontece entre nós, sem um plano nacional e uma concreta estratégia de implementação do mesmo, não só coloca o Estado ao serviço das organizações, dos seus interesses, como o torna seu refém. As organizações que executam a acção social do Estado deveriam resultar de concursos públicos, não podendo ficar depois entregues à sua capacidade de empreender e inovar. Serviços pagos pelo Estado não podem ser entendidos como assistência, apoio, subsídio, mas como pagamento por um serviço que o Estado por si só não poderia disponibilizar. Por isso, cortes nos pagamentos ou a transferência dos custos e riscos do Estado Social para as organizações são uma clara privatização dos direitos e deveres dos cidadãos mais vulneráveis.

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o seu colonialismo, nas palavras de Peter Buffett (filho do Warren Buffett), emerge como a so-berana auto-negação da acumulação de riqueza, ao gastar riqueza acumulada em coisas sem preço e fora das prateleiras ou corredores do mercado. Falamos, a título de exemplo, do bem público, das artes, das ciências, da saúde, da educação… É aqui, nesta soberana distribuição de riqueza, que o capitalista se torna no seu oposto, numa passagem do eros para o tymos, ou seja, da lógica perversa da acumulação de riqueza para o reconhecimento, a notoriedade e a reputação pública. A oferta de 25% nos mais variados produtos de hipermercado, as promoções, o 2 em 1, que fazem rodopiar de felicidade os olhos de milhares e milhares de pessoas, são, em paralelo com campanhas de recolha de alimentos e bens, que sempre apelidei de “solidariedade burguesa e da esmola”, expressão desta auto-negação do capitalista dos nossos dias. Esta é frequentemente a caridade de quem se diverte e distrai com a prática de boas obras, sendo-lhes, no entanto, totalmente indiferente, como o denuncia Žižek, usando a expressão latina: “velle bonum alicui”. À imagem do que já hoje acontece, quando tantos se perguntam pela justiça do comércio justo, temo que bem rapidamente nos encontremos aqui, um dia, para nos perguntarmos sobre o paradeiro do social que hoje serve de adjectivo à economia dita social. E esta, na sua base, será sempre uma pergunta sobre a natureza da justiça desta mesma economia.

REVOLUÇÃO INTERIOR E O EXERCÍCIO DA JUSTIÇA

Neste sentido, o meu mais recente percurso, apelidado de IMPOSSIBLE – Passionate Happe-nings, entende romper com a relação credor-devedor e recuperar espaços de autono-mia e liberdade, para que o que pela dívida infinita nos é vedado, limitado, proibido… se torne possível e trespassável. A Justiça que possa vir a suceder ao mundo do pensamento, num possível quarto mundo (e invoco aqui novamente o brilhante materialismo especulativo de Quentin Meillassoux3).

não pode viver apenas do desejo de si. Ela tem de ser já hoje, no dia- a-dia de indivíduos, orga-nizações e povos uma incansável forma de ser. E é precisamente neste exercício da Justiça que o Movimento Pobreza Ilegal, como revolução interior, postula e defende uma economia e ética da dádiva, que acredita estar mais em consonância com as exigências imanentes à realização da condição de todas as coisas.

A acumulação de coisas, de riqueza, parece estar em total contradição com a nossa con-tingência e a factualidade que a coagula como entende, sem qualquer necessidade. A nossa sustentabilidade revela-se de facto possível na partilha do que existe e vamos transformando, num movimento que vai de cada um, mediante as suas capacidades, na direcção do outro, mediante as suas necessidades.

3 Quentin Meillassoux defende que ao terceiro Mundo, o Mundo do pensamento, possa suceder o Mundo da Justiça, o quarto Mundo. O primeiro e o segundo mundo são o Mundo da matéria e o da vida (“L’inexistence divine” in Graham Harman (2011), Quentin Meillassoux – Philosophy in the Making, Edinburgh: Edinburgh University Press).

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01. DEBATES

BIBLIOGRAFIA

HARMAN, Graham (2011), Quentin Meillassoux – Philosophy in the Making, Edinburgh: Edinburgh University Press

MEILLASSOUX, Quentin (2013), After Finitude, Great Britain: Bloosmsbury

LAZZARATO, Maurizio (2012), La fabrica dell’uomo indebitato – Saggio sulla condizione neoliberis-ta, Roma: DeriveApprodi

(2013), Il governo dell’uomo indebitato – Saggio sulla condizione neoliberista, Roma: DeriveApprodi

ŽIŽEK, Slavoj (2014), Trouble in Paradise – From the end of history to the end of capitalism, England: Allen Lane

SLOTERDIJK, Peter (2006), Zorn und Zeit, Frankfurt: Suhrkamp

(2012), Repenser l’impôt, Paris: Libella

KARATANI, Kojin (2014), The Structure of the World History, Durham: Duke University Press

BUFFETT, Peter (2013), ‘TheCharitable-Industrial Complex’, New York Times

NIETZSCHE, Friedrich (2011), Genealogia della morale, trad. It. Di F. Masini, Adelphi, Milano

FOUCAULT, Michel (2007), Nascita della biopolitica: corso al Collège de France (1978-1979), trad. It. M. Bertani e V. Zini, Milano: Feltrilini

(2011), Leçons sur la volonté de savoir, Paris: Gallimard

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix (2002), L’anti-Edipo. Capitalismo e Schisofrenia, trd. It. Di A. Fonta-na, Torino: Einaudi

PIKETTY, Thomas (2014), Capital in the Tewnty-First Century, New York: Bellknap Press

* Henrique Pinto (PhD - Universidade de Londres): sócio-fundador da revista de rua e Associação CAIS, líder-fundador da Universos (2002) e da IMPOSSIBLE - Passio-nate Happenings (2015); líder do Movimento Pobreza Ilegal; docente da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias; autor e editor de várias obras e artigos e ocasional comentador de TV e rádio.

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A Sra. Vestager manda!

RICARDO CABRAL

Desde há anos que não se vê da Direcção Geral da Concorrência (DGComp) acção, ou decisão, relativas a grandes interesses de Portugal, que não resulte: em perdas financeiras para contribuintes portugueses; muitas vezes para accionistas privados portugueses; destruição de emprego; e destruição da actividade económica no país.

Se a ideia subjacente a uma autoridade da concorrência europeia única, era assegurar uma melhoria da “governança” nos países membros e a aplicação de regras iguais para todos os países membros, o que se constata do funcionamento da DGComp em relação a Portugal é tudo menos isso. Os “grandes negócios” continuam com insuficiente escrutínio, só que de forma muito pior para o interesse público e nacional, porque na acção governativa, a principal restrição é a posição negocial intransigente e arbitrária da DGComp (e, também, do BCE) que leva a optar por soluções irracionais, como, literalmente, “dar” património dos portugueses a privados não residentes ou liquidar empresas e atividade económica viável. E, para a DGComp, “cada caso é um caso”, em que as regras são aplicadas de forma discricionária.

As afirmações da Comissária Vestager de que, se o Governo quer algo tem de estar preparado para dar algo em troca, são sintoma de uma organização em que a única variável relevante parece ser a negociação e o quid pro quo.

A privatização do Novo Banco, que o Governo se prepara para fazer até ao fim de Março, já era inaceitável, mesmo antes das novas exigências da DGComp. De facto:

– Choca que seja possível ao Governo vender, por zero euros, 75% de um banco com valor contabilístico de 5,6 mil milhões de euros, dando, ao que consta, mais 2,5 mil milhões de euros de garantias públicas (indirectamente?), as quais, provavelmente, utilizando as regras do BCE,

A VENDA DO NOVO BANCO

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02. A VENDA DO NOVO BANCO

o novo proprietário do Novo Banco poderá converter imediatamente em dinheiro;

– Choca ainda que a privatização do Novo Banco ocorra sem o visto prévio do Tribunal de Contas português e sem que a Assembleia da República se pronuncie.

Deixando de lado o desapontamento que resulta desta provável decisão sobre o Novo Banco, é importante reflectir no que se pode aprender deste caso, em particular, no que respeita às negociações com a DGComp e outras autoridades europeias.

A primeira observação é que a DGComp parece agir de forma similar ao FMI. Faz exigências, mas essas exigências aparecem posteriormente em compromissos assumidos pelo Governo português, como de iniciativa sua se tratasse. No concreto, recorde-se o compromisso do Ministro das Finanças de 18 de Julho de 2016 de liquidar o Novo Banco caso não fosse possível a venda. Segundo o Público, essa promessa já vinha do governo anterior. Sendo assim, é provável que este governo tenha “sentido” (ou tenha sido pressionado) que teria de manter a promessa. Alguém acredita que o Governo prometeu por sua iniciativa liquidar o Novo Banco caso não conseguisse vender o banco? Essa exigência não fará parte de uma jogada de ”poker” em que a DGComp concede em adiar o prazo de venda do Novo Banco por mais um ano, mas em troca o Governo tem de se comprometer a incluir esse compromisso de liquidação do banco, de forma a enfraquecer ainda mais a posição negocial do Governo português na futura iteração negocial?

A segunda observação é que o Governo português pode mudar de ideias: Governo e Comissão Europeia têm mudado de ideias, numerosas vezes no passado, em relação aos mais variados temas. Os compromissos devem ser alterados quando se constata que prejudicam o interesse nacional, ou tão simplesmente porque muda o Governo em resultado de processo eleitoral, como de facto ocorreu. O Governo português (o anterior e o actual) parece que desconhecia que a directiva europeia sobre resolução permitia a nacionalização e a recapitalização de bancos privados, desde que fossem impostas perdas de 8% dos activos a accionistas e credores. Só assim se explica o que ocorreu com o Banif, com a CGD, e com o que se prepara para ocorrer com o Novo Banco.

Terceiro, é necessário assegurar que a dinâmica de negociação com as instituições europeias seja alterada no futuro. Não parecem aceitáveis negociações de assuntos públicos em que cada ponto dos compromissos do Governo é previamente acordado, informalmente, com a Comissão Europeia, para assegurar que o compromisso assumido pelo Governo é posteriormente aceite. É, em meu entender, necessário que a Comissão Europeia formule as suas condições por escrito e as fundamente ex-ante e, do mesmo modo, que sejam formais as propostas do Governo à Comissão Europeia, mesmo sob o risco de rejeição. Dá mais trabalho e exige mais tempo, mas reforça a posição negocial do Governo.

Por último, o Governo deveria, entre outras medidas, solicitar uma investigação aprofundada à actuação da DGComp em relação a este tipo de processos. Enfim, parece que o mais difícil mesmo é, primeiro, reconhecer os erros e, segundo, aprender com eles.

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Agora, não “dormir sobre os louros”!

