1.1 cancro – conceitos gerais -...

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INTRODUÇÃO 3 1.1 CANCRO – CONCEITOS GERAIS O cancro engloba um grupo de doenças que partilham alterações na regulação da proliferação celular (1). Para Hanahan e Weinberg, as células malignas em desenvolvi- mento adquirem um fenótipo que envolve auto-suficiência em factores de crescimento, insensibilidade a sinais inibidores do crescimento, escape à apoptose, replicação ilimitada, angiogénese e capacidade de invasão e metastização (Figura 1.1) (2). A um primeiro nível, genes-chave como os que controlam o crescimento e a multiplicação das células (protooncogenes e genes supressores) são alterados por processos endógenos e/ou por agentes carcinogénios (1, 3). Algumas mutações inactivantes ocorrem em genes responsáveis pela manutenção da integridade do genoma, facilitando a aquisição de alterações adicionais (3). Para Spencer e colaboradores, mutações nos “guardiães do genoma” são as mais críticas no processo de transformação maligna (4). A acumulação destas alterações genéticas conduz a manifestações fenotípicas, como a perda de diferenciação (anaplasia). O crescimento selectivo e autónomo das células alteradas promove o aparecimento de uma nova Figura 1.1 Capacidades adquiridas pelas células malignas em desenvolvimento (adaptado de 2)

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INTRODUÇÃO 3

1.1 CANCRO – CONCEITOS GERAIS

O cancro engloba um grupo

de doenças que partilham alterações

na regulação da proliferação celular

(1). Para Hanahan e Weinberg, as

células malignas em desenvolvi-

mento adquirem um fenótipo que

envolve auto-suficiência em factores

de crescimento, insensibilidade a

sinais inibidores do crescimento,

escape à apoptose, replicação

ilimitada, angiogénese e capacidade

de invasão e metastização (Figura

1.1) (2).

A um primeiro nível, genes-chave como os que controlam o crescimento e a

multiplicação das células (protooncogenes e genes supressores) são alterados por processos

endógenos e/ou por agentes carcinogénios (1, 3). Algumas mutações inactivantes ocorrem em

genes responsáveis pela manutenção da integridade do genoma, facilitando a aquisição de

alterações adicionais (3). Para Spencer e colaboradores, mutações nos “guardiães do genoma”

são as mais críticas no processo de transformação maligna (4). A acumulação destas alterações

genéticas conduz a manifestações fenotípicas, como a perda de diferenciação (anaplasia). O

crescimento selectivo e autónomo das células alteradas promove o aparecimento de uma nova

Figura 1.1 – Capacidades adquiridas pelas células malignas em desenvolvimento (adaptado de 2)

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INTRODUÇÃO 4

estrutura – a neoplasia. A organização génica e cromossómica é desregulada de tal forma que

surgem, com frequência, variantes celulares capazes de invadir estruturas vizinhas e/ou de se

disseminar através dos vasos sanguíneos e dos canais linfáticos para outros órgãos. A

carcinogénese é, assim, um processo multifaseado, com expressão tanto a nível genotípico

como fenotípico (5-7).

O cancro, termo geral usado para referir todos os tipos de tumores malignos (6, 7), é um

processo que afecta os seres humanos desde os tempos pré-históricos. Este grupo de doenças,

na sua maioria, faz parte do processo de envelhecimento, uma vez que são necessários anos

para a acumulação de mutações (8).

Para 2007, estimam-se 1.444.920 novos casos de cancro nos Estados Unidos da

América, sendo de 559.650 o número de mortes esperadas pela mesma doença (9). Neste país,

o cancro é a primeira causa de morte para idades inferiores a 85 anos, ultrapassando a taxa de

mortalidade devida a doença coronária. Assim, uma em cada quatro mortes ocorre por cancro

(10). Em Portugal, o cancro é a segunda causa de morte, a seguir às patologias

cardiovasculares (11). Neste país, as taxas de incidência e mortalidade por cancro têm

aumentado progressivamente nas últimas três décadas (em 1960, 6% das mortes ocorreram

devido a tumores malignos; em 1998, a taxa de mortalidade ascendeu aos 20%) (11, 12).

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INTRODUÇÃO 5

1.2 CARCINOMA UROTELIAL DA BEXIGA

1.2.1. Morfologia da Bexiga Urinária

A bexiga é um órgão oco que

funciona como depósito provisório da

urina. A parede da bexiga (Figura 1.2) é

composta por diversos tecidos, que se

adequam à sua função. A base

morfofuncional é o músculo vesical

(muscular própria), impermeabilizado

pelas células epiteliais; o órgão é

envolvido externamente por tecido adiposo (pericisto) (13).

A mucosa da bexiga (Figura 1.3)

é composta por um epitélio do tipo

transicional – urotélio – e por uma

lâmina própria de tecido conjuntivo laxo

(13-15).

O urotélio modifica-se para se

adaptar às variações fisiológicas do

órgão (Figura 1.4). É poliestratificado (3 a 6 camadas), compreendendo:

Figura 1.2 – Parede da bexiga (13)

Figura 1.3 – Camada mucosa da bexiga (13)

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INTRODUÇÃO 6

- uma zona basal de células compactas e cúbicas/cilíndricas,

- um estrato intermédio de células mais poligonais com núcleos alongados

perpendiculares à membrana basal,

- um estrato superficial de células maiores, com citoplasma abundante, dispostas

paralelamente à membrana basal, conhecidas por células em guarda-chuva (13-15).

As células em guarda-chuva têm características únicas, nomeadamente especializações

da membrana plasmática que lhes permitem manter a impermeabilidade permanente do

epitélio à urina (13-15).

A parede muscular da bexiga é constituída por três camadas de músculo liso e fibras

elásticas que se contraem durante a micção (13-15).

1.2.2. Morfogénese do Carcinoma da Bexiga

O primeiro passo da transformação maligna da bexiga é intraepitelial (13). De facto, o

urotélio constitui uma barreira entre o sangue e a urina, estando constantemente exposto a

uma variedade de potenciais carcinogénios. O cancro da bexiga é, assim, a neoplasia maligna

mais comum do aparelho urinário (16). O carcinoma urotelial (carcinoma das células

Figura 1.4 – Corte de bexiga vazia (A) e cheia (B) (15)

A B

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INTRODUÇÃO 7

transicionais) representa mais de 94% dos casos, seguido do carcinoma espinocelular e

adenocarcinoma, com 3% e 2%, respectivamente (17, 18). Estes últimos tipos histológicos,

assim como outros ainda mais raros, são globalmente classificados como carcinomas

uroteliais com diferenciação divergente; surgem, da mesma forma, nas células uroteliais, o

que demonstra a natureza pluripotente do urotélio (19).

Os carcinomas uroteliais da bexiga emergem segundo diferentes mecanismos,

surgindo duas variantes fenotípicas histopatologicamente distintas. Cerca de 70% - 80% dos

tumores são carcinomas papilares limitados ao urotélio e lâmina própria. Originam-se,

geralmente, a partir de lesões hiperplásicas, sendo de baixo grau de malignidade. Embora as

recidivas sejam comuns, raramente ocorre progressão da doença (10 a 15%). Por outro lado,

20% - 30% dos carcinomas uroteliais apresentam morfologia não papilar e são invasores

(ultrapassam a lâmina própria), o que confere maior potencial de invasão e metastização. Esta

variante agressiva ocorre tipicamente de novo, originando-se a partir de neoplasias intra-

uroteliais de alto grau (displasia ou carcinoma in situ) (16, 20-22).

A necessidade de identificar tumores superficiais com potencial de recidiva e/ou

progressão, ou tumores invasores que poderão metastizar, levou ao desenvolvimento de

numerosos estudos. A caracterização de um padrão de alterações moleculares e genéticas

subjacentes ao processo de cancerização urotelial constitui o objectivo final. Assim, pretende-

se identificar um painel de marcadores moleculares, de modo a caracterizar a biologia das

variantes tumorais (23 - 26).

Os eventos moleculares que ocorrem no carcinoma urotelial da bexiga envolvem:

- alterações cromossómicas responsáveis pela cancerização,

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INTRODUÇÃO 8

- desregulação do ciclo celular, que conduz a uma proliferação celular aumentada

por sobre-expressão de factores de crescimento, bem como perda de diferenciação,

- desenvolvimento de metástases, para o qual contribui o processo de angiogénese e

o deficit de moléculas de adesão (Figura 1.5) (23-31).

Alguns estudos citogenéticos demonstraram a monossomia do cromossoma 9 em

todos os estádios do carcinoma da bexiga, sugerindo que esta alteração poderá ocorrer

precocemente no processo de cancerização (32-35). Para Lindgren e colaboradores, este evento

está mais associado ao desenvolvimento tumoral do que à iniciação (36).

A análise do ADN a nível molecular revelou a perda de heterozigotia de 9q (37-40).

Perdas em 3p (41) e 11p (42, 43) são também eventos habituais, comprovando que a iniciação e

progressão tumoral são produtos da acumulação de modificações a nível genético. Os

resultados relativos à perda de heterozigotia de 9q são sobreponíveis aos obtidos por análise

Figura 1.5 – Eventos moleculares que caracterizam as duas vias de cancerização da bexiga (adaptado de 16) (*: alteração estrutural, ↓↓↓↓: taxa de expressão diminuída, p-: delecção do braço curto do cromossoma, q-: delecção do braço longo do cromossoma, FGFR3: fibroblast growth factor receptor 3, RB: retinoblastoma protein, N-cad: N-caderina, E-cad: E-caderina, MPMs: matrix metalloproteinases, VEGF: vascular endothelial growth factor, TSP1: thrombospondin 1)

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INTRODUÇÃO 9

citogenética, sugerindo uma associação com o desenvolvimento de tumores superficiais. Na

realidade, alterações no cromossoma 9 são bastante frequentes, tendo sido proposta a existência

de um gene supressor tumoral crítico nesta região do genoma. Provavelmente, estas alterações

predispõem as células uroteliais a mutações genéticas mais profundas, estabelecendo um

patamar para a dualidade de vias de cancerização urotelial (16, 38, 44, 45).

Mutações do oncogene H-ras são frequentes em estádios precoces do carcinoma da

bexiga (46-48). A sobre-expressão da proteína associada (HRAS) parece estar associada à

indução tumoral (49). Por outro lado, foi também descrita a associação entre este evento e a

ocorrência de recidivas (48).

O gene FGFR3 (fibroblast growth factor receptor 3) foi recentemente associado ao

desenvolvimento de tumores superficiais de baixo grau. Devido à elevada taxa de mutações

activantes neste grupo (70-80%), vários autores sugeriram um papel oncogénico determinante

na transformação maligna do urotélio (36, 50-53).

No grupo dos carcinomas uroteliais invasores, além da perda de heterozigotia de 9q

(54), muitas outras alterações foram descritas. Delecções em 8p, 11p, 13q e 14q estão

frequentemente associadas à recidiva e progressão de tumores superficiais para estádios

invasores (16).

Também os genes supressores tumorais Rb (retinoblastoma) e p53 parecem

desempenhar um papel importante na progressão do carcinoma urotelial (55-60). Estes genes

estão envolvidos na regulação do ciclo celular, que constitui um aspecto crítico no balanço

entre a proliferação e a diferenciação (28). Assim, a perda da sua função implica a

desregulação dos mecanismos de controlo do ciclo celular (61). Mutações simultâneas nestes

genes ocorrem em mais de 50 % dos tumores invasores de alto grau. Tal associa-se a um pior

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INTRODUÇÃO 10

prognóstico, com aumento das taxas de recidiva e progressão (62, 63).

O fenótipo mais agressivo do carcinoma urotelial da bexiga associa-se a vários

fenómenos. Entre estes, a angiogénese constitui um pré-requisito para a progressão tumoral e

metastização, sendo regulado por factores promotores, como o VEGF (vascular endothelial

growth factor), e por inibidores, como a trombospondina-1 (TSP-1) (64). Estes factores, assim

como a densidade dos vasos sanguíneos, podem constituir indicadores de prognóstico. De

facto, valores aumentados de densidade vascular associam-se com a progressão da doença e

diminuição da sobrevivência global (65, 66). A diminuição da imuno-expressão da TSP-1

apresenta a mesma associação (67, 68).

A expressão aberrante de moléculas de adesão celular está igualmente associada à

invasão e metastização de vários tipos de tumores malignos, incluindo os do sistema genito-

urinário. Em situações normais, a E-caderina (E-cad) forma uma barreira natural à

metastização, enquanto que a N-caderina (N-cad) parece estar relacionada com a promoção da

invasão. Em tumores da bexiga, ocorre diminuição / incremento da imuno-expressão destas

proteínas, correlacionando-se com um aumento do potencial de invasão muscular e formação

de metástases à distância (69-75).

As metaloproteinases da matriz (MPMs) desempenham igualmente um papel

fundamental na invasão tumoral (76). Os níveis de imuno-expressão das MMPs estão

frequentemente aumentados em carcinomas uroteliais invasores (77).

1.2.3. A Dimensão do Problema

1.2.3.1. Epidemiologia Analítica

Aspectos ambientais têm um papel significativo na promoção das alterações genéticas

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INTRODUÇÃO 11

subjacentes ao processo de cancerização do urotélio. De facto, o carcinoma da bexiga está

intimamente ligado à exposição ocupacional e ambiental a certos carcinogénios químicos,

muitas vezes em altas concentrações e por extensos períodos de tempo. Pode, por isso,

considerar-se um produto da industrialização. O desenvolvimento da doença está relacionado

com a excreção de metabolitos carcinogénios na urina (5, 28, 78). Neste contexto, a prevenção e

diagnóstico precoce em grupos de pessoas ocupacionalmente expostas a carcinogénios

vesicais é um tema actualmente em debate, uma vez que o carcinoma da bexiga representa um

modelo ideal para testar e aplicar tais estratégias (79, 80).

O tabagismo é um dos principais factores de risco associados ao carcinoma da bexiga,

sendo responsável por 30 a 50 % de todos os casos (81, in 82). O risco está relacionado com o

número de cigarros consumidos, o tempo durante o qual o fumo é retido nos pulmões e a

quantidade de fumo inalado (83). Os fumadores apresentam um risco 2 a 4 vezes superior ao

dos não-fumadores de virem a desenvolver a doença (81). Alguns estudos sugeriram que, neste

grupo de risco, os tumores vesicais tendem a ser maiores, multifocais e histopatologicamente

mais agressivos (84). Verificaram-se, de facto, diferenças no espectro mutacional entre os

tumores de não-fumadores e os de fumadores (85). Os produtos da pirólise do tabaco, como os

hidrocarbonetos aromáticos, as aminas aromáticas e os aldeídos insaturados, estão associados

à génese do carcinoma da bexiga (86, 87). Tem sido dado particular destaque às aminas

aromáticas, como a 4–aminobifenil (ABP), uma vez que estas não são apenas encontradas no

fumo do tabaco, mas também em vários produtos químicos. Um potencial mecanismo pelo

qual as aminas induzem a carcinogénese consiste na formação de aductos de ADN que

resultam em mutações (87, 88). Tal está associado aos polimorfimos dos genes que codificam

as enzimas envolvidas no metabolismo das aminas, revelando este fenómeno uma interacção

genética e ambiental. As aminas são destoxificadas, por N-acetilação, através da enzima N-

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INTRODUÇÃO 12

acetiltransferase (NAT2), o que diminui a formação de aductos (85, 87). Por outro lado, a

citocromo p4501A2 (CYP1A2) é outra enzima que retira grupos metilo às aminas aromáticas,

aumentando a formação de aductos (57). Como estas enzimas são polimórficas, a

metabolização das aminas ocorre de forma lenta ou rápida, consoante o fenótipo individual.

Como tal, a variabilidade de expressão dos produtos génicos de indivíduos de uma mesma

população traduz-se em diferentes taxas de metabolização enzimática, que parecem

determinar um risco distinto de desenvolver carcinoma da bexiga (57, 86).

Está também comprovada a relação entre a actividade ocupacional e o aumento do

risco de carcinoma da bexiga. Estima-se que a exposição constante e prolongada a químicos

utilizados na indústria petroquímica, de tintas, têxtil e de transformação da borracha seja

responsável por mais de 20% dos casos (89, 90). A maioria destes químicos são aminas

aromáticas, como a 2–naftilamina, a 4–aminobifenil e a benzidina (81, in 82, 86, 87, 91). A

acumulação destas moléculas no organismo decorre durante vários anos, contribuindo, deste

modo, para os longos períodos de latência anteriores ao desenvolvimento do tumor maligno.

Estas aminas são activadas e destoxificadas pelo mesmo mecanismo de metabolização das

aminas presentes no fumo do tabaco. Mais uma vez, a susceptibilidade de desenvolver

carcinoma da bexiga depende dos perfis de expressão das enzimas envolvidas no metabolismo

das aminas aromáticas (57, 92, 93).

Dos agentes biológicos que causam cancro

nos seres humanos, existe um microrganismo –

Schistosoma haematobium (Figura 1.6) – que

parece ser um agente causador de carcinoma da

bexiga; contudo, o tipo histológico associado a

Figura 1.6 – Ovos de Schistosoma haematobium na parede da bexiga (94)

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INTRODUÇÃO 13

este agente é, geralmente, o carcinoma espinocelular (57, in 82, 95, 96).

Outras situações de risco potencial são as

que causam cistite crónica da bexiga, entre as

quais a existência de cálculos (Figura 1.7) ou a

utilização permanente de cateteres. Estes factores

estão associados a um risco acrescido de

carcinoma espinocelular (in 82, 98). O mecanismo

exacto de carcinogénese não é conhecido, mas

está, provavelmente, relacionado com a irritação crónica, resultando em metaplasia, displasia

e, finalmente, carcinoma (57).

