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INTRODUÇÃO AO MATERIALISMO DIALÉTICO AUGUST THALHEIMER Tradução de MONIZ BANDEIRA LIVRARIA EDITORA CIÊNCIAS HUMANAS LTDA. São Paulo 1979 Capa de: Raul Mateos Castell Revisão de: José Carlos C. Crozera e Maria Tereza Cristina L. de Barros LECI-1 LIVRARIA EDITORA CIÊNCIAS HUMANAS LTDA Rua 7 de Abril, 264 - subsolo B - sala 5 - Fone. 36-9544 CEP 01044 - São Paulo - SP Impresso no Brasil printed in Brazil Í N D I C E CAPÍTULO I O materialismo dialético, concepção do mundo moderno. Há uma ou várias concepções do mundo moderno? ..............................7 CAPÍTULO II A religão .........................................................13 CAPÍTULO III O papel social da religião ...........................................21 CAPÍTULO IV Filosofia materialista na antigüidade ...............33 CAPÍTULO V Filosofia idealista na antigüidade .............................41 CAPÍTULO VI A lógica e a dialética na antigüidade ...............47 CAPÍTULO VII Hegel e Feuerbach ............................................57 CAPÍTULO VIII Do materialismo formal ao materialismo dialético ..65 CAPÍTULO IX A teoria materialista do conhecimento ................73 CAPÍTULO X A dialética ...........................................................83 CAPÍTULO XI A concepção materialista da História ...............103 CAPÍTULO XII A luta de classes ............................................113 APÊNDICE Materialismo dialético e ação recíproca Georges Friedmann .........................................................................125 CAPÍTULO I O MATERIALISMO DIALÉTICO, CONCEPÇÃO DO MUNDO MODERNO. HÁ UMA OU VÁRIAS CONCEPÇÕES DO MUNDO MODERNO? Há uma concepção do mundo reconhecida, universalmente, como há uma só física e uma só química? Em todo o mundo a física e a química se ensinam do mesmo modo. É claro que nessas ciências há questões que não foram resolvidas, ainda objeto de controvérsias; mas não se estendem fora dos limites da ciência e só surgem, finalmente, na medida das conquistas por ela realizadas. Essas questões se resolvem com a ajuda de um método reconhecido por todos os que se dedicam ao estudo da ciência, que é a experimentação. Assim se apresenta, por exemplo, o caso da teoria da relatividade na física. Uma questão muito importante, objeto de controvérsias, consiste em saber se existe um éter, matéria que transmita a luz. Esses problemas se solucionam pela experimentação, e esta última, em particular, foi estudada com ajuda de uma longa série de experiências realizadas por célebres físicos, principalmente pelo americano Michelson. Do mesmo modo, há uma série de questões que derivam, necessariamente, da primeira, como a aparente regularidade nos movimentos do planeta Mercúrio, na marcha de um cometa que passa perto do Sol etc. E, para resolvê-las, só há o método da experimentação. Também na química surgem outros problemas. Nos últimos tempos, surgiram hipóteses sobre a possibilidade de transformar o chumbo ou o mercúrio em ouro. Alguns sábios afirmavam que sim, mas certas experiências minuciosas demonstraram que, no grau em que se encontram as ciências, tal transformação ainda não é viável. Negou-se, igualmente, essa possibilidade, no que se refere à composição atômica. E, neste caso, também, a experiência proporcionou numerosos dados reconhecidos por todos. Podemos dizer, portanto, que existe toda uma série de ciências, cujos métodos são mundialmente reconhecidos e ensinados da mesma forma.

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INTRODUÇÃO AO MATERIALISMO DIALÉTICO AUGUST THALHEIMER Tradução de MONIZ BANDEIRA LIVRARIA EDITORA CIÊNCIAS HUMANAS LTDA. São Paulo 1979 Capa de: Raul Mateos Castell Revisão de: José Carlos C. Crozera e Maria Tereza Cristina L. de Barros LECI-1 LIVRARIA EDITORA CIÊNCIAS HUMANAS LTDA Rua 7 de Abril, 264 - subsolo B - sala 5 - Fone. 36-9544 CEP 01044 - São Paulo - SP Impresso no Brasil printed in Brazil Í N D I C E CAPÍTULO I O materialismo dialético, concepção do mundo moderno. Há uma ou várias concepções do mundo moderno? ..............................7 CAPÍTULO II A religão .........................................................13 CAPÍTULO III O papel social da religião ...........................................21 CAPÍTULO IV Filosofia materialista na antigüidade ...............33 CAPÍTULO V Filosofia idealista na antigüidade .............................41 CAPÍTULO VI A lógica e a dialética na antigüidade ...............47 CAPÍTULO VII Hegel e Feuerbach ............................................57 CAPÍTULO VIII Do materialismo formal ao materialismo dialético ..65 CAPÍTULO IX A teoria materialista do conhecimento ................73 CAPÍTULO X A dialética ...........................................................83 CAPÍTULO XI A concepção materialista da História ...............103 CAPÍTULO XII A luta de classes ............................................113 APÊNDICE Materialismo dialético e ação recíproca Georges Friedmann .........................................................................125 CAPÍTULO I O MATERIALISMO DIALÉTICO, CONCEPÇÃO DO MUNDO MODERNO. HÁ UMA OU VÁRIAS CONCEPÇÕES DO MUNDO MODERNO? Há uma concepção do mundo reconhecida, universalmente, como há uma só física e uma só química? Em todo o mundo a física e a química se ensinam do mesmo modo. É claro que nessas ciências há questões que não foram resolvidas, ainda objeto de controvérsias; mas não se estendem fora dos limites da ciência e só surgem, finalmente, na medida das conquistas por ela realizadas. Essas questões se resolvem com a ajuda de um método reconhecido por todos os que se dedicam ao estudo da ciência, que é a experimentação. Assim se apresenta, por exemplo, o caso da teoria da relatividade na física. Uma questão muito importante, objeto de controvérsias, consiste em saber se existe um éter, matéria que transmita a luz. Esses problemas se solucionam pela experimentação, e esta última, em particular, foi estudada com ajuda de uma longa série de experiências realizadas por célebres físicos, principalmente pelo americano Michelson. Do mesmo modo, há uma série de questões que derivam, necessariamente, da primeira, como a aparente regularidade nos movimentos do planeta Mercúrio, na marcha de um cometa que passa perto do Sol etc. E, para resolvê-las, só há o método da experimentação. Também na química surgem outros problemas. Nos últimos tempos, surgiram hipóteses sobre a possibilidade de transformar o chumbo ou o mercúrio em ouro. Alguns sábios afirmavam que sim, mas certas experiências minuciosas demonstraram que, no grau em que se encontram as ciências, tal transformação ainda não é viável. Negou-se, igualmente, essa possibilidade, no que se refere à composição atômica. E, neste caso, também, a experiência proporcionou numerosos dados reconhecidos por todos. Podemos dizer, portanto, que existe toda uma série de ciências, cujos métodos são mundialmente reconhecidos e ensinados da mesma forma.

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A unidade do materialismo dialético. A questão varia completamente para os problemas que se colocam no campo da filosofia. Não existe uma concepção do mundo, admitida por todos, assim como existe uma física, uma química, uma botânica etc; pelo contrário, existem numerosas concepções do mundo, opostas umas às outras, e que reciprocamente se combatem. O que para um é verdade, constitui falsidade para o outro, e vice-versa. Como comunista, eu adoto a teoria que trata da concepção do mundo chamada materialismo dialético. Mas a esta concepção do mundo há outras que se lhe opõem violentamente. Em primeiro lugar, aquelas comumente designadas com o nome de religiões. Com efeito, uma religião é, de certo modo, uma concepção do mundo. Há um grande número delas, e cada uma pretende possuir exclusivamente a verdade. Somente ela mostra aos homens o caminho a seguir na vida e um meio de alcançar outra vida ditosa depois da morte. Junto a estas distintas religiões existe, ainda, grande número de concepções do mundo. Poder-se-ia dizer que existem tantas quantos filósofos há, e cada um pretende que a sua seja a "única", excluindo, portanto, todas as demais. Como sair desta espantosa confusão e como chegar à verdadeira concepção do mundo moderno? Isto é o que veremos agora. O materialismo dialético em seu desenvolvimento histórico. Poderíamos começar este estudo procurando a resultante de todas essas diferentes concepções do mundo, tomando de cada uma delas o que têm em comum e apresentando este conjunto como a concepção de um mundo moderno. Mas isso é impossível, porque se contradizem tanto, inspiram-se em princípios tão diferentes, que, se se mesclassem, e desse conjunto tentássemos separar as contradições encontradas, não restaria absolutamente nada. Que fazer então? A tarefa torna-se mais difícil, isso porque o leitor menos iniciado já não possui um espírito completamente virgem e, de um modo mais ou menos consciente, formou um conceito do mundo, tanto em conseqüência da educação recebida como pelas influências de seu meio ambiente (leituras, conferências etc.). Portanto, o melhor método a seguir é o de expor o materialismo dialético não como uma coisa definitiva, com normas fixas, mas com sua história, seu desenvolvimento, ensinando como, com a ajuda de certos elementos, ele chegou a se constituir numa concepção do mundo e, finalmente, a crítica das diferentes doutrinas que se lhe opõem. Somente assim poderemos chegar ao fim de nosso trabalho. Por outro lado, esse método tem a enorme vantagem de permitir ao próprio leitor orientar-se nas diferentes correntes intelectuais, que encontrará em continuação. É o método que empregava Kant quando dizia a seus alunos: "O que eu quero não é ensinar-lhes um determinado sistema filosófico, mas que aprendam a filosofar vocês mesmos, a formar uma opinião própria". Com efeito, isto é igualmente necessário na filosofia como em qualquer ofício. Se der a alguém uma conferência sobre a arte de fabricar calçado, não lhe servirá de grande coisa se, ao mesmo tempo, não lhe ensinar a maneira de fabricá-lo. Do mesmo modo não se tiraria nenhuma conseqüência de uma extensa conferência sobre materialismo dialético se não se ensinasse, ao mesmo tempo, a aplicação desta concepção do mundo às principais questões da sociologia, da história, das ciências naturais, da filosofia etc. Por esta razão esforçar-me-ei em aplicar o próprio método do materialismo dialético à exposição que dele vou fazer. Começaremos por travar conhecimento com duas de suas características principais. Eu o exporei como algo que se formou pouco a pouco, ou melhor, como um fenômeno histórico. É, realmente, uma característica particular do materialismo dialético considerar todas as coisas, na natureza e na História, não como fatos acabados e estáticos, mas como aparecidos num determinado momento e em contínua transformação, para desaparecer um dia. E, depois, demonstraremos como o materialismo dialético nasceu de uma ou várias concepções do mundo que lhe eram diametralmente opostas, chegando ao conhecimento desta outra sua característica fundamental: a idéia de que o desenvolvimento se processa através das contradições e que uma coisa se desenvolve sempre partindo de seu oposto.

Duas correntes ideológicas fundamentais: a corrente proletária e a corrente burguesa. Se examinarmos agora mais de perto as diferentes concepções do mundo, que se acham em contradição atualmente, comprovaremos que não temos diante de nós um conjunto anárquico e que podemos distinguir certos grupos, certas tendências. Se os examinarmos deste ponto de vista, poderemos distinguir, em continuação, duas correntes principais que correspondem exatamente às duas classes fundamentais da sociedade moderna. A primeira é a corrente proletária. A esta corrente pertence o materialismo dialético, também chamado marxismo. A outra é a corrente burguesa, representada pelas diferentes concepções do mundo, que se têm chamado, comumente, idealistas. Ainda há uma terceira corrente intermediária entre as duas primeiras e que se crê colocada sobre elas, mas que, na realidade, não é senão uma forma especial da concepção do mundo à maneira burguesa. Esta corrente corresponde à classe intermediária entre o proletariado e a burguesia, isto é, a pequena burguesia. Da mesma forma que, socialmente, a pequena burguesia se acha colocada entre o proletariado e a burguesia, existe toda uma série de concepções do mundo intermediárias, entre a concepção materialista do proletariado e a concepção idealista da burguesia. Porém, como a pequena burguesia não pode, na realidade, adotar uma posição neutra, intermediária entre a burguesia e o proletariado, está fadada, afinal, a decidir-se por uma ou por outra, a fazer uma aliança com alguma das duas; e, por isso, esta concepção do mundo, própria da pequena burguesia, não pode sobrepor-se ao materialismo e ao idealismo, nem ficar entre os dois. Tratarei de expor estas correntes fundamentais em seu desenvolvimento histórico.

O que nos interessa neste estudo não são os detalhes científicos, os nomes, as datas etc., mas, unicamente, as grandes linhas gerais da história do pensamento. Desde o início será o próprio materialismo dialético que constituirá o ponto central de nosso estudo. Examinaremos imediatamente a questão religiosa como a concepção do mundo mais antiga, origem de todas as demais. Seguiremos estudando os diferentes sistemas filosóficos da antigüidade; passaremos logo ao materialismo francês, isto é, à filosofia que preparou a maior e a mais importante revolução burguesa em fins do Século XVIII. Insistiremos de modo particular sobre esse materialismo, que ocupa um lugar preponderante na história da formação do materialismo dialético. Depois indicarei as etapas mais importantes do desenvolvimento da filosofia burguesa na Alemanha, a saber: Hegel e Feuerbach, aos quais dedicaremos um estudo especial porque, como o materialismo francês, eles também contribuíram

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consideravelmente para a formação do materialismo dialético. Finalmente, estudaremos os princípios fundamentais da dialética o tiraremos as conseqüências que obtiveram da prática. CAPITULO II A RELIGIÃO

O caráter fundamental da religião. A primeira questão que se nos apresenta é a seguinte: em que se diferencia a religião do conceito dialético materialista do mundo? Que é que constitui o caráter particular, fundamental da religião? O caráter fundamental da religião pode ser definido da seguinte forma: é um produto da fantasia, da inspiração, oposto à concepção do mundo moderno, que é um produto da ciência. Também se pode expressar esta idéia, como segue: a religião baseia-se na crença, enquanto a ciência se apóia no conhecimento. Sem dúvida, não é exato dizer que a religião é somente produto da fantasia e não se baseia em nenhuma experiência anterior. A fantasia religiosa é igual a qualquer outra. Tem certa base experimental que interpreta a seu modo. A ciência também possui sua base experimental, que se interpreta de um modo completamente oposto, não por meio da fantasia, mas por meio da lógica e da idéia consciente.

A interpretação religiosa e a interpretação científica dos fenômenos da natureza. Para melhor compreensão desta diferença de método coloquemos, pois, um exemplo das diferentes maneiras que têm a religião e a ciência de tratar um mesmo assunto. Tomemos um fenômeno comum, tal como a chuva. O fenômeno tem uma importância extraordinária na vida material do homem. Para os povos que se consagram principalmente, à agricultura, a sorte destes depende em grande parte da freqüência, da abundância e da distribuição local da chuva. Porém a chuva é um fenômeno independente da vontade humana. É impossível, portanto, provocá-la ou impedi-la, segundo se tenha necessidade ou não dela. Agora, vejamos: Que faz a religião? Que fazem os povos primitivos? Uma e outros imaginam o fenômeno natural da chuva como o produto da ação de um ser fantástico que chamam o deus da chuva. Encontramos este deus e outros análogos em todos os povos primitivos e sob as mais diversas formas. Para estes povos primitivos o problema consiste em influir sobre estes deuses possuidores da chuva, e isto com a ajuda de meios dos quais se sabe por experiência que exercem grande influência. sobre seres poderosos: dádivas, sacrifícios, pedidos, ameaças ou atos simbólicos representados por ações reais, cerimônias. Em certos povos existem especialistas para estas classes de atos: são estes "os fazedores de chuva". Sua função é a de provocá-la por meio de certas cerimônias e fórmulas mágicas.

Neste caso a ciência procede de modo completamente distinto. Não considera a chuva como o produto da ação de um deus, de um demônio ou de um espírito qualquer, mas como o resultado de causas naturais ou de determinadas forças da natureza. Investiga as causas das chuvas, não na vontade de seres fantásticos, que residem ocultos por trás do fenômeno, mas no próprio fenômeno e em suas relações com a natureza em geral. Há uma ciência especial, a meteorologia, que se ocupa da chuva, estuda seus fenômenos e os classifica segundo este ponto de vista: Quais são a causa e o efeito? Que condições são necessárias para que caia a chuva e em, que regiões cai etc? Esta ciência não progrediu ainda o suficiente para que seja possível prever com exatidão, em cada caso, se choverá e onde, nem como provocar a chuva à vontade¹. ( ¹ A meteorologia, nos últimos anos, tomou forte impulso, de sorte que superou esta observação de Thalheimer - N. do T.) Um feiticeiro australiano sabe aparentemente muito mais que um meteorologista moderno, o qual pode prever aproximadamente a chuva, porém não pode provocá-la quando quer. Vê-se aqui, por conseguinte, o antagonismo fundamental que existe entre a atitude da religião e a da ciência.

Tomemos outro exemplo: o do trovão. O homem primitivo crê que existe um deus do trovão que viaja sobre as nuvens com seu carro. Há certos meios mágicos, mediante os quais crê poder provocar o trovão. Muito diferente é a atitude da ciência que considera o trovão como um ruído, conseqüência de um fenômeno de descarga elétrica que é o relâmpago. Ainda não foi possível a produção artificial da quantidade de eletricidade necessária para produzir o relâmpago e o trovão; chegou-se, entretanto, a provocar no laboratório de física fenômenos semelhantes, ainda que em pequena escala.

Resumindo, diremos que o caráter próprio da religião consiste em dar uma interpretação fantástica a um grupo de experiências conhecidas, quer na natureza, quer na História; e, assim, representa os deuses, espíritos, demônios etc., como possuidores ou produtores dos fenômenos da natureza. Na última forma da evolução religiosa, isto é, nas religiões chamadas monoteístas, a natureza não é regida por numerosos espíritos, deuses ou demônios, mas por um deus único, um ser fantástico que vive fora e além do mundo, um ser cuja base está representada pelo próprio homem e cujos poderes são infinitos e não possuem relação com um corpo, determinado. É desnecessário dizer que não somente existe um deus, como também uma família divina composta do pai, do filho e do espírito santo. Desde a forma que assume entre os negros da Austrália até a que tomou no cristianismo, a religião teve largo desenvolvimento no curso do qual não variou em sua essência. Hoje mesmo existem, no regime capitalista moderno, formas de religião extraordinariamente refinadas, nas quais a idéia religiosa está, aparentemente, muito distanciada das concepções primitivas dos negros da Austrália. Mas apenas aparentemente, porque, estudando-as com atenção, logo se nota que estas formas refinadas da religião significam uma volta às crenças primitivas dos selvagens do centro da África ou da Austrália. Muito diferente é a atitude da ciência que observa e compara os fatos, classifica-os, e, decompondo-os, estuda a sucessão dos fenômenos no tempo, a ação que exercem uns sobre os outros, o modo de produzir-se etc. Também estuda o modo como aparecem e se transformam os fenômenos sociais. Depois, tomando por base as ciências naturais, constrói a técnica, e, sobre a base da ciência social, a política, com ajuda dos quais põe, mediante leis reconhecidas, as forças naturais a serviço do homem para a reprodução de valores de uso¹ (Valor de uso de unia mercadoria é sua capacidade para satisfazer