RICARDO CABRAL

Esta semana soube-se que o desempenho orçamental do país foi extraordinário. O défice pú-blico mais baixo desde há 46 anos (2,06% do PIB), não obstante uma factura com juros que é das mais elevadas da zona euro. Tal performance é excelente, mas é, em parte, perigosa. Porque poderá levar a acreditar que é possível cumprir o Tratado Orçamental, quando não o é.

Isto fundamentalmente porque o desempenho orçamental depende em grande medida do de-sempenho externo.

Ora, em 2016, pelo quinto ano consecutivo, a balança comercial do país será superavitária. Algo que não ocorria há muitas décadas, num país cronicamente deficitário nas suas trocas com o exterior ao longo de séculos. Estaremos perante um novo Portugal “alemão”?

Tivemos muita sorte (ou algum azar, dependendo da perspectiva) e beneficiámos de algum auxílio até à data:

Primeiro, do BCE que reduziu a taxa de juro de referência para valores negativos e iniciou um importante programa de compra de dívida pública. Estas medidas do BCE tiveram um impacto positivo significativo na economia portuguesa.

Acresce que as políticas do BCE resultaram numa desvalorização do euro face a outras moe-das, o que beneficiou, via exportações líquidas, a economia portuguesa.

Por outro lado, o país continua a ganhar com a queda do preço do petróleo.

Por último, toda a instabilidade que se vive em países do Médio Oriente e Norte de África, paí-ses concorrentes do sector do turismo nacional, teve um impacto positivo no sector de turismo de Portugal. O saldo da balança de turismo cresceu cerca de 2,3 pontos percentuais do PIB, entre 2008 e 2016.

Em consequência, a economia portuguesa beneficia de uma envolvente externa muito favorá-vel.

OS RESULTADOS ORÇAMENTAIS

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03. OS RESULTADOS ORÇAMENTAIS

O desempenho da balança comercial é, aliás, um dos indicadores – em conjunto com a taxa de desemprego jovem e a evolução do valor dos salários – que evidenciam a pressão austeritária a que tem estado sujeita a economia portuguesa.  Entre 1776 e 2011 – 236 anos – Portugal regis-tou 7 anos de excedentes na balança de bens, os últimos dos quais em 1941-43 (não disponho nem existem, creio, séries históricas relativas à balança comercial antes de 1953). Entre 2012 e 2016, como referido, regista 5 anos consecutivos de excedentes na balança comercial.

Por conseguinte, os portugueses presentemente vivem um momento único na História do país, um momento em que Portugal parece um “Portugal alemão”, com excedentes recorrentes na frente externa.

Mas, como revela a Figura abaixo, esse excedente da balança comercial é “comido” pelos juros e dividendos pagos ao exterior anualmente, que resulta numa balança de rendimento primário deficitária.

F. EUROSTAT

 

Assim, o bom desempenho das contas externas – que se deve também (ou, mesmo, sobretu-do) ao esforço de contenção imposto à economia pela “brutal” travagem da procura interna (consumo e investimento) nas últimas duas décadas – não é utilizado para promover o desen-volvimento do país e as condições de vida dos portugueses.

As operações recentes e em curso, como por exemplo, a emissão de dívida subordinada do BPI e da CGD, ou a venda do Novo Banco à Lone Star, contribuirão para agravar o endividamento líquido do país – particularmente, no caso do Novo Banco) – e, o défice da balança do rendi-mento primário.

Na actual situação, o excedente em duas outras pequenas balanças da balança corrente e de

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capital (balança de rendimento secundário e balança de capital), permite-nos reduzir muito lentamente o nível da dívida externa. Mas se a taxa de juro ou a taxa de crescimento econó-mico do país subir, o excedente externo deixará de ser suficiente para manter o equilíbrio na frente externa e, provavelmente, o país voltaria a ver o seu endividamento ao exterior a crescer.

Se (quando) isso ocorrer, o défice público teria tendência a aumentar em termos absolutos porque as necessidades de financiamento do país são a soma contabilística das necessidades de financiamento do sector público e privado.

É, portanto, necessário aproveitar a actual envolvente externa favorável para adoptar medidas de médio e de longo prazo, que permitam, de uma vez por todas, deixar para trás a estagnação das últimas duas décadas…

PUBLICADO ORIGINALMENTE EM:

http://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2017/03/26/agora-nao-dormir-sobre-os-louros/

Ultimato só o futurista

PAULO COIMBRA

Há um par de dias o Jornal de Negócios noticiava que “BCE quer ultimato a Portugal: mais reformas ou sanções”.já os gigantescos superávites da balança corrente alemã, apesar de não respeitarem as regras, não são considerados desequilíbrios excessivos, nem pela Comissão, nem pelo BCE. É assim a Europa realmente existente.

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03. OS RESULTADOS ORÇAMENTAIS

Regras que, atente-se, só podem ter sido desenhadas por uma imposta preferência alemã: se os superávites da balança corrente de uns constituem, por definição, os défices dos outros, qual é a razão económica para proibir défices superiores a 4% e permitir superávites até 6%? E, não, os superávites externos alemães não resultam de acréscimos na produtividade do tra-balho não registados noutros países.

A acumulação de superávites externos resulta, antes de tudo o mais, de um euro distópico – a razão maior de todos os desequilíbrios macroeconómicos na Europa da moeda única.

(ACTUALIZAÇÃO DE 24 MARÇO 2017: DADOS ATÉ 2016 DISPONÍVEIS AQUI)

Uma distopia que permite que o trabalho seja encarado como mera mercadoria e usado em políticas de desvalorização interna competitiva, leia-se repressão salarial, instrumento de ma-nipulação das taxas de câmbio efetivas reais, que cavam um fosso entre países credores e devedores.

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Como o BCE vem agora recordar, numa zona euro com estas características, a corrida para o fundo dos salários e da provisão pública nunca é suficiente. É que toda a poupança nacio-nal será sempre escassa para alimentar a grande contradição neomercantil do capital alemão: manter elevados superávites externos e recusar-se a financiar os défices simétricos que aque-les provocam.

Assim, a escolha, não sendo fácil, parece cada vez mais óbvia. Ou os países deficitários da zona euro, Portugal incluído, correm os riscos necessários para se livrarem desta armadilha, ou se resignam ao estatuto de colónias obedientes onde o trabalho tem o preço da uva mijona e os serviços públicos são limitados ao mínimo assistencialista. Como vai ser?

PUBLICADO ORIGINALMENTE EM:

http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2017/03/ultimato-so-o-futurista.html

Aquelas horas em que a Troika esteve em parte nenhuma

FRANCISCO LOUÇÃ

Parece que o correspondente do Financial Times foi o jornalista que descobriu que tinha havido um buraco na agenda da delegação da troika em Lisboa, quando vieram negociar o resgate, pela Páscoa de 2011: os homens tinham desaparecido por um par de horas. O tempo do dis-creto pequeno-almoço, soube-se depois, foi passado no palácio da Nova Business School com

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03. OS RESULTADOS ORÇAMENTAIS

alguns economistas lusos e foi um encontro feliz: “Eles (os da troika) estavam desejosos por ouvir as nossas ideias”, contou em Setembro desse ano o director da faculdade, José Ferreira Machado. “Num país pequeno como o nosso, as principais faculdades de economia são em certo sentido co-líderes da nação de um modo que não seria possível nos países maiores”, acrescentou ufano. “Somos o ponto de encontro das elites de hoje e de amanhã e a nossa obrigação é indicar aos futuros líderes do país as direcções possíveis”, explicou ainda. O resul-tado é sabido, o Memorando de Entendimento de 2011, que tem “a marca intelectual da nossa escola”, esclareceu Ferreira Machado ao Financial Times.

O director escreveu então, no prefácio a um livro com os seus “co-líderes”, que, “se levadas a cabo com entusiasmo e rigor, estas reformas mudarão Portugal para melhor” e que “a crise forçou a cooperação e silenciou as reservas sobre este modelo económico”. Do sucesso destas “reformas”, levadas a cabo com “entusiasmo e rigor”, já se sabe, e não é com essa questão que venho incomodar os leitores. O que quero sublinhar é a lógica explícita e a lógica implícita desta “marca intelectual”.

A explícita é o que Passos chamou o empobrecimento. Olivier Blanchard, economista chefe do FMI à época, tinha explicado que, para Portugal, “a redução dos salários nominais parece exóti-ca, mas é o mesmo na essência que uma desvalorização bem sucedida”, ou uma “desinflacção competitiva”. Para isso, explicava ele, é necessário um “período sustentado de grande desem-prego”, com um “ajustamento que é provável que seja longo e doloroso”, com “tantos anos de elevado desemprego quantos necessários para convencer os trabalhadores da necessidade do ajustamento”. Há poucos dias, um grupo de economistas do Banco de Portugal, suponho que incluindo um dos co-líderes que matabichou com a Troika nos idos de 2011, teorizou no mesmo sentido que os contratos colectivos devem ser limitados, dado que os salários baixos são a boa condição económica. Quando ouvir falar de “reformas estruturais” já sabe que é disto que se está a tratar, é Padaria Portuguesa.

É claro que tanta agressividade ideológica haveria de ser chamada à pedra. Mesmo dentro do FMI, alguns economistas revelaram o incómodo com a pós-verdade dos co-líderes da austeri-dade. Dois deles argumentaram que foi a desigualdade que conduziu à crise e que, portanto, agravar a desigualdade é amargo remédio.

Outros provocaram uma tempestade no FMI ao desmentirem as soluções da “marca intelec-tual”, suscitando um ralhete do seu chefe. O economista-chefe do Banco de Inglaterra, no mes-mo sentido, derreteu a estratégia da austeridade. Ficam os factos a tirar as teimas: a estagna-ção e portanto a divergência entre economias, a crise permanente das dívidas e o risco de nova recessão dizem tudo.

Mas há também uma lógica implícita nesta “marca intelectual”, que é o cimento do orgulho tribal dos “co-líderes da nação”. Paul Romer, distinto académico e agora economista-chefe do Banco Mundial, escreveu uma diatribe contra essa “marca”, criticando os erros matemáticos na identificação dos modelos, o arbítrio na definição de causalidade, a convocação de variáveis imaginárias para explicar os acontecimentos, a regressão intelectual desta pós-realidade e o

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ambiente académico de devoção acrítica pelos co-líderes. Foi uma tempestade.