Doentes tratados com ciclofosfamida têm um risco aumentado de desenvolver

carcinoma da bexiga (in 82, 99). A maioria dos tumores são, no momento do diagnóstico,

carcinomas uroteliais invasores (100). Um dos metabolitos da ciclofosfamida – acroleína –

parece ser responsável pela indução tumoral (101).

Também o tratamento da região pélvica por radioterapia tem sido referido com

situação de risco (102-105). O tumor tende a surgir cinco a dez anos após a radiação, e é, no

momento de diagnóstico, geralmente de alto grau (105, 106). O mecanismo de carcinogénese

está possivelmente relacionado com a geração de radicais livres que causam mutações

directas no ADN (57, 91).

Casos de carcinoma urotelial em indivíduos da mesma família correspondem a uma

pequena percentagem do total. Provavelmente, factores genéticos e ambientais combinados

Figura 1.7 – Cálculos da bexiga (97)

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INTRODUÇÃO 14

contribuem para a ocorrência familiar de cancro da bexiga, em particular nos indivíduos

relativamente jovens (idade inferior a 45 anos) (107). Vários estudos, avaliando casos de

cancro na mesma família, determinaram riscos aumentados de desenvolvimento deste tipo de

tumores (108-110), o que destaca uma possível predisposição genética do carcinoma urotelial da

bexiga.

1.2.3.2. Epidemiologia Descritiva

O carcinoma da bexiga é, predominantemente, uma doença de homens idosos. Este

tipo de tumor é o sétimo mais frequente no mundo, afectando três vezes mais o sexo

masculino do que o sexo feminino. Tal está relacionado, provavelmente, com a exposição

ambiental prolongada a carcinogénios químicos, mais prevalecente nos homens. A incidência

de cancro da bexiga aumenta, regra geral, com a idade, ocorrendo geralmente após os 60 anos

e sendo raro antes dos 40. A idade média de diagnóstico situa-se entre os 65 e os 70 anos (11,

81, 111, 112).

Existe uma variação geográfica e racial na incidência do carcinoma da bexiga: é mais

alta em americanos brancos do que em americanos negros, em países industrializados do que

em regiões sub-desenvolvidas, em áreas urbanas do que em áreas rurais (Figuras 1.8 e 1.9).

Estes dados revelam, novamente, o papel dos carcinogénios da indústria no desenvolvimento

da doença. Por outro lado, variações biológicas raciais poderão influenciar as diversas fases

da cancerização, nomeadamente a capacidade de converter procarcinogénios em

carcinogénios, de detoxificar estes produtos e de reparar erros genéticos (81, 111, 113).

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INTRODUÇÃO 15

Em 2002, a nível mundial, a taxa de incidência por cancro da bexiga (segundo

Figura 1.8 – Estimativas das taxas de incidência ajustadas por idade / 100.000 habitantes do sexo masculino, dos tumores malignos da bexiga, a nível mundial, em 2002 (adaptado de 112)

Figura 1.9 – Estimativas das taxas de incidência ajustadas por idade / 100.000 habitantes do sexo feminino, dos tumores malignos da bexiga, a nível mundial, em 2002 (adaptado de 112)

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INTRODUÇÃO 16

estimativas) foi de 10,1/100.000 habitantes do sexo masculino e 2,5/100.000 habitantes do

sexo feminino (Figura 1.10). No mesmo ano, 108310 homens e 36699 mulheres morreram

devido a esta doença (segundo estimativas). O número de casos diagnosticados foi 1,3 vezes

superior nos países desenvolvidos, em relação aos países subdesenvolvidos. Tal não se

verificou em relação à taxa de mortalidade, pois esta foi ligeiramente superior nos países sub-

desenvolvidos (112). O diagnóstico em estádios iniciais da doença nos países desenvolvidos,

por um lado, e as restrições a nível terapêutico nos países sub-desenvolvidos, por outro,

explicam tais factos.

Figura 1.10 – Estimativas das taxas de incidência e mortalidade ajustadas por idade / 100.000 habitantes do sexo masculino e feminino, respectivamente, dos tumores mais comuns, a nível mundial, em 2002 (adaptado de 112)

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INTRODUÇÃO 17

No ano 2007, estimam-se cerca de 67160 novos casos de cancro da bexiga

diagnosticados nos Estados Unidos da América (cerca de 50040 em homens e 17120 em

mulheres). Prevê-se, ainda, que ocorram cerca de 13750 mortes por cancro da bexiga nesse

país (cerca de 9630 homens e 4120 mulheres) (Figura 1.11) (in 9, in 114).

Na Europa, o carcinoma da bexiga é o quarto tumor maligno mais frequente no sexo

masculino e o décimo terceiro no sexo feminino. Existem, no entanto, diferenças

relativamente às taxas de incidência e mortalidade entre as várias regiões (segundo

Figura 1.11 – Os dez tipos de cancro mais comuns nos Estados Unidos da América em 2007: estimativas do número de novos casos e do número de mortes, por sexo (* exclui carcinomas das células basais e das células escamosas da pele, e carcinoma in situ, excepto o da bexiga) (NOTA: devido a arredondamentos, as percentagens parciais poderão não totalizar 100%) (adaptado de 9)

*

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INTRODUÇÃO 18

estimativas) (Figuras 1.12 e 1.13). Relativamente ao tipo histológico, 90% dos casos

correspondem a carcinomas uroteliais (112, 115, 116).

Em Portugal, o carcinoma da bexiga é o quinto tumor mais frequente no sexo

masculino e o décimo primeiro no sexo feminino. Segundo estimativas, a taxa de incidência,

em 2002, foi de 19,9 e 4,1 por 100000 habitantes no sexo masculino e feminino,

respectivamente (112).

O número de mortes por carcinoma da bexiga em Portugal tem vindo a aumentar nos

últimos 20 anos (Figura 1.14) (117).

Na região Norte de Portugal, a taxa de incidência por cancro da bexiga, em 2000, foi

de 28,7/100.000 habitantes no sexo masculino e 7,5/100.000 habitantes no sexo feminino.

Este tumor foi o quinto mais frequente nos homens e o décimo mais frequente nas mulheres

(Figura 1.15). O carcinoma urotelial foi o tipo histológico mais frequente, correspondendo a

Figura 1.12 – Estimativas das taxas de incidência ajustadas por idade / 100.000 habitantes, de carcinoma da bexiga, nas regiões da Europa, em 2002 (adaptado de 112)

Figura 1.13 – Estimativas das taxas de mortalidade ajustadas por idade / 100.000 habitantes, de carcinoma da bexiga, nas regiões da Europa, em 2002 (adaptado de 112)

1,3

1,8

2,1

1,0

7,4

6,3

6,2

7,0

0 2 4 6 8 10

Sul

Oeste

Norte

Centro/Este

Homens Mulheres

4,1

5,3

4,9

2,2

46,6

23,6

16,9

14,7

0 10 20 30 40 50 60

Sul

Oeste

Norte

Centro/Este

Homens Mulheres

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INTRODUÇÃO 19

92% dos casos (destes, 51% eram, no momento do diagnóstico, carcinomas invasores, sendo

os restantes 49% carcinomas superficiais). O pico de incidência ocorreu entre a sexta e a

sétima décadas de vida. A razão mortalidade/incidência foi de 31% no sexo masculino e de

4% no sexo feminino (118).

Figura 1.14 – Taxas de mortalidade padronizadas por idade / 100000 habitantes, por sexo, de carcinoma da bexiga, em Portugal (1983-2003) (adaptado de 117)

0,0

1,0

2,0

3,0

4,0

5,0

6,01983

1984

1985

1986

1987

1988

1989

1990

1991

1992

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

Homens Mulheres

Figura 1.15 – Os dez tipos de cancro mais comuns na Região Norte de Portugal em 2000, por sexo (118)

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INTRODUÇÃO 20

No Instituto Português de Oncologia do Porto, de 01 de Janeiro de 1993 a 31 de

Dezembro de 2002, dos 34813 doentes com tumores malignos admitidos, 1199

correspondiam a cancros da bexiga. O número mais elevado de casos ocorreu a partir da sexta

década de vida (Tabela 1.1) (119).

Tabela 1.1 – Número de casos de cancro da bexiga por ano e por grupos etários, total de tumores da bexiga e total de tumores malignos por ano, diagnosticados de 1993 a 2002, no Instituto Português de Oncologia do Porto (adaptado de 119)

Grupos etários

0-30 31-40 41-50 51-60 61 e + Total de tumores da bexiga

Total de tumores malignos

1993 1 - 4 23 74 102 2782

1994 1 4 6 19 79 109 3036

1995 6 1 7 20 33 125 3176

1996 1 6 8 30 83 98 3614

1997 1 1 14 20 98 134 3818

1998 0 3 4 16 102 125 3919

1999 2 1 9 23 108 143 3829

2000 2 3 8 15 93 121 3408

2001 1 3 4 28 76 112 3256

2002 0 6 13 13 98 130 3975

Total 15 28 77 207 844 1199 34813

1.2.3.3. Classificação Histológica e Significado Prognóstico

O carcinoma da bexiga é classificado como superficial, se a lesão se estende até à

lâmina própria; quando a ultrapassa é considerado invasor (18, 129, 121).

O sistema TNM (Tumor, Nódulo, Metástase) (122, 123) permite estabelecer a dimensão

da doença neoplásica (Tabela 1.2). Assim, um tumor limitado à mucosa e que seja plano é

classificado como Tis (“in situ”); se for papilar é classificado como Ta. Se o carcinoma

urotelial invade a lâmina própria, mas não a camada muscular, é classificado como T1 (122).

Dentro dos tumores superficiais, aproximadamente 70% correspondem ao estádio Ta, 20% ao

estádio T1 e 10% ao estádio Tis (in 75).

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INTRODUÇÃO 21

Tabela 1.2 – Classificação dos tumores malignos da bexiga através do sistema TNM (tumor, nódulo, metástase) (Tabela adaptada de 122 / Figura adaptada de 5)

Tumor primário (T)

Tx Tumor primário não acessível

T0 Não há evidência de tumor primário

Ta Tumor papilar não-invasivo

Tis Carcinoma “in situ”: tumor plano

T1 Tumor invade tecido conjuntivo sub-epitelial

T2 Tumor invade camada muscular

pT2a Tumor invade músculo superficial (metade interna)

pT2b Tumor invade músculo profundo (metade externa)

T3 Tumor invade tecido perivesical (pericisto)

pT3a Microscopicamente

pT3b Macroscopicamente

T4 Tumor invade qualquer dos seguintes órgãos: próstata, útero, vagina, parede pélvica, parede abdominal

T4a Tumor invade próstata, útero, vagina

T4b Tumor invade parede pélvica, parede abdominal

Nódulos linfáticos regionais (N)

Nx Nódulos linfáticos regionais não acessíveis

N0 Não há envolvimento de nódulos linfáticos regionais

N1 Metástases num único nódulo linfático, ≤ 2 cm na maior dimensão

N2 Metástases num único nódulo linfático, > 2 cm mas ≤ 5 cm na maior dimensão; ou nódulos linfáticos múltiplos, nenhum > 5 cm na maior dimensão

N3 Metástases num nódulo linfático, > 5 cm na maior dimensão

Metástases à distância (M)

Mx Metástases à distância não acessíveis

M0 Não há metástases à distância

M1 Metástases à distância

Classificação conjunta (TNM)

0a Ta N0 M0

0is Tis N0 M0

I T1 N0 M0

II T2a

T2b

N0

N0

M0

M0

III T3a

T3b

T4a

N0

N0

N0

M0

M0

M1

IV T4b

Qualquer T

Qualquer T

N0

N1-N3

Qualquer N

M0

M0

M1

Urotélio Lâmina própria Camada muscular Pericisto

Estruturas adjacentes Nódulos linfáticos Metástases à distância

- 0is - - 0a - - I - - II - --------- III --------- --------- IV ------- --

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INTRODUÇÃO 22

Quando o tumor vesical invade a muscular própria, pode ser classificado de acordo

com a profundidade de tecido muscular infiltrado (T2a, T2b). Se houver extensão ao tecido

envolvente o tumor é classificado como T3 (T3a, T3b). Os tumores T4 (T4a, T4b) invadem

estruturas adjacentes à bexiga. A invasão da parede muscular da bexiga confere maior

potencial de metastização, ocorrendo preferencialmente para os gânglios linfáticos regionais,

para os pulmões, fígado e esqueleto (122).

Um dos factores de prognóstico clássico dos carcinomas da bexiga é o grau de

diferenciação. Esta variável recorre a critérios morfológicos relacionados com o padrão de

alterações citológicas e estruturais do urotélio. Valoriza-se a polarização das células e dos

núcleos, a atipia citológica (tamanho e forma do núcleo), as características da cromatina

nuclear, os nucléolos e a frequência de mitoses. Outro factor de prognóstico clássico é o grau

de invasão da parede do órgão (13, 28).

O termo “carcinoma superficial da bexiga” engloba um conjunto de tumores que

podem variar em termos de grau de diferenciação e de tipo de morfologia, ocorrendo dois

padrões de crescimento distintos. Globalmente, classificam-se os tumores superficiais como

papilares ou planos. Os tumores papilares são constituídos por proliferações do epitélio

urotelial em torno de um eixo estromal fibrovascular. Quando a arquitectura de neoformação

epitelial é plana a denominação é de carcinoma “in situ” (13, 121, 124, 125).

Vários esquemas de classificação para o grupo dos carcinomas superficiais da bexiga

foram descritos (Figura 1.16), tendo surgido algumas controvérsias em relação aos critérios de

inclusão e terminologia, particularmente no caso dos tumores de morfologia papilar (126, 127).

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INTRODUÇÃO 23

Figura 1.16 – Correspondência entre a classificação da WHO de 1973, WHO/ISUP de 1998 e WHO de 1999, para os carcinomas uroteliais da bexiga (adaptado de 13) (WHO-World Health Organization, ISUP- International Society of Urological Pathology)

WHO 1973 (128) WHO 1999 (130) WHO/ISUP 1998 (129)

Papiloma Papiloma Papiloma

Carcinoma G1 NUPBPM NUPBPM

Carcinoma GI Carcinoma de baixo grau

Carcinoma G2 Carcinoma GII

Carcinoma G3 Carcinoma GIII

Carcinoma de alto grau

O esquema classificativo WHO/ISUP 1998 (129), equivalente à classificação mais

recente da WHO (2004) (131) distingue papiloma, neoplasia urotelial papilar de baixo

potencial maligno (NUPBPM) e carcinoma papilar de baixo e alto grau. Os principais

objectivos destes esquemas consistiram em eliminar a denominação de “carcinoma” para um

grupo significativo de doentes, por um lado, e criar uma melhor definição de critérios para os

diferentes graus, por outro (13, 132-134).

Os papilomas (128 – 131) são lesões papilares benignas, em que um eixo fibrovascular é

revestido por urotélio praticamente normal, sem figuras mitóticas, embora possa surgir

alguma atipia celular na camada superficial. Representam 1 a 3% das neoplasias da bexiga e

são, na maior parte das vezes, isolados. Surgem, predominantemente, em indivíduos jovens.

Por vezes, ocorrem recidivas (7,6 %), mas não há risco de progressão (13, 135-138).

A neoplasia papilar urotelial de baixo potencial maligno (129-131) (Figura 1.17) é

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INTRODUÇÃO 24

definida por uma lesão em que as papilas são de maior espessura que nos papilomas (mais de

seis camadas), com alguma atipia celular mas

com conservação generalizada da polaridade

celular. As mitoses são raras e limitadas à

camada basal. Ocorrem recidivas em

aproximadamente 26% dos casos, mas o risco

de progressão é baixo (3-4%). No entanto,

estes tumores não são considerados lesões

inteiramente benignas (13, 81, 138-141).

O carcinoma urotelial papilar de baixo

grau (129, 131) (Figura 1.18) caracteriza-se por

uma maior atipia celular que o grupo anterior,

perda de polaridade celular em diversas áreas,

núcleos maiores, mitoses ocasionais e a

qualquer nível. Estes tumores podem invadir a

lâmina própria e têm maior risco de recidiva

(65%) e de progressão (10%-15%) (13, 142).

O carcinoma urotelial papilar de alto

grau (129, 131) (Figura 1.19) caracteriza-se por

um padrão predominante de desordem, com

marcado pleomorfismo nuclear, perda de

polaridade celular, muitas figuras mitóticas e

Figura 1.17 – Neoplasia urotelial papilar de baixo potencial maligno (adaptado de 81)

Figura 1.18 – Carcinoma urotelial papilar de baixo grau (adaptado de 81)

Figura 1.19 – Carcinoma urotelial papilar de alto grau (adaptado de 81)

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INTRODUÇÃO 25

atipia celular. Tem um elevado risco de progressão (65%) (13, 125, 143).

O carcinoma “in situ” (CIS) (Figura

1.20), embora seja um tumor superficial,

caracteriza-se pela presença de células com

núcleo hipercromático, irregular, e aumento

em parte ou na totalidade da espessura do

urotélio. A desorganização celular, com perda

de polaridade, é evidente. Ocorrem figuras

mitóticas nas camadas superficiais, podendo

ser atípicas. Este tumor é definido como uma lesão de alto grau, com um risco elevado de

progressão (81, 125, 138, 144, 145).