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necessidades humanas de qualquer espécie - N. do T.), ou das instituições sociais. Neste sentido, a religião, qualquer que seja, distingue-se essencialmente da ciência e da concepção do mundo moderno. Principais fontes da religião. Chegamos agora à questão de se saber quais são as principais fontes da religião. Distinguimos duas em primeiro lugar. A primeira é o estado de dependência em que se encontra o homem perante a natureza e seu desejo de dominar, no campo da imaginação, mediante a ajuda de sacrifícios, cerimônias etc., as forças naturais, que não pode dominar na realidade. A segunda fonte, não menos importante, da religião, são as relações dos indivíduos perante a sociedade, isto é, o conjunto das relações sociais. A base das relações sociais tem por sua vez origem no modo de produção, isto é, nas relações que os homens estabelecem mutuamente ao produzir coisas úteis para sua subsistência; dito de outro modo: a forma social de produzir sua vida material. Vejamos estas duas principais fontes da religião nos tempos das sociedades primitivas. Examinemos, inicialmente, a dependência do homem perante a natureza. É lógico que o homem depende muito mais da natureza quanto menor for seu desenvolvimento técnico e econômico, encontrando-se em condições mais propícias, portanto, para considerar todos os fenômenos da natureza através da fantasia religiosa. Imaginemos o homem primitivo, armado somente com rudimentar instru- mento de pedra, osso, um pedaço de madeira, apenas suficiente para que ele procure os objetos necessários à sua existência, por meio da caça e da pesca. E natural que de tais relações de dependências perante a natureza deverão nascer as mais diversas concepções religiosas. Vejamos o lavrador primitivo que depende muito estreitamente das forças naturais: do sol, do vento, da chuva, do rio que corre diante de seu campo. Enquanto o homem não puder compreender esses fenômenos, prevê-los e dominá-los em maior ou menor grau, com a ajuda da técnica, buscará um meio de dominá-los com a ajuda da religião. Assim, se se examinam as diferentes formas de sociedades e religiões, veremos em seguida que estão sempre em estreita relação com a atitude da sociedade perante a natureza. A força religiosa dos diferentes regimes sociais. A segunda fonte da religião constitui-se das relações múltiplas entre os homens. Através delas vemos que o indivíduo, na sociedade, depende do conjunto da coletividade, que representa para ele uma força superior. Em épocas primitivas, a coletividade exerceu uma influência considerável sobre o indivíduo que se encontrava num extraordinário estado de dependência diante do clã ou da tribo. Os hábitos, direitos, usos etc., as prescrições da coletividade eram para ele mandatos aos quais não podia subtrair-se. Porém, ordinariamente, não compreendia nem o sentido nem o objetivo desses mandatos, que influíam sobre ele de modo instintivo e automático. A sociedade primitiva não era, em si mesma, senão uma espécie de ser natural. Os mandatos, prescrições, costumes etc. influíam sobre o indivíduo como forças naturais que não chegava a compreender. Finalmente, as sociedades primitivas têm, com respeito a si mesmas, atitude idêntica à que adotam com respeito às forças naturais. Esse é o caráter particular das relações sociais refletidas com clareza pelas concepções religiosas, que constituem o seu fundamento e sua sanção. Por isso, encontramos entre os povos primitivos das ilhas do Oceano Pacífico muitas prescrições "tabu", isto é, prescrições pelas quais tal ou qual grupo de homens não deve caçar tal ou qual animal ou não deve colher nem comer tal ou qual planta durante determinado período. Essas prescrições tinham, em sua época, um significado muito claro; constituíam simplesmente unia regulamentação. das forças produtivas. Tinham, por objetivo, conseguir deter minada divisão do trabalho e certa regulamentação do consumo; mas, com o tempo, tornaram-se incompreensíveis, automáticas, e foram a origem de certas concepções religiosas, segundo as quais as referidas regras haviam sido estabelecidas por tal ou qual espírito ou demônio que sancionava por si mesmo a execução ou meios de castigo infligidos a quem as violasse. Uma das mais antigas concepções religiosas, talvez a mais, antiga de todas, é o culto aos mortos, aos espíritos ancestrais. Precisamente, este culto desempenha, nas antigas religiões, um papel considerável. Não se pode explicar os espíritos ancestrais como a encarnação de um fenômeno natural, a não ser com a ajuda das relações sociais. As almas dos mortos, adoradas por seus descendentes, mantêm os laços na imaginação, naturalmente, entre as diferentes gerações, garantindo a continuidade da ordem social tradicional. Esta se encarna no espírito ancestral da família ou do clã. Encontramo-nos imediatamente com fontes muito abundantes de concepções religiosas onde os antagonismos de classe fazem sua aparição na sociedade. Nesse momento, a religião converte-se num meio que serve de instrumento à classe dominante para manter em obediência e submissão a classe explorada. Isto, porém, não é tudo. No momento em que aparecem os antagonismos de classe, assiste-se à formação de uma classe ou casta especial, cuja única função consiste em ocupar-se dos assuntos religiosos. É a casta dos sacerdotes, uma casta que está mais ou menos livre de executar um trabalho produtivo e que o resto da coletividade sustenta. Para essa casta especial os conceitos religiosos convertem-se rapidamente num meio de explicar e manter sua situação privilegiada. Não obstante, seria um erro crer que os indivíduos que a integram enganam conscientemente o resto da coletividade, pois eles mesmos são produto das relações sociais. Portanto, a religião é considerada como uma verdade, tanto pela massa popular como pelos mesmos sacerdotes. Representa a concepção do mundo adaptada às condições de existência e ao pensamento primitivo. Também é preciso compreender que esta classe de sacerdotes desempenhou, durante certo tempo, um papel progressista. Na época em que os homens necessitavam lutar, mediante grandes esforços, para procurar os meios necessários à sua existência, os sacerdotes, em conseqüência de sua posição social particularíssima, que os dispensava de todo o trabalho produtivo, encontravam a possibilidade de consagrar-se a uma série de tarefas sociais, para cuja atividade era indispensável estar livre de toda a participação direta na produção. Vemos, portanto, que os sacerdotes criaram as origens da ciência. Tanto é assim que os princípios da astronomia se remontam às investigações feitas pelos sacerdotes egípcios e babilônicos, e os primeiros elementos da geometria foram encontrados por sacerdotes que necessitavam medir a terra, traçar planos para a construção de templos, prever o aumento ou diminuição das águas do Nilo etc.

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A casta dos sacerdotes desenvolveu da mesma forma os primeiros germes, do que mais tarde seria a filosofia e as ciências naturais, que um dia acabarão com a existência dos sacerdotes e da própria religião. CAPITULO III O PAPEL SOCIAL DA RELIGIÃO A religião e suas relações com as formas sociais e de produção. Vejamos agora que relações existem entre a religião e o modo de produção. Na antigüidade verificamos que o desenvolvimento das concepções religiosas se desenvolve paralelamente às formas sociais. Tomemos como exemplo o fenômeno da fusão dos diferentes deuses locais. Da mesma forma que as famílias se agrupavam em tribos, as tribos constituíam os povoados, os deuses primitivos de famílias e aldeias se agrupavam em deuses de tribos, sendo considerado um deles como um deus supremo da tribo em questão. Quando certo número de tribos se agrupava para formar uma nação, assistimos à criação de um deus nacional e, finalmente, quando se constitui uma unidade social mais consistente ainda, um império de diferentes nações, o deus nacional cedia lugar ao deus do império. Podemos comprovar este fenômeno, claramente na China antiga, onde a hierarquia de deuses, demônios, espíritos etc. corresponde exatamente à estrutura social. Ternos em primeiro lugar os deuses da família e dos clãs, que são os antepassados. Depois temos os deuses de aldeias, os deuses de povoados e províncias e, finalmente, quando, em consequência da fusão de um grande número de pequenos estados feudais, chega a China a tornar-se uma monarquia centralizada, nota mos igualmente uma centralização das concepções religiosas. Considerou-se o céu como o deus supremo, tendo como sacerdote o imperador. Também no império romano vemos as primitivas religiões nacionais substituídas pelo cristianismo como religião universal. O ponto de partida do cristianismo, assim considerado, foi a religião nacional de uma comunidade da Palestina: os judeus. O deus nacional judeu foi elevado à categoria de deus mundial. Tinha, com efeito, particulares qualidades que o predestinavam a converter-se no ponto de partida da religião mundial da antigüidade, porque era deus de um povo oprimido. Dessa forma, as classes e os povos oprimidos do Império Romano foram os primeiros adeptos dessa nova religião. Mais algumas palavras sobre o cristianismo. As relações do cristianismo com a estrutura social não se manifestaram unicamente pela característica de seu deus como deus universal, mas também em outro aspecto muito importante. O cristianismo efetivamente constituiu-se na religião dos escravos. Estes constituíam a classe mais explorada e oprimida do povo, a que sentia, por conseguinte, mais necessidade de libertação. Saíam de todos os países para Roma. A opressão comum e a vida em comum fizeram desaparecer entre eles todas as diferenças de ordem nacional. E assim se tornaram acessíveis à propaganda de uma religião internacional. Perguntar-se-á por que, precisamente entre eles, se incubou a necessidade de uma religião nova e por que não se fizeram simplesmente materialistas ou ateus. Para isto é preciso compreender que urna classe não se pode livrar da religião senão quando possui força para construir um mundo novo, urna ordem sócio-econômica superior. Não era este o caso dos escravos da antigüidade. A escravatura não tinha nenhuma saída para uma ordem sócio-econômica superior. A escravatura originou a ruína do mundo antigo, das civilizações grega e romana. Um desenvolvimento novo para urna ordem social superior não começou até que as tribos germânicas irromperam no Império Romano, aniquilaram a antiga sociedade e a antiga cultura e, sobre suas ruínas, construíram o regime feudal. O sistema escravista não oferece nenhuma solução histórica. Por isso, a ideologia dos escravos em luta contra o destino que os oprimia não podia ser senão religiosa. Sua emancipação devia tomar, necessariamente, uma forma imaginária: um reino, dominado pelo redentor do mundo, com um regime de consumo comunista. Este reíno foi primeiramente colocado no mundo e depois além: no céu. Do mesmo modo, há algumas décadas, vimos desenvolver-se sentimentos religiosos, muito intensos, entre os escravos modernos, por exemplo, entre os das plantações de algodão dos Estados meridionais da América do Norte, que reagiam contra a terrível opressão a que estavam submetidos e para a qual não viam solução alguma. O cristianismo feudal. Voltamos a encontrar essas mesmas relações entre o regime social e as concepções religiosas na idade média. O cristianismo dessa época, só aparentemente, é análogo ao cristianismo da antiguidade, porque, do mesmo modo que se transformavam então as relações sociais, também se transformou o cristianismo. O Império Romano foi substituído na idade média por um sistema de estado feudal: nasceram os estados nacionais o europeus modernos. As relações econômicas locais estreitaram-se, constituiu-se uma hierarquia nova e estes mesmos sintomas foram experimentados pela religião. Enquanto o cristianismo primitivo conheceu somente uma divindade, composta de três pessoas, o cristianismo da idade média conheceu uma série de seres celestiais, classificados segundo uma hierarquia semelhante à feudal, que se achava organizada da seguinte maneira: em primeiro lugar, o senhor feudal, vassalo de um conde ou de um duque, por sua vez submetido à autoridade de um príncipe ou de um rei. Os príncipes, duques, reis etc. estão colocados abaixo do imperador. Esta é, exatamente, a mesma hierarquia que encontramos no cristianismo da idade média. Temos primeiro o povo com seu santo local; depois, as províncias com seus santos particulares; depois, as nações com seus santos nacionais. Por cima deles, encontramos os anjos, divididos em numerosas categorias; depois, os arcanjos e, finalmente, a Santíssima Trindade. Fixemos, portanto, que na idade média não desapareceram os mais primitivos conceitos religiosos. As crenças pagãs, tais como as crenças em espectros, duendes, gigantes e toda espécie do espíritos e demônios, mantêm-se no cristianismo, ao qual completam. A razão é que elas têm igualmente seus princípios nas condições de existência da sociedade medieval. O papel da religião na sociedade capitalista. Vejamos agora o papel que desempenha a religião na sociedade capitalista moderna. Poder-se-ia crer que nesta sociedade a religião não tem nenhuma razão de existir, pois, as relações desta sociedade com a natureza são muito diferentes das relações das sociedades passadas. Enquanto, na antigüidade e na idade média, o homem se encontrava num estado de completa dependência perante a natureza, na sociedade capitalista moderna, pelo contrário, a técnica e a ciência permitem-lhe dominá-la e expandir essa dominação ao infinito. Nenhum sábio moderno

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apelará para fórmulas mágicas para resolver seus problemas. O técnico que deseja construir qualquer máquina não procederá do mesmo modo que um feiticeiro australiano ou africano, mas basear-se-á nas propriedades comuns da matéria. Parece estranho, portanto, que possam existir ainda concepções religiosas na moderna sociedade capitalista. Porém, aqui, a fonte da religião não é a natureza, mas a própria sociedade. É fato sabido que a classe dominante, na sociedade capitalista, conhece perfeitamente o método que lhe permite dominar a natureza; mas não conhece nenhum método para dominar racionalmente a própria sociedade. O que caracteriza, de fato, a sociedade capitalista é a falta de uma administração racional, vivendo ela, pelo contrário, em meio de cega anarquia. A sociedade capitalista não domina sua própria vida econômica e social. Cada indivíduo e a própria sociedade são dominados por esta vida. Vemos, assim, que a atitude da sociedade capitalista diante da sua própria economia não é da do selvagem australiano diante do relâmpago, do trovão, da chuva etc. Esta característica da sociedade capitalista se mostra mais claramente nos períodos de crise econômica, de guerra e revolução. Efetivamente, nas épocas de crise, milhões de fatores econômicos se aniquilam, sem que possam os indivíduos opor nenhuma resistência e sem que possam escapar à sua sorte. A economia capitalista prossegue o seu desenvolvimento desde a paralisação da produção à prosperidade, e desta à crise, sem poder exercer sobre este desenvolvimento uma influência determinada e sem poder prever o momento em que estalará a crise; além do mais, não pode evitar as catástrofes que, produzindo-se bruscamente na sociedade capitalista, são mais terríveis ainda nas épocas de guerra, em que milhões de homens, imensas quantidades de riqueza se destroem sem que a sociedade possa fazer nada para impedi-lo. Muito ao contrário, o nascimento de tais crises origina-se no próprio jogo da concorrência capitalista. Compreende -se, pois, por que em tal sociedade os conceitos religioso não desapareceram e subsistirão tanto tempo como a própria sociedade. Uma característica das correntes religiosas é que estas aparecem mais claramente, e sob formas mais ou menos grosseiras, entre as classes dominantes nos períodos de crise, de guerra ou de revolução. Por isso, assistimos, durante a guerra, a um reforço do movimento religioso na burguesia européia. Em continuação às revoluções que estalaram depois da guerra, surgiram correntes análogas. Na atualidade, nota-se um ressurgimento do espiritismo, isto é, da crença nos espíritos que, no fundo, não se diferencia em nada das crenças das tribus selvagens da África do Sul. Junto a estas formas rudimentares da religião, existem outras mais refinadas, impossíveis de distinguir à primeira vista, e que, entretanto, se assemelham mais ou menos com o conceito dos homens primitivos, segundo o qual as almas dos mortos possuem existência independente do corpo e influem sobre a vida humana. Em épocas tais, como a que vivemos atualmente, em que a burguesia européia se vê diante da ameaça da revolução proletária, a religião é para ela um meio de tranqüilizar seus temores, um apoio que a sustenta no momento em que imagina abrir-se o abismo diante dos seus olhos. A burguesia revolucionária e sua luta contra a religião e a Igreja. Houve, sem dúvida, uma época em que a burguesia sustentou encarniçada luta contra a religião e a Igreja. Basta recordar o papel desempenhado pelos enciclopedistas e pelos materialistas franceses do Século XVIII. Era a época em que a Igreja constituía uma parte integrante da classe contra a qual a burguesia devia fazer sua revolução. A Igreja estava estreitamente unida ao feudalismo e à monarquia absoluta. Nesta época que, por outro lado, não foi muito duradoura, a burguesia era anti-religiosa e conclamava o povo a lutar contra o feudalismo e contra a Igreja. Quando, no entanto, chegou ao poder, com a ajuda do povo, imediatamente modificou o seu ponto de vista; percebeu que a religião também era um meio admirável de afirmar sua dominação política e econômica, um meio excelente de opressão intelectual da grande massa do povo. Assim se explica como a burguesia, com medo do proletariado, sustenta hoje a Igreja, que outrora combateu. A religião e o campesinato. Examinaremos agora o papel que desempenha a religião entre os camponeses. Na sociedade moderna, o camponês e, principalmente, o pequeno camponês caracterizam-se por uma particular situação social e econômica que determina uma atitude especial diante da natureza. O pequeno camponês não está, como o grande proprietário capitalista, de posse dos meios da tecnologia moderna. Trabalha com instrumentos simples, relativamente primitivos, pois a sua exploração não é suficientemente importante para permitir-lhe utilizar, plenamente, as conquistas da ciência e da técnica modernas. Por essa razão, ela está em maior dependência das forças da natureza do que o fazendeiro capitalista. Sua sorte depende da chuva e do sol, das características do solo e da multiplicidade de causas de ordem natural, que não pode dominar nem exercer sobre elas uma influência, a não ser muito restrita. Essas causas lhe aparecem, portanto, como forças superiores. Entre os pequenos camponeses, a religião tem, conseqüentemente, raízes na sua dependência perante a natureza, da mesma forma que em sua condição social e em sua situação particular de classe. Na medida em que sua exploração não representa nem sequer uma simples economia natural, o camponês é um produtor de mercadoria. Produz cereais e gado que leva ao mercado, do qual depende inteiramente, onde converterão em dinheiro estes cereais e este gado e onde fixam seu preço de venda. Esse mercado é que decidirá se ele trabalhou gratuitamente, se receberá o valor total de seu trabalho ou apenas uma parte. Não é o próprio camponês quem determina o preço; sua sorte depende dessa potência econômica superior, que é o mercado. Tomemos como exemplo um camponês que cultiva trigo. Se deseja vendê-lo, a preço, mediante o qual poderá encontrar comprador, não depende somente da quantidade de trabalho que empregou para cultivar o trigo e sim do preço que determina a Bolsa de Paris, de Londres ou de Nova lorque; e sucede com freqüência que essas leis arruínam o camponês que as desconhece e que, ainda no caso de as conhecer, não pode dominá-las nem influenciá-las. É compreensível que, dado este estado de dependência extraordinário em que vivem os pequenos camponeses em relação aos fenômenos da natureza, por um lado, e em relação às condições do mercado capitalista, por outro lado, encontremos aqui novas fontes de concepções religiosas. Assim se explica a persistência da religião entre os camponeses mais pobres e atrasados. A religião e o proletariado. A classe da sociedade moderna a que, por sua situação particular, se lhe oferece maior número de possibilidades de desembaraçar-se dos preconceitos religiosos é o proletariado. A razão é bem clara: em conseqüência de sua situação particular na sociedade capitalista o proletariado é, de fato, a classe mais revolucionária. Como tal, sabe perfeitamente até que ponto os conceitos religiosos constituem o meio de consolá-la de suas misérias terrestres, fazendo-a esperar as alegrias do céu. Sabe, também, que a burguesia, longe de contentar-se com os bens celestiais, se esforça,

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pelo contrário, em acumular a maior quantidade possível de bens terrenos. Compreende que todas essas promessas feitas pela burguesia não têm fundamento real. A isto temos de somar o fato de que o cristianismo, como religião de escravos, prega um estado de completa submissão espiritual. Este é, evidentemente, um precioso aspecto do cristianismo para as classes dominantes; mas também é a razão pela qual os operários o repelem. Assim se explica por que a burguesia européia se esforça em propagar o cristianismo nos países coloniais como os da África, bem como na Índia, na China etc. É sobremaneira agradável ao imperialismo que um missionário ensine a um indígena dos países coloniais a esperar tudo ao céu, a ser modesto e obediente. O capitalista, no entanto, vai à igreja ao domingo e esforça-se durante todo o resto da semana em aproveitar-se das riquezas materiais das colônias. Assim se explica, também, que, onde penetram, os capitalistas europeus levam sempre consigo, além do álcool, a bíblia e o missionário. Acrescentaremos ainda outras razões que impulsionam o operário moderno a jogar fora a religião para identificar-se com uma concepção científica do mundo. O operário moderno não adota em relação à natureza a mesma atitude do camponês. Está perto da máquina, conhece a técnica, não se lhe ocorrerá, portanto, atribuir os fenômenos da natureza à ação de um ser sobrenatural. O operário devido à posição que ocupa no processo de produção, assume uma atitude natural e não fantástica, diante dos fenômenos da natureza. Por outro lado, no que se refere à sua atitude diante das forças sociais, o proletariado é a classe que compreendeu melhor o verdadeiro sentido da economia capitalista e sabe que ele é chamado historicamente a revolucionar esta sociedade que se deixa levar pelo acaso das forças naturais, e a substituí-la pela sociedade socialista, na qual o homem não somente domina a natureza, mas também a vida econômica. E essa peculiar atitude do operário moderno é a que explica por que pode ele desembaraçar-se mais fácil e completamente dos conceitos religiosos. Hoje podemos comprovar, em todos os países capitalistas modernos, que unicamente a classe operária se desligou por completo dos preconceitos religiosos. É claro que ainda há operários crentes; mas isto não se explica, em última análise, pela influência que a Igreja ainda exerce e pela educação burguesa. Somente mediante seu próprio esforço poderão repelir por completo essas influências. Na sociedade capitalista, nunca passará de minoria a parte da classe operária que pode levar a cabo, de forma absoluta, esta emancipação intelectual. E só quando esta sociedade se transformar completamente nascerão as condições que permitirão à classe operária, em sua totalidade, libertar-se dos conceitos religiosos. Atitude do racionalismo e do materialismo dialético diante da religião. Acabamos de ver por quais razões se mantêm na sociedade capitalista a influência da religião e como o papel econômico e social das diferentes classes determina sua atitude diante dela. Examinemos agora os distintos pontos de vista nesta questão. Reduzem-se a dois principais: o primeiro é o ponto de vista do racionalismo, que simplesmente considera a religião como algo totalmente irracional. Bastaria, portanto, uma educação adequada para livrar-se de sua influência. A palavra racionalismo provém de terem os filósofos franceses do Século XVIII adotado em suas lutas contra a religião e a Igreja o ponto de vista da razão, segundo o qual a religião é simplesmente um erro remediável passível de ser corrigido pela educação. O que caracteriza esta corrente ideológica é a sua total incompreensão da História. Ela não considera a religião como um fenômeno histórico, destinado a desaparecer um dia como qualquer outro fenômeno histórico. Se menciono este ponto de vista é somente porque ainda hoje se encontra com freqüência no anticlericalismo burguês. Mas, embora aparentemente muito radical, não tem, sem dúvida, grande eficácia na luta contra a religião. O segundo ponto de vista é o materialismo dialético. Distingue-se do anterior por considerar a religião como um fenômeno histórico, que tem suas raízes na estrutura econômica da sociedade, e que desempenhou, inclusive, um papel progressista em sua época. Essa concepção combate a religião, baseando-se no fato de que esta se converte, atualmente, num obstáculo ao desenvolvimento social; mas reconhece que ela ainda possui na sociedade capitalista fundamentos materiais. Vemos, por isso, na prática, que não basta tratar de suprimir simplesmente a religião por meios educativos e que é necessário suprimir as causas materiais, nas quais se apóia para se poder suprimi-la de fato. Para conseguir este objetivo, é necessário antes de tudo substituir a sociedade capitalista pela sociedade socialista. Esta mudança ocasionará o desaparecimento das raízes mais profundas da religião, raízes que se originam no fato de que a sociedade capitalista não domina o seu próprio destino e sim é dominada por ele. Também ocasionará a completa modificação da atitude da sociedade e de seus indivíduos diante da natureza. O socialismo descansa efetivamente sobre as conquistas herdadas do capitalismo, no campo da técnica, aumentando-as até o infinito. Assim, essas duas fontes de concepções religiosas não poderão ser suprimidas através da educação, mas somente por meio de completa transformação social. Isto não exclui, certamente, a necessidade da propaganda anti-religiosa, que constitui por si mesma um fator importante da revolução. Também contribui para apreciar em seu justo valor o papel dessa propaganda, incorporando-a de modo eficaz ao conjunto do trabalho de preparação revolucionária. O sucedâneo da religião. Cabe aqui a seguinte pergunta: "Que substituirá a religião quando ela desaparecer?" Pode~ ríamos responder como o poeta alemão Goethe: "Quem tem a arte e a ciência, tem a religião. Quem não tem a arte e a ciência, que tenha a religião". Dito de outro modo: a religião existe para as pessoas incultas. Isto, porém, que Goethe reservava a uma pequena elite será acessível, no futuro, a todos. Na sociedade burguesa só um pequeno número de privilegiados pode libertar-se intelectualmente mas na sociedade socialista poderão libertar-se todos. É necessário compreender bem que, se hoje constitui um estorvo para o desenvolvimento social o fato de que uma só pequena parte de privilegiados tenha possibilidade material de estudar livremente, em épocas anteriores era impossível, dada a insuficiência das forças produtivas, pretender alcançar o estado atual de coisas que favorece à libertação material e moral das grandes massas populares. A libertação de uma minoria, da necessidade de participar diretamente nos trabalhos produtivos, foi, por conseguinte, condição indispensável para o desenvolvimento das ciências naturais e da técnica. A técnica, quando surgem as condições necessárias, cria a possibilidade material do livre desenvolvimento cultural da coletividade. Isto demonstra que um fenômeno, que é necessário e constitui um progresso em determinadas condições, muda completamente de sentido em outras condições históricas, convertendo-se num obstáculo para o mesmo progresso. O papel desempenhado pela religião nas distintas épocas históricas mostra, claramente, a