Mas a questão é esta: como é que pessoas inteligentes aceitaram trabalhar com hipóteses tão mirabolantes e blindar os seus modelos em relação à realidade? Uma resposta é a religiosa: converteram-se a uma noção transcendente que afirma que os mercados têm sempre razão porque a razão do comportamento humano é o egoísmo ambicioso. Ora, esta visão totalitária das motivações humanas conduz a uma fantasia perigosa, que promove uma ciência sem re-gras, como dois colegas meus lembraram há pouco, dando o exemplo de revistas científicas que passaram a publicar modelos matemáticos sobre a tortura. Um deles é um “modelo dinâ-mico de tortura em que a credibilidade das ameaças e promessas é endógena” e outro discute a “política de optimização da tortura”, à luz desta mundividência em que o mercado de coisas, de emoções e de poderes é sempre o dono de tudo. Passou-se o limiar da vergonha.

Mas isso já era assim lá atrás, quando o palácio dos economistas se entusiasmou com o de-semprego de massas por um longo período e com o corte das pensões da segurança social, não é verdade?

PUBLICADO ORIGINALMENTE EM:

http://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2017/02/07/aquelas-horas-em-que-a-troika-esteve-em-parte-nenhuma/

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04. 60 ANOS DA UE

Pouco para celebrar

VIRIATO SOROMENHO MARQUES

A recente vitória eleitoral do partido do primeiro-ministro holandês foi celebrada com entusiasmo indevido. A extrema-direita de Geert Wilders aumentou o número de deputados e, sobretudo, impôs a sua agenda de medo e xenofobia, arrastando Haia, e o resto da U.E. para um insensato conflito diplomático com a Turquia, que Erdogan usou em prol do incremento do seu poder cada vez mais excessivo. Em França, sondagens recentes revelam algo de muito inquietante: na faixa etária dos mais jovens eleitores, entre os 18 e os 24 anos, a Frente Nacional de Marine le Pen lidera com uns impressionantes 39% as preferências para o próximo voto presidencial de Abril e Maio. Por outro lado, o Brexit, como numa tragédia clássica, encaminha-se para um ponto de não-retorno, apesar de todos os avisos para o facto de que a ruptura britânica com a U.E: será um jogo de soma negativa em que todos as partes e interesses em presença perderão. Ao sair, Londres entra numa relação de “Schadenfreude” (alegria com a desgraça alheia) com o resto dos seus futuros ex-parceiros europeus. Colocando as coisas com clareza brutal: Theresa May só poderá justificar as dificuldades e perdas que os britânicos irão sofrer nos próximos meses e anos se a União Europeia se dissolver num caos de discórdia e fragmentação. E não seria absurdo que, dentro de 5 meses ou de 5 anos, isso possa vir a ocorrer. Mas, é ainda mais provável, que antes da desintegração europeia, um novo referendo escocês venha colocar um ponto final na existência de uma muito mais antiga união, o próprio Reino Unido.

Perante este cenário de erosão e fadiga crescentes, o Livro Branco da Comissão Europeia sobre o Futuro da U.E. causa-nos tanto entusiasmo na alma como os acordes do Requiem de Mozart…A CE reconhece o labirinto em que a integração europeia se perdeu e confessa a sua impotência para fazer mais do que traçar a cartografia do pântano onde nos vamos arrastando, enquanto as ameaças internas e externas se aprofundam, e o anel de caos nas nossas fronteiras mediterrânicas se consolida e alarga. Sessenta anos depois da assinatura do Tratado que instituiu a Comunidade Económica Europeia, o ambiente reinante não poderia ser mais contrário ao de uma efectiva celebração. Como foi possível tanto esforço e esperança num futuro comum terem desaguado nesta explosão de egoísmos e neste estranho governo de comité de emergência permanente, em que se transformou o Conselho Europeu? Como explicar que 8 anos de crise europeia (contados a partir de Setembro de 2008) não tivessem

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sido capazes de gerar uma resposta e uma liderança europeias? Como compreender que depois de uma árdua pedagogia pelos factos, como é o caso do deserto semeado pelas receitas do tratado orçamental, muitos líderes dos Estados-membros se limitem a resmungar protestos contra os diagnósticos e as terapias que apenas agravaram as patologias económico-financeiras que pretendiam combater?

Um dos problemas europeus, sem remédio aparente, é o défice de competência política e o excesso de cabotinismo que reina no fervilhar das chancelarias. A força de coesão que ainda vai segurando as partes estilhaçadas da U.E., em particular os países que partilham o euro, é a repulsa instintiva que os cidadãos sentem, com toda a razão, perante os custos inaceitáveis de um eventual colapso europeu. Às vezes imagino o desfilar espectral dos exércitos de dezenas de milhões de jovens ceifados entre 1914 e 1945 e estremeço com a possibilidade de o seu sacrifício, afinal, ter sido completamente inútil.

Lembra-me um sonho lindo

PEDRO ADÃO E SILVA

E se a União Europeia tiver resultado de uma convergência de interesses conjuntural e irrepetí-vel? 60 anos passados do Tratado de Roma, com uma Europa presa ao ressentimento, marca-da pela paralisia política e por bloqueios institucionais, há sinais de que assim é.

A inclinação para o álcool e as mulheres que Dijsselbloem identificou nos povos do sul está longe de ser o principal problema da declaração do presidente do Eurogrupo. A propensão ao vício, que nos caracterizaria a nós, pecadores, por contraponto aos virtuosos do norte, movidos a uma moral irrepreensível, é apenas um sintoma de um problema profundo, que não se resolve com nenhum dos cinco cenários em torno dos quais a Comissão Europeia quer reformar a Europa.

Há 60 anos, uma combinação única de idealismo político, aprendizagem com falhanços coleti-vos e necessidades funcionais de natureza económica permitiu a uma parte dos europeus gozar de um período ímpar de paz, liberdades e bem-estar económico. Mas a integração europeia en-cerrou também um paradoxo: os fundadores aceitaram alienar soberania para reconstruir o Esta-do-nação. A Europa foi fundamental para resgatar Estados que haviam colapsado com a guerra.

De certa forma, vivemos uma crise de sucesso do projeto europeu. Com a paz, a pressão para que a soberania regresse ao Estado-nação é crescente e, para onde quer que olhemos, há duas tendências que ganham terreno eleitoral: a nostalgia face a um passado mitificado, assente em sociedades homogéneas, e uma vontade de reganhar controlo sobre os destinos nacionais. O que, por facilidade, etiquetamos como populismo é, no essencial, uma reação à diversidade

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cultural (os mediterrânicos que gastam tudo em álcool e mulheres) e uma resistência à trans-ferência das decisões para entidades distantes que não controlamos (da burocracia tecnocrá-tica europeia ao sistema financeiro, passando por políticos que capturaram o interesse comum).

É esse o drama europeu. Com níveis de ressentimento difíceis de ultrapassar entre os do norte e os do sul, com declínio da competitividade das economias e com imbróglios institucionais complexos (à cabeça um euro que nasceu com uma arquitetura coxa), bem pode a Comissão cenarizar futuros que chocará sempre com o presente. As agendas políticas dos Estados-membros são conflituantes, a cultura de compromisso ao centro está a desfazer-se e não há como compatibilizar o princípio (que, convém recordar, é sacrossanto) do autogoverno com o que é necessário fazer para reformar a União.

Na apresentação do Livro Branco, Juncker afirmou que “a Europa não pode ficar refém de eleições”. A declaração revela os dilemas europeus: num momento em que a Comissão abdica de ter um papel promotor da mudança e no qual a natureza intergovernamental do projeto europeu é rea-firmada, a Europa fica refém de eleições nacionais. Mas deveria estar refém exatamente do quê?

PUBLICADO ORIGINALMENTE EM:

http://leitor.expresso.pt/#library/expresso/semanario2317/expresso/opiniao/lembra-me-um-sonho-lindo

O futuro da (des)União?

RICARDO CABRAL

No dia 25 de Março, comemora-se os 60 anos da assinatura do Tratado de Roma, mais preci-samente, do Tratado que estabelece a Comunidade Económica Europeia (CEE).

Para efeitos do 60º aniversário da União Europeia (UE) – que se “celebra” com uma reunião dos chefes de Estado e de Governo, em Roma, a 25 de Março – mas também, em parte, em resposta às várias crises que tem atravessado – nomeadamente, com o Brexit –, a comissão Juncker apresentou a 1 de Março um “livro branco” com cenários alternativos sobre os possí-veis futuros da União.

O que diz esse “livro branco”? E o que pensar das propostas/visões que dele constam? O livro branco começa por fazer um breve resumo dos resultados da UE.

Do lado dos benefícios, o primeiro e mais importante (alega-se) é que a UE foi fundamental para assegurar o mais longo período de paz na Europa (presume-se nos países que constituem a UE) desde o início do século XVIII, realçando-se que a UE é um espaço de liberdade e de paz quase sem paralelo no mundo. Sem dúvida, o mais importante “resultado” da União.

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No lado negativo, salienta as frágeis perspectivas de futuro, tanto em termos demográficos como em termos de declínio do nível de vida da actual geração, com taxas de desemprego jovem próximas de 19%.

Nota-se que apresenta a perspectiva da própria Comissão Europeia, que deixa transparecer que se sente como “saco de murros”, responsável pelos problemas e pelas consequências das más políticas económicas, muitas vezes da responsabilidade dos governos nacionais, mas que não recolhe os benefícios dos méritos das políticas adoptadas.

De seguida, o “livro branco” identifica as alternativas, traçando “cenários” prováveis para os próximos 8 anos – ou seja, não é um plano quinquenal, mas estará lá próximo – : a questão que o Conselho Europeu tem de “decidir já” é se a UE quer determinar o seu próprio destino, ou se pretende, pelo contrário, que os acontecimentos o determinem, mantendo-se como observa-dor passivo do seu próprio futuro.

Os cenários são 5: (i) mais do mesmo, com reformas e novas políticas em resposta a crises ou acontecimentos; (ii) redirecionar a UE somente para aprofundar o mercado único, i.e. a ideia da UE como um espaço de livre comércio internacional; (iii) a UE a várias velocidades, com coligações de países voluntários a avançar na construção de um proto-governo federal; (iv) escolher as áreas de actuação da UE, ou seja, fazendo menos, mas de forma “mais eficiente”; e (v) aprofundar a integração europeia com a construção de um proto-governo federal.

É difícil definir uma metodologia sobre como identificar e desenvolver propostas para o futuro da UE. Reconheça-se, que não é fácil  imprimir um novo élan a uma UE com 60 anos de idade e em declínio. Ninguém parece saber bem o que quer e há medo das consequências. O “livro branco” tem o mérito de identificar algumas (não todas, certamente) estratégias possíveis. É um documento franco e sério, um documento que procura pensar o futuro e fomentar o debate para além do presente imediato e que adopta uma metodologia algo diferente da nossa conhe-cida TINA, identificando estratégias alternativas.

Contudo, parece-me “too high-handed”, i.e., demasiado de alto nível, demasiado desligado dos detalhes. Para cada cenário seria necessário detalhar as medidas concretas, algo que não teria necessariamente de constar do livro branco mas que exige muito trabalho e debate democrático.