Existe uma relação entre o desenvolvimento de carcinoma “in situ” e a

multifocalidade, assim como a presença concomitante de tumores papilares. De facto, 50%

dos CIS são multifocais, e a grande maioria (90%) são encontrados em associação com

formas papilares, o que aumenta a probabilidade de desenvolvimento de tumores invasores −

a ocorrência de CIS é considerada como percursora da variante mais agressiva de carcinoma

urotelial (13, 16, 81, 138, 144).

No que se refere ao estadiamento patológico dos carcinomas uroteliais superficiais,

são frequentes algumas discordâncias inter e intra-observadores. Assim, a presença de ninhos,

agregados ou células isoladas na lâmina própria determinam a ocorrência de invasão desta

zona, permitindo distinguir os tumores Ta dos tumores T1. No entanto, o diagnóstico de

invasão da lâmina própria nem sempre é fácil, pois os artefactos derivados das técnicas

cirúrgicas aplicadas (fragmentação e efeito térmico) são comuns e dificultam a avaliação

Figura 1.20 – Carcinoma urotelial in situ (adaptado de 81)

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INTRODUÇÃO 26

morfológica. Por outro lado, o artefacto de retracção do estroma em redor dos ninhos de

células pode ser confundido com permeação vascular sanguínea ou linfática. O envolvimento

vascular na lâmina própria, embora possível (pois existem plexos de capilares sanguíneos e

linfáticos nesta zona), é raro, devendo, em casos duvidosos, ser confirmado através de

métodos imuno- -histoquímicos (19, 81, 138).

A existência ocasional e descontínua de fibras musculares lisas na lâmina própria

(muscular da mucosa) dificulta, por vezes, o estadiamento dos tumores superficiais. Por um

lado, a presença de células tumorais entre células musculares não implica necessariamente

uma classificação T2 (para tal, o tumor deve invadir inequivocamente feixes musculares

espessos envolvidos por perimísio). É comum a associação estreita da muscular da mucosa a

vasos sanguíneos de grande calibre, sendo tal característica utilizada como critério de

diagnóstico. Por outro lado, uma vez que os tumores T1 têm um comportamento clínico muito

variável, alguns autores propõe a utilidade da identificação da muscular da mucosa no

substadiamento deste grupo de tumores (19, in 81, in 138).

O grupo dos carcinomas uroteliais invasores envolve, como já foi referido, tumores

sólidos de morfologia não papilar que

invadem a parede muscular da bexiga (Figura

1.21) em maior ou menor extensão (T2 – T4,

segundo o sistema TNM) (122), o que confere

potencial de invasão e metastização. Ocorrem

tipicamente em indivíduos sem história prévia

de carcinomas uroteliais papilares, embora

cerca de 10%-15% se originem, por

Figura 1.21 – Carcinoma urotelial invasor (adaptado de 21)

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INTRODUÇÃO 27

progressão, a partir de tumores papilares superficiais de baixo grau de malignidade. São

habitualmente indiferenciados, exibindo características histopatológicas agressivas. Como tal,

estão associados a prognósticos adversos (16, 21, 22).

1.2.3.4. Sintomas e Diagnóstico

O sintoma mais comum de carcinoma da bexiga é a hematúria, ocorrendo em 85% dos

doentes. Outros sintomas envolvendo irritação vesical, frequência urinária aumentada e

disúria são também usuais, principalmente nos casos de carcinomas in situ ou tumores

invasores. Pode também surgir obstrução ureteral com dores lombares e dificuldades

miccionais, edema nas extremidades inferiores e massa pélvica palpável. Sinais de doença

avançada, como perda de peso e dores ósseas, são raros, pois nunca ocorrem sem uma história

prévia de hematúria (18, 81, 124).

Os tumores vesicais são diagnosticados através de citopatologia urinária e cistoscopia.

A ressecção transureteral (RTU), além de ser utilizada como método de diagnóstico, tem

igualmente benefícios terapêuticos. Para tumores invasores, são realizadas a tomografia axial

computorizada (TAC) e/ou a ressonância magnética (RM), de modo a delimitar a gordura

perivesical e avaliar o possível envolvimento ganglionar e a ocorrência de outros padrões de

metastização regional. Métodos de diagnóstico de metástases à distância são utilizados de

acordo com as características de cada caso individual (18, 81, 124).

1.2.3.5. Tratamento e Sobrevivência

A maioria dos carcinomas uroteliais da bexiga corresponde a lesões superficiais

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INTRODUÇÃO 28

papilares (estádios Ta e T1) de baixo grau de malignidade. Estes são facilmente tratados por

RTU, uma técnica cirúrgica bem tolerada e cuja taxa de morbilidade é mínima; o método

remove a neoplasia e preserva a funcionalidade do órgão (18, 21).

O estádio e o grau de diferenciação são variáveis com significado prognóstico, mas o

tamanho do tumor, a ocorrência de multifocalidade e a existência de focos de carcinoma in

situ são igualmente factores que se associam ao aumento das taxas de recidiva e progressão

(16, 18, 22, 146, 147). De facto, os carcinomas superficiais da bexiga são frequentemente

multifocais; aproximadamente 65% recidivam após tratamento, ocorrendo progressão da

doença em 10% - 15% dos casos; metade destes desenvolverão metástases (21, 142, 148, 149).

Assim, a aplicação precoce do tratamento cirúrgico, de quimioterapia intravesical e/ou de

imunoterapia intravesical por BCG (bacilo Calmette-Guérin) traduz-se em taxas de

sobrevivência aos 5 anos de cerca de 90% (16).

A elevada taxa de recidivas associada aos tumores superficiais, particularmente nos

grupos de alto risco (estádios Tis, estádios T1 e Tis concomitantes, estádios T1 de alto grau

ou com elevado índice de proliferação) implica uma monitorização regular dos doentes

através de cistoscopia (21, 22). Assim, são realizadas, por vezes, várias repetições dos

tratamentos cirúrgico e imunoterapêutico (146). Curiosamente, o número de RTUs efectuadas

parece correlacionar-se com um incremento em termos de estádio tumoral, bem como com o

aumento da prevalência de metastização ganglionar (150). A metastização dos gânglios

linfáticos regionais é um evento precoce na disseminação tumoral (151, 152). Como tal, estudos

realizados questionam a continuação da aplicação de tratamentos conservadores em doentes

com tumores superficiais de alto risco após a primeira falência terapêutica. De facto, a

aplicação demasiado tardia da cirurgia radical parece aproximar as taxas de sobrevivência

associadas a tais casos às observadas nos casos de tumores invasores (153-155). May e

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INTRODUÇÃO 29

colaboradores verificaram que as taxas de sobrevivência livre de progressão e de

sobrevivência global (5 anos) num grupo de doentes com carcinomas uroteliais superficiais

tratados conservadoramente foram de 51% e de 50%, respectivamente; no grupo de doentes

com tumores invasores tratados por cirurgia radical, verificaram-se taxas de 49% e 46%,

respectivamente. Por outro lado, tumores superficiais de alto risco tratados inicialmente por

cirurgia radical associaram-se a taxas de sobrevivência livre de progressão e de sobrevivência

global (5 anos) de 77% e 63%, respectivamente (embora ocorra, neste grupo de doentes, perda

de qualidade de vida) (155).

O prognóstico dos carcinomas uroteliais invasores é francamente pior do que o

observado no grupo dos tumores superficiais. O tratamento padrão é a cistectomia radical

associada ao esvaziamento ganglionar pélvico (156). A mortalidade peri-operatória neste grupo

de doentes é baixa (157). Com a associação de esquemas de quimioterapia e/ou radioterapia

neoadjuvante e/ou adjuvante (dependente das características específicas de cada caso) (18, 158-

160), obtêm-se taxas de sobrevivência livre de doença aos cinco anos de 81%, 68%, 47% e

44% para os estádios T2, T3a, T3b e T4, respectivamente (161). É importante que o tratamento

cirúrgico ocorra até três meses após o diagnóstico, pois períodos superiores associam-se a um

pior prognóstico (162, 163).

A taxa de sobrevivência global (5 anos) para neoplasias sem extensão extra-vesical e

sem metástases ganglionares é de 78%, diminuindo para 45% quando estão envolvidos

gânglios linfáticos. Quando há extensão extra-vesical do tumor, as taxas de sobrevivência

global (5 anos) diminuem para 47% (sem envolvimento ganglionar) e 25% (com

envolvimento ganglionar) (164).

O esvaziamento ganglionar pélvico associado à cistectomia radical nem sempre é

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INTRODUÇÃO 30

realizado, dadas as dificuldades técnicas e a falta de concordância sobre a sua dimensão e

efeito terapêutico, sendo controversa a existência de um “gânglio sentinela” (161, 165-170).

Alguns autores sugeriram a relação entre o número de gânglios linfáticos removidos

durante a cistectomia radical e o prognóstico, evidenciando o papel da linfadenectomia no

aumento da taxa de sobrevivência de doentes com carcinomas uroteliais invasores (164, 171-

177). Herr e colaboradores demonstraram que a sobrevivência global é significativamente

maior nos casos cujo número de gânglios linfáticos removidos é superior a 20 (174). Embora

este procedimento possa implicar algumas complicações no período peri-operatório, o

aumento de morbilidade em consequência do esvaziamento ganglionar não é significativo

(172). A densidade de gânglios linfáticos (número de gânglios linfáticos positivos removidos vs

número total de gânglios linfáticos removidos) parece também ser relevante para o

prognóstico (178). Por outro lado, o parâmetro “permeação vascular linfática” tem sido

igualmente proposto como factor de prognóstico (in 179).

Em modelos de cancro como o gástrico (180), colorectal (181), da mama (182), da próstata

(183) e da cabeça e pescoço (184), a linfadenectomia associa-se a uma maior sobrevivência

global e à acuidade no estadiamento.

Assim, torna-se imperativa a realização de ensaios randomizados de modo a

estabelecer consensos quanto à utilidade e dimensão do esvaziamento ganglionar. Por outro

lado, é igualmente importante avaliar os mecanismos biológicos que estão na base da

metastização ganglionar nos carcinomas uroteliais da bexiga, nomeadamente o significado

clínico do processo de linfangiogénese.

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INTRODUÇÃO 31

1.3 SISTEMA VASCULAR LINFÁTICO

Os vertebrados são seres multicelulares com elevadas exigências metabólicas. Como

tal, desde cedo no desenvolvimento embrionário humano existe um sistema vascular

responsável pelo transporte de moléculas distribuidoras de oxigénio. De facto, o sistema

cardiovascular é o primeiro sistema orgânico funcional – no dia 22 pós-fecundação o coração

do embrião começa a bater. Mais tarde, surge, de modo similar, um segundo sistema vascular:

o sistema linfático (185 - 187).

Ao contrário do sistema

vascular sanguíneo, o sistema

vascular linfático não é

circulatório. A corrente linfática

inicia-se em redes capilares de

fundo cego que recolhem fluido e

macromoléculas extravasadas para

os tecidos. Um sistema colector

hierarquicamente organizado é responsável pelo seu transporte unidireccional de retorno à

circulação sanguínea (Figura 1.22) (186, 188, 189).

1.3.1. Resumo Histórico

O estudo e a descrição do sistema vascular linfático iniciaram-se após o sistema

vascular sanguíneo ser conhecido, provavelmente devido à importância e prevalência visual

Figura 1.22 – Relação entre o sistema vascular sanguíneo e o sistema vascular linfático (adaptado de 188)

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INTRODUÇÃO 32

do último (185, 186).

Anatomistas como Hipócrates (460-377 A.C.) e Aristóteles (384-322 A.C.) notaram a

existência de um fluido transparente / esbranquiçado em vasos localizados entre vasos

sanguíneos e nervos periféricos. No entanto, o sistema linfático não era ainda considerado

como entidade independente do sistema cardiovascular. Muito mais tarde (séculos XVII e

XVIII) e com o desenvolvimento de técnicas injectáveis e de dissecção / visualização de

órgãos, começaram a ser clarificadas a anatomia e a drenagem linfática. O sistema linfático

foi reconhecido por Gasparo Aselli, em 1627; este verificou a existência de uma rede de fios

contendo um líquido com aspecto leitoso (venae albae et lacteae) nos intestinos de um cão

submetido a autópsia, e apercebeu-se da sua função de absorção. Em 1628, Brechet

identificou vasos semelhantes em humanos. Seis anos mais tarde, Johann Vesling publicou as

primeiras ilustrações deste sistema. Nas décadas seguintes foi confirmada a sua independência

em relação ao sistema vascular sanguíneo (a circulação sanguínea tinha já sido descrita, no

mesmo século, por William Harvey) (in 185, in 188).

Em 1653, Thomas Bartholin atribuiu a designação de vasos linfáticos (vasa

lymphatica) aos fios com líquido leitoso de Aselli. No mesmo ano, Olaf Rudbeck reconheceu

a existência de válvulas nos vasos linfáticos, além de verificar que estes ocorrem em

diferentes partes do organismo humano. Rudbeck e Bartholin descreveram,

independentemente, a anatomia principal do sistema vascular linfático. Em meados do século

XVIII, William Hunter revelou a importância deste sistema na recolha do fluído intersticial.

No início do século XVIX a anatomia linfática estava quase completamente caracterizada. Em

1862, Von Recklinghausen identificou as células endoteliais linfáticas. No mesmo século,

Carl Ludwig e Ernest Starling comprovaram que o fluído intersticial hoje conhecido como

linfa surge como um produto de filtração do sangue (in 185, in 188).

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INTRODUÇÃO 33

Entretanto, foi reconhecido o papel do sistema vascular linfático como via de

disseminação de células malignas. Astley Cooper, em 1840, verificou este processo em casos

de carcinoma da mama, estabelecendo os primórdios do conceito de linfadenectomia (in 185).

1.3.2. Embriogénese

A formação do sistema vascular linfático inicia-se, por linfangiogénese (tema

explorado no Ponto 1.4), na quinta semana pós-fecundação. A hipótese mais aceite para a

embriogénese deste sistema é a proposta por Sabin, no início do século XX (in 186, in 190).

Segundo esta autora, os sacos linfáticos primitivos originam-se de células endoteliais que se

separam dos vasos sanguíneos. Assim, formam-se dois sacos jugulares, dois sacos ilíacos, um

saco retroperitoneal e a cisterna do quilo. A partir destes forma-se o sistema linfático

periférico, constituído por vasos linfáticos que se desenvolvem lado a lado com as grandes

veias: dos sacos jugulares desenvolvem-se os vasos linfáticos da cabeça e pescoço; a partir

dos sacos ilíacos surgem os vasos

linfáticos da parte inferior do

organismo; do saco retroperitoneal e

da cisterna do quilo originam-se os

vasos linfáticos do intestino e outros

órgãos abdominais. No tórax,

desenvolvem-se os ductos torácicos

direito e esquerdo; por anastomose

entre os dois forma-se o ducto torácico

final (Figura 1.23) (185, 190).

Figura 1.23 – Representação esquemática do sistema linfático primitivo, num embrião humano de 42 dias (adaptado de 190)

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INTRODUÇÃO 34

1.3.3. Organização

A organização básica do sistema linfático envolve vasos linfáticos e órgãos linfóides.

Os vasos linfáticos englobam capilares, vasos colectores, troncos e ductos. O diâmetro destes

vasos está compreendido entre 10 µm e 2 mm. Quase todos os órgãos possuem vasos

linfáticos (o sistema nervoso central e a medula óssea são algumas das excepções). Dos

órgãos linfóides fazem parte os gânglios linfáticos ou linfonodos, o baço e o timo. O tecido

linfóide difuso ou nodular associado aos tractos gastrointestinal, respiratório e genito-urinário

é também considerado como um órgão linfóide, sendo colectivamente conhecido como tecido

linfóide associado às mucosas (MALT – mucosa-associated lymphoid tissue) (as amígdalas e

as placas de Peyer são exemplos de tecido linfóide nodular) (14, 15, 188, 190).

O fluxo linfático inicia-se nas redes de capilares, quando o fluido intersticial é

recolhido dos vários tecidos e órgãos. A drenagem prossegue até aos vasos colectores.

Interpostos nesta circulação, existe um ou vários grupos de gânglios linfáticos, locais onde a

linfa tem acesso à circulação sanguínea através do suprimento vascular sanguíneo do gânglio.

Dentre os grupos de gânglios linfáticos, os principais são os cervicais, os axilares e os

inguinais (Figura 1.24) (186, 188, 191).

Os vasos colectores drenam para os troncos linfáticos, e destes a circulação linfática

prossegue para os ductos, a partir dos quais a linfa retorna à circulação sanguínea. Assim, a

linfa das regiões intestinal, hepática e lombar é direccionada à cisterna do quilo. A partir deste

reservatório colector ascende o ducto torácico, que recebe a linfa do resto do organismo

(excepto do quadrante superior direito – esta drenagem é assegurada pelo ducto linfático

direito em direcção às veias do ângulo júgulo-subclávio direito). Do ducto torácico dá-se o

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INTRODUÇÃO 35

retorno da linfa à circulação sanguínea na junção venosa júgulo-subclávia esquerda.

Completa-se, deste modo, o circuito de transporte do fluido intersticial (Figura 1.24) (186, 188).

Figura 1.24 – Representação esquemática do sistema linfático do indivíduo humano adulto (vermelho - recepção da linfa dos quadrantes inferiores e superior esquerdo pelo ducto torácico; preto - recepção da linfa do quadrante superior direito pelo ducto linfático direito (in 186, adaptado)

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INTRODUÇÃO 36

Em condições fisiológicas e com movimento corporal normal, o organismo produz

cerca de 0,003 ml/min de linfa por 100 kg de tecido. Assim, são drenados para o sistema

vascular sanguíneo dois a três litros de linfa por dia (185).