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lei geral do desenvolvimento delas, isto é, a lei do desenvolvimento através das contradições. Mais adiante veremos como essa lei não somente pode aplicar-se ao movimento histórico, mas também a toda a classe de movimentos. CAPÍTULO IV FILOSOFIA MATERIALISTA NA ANTIGUIDADE Desenvolvimento da concepção do mundo moderno. As .lutas das quais nasceu a concepção do mundo moderno duraram mais de dois mil anos. Esta concepção não se formou em poucos dias. Através dessas lutas teve lugar o desenvolvimento da filosofia e das ciências naturais. O materialismo dialético constitui somente o último elo da cadeia, o último resultado das lutas que remontam às épocas mais longínquas da História. O ponto de partida desse desenvolvimento foi a Grécia antiga, berço da filosofia e das ciências naturais, donde se fincaram as bases da concepção do mundo moderno. Começaremos, por essa razão, com o estudo da filosofia grega. Causas da decadência da religião e do desenvolvimento da filosofia e ciências naturais. Vejamos agora as condições gerais materiais do desenvolvimento da filosofia e das ciências naturais, assim como também as da decadência da religião na antigüidade. A causa principal da decomposição das religiões na antigüidade deve-se principalmente aos progressos realizados no desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, do homem sobre a natureza. Os progressos realizados na primitiva fase comunista coincidem com a expansão da propriedade privada e da economia mercantil. Nesse sentido, os fatores preponderantes mais imediatos são. o desenvolvimento da agricultura; depois, o aparecimento do capital comercial e do capital-moeda, que desempenham papel de importância progressiva na vida econômica e social. Vemos aqui entrar em cena uma nova classe, que dispõe de tempo suficiente para desenvolver-se livremente e consagrar-se à arte e à ciência. O desenvolvimento econômico, na antigüidade, realizou-se graças aos contingentes da sociedade escravista, na qual toda a produção pesa sobre o trabalho do escravo. Por conseguinte, a base de todo esse desenvolvimento, no curso do qual a religião antiga começa a decompor-se e no qual se constituem os primeiros germes da concepção do mundo moderno, é o aparecimento da economia escravista. Esta é que permite a formação de uma classe de pessoas que dispõem de ócio suficiente para consagrar-se a uma atividade não produtiva. Como disse Aristóteles, o ócio é a condição necessária para o desenvolvimento da filosofia. Numa época mais primitiva, antes de que a economia escravista estivesse em pleno desenvolvimento, encontramos uma fase intermediária, na qual surge urna classe de camponeses e artesões livres. Nesta classe social encontra apoio a dominação dos tiranos sobro os povos gregos. Essas grandes transformações econômicas e sociais tiveram como resultado uma completa mudança das tradicionais concepções morais e políticas. É natural que, quando aquelas se produzem num povo que viveu sem variar de condição durante séculos ou milhares de anos, todos esses problemas tradicionais apresentam-se novamente à discussão. Especialmente na Grécia, o desenvolvimento da filosofia e das ciências naturais está estreitamente relacionado com o desenvolvimento das cidades comerciais das costas da Ásia Menor, onde se assiste, nos Séculos VI e VII aC, ao surgimento de uma filosofia materialista dirigida principalmente contra a classe dos sacerdotes. Filosofia grega da natureza e desenvolvimento das cidades comerciais da Ásia Menor. Examinemos, brevemente, as condições gerais em que se forma a filosofia grega da natureza. Acha-se representada pelos filósofos jônicos, assim chamados por pertencerem ao povo jônio. A base principal dessa filosofia é o desenvolvimento das cidades comerciais gregas das costas da Ásia Menor. Tais cidades, entre as que se destacavam Mileto e Efeso, achavam-se do ponto de vista econômico e cultural, bem acima do nível geral da Grécia de então. Nessas cidades foi onde se formou pela primeira vez, junto à classe sacerdotal, uma classe de pessoas que adquiriu grandes riquezas, encontrando assim a possibilidade de consagrar-se ao estudo da ciência. Esse desenvolvimento foi ainda favorecido pela circunstância de que o horizonte intelectual daqueles gregos da Ásia Menor alargou-se consideravelmente graças aos progressos da navegação comercial. Os primeiros marinheiros mercantes gregos sulcavam com seus navios o Mar Mediterrâneo, o Mar Negro etc. Travaram conhecimento com numerosos povos, religiões, usos e costumes estrangeiros, e assim se explica por que chegaram a adotar facilmente uma atitude crítica a respeito de sua própria religião, de seus próprios costumes etc., e aprenderam a julgar tais matérias de um ponto de vista mais livre. Os progressos da navegação e do comércio originaram também um desenvolvimento considerável da técnica. Os artesãos gregos transformavam em seu país as matérias-primas que recebiam do estrangeiro. Desse modo, nasceram grandes indústrias: a fiação de lã, fabricação de cristais e olaria, ornamentos de pedras preciosas etc. Mas, ao mesmo tempo, cresceu a importação dos cereais e outros artigos de consumo, o que deu lugar ao empobrecimento dos proprietários rurais nativos. Os camponeses, que trabalhavam nos domínios desses proprietários, emigraram para as cidades, a fim de trabalhar como artesãos e, assim, constituíram pouco a pouco uma nova classe de artesãos livres, dominada por um tirano, que podia ser um rico proprietário rural, dedicado, ao mesmo tempo, aos negócios comerciais e financeiros. Devido às suas riquezas e à existência de grande número de cidadãos livres sem terra, que buscavam ocupação, puderam constituir uma milícia mercenária e obter o poder pela violência. Tal foi a base material da filosofia grega da natureza. Os progressos da técnica, da indústria fabril, da navegação, o aumento dos conhecimentos geográficos, tudo isso criou as condições que permitiram a pesquisa de uma explicação natural do mundo, oposta à explicação fantástica que davam os sacerdotes. Os homens, que empreenderam grandes viagens pelo Mediterrâneo, que se familiarizaram com os rudimentos da astronomia, da geografia etc., necessários à navegação, e que travaram conhecimento com uma multidão de povos estrangeiros de costumes diferentes, puderam elaborar uma concepção do mundo científica. Vimos, por outro lado, que dispunham de liberdade e de recursos suficientes para isso. Tales de Mileto e seu ensaio de explicação materialista do mundo. O primeiro filósofo jônico, do ponto de vista cronológico, foi Tales, também chamado pai da filosofia, originário de Mileto, que era, naquela época, a mais rica de todas as cidades comerciais gregas da Ásia Menor. Essa cidade dispunha de grande frota comercial e estendia sua dominação sobre um

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território extensíssimo. Sabemos muito pouco sobre os ensinamentos de Tales. O pouco que conhecemos se relaciona com a sua teoria da formação do mundo. Era esta uma das questões fundamentais que a religião também se esforçava para responder: "Como se formou o mundo?" Tales, seguindo um caminho oposto ao da religião, tratou de dar uma explicação natural. "O mundo, disse, tem como origem a água. Este é o princípio e a verdadeira essência de todas as coisas". Queria dizer com isso que todos os demais elementos (distinguiam-se, então, quatro elementos fundamentais - a água, o fogo, o ar e a terra) provêm da água. Esta explicação se baseava na crença de que todas as matérias são iguais e podem, portanto, transformar-se uma em outra. É claro que Tales não tinha, então, a possibilidade de provar essa afirmação como hoje o faz a química. Por outro lado, a explicação de Tales continha a idéia de que a água era a origem da vida. Sabemos, atualmente, que as ciências naturais declaram que todos os animais terrestres descendem de animais aquáticos e que foi no mar onde apareceu a vida pela primeira vez. A teoria de Tales contém, portanto, um pressentimento genial sobre os futuros descobrimentos da ciência. O fato de Tales afirmar que a água é a origem material do mundo facilmente se explica num povo comercial, cujas riquezas provêm do mar, com o qual está em contato permanente. Conta-se que Tales visitava os sacerdotes egípcios que lhe proporcionaram grande parte dos seus conhecimentos. Isso confirma o que dissemos anteriormente: que a ciência dos sacerdotes egípcios foi um dos pontos de partida da filosofia. Tais sacerdotes egípcios tinham motivos particulares para desenvolver seus conhecimentos naturais. Toda a vida econômica e cultural do Egito depende da irrigação artificial do país por meio das águas do Nilo. Sem esta irrigação, o país seria um deserto; mas para poder regularizá-la os sacerdotes deviam prever as épocas de fluxo e refluxo das águas do Nilo o para isso estudar as estrelas. A irrigação, assim como a construção dos templos, necessitava, para ser levada a cabo, operações de agrimensura. Assim se explica por que se desenvolveram entre os sacerdotes egípcios os primeiros elementos da geometria, da astronomia e da matemática. Esses elementos foram utilizados, classificados e desenvolvidos pelos filósofos jônicos. Anaximandro. Como Tales, Anaximandro originava-se de Mileto. Viveu numa época mais próxima à nossa que a de Tales. Seus ensinamentos são, em grandes traços, os seguintes: o mundo, provém de matéria amorfa, cujo desenvolvimento ocorre pela reparação de seus diferentes elementos, Dessa matéria estão constituídos todos os corpos celestes. Os homens descendem de animais aquáticos que penetraram lentamente no interior da Terra. À idéia da formação do mundo, dos planetas e dos seres vivos, Anaximandro ligava a idéia do fim do mundo. Se a formação do mundo se deve à divisão da matéria nos elementos que a constituem, o fim do mundo e a morte dos seres vivos produzir-se-ão em conseqüência da desintegração dos elementos que os compõem. Segundo Anaximandro, a matéria é eterna e indestrutíve1. A filosofia, e, por conseguinte, uma filosofia materialista, baseia-se em causas naturais. Estudando-os detidamente, assombra a exatidão desses conceitos, numa época em que ainda não se conheciam os grandiosos resultados obtidos pelas modernas ciências da natureza: a química, a física, a astronomia etc. Heráclito. Heráclito, de Efeso, foi chamado o obscuro por causa da confusão e dificuldade do seus escritos. Nasceu em Efeso, que naquela época era a rival de Mileto. Viveu no Século VI aC. Sua importância na história da filosofia consiste no fato de ter descoberto e elaborado as linhas gerais do que mais tarde chamar-se-ia dialética. Heráclito chegou à sua teoria da formação do mundo, mediante uma generalização das teorias existentes em sua época sobre este problema. Todos os filósofos, que precederam a Heráclito, atribuíram ao mundo uma origem diferente. Um deles, Tales, fazia-o nascer da água; outros, do ar; um terceiro, da matéria em geral. Heráclito formulou a teoria da transformação constante de todas as coisas. Expressou esse conceito de uma forma assombrosa: tudo muda, isto, é, tudo esta em vias de uma transformação constante; nada permanece fixo. Esta idéia ele formulou ainda de outro modo: "É impossível", dizia, "navegar duas vezes na mesma corrente". De fato o rio jamais permanece o mesmo; se transforma a cada instante. Essa idéia do rio que se transforma constantemente serve a Heráclito para explicar todas as mudanças que se operam na natureza e na sociedade. E essa idéia da transformação constante de todas as coisas constitui a idéia fundamental da dialética. Conforme a concepção de Heráclito, o mundo em si é eterno, isto é, ilimitado no tempo e infinito, ou seja, ilimitado no espaço; mas transforma-se constantemente e jamais permanece o mesmo. É preciso, não obstante, não confundir essa idéia da transformação constante de todas as coisas com a moderna teoria da evolução. Conforme a concepção de Heráclito, a transformação do mundo não continua progressivamente até o infinito, mas constitui o que os físicos e químicos chamam de ciclo, isto é, uma transformação constante das coisas que voltam sempre ao ponto de partida; vejamos, por exemplo: como todos os seus predecessores, Heráclito distinguia também quatro elementos fundamentais: o fogo, a água, a terra e o ar. Esses quatro elementos transformam-se constantemente uns em outros, de tal forma, porém, que essa mudança se verifica sempre no limite desses quatro elementos principais. No conceito de Heráclito, essa transformação das coisas não se verifica arbitrariamente e sim de acordo com certas regras determinadas; em outras palavras, é uma transformação sujeita a certas leis. Encontramos aqui uma idéia nova, rica em conseqüências. Heráclito considera o mundo um fogo eterno. Na realidade, não pensa que o fogo seja a matéria-prima de que provém o mundo. Isto é para ele somente a imagem de uma transformação constante. Outra idéia fundamental de Heráclito é que essa transformação das coisas prossegue segundo esta lei: o oposto sai sempre do oposto; dito de outro modo: a transformação sempre se opera através das contradições. Igualmente encontrou para essa, idéia uma expressão surpreendentemente extrema: a luta é a mãe de todas as coisas. A luta das coisas opostas é a força motriz de toda a transformação, de todo o desenvolvimento. Essa é também uma das idéias fundamentais da dialética, que Heráclito aplicou às relações entre o ser e o não ser. Para ele, o ser e o não ser, esses dois termos contraditórios no mais alto grau, igualmente se incluem na idéia do devir. As coisas são e não são ao mesmo tempo. Dito de outro modo: a essência de todas as coisas o de todos os processos consiste na coexistência dos contrários. Todas as coisas estão cheias de contradições. Heráclito e as relações de classe de sua época. Essa doutrina correspondia precisamente às formas de produção e às relações entre as classes de sua época. Heráclito pertencia à aristocracia da cidade de Efeso. Vimos anteriormente o papel que

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desempenhava essa aristocracia na cidade. No princípio, era a que governava, logo, após substituída pela dominação dos tiranos. Os tiranos apoiavam-se na massa de pequenos artesãos e camponeses contra a aristocracia. Heráclito, que pertencia a esta última classe, encontrou-se então em oposição ao governo. Não atendendo aos interesses de sua classe, esforçava-se para derrubar o regime existente. Assim, encontra explicação nele a idéia de que há uma lei geral para todas as coisas que não permanecem tais como são mas que devem transformar-se e inclusive transformar-se em seu contrário. A situação que atravessava o seu país naquela época levou-o a pensar que a luta é o fator de toda transformação e ele tirou a conclusão de que isso não era somente verdade no que se refere às condições políticas e sociais, mas a todas as coisas em geral. O atomismo, desenvolvimento lógico do materialismo da antigüidade. Façamos aqui ligeiras indicações sobre a teoria dos átomos. Essa teoria, que numerosos filósofos desenvolveram, consistia, essencialmente, na idéia de que o mundo se compõe de pequenas partículas iguais de matéria, separadas pelo vazio. Segundo esses filósofos, todos os fenômenos da natureza se explicam pelos diferentes movimentos dessas partículas de matéria. Esta doutrina integra hoje a ciência moderna. Na antigüidade, constituía desenvolvimento lógico da concepção materialista do mundo, tal como a formularam os filósofos jônicos. A teoria dos átomos desempenhou papel importante em todas as doutrinas materialistas posteriores. CAPÍTULO V FILOSOFIA IDEALISTA NA ANTIGTIDADE A filosofia idealista e suas relações com a economia escravista. A esses filósofos materialistas sucedeu toda urna série de filósofos entre os quais se destacaram Platão e Aristóteles. Platão nasceu no ano de 429 e Aristóteles no ano 384, antes de Cristo. Pertencem, portanto, a uma época posterior à dos filósofos anteriormente mencionados. Esses dois filósofos exerceram imensa influência sobre muitas gerações, sobre a filosofia da idade média, assim como sobre a da época moderna. Pode-se dizer que, inclusive, todas as concepções idealistas do mundo tiraram suas idéias fundamentais de Platão e de Aristóteles. Vamos examinar agora as razões que explicam essa passagem da filosofia materialista à filosofia idealista. A razão principal é o desenvolvimento da economia escravista como base da sociedade grega e princípio de sua decadência. Essa sociedade, baseada no trabalho dos escravos, acabou num beco sem saída. No Século VII, o trabalho escravo começou a implantar-se somente nas colônias gregas da Ásia Menor, embora o comércio de escravos já estivesse em plena prosperidade. Nos Séculos IV e V, contudo, o trabalho escravo também constituía a base da vida econômica em Atenas. A economia escravista representava, naquela época, a principal relação de classes e não, como geralmente se crê, o antagonismo entre a aristocracia e a democracia, que não passava de um conflito no seio da classe dominante: a dos cidadãos que, ricos ou pobres, viviam do trabalho dos escravos. Os escravos não tinham nenhum direito e, inclusive, não eram considerados homens, mas instrumentos vivos. Se o povo ateniense pôde consagrar-se à política, à arte e à filosofia, à cultura do corpo e do espírito, foi graças à afluência abundante e contínua de trabalhadores escravos. Causas da decadência da sociedade escravista. A decadência da economia antiga tem sua explicação nas contradições em que cai necessariamente toda a sociedade que se apóia no trabalho escravo. Em primeiro lugar, para manter a economia escravista, não é suficiente o aumento natural da população. Esta é uma experiência comprovada, não somente na antigüidade, mas também nas plantações dos estados meridionais da América do Norte, onde os escravos realizavam todo o trabalho de produção. A economia escravista precisa, para manter-se, do aumento constante de escravos. Mas este aumento depende de guerras contínuas, que debilitam o Estado. O cidadão, que partia para a guerra devia suprir-se de equipamento muito caro, sobretudo se tinha de combater a cavalo. Além do mais, devia manter a sua família e a ele próprio durante a campanha. O resultado foi o lento empobrecimento dos pequenos camponeses e industriais, que iam para a guerra. O poder do Estado diminuía e logo via-se ameaçado pelo perigo de ser vencido por outro Estado, no qual os camponeses e os artesãos ainda não tinham sido reduzidos à miséria. E a derrota tinha, então, um significado bem diverso de hoje, porque a população era morta a espada ou conduzida totalmente ao cativeiro: homens, mulheres e crianças. Os cidadãos pobres, parasitas do Estado. Outra contradição, na qual cai necessariamente toda a sociedade fundada sobre o trabalho dos escravos, constitui a crença natural de que o trabalho é indigno de um homem livre. Esta idéia dominava os cérebros mais privilegiados da antigüidade e levava os pobres, que não podiam possuir escravos, a converter-se em parasitas, vivendo exclusivamente à custa do Estado. O cidadão pobre da antigüidade não tem nenhum ponto em comum com o proletário moderno. Este se mantém com o seu trabalho, enquanto, pelo contrário, o cidadão pobre da antiguidade era sustentado pelo Estado, a expensas do trabalho dos escravos. O Estado possuía uma quantidade de escravos, cujo trabalho lhe proporcionava os recursos necessários para a manutenção dos cidadãos pobres. Além disso, dominava toda uma série de cidades que deviam pagar seus tributos, que também eram utilizados para a manutenção desses cidadãos pobres. A existência de uma sociedade como esta ficava assim fortemente ameaçada; uma sociedade, que se apóia sobre bases tão frágeis, devia afundar-se numa situação cada vez mais difícil. Desenvolvimento dos antagonismos sociais entre os cidadãos livres. Finalmente, no próprio seio da classe de cidadãos livres, apareceria uma série de antagonismos, cada vez mais violentos, que ameaçavam o equilíbrio da sociedade. Enquanto as grandes fortunas se acumulavam em mãos de uma minoria, a massa de artesãos e camponeses empobrecia progressivamente, caindo na mais completa miséria. Agravava-se dia a dia o antagonismo existente entre credores e devedores. Os laços que uniam os habitantes da cidade relaxavam-se cada vez mais e, assim, estalaram violentas guerras civis que debilitaram enormemente o poder do Estado e ameaçavam pôr fim à sua existência.