Acresce que não há uma análise do que correu mal, nem são identificadas as fragilidades da UE. Faltam, afigura-se, outros cenários alternativos, como, por exemplo: passos para trás no processo de construção europeia; um cenário em que o banco central da zona euro deixa de ser desenha-do à imagem do “Bundesbank” da Alemanha; o que ocorre no caso da saída de mais um país da zona euro, como por exemplo a França; ou mesmo até o cenário de desintegração da UE. Alguns desses cenários que enumero, foram certamente identificados pelos autores do livro branco mas, por razões políticas, não são, ou não podem ser sequer, mencionados no “livro branco”.

Não parece aceitável que, em documentos desta natureza, continuem a existir tabus e omis-sões como as acima referidas. Há que identificar e questionar sempre o “politicamente im-possível”, mesmo que depois se decida não seguir esse caminho. Não deve continuar a ser

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adoptada a ”estratégia do avestruz”, deixando lacunas enormes nas análises e discussões, es-tratégia essa que nos conduziu até à presente situação, em que alguns problemas são quase becos sem saída.

O dramatismo evidenciado em partes do “livro branco” tem o mérito de representar um regres-so ao passado e ao debate sobre o futuro da União. Mas o passado não volta atrás e é bom que se aprenda com os erros…

PUBLICADO ORIGINAMENTE EM:

http://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2017/03/12/o-futuro-da-desuniao/

Em Roma já não sobra nadaFRANCISCO LOUÇÃ

Djisselbloem parece ser tudo o que a União Europeia tinha para dar. Tem sido ele quem faz, pois é uma marreta de Schauble, que cuida do controlo político sobre o euro através dessa ins-tituição sem regras, o Eurogrupo. É ele, o dogma de uma política económica destruidora. É ele, a transumância política entre socialistas e a direita, nesse nevoeiro em que se tornou a “gover-nança” europeia. Ou, como escrevia Viriato Soromenho Marques, europeísta lúcido, esta gente é a figuração de “um dos problemas europeus, sem remédio aparente, o défice de competência política e o excesso de cabotinismo que reina no fervilhar das chancelarias”.

A esse cabotinismo respondeu António Costa com um ultimato em tempo certo: demita-se, ou o euro não tem futuro. Só que pode parecer ou exagerado ou ambíguo. Se Djisselbloem sair, e vai sair dentro de alguns meses para salvar as aparências, outro virá para um caminho que poderá ser semelhante. O que é que então quer dizer que o euro não tem futuro – é por ter um cabotino à frente do Eurogrupo (a obedecer à Alemanha) ou é por seguir uma política cabotina (que a Alemanha impõe)? No dia da triste festa de Roma, não creio que haja outra pergunta.

Será então que o ministro holandês se limitou a exagerar os seus preconceitos, em contraste com a frieza equilibrante dos burocratas europeus, nada dados a exageros? A experiência diz que não. Afinal, tivemos a Grécia (vendam as ilhas, dizia um ministro alemão). Afinal, temos Guenther Oettinger, o comissário europeu promovido para dirigir o Orçamento e que exigia que os países endividados ficassem com a bandeira a meia haste (além de outras aleivosias racistas). Afinal, temos Juncker, que afirma que a França deve ser isenta das obrigações dos Tratados por ser a França. Se portanto nos perguntamos se Dijsselbloem é simplesmente uma anedota que se pode descartar com o abanar da mão, a prudência pede que se olhe para a flo-resta e não só para a árvore: o homem foi simplesmente a voz do governo europeu.

Terá sido por isso mesmo que Sampaio já se tinha erguido, aqui no PÚBLICO, contra o caminho

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do desastre: uma “corrida para o abismo”, com o “ponto de não retorno” do Brexit, tudo agra-vado pela inviabilidade de 10-15 anos de austeridade impostos pelo Tratado Orçamental aos países periféricos, a que ainda acresce a “gestão desastrosa” da questão dos refugiados e “uma clara acumulação de dificuldades, problemas mal resolvidos e alguns estrondosos insucessos” e, em consequência, “o esboroamento a olhos vistos da confiança na União Europeia, nas suas instituições e nos seus líderes”. O “esboroamento”, nada menos.

Mais, acrescentava o ex-Presidente, isto não vai ser corrigido: “o pior é que, de facto, ninguém parece acreditar que Bruxelas (ou Berlim) tenha qualquer iniciativa nos próximos meses para responder à crise da eurozona, para alterar a ortodoxia financeira dos credores ou para criar as condições institucionais e orçamentais que tornem possíveis programas de reforma nas economias mais frágeis”. O teste está a ser feito na Cimeira que decorre este fim de semana em Roma: haverá palavras de circunstância sobre o atentado de Londres e sobre os 60 anos da fundação, enquanto os cinco cenários de Juncker serão misericordiosamente enterrados e não haverá nada sobre como deve a União superar a desunião e o desprezo pela vida dos de-sempregados, ou dos trabalhadores, ou dos jovens. Afinal, o dijsselbloismo tem triunfado sem oposição nas cimeiras europeias.

Claro que em Portugal, apesar da indignação espraiada até entre os partidos de direita contra “as mulheres e os copos”, ainda sobrou a brigada conservadora que veio defender Dijssel-bloem. Helena Garrido já tinha dito que o chefe dele, Schauble, tinha razão, aliás os chefes têm sempre razão e, se anuncia que vem um resgate, é porque sim e até é um favor que nos faz. Camilo Lourenço, um homem do CDS, alinhou imediatamente com Dijjselbloem, que andava tudo a exagerar e no fundo o homem tem razão.

José Manuel Fernandes reconhece, pesaroso, que a frase é “infeliz”, para logo também concluir que tem razão. Mais ainda, entusiasmado com a ideia, Fernandes ensaia no Observador a sua própria versão do dijsselbloemês, advertindo-nos paternalmente: “a próxima vez que um filho vosso (ou um irmão) que está em riscos de chumbar o ano vos vier pedir dinheiro para ir ‘com a malta’ para ‘a noite’ na véspera de um exame decisivo, passem-lhe logo o cartão do multibanco e o respectivo código, não vá ele acusar-vos de ‘moralismo’ e ‘preconceitos’, talvez mesmo de ‘xenofobia’, porventura de ‘racismo’ e ‘sexismo’. Como sabem, assim ele irá longe na vida”. Este catálogo de pecados é maravilhoso e serve para explicar porque é que Dijsselbloem, no fim das contas, é como o nosso pai quando cuida de nós e não cede à tentação de nos deixar ir para a “noite”. Os conservadores continuam a lastimar a falta do Diabo, que vinha e não veio, e ficam--se por agora pela certeza de que “copos e mulheres” ou os “copos” e a “noite” na “véspera de um exame decisivo” nos levam pelo caminho da condenação aos infernos.

Ainda não perceberam que de inferno sabemos todos muito, vivemos a caminho dele desde que Passos Coelho nos explicou que, com a troika, precisamos mesmo de empobrecer – sem “copos” e sem “mulheres”, diria o presidente do Eurogrupo.

PUBLICADO ORIGINALMENTE EM:

http://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2017/03/24/em-roma-ja-nao-sobra-nada/

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05. HÁ PETRÓLEO NA COSTA

Petróleo: um governo sem máscara

JOÃO CAMARGO

Quinze minutos a ouvir a ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, a falar na conferência da Eur-asian Energies Futures Initiatives do Conselho Atlântico em Washington em Setembro do ano passado são uma experiência esclarecedora. A ministra mentiu aos potenciais investidores americanos, colocou António Costa como um mentiroso descarado, menosprezou autarcas e movimentos populares do país inteiro, provou ao país que de facto já estava decidido em 2016 que haveria um furo em Aljezur em 2017, independentemente de quaisquer consultas públicas, e também mentiu a si mesma.

Pode ver aqui, se tiver paciência, a partir dos 46 minutos e 53 segs. A transcrição é a seguinte: “É sempre difícil lidar com as organizações populares e as autarquias, a nossa organização política tem um nível nacional e as autarquias. As autarquias não gostam deste tipo de investimento [pro-dução de petróleo e gás], pois acham que a alternativa é o turismo. Eles pensam que este tipo de exploração e produção pode entrar em conflito com as outras atividades económicas, que em Portugal é especialmente o turismo. Por isso estamos a tentar trabalhar na literacia oceânica, até nestas áreas, para explicar os impactos reais deste tipo de actividades, por um lado. Pelo outro lado, melhorámos o nosso enquadramento legal para ser mais exigente, porque temos legislação europeia, mas temos legislação mais exigente em Portugal. Por isso, queremos fazer este tipo de actividades, mas queremos fazê-las em segurança.” Neste primeiro trecho, a ministra do Mar menospreza autarquias e movimento, iletrados em matéria de “oceanidade” e nos impactos reais da ex-ploração petrolífera, e mente aos potenciais investidores, dizendo que Portugal tem legislação mais exigente do que a União Europeia, quando se prepara um furo de petróleo a 2 km de pro-fundidade em qualquer altura do ano e a 50 km da costa de Aljezur, que não teve sequer uma avaliação de impacto ambiental.

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Petróleo: com as mentiras vamos aprendendo

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O discurso segue: “E queremos que as populações saibam que o vamos fazer em segurança. Acho que é muito importante estar do lado certo do mundo, no que diz respeito à protecção e conservação dos recursos e dos oceanos. Não temos crescimento e actividade económica independentemente do preço. Queremos ter crescimento e investimento, e actividade económica, mas em caso de dúvida preferimos o planeta e o oceano.”. Aqui, começamos a mistificação de que há alguma espécie de esclarecimento por parte do governo em relação à exploração de combustíveis fósseis: as duas ou três mal-amanhadas sessões dinamizadas pela Entidade Nacional para o Mercado de Com-bustíveis pautaram-se pela omissão de todos os impactos ambientais e pelas promessas vãs de independência energética, desmentidas pelos contratos de concessão. Acresce que a ENI e a GALP foram até isentas de apresentação de cauções e de seguro de responsabilidade civil no furo de Aljezur. A ministra acaba mentindo a si mesma, ao dizer que em caso de dúvida prefere o planeta. Em vez de dúvidas, há certezas em relação à exploração de petróleo: vai danificar os locais onde for feita a prospecção, quanto mais a exploração.