1.3.4. Morfologia

O sistema linfático inicia-se em capilares de fundo cego, também designados de vasos

linfáticos iniciais ou terminais. O seu diâmetro varia entre 10 a 60 µm. Histologicamente, são

constituídos por endotélio cuja membrana basal é incompleta. As células endoteliais não

apresentam conexões entre elas; apenas se sobrepõem umas sobre as outras, o que permite a

formação de válvulas pendentes (abertas para o interior do capilar) (Figura 1.24) (192, 193). Os

capilares são envolvidos por fibras elásticas, designadas por filamentos de ancoragem. Estes

ligam os capilares aos tecidos conjuntivos circundantes, contribuindo para o desempenho da

função das válvulas (Figura 1.25) (194). Deste modo, o aumento da pressão intersticial provoca

a abertura das

válvulas, e o fluido

intersticial atinge o

lúmen dos capilares;

qualquer refluxo tende

a fechar as válvulas,

impedindo o retorno

da linfa para os

espaços intersticiais.

Assim, a drenagem prossegue para os vasos colectores (185, 186, 188, 189, 191, 195).

Figura 1.25 – Representação esquemática do papel dos filamentos de ancoragem no desempenho da função das válvulas dos capilares linfáticos (adaptado de 188)

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INTRODUÇÃO 37

Figura 1.26 – Vaso colector linfático (adaptado de 14) (V- válvula)

Os vasos colectores são constituídos por três túnicas (íntima, média e adventícia), tal

como os vasos sanguíneos, embora não exista um limite nítido entre as camadas. Assim, a

túnica íntima consiste em endotélio e uma camada subendotelial de fibras de colagénio e

fibras musculares lisas isoladas; a túnica média é rica em fibras musculares lisas dispostas

circularmente; a adventícia é constituída por feixes longitudinais de fibras de colagénio, fibras

elásticas e fibras musculares lisas isoladas (185, 191).

À semelhança dos vasos linfáticos de maior calibre, nos vasos colectores a membrana

basal é completa. Existem

também numerosas válvulas

que auxiliam a propulsão da

linfa (processo igualmente

facilitado pela musculatura

lisa envolvente) e impedem o

seu refluxo (Figuras 1.24 e

1.26) (14, 15, 185, 188).

A drenagem da linfa prossegue dos vasos colectores para os troncos linfáticos e,

posteriormente, para os ductos. A estrutura básica destes dois tipos de vasos é semelhante à

dos vasos colectores, havendo um aumento progressivo do diâmetro; de notar a maior riqueza

em fibras musculares lisas, cuja papel na propulsão da linfa é fundamental (195-197).

Os órgãos linfóides estão, como já foi referido, associados ao sistema linfático. Estes

são constituídos por tecido linfóide, uma variedade muito celular de tecido conjuntivo, que

engloba tecido reticular e células livres; as células são principalmente linfócitos T e B em

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INTRODUÇÃO 38

diferentes fases de maturação, assim

como macrófagos, plasmócitos e

células dendríticas (14, 15). Como tal,

o sistema linfático é parte integrante

do sistema imunitário. Dos órgãos

linfóides, destacam-se os gânglios

linfáticos, pois estes estão interpostos

na circulação linfática e constituem

verdadeiros filtros para a linfa

(Figura 1.27) (188).

Os gânglios linfáticos são

estruturas encapsuladas altamente

organizadas. No organismo humano

existem cerca de 800, variando o seu

tamanho fisiológico de 1 a 30 mm de

diâmetro. A sua estrutura divide-se em três partes (Figura 1.28):

- córtex caracterizado pela presença de linfócitos B organizados em nódulos

linfóides (primários ou secundários, onde existem também células dendríticas

foliculares) entre seios corticais – associado à imunidade humoral,

- paracórtex organizado em cordões e seios intermédios, onde existem,

principalmente, linfócitos T, mas também células dendríticas interdigitais –

associado à imunidade mediada por células,

- medula organizada em cordões e seios medulares, onde existem linfócitos B e

plasmócitos, assim como macrófagos – associada à fagocitose (185, 191, 199).

Figura 1.27 – Relação entre o sistema vascular sanguíneo e o sistema vascular linfático: evidência da interposição dos gânglios linfáticos na circulação linfática (adaptado de 198)

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INTRODUÇÃO 39

Os vasos linfáticos aferentes dos gânglios linfáticos perfuram a cápsula e esvaziam nos

seios sub-capsulares. Através dos seios corticais, a linfa atinge a medula. Aqui, os seios

medulares convergem para o hilo, local onde a linfa drena para os vasos linfáticos eferentes

(14, 15, 185).

Figura 1.28 – Estrutura geral de um gânglio linfático (adaptado de 15)

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INTRODUÇÃO 40

O suprimento sanguíneo do gânglio linfático deriva de uma ou mais artérias que

entram no hilo e se ramificam na medula. Assim, os linfócitos que entram no gânglio linfático

a partir da circulação arterial acedem à circulação linfática ao migrarem através das paredes

de vénulas de endotélio alto (VEA) para o tecido linfóide, saindo do gânglio pelo vaso

linfático eferente. Deste modo, ocorre uma recirculação de linfócitos entre o sangue, o tecido

linfóide e a linfa. A Figura 1.29 evidencia este processo, bem como outros aspectos relacio-

nados com a estrutura e funções desempenhadas pelos gânglios linfáticos (14, 15, 185, 188, 199).

1.3.5. Funções

O sistema vascular linfático é uma via acessória do sistema vascular sanguíneo e,

Figura 1.29 – Representação esquemática de um gânglio linfático (as diversas estruturas / funções estão representadas em diferentes compartimentos, para facilidade de compreensão (adaptado de 199)

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INTRODUÇÃO 41

como tal, os dois actuam em paralelo. De um modo geral, desempenha as seguintes funções

(185, 186, 188, 189, 195):

- drenagem do fluido intersticial,

- promoção da defesa imunitária (celular e humoral),

- absorção de nutrientes.

Sendo o coração uma bomba propulsora do sangue, a pressão sanguínea existente ao

nível das redes capilares é ainda elevada. Como tal, 20 a 30 litros de plasma extravasam, por

dia, constituindo a maior parte do fluido intersticial (cerca de 90-95%); a restante parte (5-

10%) resulta de processos aeróbios do metabolismo celular. Forças osmóticas promovem a

reabsorção de 90% deste fluido directamente para a corrente sanguínea (no terminal venoso

dos capilares ou nas vénulas pós-capilares). Os vasos linfáticos terminais drenam os restantes

10% através do sistema linfático, promovendo o retorno da linfa ao sistema cardiovascular

(185, in 186).

A linfa corresponde ao fluido intersticial que circula dentro dos vasos linfáticos, tendo

composição idêntica à do plasma. No entanto, devido ao efeito de filtração capilar, a

concentração proteica é mais baixa (2/3). Para a formação da linfa contribuem forças locais

como a elevação da pressão do fluido intersticial e a compressão da matriz extracelular. Para a

propulsão linfática actuam forças sistémicas, tais como a respiração, a pressão sanguínea, a

contracção dos músculos esqueléticos, entre outros. A contracção involuntária da parede mus-

cular lisa dos vasos linfáticos (à excepção dos capilares) é igualmente fundamental para este

processo. Por outro lado, as válvulas impedem o refluxo da linfa (185, 186, 188, 192, 183, 195-197).

A pequena drenagem linfática é vital para o organismo ao baixar a concentração

proteica média dos tecidos, promovendo o decréscimo da pressão que previne a formação de

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INTRODUÇÃO 42

edema local com toxicidade tecidular (185).

Além de regular o balanço de fluidos tecidulares, o sistema linfático é, como já foi

referido, parte integrante do sistema imunitário. A distribuição de vasos linfáticos e tecido

linfóide é prevalente em locais que apresentam contacto directo com o meio exterior, como a

pele e os tractos gastrointestinal e respiratório. Tal é reflexo do papel protector do sistema

linfático contra possíveis antigénios. Assim, partículas e microrganismos absorvidos dos

interstícios em conjunto com o fluido intersticial seguem o mesmo trajecto que a linfa ao

longo dos vasos linfáticos. Nos gânglios linfáticos interpostos ao longo da circulação linfática,

ocorre a filtração inespecífica desses materiais pelos macrófagos. Por outro lado, e em

colaboração com as células apresentadoras de antigénios (macrófagos e células dendríticas), a

interacção dos linfócitos circulantes com a linfa promove a iniciação da resposta imunitária

humoral e/ou celular (14, 186, 188, 200).

Os vasos linfáticos existentes ao nível do intestino representam uma das principais

vias de absorção de nutrientes. De facto, ocorre uma competição entre os capilares linfáticos e

os capilares sanguíneos no transporte de triglicéridos e compostos lipofílicos à circulação

sistémica. Moléculas de alto peso molecular e colóides são preferencialmente absorvidos pela

corrente linfática devido à estrutura permeável dos vasos linfáticos intestinais,

especificamente designados de vasos quilíferos (186, 189).

1.3.6. Drenagem Linfática da Bexiga

A drenagem linfática da bexiga é realizada por um sistema de vasos linfáticos e

gânglios linfáticos separados em diferentes áreas (Figuras 1.30, 1.31 e 1.32) (in 175). Assim,

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INTRODUÇÃO 43

existe um rico plexo de

capilares linfáticos que

inicia na camada mucosa e

se estende, aumentando em

número e em tamanho, às

regiões intramuscular e

extramuscular (in 175, 191,

201). Este aumento no

sentido luminal-basal ocorre

porque a distensão da

bexiga provoca um

incremento da pressão

intraluminal na mucosa, o

que comprime os capilares

linfáticos mais superficiais,

restringindo a circulação

linfática nesta zona (202).

Nas regiões anterior,

lateral e posterior do

pericisto, interpostos ao

longo dos vasos colectores,

reúnem-se grupos de

pequenos gânglios linfáti-

cos. Os vasos colectores Figura 1.31 – Linfangiograma que mostra os vasos linfáticos e gânglios linfáticos das regiões aórtica lateral e ilíaca (adaptado de 191)

Figura 1.30 – Drenagem linfática da bexiga (adaptado de 191)

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INTRODUÇÃO 44

formam três grupos. Aqueles que provêm da base da bexiga drenam para os gânglios

linfáticos ilíacos externos e internos (estes últimos também designados de hipogástricos). Os

vasos da superfície superior e inferolateral dirigem-se aos gânglios linfáticos ilíacos externos.

Os vasos do colo passam para os gânglios linfáticos sacrais e ilíacos comuns. Os gânglios

sacrais, assim com um gânglio obturador que pode ocorrer no canal obturador, são ambos

membros externos do grupo ilíaco interno (in 175, 191).

Os gânglios linfáticos ilíacos externos, ilíacos internos, ilíacos comuns e sacrais

correspondem a grupos regionais estreitamente relacionados com as artérias ilíacas e as suas

ramificações. Os ilíacos comuns agrupam-se em torno da artéria, drenando os ilíacos externos

e internos (incluindo os

sacrais) e enviando

ramos eferentes para os

gânglios linfáticos aórti-

cos laterais (flanqueiam

a parte abdominal da

aorta). Os vasos eferen-

tes destes gânglios linfá-

ticos lombares formam

um tronco lombar de

cada lado, ambos termi-

nando na confluência

dos troncos linfáticos – a

cisterna do quilo – a partir da qual ascende o ducto torácico, cuja drenagem ocorre na

confluência júgulo-subclávia esquerda (in 175, 191).

Figura 1.32 – Confluência dos gânglios aórticos laterais na cisterna do quilo e drenagem ao ducto torácico (adaptado de 191)

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INTRODUÇÃO 45

1.3.6.1. Gânglios Linfáticos atingidos no Carcinoma da Bexiga e Significado

da Linfadenectomia

Em muitos tipos de tumores, o transporte de células malignas através dos vasos

linfáticos, segundo as vias de drenagem normais, é o modo mais habitual de disseminação

(204). A metastização dos gânglios linfáticos regionais ocorre precocemente na disseminação

tumoral sistémica (151, 152).

No carcinoma da bexiga, os grupos ganglionares mais atingidos são os que

correspondem aos locais de drenagem primária (in 175, 191, 205). Smith e Whitmore verificaram

envolvimento dos gânglios linfáticos ilíacos internos / obturador em cerca de 74% de casos

submetidos a cistectomia radical. Os gânglios ilíacos externos estavam envolvidos em 65%

dos tumores da bexiga estudados. Em relação aos gânglios ilíacos comuns – locais de

drenagem secundária – ocorreu envolvimento em 20% dos casos. Estes investigadores

sugeriram a importância da realização de linfadenectomias extensas na remoção de potenciais

metástases (205). Os estudos mais recentes apontam para a necessidade de dissecções

ganglionares que incluam os gânglios linfáticos ilíacos comuns, bem como o grupo de

gânglios pré-sacrais (206-208). Por outro lado, a realização de linfadenectomias bilaterais

implica benefícios terapêuticos, mesmo nos casos de tumores unilaterais (170, 206, 209).

Esvaziamentos ganglionares acima da bifurcação da artéria aorta são menos frequentemente

realizados, permanecendo controverso o seu significado prognóstico (175).

A extensão do esvaziamento ganglionar determina o número de gânglios linfáticos

removidos durante a cistectomia radical. Assim, com o alargamento dos limites da

linfadenectomia, é mais provável que seja removido um número superior de gânglios. O

significado prognóstico deste parâmetro não está ainda completamente estabelecido. Herr e

colaboradores demonstraram, como já foi referido (Ponto 1.2.3.5), que a sobrevivência global

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INTRODUÇÃO 46

é significativamente maior em casos cujo número de gânglios removidos seja superior a 20

(174). No entanto, as dificuldades técnicas inerentes a este processo são significativas. Numa

análise multivariada, o número de esvaziamentos ganglionares realizados por um cirurgião

individual foi um dos factores de prognóstico mais importante, implicando ganhos na

sobrevivência do grupo de doentes submetidos a cistectomia radical (210). Considera-se que,

após a realização de, pelo menos, dez cistectomias radicais prévias, o cirurgião adquire as

capacidades técnicas que lhe permitem remover 10-14 gânglios linfáticos num esvaziamento

ganglionar associado à cistectomia (211).

1.3.7. Patologias

Dadas as importantes funções biológicas desempenhadas pelo sistema vascular

linfático, disfunções da sua normal fisiologia associam-se a inúmeras patologias.

O desequilíbrio entre o processo de formação do fluido intersticial e a sua absorção

para os capilares linfáticos resulta em insuficiência vascular linfática, o que causa edema. Para

tal contribuem fenómenos como o desenvolvimento anormal ou lesões nos vasos linfáticos,

bloqueio dos gânglios linfáticos (por células malignas, por exemplo), desregulação das forças

osmóticas intersticiais, danos nas conexões linfático-intersticiais ou alterações nas

propriedades mecânicas / composição da matriz extracelular. Ocorre, deste modo, estagnação

de proteínas e água nos interstícios, iniciando-se uma reacção inflamatória que conduz a

fibrose, alteração da resposta imunitária e degeneração de tecido adiposo (202, 203).

O linfedema pode ser consequência de infecções (filaríase, por exemplo) ou situações

de trauma (queimaduras, radiação, linfedema pós-cirúgico). Casos de linfedema congénito ou

primário são raros; estes manifestam-se com o nascimento (doença de Milroy) ou no início da

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INTRODUÇÃO 47

puberdade (doença de Meige) (in 186, 188, 189, 202-204, 212, 213).

Neoplasias derivadas do sistema linfático incluem linfangiomas e linfangio-sarcomas.

Os linfangiomas são lesões benignas, constituindo massas multicísticas de canais linfáticos

dilatados (212, 214). Os linfangio-sarcomas são lesões malignas com origem nas células

endoteliais dos vasos linfáticos; surgem, frequentente, como uma complicação de edema pós-

mastectomia (215). Alguns autores sugerem que as células que constituem o sarcoma de

Kaposi são igualmente de origem endotelial linfática (216, 217).

O sistema vascular linfático corresponde, como já foi referido, a uma das principais

vias para a metastização tumoral. Assim, as células malignas permeiam capilares linfáticos e

circulam juntamente com a linfa, colonizando gânglios linfáticos regionais e originando

tumores secundários (in 186, 188, 189, 203, 204, 212, 213). A presença de vasos linfáticos peri- e

intratumorais relaciona-se, em vários modelos de cancro, com o processo de formação de

novos vasos a partir de vasos linfáticos pré-existentes – linfangiogénese (218-220). McCarter e

colaboradores referem que a linfangiogénese tumoral é tão crítica para a metastização como a

angiogénese tumoral para o crescimento e sobrevivência do tumor primário (221). No entanto,

o seu papel no processo de metastização não está ainda completamente clarificado (152, 204, 222,

223). Para Pepper, algumas questões essenciais permanecem por resolver (204):

- A linfangiogénese e a dilatação dos vasos linfáticos formados de novo aumenta a

probabilidade de disseminação tumoral em relação à permeação tumoral de vasos

linfáticos pré-existentes?

- Quais os mecanismos moleculares subjacentes ao processo de linfangiogénese e à

dilatação dos vasos linfáticos formados de novo?

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INTRODUÇÃO 48

- O processo de permeação vascular linfática é análogo ao processo de permeação

vascular sanguínea?

- A inibição da linfangiogénese poderá constituir uma estratégia terapêutica de

bloqueio da disseminação tumoral e da formação de metástases?

A descoberta de factores linfangiogénicos e a identificação de marcadores específicos

permitiram avanços substanciais no conhecimento dos mecanismos moleculares subjacentes a

este processo, abrindo horizontes para a eventual aplicação de estratégias de terapia anti-

linfangiogénica em doentes com cancro (224-226).