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O trabalho escravo, obstáculo para o progresso técnico. Outra consideração muito importante é que o trabalho servil constituía sério obstáculo para o progresso técnico. Isto se torna evidente se nos fixamos no fato de que, sendo os escravos oprimidos e forçados, não se podia, por isto, deixar em suas mãos instrumentos delicados e de alguma complexidade. Por isso, o trabalho dos escravos era feito com instrumentos grosseiros. Vê-se assim que, quando o trabalho dos escravos constitui a base da sociedade, a técnica e o desenvolvimento das forças produtivas paralisam-se completamente. Esses mesmos sintomas podemos comprovar no apogeu da sociedade escravista. Decadência da sociedade grega e sua influência sobre o pensamento. Naquela época não se voltou a colocar a questão da origem do mundo, como no começo da sociedade grega. Passaram ao primeiro plano as questões sociais: Como deve organizar-se o Estado? Como dirigir a economia'? Que são o bem e o mal? O que deve ser proibido? Todas as velhas idéias morais começavam a vacilar. Outra consequência importante da decadência da sociedade antiga foi o passo da filosofia materialista à filosofia idealista. Esse passo teve o seu primeiro representante em Platão. Segundo ele, a verdadeira essência das coisas não reside na matéria e sim num princípio intelectual. O mundo dos sentidos, o mundo da percepção sensível não é, no conceito de Platão, o mundo real, mas um mundo aparente e enganoso. O mundo dos fenômenos sensíveis não é senão urna conseqüência, um reflexo das idéias eternas, independentes de suas formas de expressão material. A filosofia de Platão troca assim a verdadeira relação das coisas. Nela a idéia suprema é a idéia do bem. Essas idéias não constituem apenas a verdadeira essência do mundo, mas o fator fundamental de todo o desenvolvimento da natureza. Aristóteles desenvolveu essa filosofia do seguinte modo: a razão é a essência e a força motriz da História. Como se explica o abandono do materialismo? Porque a classe dominante não encontrou nenhum modo de sair das contradições que explicamos anteriormente. A economia escravista não dispõe de meios para passar a uma forma superior de sociedade. Vimos como a religião cristã se constituiu no seio das classes oprimidas. A filosofia idealista teve, igualmente, sua origem no seio da classe dominante. Quando da transformação histórica do Estado ateniense, esta filosofia tinha como objetivo idealizar a ordem social existente, suprimir as contradições que continha e, por conseguinte, representá-la como eterna. A primazia da idéia, da razão, decorria do pensamento de que as pessoas racionais e os sábios são os que devem governar o Estado, entendendo-se como tais os que compunham a classe dominante. Efetivamente, segundo essa filosofia, o povo é irracional e só uma pequena minoria, isto é, a classe dominante, possui o monopólio da razão. Ao aplicar essa concepção ao mundo inteiro aparece a origem da tese fundamental, que constitui a própria essência da filosofia idealista, a saber, que são o espírito e a razão que governam o mundo. A filosofia idealista converteu-se, durante o século seguinte, numa das bases principais da dominação de classe. Mas seria um erro, sem dúvida, dizer que a filosofia de Platão e de Aristóteles era naquela época uma filosofia reacionária. A antiga sociedade não conhecia nenhum caminho que lhe permitisse escapar às contradições que a ameaçavam. Não compreendia que nenhuma classe pudesse indicar-lhe um caminho para uma forma de sociedade superior. Quanto ao problema da escravidão, a democracia das cidades gregas da antigüidade não o encarava diferentemente da aristocracia, nem podia, pois a sua própria existência dependia dos recursos que o trabalho dos escravos punha à disposição do Estado. Seria grave erro confundir a democracia grega da antigüidade com a democracia burguesa ou a democracia proletária de nossa época. O antagonismo entre a democracia grega da antigüidade e a democracia burguesa moderna é maior ainda que entre esta democracia burguesa e a democracia proletária. As questões fundamentais, que se delineavam na sociedade antiga, não, eram as questões de democracia ou aristocracia, pois estas não passavam de questões da classe dominante. A questão fundamental era a da escravidão, a das relações dos escravos com os cidadãos livres. O aspecto reacionário dessa filosofia manifesta-se unicamente em sua atitude diante da escravidão, pois é a filosofia de uma sociedade baseada no trabalho escravo, e aparece como reacionária diante do desenvolvimento que suprimiu a escravidão e a substituiu por formas superiores de exploração. Mas não apresenta apenas esse caráter reacionário, também apresenta um caráter progressista, como veremos agora. CAPÍTULO VI A LÓGICA E A DIALÉTICA NA ANTIGUIDADE

A sociedade ateniense e a ciência. O aspecto progressista da filosofia de Platão e Aristóteles consiste em que a classe dominante da sociedade ateniense daquela época considerava que o objeto da exploração do trabalho dos escravos e de sua própria dominação de classe era o livre desenvolvimento das faculdades humanas e, antes de tudo, o progresso da razão. Isto se explica pelo fato de que a produção escravista não era exclusivamente, nem em sua maioria, uma produção de mercadorias, ou seja, uma produção para obter mais-valia, como sucede na produção capitalista, mas uma produção para o consumo direto, ou seja, uma produção de valores de uso. Em conseqüência disso a classe dominante não se consagrava à aquisição de riquezas, aos negócios, mas ao desenvolvimento das artes e das ciências. Daí, também, o interesse considerável que manifestava pelo estudo da razão humana e pelo descobrimento das leis do pensamento. Neste aspecto os gregos desempenharam importante papel na história da filosofia, desenvolvendo (principalmente Aristóteles) o estudo das formas e leis do pensamento, estudo este que se chama, geralmente, lógica formal. E, ainda, instauraram as bases da dialética. Veremos, em seguida, o que a distingue da lógica formal. A ciência das leis do pensamento, a lógica formal, recebeu tal impulso, que foi preciso esperar até o Século XIX para ocorrer nessa matéria um progresso duradouro e decisivo.

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Objeto da lógica formal. Que é a lógica formal? A lógica formal é a ciência das leis do pensamento e ensina como se formam as idéias e o modo de distingui-las entre si. Trata das diferentes categorias de proposições e das diferentes categorias e formas de conclusões; propõe-se, em uma palavra, ao ensino do modo justo de pensar. Importância da lógica formal para a ciência. O homem pensa, geralmente, de modo natural, sem necessidade de uma arte especial do pensamento, o que, para a vida comum, é suficiente, na maioria das vezes. Mas, quando se complicam as relações e as coisas, no momento em que surgem problemas com conseqüências que dependem de toda uma série de condições, e reclamam raciocínio mais profundo e distanciado da percepção direta, aumenta a possibilidade de errar e torna-se necessária a segurança da exatidão do pensamento. A lógica, por isso, tem na ciência considerável importância. A lógica tem duas leis fundamentais, que constituem, por assim dizer, a sua base. A primeira é o princípio de identidade, que se pode formular do seguinte modo: A é A, isto , cada objeto é igual a si mesmo. Um homem é um homem. Um galo é um galo. Uma batata é uma batata. A segunda lei é o princípio da contradição ou, como se chama também, o princípio de exclusão de um terceiro. Pode-se, pois, formular assim: A é A ou é não A. Não pode ser as duas coisas ao mesmo tempo. Por exemplo: uma coisa que é negra não pode ser ao mesmo tempo negra e branca. Uma coisa não pode ser ao mesmo tempo ela mesma e o seu contrário. Isto significa, praticamente, que se tiramos de uma premissa dada certas conclusões e logo se comprova a existência de contradições, houve erros no raciocínio ou que a premissa era falsa. Se, de uma premissa justa, se chega à conclusão de que 4 é igual a 5, conclui-se, de acordo com o princípio de contradição, que o resultado é falso. Isto é evidente. Existe algo mais claro que isso: o homem é homem, o galo é galo, uma coisa é uma coisa? Resulta evidente, da mesma forma, que uma coisa é grande ou pequena, negra ou branca, não, podendo ser as duas coisas ao mesmo tempo. As duas leis fundamentais da lógica do ponto de vista da dialética. Vejamos agora a questão do ponto de vista de um estudo superior do pensamento, ou seja, de ponto de vista da dialética. Tomemos o primeiro princípio que formulamos como um dos fundamentos da lógica formal, a saber, o princípio da identidade: A é A, uma coisa é uma coisa. Recorramos a outro princípio de Heráclito que já conhecemos e que podemos formular assim: tudo passa; não se pode estar duas vezes no mesmo rio. Podemos, dizer que o rio é sempre o mesmo? A tese de Heráclito afirma o contrário. Em nenhum momento permanece o mesmo rio. Transforma-se constantemente. Não se pode, por isso, estar duas vezes ou, mais exatamente, outra vez no mesmo rio. A fórmula A é A, por conseguinte, não é certa, ao menos supondo que as coisas são imutáveis. Mas, se as consideramos em movimento, A é, ao mesmo tempo, A e outra coisa. Portanto, A é, ao mesmo tempo, não A. Isto é certo, no final das contas, para todas as coisas. Também demonstrou a ciência que o que aparentemente é imutável se acha em realidade em constante transformação. Por exemplo: consideram-se as rochas, as grandes montanhas, como um símbolo de imutabilidade; tais rochas, entretanto (isto se demonstra pela história da Terra), formaram-se em época determinada e desaparecerão um dia. É certo que essas transformações se verificam tão lentamente em relação ao que dura uma vida humana, que se tornam imperceptíveis aos olhos do homem. Diminuem de tamanho, pouco a pouco, pela ação do vento, da umidade, do frio e do calor. Essas transformações se verificam de forma insensível à vista do homem e só se percebem através de grandes intervalos de tempo. Podemos tomar, se preferirem, o exemplo das plantas, que se transformam e crescem sem que possamos percebê-lo com o simples olhar. Hoje já é possível, com a ajuda da cinematografia, observar como cresce uma planta. Hoje sabemos que as diferentes espécies de plantas se modificam. Sabemos, por exemplo, que o trigo, a. centeio e o arroz não foram sempre como hoje os conhecemos: a sua forma atual resultou de uma evolução. O mesmo sucede com todas as espécies animais, incluindo o homem. Perguntar-nos-ão: o sistema planetário não é imutável? Não. A astronomia nos ensina que também o sistema planetário se constituiu pouco a pouco e acabará por desaparecer um dia. Também nesse caso, portanto, há transformação. Uma transformação infinita e ilimitada. Também se acreditou durante muito tempo (até recentemente) que os corpos químicos simples, nos quais se podiam decompor todos os demais corpos, eram imutáveis. Hoje sabe-se que isto não é certo e que, por exemplo, o radium é objeto de constante transformação. Sabe-se, atualmente, que todos os corpos químicos, até hoje considerados como simples, são compostos de corpos ainda mais simples; os elétrons, prótons, nêutrons etc., que se constituíram sob determinadas condições de temperatura e de pressão; e ainda estes também se dissolverão e se transformarão. Que sobra então do famoso princípio, segundo o qual uma coisa é sempre igual a si mesma, se consideramos o que acabamos de dizer? Devemos dizer que esse princípio não é absolutamente certo, sendo aplicável somente para períodos de tempo limitados e em sentido abstrato, isto é, se considerarmos as coisas abstraindo as suas constantes transformações e imaginando-as corno iguais a si mesmas durante certo tempo. Mas se generalizarmos e colocarmos esse princípio, de modo absoluto, sem reserva alguma, chegaremos necessariamente a cometer grandes erros, porque essa lei da lógica formal não é suficiente e re- clama o emprego da dialética, que demonstra como a igualdade está ligada à desigualdade. Não se pode, portanto, diferençar em nenhum objeto, de modo absoluto, a igualdade da desigualdade. O objeto permanece ele próprio em sua constante transformação. Um filósofo burguês contemporâneo, Bergson, comete o grave erro de esquecer a igualdade na transformação geral das coisas e chega assim à conclusão de que a razão humana não pode conhecer a verdadeira essência das coisas, pois a razão não poderia atuar senão com conceitos definidos, imutáveis. Bergson incorre aqui no erro oposto ao que se comete afirmando que o princípio de identidade das coisas vale de modo absoluto. Se se considera a transformação no seio de uma coisa, do ponto de vista de que não existe igualdade entre dois estados diferentes desta coisa, não se pode comprovar nenhuma transformação, nem inclusive dizer que existem dois estados diferentes de uma coisa. Para comprovar uma transformação é necessária uma medida comum. A simples distinção numérica de duas coisas, ou de dois estados de uma coisa, não é possível senão quando existe um termo de comparação. Se não existe igualdade sem diferença, não existe diferença sem igualdade. O princípio da contradição do ponto de vista da dialética. Examinemos agora o segundo princípio fundamental do pensamento, ou seja, o princípio da contradição. Segundo esse princípio, uma coisa não pode ser, ao mesmo tempo, ela e seu contrário. Determinada figura geométrica ou é redonda ou retangular. Uma linha é reta ou curva. Levando, pois, em conta o

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que dissemos para o princípio da identidade, comprovaremos que não só a contradição não é impossíve1, mas também que tudo o que se transforma deve conter, em todo momento, certas contradições. Dissemos antes que uma coisa que se transforma é, ao mesmo tempo, ela mesma e outra coisa diferente dela. É, ao mesmo tempo, igual a si mesma e diferente, ou, dito de outro modo, numa só e mesma coisa existe uma contradição; este princípio é verdadeiro para todas as coisas em transformação. Examinemos, por exemplo, esta proposição: uma linha é reta ou curva. Como consideram isso os matemáticos? Consideram a menor porção de um círculo como uma linha reta, de onde resulta necessariamente que uma linha reta e uma curva são iguais dentro de certos limites. Isso permite efetuar cálculos muito mais precisos do que se diferençamos de forma absoluta o reto do curvo. Uma figura é redonda ou retangular; como, porém, os matemáticos consideram o círculo como algo formado por uma quantidade infinita de ângulos, vemos, portanto, que o redondo e o retangular são iguais. Toda uma parte da matemática está baseada nesse princípio contraditório. A contradição no movimento local. De acordo com, o explicado, podemos substituir o princípio da contradição, que propõe a lógica formal, pelo princípio oposto, a saber: que toda coisa traz em si uma contradição e se compõe de contradições. Já vimos isso ao estudar a idéia das transformações gerais das coisas, e vê-lo-emos igualmente ao estudar o que disseram os antigos gregos sobre o movimento local. Os filósofos pirronistas demonstram, com efeito, que todo movimento local traz em si uma contradição e é, portanto, impossível. Tiravam a conclusão de que não existe o movimento em geral, sendo este apenas aparente. Isso era demonstrado através de dois paradoxos célebres: o paradoxo do dardo e o paradoxo de Aquiles e a tartaruga. O exemplo do dardo é o seguinte: um dardo, que se lança de determinado ponto, não poderá chegar nunca a outro ponto mais afastado porque, lançando-o de certo ponto que chamaremos A, com o objetivo de alcançar outro, B, o dardo, naturalmente, deverá chegar antes a um ponto intermediário, C; por conseguinte, deverá ir de A a C. Mas, sem dúvida, antes de atingir o ponto C, ele deverá passar por um ponto intermediário, D. Mas, para chegar ao ponto D, deverá passar antes pelo ponto E, situado na trajetória AD. Assim, pode-se continuar até o infinito. Antes de haver alcançado um ponto determinado, o dardo deverá sempre alcançar um ponto intermediário, até o infinito; por conseguinte, não poderá nunca afastar-se do ponto A porque, como o número de distâncias a percorrer é infinito, nunca poderá, em tempo limitado, percorrer a distância de A a B. O movimento, conseqüentemente, é impossível. Paradoxo de Aquiles e a tartaruga. O exemplo de Aquiles e a tartaruga é talvez mais simples ainda. Aquiles é uma figura lendária da Ilíada. Era considerado o melhor corredor da Grécia. A tartaruga é, pelo contrário, um animal que anda muito lentamente. Se a tartaruga tem uma vantagem determinada sobre ele, Aquiles não poderá alcançá-la nunca. De fato: suponhamos que a tartaruga leva uma vantagem de 100 metros, Aquiles faz 10 metros por segundo e, a tartaruga, um metro. Qual será o resultado? Enquanto Aquiles percorre em 10 segundos a distância que o separa da tartaruga, aquela percorre dez metros mais. Enquanto Aquiles percorre os 10 metros que ainda o separam da tartaruga, esta avança um metro. Enquanto Aquiles faz um metro, ainda avança a tartaruga 10 centímetros, e, assim, poderíamos continuar até o infinito. Sempre haverá determinada distância entre eles, e, enquanto Aquiles percorre esta distância, cada vez avança a tartaruga uma distância 10 vezes menos, donde resulta, portanto, que Aquiles jamais alcançará a tartaruga. A dialética do finito e do infinito e do contínuo e do descontínuo. Esses dois paradoxos não constituem meras brincadeiras, como se poderia crer, mas, pelo contrário, têm um sentido muito profundo. Qual é? Tanto num caso como noutro, vê-se que certa quantidade finita pode dividir-se até o infinito, e tira-se a conclusão de que, por esse motivo, uma distância finita não pode decompor-se nem dividir-se em pequenas partes infinitas. Mas o movimento ensina que, se pode decompor, com ajuda de um número infinito de pequenas distâncias, certa distância finita; de outro modo: o que aqui se nos apresenta sob esta forma é o princípio dialético, segundo o qual uma distância pode ser ao mesmo tempo finita e infinita. Conclui-se, pois, que o dardo pode ir de A a B e que Aquiles pode alcançar a tartaruga. Solução matemática do paradoxo de Aquiles e a tartaruga. Tomemos este último exemplo: antes que Aquiles percorra os 100 metros que a tartaruga leva de vantagem, esta terá feito 10 metros a mais etc. Temos, por conseguinte, 100 + 10 +1 + 1/10 + 1/100, ou seja, 111 metros e 11 centímetros. Exatamente nessa distância Aquiles alcançará a tartaruga. Com efeito, ele precisa de dez segundos para percorrer os 100 primeiros metros, mais um segundo para percorrer os 10 metros restantes, mais um décimo de segundo para o último metro, ou seja, no total, onze segundos, mais um décimo. Assim fica resolvido o problema. Provamos novamente que o movimento é contraditório. Relações da lógica formal e da dialética. Vemos, pelo que precedeu, que sempre há contradições nas coisas, o que não quer dizer que todas as contradições sejam justas. Não o são a não ser quando refletem as transformações reais das coisas. Há, portanto, contradições que têm sentido e outras que não o têm. A dialética não é a ciência das contradições absurdas, mas das contradições que têm sentido. Em que consiste, então, a diferença entre a lógica formal e a dialética? Enquanto a lógica formal considera as coisas em estado de repouso e separadas entre si, a dialética considera-as em movimento e em suas relações recíprocas. A lógica formal é uma observação limitada, secundária das coisas. É admissível na medida em que considera estas em estado de repouso e separadas umas das outras, cada uma de per si. A dialética, porém, é uma observação superior, mais geral, mais exata e mais profunda das coisas. Ao considerá-las em estado de movimento ou em suas relações recíprocas, vê-se que a lógica formal resulta insuficiente e é preciso apelar para a dialética. A dialética materialista e a dialética idealista. É preciso acrescentar ainda que tanto em Platâo como em Aristóteles a dialética tem um caráter idealista, isto é, ambos pensam que as contradições verificadas no cérebro do homem constituem o

elemento fundamental. Nós, pelo contrário, consideramos que essas contradições refletem simplesmente o movimento das coisas. Para falar mais claramente, diremos: o idealista dialético crê que o movimento das coisas resulta das contradições que existem nas idéias. O materialismo dialético afirma, pelo contrário, que o movimento das coisas constitui o elemento primário