Culmina: “Por isso é que é tão importante para nós ter um quadro legal tão exigente. É a única maneira da população confiar em nós, de acreditar que estamos a fazer o nosso trabalho. Que esta-mos a utilizar o enorme potencial que temos no nosso mar, mas que estamos a fazê-lo da maneira correcta. Não é lirismo da minha parte, eu acredito mesmo que temos de fazer isto assim. É por isso que não temos em Portugal movimentos como temos em outros países da Europa contra este tipo de exploração, porque estamos a fazer as coisas silenciosamente. É lento? Ok, é mais lento do que aquilo que gostaríamos, mas é melhor assim porque temos de explicar o que estamos a fazer, o que estamos a fazer para proteger, o que estamos a fazer para preservar o planeta e para preservar o oceano.”. Aqui atingimos o apogeu: a ministra reincide na mentira do quadro legal exigente, e desmente António Costa, que várias vezes veio dizer que o que interessava era conhecer os recursos do país e não explorar, e que Portugal seria carbono neutro em 2050. Termina explicando a es-tratégia do governo: fazer tudo pela calada, o mais silencioso possível, tentar assim evitar que o movimento anti-petróleo responda.

Antes de todo este discurso a Ministra tinha aberto o jogo ao dizer que “O investimento dos EUA em exploração e produção de hidrocarbonetos em Deep offshore em Portugal era bem-vindo” e anun-ciando que “O primeiro poço de prospecção vai ser realizado no próximo ano, a 2 kilómetros de pro-fundidade, a 50 km da costa do Alentejo.”. A farsa já exposta do processo de consulta pública que nunca o foi está clara, tendo a ministra anunciado a perfuração já fora do período estabelecido pelo contrato de concessão, quando o governo deveria ter cancelado o contrato da ENI-GALP.

 

Ficámos a saber muito através desta video da ministra, nomeadamente:

• Que o governo não tem qualquer pretensão de cancelar os contratos de exploração de petróleo em terra e no mar;

• Que o governo está inclusivamente à procura de mais investimento com outras concessões para exploração de petróleo e gás (confirmado por uma apresentação para a Agência de

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Gestão da Tesouraria e da Dívida em Fevereiro deste ano, com o Ministério do Mar a mentir uma vez mais ao dizer que o governo “está interessado em conhecer os recursos do país”);

• Que o primeiro-ministro mentiu em sucessivas ocasiões;

• Que o silêncio de todo este processo, desde 2007, é uma estratégia partilhada com gover-nos anteriores, para fazer avançar a introdução da exploração e produção de petróleo e gás no país sem contestação social;

• Que as declarações de outro ministro, do Ambiente, de que a exploração de petróleo no mar “é normal” representam o sentimento deste governo.

 

As conclusões a tirar são relativamente simples: o movimento contra a exploração de petróleo e gás em Portugal terá de subir a parada e tomar por má qualquer promessa deste governo em relação a este assunto. A máscara caiu: será contra a vontade do PS que se travará o caminho para o precipício. Mas a pressão começa a dizer respeito a todos os que sustentam o governo.

PUBLICADO ORIGINALMENTE EM:

http://www.sabado.pt/opiniao/convidados/joao-camargo/detalhe/petroleo-um-governo-sem-mascara?ref=DET_Ulti-

mas_joao-camargo

Três motivos pelos quais o Estado deve cancelar os contratos de prospecção e

exploração de petróleo e gás em Portugal

RICARDO PAES MAMEDE

1. INCOERÊNCIA POLÍTICA NO COMBATE ÀS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS

A utilização de combustíveis fósseis na produção de energia constitui a principal fonte de emis-são de gases com efeito de estufa, que estão na base de uma subida potencialmente catastrófica da temperatura média do Planeta. É por isto que os hidrocarbonetos devem deixar de ser usa-dos e explorados, sendo progressivamente substituídos por fontes de energia renováveis. Esta é a base do Acordo de Paris, ratificado pelo Parlamento Português em 30 de Setembro de 2016.

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Ao permitir a produção de petróleo e gás no seu território, Portugal estaria a contribuir não apenas para o crescimento dos combustíveis fósseis directamente disponíveis, mas também para o prolongamento no tempo da sua viabilidade económica à escala global, por oposição às fontes de energia renováveis. O Estado português está comprometido com os objectivos europeus e mundiais de redução dos gases de efeitos de estufa. A exploração de petróleo e gás em Portugal é incompatível com esse compromisso.

2. REDUZIDO RETORNO ECONÓMICO

A expectativa de que Portugal possa vir a tornar-se numa potência petrolífera, resolvendo por essa via os seus desequilíbrios económicos externos, é simplesmente uma ilusão.

Os retornos para o Estado português decorrem de:

• rendas de superfície (têm um impacto irrisório no Orçamento de Estado, menos de 1M€ por campo na melhor das hipóteses);

• contrapartidas pela comercialização de petróleo e gás (entre 5% e 9% das receitas líquidas no caso das concessões do litoral alentejano – ou seja, depois de descontados os custos de produção – consoante os níveis de produção; o Estado português só começará a receber contrapartidas depois de cobertos todos os custos de investimento suportados pela em-presas concessionárias);

• impostos pagos aos Estado (IRC).

Assim, dependendo do preço dos combustíveis em causa e dos custos de investimento envol-vidos, poderiam decorrer vários anos até que o Estado português começasse a beneficiar da exploração de hidrocarbonetos, em proporções que seriam de qualquer forma modestas.

Tomemos como exemplo o contrato do campo Lavagante, concessionado ao consórcio ENI/GALP ao largo de Sines. Assumam-se ainda as seguintes hipóteses: seriam extraídos 8 mil barris de petróleo por dia (equivalente à média por campo de petróleo em operação em Es-panha em 2016); o preço do petróleo manter-se-ia em torno dos 50 dólares por barril; a taxa de IRC é de 21% (o que pressupõe que as empresas não adoptariam tácticas de planeamento fiscal agressivo) e incide sobre o equivalente a 50% das receitas de vendas; os custos totais de investimento são apenas os que estão previstos no contrato (cerca de 31 milhões de euros, o que não é de todo garantido). Com estas hipóteses e as cláusulas previstas no contrato de concessão, o retorno anual para o Estado português ao longo de duas décadas após o início da produção não seria superior a 0,01% do PIB de 2016.

Note-se ainda que os lucros das empresas petrolíferas envolvidas, cujo capital é maioritaria-mente estrangeiro, seriam em larga medida expatriados. E note-se que a produção de petróleo em Portugal não teria qualquer impacto nos preços dos combustíveis no país (pois seriam sempre vendidos aos preços internacionais).

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Por outro lado, caso ocorresse um acidente ambiental grave (cuja probabilidade é reduzida, mas real), o Estado português e a economia nacional poderiam ter de suportar custos avulta-dos e perdas de receita de outras actividades económicas (turismo, pesca, etc.). Em suma, a exploração de petróleo e gás para Portugal está longe de ser um bom negócio para o país.

3. FALTA DE TRANSPARÊNCIA NA CONTRATAÇÃO DAS CONCESSÕES

Os contratos de prospecção e exploração de petróleo em Portugal foram celebrados ao abrigo de legislação com mais de 20 anos, não acautelando princípios fundamentais que constam da legislação actualmente em vigor em Portugal e na generalidade dos países mais avançados. Acresce que:

• as concessões foram feitas por ajuste directo (em alguns casos em vésperas de eleições);

• transitaram para novos contratantes através de meras adendas aos contratos;

• a atribuição de responsabilidade de produção a sucursais pode limitar a responsabilidade legal das concessionárias em caso de acidente;

• os processos de consulta pública foram manifestamente ignorados.

A falta de transparência em todo o processo é uma característica muito pouco salutar para o funcionamento da democracia, ainda mais em contratos nos quais os riscos do investimento e da operação são largamente assumidos pelo Estado, com retornos muito modestos e riscos reais (mesmo que diminutos).

PUBLICADO ORIGINALMENTE EM:

http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2017/03/tres-motivos-pelos-quais-o-estado-deve.html

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Ordenamento Regional do Espaço Continental Português Visando Coesão

Territorial e Descentralização Administrativa

ERNESTO V. S. FIGUEIREDO

I) INTRODUÇÃO E METODOLOGIA DESCRITIVA

Propomo-nos abordar o tema em epígrafe, com o conhecimento pleno de que ao dá-lo por encerrado, não teremos senão conseguido dar testemunho (com evidência robustamente assegurada) de alguns resultados metodologicamente conseguidos através de um desenho experimental levado a cabo em meio laboratorial e não por observação direta feita no campo ou por contacto presencial e assistido, levado a cabo no terreno (fonte), geograficamente percorrido.

Na era da profusão de informação acessível e das novas tecnologias (de comunicação e informação) que lhe asseguram suporte físico, concedendo-lhe valor acrescentado, o qual (podendo ser incorporado) auxilia consideravelmente na difusão do progresso social e do desenvolvimento económico, valemo-nos desta conjuntura favorável para construir uma base de dados sólida e abrangente, sem gastar os mesmos tempos de recolha de dados que eram exigidos antigamente.

Em vez de pesquisar bibliograficamente informação atinente pelos quatro cantos do País, a fim de construir uma base de dados que ilustrasse suficientemente bem as diversas realidades de que a sociedade civil é construída, dirigimo-nos (imbuídos de fortes expectativas) ao portal da internet designado por Base de Dados de Portugal Contemporâneo (acrónimo PORDATA), da

autoria da fundação Francisco Manuel dos Santos, de caracter filantrópico reconhecido.

Entre outros, constituem objetivos da PORDATA a recolha, organização, sistematização e divulgação de informação sobre múltiplas áreas socioeconómicas, culturais e político-administrativas. As estatísticas divulgadas são provenientes de fontes oficiais e certificadas, com competências de produção de informação, nas áreas respetivas. Consiste a atividade principal da PORDATA em recolher e organizar a informação disponível, tornando-a o mais possível, clara e acessível.

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Indo ao encontro das expectativas, em apenas alguns meses de recolha, foi possível construir-se uma base de dados extensa para o efeito pretendido, alicerçada nos 14 temas que se enumeram abaixo, os quais (ver portal da PORDATA) admitem diversificados subtemas que nos escusamos de apresentar, exclusivamente, por escassez de espaço de grafia. Um total de 391 variáveis (objeto de observação, tratamento e estudo pelos 278 municípios incluídos) foi ganhando forma matricial.

A informação inicialmente codificada para estudo (matriz inicial dos dados) assenta nos 14 temas inventariados: 1º) População, 2º) Educação, 3º) Saúde, 4º) Proteção Social, 5º) Habitação, 6º) Justiça e Segurança, 7º) Emprego e Mercado de Trabalho, 8º) Empresas e Pessoal, 9º) Sociedade de Informação e Comunicações, 10º) Ambiente, Energia e Território, 11º) Cultura, 12º) Finanças Autárquicas, 13º) Participação Eleitoral e 14º) Turismo.