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INTRODUÇÃO 49

1.4 LINFANGIOGÉNESE

O desenvolvimento vascular embrionário envolve uma séria coordenada de eventos

como a diferenciação de células endoteliais e a sua subsequente proliferação, migração e

maturação, resultando numa rede organizada de vasos (227, 228). Na embriogénese humana são

formados dois sistemas vasculares: o vascular sanguíneo e o vascular linfático.

A linfangiogénese corresponde à sequência de eventos que iniciam e coordenam a

formação de vasos linfáticos (186, 188, 189, 213). Durante a embriogénese, o desenvolvimento dos

vasos linfáticos inicia-se na quinta semana pós-fecundação, após ter sido estabelecida a

circulação vascular sanguínea. De facto, a formação de vasos linfáticos depende, segundo a

hipótese proposta por Sabin (já referida no Ponto 1.3.2), da existência prévia de vasos

sanguíneos (in 186, in 190).

1.4.1. Da Angiogénese à Linfangiogénese

A formação de vasos sanguíneos compreende três mecanismos distintos. Assim, por

vasculogénese desenvolve-se uma rede imatura de canais endoteliais a partir da agregação de

células endoteliais progenitoras (hemangioblastos) em ilhotas sanguíneas; aqui, as células

centrais diferenciam-se em células hematopoiéticas, enquanto que as células periféricas

diferenciam-se em angioblastos, os percursores das células endoteliais. Em paralelo,

desenrola-se o processo de angiogénese, através do qual ocorre a remodelação e expansão da

rede capilar primitiva numa estrutura funcional, hierarquicamente organizada em vasos de

calibres variados (Figura 1.33). A arteriogénese envolve o recrutamento e organização de

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INTRODUÇÃO 50

células não endoteliais em

redor da camada de células

endoteliais dos vasos

sanguíneos (in 186, 227, 228, in

229).

O sistema vascular

sanguíneo existe, no indiví-

duo adulto, num estado quiescente. De facto, a vasculogénese restringe-se ao

desenvolvimento embrionário, e apenas alguns processos fisiológicos no adulto implicam

angiogénese (relacionados com o sistema reprodutor feminino e com a cicatrização, por

exemplo). Por outro lado, a maquinaria angiogénica pode ser recrutada por processos

patológicos como o crescimento tumoral (230, 231), sendo a angiogénese patológica uma das

características essenciais do fenótipo de malignidade (2). Durante a fase pré-vascular, o tumor

permanece pequeno (até 1-2 mm); os vasos sanguíneos circundantes asseguram o suprimento

de oxigénio e nutrientes necessários à sua sobrevivência (Figura 1.34, A). No entanto, a

expansão da massa tumoral é angiogénese-dependente. Como resposta compensatória à

hipóxia, são libertados factores pró-angiogénicos pelas células malignas, e o tumor adquire o

Figura 1.33 – Vasculogénese versus angiogénese (adaptado de 212)

Figura 1.34 – Angiogénese patológica (A- fase pré-vascular do tumor maligno; B- fase vascular do tumor maligno) (adaptado de 233)

A B

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INTRODUÇÃO 51

seu próprio suprimento sanguíneo. O crescimento tumoral é, deste modo, promovido, bem

como o potencial de invasão e a capacidade de metastização por via hematogénia (Figura

1.34, B) (229-232).

Como já foi referido, a formação do sistema vascular linfático depende da existência

prévia de vasos sanguí-

neos. Assim, a linfangio-

génese embrionária ocor-

re por diferenciação de

células endoteliais linfá-

ticas a partir de endotélio

vascular sanguíneo, com

posterior proliferação,

migração e maturação

(Figura 1.35). Vários

estudos recentes supor-

tam o modelo apresentado por Sabin, propondo a existência de factores pró-linfangiogénicos

responsáveis pelo estabelecimento da identidade linfática e desenvolvimento do sistema

vascular linfático (234-240).

No indivíduo adulto, tal como o endotélio vascular sanguíneo, as células endoteliais

linfáticas existem num estado quiescente (Figura 1.36, A). No entanto, os fenómenos de

angiogénese fisiológica e patológica são, geralmente, acompanhados por linfangiogénese

(agora entendida como a formação de novos vasos linfáticos a partir de vasos linfáticos pré-

existentes). Deste modo, durante o processo de cicatrização, surgem vasos linfáticos no tecido

Figura 1.35 – Formação de vasos linfáticos a partir da diferenciação de células endoteliais sanguíneas em células endotelias linfáticas (adaptado de 212)

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INTRODUÇÃO 52

de granulação em paralelo com os vasos sanguíneos, de modo a prevenir a formação de

edema (Figura 1.36, B) (241). Por outro lado, embora a linfangiogénese tumoral se verifique

em vários modelos de cancro (218-221), não está necessariamente equilibrada com a

angiogénese (212), sendo questionada a existência de vasos linfáticos intratumorais (242).

Estudos divergentes serão explorados após a clarificação dos mecanismos moleculares

subjacentes ao estabelecimento da identidade linfática e sua regulação no desenvolvimento de

vasos linfáticos funcionais.

1.4.2. Estabelecimento da Identidade Linfática

Um século após a hipótese de Sabin acerca da embriogénese do sistema vascular

linfático, estudos genéticos suportam um modelo de desenvolvimento em que células

endoteliais sanguíneas respondem a sinais indutores linfáticos, diferenciam-se na linhagem

linfática e produzem os primórdios dos vasos linfáticos (212). O factor de transcrição Prox-1

(prospero related homeobox gene-1) e o factor de crescimento da família VEGF (vascular

Figura 1.36 – Angiogénese versus linfangiogénese no indivíduo adulto (A- estado quiescente; B- angiogénese e linfangiogénese fisiológicas) (adaptado de 212)

A B

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INTRODUÇÃO 53

endothelial growth factor) – VEGF-C – desempenham um papel crítico na activação e

diferenciação do endotélio sanguíneo em endotélio linfático, para posterior formação dos

sacos linfáticos primitivos (in 189, in 203, in 213, 234-240).

1.4.2.1. Prox-1

O gene Prox-1 humano codifica uma proteína de 83 kDa (243) essencial na iniciação da

linfangiogénese e na determinação de um destino linfático. No ratinho, a sua expressão é

detectada, de modo polarizado, num grupo de células endoteliais das veias cardinais no dia

embrionário (E) 9.5. Estas células emergem, como brotos, das veias cardinais, originando os

sacos linfáticos primitivos. Assim, a acção de Prox-1 nas células endoteliais sanguíneas

resulta numa alteração do perfil genético esperado para um fenótipo sanguíneo. Em ratinhos

de genótipo Prox-1 nulo não ocorre esta diferenciação, verificando-se ausência de expressão

de marcadores de endotélio linfático. Por outro lado, ocorre expressão de marcadores de

endotélio sanguíneo, o que sugere que estas células, na ausência de Prox-1, não são

comprometidas a um fenótipo linfático (in 189, in 203, in 213, in 226, 235-238).

1.4.2.2. VEGF-C – Membro da Família VEGF

A família VEGF é constituída por um conjunto de proteínas homodiméricas

estruturalmente relacionadas: VEGF-A (normalmente designada por VEGF), VEGF-B,

VEGF-C, VEGF-D, VEGF-E (homólogo viral de VEGF) e PlGF (placenta growth factor).

Todos os membros desta família contêm um domínio de homologia composto por

aproximadamente 100 aminoácidos e caracterizado por 8 resíduos conservados de cisteína

(Figura 1.37). Cada VEGF é caracterizado por um perfil individual de ligação a um receptor,

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INTRODUÇÃO 54

o que determina a sua gama de efeitos biológicos. Assim, estes factores de crescimento

formam ligandos de alta afinidade para receptores de tirosina-cinase da família VEGFR (in 186,

229, 244 - 248).

O primeiro membro da família VEGF a ser caracterizado – VEGF-A ou VEGF – é um

potente mitogénio de células endoteliais sanguíneas, constituindo o principal mediador da

angiogénese; além disso, promove a extravasão de proteínas plasmáticas (nomeadamente

fibrina) para o espaço intersticial (este factor é também conhecido por VPF – vascular

permeability factor) (in 186, in 229, in 244, in 247, 249-253, in 254). O aumento da permeabilidade

vascular parece ser essencial para a angiogénese associada à cicatrização, bem como a um

fenótipo maligno (251, 252). O gene que codifica este factor de crescimento está organizado em

oito exões; por splicing alternativo, são geradas, pelo menos, seis diferentes isoformas, sendo

a isoforma VEGF165 a mais comum e também a mais importante na indução da angiogénese

Figura 1.37 – Sequência de aminoácidos dos factores de crescimento VEGF, VEGF-B, VEGF-C, PlGF e VEGF-E (homólogo viral) (adaptado de 238) (vermelho- resíduos conservados de cisteína)

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INTRODUÇÃO 55

(in 186, in 229, in 244, in 247, 250, 251, in 254, 255).

A proteína VEGF-B, estruturalmente semelhante a VEGF e a PlGF, é produzida em

grandes quantidades no miocárdio, no músculo esquelético, no osso, no pâncreas, na glândula

supra-renal e na camada de músculo liso de vasos sanguíneos de grande calibre. O seu

receptor localiza-se quase exclusivamente nas células endoteliais. Assim, o VEGF-B parece

regular, de modo parácrino, a função destas células (in 186, in 229, in 244, in 247, 256). Por outro

lado, a proteína PlGF, descoberta na placenta humana, parece ser um potenciador de

angiogénese decorrente de isquémia, enfartes do miocárdio e tumores (in 186, in 229, 257, 258).

Os factores de crescimento VEGF-C e VEGF-D diferem dos outros membros da

família VEGF devido à existência de longas extensões dos terminais amina (NH2) e

carboxílico (COOH) a flanquear o domínio de homologia; são sintetizados como pró-

péptidos, sofrendo

subsequente processa-

mento proteolítico. O

padrão de expressão

destes factores envol-

ve vários tipos de

células e tecidos du-

rante a vida embrioná-

ria, a via pós-embrio-

nária e estados patoló-

gicos (Figura 1.38).

Figura 1.38 – Padrão de expressão dos factores de crescimento VEGF-C e VEGF-D, e evidência do seu processamento proteolítico (adaptado de 152)

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INTRODUÇÃO 56

Ambos constituem potentes mitogénios de células endoteliais linfáticas; no entanto, o VEGF-

C é um factor quimiotáctico essencial para a linfangiogénese embrionária, enquanto que a

delecção de Vegfd parece não afectar o desenvolvimento dos vasos linfáticos primitivos (in 152,

in 186, in 189, in 203, in 204, in 213, in 229, 240, in 247, 259-262).

Ratinhos Vegfc-/- demonstraram ausência completa de vasos linfáticos, morrendo após

o E15.5. As células endoteliais sanguíneas Prox-1+ destes ratinhos permanecem associadas à

veia cardinal e acabam por desaparecer (240). Assim, a actividade de Prox-1 parece ser

necessária ao comprometimento linfático, enquanto que a expressão de VEGF-C está

associada aos eventos de formação de brotos a partir das células endoteliais comprometidas

ao fenótipo linfático (Figura 1.39) (189).

O desenvolvimento

subsequente da vasculatura

linfática envolve a separa-

ção dos dois sistemas vas-

culares – sanguíneo e linfá-

tico – e a maturação dos

vasos linfáticos. A regula-

ção molecular desses pro-

cessos envolve a expressão

coordenada de genes distin-

tos dos envolvidos nos even-

tos iniciais de linfangiogéne-

se (Figura 1.39) (in 189, in 203). Figura 1.39 – Modelo para o desenvolvimento do sistema vascular linfático do ratinho (adaptado de 203)

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INTRODUÇÃO 57

1.4.3. Regulação Molecular da Linfangiogénese

Os eventos moleculares envolvidos na linfangiogénese, quer na vida embrionária quer

no estado adulto, implicam a interacção de factores linfangiogénicos com os receptores

associados. Neste contexto, o VEGF-C e o VEGF-D, mitogénios de células endoteliais

linfáticas, formam ligandos de alta afinidade para o VEGFR-3, um membro da família de

receptores de tirosina-cinase VEGFR (vascular endothelial growth factor receptor). Além

destas moléculas, outros factores estão igualmente envolvidos em diferentes estádios da

linfangiogénese (Figura 1.39) (in 186, in 189, in 203, in 204, in 213, in 226, in 229, 234, 263-265).

1.4.3.1. VEGFR-3 – Membro da Família VEGFR

A família VEGFR inclui o VEGFR-1 (Flt-1), o VEGFR-2 (KDR) e o VEGFR-3 (Flt-

4). Estes receptores pertencem à sub-família PDGFR (platelet-derived growth factor

receptor) de receptores de tirosina-cinase. Caracterizam-se por possuírem uma porção

extracelular de sete domínios homólogos de imunoglobulinas, uma região transmembranar e

um domínio intracelular de tirosina-cinase. Os três genes respectivos sofrem splicing

alternativo, produzindo-se diferentes isoformas (186, in 247, in 248, 260, in 267, in 268).

A actividade de tirosina-cinase dos VEGFRs é estimulada por ligandos específicos da

família VEGF. Assim, o VEGF liga-se ao VEGFR-1 e ao VEGFR-2; o VEGF-B e o PlGF

ligam-se unicamente ao VEGFR-1; o VEGF-C e o VEGF-D são ligandos específicos para o

VEGFR-3, embora as formas processadas possam também ligar-se, com menor afinidade, ao

VEGFR-2; o VEGF-E liga-se apenas ao VEGFR-2. Por outro lado, as neuropilinas (NRP)

(glicoproteínas transmembranares identificadas em axónios) parecem actuar como co-

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INTRODUÇÃO 58

Figura 1.40 – Interacção entre os membros da família VEGF e seus receptores (adaptado de 229)

receptores funcionais para alguns

membros da família VEGF. A

NRP-1 interage com o VEGF-B,

o PlGF, o VEGF-E e a isoforma

VEGF165, enquanto que a NRP-2

liga preferencialmente o VEGF-C

(Figura 1.40) (in 186, in 229, in 247, in

248, in 267, in 268, in 269).

Os mecanismos de

regulação e os padrões de

expressão dos vários VEGFRs

diferem. Assim, o VEGFR-1 e o

VEGFR-2 são expressos quase

exclusivamente por endotélio vascular sanguíneo (as células endoteliais linfáticas também

expressam o VEGFR-2) e por percursores hematopoiéticos; por outro lado, o VEGFR-3 é

amplamente expresso em estádios precoces da vasculatura sanguínea embrionária, tornando-

se praticamente restrito ao endotélio vascular linfático em estádios mais tardios do

desenvolvimento embrionário e na vida adulta (in 204, 234, in 247, in 248, in 267, in 268).

O VEGFR-3 foi um dos primeiros marcadores de endotélio vascular linfático a ser

caracterizado. Na vida embrionária, embora a sua expressão também se verifique, como já foi

referido, em células endoteliais sanguíneas (ratinhos Vegfr3-/- morrem no E9.5 devido a falhas

na remodelação do plexo vascular primário (270)), ocorre restrição aos vasos linfáticos

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INTRODUÇÃO 59

primordiais após o comprometimento linfático mediado por Prox-1 (234). Tal envolve a

interacção deste receptor com um dos ligandos específicos, o VEGF-C. A ligação do VEGF-C

ao VEGFR-3 promove a dimerização do receptor e a transfosforilação dos domínios

intracelulares. Desencadeia-se, assim, uma cascata de eventos que, através de um reajuste da

expressão genética, conduz a um aumento da proliferação e sobrevivência de células

endoteliais linfáticas (in 226, in 248, in 267, in 271).

No ratinho, a inibição do VEGFR-3 através da expressão de uma proteína VEGFR-3

solúvel (início no E15) induziu a regressão do desenvolvimento da vasculatura linfática por

apoptose das células endoteliais linfáticas (272). Por outro lado, em ratinhos adultos a inibição

do VEGFR-3 apenas bloqueia a formação de novos vasos linfáticos, não afectando a

sobrevivência e funcionalidade dos vasos linfáticos pré-existentes (273). Provavelmente, no

estado adulto ocorre a influência de factores de sobrevivência adicionais (in 213).

O papel do VEGFR-3 no desenvolvimento do sistema vascular linfático foi igualmente

demonstrado através da identificação de mutações pontuais no gene Vegfr3 em doentes com

linfedema hereditário (doença de Milroy), uma desordem autossómica dominante

caracterizada por hipoplasia de vasos linfáticos cutâneos (274).

O padrão de expressão do VEGFR-3 no estado adulto, para além de células endoteliais

linfáticas, engloba capilares fenestrados e veias presentes em certos órgãos endócrinos,

monócitos, macrófagos e algumas células dendríticas (275-277).

1.4.3.2. Outros Factores Linfangiogénicos

Vários factores linfangiogénicos adicionais aos já descritos estão totalmente ou

parcialmente caracterizados, bem como o seu papel no desenvolvimento de vasos linfáticos.

Tal possibilitou a elaboração de um painel de marcadores englobando algumas destas

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INTRODUÇÃO 60

moléculas, cuja expressão se mantém, na vida pós-natal, bastante restrita ao endotélio

vascular linfático (204, 269).

O LYVE-1 (lymphatic vessel endothelial hyaluran receptor-1) é uma proteína integral

de membrana, homóloga do CD44, cuja expressão se restringe, quase exclusivamente, a

células endoteliais linfáticas e a macrófagos (278, 279). Embora também seja detectado, por

exemplo, em células endoteliais de sinusóides esplénicos (no ratinho e no ser humano) (280), o

LYVE-1 não é expresso pelos vasos sanguíneos da maioria dos órgãos (279).