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e as contradições, que se produzem nas idéias, apenas refletem esse movimento real. As raízes sociais da dialética. Vimos as razões pelas quais os primeiros filósofos gregos formularam as bases do pensamento dialético. Como buscaram uma explicação para a formação do mundo, chegando de modo natural à idéia do movi-mento universal e à transformação geral das coisas. Em Sócrates, Platão e Aristóteles, a pesquisa sobre a constituição do Estado, sobre as relações sociais etc., foi o que os levou à idéia de que toda coisa está em constante transformação. Na vida pública, apareciam violentamente as idéias mais contraditórias. Discutia-se sem interrupção sobre o significado do bem e do mal, sobre a forma de organização do Estado etc. O que um dizia o outro refutava. Desenvolveu-se, enfim, uma arte do diálogo que deu origem à dialética. Esta se chamou, primeiramente, arte da conversação porque foi daí que se originou. A dialética, tal como Platão e Aristóteles a formularam, não era ainda a dialética moderna que caracteriza o materialismo dialético. Era uma dialética ainda não desenvolvida, que correspondia, de fato, às condições sociais da época. O objetivo desses pensadores da antigüidade, Platão e Aristóteles, era o de encontrar na transformação dos fatos sociais e políticos alguma norma fixa, duradoura, permanente; numa palavra: criar um Estado ideal, uma sociedade ideal. Não se propunham a fazer a revolução, mas, pelo contrário, buscavam um meio para acabar com a revolução que se realizava na ordem social. Assim se explica por que Platão idealizou um Estado utópico, que considerava o Estado ideal. E também se explica a forma limitada, não desenvolvida, da dialética na antigüidade. Distinguem-se duas fases nessa dialética: a dialética da sucessão, tal como Heráclito expôs, e a dialética da coexistência, como formularam Platão e Aristóteles, ou seja, a dialética que encontramos nas relações das diferentes partes de um todo em estado de repouso. Esta é a mais elevada forma da dialética desenvolvida na antigüidade; mas é uma forma de dialética limitada. A mais elevada forma da dialética é a que compreende, a um só tempo, a dialética da coexistência e a da sucessão, chamada dialética histórica. Esta última engloba ao mesmo tempo a lei das transformações de um todo e as relações entre as diferentes partes de um todo. Assim foi como Karl Marx formulou, em O Capital, toda uma série de leis econômicas, demonstrando como o capitalismo pode existir como um todo e quais são as relações que existem entre as suas diferentes partes. Demonstrou igualmente como o sistema capitalista emana de outro sistema, o da simples produção de mercadorias e, por outro lado, como as leis do modo de produção capitalista se transformam, no correr do tempo, em outras leis que o levam para fora do capitalismo, criando um sistema oposto: o socialismo. Se a dialética da antigüidade foi, realmente, limitada é porque era a dialética de uma classe dominante, de uma classe cuja existência repousava sobre o trabalho dos escravos. Nem Platão nem Aristóteles, os pensadores mais notáveis daquele tempo, podiam imaginar uma tal transformação das condições sociais, que extinguisse a escravidão e suprimisse o antagonismo entre os homens livres e os escravos. As idéias que faziam da transformação das coisas não podiam passar, por isso, de certo limite social, isto é, de que a idéia da escravidão devia ser uma coisa eterna. CAPÍTULO VII HEGEL E FEUERBACH A escolástica na idade média. Antes de passar ao estudo dos predecessores imediatos de Marx e Engels, ou seja, Hegel e Feuerbach, é necessário fazer algumas advertências gerais sobre o grande intervalo que separa a filosofia da antigüidade da filosofia moderna. Entre as duas se estende o período do feudalismo. Sua expressão ideológica é a concepção do mundo feudal, que domina toda a idade média, isto é, um período de uns 1.000 anos, desde o Século VI até o Século XVI, aproximadamente. Todo esse período está impregnado da poderosíssima influência da Igreja, que constituía o mais forte sustentáculo ideológico do modo de produção e da ordem feudais. Sob a autoridade da Igreja, a filosofia e as ciências naturais não desempenharam nenhum papel independente. A filosofia dedicava-se unicamente a explicar e interpretar os ensinamentos feudais da Igreja. E essa filosofia passou para a História com o nome de escolástica, da palavra latina scola, que significa escola. É, portanto, a filosofia das escolas superiores eclesiásticas da idade média, em que se formavam os altos dignatários da Igreja. Não é necessário deter-se muito na filosofia escolástica, que não desempenhou nenhum papel independente nem realizou nenhum progresso digno de menção. Da mesma forma, os progressos realizados pelas ciências naturais durante a idade média foram muito poucos. Mas a burguesia já se desenvolvia no seio da sociedade feudal, aparecendo em cena, pela primeira vez, no final do Século XV. Os principais fatos que caracterizam essa mudança histórica são: o descobrimento da América, a invenção da imprensa, da pólvora, a aplicação geral do compasso de navegação (astrolábio) e muitas outras invenções. O que caracteriza mais particularmente esta mudança histórica, porém, é o desenvolvimento do comércio mundial, não somente em conseqüência das relações comerciais, que se estendiam ao continente americano recém-descoberto, como também graças ao desenvolvimento do comércio marítimo com os países do oriente, que, precisamente nessa época, fez consideráveis progressos. Paralelamente a este desenvolvimento do modo de produção burguês, começou uma luta geral contra a instituição suprema da ordem feudal: a Igreja. A luta começou a tomar formas extremamente violentas em princípios do Século XVI. Nesta época apareceu o movimento da reforma, movimento da luta contra a Igreja, mas dentro da religião. A filosofia burguesa moderna como forma de luta contra feudalismo. A filosofia burguesa representou a mais generalizada e a mais radical das formas de luta dos intelectuais contra a sociedade feudal, em geral, e a Igreja, em particular. É característico o fato de que esta filosofia apareceu primeiramente nos países onde a burguesia mais se desenvolvera: na

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Inglaterra, nos Países Baixos, depois na França e, finalmente, na Alemanha. Os homens considerados comumente como os pais da moderna filosofia burguesa são o inglês Bacon e o francês Descartes, que viveram durante a primeira metade do Século XVII. O desenvolvimento da filosofia burguesa marcha ao compasso do desenvolvimento da luta religiosa. Essa filosofia constitui o ponto culminante da luta de classes, levada a cabo contra a concepção do mundo feudal, e a mais geral das formas de desenvolvimento da consciência de classe da burguesia. O objetivo principal da filosofia burguesa. Os objetivos principais da filosofia burguesa são os seguintes: 1.º) Decomposição dos conceitos fundamentais da religião em geral e da religião cristã em particular; extensão do domínio da razão até onde então tinha dominado a fé religiosa. 2.º) Desenvolvimento das ciências naturais. Esta é um das condições principais do desenvolvimento econômico da sociedade burguesa. As ciências naturais foram poderosa arma contra as crenças religiosas, especialmente as ciências mais desenvolvidas nos Séculos XVII e XVIII: a mecânica e a astronomia. O desenvolvimento dessas ciências exerceu, por sua vez influência considerável sobre o desenvolvimento da filosofia . No Século XVIII, a aliança das ciências naturais e da filosofia contra a religião e a concepção do mundo feudal encontrou a mais firme expressão no materialismo francês. Basta mencionar aqui os seus dois nomes mais representativos: Diderot, o mais inteligente de todos os materialistas franceses, e Helvécio, que coordenou o materialismo do Século XVIII num sistema único. Os escritores franceses mais notáveis daquele século, Voltaire e Rousseau, empreenderam também a luta contra a Igreja e as instituições feudais, embora não de forma tão radical, do ponto de vista filosófico, como Helvécio e Diderot. Por outro lado, tampouco eram materialista, mas deístas, partidários de uma religião da razão. Esforçavam-se para arrancar do cristianismo seu caráter feudal. Queriam, em suma, um cistianismo burguês. A filosofia alemã. Foi na Alemanha que a filosofia burguesa alcançou seu ponto culminante. O desenvolvimento econômico e político daquele país foi mais lento que o da França e o da Inglaterra, o que explica por que a revolução burguesa se processou ali numa fase mais avançada de sua evolução, depois de vitoriosa nas outras duas nações e num nível ideológico mais elevado. Não mencionarei aqui senão os dois representantes principais da filosofia alemã, Hegel e Feuerbach porque os dois têm entre si relações diretas e são os predecessores imediatos do materialismo dialético de Marx e Engels. Hege1 e Feuerbach, entretanto, desempenharam papéis muito diferentes. O de Hegel consistiu em levar a termo o desenvolvimento da filosofia burguesa e da filosofia em geral, enquanto o papel de Feuerbach foi o de atacar por sua vez a religião e a filosofia. Hegel e sua época. Hegel terminou sua obra fundamental em 1806, isto é, no mesmo ano em que Napoleão infligiu grave derrota à Alemanha feudal, na batalha de Jena, após a qual submeteu a Prússia, e dividiu aquela nação em duas partes: Norte e Sul. Hegel morreu em 1830, no mesmo ano da Revolução francesa de julho e do bill da reforma na Inglaterra. Hegel representa o final da filosofia burguesa e da antiga filosofia. Resume e culmina o desenvolvimento intelectual de vinte e cinco séculos. Novo descobrimento e aperfeiçoamento do método dialético. O elemento mais importante e mais revolucionário da filosofia de Hegel foi o método dialético. Pode-se dizer que Hegel redescobriu a dialética, porque a elevou a um nível que até então nunca atingira. Constituía isso, de sua parte, um trabalho altamente revolucionário. A dialética é, com efeito, um método extremamente revolucionário. Ensina-nos que, nem na realidade nem no cérebro humano, nada permanece tal como é, mas se transforma sem cessar; que todas as coisas, todas as instituições têm um princípio e, por conseguinte, um fim, passando por uma fase ascendente e uma fase descendente, em seu desenvolvimento. A dialética ensina que todas as coisas, todas as instituições, todas as idéias morrem, transformando-se no seu contrário. A dialética não se detém diante de nada. Nada lhe é sagrado ou imutável. Mas essa força destruidora da dialética é, segundo Hegel, a força motriz mais considerável do progresso histórico. Como dizia Goethe: "Tudo o que existe merece desaparecer". A dialética é a forma mais geral da revolução. O idealismo absoluto e Hegel. A segunda característica fundamental da filosofia de Hegel é o idealismo, o idealismo na forma mais absoluta. Segundo Hegel, o movimento das idéias (pelo que ele entende, as idéias gerais) constitui o fator primário. A idéia é para ele o motor e o gerador da realidade material, tanto da natureza como da História. O movimento das idéias é, numa palavra, o criador do movimento universal. A idéia é que cria a realidade. Vejamos um exemplo dessa forma de conceber a História. O cristianismo, segundo a concepção materialista, é uma religião que reflete as condições da produção feudal e as relações de classes daquela sociedade. As relações de produção da idade média representam o elemento fundamental, primário de onde derivam todas as idéias daquele tempo, no qual o cristianismo constituiu a expressão ideológica mais geral. Segundo a concepção de Hegel, tudo ocorre de modo inverso. O cristianismo da idade média é que constitui o elemento fundamental. Sobre a base desse cristianismo, desenvolvem-se o modo de produção feudal, as relações entre as classes da idade média, as formas políticas do feudalismo, etc. Por conseguinte, segundo Hegel, o mundo e seu desenvolvimento dependem do movimento das idéias. Dessa forma Hegel mostra uma série de relações universais entre todas as partes do conjunto social, de sua estrutura intelectual e material. Também ensina ( o que constitui já um considerável progresso sobre os seus predecessores ) que as formas sociais representam uma escala histórica, uma série de desenvolvimentos que se operam através de contradições. E essas contradições internas contidas em cada forma social, constituem as forças motrizes, que fazem a sociedade passar de um período histórico a outro. Hegel não busca essas contradições nas condições materiais, mas na expressão ideológica do período em questão. Ele fez is maiores descobrimentos no campo da História, mostrando, a seu modo, as relações internas da vida histórica. Ainda que a forma de sua filosofia esteja invertida, seu conteúdo constitui, não obstante, imenso progresso científico. Negação do desenvolvimento na natureza. Outro traço característico da filosofia de Hegel (o que representa uma lacuna considerável) é que ele vê desenvolvimento somente na História e não na natureza. Na sua concepção, a natureza move-se eternamente nos mesmos caminhos. Aqui Hegel retrocedeu um passo em relação a Kant, que se esforçou para explicar a

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formação de nosso sistema planetário, mediante uma teoria mecânica. O mesmo sucede no que concerne à sua atitude perante a religião. Não se encontra nele nenhum violento antagonismo entre a religião e a filosofia. Mas a filosofia de Hegel tira a religião da intimidade do homem, dando a todos os seus dogmas um sentido puramente filosófico e considerando-os da mesma forma que os princípios fundamentais da lógica ou da dialética. Assim, de fato, não resta nada do que constitui o verdadeiro caráter da religião, embora não tocasse nas suas formas exteriores. Essa atitude correspondia perfeitamente à fase da luta de classes em que se encontrava a Alemanha naquela época. Estava então na fase preparatória da revolução burguesa. A luta declarada contra a Igreja e o regime absolutista ainda não começara. Assim se explica como pôde Hegel ser professor na principal Universidade do Estado prussiano, do Estado absolutista, contra o qual a revolução burguesa precisamente se dirigia. Dessa forma podemos explicar também o fato de ser a sua filosofia extremamente obscura e abstrata, não se tornando acessível senão para pequena minoria de homens familiarizados com as especulações filosóficas. As autoridades do Estado absolutista prussiano não se deram conta de que esta Filosofia, obscura e abstrata, que Hegel ensinava na Universidade de Berlim, era altamente revolucionária. Os jovens hegelianos e sua ruptura com o cristianismo. Foi sobretudo entre seus discípulos que se manifestou, porém, o caráter revolucionário da filosofia de Hegel. Alguns deles se opuseram diretamente ao cristianismo, que era então a religião do Estado. Portanto, esse ataque a religião cristã significava, igualmente, um ataque à ordem existente. O mais destacado e o mais radical desses discípulos foi Ludwig Feuerbach. Se Hegel ainda pôde ser professor da Universidade de Berlim, seu discípulo, Feuerbach, teve sorte diversa. Dedicou-se, algum tempo, ao ensino nas Universidades prussianas, na qualidade de professor livre; mas fracassou e viu-se finalmente obrigado a retirar-se para uma pequena aldeia, onde escreveu suas principais obras. A filosofia de Feuerbach era tão revolucionária que foi eliminada das Universidades da Prússia absolutista. Feuerbach rompeu abertamente com a religião, o que não fez Hegel, possuindo esse caráter o seu livro intitulado Essência do Cristianismo, aparecido em 1841. Feuerbach não só rompeu com a religião, mas também com a filosofia como ciência particular, porque, segundo ele, a filosofia é a última forma da religião. Feuerbach representa a passagem do idealismo ao materialismo. De acordo com as suas teses, o conteúdo da religião é sempre, sob uma ou outra forma, a crença num ser extra-terrestre, fantástico, ao mesmo tempo criador e regente do mundo. E isso é o que também ensina a filosofia, embora de forma distinta. O espírito absoluto que, segundo Hegel, rege o Universo, não é outra coisa senão o Deus do cristianismo, sob outra forma. O segredo, que se oculta por trás desse espírito absoluto e que os homens imaginam existir no além, fora de suas percepções sensíveis, é a razão e a vontade dos homens. O homem é o verdadeiro segredo da religião e da filosofia. Para expressarmo-nos em termos mais simples: tanto a religião cristã, como a judia, pretendem que Deus criou o homem à sua imagem. Feuerbach contesta: não foi Deus que criou e homem à sua imagem, mas, pelo contrário, foi o homem quem criou Deus à sua imagem. Esta é uma idéia análoga à que expressava um filósofo grego da antigüidade, segundo o qual “se os bois criassem um deus, esse deus seria um boi, e se o criassem os negros, haveria um deus de nariz achatado e grossos lábios". Feuerbach não faz mais que generalizar essa idéia estendendo-a à filosofia, no seu entender uma forma refinada da religião, da crença em deus. O fim do conhecimento supra-sensível ou da metafísica. Segundo Feuerbach, o verdadeiro conhecimento não é possível senão como conhecimento das coisas materiais, das coisas sensíveis. Não existe o conhecimento supra-sensível, como apregoam a religião e a filosofia, conhecimento sem percepção sensível. O que ordinariamente se apresenta como conhecimento supra-sensível não é mais que uma transformação fantástica do conhecimento sensível. Por isso não existe nenhuma filosofia especial capaz de construir o mundo mediante o cérebro humano. Um conhecimento verdadeiro do mundo é impossível sem a base da experiência sensível. Não se pode construir o universo com a ajuda do cérebro, como crêem os filósofos. Por isso é preciso acabar de uma vez para sempre com a filosofia, que crê construir o mundo com a ajuda das idéias. Pensamento é inseparável da matéria. Caráter incompleto do materialismo de Feuerbach. O que constitui a maior contribuição da doutrina de Feuerbach é, antes de tudo, o fato de pôr fim à filosofia como ciência especial e, também, ao idealismo, passando ao materialismo. Esse trabalho de Feuerbach foi, porém, negativo em parte; ao contrário de Hegel, faltou-lhe a dialética. Ele não tinha uma chave materialista, um conhecimento materialista da História. Somente em relação à natureza pensou de modo materialista, mas não soube explicar a História do modo análogo. Foi, por conseguinte, esse caráter incompleto do seu materialismo uma das causas que impulsionaram Marx e Engels a ultrapassá-lo para chegar ao materialismo dialético. CAPÍTULO VIII DO MATERIALISMO FORMAL AO MATERIALISMO DIALÉTICO Fontes do materialismo dialético. O progresso decisivo sobre o materialismo de Feuerbach foi realizado por Marx e Engels, a partir de 1840. O próprio Feuerbach escrevera, em 1841, seu livro Essência do Cristianismo e, em 1843, os Pen- samentos sobre a filosofia do futuro. Poucos anos faltavam para que Marx e Engels pudessem ultrapassar o ponto que Feuerbach alcançou. Feuerbach não era senão um filósofo revolucionário burguês, que pertencia à tendência mais radical, mais avançada, da revolução burguesa. Marx e Engels começaram sua carreira política da mesma forma, como revolucionários burgueses radicais, e passaram, em seguida, para o lado da classe operária, tornando-se os fundadores do socialismo científico. E somente assim, como revolucionários socialistas e proletários, puderam ultrapassar a concepção burguesa radical.

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Marx e Engels eram discípulos de Hegel e Feuerbach. Mas não chegaram ao materialismo histórico ou dialético partindo apertas da filosofia alemã. Outros fenômenos da época contribuíram igualmente para o feito, inclusive toda a luta de classes que então se desenvolvia na Inglaterra. Era a época do movimento cartista, o primeiro movimento operário moderno de grande importância. Na Inglaterra, àquele tempo o país mais desenvolvido economicamente, podia-se perceber com facilidade que a verdadeira causa, a explicação das lutas políticas, residia na luta de classes entre a burguesia e o proletariado. Por outro lado, para quem seguisse com atenção as lutas sociais na Inglaterra, evidenciava-se que estas decorriam da situação econômica das duas classes em conflito, do fato de que a burguesia tinha em suas mãos o monopólio de todos os meios de produção e acumulava riquezas sobre riquezas, enquanto a classe operária, que não possuía esses meios, estava condenada a vender sua força de trabalho. Era necessário, portanto, procurar aí a explicação materialista dos acontecimentos da época. Friedrich Engels passou muitos anos de sua juventude na Inglaterra, onde se interessou pelo movimento operário e recebeu os primeiros estímulos que o conduziram pouco a pouco ao materialismo histórico. O segundo elemento que contribuiu para a formação de materialismo histórico foi o estudo da Revolução francesa, influindo particularmente sobre Marx, então residente em Paris. Os escritores burgueses da Revolução francesa já compreendiam que os acontecimentos dessa Revolução se explicavam pela luta entre as diferentes classes da sociedade. A concepção da luta de classes como força motriz da história política tornou-se particularmente clara para Marx, graças ao estudo da história da Revolução francesa, enquanto Engels, por outro lado, via com precisão a base econômica do conflito entre o proletariado e a burguesia. A reunião destes dois homens, Marx e Engels, a aplicação feita por eles do método dialético, que aprenderam de Hegel, à História e o passo que deram com Feuerbach do idealismo ao materialismo, tudo isso criou a base para a formação do materialismo histórico, assim como do socialismo científico. Explicação materialista da História e refutação da religião e da filosofia. Em que consiste, pois, o progresso realizado por Marx e Engels sobre Feuerbach? Feuerbach encontrou a chave da explicação materialista da natureza. Marx e Engels encontraram a chave da explicação materialista da História. Encontraram-na observando a maneira como os homens procuram seus meios de subsistência, chamando a isso modo de produção. O modo de produção não significa outra coisa senão a forma pela qual os homens procuram os seus meios de subsistência, o que Engels resumiu de maneira muito simples: "o homem tem necessidade de comer e beber antes de poder filosofar". Todo o resto vem depois; depende do modo pelo qual os homens procuram a comida e a bebida. Esta simples verdade é a base da explicação materialista da História, que aniquila, completamente, o idealismo, arrancando-o do seu último refúgio. Feuerbach eliminou Deus da natureza. Marx e Engels, por sua vez, eliminaram-no da História. Deus, na concepção idealista, não reinava sobre o mundo de modo grosseiro, como afirmavam as velhas religiões, isto é, influindo pessoalmente em todos os acontecimentos da História e sim de modo rnuito mais delicado. Não era Deus em pessoa e sim as idéiasque determinavam, com outros tantos pequenos deuses, os acontecimentos históricos. Se, conforme a Bíblia, Deus criou o mundo do nada, na concepção idealista foi o espírito absoluto que o criou. Marx e Engels romperam completa e radicalmente com essa concepção. Não reconheceram deus nenhum,nem grande nem pequeno, nem rude nem delicado, e demonstraram que, tanto na natureza como na História, é a base material que determina as idéias. Refutaram completamente a noção de seres ou forças sobrenaturais e, por conseguinte, refutaram absolutamente a religião e a filosofia como explicações particulares do mundo. A dialética materialista, resultado final do desenvolvimento do pensamento filosófico. Outro progresso fundamental, levado a cabo por Marx e Engels, consiste em que eles aproveitaram o método dialético, que Feuerbach abandonou, e o empregaram de forma distinta da de Hegel. A dialética em Hegel é idealista. Em Marx, pelo contrário, é materialista. Com efeito, Marx considera a dialética como a soma das leis gerais do movimento do mundo material e das leis do desenvolvimento do pensamento humano que correspondem às primeiras. Dito de outra maneira: o mundo material é dialético. Seu desenvolvimento obedece às leis da dialética e estas não são mais que o reflexo do movimento real das coisas no pensamento. Marx e Engels chegam à conclusão, a partir dessa tese, de que toda a evolução do pensamento filosófico não é mais do que uma simples acumulação de erros, de acordo com o materialísmo dialético. Todo o esforço da filosofia para dar uma explicação particular do mundo, oposta à explicação materialista, malogrou e não conseguiu senão acumular erros sobre erros. Mas a filosofia obteve, sem dúvida, um resultado positivo, que é a compensação das faculdades intelectuais do homem. No curso de vinte a trinta séculos, durante os quais o homem se ocupou de filosofia, houve um progresso real representado pela dialética, pela teoria do conhecimento e pela lógica. . A dialética desapareceu em Feuerbach. Em Marx e Engels, porém, reapareceu e desenvolveu-se para converter-se na dialética materialista. Teoria do conhecimento: a existência do mundo exterior. Examinaremos agora a teoria do conhecimento do ponto de vista do materialismo histórico. A primeira questão a responder, a questão fundamental, que diferencia a concepção idealista da concepção materialista, é a das relações do pensamento com o mundo exterior, ou seja, a questão de saber se o mundo exterior existe independentemente de nossa consciência. Isso é o que se chama, na filosofia, a questão da existência do mundo exterior. A ela o senso-comum dá uma rápida resposta. Esse poste, que vejo diante de mim, existe independentemente da minha consciência e a prova é que me machucará se me chocar contra ele. Da mesma forma, se uma pedra cai sobre minha cabeça, comprovo que ela existe independentemente de minha consciência. O senso-comum não é, contudo, juiz supremo, nas questões da ciência. Aos ensinamentos do senso-comum os filósofos idealistas fizeram objeções muito importantes, dizendo que, em última análise, a pedra não cai fisicamente sobre a minha cabeça e, sim, como uma representação. Dito de outro modo: não faz senão entrar em minha consciência. E, se examino atentamente o que me sucede, compreendo, conforme a concepção idealista, que tudo o que sei não passa de uma série de representações que se sucedem na minha consciência, Assim é como o idealismo chega à conclusão de que o mundo não existe independentemente da consciência humana, ou seja, só existe na consciência humana. Não se pode saber nada que não seja um fenômeno da consciência. Daí resulta que a consciência é tudo;