Cada variável (indicador) selecionada, foi-o com ponderação relativa, tomada em linha de conta os 14 temas, o grau de importância avaliado para cada uma e não permitindo que o seu total igualasse o da PORDATA, antes, que se aproximasse do número de municípios (elementos de observação). Sabíamos, por experiência, que do total das variáveis selecionadas (391) algumas se revelariam profundamente afetadas por missing values e que mais valeria a pena removê-las previamente.

Assim se procedeu, aplicando uma simples remoção de 52 indicadores com demasiados valores faltosos, ou seja, do primeiro elenco selecionado passou-se a um segundo, acometido de menor números de falhas de observação, definido por 339 indicadores. Sobre esta matriz de dados, mais realista porque com menos falhas, aplicou-se então uma análise estatística da estimativa dos coeficientes de correlação entre todos os pares de variáveis, originando = 57291 coeficientes.

Os resultados obtidos com esta análise pautam-se pela obtenção de coeficientes extremamente significantes (**), apenas significantes (*) e não significantes ( ). Dado o elevado número de observações (278 concelhos), verifica-se que uma esmagadora maioria dos valores dos coeficientes estimados se apresenta extremamente significante (da ordem estimada de c:a 87%), relegando as outras 2 categorias reunidas (c:a 26%) ou de per si (c:a 13%) para percentagens exíguas.

O que realmente significa a situação encontrada, de que as relações de associação (entre as variáveis recolhidas na sua esmagadora maioria) são extremamente significantes (muito intensas), é que esta maioria de variáveis identificada apresenta um padrão de comportamento de tal forma idêntico (mesmo se invertido), que faz com que qualquer uma possa substituir qualquer outra, sem perda de informação, dito doutra maneira, a informação acumulada é redundante.

Ao invés, as relações identificadas como de associação apenas significante e não significante (relações certificadas mas ténues e relações lineares independentes), constituem um conjunto de variáveis em que a informação acumulada se pode considerar não redundante ou parcimoniosa. Por conseguinte, a fim de proceder a adicionais crivos de seleção da informação

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alvo de estudo, há que definir e ajustar uma estratégia de seleção a ser aplicada à matriz das 339 variáveis em escrutínio.

Para dar cumprimento ao desiderato enunciado, intuiu-se (com base em experiência adquirida) que a construção de um inventário (das frequências de correlacionamento extremamente significante) para cada uma das variáveis em escrutínio, permitiria proceder a um ordenamento dessas mesmas frequências de correlacionamento, por ordem de grandeza, por exemplo, do mínimo ao máximo observados, conforme fica ilustrado pela Figura 1 abaixo.

Fig. 1: Sequence Plot com as Frequências de Correlacionamento das 339 Variáveis Originais

Torna-se óbvio, através da análise do comportamento exibido pelas frequências dos correlacionamentos mais intensos das variáveis, que as suas frequências mais baixas correspondem às variáveis marcadas em abcissas situadas à esquerda na Figura 1. Vale esta evidência ainda na constatação de que a informação não redundante (linearmente independente ou mais parcimoniosa) se situa nas variáveis situadas no terço inferior da trajetória das frequências ordenadas.

Esta constatação é importante porque a indagação das frequências dos mais elevados

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correlacionamentos nos identificam aquelas variáveis (a enorme maioria dos indicadores) que não contribuem com informação nova reportada, quando analisadas em presença de correligionárias em situação de simultaneidade. E, nesta etapa da pesquisa, torna-se crucial poder e saber demarcar as variáveis mais redundantes (repetidas) das variáveis menos redundantes (parcimoniosas).

Observe-se que, na imagem inferior da Figura 1 acima, a trajetória (da sequência dos valores ordenados das frequências de correlacionamento) é exposta em simultâneo com as mesmas frequências (de correlacionamento) marcadas para as variáveis correspondentes da sequência (de codificação) inicial, alterada pelo ordenamento imposto. Por contraste visual, identificam-se claramente as variáveis procuradas, mais e menos redundantes ou mais ou menos parcimoniosas.

Há, no entanto, que estabelecer novo critério (usado dentro do modelo exposto das frequências ordenadas) que nos indique (explícita e inequivocamente) os valores de demarcação correspondentes a intervalos de frequências das variáveis, por exemplo, correspondentes às variáveis menos redundantes (mais parcimoniosas) constituindo a primeira parcela de 10% do total 339, quando todas elas se encontram ordenadas por ordem de grandeza crescente.

As variáveis identificadas no parágrafo anterior constituem o primeiro novo grupo de variáveis, digamos, baseado em informação mais diversificada, acometido de relações de associação mais ténues e menos redundantes. Foi então estabelecido que uma abordagem metodológica (ou plano experimental) considerando três fatias (parcelas de 10% em acumulação) do total das variáveis, constituiria uma estratégia robusta para levar a bom porto as análises subsequentes.

II) ANÁLISES COM MÉTODOS MULTIVARIADOS

A resolução do problema levantado acima, da obtenção dos valores numéricos de demarcação de intervalos nas frequências ordenadas, para obter parcelas de variáveis (indicadores), consegue-se através do cálculo simples dos percentis de ordem 10 (P10), 20 (P20) e 30 (P30) ou, equivalentemente, dos decis de ordem 1 (D1), 2 (D2) e 3 (D3). Os valores encontrados são os seguintes: P10=D1=63.40, P20=D2= 169.90 e P30=D3= 225.67.

A noção geral de quantil (comum a tercis, quartis, decis, percentis, etc) define-se pelo cálculo do valor da variável em escrutínio (valor este do intervalo, chamado largura de variação, considerado entre os valores mínimo e máximo) abaixo do qual se situa a percentagem de elementos (de indicadores, neste caso) enunciada pelo quantil de interesse. É mandatório que nesta análise os elementos (indicadores) considerados estejam ordenados por ordem de grandeza.

Neste estudo, a variável em foco é constituída pelas frequências ordenadas das correlações muito intensas dos indicadores socioeconómicos. O valor, abaixo do qual se situam os primeiros 10% do total de indicadores, é o valor 63.40 registado acima, identificando 34 indicadores.

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A cifra, abaixo da qual se situam os primeiros 20%, tem o valor 169.90, identificando 68 indicadores. O montante, abaixo do qual se situam os primeiros 30%, acusa o valor 225.67, identificando 102 indicadores.

Há, agora, para interpretação e análise, três conjuntos (matrizes) de dados, fazendo parte do plano experimental de observação inicialmente desenhado. O primeiro, com 34 indicadores de relações de associação mais pobres (mais ténues); o segundo, com 68 indicadores de relações intermédias; o terceiro, com 102 indicadores, de relações mais ricas (mais intensas). Haverá quatro ou mais conjuntos de dados, se entendermos aumentar o leque de ensaios levados a efeito.

Torna-se útil adiantar desde já que, aquilo que se procura com esta investigação e constitui o seu objetivo superior, consiste em descobrir, com a ajuda dos métodos e técnicas estatísticas aplicadas aos dados (que significa às suas diversas versões ou construções instrumentais), se sai confirmada ou infirmada (de forma clara) através da observação (comparação) dos mapas obtidos como resultado do estudo, o modelo padrão regional que é colocado como contra-hipótese de investigação.

O modelo padrão regional que se adota (ver Mapas 1, 2 e 3) é baseado em seis circunscrições territoriais que, grosso modo, vigoraram oficialmente desde 1299 (testamento de D. Dinis) até 1836 (Código Administrativo de Passos Manuel). As designações que se alteravam ligeiramente com as delimitações dos coreógrafos de então, podem ser reativadas para designar as regiões: 1) Douro-Minho, 2) Trás-os-Montes e Beira Interior, 3) Beira Litoral, 4) Estremadura, 5) Alentejo e 6) Algarve.

Mapa 1 Mapa 2 Mapa 3

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Este modelo medieval, como se fosse regional de definição contemporânea, segue todos os requisitos exigidos pelos estudos regionais (atuais) voltados para o desenvolvimento sustentável, nomeadamente, no que concerne à cultura (ou subculturas) identificada, às produções específicas (naturais ou industriais), ao clima e meio ambiente (unificador) e à escala da área espacial (autossustentável). Regiões atuais com génese na Idade Média provincial, latentes na alma popular.

Da mesma forma que um bom fotógrafo produz imensas fotografias para apenas aproveitar algumas, também aqui se trata de produzir muitos perfis regionais a fim de identificar algum ou alguns que sirvam o propósito da delimitação regional. Ou seja, que permitam confirmar uma estrutura regional (de origem provincial) construída por povos (comunidades enraizadas) ocupando espaços sociais próprios tornados territórios que poderiam e deveriam ser autárquicos.

Aos 3 escalões (subconjuntos) de indicadores acima definidos e ao conjunto global (dos indicadores todos reunidos), foram aplicados modelos de extração de componentes principais (CPs). Este procedimento metodológico transforma (por redução e concentração) o número de indicadores sobre os quais se aplica, em outro número de valor inferior (escasso) constituído de variáveis abstratas e gerais, também designadas (noutras áreas) por variáveis latentes ou de tipo ideal.

As CPs obtidas dos conjuntos ou subconjuntos de indicadores constituem (cada uma de per si) combinações de diversos indicadores afins em uma única CP, variável não observada (mas latente) de informação compacta e de significado interpretável. Para uma extração ser classificada de bem-sucedida é necessário que o número de CPs extraídas seja muito inferior ao número de indicadores (variáveis de análise) submetidos ao modelo factorial das CPs.

Em princípio, dado que a extração das CPs corresponde a uma transformação algébrica de umas coordenadas para outras, podem produzir-se tantas CPs quantos os indicadores iniciais. Mas, a maior questão está em que as variâncias das sucessivas CPs, conhecidas como valores próprios ou Eigenvalues, explicam parcelas sucessivamente mais pequenas da variância total estimada nos dados de entrada, tornando-se então triviais, quanto descem em valor abaixo da unidade.

Aqui, consideramos a extração de CPs como modelo multivariado de importância instrumental, ou seja, aplica-se a fim de prosseguir a análise com aplicação de modelos de classificação automática de dados (CLAD) e, através destes, por último, obter os almejados estratos socio espaciais, também designados por outros nomes de acordo com o ramo de conhecimento que os viu nascer e desenvolveu (ciências sociais) ou em que são frequentemente utilizados (ciências biológicas e outras).

Há a referir que, a extração de algumas CPs de conjuntos de indicadores, constitui novo filtro do caudal da informação em processamento, criando algumas variáveis compactas explicando uma parte considerável (frequentemente a maior parte) da variância total dos indicadores. Pode considerar-se uma estratégia de filtragem da informação alocada para algumas CPs

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extraídas. Estas novas variáveis podem ser interpretadas, rodadas (a fim de melhor aderência) e utilizadas.