O padrão de expressão do LYVE-1 na vida embrionária revela o seu papel

preponderante nos eventos iniciais de linfangiogénese. Assim, aquando do estabelecimento da

identidade linfática, este marcador é uniformemente expresso no endotélio das veias cardinais,

antecedendo o Prox-1. Tal determina no endotélio vascular sanguíneo uma competência

adicional – a competência linfática. Posteriormente, a expressão polarizada de Prox-1 indica

que a linfangiogénese começou. Nesta altura, o padrão de expressão de LYVE-1 altera de

uniforme para polarizado: o marcador continua expresso no lado comprometido ao fenótipo

linfático pelo Prox-1, enquanto que a sua expressão no lado contra-lateral desaparece. As

células endoteliais linfáticas em migração passam a expressar, além do Prox-1 e do LYVE-1,

marcadores adicionais de especificação linfática, nomeadamente o VEGF-C. Formam-se,

assim, os sacos linfáticos primitivos (Figuras 1.39 e 1.41) (189, 190, in 203, 236).

No adulto, ocorre diminuição da expressão do LYVE-1 nos vasos linfáticos colectores,

mas nos capilares linfáticos mantém-se uma taxa de expressão elevada (281). O movimento do

hialurano (glicosaminoglicano da matriz extracelular) através do endotélio linfático parece ser

mediado via LYVE-1. De facto, este marcador distribui-se igualmente nas faces basal e

luminal de células endoteliais de capilares linfáticos, o que suporta o seu envolvimento no

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INTRODUÇÃO 61

transporte do hialurano do

espaço intersticial para a

corrente linfática (279). Por

outro lado, é provável que a

interacção entre o hialurano e

o LYVE-1 regule a migração

de leucócitos e até de células

tumorais através dos capilares

linfáticos, promovendo a

disseminação aos gânglios linfáticos regionais (282).

A proteína tirosina-cinase Syk (protein-tyrosine kinase SYK) e a proteína adaptadora

SLP-76 (SH2 domain-containing leucocyte protein, 76-kDa) são expressas, maioritariamente,

nas linhagens hematopoiéticas. Mutações nos genes correspondentes induziram a formação de

conexões arterio-venosas no ratinho, devido a falhas na comunicação entre os vasos

sanguíneos e os vasos linfáticos. As células endoteliais sanguíneas ou linfáticas não

expressavam estes marcadores. Como tal, é provável a necessidade de uma via de sinalização

hematopoiética para a separação dos dois sistemas vasculares (Figura 1.39) (in 203, in 226, 283).

O papel das angiopoietinas (Ang) no processo de angiogénese é conhecido (in 284). No

entanto, a sua função como factores linfangiogénicos não está completamente clarificada.

Estas moléculas ligam-se a dois receptores da família Tie (tyrosine kinase with

immunoglobulin and EGF homology domais) – Tie1 e Tie2 – que são expressos por células

endoteliais sanguíneas e linfáticas. A função agonista da Ang2 sobre o receptor Tie2 parece

Figura 1.41 – Modelo para o desenvolvimento do sistema vascular linfático – eventos iniciais (adaptado de 190)

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INTRODUÇÃO 62

ser necessária para a manutenção do sistema vascular linfático (Figura 1.39). Ratinhos de

genótipo Ang2 nulo desenvolvem edema subcutâneo logo após o nascimento. Por outro lado,

a ligação da Ang1 ao Tie-2 induz a expansão de vasos linfáticos no adulto, através de uma

provável interacção com o VEGFR-3 (in 189, in 203, in 213, in 226, 285-287).

A família de receptores Eph (ephrin receptors) engloba um grupo de proteínas

transmembranares com actividade de tirosina-cinase. As efrinas (Eph – ephrins)

correspondem aos ligandos para estes receptores, dividindo-se em duas classes estruturais –

efrinasA e efrinasB – que diferem no modo de ancoragem à membrana plasmática. A

interacção entre ligandos e receptores influencia, entre outros eventos, o desenvolvimento de

vasos sanguíneos (in 226, in 229, 288).

Makinen e colaboradores, induzindo uma delecção no gene da EphB2 em ratinhos,

verificaram anomalias na maturação de vasos linfáticos, nomeadamente na formação de

válvulas, o que resultou em fluxo linfático retrógado. Tal demonstrou o possível papel

adicional destas moléculas no desenvolvimento do sistema vascular linfático (Figura 1.39) (in

203, in 226, 289).

O factor de transcrição FOXC2 (Forkhead Box C2) foi inicialmente associado à

regulação do metabolismo de adipócitos (290). No entanto, a identificação de mutações no

gene FOXC2 em indivíduos com síndrome de distiquíase-linfedema (desordem autossómica

dominante) revelou o papel deste factor na maturação do sistema vascular linfático (Figura

1.39) (291). Esta molécula é sobre-expressa em todos os vasos linfáticos em desenvolvimento

no embrião; no adulto, as taxas de expressão mais elevadas ocorrem nas células endoteliais

das válvulas linfáticas. Os vasos linfáticos colectores de ratinhos FOXC2-/- não têm válvulas,

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INTRODUÇÃO 63

e os capilares linfáticos apresentam uma distribuição ectópica de células musculares lisas (in

203, in 213, in 226, 291, 292).

A podoplanina é uma glicoproteína transmembranar identificada, no ratinho, à

superfície de podócitos (293), embora na vida embrionária a sua expressão seja detectada, no

E11, em células endoteliais linfáticas Prox1+ (281). O seu padrão de expressão no humano

envolve podócitos, queratinócitos, células do plexo coróide, células alveolares e células

endoteliais linfáticas (in 294).

Ratinhos de genótipo T1A nulo (o gene T1A codifica a podoplanina) apresentam

anomalias nos vasos linfáticos com manifestação de linfedema (o padrão de formação de

vasos sanguíneos não é afectado) e problemas respiratórios devido a um deficiente

desenvolvimento pulmonar, morrendo após o nascimento (294). Assim, a podoplanina

desempenha, provavelmente, um papel importante na regulação dos eventos tardios de

linfangiogénese (Figura 1.39) (in 203, in 224).

Alguns estudos revelaram que membros da família FGF (fibroblast growth factors –

factores de crescimento com capacidade pró-angiogénica conhecida (in 295)), bem como os

receptores associados (FGFRs- fibroblast growth factor receptors), estão envolvidos no

processo de linfangiogénese. Neste contexto, os vasos linfáticos parecem ser mais sensíveis

do que os vasos sanguíneos à acção do FGF-2, sendo esta propriedade linfangiogénica

mediada pelo VEGF-C e pelo VEGF-D (296, 297). Por outro lado, o FGFR-3 parece ser alvo do

factor de transcrição Prox-1. Shin e colaboradores verificaram activação transcricional do

FGFR-3 mediada pela ligação directa do Prox-1 a locais específicos do promotor do gene.

Além disso, durante a embriogénese, ocorre sobre-expressão do FGFR-3 em vasos linfáticos

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INTRODUÇÃO 64

Prox1+ recém-formados. A sua especificidade linfática mantém-se durante o

desenvolvimento. Como tal, é sugerido um possível papel deste factor como alvo precoce do

Prox1 (298).

Membros da família PDGF (platelet-derived growth factor – factores mitogénios de

células do tecido conjuntivo, embora com alguma actividade pró-angiogénica (299)),

nomeadamente os PDGF-AA, -AB e -BB, parecem ser promotores linfangiogénicos de acção

directa. Os seus receptores (PDGFRα e PDGFRβ) são expressos, em altos níveis, em células

endoteliais linfáticas e em vasos linfáticos formados durante processos como a cicatrização e

a inflamação. Estes factores de crescimento estimulam a migração de células endoteliais

linfáticas, sendo tal propriedade inibida pelo Imatinib (Glivec), um antagonista dos PDGFRs

(300). Não é conhecido, no entanto, o papel destas moléculas na linfangiogénese embrionária

(213).

1.4.4. Promoção da Linfangiogénese

A identificação de factores linfangiogénicos e o concomitante estabelecimento de

marcadores linfáticos possibilitaram um enorme avanço na clarificação dos mecanismos

moleculares subjacentes à linfangiogénese. No entanto, os fenómenos biológicos que

promovem este processo permanecem ainda desconhecidos (conhece-se parcialmente o

“como”, desconhece-se o “porquê”) (190, 203, 213, 226).

Ao contrário do que ocorre com a linfangiogénese, a angiogénese está melhor

caracterizada. O seu principal modulador parece ser o fenómeno de hipóxia. Assim, em

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INTRODUÇÃO 65

condições de défice de oxigénio, factores de transcrição específicos – HIFs (hipoxia inducible

factors) – activam o gene Vegf, iniciando-se a cascata de eventos que conduz à formação de

vasos sanguíneos (301, 302).

Os eventos iniciais da linfangiogénese embrionária, nomeadamente o

comprometimento linfático, não foram ainda completamente clarificados. Desconhecem-se as

vias de sinalização que induzem a expressão polarizada do Prox-1 num grupo de células

endoteliais sanguíneas. Os alvos de acção deste factor de transcrição, da mesma forma, não

estão identificados (213, 226).

Estudos com culturas de células endoteliais sanguíneas demonstraram a acção indutora

das interleucinas (IL) 3 e 7 na expressão de Prox-1. O seu papel in vivo não é conhecido (303,

304). Por outro lado, como já foi referido, o FGFR-3 parece ser um alvo do Prox-1 (298). São

necessários estudos adicionais para esclarecer as funções destas e de outras moléculas no

mecanismo de linfangiogénese.

No estado adulto, as células endoteliais linfáticas são, normalmente, quiescentes.

Ocorrem, no entanto, situações em que a linfangiogénese é induzida. Neste contexto, a

inflamação promove a formação de vasos linfáticos (305). Este evento biológico, acompanhado

do característico excesso de fluido intersticial, antecede a reparação e regeneração de tecidos,

associando-se, por exemplo, ao processo de cicatrização (in 306). Deste modo, no seguimento

da necessária neovascularização sanguínea, surgem novos vasos linfáticos no tecido de

granulação de modo a prevenir a formação de edema (Figura 1.36, B) (241). Além disso, sendo

vias de transporte de linfócitos aos gânglios linfáticos, os vasos linfáticos participam

activamente na regulação da resposta inflamatória (in 203).

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INTRODUÇÃO 66

Durante a inflamação, há indução da transcrição do gene Vegfc por citoquinas pró-

inflamatórias (307). Vários estudos demonstraram que, no decorrer da resposta inflamatória,

macrófagos e células dendríticas expressam activamente os factores linfangiogénicos VEGF-

C e VEGF-D, bem como o receptor associado, VEGFR-3. Assim, estas células respondem a

sinais linfangiogénicos e induzem a linfangiogénese (277, 308-310).

Embora a inflamação possa ser caracterizada como mecanismo promotor da

linfangiogénese, ocorrem situações em que tal não se verifica. Por exemplo, em casos de

artrite reumatóide, a inflamação não é acompanhada de linfangiogénese. É sugerida a relação

entre células endoteliais linfáticas e o próprio microambiente em que estão inseridas. Assim,

determinantes histológicas órgão-específicas poderão explicar a manutenção, regressão ou

proliferação de vasos linfáticos (in 306).

A função primária do sistema vascular linfático é a recolha de fluido e

macromoléculas extravasadas dos capilares sanguíneos para os tecidos (188). Boardman e

Swartz propuseram que a linfangiogénese é induzida e direccionada de acordo com o fluxo do

fluido intersticial. Assim, a pressão que se verifica nos interstícios promove a formação de

correntes de fluido intersticial. Estes canais precedem a formação de vasos linfáticos. As

células endoteliais linfáticas flúem conjuntamente com o fluido intersticial, sendo a direcção

de fluxo determinante da proliferação e organização dessas células numa estrutura organizada

que dará origem à rede de capilares linfáticos (311).

O aumento da pressão intersticial que induz a formação de canais para a circulação de

fluido acompanha processos como a cicatrização e linfedema. Tal parece igualmente ocorrer

durante o desenvolvimento tumoral (in 212). Assim, poderá atribuir-se potencial

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INTRODUÇÃO 67

linfangiogénico à pressão intersticial instalada entre a massa de células malignas. Será este

mecanismo o verdadeiro promotor da linfangiogénese? Por outro lado, os vasos linfáticos

tumorais constituirão uma das principais vias para a metastização tumoral (221). Poderá

estabelecer-se uma correlação directa entre a taxa de linfangiogénese tumoral e a capacidade

de metastização? Para alguns autores, a existência de vasos linfáticos intratumorais é

questionável (242). Procurar-se-á clarificar conceitos e controvérsias em relação à

linfangiogénese tumoral no Ponto 1.4.5.

1.4.5. Linfangiogénese Tumoral

O mais importante factor de prognós-

tico de um tumor maligno é a existência ou

não de metastização à distância. As células

malignas acedem a locais distantes do tumor

primário através dos dois sistemas vasculares

que o organismo possui: o sanguíneo e o

linfático (7, 204, 212, 222, 242, 312-316).

Durante a aquisição do fenótipo de

malignidade e em resposta à hipóxia, as

células malignas expressam factores de cres-

cimento com actividade pró-angiogénica que

induzem a neovascularização, possibilitando

o crescimento da massa tumoral e estabe-

lecendo as condições para a metastização por via hematogénia (Figura 1.42) (229-232, 321).

Figura 1.42 – Angiogénese tumoral versus linfangiogénese tumoral: promoção e consequências (adaptado de 317)

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INTRODUÇÃO 68

A linfangiogénese tumoral e a sua promoção não estão, como já foi referido,

completamente compreendidas. Estudos realizados comprovam que as células tumorais

expressam altos níveis de factores linfangiogénicos, induzindo a formação de vasos linfáticos

(218-221). Estes constituem, em alguns modelos de cancro, as vias preferenciais de

metastização (in 221). Assim, a vascularização tumoral, tanto sanguínea como linfática, é

necessária para o sucesso do crescimento e expansão tumoral (Figura 1.42).

1.4.5.1. Vascularização Tumoral: Vasos Sanguíneos versus Vasos Linfáticos

Os vasos sanguíneos tumorais apresentam uma estrutura bastante desorganizada: são

tortuosos, excessivamente ramificados e dilatados; a túnica muscular e a membrana basal

estão ausentes ou incompletas. As células endoteliais, diferentes na forma, sobrepõem-se e

projectam-se para o lúmen em vez de se organizarem num estrato pavimentoso sobre a

membrana basal. Tal facilita uma taxa de extravasão elevada, e o fluxo sanguíneo é

descontínuo. Como consequência, a pressão intersticial no estroma tumoral é significativa

(319).

A estrutura dos vasos linfáticos tumorais, ao contrário dos vasos sanguíneos, não é

ainda completamente conhecida, principalmente porque existem opiniões divergentes acerca

da existência de vasos linfáticos intratumorais e da sua funcionalidade (in 212, in 242).

1.4.5.2. Vasos Linfáticos Peritumorais versus Vasos Linfáticos Intratumorais

No passado, a falta de marcadores de endotélio vascular linfático não permitia

comprovar a existência de vasos linfáticos intratumorais. Alguns autores, utilizando técnicas

injectáveis, demonstraram a ausência de vasculatura linfática em modelos de tumores

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INTRODUÇÃO 69

malignos (in 204). Foi proposto que tal ausência era resultado da alta pressão intersticial gerada,

por um lado, pela taxa de proliferação celular elevada, e por outro, pela marcante extravasão

vascular sanguínea. Assim, a infiltração de novos vasos linfáticos no estroma tumoral seria

impedida, o que contribuiria igualmente para a hipertensão intersticial (in 204, in 320).

Estudos utilizando modelos animais de cancro demonstraram que os vasos linfáticos

intratumorais não são funcionais; os vasos linfáticos peritumorais, sendo funcionais, são mais

dilatados do que o normal (in 242). Foi sugerido que o stress mecânico intratumoral gera uma

força de compressão elevada, impedindo a funcionalidade de vasos recém-formados. Por

outro lado, um possível excesso de factores de crescimento provocaria a dilatação dos vasos

linfáticos periféricos ao tumor.

Estes funcionam na drenagem

de fluido intersticial, além de

recolherem células malignas.

Assim, o sistema vascular lin-

fático desempenharia um papel

passivo na metastização. Êm-

bolos tumorais apenas passam

para a corrente linfática quando

as células malignas atingem as

proximidades dos vasos peritu-

morais (Figura 1.43) (in 204, in

212, in 222, 312, 318, 321).

Alguns estudos realizados demonstraram que a linfangiogénese não é um requisito à

metastização por via linfática, pois as células malignas podem disseminar-se através dos

Figura 1.43 – Modelo de metastização por via hematogénia e por via linfática: evidência do papel passivo do sistema vascular linfático (adaptado de 312)

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INTRODUÇÃO 70

vasos linfáticos pré-existentes (322, 323). Outros evidenciaram a importância do processo de

dilatação dos vasos linfáticos peritumorais na disseminação de células a partir do tumor

primário (204, 324, 325).

A identificação de factores linfangiogénicos e dos seus receptores, bem como a

caracterização de marcadores

de endotélio linfático,

permitiram conhecer melhor a

vascularização tumoral linfá-

tica. A demonstração do papel

activo de vasos linfáticos

formados de novo, quer peri-

quer intratumorais, na

metastização, veio alterar o

modelo tradicional (Figura

1.44) (312).