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quando creio que existem coisas fora de mim é simplesmente um erro que comete o senso-comum. Isto não somente é verdade para a pedra, o poste etc., mas também para os homens e, no final das contas, esse ponto de vista me leva à conclusão de que só existimos eu e minha consciência e que tudo mais não existe senão na minha consciência. Tal é a última conseqüência a que nos leva essa concepção idealista do mundo. Outras conseqüências da concepção idealista. Outras conseqüências interessantes também decorrem da tese de que o mundo não existe senão na minha consciência. Sendo assim, a terra não pode haver existido antes do aparecimento do homem. Da mesma forma, quando se dorme (supondo que não se sonhe) o mundo deve deixar de existir, posto que, durante esse tempo nada sucede na consciência. Tais são as conseqüências necessárias da concepção idealista. Como refutar essa afirmação de que nada existe fora da consciência? Relações do ser e do não ser com a consciência. Poder-se-ia talvez dizer: comprovo que o poste existe independentemente de, mim quando me choco contra ele; vimos que a isso o idealista responde: comprovo a sua existência por mediação de minha consciência. A dor que sinto é uma representação, uma parte de minha consciência. Mas perguntaremos: o que existe em minha consciência é toda a realidade? Basta abordar a questão para verificar imediatamente que essa consciência contém, no mais profundo de si mesma, a certeza de que ela não é tudo, mas somente uma parte do mundo. Essa convicção, por outro lado, é a que permite o pensamento; sobre ela repousa. Assim, encontraremos, na própria consciência, a solução do problema. Ela consiste na convicção de que a consciência não é tudo e de que existe um mundo diferente dela; em outras palavras: o pensamento é uma parte do ser e provém do ser; mas a recíproca não é certa. E assim se resolve, finalmente, a questão, como já o tinha feito o senso-comum, porém não com os seus meios ordinários, mas devido ao resultado de um estudo milenar do pensamento humano, que constitui, na realidade, todo o conteúdo da filosofia. Voltemos ao exemplo do poste. Como já dissemos, ele existe na minha consciência. Somente assim posso saber algo a seu respeito; mas, ao mesmo tempo, diferencio-me dele na minha consciência; sei que sou uma coisa distinta. Devido unicamente a essa distinção é que se torna possível o pensamento. E com ela se relaciona ainda outra pequena questão. Não há somente representações relativas às coisas reais, mas também representações puramente subjetivas. Por exemplo: olho o céu durante a noite e vejo, em certo lugar, o brilho de uma estrela. Essa estrela pode existir realmente, mas também é possível que seja apenas uma ilusão, um erro dos meus sentidos. Como saber então se a estrela está realmente onde a vejo ou se sou vítima de uma ilusão? Representações subjetivas e representações objetivas. Para maior clareza, darei outros exemplos. É sabido que existem doentes mentais que experimentam certas representações falsas. O doente crê, por exemplo, escutar certos ruídos que só existem na sua imaginação. Em que se distingue, pois, um ruído real de outro imaginário? E como saber se a percepção do ruído corresponde a um ruído real? A resposta é bem simples: averiguando se todos os demais homens percebem o que percebo. Este é o meio decisivo de distinguir os fenômenos subjetivos dos fenômenos objetivos. As impressões subjetivas são percebidas unicamente por aqueles que as experimentam, enquanto as impressões objetivas são percebidas por todos. A materialidade do mundo exterior. Chegamos agora à segunda questão, a de saber se o mundo exterior, que acabamos de examinar, existe objetivamente, fora da nossa consciência: se é um mundo material, segundo o materialismo afirma, ou espiritual, como defende o idealismo, por exemplo, o de Hegel, para o qual as coisas não existem independentemente da consciência humana. Essa concepção afirma, igualmente, que as coisas não têm uma essência material e rim unia essência espiritual. Isto é o que se chama idealismo subjetivo. O materialismo pretende que o mundo exterior tenha uma experiência material, como, desde há muito tempo, as ciências naturais provaram. O pensamento e o cérebro. Se o mundo não é senão a matéria em movimento, que significa então o pensamento? A isto se responde: comprovamos que o pensamento em si está ligado a algo material, ao cérebro humano. É uma função que existe, como a função muscular, ou a função das glândulas, que consiste em produzir substâncias como os hormônios etc. O pensamento não funciona, porém, a não ser em relação aos corpos materiais, através de percepções sensoriais. Nesse duplo sentido, o pensamento é igualmente material. Em geral, a sensação, a mais simples forma da consciência, está ligada à existência do ser vivo. O grau mais desenvolvido da consciência - a inteligência e a razão - depende do organismo humano, de um órgão especial: o cérebro. CAPÍTULO IX TEORIA MATERIALISTA DO CONHECIMENTO A variedade infinita e a unidade infinita da matéria e suas funções. No que concerne à matéria, pode-se dizer que é tão infinitamente variada como infinitamente única. Quanto à unidade da mesma, os químicos e os físicos dela se aproximam cada vez mais, atualmente, graças à decomposição de diferentes corpos em átomos e do átomo em diferentes partículas iguais. Vemos, por outro lado, como esta matéria única se combina de modo infinito em diferentes corpos. Não somente a natureza contém uma quantidade ilimitada de corpos diferentes, como também soma os outros que o homem, com a ajuda da química, fabrica. O que dissemos para a matéria podemos aplicar igualmente ao movimento. Ambos estão indissoluvelmente unidos. O movimento também é único e múltiplo. Desde o mais simples movimento local até o pensamento há uma gama infinitamente variada de formas de atividade da matéria.

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Relações do pensamento com a realidade. Apresenta-se-nos, agora, a seguinte questão fundamental: a das relações do pensamento com a realidade. Pode-se abordar a questão do seguinte modo: percebemos as coisas como são em si? Podemos captar a essência das coisas ou somente os fenômenos? Pode-se captar a realidade? E, neste caso, por completo ou só parcialmente? O pensamento é suscetível de conhecer as coisas de forma ilimitada ou existem limites para o conhecimento das coisas, limites na própria natureza do pensamento? E, finalmente, ainda há uma questão derivada da primeira, que é a seguinte: existem características da realidade das coisas? Quais são? O ponto de vista idealista. Mostremos, inicialmente, as objeções que a concepção idealista faz à afirmação segundo a qual podemos conhecer as coisas tais como são na realidade. Segundo a concepção idealista, não é possível conhecer a essência das coisas já que todo conhecimento somente pode verificar-se mediante o pensamento e se obtém através dele. O pensamento não toma as coisas como são em si, mas somente transformadas por ele. O pensamento é um instrumento e, como todo instrumento, modifica a matéria sobre a qual opera. Assim como o oleiro transforma o barro com que trabalha, também o pensamento transforma as coisas que quer conhecer. A isso poder-se-ia objetar: conhecemos as coisas tal como são em si, se fazemos caso omisso da forma que lhes dá o pensamento. Se suprimirmos, entretanto, essa forma, ficam as coisas fora do pensamento. Conseqüentemente, o dilema, a contradição é a seguinte, na aparência: ou ficam as coisas fora do pensamento e, neste caso, não podem ser conhecidas, ou acontecem no pensamento e ele então as transforma, de tal modo que em nenhum caso poderemos conhecê-las como são na realidade. Tal é o ponto de vista da concepção idealista. O pensamento, estudado como um caso particular do sistema geral da ação e reação recíproca das coisas. A essa questão responderemos que o que pretendem os idealistas é absurdo e está em contradição com a natureza das coisas. Quando o pensamento entra em contato com as coisas, ocorre, geralmente, o mesmo que quando duas coisas se encontram. Duas coisas, quando entram em contato, atuam reciprocamente uma sobre a outra. A coisa A atua sobre a coisa B e reciprocamente. O Sol exerce atração sobre a Terra, que, por sua vez, exerce atração sobre o Sol. O Sol atua sobre a Terra e a Terra atua sobre o Sol. Não há ação sem reação. A própria natureza das coisas manifesta-se em sua ação e reação recíprocas. Pretender suprimir a ação de uma coisa sobre a outra equivale a pretender suprimir a coisa em si. As coisas atuam sobre o pensamento e este sobre aquelas. A relação do pensamento com as coisas corresponde à ação geral que duas coisas exercem entre si. Se se deseja que o pensamento reconheça as coisas sem transforrná-las, isto equivale a pedir algo absurdo, pois se pretenderá que exista ação sem reação. E, ao suprimir a reação, suprimem-se também a ação e, conseqüentemente, a própria coisa e a sua essência. Essa é uma contradição metafísica e não dialética. É como pretender que o estômago digira determinadas matérias sem que estas lhe cheguem ou sem que ele atue sobre elas. Particularidades dos órgãos dos sentidos do homem. Acrescenta o idealismo: o homem não pode conhecer a essência das coisas tais como são em si porque seus órgãos são de uma natureza peculiar e captam as coisas do modo especial que corresponde à sua natureza. Sabemos que determinados matizes são captados pelo olho humano na cor azul; uma abelha ou uma formiga, porém, não vêem essa mesma cor como nós vemos. Os órgãos sensoriais do homem percebem as coisas de forma particular, diferentemente da maneira de os outros seres vivos as perceberem. Vejamos outro exemplo referente ao olfato. Sabemos que existem algumas plantas com certo odor, mediante o qual atraem determinados insetos. Existem, por exemplo, plantas com o odor parecido ao da carne decomposta ou da carniça, que desagrada ao homem, mas atrai certos animais. É preciso admitir, portanto, que este odor atua sobre os animais de forma distinta. Poderíamos citar muitos exemplos. Tomemos a sensibilidade. É absolutamente certo que a uma determinada temperatura, na qual o homem sente frio, um animal de sangue frio como o peixe, por exemplo, sente essa temperatura de maneira diversa. O mesmo ocorre no campo dos sons: está comprovado que a sensibilidade dos insetos e dos peixes no que diz respeito aos sons é diferente da dos homens. Esses exemplos têm como objetivo demonstrar que os órgãos sensoriais do homem, olho, ouvido etc., são de tipo par- ticular e se diferenciam dos de outros seres vivos no modo de perceber as coisas. O idealismo deduz daí que o conhecimento humano não percebe as coisas tais como são e sim transformadas de forma particular e de acordo com a natureza especial, não somente do pensamento humano, mas também dos órgãos sensoriais de homem. Limitação dos órgãos sensoriais do homem. Não somente os órgãos sensoriais do homem são de tipo particular e se diferenciam dos de outros seres vivos, como também, é preciso que se diga, têm as faculdades de percepção limitadas. Coloca-se então o problema de saber se existem coisas, fenômeno que não são totalmente acessíveis aos sentidos do homem. Sabemos que existem cores que o olho humano não pode perceber e cuja existência, porém, pode-se comprovar por outros meios. Essas cores situam-se no limite do espectro solar: o infravermelho e o ultravioleta. Isto não é válido apenas para a percepção das cores, mas também para os matizes da claridade. Os animais noturnos, como o gato ou a coruja, vêem os matizes na obscuridade, matizes que o olho humano não pode captar. Podemos dizer o mesmo dos demais campos da percepção sensorial. Cada órgão dos sentidos tem seus limites de percepção superiores e inferiores, limites qualitativos e quantitativos, da mesma forma que limites qualitativos e quantitativos de diferenciação (e também de semelhança). Superação por meio do pensamento das particularidades e limitações dos órgãos sensoriais do homem. O homem tem um meio bem simples de superar a limitação e o caráter particular de seus órgãos sensoriais; esse meio é o pensamento. É possível que o cão possua melhor olfato que o homem; que a águia tenha visão mais aguçada e que outros animais possam perceber melhor certas coisas; mas não é menos verdadeiro que a faculdade de conhecimento do homem é muito maior que a de qualquer outro ser vivo, porque tem a possibilidade de elevar-se através do pensamento sobre as particularidades e limitações de seus órgãos sensoriais. O pensamento dirige as mãos e os instrumentos especiais criados pelo homem, que ajudam a percepção. Não é necessário enumerar os telescópios, microscópios e demais instrumentos e aparelhos mediante os quais o homem estende e faz os órgãos sensoriais mais agudos e precisos. E o essencial é que o espírito humano supera as particularidades dos órgãos sensoriais do homem. Por exemplo: as cores, tais como as vê o físico, devem-se a vibrações de

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certo órgão material que não tem relação direta com o olho humano. Também o físico atribui os sons e os odores a vibrações do ar. Isso tampouco tem a ver com a percepção direta pelo ouvido. A ciência, o pensamento, pode, portanto, excluir as particularidades das percepções sensoriais do homem. Podemos então colocar a seguinte questão: que resta da limitação dos sentidos do homem? Não é possível que existam certas propriedades das coisas não perceptíveis pelos sentidos? Falamos anteriormente de determinadas cores que o homem não pode perceber pela visão: a ultravioleta e o infravermelho. Mas como o homem conhece então estas cores? Como pode percebê-las? Com a ajuda de certos instrumentos especiais. Afinal, todas as propriedades das coisas são acessíveis ao homem, direta ou indiretamente, com ajuda de seus órgãos ou mediante órgãos artificiais. Vemos, assim, que não existe nenhuma propriedade nas coisas que não exerça uma ação qualquer e que as ações exercias por elas constituem urna cadeia que se pode seguir de elo em elo. Daremos outro exemplo: não se pode sentir o calor com a mão além de determinada temperatura; mas o físico e o técnico podem medi-la com ajuda de um termômetro especial. E como se pode perceber com o termômetro? Simplesmente lendo os graus de calor que indique. Assim, resulta que, no final das contas, se percebe o calor, não com a mão, mas com a vista. Acrescentamos a isto que a perceptibilidade ilimitada das coisas realiza-se num processo ilimitado, dentro de limites constantes que se superam também constantemente. Esse distanciamento incessante dos limites da perceptibilidade das coisas prossegue, continuamente, mediante avanços mais ou menos consideráveis. Critério da verdade. A questão que agora se coloca é a de saber quais são as características do conhecimento mediante as quais se possa comprovar que, uma vez estabelecida, a afirmação corresponda à realidade. A esta questão se responde comumente do seguinte modo: reconhece-se a verdade naquilo que não é contraditória. A contradição é a característica do erro. Existe algo mais claro ou mais seguro? Essa pretendida característica da verdade desmorona porém se a estudamos com atenção. Sabemos, por exemplo, que se atribuem ao espaço três dimensões: largura, comprimento e altura. Se se diz, no entanto, que o mundo tem dez dimensões, esta afirmação não leva em si nenhuma contradição e, não obstante, não corresponde à realidade. Há lendas que falam da serpente marinha. Trata-se, segundo essas lendas, de um animal em forma de serpente, que nada no mar e tem um comprimento de 100 ou 1.000 metros. Pois bem. A idéia da serpente marinha não contém em si nenhuma contradição e, não obstante, esse animal não existe, Em certas crendices populares intervêm dragões, espectros etc. Tais representações não são em si contraditórias; pode-se imaginá-las de modo lógico. A característica de sua irrealidade não reside, pois, numa contradição interna, mas em algo diferente. Por outro lado, vimos que nas matemáticas existem contradições que não permitem distinguir o verdadeiro do falso e que pode haver contradições sem que por isso impliquem um erro. A observação e a experimentação como critério da verdade. O critério da verdade não consiste, pois, em comparar entre si as diferentes noções, mas em compará-las com a realidade. Isto se faz, primeiramente, através da observação. É possível que a idéia dos espectros não tenha em si nenhuma, contradição; mas está, não obstante, em contradição com a experiência geral pela qual sabemos que as funções espirituais estão sempre ligadas aos órgãos sensoriais. No que diz respeito à idéia do dragão, é possível imaginar-se um animal semelhante; ele, porém, não existe nem se encontra na realidade. Tomemos outro exemplo de criações do pensamento humano. Sabe-se que o astrônomo Kepler estabeleceu, pela primeira vez, as leis do movimento dos planetas; pode-se provar sua exatidão e grau de precisão, observando o movimento dos mesmos. Um dos meios principais de se verificar se conhecem as coisas tais como são na realidade é a experimentação. Como comprovar se a água é exatamente composta de dois corpos, o oxigênio e o hidrogênio, combinados mediante certas relações de peso? Através de duas formas de experimentação. Primeiro, obtém-se a água, combinando o oxigênio e hidrogênio em certas condições de temperatura e pressão; segundo, decompondo a água mediante determinada reação química em hidrogênio e oxigênio. Graças a estes dois métodos de experimentação comprova-se que essa idéia da água não é uma falsa aparência, correspondendo, de fato, à natureza das coisas. Tais experiências se realizam não só na natureza, mas também na sociedade. A política não é outra coisa senão uma série de experiências efetuadas no terreno social. Se se considera necessário, por exemplo, ganhar para a revolução os pequenos camponeses, repartindo entre eles as terras dos grandes proprietários, isto pode ser verdadeiro ou falso. Somente realizando-a comprovaremos se essa política é verdadeira ou falsa. É possível um conhecimento completo ou absoluto das coisas? Chegamos, por conseguinte, à seguinte conclusão: a experiência, a atividade dos homens, é a pedra de toque mediante a qual eles verificam se têm um conhecimento verdadeiro das coisas e em que medida as conhecem. Se se pode fabricar a água com a ajuda de oxigênio e hidrogênio é que se conhece exatamente a sua natureza. Agora a questão é saber se é possível um conhecimento exato ou absoluto das coisas. Devemos responder a isto: não se pode conhecer definitivamente nenhuma coisa à primeira vista. O processo tanto para o conhecimento de uma coisa individual como para o conhecimento do universo é infinito. Em outras palavras: o conhecimento completo das coisas não chega a realizar-se a não ser por meio de uma série de conhecimentos relativos e incompletos. Esta série contínua de conhecimentos representa o conhecimento absoluto ou completo. Ele nos dá, ao mesmo tempo, a medida da relação entre a noção do verdadeiro e do falso. Essas contradições se opõem na vida cotidiana, de modo claro e absoluto. Tal coisa - diz-se - é verdadeira ou falsa, não há meio-termo. O conhecimento imediato das coisas contém em cada momento, realmente, uma parte de verdade e uma parte de erro. A lei geral que rege o movimento dos planetas em redor do Sol, a lei da gravidade, foi descoberta por Newton, no Século XVII, e foi considerada justa até o Século XX, quando Einstein formulou uma teoria mais precisa. Seria puerilidade, entretanto, dizer-se que a lei de Newton é falsa e a de Einstein verdadeira. A lei de Newton