Para efeitos de procedimentos classificativos, torna-se frequentemente mais eficaz utilizarem-se apenas algumas variáveis (de preferência compactadas), em vez de dezenas ou centenas delas, todas atuando sobre as unidades de observação. É assim que se explica a vantagem de utilização de CPs extraídas de conjuntos de indicadores (para classificação dos 278 municípios), do que utilizarem-se as dezenas ou centenas dos conjuntos, para proceder à mesma classificação.

Como dados intermédios produzidos para serem submetidos a modelos classificatórios produzindo classificações (chame-se-lhes tipologias, escalões, estratos, classes, grupos, categorias ou, mais propriamente, clusters), existem agora disponíveis diversos conjuntos de CPs já extraídas. Para o modelo de classificação automática produzindo classificações que acomodam clusters hierarquizados, decidiu-se solicitar soluções variando em número de dois a doze.

O objetivo de sucesso com o estudo, recorde-se, está em conseguir identificar pelo menos uma variante dos ensaios experimentados que confirme, por observação direta e empiricamente, forte homologia com, primeiro, o modelo referencial das 6 circunscrições administrativas medievais que perdurou 537 anos (ver Figuras 1, 2 e 3); em segundo lugar, que concorde com o modelo identificado no livro do autor, intitulado “Portugal: que regiões”, dado à estampa pelo INIC em 1988.

O método proposto por Ward (1963), assim se chama o bem conhecido modelo de classificação automática que utilizámos (embora haja outros alternativos), é um método aglomerativo das unidades classificadas, produz clusters coesos e relativamente homogéneos, que são propriedades muito valiosas na qualificação dos grupos produzidos, nomeadamente, no caso em estudo. A sua debilidade está, o que é comum a todos os métodos hierárquicos, em não permitir migrações de unidades entre grupos.

O método de Ward é também designado de “variância mínima”. Neste método, a formação dos grupos dá-se pela maximização da homogeneidade dentro dos grupos. A soma de quadrados dentro dos grupos é usada como medida de homogeneidade. Isto é, o método de Ward procede por minimizar a soma de quadrados dentro do grupo. Os grupos formados em cada passo são resultantes da

fusão de unidades elementares ou grupos com a menor soma de quadrados.

Os gráficos característicos dos modelos semelhantes ao método de Ward têm a designação de dendograma. Neste, quando não há unidades a classificar em número demasiadamente elevado, o que não é o nosso caso, pode percorrer-se a árvore aglomerativa, iniciada com as unidades elementares constituindo clusters de unidade única, até ao topo do dendograma em que todas as unidades estão integradas em um único grupo ou cluster global.

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III) CONCLUSÕES GERAIS E ESPECÍFICAS DE IMPORTÂNCIA

No Cap. I introduzimos a problemática de estudo, descrevemos as variáveis (indicadores) objeto de estudo, referimos as unidades elementares de observação e descrevemos algumas análises descritivas. No Cap. II perorámos em torno de regiões de referência e métodos multivariados como extração de CPs e Método de Ward. No Cap. III, damos conta de alguns resultados obtidos mais significantes como elementos de comparação com outros homólogos também aqui introduzidos.

Os resultados consistentes obtidos constituem tipologias de espaços geo-sociais, elevados à relevância de regiões, i.e., territórios ocupados e construídos por comunidades a que importa reconhecer e assegurar emancipação administrativa, em alternativa à imposição exercida (sobre a sociedade civil) por redes administrativa de clivagens fraturantes, como foi o caso dos distritos (advindos da Revolução Liberal) ou das CIMs saídas do estado demoliberal, em 2013.

Trata-se, com o contributo prestado pelos resultados apurados neste estudo, de construir um novo estado democrático participativo e de direito, do topo até à base, com integração dos povos em suas regiões (de identificação) equipadas com autonomias políticas e administrativas, construindo-se um país plural e coeso, de naturalidades mais fortes sentidas e exercidas a níveis regional (sub-regional) e local (sub-local). Dar sentido de inclusão nacional às comunidades regionais vivas.

O Estado Nação atualmente vigente (dito soberano e absoluto), também de raiz na Idade Média, com as suas fronteiras erguidas para defesa do território nacional conquistado (usurpado) e altamente centralizado, demoliberal e neoliberal (antidemocrático na sua estrutura orgânica) a fim de (no plano simbólico) salvar a pátria, preservar o império e exercer o colonialismo, que lhe constituem valores de sempre, esse estado nação, dizíamos, poderá ter os dias contados.

Não há obsessão nenhuma em colocar como objetivo superior visado por este estudo, encontrar (descobrir) alguma delimitação que seja (rigorosamente) igual a alguma das três delimitações provinciais exemplificadas pelas Figuras 1, 2 e 3. Tal espectativa tomada como elemento de decisão sobre (a favor ou contra) um parentesco aproximado (semelhante, mas não igual) ou uma réplica fiel, negaria a alteração dos efeitos provocados pelas políticas exercidas ao longo dos tempos.

As realizações (mapas) obtidas pelos dados recolhidos presentemente (Mapas 7, 8 e 9), traduzindo uma perspectiva contemporânea, não têm que igualar as duas realizações anteriores, de 1985 (Mapas 4, 5 e 6) e da Idade Média (Mapas 1, 2 e 3), ou seja, a hipótese de igualdade de delimitações regionais (reportadas aos três tempos) não é a que realmente deve ser formulada e testada, antes, deve procurar-se mostrar à evidência a não rejeição de uma hipótese de relações de semelhança.

Cada conjunto ou subconjunto de CPs, extraídas das diversas variantes de matrizes de dados contendo indicadores selecionados, foi submetido a classificações hierárquicas, por aplicação do método de Ward. Primeiro, filtrou-se a informação de acordo com metodologias

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objetivas, depois, aplicou-se o mesmo método de classificação aos diversos vetores (eixos ou tendências) de informação controlada. Os três mapas exibidos (ver Figuras 7, 8 e 9 abaixo) coroam a pesquisa reportada.

Houve tempos em que, assumir-se (publicamente) como cidadão português de naturalidade (regional ou provincial) minhota, transmontana, alentejana, algarvia ou outra, era ignominioso e dava direito a reprimenda político religiosa. Eles explicam o impedimento da afirmação regional, que o mesmo é dizer, do desenvolvimento socioeconómico. A resiliência dos povos comunitários com as suas tradições populares, emancipados regionalmente, aí está a confirmar-se.

É a ausência das regiões administrativas (detentoras dos germes organizativos do ordenamento e da gestão da coisa pública) que explica o atraso em que o País mergulhou e em que se tem mantido desde a independência do Brasil (1822). A rede administrativa e centralizadora dos distritos (hoje das CIMs), acompanhando este período, foi a coveira do desenvolvimento sustentável, nomeadamente, por fragmentar o território e a sua população civil em retalhos desconexos.

O controlo do poder local por parte do poder central, feito através dos distritos ou das comunidades intermunicipais, ainda hoje praticado, terá que ser revertido para poder incluir (na sua estrutura articulada de Estado Democrático), o poder central descentralizado, o poder regional motor do desenvolvimento e o poder local protetor e integrador das populações. É a delimitação dos 6 espaços regionais ou, dito de outra forma, das futuras circunscrições autónomas, que aqui se planeia.

Considerando as conclusões mais óbvias que se podem aduzir no fecho deste relatório compacto, comentem-se ao de leve os 3 tipos de mapas exibidos, cada um com 3 elementos, ilustrando 9 cenários (perfis) que, não sendo iguais, deixam transparecer, como primeira característica comum, uma homologia da ação delimitadora muito evidente. Tão evidente que não nos mereceu análise adicional, utilizando algum índice de semelhança aplicado aos diversos mapas em escrutínio.

Os 3 primeiros mapas do primeiro tipo (ver Mapas 1, 2 e 3) dão testemunho do padrão regional (provincial) vigente na Idade Média, mais precisamente entre 1299 (reinado de D. Dinis) e 1836 (Código Administrativo de Passos Manuel, 1836). Este padrão de organização estatal permitiu a expansão e a epopeia dos descobrimentos. Com a Revolução Liberal de 1820, a gestão anterior viu os dias contados, sendo que a nova administração liberal veio dividir a sociedade civil.

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Mapa 4 Mapa 5 Mapa 6

Com o início da hecatombe descolonizadora (independência do Brasil em 1822) e com a introdução do figurino distrital (em 1836) como recentralizador do estado para uma administração mais centralista (que segurasse o Império), assiste-se, até praticamente aos dias de hoje, a uma contínua degradação da organização interna do estado dito soberano, sempre mais e mais centralizado, marcado por sucessivas tendências (de política) ensaiadas que de pouco ou nada valeram.

As configurações das 6 províncias tradicionais nasceram na Idade Média e, como as imagens revelam, sofreram alterações de alguma relevância como sejam as definições espaciais das Beiras, da Estremadura, de Trás-os-Montes e Beira Interior e do Douro Minho. O papel importante desempenhado sobretudo pelos rios Douro e Tejo, que hoje se reconhecem como unificadores regionais e, então, eram de divisão administrativa, constitui também facto assinalável.

Na Idade Média, a edificação dos mapas geográficos e administrativos constituía tarefa deixada aos coreógrafos, que (com brio profissional e competência) nos legaram mapeamentos assertivos, tais como os três passados em revista. Com o 25 de Abril de 1974, ocorreu uma vaga de fundo (tornada banal) de correntes políticas regionalistas, pretensamente descentralizadoras. Não faltaram autores a propor figurinos, os mais diversos, não compatíveis com um real processo regional.

A consciencialização dos cidadãos da sua identidade regional, sabe-se, encontra-se muito desgastada, é frequentemente menosprezada em favorecimento da nacionalidade, como se a pátria regional tivesse menos valor ou fosse irrelevante. O processo de regionalização

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não dispensa uma identidade regional forte, é certo; mas este fator, por si só, não conduz ao êxito de alguma mudança do estado centralista para um estado descentralizado, autónomo e participado.

Em 1985, tivemos oportunidade de apresentar publicamente um estudo que demorou alguns anos a ficar concretizado, mas sobre o qual, em matéria de resultados obtidos que interessa serem confrontados, se expõem 3 mapas assinalados como Mapas 4, 5 e 6. Constituem três versões das seis regiões batizadas Regiões Fundamentais, estruturantes do espaço social regional do Continente. Já lá vão cerca de 30 anos e uma réplica produzida, bem se justifica.

Não temos dúvidas em afirmar que os três mapas (3 alternativas), grosso modo, apontam em uníssono para delimitações regionais concordantes, pese embora serem unidades distintas. As designações regionais nos três mapas abaixo, 4, 5 e 6 e, depois, nos três últimos 7, 8 e 9, são sempre as mesmas já conhecidas, a saber (ver numeração no Mapa 4): 1) Douro-Minho, 2) Trás -os -Montes e Beira Interior, 3) Beira Litoral, 4) Estremadura, 5) Alentejo e 6) Algarve.