Já no passado alguns

autores consideravam que, em

muitos tumores, não ocorre edema, pois existem vasos linfáticos intratumorais funcionais que

mantêm o equilíbrio intersticial (in 222). Estudos mais recentes comprovaram a presença de

vasos linfáticos no estroma de vários tipos de tumores: foram detectados focos de

linfangiogénese intratumoral em neoplasias malignas da cabeça e pescoço (218, 326), da tiróide

(219), da mama (327), do pulmão (328), do ovário (329), do útero (330), do cólon e recto (331), da

próstata (332), do pâncreas (333), em melanoma (220, 324), entre outros, sendo proposta a sua

Figura 1.44 – Modelo de metastização por via hematogénia e por via linfática: evidência do papel activo do sistema vascular linfático (adaptado de 312)

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INTRODUÇÃO 71

participação na metastização ganglionar.

Por outro lado, foi igualmente sugerido que os vasos linfáticos peritumorais não

sofrem, simplesmente, dilatação. Ocorre, de facto, linfangiogénese na periferia do tumor a

partir dos vasos linfáticos pré-existentes. Os vasos peritumorais apresentam continuidade com

os vasos intratumorais, o que significa que a linfangiogénese dos últimos se dá a partir dos

primeiros (Figura 1.44) (324, 326, 329, 330). Também os vasos linfáticos peritumorais,

hiperplásicos ou formados de novo, contribuem activamente para a metastização por via

linfática, particularmente em tumores privados de vasculatura linfática interna (321).

Em resumo, continuam a existir divergências em relação à existência de vasos

linfáticos intratumorais. Provavelmente, ocorrem determinantes órgão-específicas que

condicionam a linfangiogénese intratumoral, bem como a funcionalidade dos vasos formados.

Curiosamente, em modelos animais de cancro onde não existem vasos linfáticos, são

expressos marcadores linfáticos em estruturas que correspondem a porções de endotélio

linfático restantes de vasos que terão, entretanto, colapsado (321). Estas porções parecem ter

um papel na metastização, talvez devido à presença de mecanismos de adesão que favorecem

a interacção entre células malignas e células endoteliais (in 320, 334, 335). Assim, é consensual

que os vasos linfáticos associados ao tumor, quer perifericamente quer internamente, são

importantes para o processo de metastização por via linfática. De facto, este modo de

disseminação é, para muitos tipos de tumores malignos, preferencial em relação à via

hematogénia (in 204, in 222, in 312, in 313).

1.4.5.3. Vias de Metastização: Via Hematogénia versus Via Linfática

Como já foi referido, o fenótipo adquirido pelas células malignas engloba, a um

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INTRODUÇÃO 72

primeiro nível, auto-suficiência em factores de crescimento, insensibilidade a sinais inibidores

do crescimento, escape à apoptose e capacidade de replicação ilimitada (2). Para que ocorra

expansão da massa tumoral, as células malignas libertam factores angiogénicos que induzem

a vascularização tumoral. Com os vasos sanguíneos recém-formados são fornecidos oxigénio

e nutrientes ao tumor, criando-se igualmente as condições para a remoção de produtos do

metabolismo. Além disso, é favorecida a metastização por via hematogénia – o segundo nível

do fenótipo maligno (Figura 1.45). Curiosamente, embora os vasos sanguíneos pré-existentes

nas imediações do tumor possam contribuir para a metastização, parecem ser os recém-

formados os verdadeiros mediadores da disseminação maligna a órgãos distantes (313).

Da mesma forma que a angiogénese, a linfangiogénese peritumoral e/ou intratumoral

é, provavelmente, necessária para a homeostasia do tumor ao mediar a formação de vasos

linfáticos que funcionarão na drenagem do fluido intersticial tumoral (242, 313). Por outro lado,

também os vasos linfáticos formados de novo parecem ser as vias preferenciais de

Figura 1.45 – Vias de metastização: via hematogénia vs via linfática (adaptado de 316)

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INTRODUÇÃO 73

metastização ganglionar (313). Células malignas que atingem a corrente linfática migram para

o “gânglio sentinela”, seguindo posteriormente o trajecto dos gânglios linfáticos distais e, por

último, colonizando órgãos secundários (Figura 1.45) (212, 231, 316, 336).

O processo de metastização envolve uma série coordenada de eventos que incluem:

- indução de angiogénese e/ou linfangiogénese,

- separação de algumas células malignas do tumor primário (para a qual contribui o

processo de necrose (in 337)),

- microinvasão do estroma circundante pelas células malignas,

- permeação vascular sanguínea e/ou vascular linfática pelas células malignas,

- sobrevivência das células malignas na circulação sanguínea e/ou linfática,

- extravasão das células malignas da circulação sanguínea e/ou linfática,

- colonização de locais distantes do tumor primário pelas células malignas e origem

de tumores secundários (212, 313, 337).

O transporte de células malignas pela corrente linfática representa uma vantagem em

relação ao transporte pela corrente sanguínea, pois a taxa de sucesso para a metastização por

via linfática é muito superior em relação à metastização por via hematogénia. Para tal

contribuem as características próprias do sistema vascular linfático. Assim, os capilares

linfáticos são maiores em diâmetro do que os capilares sanguíneos. A membrana basal destes

vasos linfáticos é descontínua, e não ocorrem conexões entre as células endoteliais; existem,

como já foi referido (Ponto 1.3.4), fibras elásticas a envolver os capilares que promovem a

ancoragem à matriz extracelular e facilitam a intravasão do fluido intersticial (192-194, 313). Por

outro lado, a velocidade de fluxo nos vasos linfáticos é baixa. A composição da linfa é

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INTRODUÇÃO 74

semelhante à do fluido intersticial, constituindo-se um verdadeiro meio de cultura para a

manutenção da viabilidade celular. Tais características facilitam o acesso das células malignas

à corrente linfática (188, in 221, 311, in 316). Para além disso, alguns autores sugerem um provável

mecanismo de quimiotaxia entre as células endoteliais linfáticas e as células malignas (in 190,

312, 320, 334, 335, 337).

Os vasos sanguíneos, ao contrário dos vasos linfáticos, não são as melhores vias para a

disseminação de células malignas. Embora a estrutura desorganizada dos vasos sanguíneos

tumorais possa contribuir para a intravasão de possíveis células ou êmbolos (337), na corrente

sanguínea estas células são submetidas a níveis consideráveis de toxicidade e a tensões que

provocam deformações mecânicas. Como tal, a viabilidade das células malignas e o sucesso

da sua disseminação é comprometido (in 188).

Após os eventos iniciais de promoção da metastização por via linfática, as células

malignas seguem na corrente linfática. Assim, os capilares linfáticos convergem nos vasos

colectores. Nestes, a existência de fibras musculares lisas promove a propulsão da linfa. Para

a unidireccionalidade do fluxo contribui a presença de válvulas. Deste modo, e seguindo o

normal padrão de drenagem, as células malignas atingem o seio subcapsular do gânglio

sentinela – o primeiro gânglio linfático a ser colonizado – através dos vasos linfáticos

aferentes (Figura 1.46). No entanto, algumas células podem não alcançar o gânglio sentinela.

Em vez disso, aderem ao endotélio linfático quando ainda em circulação, extravasando para

os espaços intersticiais e invadindo tecidos circundantes (in 336, in 338).

Os gânglios linfáticos são “incubadoras” ideais para as células malignas. Constituem

áreas de estagnação de fluxo linfático onde as células podem residir por longos períodos de

tempo (188). Assim, uma vez no gânglio sentinela, as células malignas podem seguir vários

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INTRODUÇÃO 75

destinos. Algumas atingem directamente os vasos linfáticos eferentes e são transportadas ao

gânglio linfático seguinte, enquanto outras invadem a zona cortical (Figura 1.46); aqui,

podem sofrer retenção mecânica nas malhas do tecido linfático laxo do córtex, principalmente

nas zonas dos seios, ou passar para a circulação sanguínea através de conexões linfático-

venosas (in 336, in 338).

Martens e colaboradores, num estudo recente, procuraram caracterizar a composição

celular e a função molecular dos seios dos gânglios linfáticos, de modo a estabelecer um perfil

de interacção com as células malignas. Foi verificado que células endoteliais e macrófagos

presentes nestas zonas expressam um padrão único de receptores scavenger e de proteínas

semelhantes a lectinas que parecem mediar a retenção de células malignas. Assim, os autores

Figura 1.46 – Etapas da metastização por via linfática (adaptado de 332)

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INTRODUÇÃO 76

propõem uma possível contribuição destas moléculas na selecção de células malignas, num

contexto órgão-específico, que poderá ditar o aprisionamento a nível do gânglio linfático ou a

continuação da disseminação e o sucesso da formação de tumores secundários (339).

Em conclusão, os tumores malignos possuem a capacidade de metastização (salvo

algumas excepções) (204). Esta capacidade é parte integrante do fenótipo de malignidade (2).

Alguns tumores recrutam unicamente a via hematogénia de disseminação, outros recorrem à

via linfática; outros, ainda, utilizam ambas as vias vasculares. Dados de follow up mostraram

que cerca de 80% dos tumores seguem um padrão ordenado de progressão através da corrente

linfática; os restantes 20% utilizam a circulação sanguínea para originarem tumores

secundários (in 340). Assim, o sistema vascular linfático constitui a via de disseminação

primária para muitos tipos de tumores sólidos, principalmente carcinomas (da mama, do

cólon, do pulmão, da próstata). Tais tipos de tumores estão habitualmente associados a

prognósticos bastante desfavoráveis (188). Como tal, é importante explorar os mecanismos

biológicos que medeiam a metastização por via linfática, nomeadamente a linfangiogénese

tumoral.

1.4.5.4. Metastização por Via Linfática versus Linfangiogénese Tumoral –

Mecanismos Moleculares, Significado Prognóstico e Papel como Alvo

Terapêutico

O envolvimento dos sistemas vasculares sanguíneo e linfático no processo de

metastização está bem documentado. Da mesma forma, inúmeros estudos validam a

importância da formação de novos vasos, sanguíneos ou linfáticos, na disseminação maligna

(Pontos 1.4.5.2 e 1.4.5.3). Como tal, importa clarificar os mecanismos moleculares

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INTRODUÇÃO 77

subjacentes aos processos de angiogénese e linfangiogénese tumorais.

À semelhança da angiogénese fisiológica, a angiogénese tumoral ocorre para satisfazer

as necessidades metabólicas de um novo tecido – o tecido tumoral. Deste modo, é natural que

os factores envolvidos na regulação molecular de ambos os processos sejam os mesmos.

Assim, o principal mediador da angiogénese tumoral é o VEGF (Figura 1.42). Verificou-se a

sobre-expressão deste factor pró-angiogénico em vários modelos de cancro, sendo

significativa a associação com prognósticos desfavoráveis. Baseados nestes princípios,

inúmeros estudos têm sido desenvolvidos na tentativa de aplicar estratégias de terapêutica

anti-angiogénica no tratamento de doentes com tumores malignos (in 254, 341, in 342, in 343, in 344).

O Bevacizumab (Avastin®), um anticorpo monoclonal derivado do ratinho e

humanizado através de tecnologia de ADN recombinante, foi o primeiro agente anti-

-angiogénico aprovado para o tratamento de cancro. Em Fevereiro de 2004, a FDA (Food and

Drug Administration) aprovou a sua utilização em combinação com esquemas de

quimioterapia baseados em 5-fluorouracilo para o tratamento de 1ª linha de cancro colo-rectal

metastizado (345). Noutros modelos de cancro, nomeadamente pulmão, mama, rim e pâncreas,

o Bevacizumab tem igualmente revelado resultados promissores (346, 347). Em Outubro de

2006 foi aprovada a sua utilização, em conjugação com carboplatina e paclitaxel, para o

tratamento de 1ª linha do carcinoma de não pequenas células do pulmão (345).

A regulação molecular da linfangiogénese tumoral depende de factores igualmente

expressos em estádios precoces da linfangiogénese embrionária e durante a vida adulta,

quando a formação de vasos linfáticos acompanha a angiogénese fisiológica. Assim, a via de

sinalização VEGF-C/D – VEGFR-3 parece estar directamente envolvida na formação de

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INTRODUÇÃO 78

vasos linfáticos tumorais (152, 189, 203, 204, 212, 313, 314, 337).

Estudos utilizando modelos animais de cancro evidenciaram o papel do factor

VEGF-C no fenótipo de malignidade. Alguns autores constataram a sobre-expressão do

VEGF-C em células de carcinomas da mama implantados em ratinhos, o que resultou em

linfangiogénese peri- e intratumoral, com infiltração de células malignas nos vasos recém-

formados. Por outro lado, a formação de novos vasos associou-se à ocorrência de

metastização ganglionar (348-350). Num modelo de melanoma semelhante, verificou-se

promoção da linfangiogénese e angiogénese tumorais mediadas por VEGF-C (351). As

diferenças entre os dois modelos devem-se, provavelmente, à diversidade de formas de

VEGF-C expressas. Assim, nos modelos de carcinoma da mama ocorre expressão da forma

imatura, não processada, de 31-kDa; esta activa selectivamente o VEGFR-3, ocorrendo, como

tal, indução da linfangiogénese. Por outro lado, no modelo de melanoma é expressa a forma

processada de 21-kDa, que activa não só o VEGFR-3, mas também o VEGFR-2, sendo este

último mediador da angiogénese (Figura 1.47) (190, 315).

O papel do VEGF-D como factor pró-linfangiogénico foi igualmente demonstrado.

Num modelo animal de carcinoma do rim verificou-se que a expressão desta molécula se

correlacionou com a taxa de crescimento tumoral e com a ocorrência de metastização

ganglionar. Neste estudo, o VEGF-D promoveu não só a linfangiogénese (através da

interacção com o VEGFR-3), mas também a angiogénese (através da interacção com o

VEGFR-2) (352). Novamente se revela a importância do processamento proteolítico – a forma

processada do VEGF-D promove a formação de vasos sanguíneos e linfáticos (229, 314, 315).

Globalmente, os resultados obtidos nos modelos animais de cancro associam-se aos

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INTRODUÇÃO 79

observados em vários tipos de tumores malignos no ser humano. De facto, inúmeros estudos

realizados evidenciaram uma correlação directa entre a sobre-expressão dos factores

linfangiogénicos VEGF-C ou VEGF-D e a formação de vasos linfáticos peri- e/ou

intratumorais (verificada através do estudo da densidade de vasos linfáticos). A presença de

células ou êmbolos malignos nos vasos linfáticos recém-formados demonstra a ocorrência de

permeação vascular linfática (ou invasão linfovascular). Tal correlaciona-se

significativamente com o aumento do potencial de metastização, o que se traduz em

prognósticos desfavoráveis, comprovados pela diminuição das taxas de sobrevivência livre de

doença e de sobrevivência global (Tabela 1.3) (332, 336, 353-372).

Assim, teoricamente, os factores linfangiogénicos VEGF-C e VEGF-D poderão

mediar o processo de metastização, promovendo o aumento da área de superfície de contacto

Figura 1.47 – Influência das formas não processada e processada do factor de crescimento VEGF-C na linfangiogénese e na angiogénese (adaptado de 190)

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INTRODUÇÃO 80

entre as células malignas e as células endoteliais linfáticas. O incremento da permeabilidade

dos vasos linfáticos é, igualmente, provável, assim como a alteração da pressão intersticial

tumoral que poderá condicionar a permeação das células do tumor primário nos vasos

linfáticos (189, 212, 229).

Tabela 1.3 – Associação entre a expressão dos factores linfangiogénicos VEGF-C/D em vários tipos de tumores humanos e algumas características clinicopatológicas

Tipo de Tumor

Maligno

Metodologia de Análise utilizada

Membro da Família VEGF

estudado Resultados Associação

Significativa Biblio-grafia

IHQa VEGF-C Associação a DVLd peritumoral, PVLe e metastização ganglionar

Sim 353

IHQa VEGF-C Associação a metastização ganglionar, SLDf e SGg

Sim 354 Mama

IHQa VEGF-D Associação a metastização ganglionar Sim 355

IHQa VEGF-C Associação a PVLe, metastização ganglionar, e estádio

Sim 356

IHQa VEGF-C Associação a metastização ganglionar Sim 357 Cólon e Recto

IHQa VEGF-D Associação a metastização ganglionar. Factor de prognóstico independente para SLDf e SGg

Não 358

IHQa, RT-PCRb

VEGF-C Razão VEGF-C/VEGFR-3 associou-se a metastização ganglionar

Sim 359 Pulmão

IHQa VEGF-C Co-expressão de VEGF-C e VEGFR-3 é factor de prognóstico independente para STg

Sim 360

IHQa VEGF-C Associação a progressão tumoral Sim 361 Próstata

IHQa VEGF-C Associação a metastização ganglionar Sim 362

IHQa VEGF-C/D Associação a metastização ganglionar Não 363 Cavidade

oral IHQa, RT-PCRb

VEGF-C Associação a grau de diferenciação e metastização ganglionar

Não 364

Esófago IHQa VEGF-C Associação a estádio, PVLe e metastização ganglionar. Factor de prognóstico independente nos casos com PVLe

Sim 365, 366

IHQa VEGF-C/D Associação a metastização ganglionar e SGg. VEGF-D e VEGFR-3 são factores de prognóstico independentes

Sim 367 Estômago

RT-PCRb VEGF-C/D Associação a PVLe. Associação a metastização ganglionar (VEGF-C)

Sim 368

IHQa, RT-PCRb

VEGF-D Associação a DVLd e a metastização ganglionar

Sim 369 Tiróide

IBc, IHQa VEGF-C Associação a PVLe e metastização ganglionar Sim 370

Ovário IHQa VEGF-C/D Associação a metastização ganglionar e peritoneal, e a SGg. VEGF-D é factor de prognóstico independente

Sim 332

Útero IHQa VEGF-C Associação a DVLd peritumoral, PVLe, metastização ganglionar, SLDg e SGg

Sim 371

IHQa VEGF-D Associação a PVLe e metastização ganglionar Sim 372 Pâncreas

RT-PCRb VEGF-C Associação a DVLd intratumoral Não 336 aIHQ: imuno-histoquímica, bRT-PCR: reverse transcription polymerase chain reaction, cIB: immunoblotting, dDVL: densi-dade de vasos linfáticos, ePVL: permeação vascular linfática, fSLD: sobrevivência livre de doença, gSG: sobrevivência global

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INTRODUÇÃO 81

É importante salientar que, embora a maioria dos estudos caracterize uma associação

directamente proporcional entre a expressão de VEGF-C e/ou VEGF-D e o potencial de

metastização, há relatos em que foi verificada uma relação oposta. Bando e colaboradores

demonstraram uma correlação significativa entre os níveis de expressão de VEGF-C e o

receptor VEGFR-3 em carcinomas da mama; no entanto, a sobre-expressão do factor

linfangiogénico ocorreu em tumores pequenos e de baixo grau, associando-se, como tal, a um

prognóstico favorável (373). Por outro lado, embora em carcinomas da próstata e da pele se

tenha comprovado o potencial linfangiogénico do VEGF-C, a linfangiogénese parece não ser

um requisito para que ocorra a metastização ganglionar (336, 374). Estudos adicionais são

necessários para clarificar tais resultados contraditórios, sendo importante padronizar os

métodos de análise utilizados.