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aproxima-se, extraordinariamente, da verdade, mas contém um elemento de imprecisão. A lei de Einstein, por sua vez, traz maior elemento de verdade e outro menor de erro e imprecisão. Uma e outra contem, ao mesmo tempo, uma parte de verdade e outra de erro. A de Einstein, porem, aproxima-se mais da verdade que a de Newton. É possível conhecer o mundo na sua totalidade? Em estreita relação com o que acima dissemos, apresenta-se a questão de saber se é possível conhecer o mundo na sua tota1idade ou somente uma parte desse todo. É possível conhecê-lo na sua totalidade, não, porém, de uma vez, porque e demasiado vasto. Somente pouco a pouco é possível conhecê-lo em suas diversas partes. Para isso é preciso penetrar nas diversas ciências. Fina1mente, na medida em que a ciência progride, o conjunto torna-se cada vez mais rico e variado. Reciprocamente pode-se dizer, da mesma forma, que a representação geral do universo é a condição de todas as diferentes ciências. Sem essa condição primordial (a saber, que todas as ciências constituam um conjunto) não se encontrará um ponto de partida para as diversas ciências, que supõem a ciência do mundo em geral. Essa ciência do mundo em geral, por outro lado, não se realiza senão através das diferentes ciências particulares. Mas a concepção geral do mundo é assunto da dialética. Por isso podemos dizer: as diferentes ciências particulares supõem a dialética, assim como a dialética supõe as diferentes ciências particulares. Uma e outra, reciprocamente, se condicionam. Existem idéias inatas? Os fi1ósofos, durante muito tempo, indagaram se existem idéias inatas no espírito humano. O homem, ao vir ao mundo, possui idéias que não tem necessidade de aprender com a experiência? Podemos a isto responder: não, o homem não tem idéia inata do gato ou do cão, do burro, da árvore ou do camelo. Não existe sequer uma idéia geral inata, mas uma qualidade inata fundamental do pensamento, uma propriedade fundamental, natural do pensamento, do mesmo modo que o sal, a água e o ferro possuem suas próprias qualidades especiais. Mais adiante veremos em que consiste essa propriedade inata do pensamento. E podemos dizer ainda que essa propriedade não se confirma a não ser relacionada com a experiência concreta. Isto se aplica tanto ao pensamento como aos diversos órgaos; por exemplo, o estômago, que não digere quando não tem algo que digerir; assim, a função fundamental do pensamento não se confirma senão quando existe objeto sobre o qual possa exercitar-se. CAPÍTULO X A DIALÉTICA Principais etapas do desenvolvimento da dialética. Vimos que a dialética tem uma hist6ria antiga e passou por diferentes etapas de desenvolvimento. Podemos assinalar as suas principais fases: 1ª) a dialética dos filósofos jônicos, representada sobretudo por Heráclito; 2ª) a dialética de Platão e Aristóteles; 3ª) a dialética hegeliana; 4ª) a dialética materialista. A própria dialética experimenta um desenvolvimento dialético. Mais adiante veremos o que isso significa. Heráclito, que representa a primeira fase da dialética, desenvolveu a dialética da sucessão. Platão e Aristóteles, numa segunda fase, desenvolveram a dialética da coexistência. Essa segunda fase da dialética está em contradição com a primeira, da qual é a negação. Hegel reuniu as duas e as elevou a uma fase superior, desenvolvendo, ao mesmo tempo, a dialética da sucessão e a da coexistência, mas de forma idealista. É uma dialética histórica idealista. A dialética, na antiguidade, era extremamente limitada. Vimos, anteriormente, que a causa residia no modo de produção e nas relações de classe da Grécia antiga e, mais particularmente, na economia escravista e nas relações sociais dela derivadas. A dialética materialista suprime, completamente, esses entraves: é uma dialética generalizada. É a dos pensadores que se colocam no ponto de vista da classe operária e da revolução proletária. Esse ponto de vista, com efeito, tende à supressão das classes e, por conseguinte, da sociedade de classes em geral. Com a supressão das classes e da sociedade de classes desaparece o último obstáculo que impede o desenvolvimento social e, portanto, que se opõe à idéia do desenvolvimento em geral. Para Platão e Aristóteles, assim como para Hegel, a sociedade de classes era uma forma de sociedade que não podia ser ultrapassada pela evolução social. A economia escravista, para os dois primeiros, e a sociedade burguesa, para o último, constituíam verdadeiro obstáculo para o completo desenvolvimento da dialética. Mas no materialismo histórico, ou do ponto de vista da classe operária, a sociedade de classes não é em si nada de definitivo e não constitui um limite absoluto de desenvolvimento social. A própria dialética está submetida a um desenvolvimento dialético e ocupa seu lugar no conjunto do desenvolvimento social. Da generalização deste ponto de vista deriva, naturalmente, a forma generalizada e ao mesmo tempo materialista da dialética. Definição da dialética. Pode-se definir a dialética como a ciência das relações gerais que existem tanto na natureza como na História e no pensamento. O contrário da dialética é a observação isolada das coisas, unicamente no seu estado de repouso. A dialética somente considera as coisas em suas relações mais gerais, de dependência recíproca, não em repouso e sim em movimento. Quais são as fontes da dialética? A primeira é a natureza, a observação dos fenômenos naturais. Assim chegou Heráclito à idéia da dialética. A segunda é o estudo da história humana e as transformações produzidas no curso das diferentes épocas: transformações no modo de produção, nas formas sociais e nas idéias derivadas dessas formas. A terceira, enfim, é o estudo do pensamento em si. Aqui se coloca agora outra questão. Como sabemos que as leis do pensamento dialético, tais como as encontramos em nosso espírito, concordam com as leis da realidade, com as leis das transformações que se produzem na natureza e na História?

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Não há nisto nada particularmente milagroso, posto que o homem não é senão uma parte da natureza. O pensamento humano é um fenômeno natural do mesmo gênero que qualquer outro fenômeno da natureza. Não há, pois, nada de assombroso em que as leis do pensamento concordem com as leis da natureza e as leis da História. Poderíamos dizer, inclusive, que o assombroso e incompreensível seria precisamente o contrário. Os três princípios essenciais da dialética. Examinemos agora os principais fundamentos da dialética, que são: o pri-meiro, e o mais geral, do qual se originam os demais, é a lei da interpenetração dos contrários (a luta dos contrários). Essa lei implica imediatamente outra. Encontramo-nos, em seguida, com o fato indiscutível de que todas as coisas, todos os fenômenos, todas as idéias, chegam finalmente a uma unidade absoluta. Dito de outro modo, não existe nenhuma contradição e diferença que não se possa reduzir à unidade. A segunda lei da dialética, tão absoluta quanto a primeira, é a de que todas as coisas são ao mesmo tempo tão absolutamente distintas e opostas como absolutamente iguais entre si. Pode-se chamar esta lei de unidade polar de todas as coisas. É aplicável para cada coisa isoladamente, para cada fenômeno isolado, como para o mundo em geral. Também se pode formular esta lei, considerando-se apenas o pensamento e seu método, do seguinte modo: o espírito humano pode agrupar as coisas em unidades, embora sendo as contradições e os antagonismos mais violentos, e, por outro lado, pode, de forma ilimitada, separar as coisas em antagonismos. O espírito humano pode comprovar esta unidade e esta diferenciação ilimitada das coisas. porque uma e outra acontecem na natureza.

A unidade ilimitada ou absoluta e a igualdade das coisas. Podemos apresentar mais claramente esta lei com a ajuda de alguns exemplos; tais como o dia e a noite. Existe um dia de doze horas e uma noite de doze horas; de um lado o período de luz e, do outro, o período de escuridão. O dia e a noite são dois opostos que se excluem entre si. Mas isto não impede que o dia e a noite sejam iguais e constituam duas partes de um mesmo dia de vinte e quatro horas. A contradição entre o dia e a noite, por conseguinte, se suprime na idéia do dia de vinte e quatro horas.

Vejamos outro antagonismo: o macho e a fêmea. Macho e fêmea são dois termos contraditórios, o que não impede que o homem e a mulher constituam uma unidade e que concordem como variantes da idéia do homem em geral. São, portanto, completamente iguais no sentido de que os dois são aspectos do homem.

Vejamos outros antagonismos: o que existe na natureza entre o repouso e o movimento. O que está em repouso está em repouso; o que está em movimento está em movimento. O físico, pelo contrário, considera o repouso uma espécie particular do movimento e, reciprocamente, pode considerar o movimento uma espécie de repouso.

Outro antagonismo, ainda, que parece também. absoluto, é o que se costuma ver entre a natureza e a arte. A arte, di-zemos, é uma criação do homem, contrária às criações da natureza. Mas, no final das contas, a arte é igualmente uma parte da natureza, pois o homem, que a produz, não é senão parte dessa mesma natureza etc.

Os obstáculos da dialética. Nas condições normais, em que se pode compreender as coisas simples pela percepção direta e quando não é preciso levar em conta poderosos interesses de classe, não há dificuldade alguma em comprovar a inexistência de contradições que não possam reduzir-se à unidade; mas os obstáculos para compreensão dessa idéia começam 'precisamente onde os interesses sociais entram em choque e as idéias não estão próximas, mas afastadas da percepção direta. Eis aqui alguns exemplos: compreendemos hoje, perfeitamente, que tanto o proprietário de escravos como o próprio escravo são homens, embora exista entre eles o maior antagonismo social que possamos conceber. Mas se se dissesse ao grego mais culto daqueles tempos que o proprietário de escravos e o escravo são iguais, como homens, ele não o admitiria. Responderia que são completamente opostos e que não pode haver nenhuma igualdade entre eles. Agora tomemos uma relação moderna: o capitalista e o proletário, o empresário e o operário. Qualquer burguês compreende imediatamente que o capitalista e o operário são diferentes um do outro. Julga, inclusive, que essa diferença sempre existiu e sempre existirá. Mas para se compreender que esse antagonismo é histórico, transitório, é preciso colocar-se do ponto de vista da classe operária revolucionária.

Vejamos outro exemplo de mais fácil compreensão. Falamos anteriormente do homem e da mulher. Todos reconhecem que, cientificamente, o homem e a mulher pertencem à mesma espécie, são iguais como seres humanos; no que concerne ao aspecto social, logo percebem-se contradições. Para poder compreender que a mulher deve ter os mesmos direitos humanos que o homem, para poder compreender isso e levar a cabo essa reivindicação, foi necessário uma longa séries de revoluções históricas. Em grande número de países, considerando alguns dos mais avançados, ainda hoje não se realizou essa igualdade.

O homem, que não aprendeu a pensar dialeticamente e que se deixa levar por seus preconceitos sociais, afirmará que as contradições são absolutas em todas essas questões. Somente um homem que saiba pensar dialeticamente compreende que há uma interpenetração dos contrários. Naturalmente que isso não depende apenas de que se conheça a dialética, mas também do ponto de vista de classe, do ponto de vista social em que se coloque. Mencionarei ainda outro problema oriundo do mesmo campo. Sabe-se que, nos Estados Unidos, existe profunda diferença social entre brancos e negros e, nas colônias, entre o europeu e o indígena. Pois bem. Para compreender, teórica e praticamente, que esses antagonismos não são absolutos e sim que se reduzem à idéia de humanidade em geral, da qual participam igualmente brancos, negros e amarelos, é preciso não somente um pensamento habituado à dialética, mas também que se coloque em determinado ponto de vista de classe. Mas o homem, que não está habituado a pensar dialeticamente, também encontra dificuldade quando se trata de idéias gerais e tanto maiores quanto mais abstratas sejam e mais distanciadas estejam da percepção ou da representação concreta. É fácil compreender que o dia e a noite são partes iguais do dia de vinte e quatro horas; a questão, porém, torna-se mais difícil quando se trata de contradições, tais como a verdade e o erro, e ainda da idéia mais geral, mais vasta e, ao mesmo tempo, mais pobre, do ser e do não ser. O homem vulgar perguntará: como é possível reunir coisas tão contraditórias como o ser e o não ser? Uma coisa é ou não é. Não pode haver entre as duas nem meio-termo nem termo comum. Vimos, a propósito de Heráclito, como, de fato, em cada coisa que se transforma, as idéias do ser e do não ser penetram-se reciprocamente, estão contidas, igual e ao mesmo tempo porque uma coisa em desenvolvimento é e não é ao mesmo tempo. Um menino, que está em vias de se transformar em

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homem, é e não é um menino ao mesmo tempo. Ao transformar-se em homem deixa de ser menino, mas, não obstante, ainda não é homem porque não chegou a essa fase de seu desenvolvimento. Assim, a idéia de vir a ser contém, por sua vez, as idéias de ser e de não ser.

Tomemos o exemplo do simples movimento local, de um corpo que se move de um ponto ao outro: quando esse corpo se desloca, ele se acha e não se acha, ao mesmo tempo, num lugar determinado. Finalmente, há uma terceira contradição, na qual tropeça amiúde o pensamento comum, a saber: a contradição entre o material e o espiritual, entre o ser e o pensamento, ou entre o ser e a consciência. A inteligência não cultivada crê que não existe nada de comum entre estes dois termos contraditórios. O material não é espiritual; o espiritual não é material. Já mostramos como esses dois termos contraditórios se unificam; como o pensamento, o espiritual, é uma atividade material ligada, portanto, à matéria.

A variedade ilimitada ou absoluta do antagonismo das coisas. Vejamos agora o reverso da questão, o outro aspecto do princípio da interpenetração dos contrários. Como vimos, não existe nenhuma contradição que não se possa reduzir à unidade, nem termos contraditórios entre os quais não exista nenhuma igualdade. Agora veremos que não há coisas iguais entre as quais não exista nenhuma diferença ou contradição, ou, para empregar uma fórmula mais simples, o antagonismo entre as coisas é tão ilimitado como sua igualdade.

O filósofo alemão, Leíbnitz, que viveu em fins do Século .XVII e princípios do XVIII, estabeleceu o princípio de que não existem no mundo duas coisas iguais. Certo dia em que passeava com um grupo de cortesãos, saiu a cotejo este princípio e alguém propôs observar se, numa árvore, à margem do caminho, havia duas folhas exatamente iguais. Os cavalheiros e as damas do grupo examinaram atentamente as folhas e, efetivamente, não encontraram duas absolutamente iguais entre si. O mesmo que acontece na natureza das coisas acontece na natureza da razão: não há duas coisas iguais. O mesmo se pode dizer de duas gotas d'água. Uma nunca será exatamente igual à outra. E examinando as menores partículas da matéria, os elétrons, também veremos que não existem dois que absolutamente se pareçam, coisa que podemos afirmar, com toda a segurança, embora nada ainda saibamos de suas particularidades individuais (para o que se refere aos átomos e às moléculas, podemos ao menos determinar tipos diferentes). Essa afirmação geral apóia-se no princípio da interpenetração dos opostos, que implica a idéia de que a igualdade das coisas é tão ilimitada como sua desigualdade. A faculdade do espírito de igualar as coisas tem uma característica tão ilimitada que o que as distingue e as opõe corresponde tanto à igualdade como à desigualdade ilimitada das coisas da natureza. Este é o elemento primário. Volta-se a encontrá-lo quando se comparam entre si as idéias mais gerais, como o ser e o não ser, o ser e o pensamento. Já manifestamos que o ser e o não ser por sua vez existem no devir, e constituem partes iguais deste devir, o que não impede absolutamente, que sejam distintos e contraditórios.

O princípio da interpenetrarão dos opostos está em todo princípio que tenha um conteúdo qualquer. O princípio da interpenetração dos opostos surpreende, num primeiro momento, como algo completamente novo, até então não pensado. Mas, por pouco que se raciocine, constatamos a impossibilidade de fazer qualquer proposição, com qualquer conteúdo, que não o implique. Excetuando algumas proposições, tais como um leão é um leão, na qual o sujeito e o atributo são iguais, proposição que não possui nenhum conteúdo, encontrar-se-á em todas o princípio da interpenetração dos opostos. Vejamos, por exemplo, uma proposição comum: o leão é um animal selvagem. Nesta proposição, uma coisa A (o leão) é considerada como igual a B (um animal selvagem) ; mas, ao mesmo tempo, se distingue A de B, o leão do animal selvagem. O leão é igual a um animal selvagem, mas, ao mesmo tempo, dele se diferencia. Generalizando, não se pode fazer nenhuma proposição que não conduza à fórmula A = B. Todas as proposições, qualquer que seja seu conteúdo, têm uma forma determinada pelo princípio da interpenetração dos contrários.

As fontes da primeira lei fundamental da dialética. Qual a origem dessa lei fundamental? É uma simples generalização da experiência confirmada pela experiência da vida cotidiana e pela ciência, que se ocupam constantemente em investigar a igualdade e a desigualdade das coisas. A experiência, com efeito, ensina que não existe nenhum limite imutável para o descobrimento das igualdades e desigualdades das coisas. Se há limites, estes são essencialmente mutáveis, relativos, provisórios, que se suprimem, se deslocam, suprimido-se novamente etc.

Por outro lado, vimos que essa lei da interpenetração dos contrários emana do estudo do próprio pensamento. É por sua vez uma lei da natureza e do pensamento. Com respeito ao pensamento, essa lei se baseia na consciência, no sentido de que eu sei que constituo uma parte do universo, uma parte do ser e, ao mesmo tempo, diferencio-me do mundo exterior e de todas as demais coisas. A estrutura fundamental do pensamento é por si uma unidade polar, contraditória, e dessa unidade contraditória derivam todas as outras leis do pensamento.

O segundo princípio fundamental da dialética: a lei da negação da negação. A segunda lei fundamental da dialética é a lei da negação da negação, ou lei do desenvolvimento através das contradições. É a lei mais geral do movimento do pensamento. Vamos formulá-la, ilustrando-a com exemplos. Mostraremos em que se baseia e as relações que mantém com a lei da interpenetração dos contrários. Encontramos uma previsão dessa lei, particularmente em Heráclito, mas, até Hegel, ninguém a formulou definitivamente.

Todas as coisas implicam um processo. Esta lei é verdadeira para todo o movimento ou transformação das coisas, tanto para as reais como para seus reflexos no cérebro, que são as idéias. Todas as coisas e todas as idéias se movem, se transformam, se desenvolvem, o que significa que todas as coisas constituem processos. Toda extinção das coisas não é senão relativa, limitada. Mas seu movimento, transformação ou desenvolvimento é absoluto, ilimitado. Ao unificar-se, o movimento absoluto coincide com o repouso absoluto. Já vimos, ao tratar de Heráclito, alguns exemplos do princípio, segundo e qual todas as coisas constituem um processo. Não insistiremos mais.

A transformação opera-se através das contradições. A lei da negação da negação tem um conteúdo mais especial ainda que a simples tese de que todas as coisas se transformam, constituindo processos. Contém outro ponto sobre o modo mais geral

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dessas transformações, movimentos ou desenvolvimentos. Primeiramente, diz que todo movimento, desenvolvimento ou transformação se opera através das contradições ou mediante a negação de uma coisa. Essa expressão da negação se refere à transformação das idéias.

A negação constitui o movimento ou transformação das coisas. O movimento real das coisas aparece no cérebro como

perpétua negação. Dito de outra maneira: a negação é a forma mais geral do reflexo do movimento ou da transformação das

coisas no cérebro do homem. Essa é a primeira fase do processo. A negação de uma coisa, ponto de partida da transformação,

está em si submetida à lei das transformações das coisas ao seu contrário. A negação é negada por sua vez. Falamos por isso da

negação da negação.

A dupla negação na linguagem. Negação e afirmação como operações intelectuais polares. A negação da negação tem

algo de positivo, não só do ponto de vista lógico, no pensamento, como na realidade. A negação e a afirmação são noções

polares. A negação da afirmação implica a negação. A negação da negação implica a afirmação. Quando se nega algo, diz-se

não. Esta, a primeira negação. Mas se se repete a negação, isto significa sim. Segunda negação. O resultado é algo positivo. O aparecimento de novo elemento por meio de dupla negação. Assim, até na linguagem comum, a dupla negação

significa uma afirmação. Porém (e este é o aspecto característico da coisa), uma dupla negação na dialética não restabelece a primitiva afirmação nem conduz simplesmente ao ponto de partida e sim resulta numa nova coisa. A coisa, cujo processo começou, restabelece-se num nível superior. O processo da dupla negação engendra novas propriedades. Uma nova forma, que suprime e contém, ao mesmo tempo, as propriedades primitivas.

Tese, antítese, síntese. Se a expressão lei da negação da negação parece estranha, pode-se empregar a expressão mais simples de lei da transformação do novo com a ajuda do antigo. Essa lei foi igualmente formulada como lei do pensamento. Como tal, assume a seguinte forma: o ponto de partida é a proposição positiva, a tese. O pensamento começa com uma proposição, uma afirmação qualquer. Essa proposição se nega ou se transforma em sua contrária. A proposição, que nega a primeira, chama-se contradição ou antítese e constitui a segunda fase do processo. A segunda proposição, a antítese, é, por sua vez, negada, obtendo-se a terceira proposição ou síntese, que não é outra coisa senão a negação da tese e da antítese, numa proposição positiva superior, obtida por meio de dupla negação.

Duas alterações da lei da negação da negação. Para compreender bem esta lei, é preciso prevenir-se contra duas espécies de erros.

A proposição e a contradição unem-se dialeticamente, na última proposição, na síntese. É preciso não confundir a união dialética com a simples adição de propriedades de duas coisas opostas, porque não se teria então um desenvolvimento dialético, mas somente simples mistura de contrários, resultando em obstáculo ao desenvolvimento. A característica do desenvolvimento dialético é que ele prossegue através das negações. Sem negação não temos processo, desenvolvimento, aparecimento de novas características. Socialmente, essa negação se expressa na luta que suprime o antigo estado de coisas. A falsa dialética pretende estabelecer entre o antigo estado de coisas e o novo um pacto, um compromisso, esforçando-se para unir o antigo ao novo, sem suprimir aquele. Acrescentaremos que todo compromisso não implica necessariamente uma negação da luta, porque pode ser, igualmente, um meio de luta.

Essa falsa compreensão da dialética do desenvolvimento consiste no esquecimento de que a negação constitui fator essencial da união. Mas existe ainda outro erro, o esquecimento de que o novo, resultante do processo de desenvolvimento, não somente nega e suprime o antigo, mas também o encerra. Se não se considera este fato, chega-se a uma alteração da dialética do desenvolvimento, como sucede, por exemplo, no caso de Bergson. Neste, o desenvolvimento transforma-se num processo místico e incompreensível, no qual se consideram as relações entre o antigo e o moderno apenas como contradições e não, ao mesmo tempo, como identidades.