Observe-se nestes mapas, à exceção do primeiro (Mapa 4) que foi adicionalmente analisado com um modelo de Análise Discriminante, a fim de fazer desaparecer os clusters contendo apenas um elemento, ou pequenos clusters em situação de isolamento e sem escala regional, que a presença de tal facto não mascara ou desfaz a mensagem regional. As grandes manchas homogéneas (indicadoras de espaço regional) surgem com incongruências, mas a continuidade é mandatória.

Observe-se que o Douro-Minho ultrapassa sempre o rio Douro para sul e desce ao Entre Vouga e Douro. Atravessando o Douro e subindo (depois) pelo vale do Tâmega (limite oriental da sua bacia) entra em Espanha para reivindicar a sua outra parcela galega. Trás-os-Montes e Beira Interior faz fronteira com o Douro-Minho e com Espanha a norte e a este. Estende-se para sul pelo interior, de Castro Daire a Idanha-a-Nova, num caso, e ao complexo da Serra da Estrela, nos outros.

A Beira Litoral estende-se da zona de Aveiro às Caldas da Rainha, prolonga-se para o interior nos três mapas, com afetação dos concelhos de Nisa, Castelo de Vide, Marvão e Portalegre nas variantes dos Mapas 5 e 6. De resto, faz fronteira com o Douro-Minho e com Trás-os-Montes e Beira Interior. A Estremadura fica a sul da Beira Litoral com a qual faz fronteira e também com o Alentejo a oeste. Prolonga-se pelo litoral até Santiago do Cacém, em dois casos, e, até Odemira, noutro caso.

O Alentejo de largas extensões municipais e regional situa-se a sul da Beira Litoral, a noroeste e este com a Estremadura (conforme os Mapas em escrutínio) e a norte do Algarve, com todos os quais faz fronteiras de contiguidade. O Algarve, por último, a sul do Alentejo, encalacrado entre as serras de Monchique e do Caldeirão e o Atlântico, não deixa de ser heterogéneo no seu espaço geográfico, com um litoral diferente do espaço serrano e, até, um Barlavento e um Sotavento desiguais.

Para contrastar com estas realizações regionais percorridas há, finalmente, outras três que se lhes seguem, Mapas 7, 8 e 9, também apontando (em simultâneo) na mesma direção

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regional, ou seja, recomendando um recorte territorial que parece impor-se seguindo o padrão já reconhecido. As zonas fronteiriças das circunscrições administrativas, constituem sempre territórios de transição que tanto podem incluir-se numa como noutra circunscrição da vizinhança.

Uma região composta por dois ou mais espaços separados ou descontínuos (ao nível sub-nacional) não faz sentido e não tem aceitação. Tal implica que os estratos formados por elementos isolados (municípios ou pequenos grupos de municípios) são facilmente descartáveis por integração em espaços mais alargados. As idiossincrasias regionais não podem ser confundidas com as idiossincrasias sub-regionais. Estas últimas são importantes ao nível do planeamento intermunicipal.

Os Mapas 7, 8 e 9 abaixo dão-nos conta das mesmas seis regiões já acima comentadas, embora apresentem recortes delimitadores algo mais difusos, que se reproduzem tal e qual como o modelo de Ward utilizado os formatou. Sendo estes espaços regionais desprovidos dos elementos de descontinuidade que encerram, têm-se novamente reconstruídos os espaços regionais de cima. Esta constatação confirma o estudo de 1985 e radica nas províncias medievais (ver os Mapas 1,…,9).

Anote-se que os indicadores utilizados em1985 e hoje, diferem na fonte de recolha e na própria definição intrínseca. Então, a base de dados inicial comportou 416 indicadores observados em 274 municípios; a presente réplica, já se referiu, comporta 339 indicadores inicialmente selecionados para 278 municípios. Os indicadores, na sua grande maioria, têm designações e aferem propriedades, fenómenos (ou idiossincrasias) diferentes nos dois estudos.

Pela sua profusão em número, no entanto, os indicadores escrutinados cobrem muito para além da informação mínima exigida para validar o conhecimento detalhado das unidades (municípios) observados. É verdade que as realidades da Idade Média, de 1985 e de hoje, são incontornavelmente diferentes, não fossem as mudanças sociais operarem continuamente no tempo e no espaço. Mas uma coisa conseguiu-se demonstrar, que está na estabilidade (radical) regional indelével.

Os Mapas 7 e 8 abaixo são os dois mais semelhantes dos três, embora obtidos com informação ligeiramente diferente: o primeiro é originado pela classificação (em oito clusters) de oito CPs (entre 27 no total) extraídos dos primeiros 102 indicadores dotados de correlacionamentos (informação) crescentes; o segundo tem origem na classificação em 8 clusters de 6 CPs (entre 27 no total) extraídos dos primeiros 102 indicadores dotados de menores redundâncias informativas.

O terceiro (ver Mapa 9), algo menos perentório (menos taxativo) na medida em que realça menos o Douro-Minho e a Estremadura e expande em demasia a Beira Litoral, mostra-se (ainda assim) claro na mensagem mais forte das seis regiões. Esta versão teve a sua génese na classificação em 7 clusters, de 6 CPs (de um total de 22) extraídos dos primeiros 68 indicadores menos redundantes (mais parcimoniosos). A heterogeneidade do Algarve fica bem evidenciada.

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Mapa 7 Mapa 8 Mapa 9

Vale a pena referir que muitos outros ensaios poderiam ser ilustrados neste contexto, houvesse espaço mais alargado para adicional discussão. Diga-se que, para além destes três, em linha consonante com os anteriores passados em revista, merecem comentário algumas versões mapeadas de informação redundante, em que a faixa litoral (atlântica) e o litoral algarvio, em contraste com o interior do País mais ou menos expandido, aparecem como modelos da realidade.

Trata-se, infelizmente, da situação bem conhecida da estratificação dominante no espaço continental bipolar: uma faixa litoral descontínua de concentração e algum crescimento económico e um interior em desertificação e moribundo. De realçar que esta divisão territorial maniqueísta, obtida paulatinamente ao longo de séculos e intensificada nas últimas décadas, é a única que é aceite pelas políticas do crescimento económico a qualquer preço, mesmo sem ordenamento planeado.

Aparece também outro tipo de mapeamento dos concelhos, de feição claramente aleatório, provocado por informação aferida em relações de natureza pouco ou nada correlacionadas, linearmente independentes. Vale a pena recordar que independência linear inexistente (nula) não implica independência a níveis superiores de relacionamento, antes, esta última situação implica independência a todos os níveis inferiores, incluindo o primeiro, de função linear do primeiro grau.

Observe-se que, dados os 278 concelhos como unidades de observação, uma relação linear relativamente módica, quando aferida através do coeficiente de correlação de Pearson, se torna extremamente significante para valores numéricos logo acima de +0.11 ou abaixo de -0.11. Como os limites extremos são dados por ±1, adivinha-se mais facilmente que o valor aferido dos coeficientes da maioria das correlações se situe dentro destes dois intervalos.

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Pode concluir-se que, quanto maior for o número de observações realizadas, menor (mais baixo em módulo) se torna o valor dos coeficientes capazes de passar o teste da extrema significância (grande intensidade) da relação de associação entre os indicadores envolvidos. Os métodos estatísticos paramétricos foram desenvolvidos para valores de observação elevados, suficientes para não se incorrer no erro de tipo-II da decisão que consiste em aceitar uma hipótese falsa.

Concluindo, a informação bruta dos indicadores recolhidos, nomeadamente em bancos de dados muito abundantes, corre o risco muito elevado de ser eivado de informação redundante. A fim de evitar a repetição da informação (evitar indicadores homólogos), há que proceder a diferentes filtrações da informação, tal como foram descritas acima. A redundância de informação mascara a realidade e implica as estratégias metodológicas (modelos) utilizados.

Por outro lado, se a informação bruta dos indicadores recolhidos for exclusivamente constituída por relações de independência, ainda que de aferição exclusivamente linear, temos como resultados mais frequentes (das classificações efetuadas) mapeamentos relativamente caóticos, sob um manto visível de aleatoriedade sem nexo. Os resultados de aplicações de modelos econométricos bem-sucedidas, produzem frequentemente dados residuais aleatórios.

No estudo descrito, a chave do êxito experimental reportado está na sensibilidade de se ter conseguido uma combinação de indicadores (uma mistura ou uma seleção) contendo uma informação relativamente concentrada e compacta, não sendo de natureza redundante nem extremamente parcimoniosa, que permita identificar uma estrutura fiável e estável dos dados representados pelas unidades de observação, ou seja, dos 278 municípios considerados.

Os dados originais abundantes podem diferir, os diversos crivos de filtração aplicados produzem diversos feixes informativos que, por classificações obtidas de modelos com semelhantes prestações, com alta probabilidade incorporada produzem (por análise classificatória) estruturas (dos elementos observados) coesas e estáveis. Que tais estruturas assim descortinadas, tenham ou tenham tido representação (espacial) territorial, não pode ser tomado como pura coincidência.

Pode constatar-se, ao longo dos tempos, uma sucessiva litoralização dos espaços urbanos com simultânea interiorização dos espaços rurais expostos, sofrendo sucessivas hemorragias humanas. É nosso propósito dar continuidade a este estudo, replicando o plano experimental (adotado) em cada uma das 6 regiões identificadas (sub-nacionais) a fim de inventariar demarcações espaciais de associações sub-regionais (supramunicipais) que possam ser alternativa às CIMs.

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IV) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CALDAS, E. C., Loureiro, M. S. e outros, Regiões Homogéneas no Continente Português., Fundação Calouste Gulbenkian,Lisboa,1966.

FIGUEIREDO, E. V. S., Treatment of Missing Values in MacQueen’s Clustering Method, Department of Statistics, Lunds Univ., 1981.

LOPES, A. S., Desenvolvimento Regional, Vol. I/Problemática, Teoria, Modelos, Fundação Calouste Gulbenkian,Lisboa,1978.

MINGOTI, S. A.; Análise de dados através de métodos de estatística multivariada: uma abordagem aplicada, Editora UFMG, 2005.

OLSEN, S. M., Regional Analysis, vol. II, Social Systems, autores vários, Ed. Carol A. S., Academic Press,1976.

RAO, C. R. Linear statistical inference and its applications, New York: John Wiley, 1973. 522p.

SHARMA, S. Applied multivariate techniques, New York: John Wiley & Sons, 1996.

WARD, J. H. Hierarchical grouping to optimize an objective function, Journal of the American Statistical Association, v. 58, p. 236 – 244. Mar. 1963.