Alguns autores demonstraram o envolvimento de outras moléculas na linfangiogénese

tumoral, para além do VEGF-C e do VEGF-D. Neste contexto, em tumores que expressam

altos níveis de FGF2 (já referido no Ponto 1.4.3.2) ocorre infiltração marcante de células

produtoras de VEGF-C e VEGF-D, nomeadamente macrófagos e células dendríticas (276).

Além disso, a utilização de antagonistas do VEGFR-3 provocou o bloqueio da

linfangiogénese induzida pelo FGF2 (296, 297). Como tal, esta molécula poderá ser um

promotor indirecto da linfangiogénese tumoral.

Por outro lado, foi verificado um aumento dos níveis de expressão de PDGF-AA e

PDGF-BB (já referidos como promotores linfangiogénicos de acção directa – Ponto 1.4.3.2)

em tumores cuja taxa de metastização por via linfática associada é elevada. Assim, tais

factores induzem não só a neovascularização sanguínea, mas também a linfangiogénese

tumoral (299, 313).

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INTRODUÇÃO 82

Vários estudos demonstraram que o VEGF-A, além de ser o principal mediador da

angiogénese, promove igualmente a proliferação e migração de células endoteliais linfáticas

através da interacção com o VEGFR-2 (expresso por estas células in vitro e in vivo) (375-377).

Hirakawa e colaboradores demonstraram que a sobre-expressão de VEGF-A num modelo de

melanoma induz a linfangiogénese e a ocorrência de metastização por via linfática.

Curiosamente, ocorreu formação de vasos linfáticos associados ao gânglio sentinela antes de

ser verificada a metastização ganglionar. Tal corresponde, provavelmente, a uma estratégia de

preparação por parte do tumor primário para que seja assegurado o sucesso da sua futura

disseminação (378).

Em resumo, os estudos acima explorados caracterizam a linfangiogénese tumoral

como um provável fenómeno multifactorial, sendo uniformemente aceite que a sobre-

expressão de factores linfangiogénicos promove a neovascularização linfática. Criam-se,

como tal, as condições para a ocorrência da metastização por via linfática. A linfangiogénese

tumoral promove, indirectamente, a disseminação maligna, sendo os vasos linfáticos

formados de novo os agentes directos desse fenómeno.

Serão a permeação dos vasos linfáticos pelas células malignas e a sua utilização como

vias de disseminação processos essencialmente passivos, ou existirão mediadores activos

desses processos? De facto, para alguns autores, as células endoteliais linfáticas (tal como as

células endoteliais sanguíneas) produzem factores quimiotácticos, nomeadamente

quimoquinas, para as células malignas (in 190, 312, in 320, 334, 335, 337). A sobre-expressão dos

receptores das quimoquinas pelas células malignas poderá explicar não só a aparente

preferência demonstrada por alguns tumores relativamente à via de disseminação utilizada –

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INTRODUÇÃO 83

vascular sanguínea ou vascular linfática – mas também a preferência por determinados locais

de metastização em detrimento de outros (189, 320, 337). Por outro lado, os factores

linfangiogénicos, nomeadamente o VEGF-C e o VEGF-D, poderão, em teoria, facilitar a

metastização por via linfática através da alteração do perfil de expressão em quimoquinas pelo

endotélio linfático (212).

Muller e colaboradores verificaram que células de carcinoma da mama expressam

altos níveis dos receptores CCR7 (chemokine, CC motif, receptor 7) e CXCR4 (chemokine,

CXC motif, receptor 4). Os ligandos respectivos, as quimoquinas SLC (secondary lymphoid

chemokine, ou CCL21, CC-type chemokine ligand 21) e SDF-1 (stromal cell-derived factor 1,

ou CXCL12, chemokine, CXC motif, ligand 12) são sobre-expressos pelo endotélio de vasos

linfáticos associados aos gânglios linfáticos regionais, ao pulmão e ao fígado (335). Tais locais

representam destinos primários de metástases do carcinoma da mama. De modo semelhante, a

sobre-expressão do CCR7 num modelo animal de melanoma associou-se à ocorrência de

metastização ganglionar; por outro lado, a utilização de anticorpos anti-SLC bloqueou a

metastização (334).

Os dados referidos sugerem, assim, a ocorrência de interacções activas entre as células

malignas e as células endoteliais linfáticas. Como tal, a metastização é, provavelmente, uma

combinação de eventos activos e passivos: as células endoteliais expressam activamente

factores quimiotácticos para as células malignas, enquanto um gradiente passivo de pressão

intersticial tumoral promove a invasão linfovascular (in 320).

Os eventos biológicos que promovem a linfangiogénese tumoral não estão, tal como

para a linfangiogénese fisiológica, claramente definidos. Alguns estudos realizados relatam a

influência da inflamação e da pressão intersticial na linfangiogénese tumoral (já referidos

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INTRODUÇÃO 84

como potenciais mecanismos promotores da linfangiogénese fisiológica no Ponto 1.4.4)

Cao propôs um modelo de promoção da linfangiogénece tumoral mediado pela

inflamação. Neste modelo, as células tumorais produzem factores que induzem a angiogénese

e, consequentemente, o crescimento tumoral. Estes factores – VEGF-A e FGF2 – induzem

igualmente a infiltração de células inflamatórias no tumor que, por sua vez, produzem factores

linfangiogénicos. Ocorre, deste modo, a linfangiogénese intratumoral, sendo os vasos recém-

formados utilizados como vias de disseminação maligna (Figura 1.48) (313).

Figura 1.48 – O papel da inflamação na linfangiogénese tumoral (adaptado de 313)

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INTRODUÇÃO 85

A pressão intersticial tumoral é outro provável mecanismo promotor da formação de

vasos linfáticos tumorais. Como a vascularização sanguínea de tumores sólidos é tortuosa e

desorganizada, a taxa de extravasão é elevada. O excesso de fluido intersticial poderá ser

facilmente drenado por vasos linfáticos intra e peritumorais recém-formados (313). Por outro

lado, e como já foi acima referido, a pressão intersticial constituirá um mecanismo passivo

para a ocorrência de invasão linfovascular (189, 212, 229).

Tal como a angiogénese, também a linfangiogénese tumoral tem sido proposta como

alvo terapêutico (380, 381). De facto, no contexto do cancro, poderá ser útil bloquear a

linfangiogénese para que, consequentemente, a ocorrência de invasão linfovascular e a

metastização por via linfática sejam inibidas ou, pelo menos, dificultadas.

Cao propõe a existência de dois tipos de inibidores da linfangiogénese: os directos e os

indirectos. Os inibidores directos são potenciais moléculas que bloqueiam vias de formação

de vasos linfáticos pela acção directa sobre as células endoteliais linfáticas. Por outro lado,

com os inibidores indirectos são neutralizadas ou bloqueadas as funções dos factores de

crescimento linfangiogénicos. O modo de acção dos inibidores indirectos torna preferencial a

sua possível utilização como agentes anti-linfangiogénicos (313). Assim, o documentado

envolvimento da via de sinalização linfangiogénica VEGF-C/D – VEGFR-3 na promoção do

potencial de disseminação maligna fundamenta a maioria dos estudos de terapia anti-

linfangiogénica. Além disso, a associação da expressão dos factores de crescimento VEGF-C

e VEGF-D à angiogénese tumoral torna-os alvos ainda mais atractivos, principalmente devido

ao sucesso comprovado da utilização do Bevacizumab, já referido anteriormente, no

tratamento de cancro colo-rectal e do pulmão (in 314).

As possíveis estratégias de inibição da via VEGF-C/D – VEGFR-3 incluem:

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INTRODUÇÃO 86

- bloqueio da activação proteolítica do VEGF-C e do VEGF-D através da indução

de mutações nos respectivos locais de clivagem,

- bloqueio da ligação dos factores de crescimento aos seus possíveis receptores –

VEGFR-3 e VEGFR-2 – através da utilização de anticorpos (ou formas solúveis

dos receptores) que neutralizam a interacção entre ligandos e receptores,

- bloqueio da actividade de tirosina-cinase dos receptores VEGFR-2/3 através da

administração oral de agentes moleculares que atingem o citoplasma das células

alvo e actuam sobre os domínios específicos (222, 314, 315, 317, 380, 381).

As duas últimas estratégias referidas têm revelado resultados promissores. Alguns

estudos utilizando modelos experimentais demonstraram que a supressão da via de

sinalização VEGFR-3, utilizando anticorpos ou formas solúveis dos receptores, promove não

só a inibição da linfangiogénese (peri- e intratumoral) e da angiogénese, mas também a

regressão de vasos tumorais recém-formados, diminuindo a capacidade de metastização (349,

352, 382-384). Por outro lado, compostos como o Sorafenib (BAY 43-9006) (385), o Vatalanib

(PTK787/ZK 222584) (386) e o Vandetanib (ZD6474) (387) encontram-se em fase de ensaio

clínico para o tratamento de vários tipos de tumores malignos. Embora não sejam altamente

específicos, pois inibem outros tipos de cinases, estes agentes parecem bloquear eficazmente

o VEGFR-2 e o VEGFR-3 (in 314, in 315). Assim, a modulação terapêutica da linfangiogénese

tumoral representa, actualmente, um grande desafio na área da Oncologia.

1.4.5.5. Linfangiogénese no Carcinoma da Bexiga

Os princípios e significado da linfangiogénese fisiológica e da linfangiogénese tumoral

explorados nos pontos anteriores permitem reintegrar, de modo coerente, o tema específico

em estudo: Linfangiogénese no Carcinoma da Bexiga.

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INTRODUÇÃO 87

O perfil de metastização do carcinoma urotelial invasor implica, tal como na maioria

dos tumores malignos, a disseminação de células através da corrente linfática, sendo a

colonização dos gânglios linfáticos regionais um evento precoce (151, 152). Neste contexto, da

mesma forma que a linfangiogénese parece estar relacionada com o potencial de metastização

ganglionar noutros tipos de tumores já referidos (Ponto 1.4.5.4), também no carcinoma da

bexiga existem relatos desta associação (388-390). Assim, foi detectado um padrão de expressão

citoplasmático do factor linfangiogénico VEGF-C em células uroteliais neoplásicas de

carcinoma da bexiga. A expressão deste factor apresentou uma associação significativa com

as características histopatológicas tamanho, estádio e grau tumorais; a mesma associação foi

verificada tendo em conta a ocorrência de permeação vascular linfática e sanguínea, bem

como de envolvimento ganglionar. Globalmente, os doentes com tumores VEGF-C positivos

apresentaram prognósticos significativamente mais desfavoráveis (388, 389).

No estudo de Miyata e colaboradores, foi verificada uma diferença significativa entre

a densidade de vasos linfáticos (DVL) existentes em tecidos normais da bexiga e em

carcinomas uroteliais, apresentando os últimos valores mais elevados; nestes, a expressão dos

factores VEGF-C e VEGF-D associou-se a uma maior densidade de vasos linfáticos tumorais.

Em todos os casos analisados existiam vasos peritumorais; no entanto, apenas 16% dos

tumores apresentavam vasos intratumorais, estando a maioria colapsados. Por outro lado,

verificou-se uma associação significativa entre a DVL, o grau tumoral e a ocorrência de

metastização. No mesmo estudo, apenas a expressão de VEGF-C se associou com a densidade

de vasos sanguíneos tumorais (DVS); a combinação de DVL e DVS foi considerada como

factor de prognóstico independente de sobrevivência livre de doença (390).

É de notar que, para os carcinomas da bexiga, o padrão de imuno-expressão do

principal receptor dos factores VEGF-C e D – VEGFR-3 –, bem como o seu significado

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INTRODUÇÃO 88

clínico, não são conhecidos.

Contrariamente aos resultados acima apresentados, o estudo de Mylona e

colaboradores relata uma correlação inversa entre a imuno-expressão de VEGF-C em

carcinomas da bexiga e o estádio tumoral. Assim, os tumores VEGF-C positivos associaram-

se a prognósticos favoráveis (391).

O parâmetro permeação vascular (PV), já referido como associado à imuno-expressão

de VEGF-C (388, 389), foi proposto por alguns autores como marcador de prognóstico em

doentes com carcinoma da bexiga (392-395). Assim, a avaliação da PV em peças de cistectomia

radical poderá contribuir para uma melhor aquidade de classificação e definição de estratégias

de terapia adjuvante. Por outro lado, no estudo de Lotan e colaboradores, a PV associou-se

significativamente à sobrevivência livre de doença e à sobrevivência global, mesmo em casos

de doentes em que não foram diagnosticadas metástases ganglionares aquando do tratamento

cirúrgico por cistectomia radical (395). Como tal, a avaliação da PV em amostras de carcinoma

da bexiga obtidas por RTU-biópsia realizada antes da cirurgia radical poderá contribuir para

definir grupos de risco acrescido que beneficiarão de estratégias de quimioterapia

neoadjuvante.

Embora a maioria dos estudos realizados relatem o significado prognóstico da PV em

carcinomas da bexiga, permanecem dúvidas acerca da sua inclusão como critério de decisão

clínica, principalmente devido à baixa reprodutibilidade em termos de diagnóstico (in 179).

O sistema vascular sanguíneo constitui, como já foi referido, a via alternativa ao

sistema vascular linfático para a disseminação tumoral sistémica. No carcinoma da bexiga, o

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INTRODUÇÃO 89

significado da angiogénese e, especificamente, do parâmetro DVS como marcador de

prognóstico, estão bem documentados (65, 66, 396-398). Embora o VEGF-A seja o principal

factor pró-angiogénico (níveis de expressão aumentados associam-se a elevada DVS e,

consequentemente, a um aumento do potencial de progressão e disseminação (396, 399), o já

demonstrado papel secundário do VEGF-C na promoção da angiogénese parece verificar-se

neste tipo de carcinomas (390). Por outro lado, nalguns estudos o parâmetro permeação

vascular sanguínea foi considerado como factor de prognóstico independente para a

sobrevivência livre de doença (392) e sobrevivência global (393) de doentes com carcinoma da

bexiga. A utilização de anticorpos anti-VEGFR-2 [receptor do VEGF e da forma processada

do VEGF-C e do VEGF-D (Figura 1.40)] em modelos animais de carcinoma da bexiga, na

tentativa de bloquear a angiogénese, tem revelado resultados promissores (400, 401).

Em conclusão, importa recordar a relevância do carcinoma da bexiga no contexto da

dimensão do problema oncológico que representa. Este tipo de tumor – o sétimo mais

frequente no mundo (Ponto 1.2.3.2) – ocorre, na grande maioria dos casos, sob a variante

urotelial. Cerca de 70%-80% dos carcinomas uroteliais são superficiais; embora de fácil

tratamento, 10 a 15% recidivam e progridem para formas invasoras. Por outro lado, 20-30%

dos carcinomas uroteliais são originalmente invasores. Assim, uma parte significativa dos

carcinomas uroteliais da bexiga adquire capacidade de metastização. Para tais casos, mesmo

mediante aplicação de estratégias de terapêutica adjuvante, os prognósticos são francamente

desfavoráveis (Ponto 1.2.2 e Ponto 1.2.3.5).

A disseminação sistémica do carcinoma urotelial da bexiga que ocorre através da

corrente linfática inicia-se nos vasos linfáticos associados ao tumor primário. Na maior parte

dos casos, os primeiros locais de ancoragem das células malignas são os gânglios linfáticos

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INTRODUÇÃO 90

regionais. É primordial, como já foi referido, estabelecer consensos quanto à utilidade e

dimensão do esvaziamento ganglionar (Ponto 1.2.3.5). A clarificação do fenómeno de

linfangiogénese e a avaliação do seu significado clínico poderão fornecer marcadores

informativos para a selecção adequada dos tumores vesicais em que a linfadenectomia será

essencial para a aquisição de ganhos na sobrevivência global e na sobrevivência livre de

doença. Por outro lado, tal conhecimento estabelecerá a base para o desenvolvimento de

estratégias de terapêutica anti-linfangiogénese concebidas de modo a impedir a metastização

em doentes com carcinoma da bexiga.