O erro fundamental de Bergson consiste, precisamente, em não considerar que o novo, engendrado pelo antigo, não é somente sua negação e que possui, simultaneamente, algo de comum com ele. Seguindo o pensamento de Bergson percebemos que ele se anula a si mesmo. Somente existe um tipo de negação, no qual o objeto negado nada tem de comum com o elemento que origina o desenvolvimento. Essa é a negação completa, absoluta; numa palavra: o nada. Quando se nega completamente uma coisa, esta se aniquila. E então se detém o desenvolvimento. Quando se impulsiona o desenvolvimento além de seus limites, como no caso de Bergson, que o faz absoluto, ele se transforma no seu contrário, num estado de fim ou imobilidade do próprio desenvolvimento. A negação que existe no seio do processo dialético não é uma negação completa, absoluta, mas somente uma negação parcial, relativa. A dialética não conhece mais que a negação concreta. A primeira alteração da dialética, da qual falamos, que consiste em esquecer a negação, poderíamos classificá-la com uma expressão que se emprega constantemente na política: o desvio oportunista da dialética. A segunda, da qual acabamos de falar e que consiste em esquecer que o novo possui também algo de comum com o antigo, poderíamos chamar de desvio anarquista da dialética. Esses dois tipos de desvios da dialética, tanto o oportunismo como o anarquismo conduzem, no final das contas, ao mesmo resultado: suprimir o desenvolvimento em si. A primeira, porque suprime a negação como força motriz do desenvolvimento; e a segunda, porque suprime a relação entre os termos contraditórios, relação esta que torna possível sua fusão numa unidade superior.

Alguns exemplos. Para compreender melhor o que até aqui foi dito, daremos alguns exemplos. Tomemos um grão de- trigo. Que faremos para que esse grão de trigo seja o ponto de partida de um processo de desenvolvimento? Enterrá-lo-emos. Que acontecerá então? Assistimos à primeira negação do grão de trigo, que desaparecerá para que nasça a espiga. Primeira negação: o grão de trigo desapareceu e transformou-se numa planta. Segunda fase: a planta cresce e produz, por sua vez, grãos de trigo, depois morre. Segunda negação: a planta desapareceu depois de reproduzir o grão de trigo que a originou e, além do mais, não somente o grão de trigo, mas também uma grande quantidade de grãos de trigo, que podem, inclusive, ter qualidades

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novas. Essas pequenas variações de qualidade são certamente muito pequenas; porém, sua acumulação, como sabemos pela teoria de Darwin, é a origem de novas espécies. O exemplo demonstra aonde conduz a negação da negação. A dupla negação restabelece o ponto de partida primitivo, porém a um nível mais elevado e também em quantidades diferentes. O desvio bergsoniano da dialética explica-se, na realidade, pela situação atual da burguesia. A dialética mostra, com efeito, que a burguesia, como todas as demais classes da história, marcha inevitavelmente para a ruína e perecerá. Por isso, a dialética de Bergson suprime a lei histórica e a substitui pelo milagre, pelo arbitrário, pelo mistério, nos quais nada é impossível.

O desvio anarquista da dialética consiste em negar uma coisa, de tal modo que ela não possa desenvolver-se. Por exemplo, em lugar de enterrar o grão para que germine e produza uma planta, ele o destrói pura e simplesmente, esmagando-o num almofariz. O caráter dessa negação é tal que paraliza todo o desenvolvimento. Resulta disso que, para cada coisa, existe um tipo determinado de negação, adaptada ao caráter particular dessa coisa, graças à qual é possível o processo de desenvolvimento.

A segunda espécie de desvio, que chamamos de desvio oportunista da dialética, consiste (já o vimos) em omitir a negação. O indivíduo, a quem dou o grão de trigo, pode dizer que o referido grão se desenvolverá por si mesmo, sem que seja preciso enterrá-lo, e o deixará sobre a mesa. O resultado é que o grão de trigo não se desenvolverá e acabará por desaparecer como organismo vivo. Este exemplo demonstra de modo concreto como esses dois desvios opostos da dialética conduzem ao mesmo resultado: não se produz nenhum desenvolvimento e o objeto desaparece. Pelo contrário, quando se nega, de modo justo, isto é, de maneira que se provoque um processo de desenvolvimento, o objeto desaparece, mas para dar nascimento a um novo objeto superior. Daremos outro exemplo tirado da evolução das formas econômicas e sociais. Sabemos que o modo de produção mais antigo que se conhece é o comunismo primitivo, isto é, a posse em comum dos principais meios de produção por um pequeno grupo de homens. Esse comunismo primitivo constitui o ponto de partida de todo o desenvolvimento social, isto é, a tese. Dizemos que esse comunismo primitivo logo em seguida é negado. A propriedade comum dos meios de produção e a produção em comum dão lugar à produção privada, à economia escravista, à produção feudal; depois, à simples produção de mercadorias e, finalmente, à produção capitalista, isto é, a antítese. A negação do comunismo primitivo resulta da produção privada em suas diferentes formas históricas. A terceira fase é uma negação da produção privada, o restabelecimento da propriedade e da produção coletivas, isto é, o comunismo numa etapa superior. Graças a essa dupla negação, o desenvolvimento volta a seu ponto de partida, desta vez, porém, num outro nível mais elevado. A produção socialista e comunista, tal como se origina da produção capitalista, já não é o comunismo primitivo e sim o comunismo num grau desenvolvido, que engloba as conquistas técnicas do capitalismo. Agora, o homem, dominado pela na-tureza, na fase do comunismo primitivo, passa a dominá-la. As dimensões que pode alcançar a moderna sociedade comunista são assim incomparavelmente maiores que as dos primitivos grupos comunistas. O comunismo primitivo podia abarcar, numa só unidade econômica, apenas pequeno número de famílias, enquanto o socialismo moderno ou comunismo pode englobar toda a economia mundial. Vemos, portanto, a grande diferença entre o comunismo primitivo e o moderno. O comunismo moderno contém, entretanto, o comunismo primitivo, no sentido de se restabelecer inteiramente a propriedade coletiva dos meios de produção. O capitalismo é negado, suprimido, no seio do comunismo. Mas esta negação não é absoluta ou abstrata. É uma negação relativa, concreta, parcial. A técnica capitalista assim como a cooperação criada pelo capitalismo subsistem na fábrica comunista. Com esse exemplo mostramos, precisamente, os dois desvios da dialética de que antes falamos. O primeiro, que não se ocupa da necessidade de suprimir ou negar o capitalismo para chegar ao socialismo, é uma concepção que consideramos reformista ou oportunista. O segundo, que tem por base a aniquilação completa do capitalismo, e, portanto, a destruição dos elementos que podem ajudar a edificação do socialismo, é a concepção anarquista. A experiência histórica ensina que os dois desvios conduzem de fato ao mesmo resultado.

Relações entre as duas primeiras leis fundamentais da dialética. De onde provém a lei da negação da negação? Que relações tem com a lei da interpenetração dos contrários? A primeira lei, a da interpenetração dos opostos, caracteriza as relações gerais das coisas em estado de repouso, isto é, do ponto de vista estático. A segunda lei, a da negação da negação, caracteriza essas relações das coisas como processos, em estado de movimento, isto é, do ponto de vista dinâmico. As duas leis guardam entre si estreita dependência. Podem aplicar-se simultaneamente e do mesmo modo para cada fenômeno: para cada coisa. Interpenetram-se, reciprocamente, constituindo um mesmo todo. Poder-se-ia dizer que a primeira corta transversalmente o mundo e a segunda corta-o em sentido longitudinal.

A terceira lei fundamental da dialética: transformação do qualidade em quantidade e da quantidade em qualidade. Chegamos agora à terceira lei fundamental da dialética, ou seja, a lei da transformação da qualidade em quantidade e da quantidade em qualidade. Esta lei significa que o simples aumento de uma ou várias coisas resulta numa transformação na qualidade, das propriedades desta ou das próprias coisas, da mesma forma que a transformação qualitativa determina, em conseqüência, uma transformação quantitativa.

Vejamos um exemplo para compreender melhor essa lei. Sabemos que, elevando a temperatura da água até certo grau, esta não se esquenta indefinidamente, mas, também, quando se faz descer a temperatura, a água tampouco se esfria indefinidamente: a partir de certo grau, transforma-se em gelo. A água congela-se em conseqüência da diminuição do movimento das moléculas que a integram. A temperatura exprime o movimento de pequenas partículas de matéria denominadas moléculas. Se se modifica a intensidade do movimento molecular, modificam-se até certo ponto as propriedades da água, e esta passa do estado líquido ao sólido ou gasoso. Da mesma forma, não se consegue transformar o gelo em água e esta em vapor, a não ser modificando a intensidade do movimento molecular. O estudo dos átomos proporciona atualmente os exemplos mais demonstrativos da lei da transformação da quantidade em qualidade. As diferentes qualidades dos átomos, nos elementos químicos, correspondem às relações numéricas das partículas mais ínfimas, que são os elétrons.

Daremos ainda outro exemplo, tomado da zoologia e da botânica, do estudo dos animais e das plantas. Sabemos que,

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tanto as plantas como os animais são, em última instância, compostos de pequenas partículas elementares, chamadas células. Cada ser vivo provém de uma ou várias células. Todas as diferenças existentes entre os seres vivos se devem à diferente quantidade de células que os compõem. Se aumenta o seu número, desenvolvem-se outros seres vivos com outras qualidades, diferentes estruturas etc. Inversamente, quando se subtrai de um ser vivo certo número de células, não se lhe ocasionará muito prejuízo. Permanecerá igual. Mas se se continua tirando-lhe células, teremos, como resultado, ao passar de certa quantidade, a modificação de sua qualidade. Cortar o cabelo, por exemplo, não é perigoso. Mas quando se trata de cortar um braço ou uma perna, a coisa muda. Semelhante operação não só modificará a qualidade do paciente, como também poderá colocá-lo em perigo de morte. Do mesmo modo, tirando certa quantidade de sangue de alguém, não se lhe provoca muito prejuízo; mas, passando de certo limite, isto lhe ocasionará, seguramente, a morte, o que significa que se produziu, em seu organismo, uma transformação qualitativa.

Daremos, finalmente, um exemplo, tomado à economia política. Esta nos ensina que uma quantidade de dinheiro não pode constituir um capital senão quando passa de certo limite mínimo. Um dólar, por exemplo, não constitui um capital, como tampouco dez dólares. Dez mil dólares, porém, podem, em determinadas condições, converter-se num capital. Assim, graças a uma simples mudança de quantidade, certa soma de dinheiro transforma-se em capital, adquire propriedades diferentes, uma eficácia distinta; numa palavra, transforma-se sua qualidade. Se esse capital aumenta por meio da concentração e centralização, ocorre nova transformação qualitativa do capital simples em capital monopolista. A economia política ensina que o capital monopolizador caracteriza toda uma fase do desenvolvimento capitalista, a do imperialismo.

Inversamente, desde o momento em que o capitalismo entra na fase do capitalismo monopolista, onde o capital adquire qualidades novas, estas também se transformam em certas relações quantitativas. O capital monopolizador alcança taxas de lucros maiores que as do capital simples; os preços, sob os monopólios, são maiores em geral que sob um regime de livre concorrência.

A terceira lei fundamental da dialética não é senão um caso particular da primeira. Se perguntarmos agora quais as relações da terceira lei fundamental da dialética com as duas primeiras, comprovaremos que a lei da transformação da quantidade em qualidade, e vice-versa, não é senão um simples caso particular da lei da interpenetração dos opostos. Com efeito, a qualidade e a quantidade são contradições polares. A qualidade é a quantidade suprimida, da mesma forma que a quantidade é a qualidade suprimida. A maçã, a pera e a ameixa tem qualidades diferentes. É impossível somá-las sem abstrair essas qualidades diferentes e sem considerá-las somente como frutas. Em conseqüência, a qualidade negada é a quantidade, e a quantidade negada, a qualidade. Todas as coisas contêm essas contradições. Toda coisa implica, simultaneamente, certa quantidade e certa qualidade, que também se interpenetram como contrários, transformando-se uma em outra.

Tais são as três leis fundamentais da dialética. Este ensaio, evidentemente, não esgota a questão, pois as leis gerais que esboçamos implicam uma série de diferentes leis que não podemos examinar aqui. O que importa é compreender em grandes traços a dialética. Diremos, resumindo, que a dialética é o estudo das coisas em suas relações recíprocas, no espaço e no tempo. Nos capítulos seguintes trataremos de aplicá-la ao campo da História.

CAPÍTULO XI

A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DA HISTÓRIA

Importância da concepção materialista da História. O materialismo histórico não é mais que a aplicação dos princípios do materialismo dialético ao campo da História. Assim como a dialética, a concepção materialista da História não constitui um meio de simples observação e sim um instrumento de ação. A teoria revolucionária não é mais que um instrumento para a prática da política revolucionária. O materialismo histórico ou dialético representa para o revolucionário o que o compasso ou o sextante representam para o navegante ou as leis da física para o técnico. A dialética é o instrumento universal e a concepção materialista da História um instrumento especial, que permite compreender as leis do desenvolvimento da sociedade. Somente graças ao conhecimento das leis do movimento, pode-se chegar a uma previsão científica do futuro e sobre esta base desenvolver uma ação revolucionária justa. A considerável importância da concepção materialista da História reside no fato de ser a primeira que nos permites prever o futuro histórico em suas grandes linhas, influenciá-lo oportunamente e ainda dirigi-1o dentro de certas condições. Não é, portanto, somente e em primeiro lugar uma explicação da História, mas, sobretudo, a base teórica da ação, mediante a qual se faz História. A compreensão das leis da natureza é indispensável para que se possa atuar sobre ela. A compreensão das leis da História abre o caminho à liberdade humana. A concepção materialista da História, separada da prática revolucionária, é uma coisa sem vida. Aquele que compreende a química somente - já se disse - nem mesmo a química pode compreender. Quem não se esforça para compreender o passado de modo materialista, não poderá compreender nem sequer o passado.

Diferença fundamental entre a concepção materialista e a concepção idealista da História. Formulamos, anterirmente, o princípio fundamental do materialismo histórico, mostrando que o modo pelo qual os homens procuram seus meios de subsistência determina todos os demais aspectos da vida social. O modo pelo qual os homens procuram os meios de subsistência determina, antes de tudo, suas concepções, idéias ou representações sociais; em outras palavras: o que, vulgarmente, se chama "consciência social". Dito de outra forma: a vida material determina a vida intelectual ou, segundo uma expressão de Marx, o ser social é quem determina a consciência social. Fixado o princípio de que o material determina o

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espiritual, inclusive nos assuntos sociais, este ensinamento recebe o nome de materialismo histórico. Ele não é mais que uma aplicação particular da dialética materialista às condições sociais em que vivem os homens.

A concepção materialista da História e o senso-comum. Desde o primeiro momento, aquele ensinamento parece bem claro, mas é preciso não esquecer que ele contraria o senso-comum. Este representa as coisas do seguinte modo: toda ação humana tem seu ponto de partida no cérebro e está inspirada em fins que o próprio indivíduo traça. Ele atuará de uma ou outra forma, segundo os objetivos a que se propõe ou os projetos que elabora. Assim, podemos dizer que o senso-comum, ordinário, é desfavorável à concepção materialista da História. Se examinarmos, porém, a questão mais de perto, constataremos que o senso-comum não vê senão a superfície, porque não pergunta, imediatamente, a origem dos objetivos e representações pelos quais os homens atuam. De onde emana tal ou qual conteúdo do pensamento social? Ou, apresentando um exemplo concreto, por que o operário de 1930 pensa diferentemente do operário de 1830? Ou, por que o capitalista tem sobre as greves e os sindicatos um ponto de vista completamente diverso do que tem o operário? Tão logo abordamos essas questões, saímos imediatamente do campo das idéias para investigar a razão por que, há alguns séculos ou milhares de anos, os homens pensavam diferentemente dos de hoje e por que os operários pensam diversamente dos capitalistas. Se procurarmos explicar essas diferentes concepções por outras concepções, isto equivalerá, na realidade, a não explicar absolutamente nada e, inclusive, a renunciar a toda espécie de explicação. Para compreender como desapareceram, no curso da História, certas concepções sociais, substituídas por outras, ou como, na mesma sociedade, as diferentes classes podem ter diferentes pontos de vista a respeito do bem e do mal, devemos remontar-nos às causas materiais que explicam esse fenômeno. Isto é, devemos remontar-nos da consciência social ao ser social. O materialismo histórico não exclui de forma alguma a existência e o papel do pensamento e da consciência: não nega que os homens tenham idéias em seu cérebro nem que atuem conforme concepções determinadas, mas explica essas concepções e esses objetivos pela estrutura material da sociedade. Em oposição a todas as teorias idealistas, o materialismo histórico não considera a idéia como o elemento essencial primário, mas como algo secundário, como conseqüência de certas condições materiais.

Que é o modo de produção? Veremos agora em que consiste o elemento essencial, isto é, os meios que tem o homem de procurar seus meios de existência ou, como diz Marx, o modo de produção. O que é chamado de modo de produção? O materialismo histórico entende que são as relações que existem entre os homens quando produzem ou trabalham; em poucas palavras: as relações mútuas dos homens no trabalho. Isto, no fundo, se reduz à seguinte questão: como se agrupam os homens em redor dos meios de produção? A quem pertencem os meios de produção? Como são empregados?

O meio mais eficaz para compreender o que é o modo de produção consiste em tomar alguns exemplos históricos e in-vestigar o que há nelas de fundamental e essencial. Vejamos o modo de produção capitalista, que se caracteriza pelos seguintes meios de produção: as máquinas, as fábricas, as matérias-primas etc. não pertencem aos que produzem, os operários. Temos, de um lado, uma classe de homens que possuem os meios de produção, mas não trabalham, e, de outro lado. uma classe de homens, os operários, que não possuem nenhum meio de produção, mas somente sua força de trabalho. E, ainda assim, não podem produzir, se não põem sua força de trabalho a serviço dos possuidores dos meios de produção, isto é, dos capitalistas.

A segunda característica do modo de produção capitalista consiste em que os operários são juridicamente homens livres. A terceira, em que os meios de produção, as máquinas, os instrumentos, as matérias-primas são empregados socialmente, isto é, que sempre trabalham ao mesmo tempo certo número de operários nas máquinas de uma fábrica.

Comparemos agora o modo de produção capitalista com o regime de produção simples de mercadorias, tal como o en-contramos no pequeno artesanato ou nas pequenas ou médias explorações agrícolas, e veremos que nestas as relações mútuas dos homens distinguem-se das relações no modo de produção capitalista. O que trabalha é, ao mesmo tempo, proprietário dos meios de produção; o camponês proprietário da terra, das vivendas, dos arados, do gado; o industrial ou artesão, do lugar onde trabalha, de suas ferramentas e de suas matérias-primas. O que mais caracteriza, porém, este regime de produção simples de mercadorias, é que o trabalho não se realiza em comum na mesma empresa, como sucede no modo de produção capitalista: aqui o produtor trabalha isolado, com ajuda de suas próprias ferramentas. Os meios de produção são de sua propriedade individual e ele os utiliza individualmente. Na exploração camponesa ou artesanal desse tipo, o produtor trabalha com a ajuda de seus próprios instrumentos, como dissemos; o mais característico, entretanto, deste modo de produção é que não existe a colaboração direta, metódica, entre a grande quantidade de diversos produtores, em que se divide a sociedade, que trabalham independentemente uns dos outros. No capitalismo, a produção ininterrupta, que realiza a multidão de homens, tem lugar numa fábrica ou conjunto de fábricas agrupadas numa só unidade econômica. Na produção simples de mercadorias, a colaboração consciente é, em todo caso, a do artesão com limitado número de companheiros ou a do camponês com os membros de sua família.

Um terceiro exemplo característico proporciona-nos o comunismo primitivo. A sociedade comunista primitiva é a única proprietária dos principais meios de produção. A posse individual dos meios de produção desempenha somente um papel muito restrito, o trabalho é diretamente social. Não é como na simples produção de mercadorias nem como na economia capitalista.

Esses são alguns exemplos das relações existentes entre os homens e os meios de produção que caracterizam os diferentes modos pelos quais ela se processa.

A produção e a distribuição. O modo de produção determina igualmente o modo de distribuição. Essa afirmação se confirma claramente no modo de produção capitalista. A classe possuidora dos meios de produção possui também os produtos

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resultantes do trabalho, isto é, as mercadorias. Por isso, a classe trabalhadora, que não possui os meios de produção, não tem nenhum direito sobre os produtos de seu trabalho e obtém somente uma pequena parte da produção, recebe seus meios de subsistência sob a forma de salários, das mãos dos possuidores dos meios de produção. Vemos em seguida que ali, onde não existe propriedade privada dos meios de produção, ou seja, no comunismo primitivo, o produto do trabalho pertence à coletividade e é consumido em comum ou repartido entre os indivíduos, mediante certas normas bem determinadas. Dessa maneira, o modo de produção determina o modo de distribuicão na sociedade.

Diferença entre o modo de produção e o ramo de atividade. É preciso não confundir o modo de produção com o ramo de atividade ou indústria. O modo de produção capitalista, o modo de produção feudal, o comunismo primitivo e a economia escravista etc. são formas ou modos de produção porque se apóiam sobre certas relações sociais bem determinadas. Não se pode dizer, pelo contrário, que a caça, a pesca ou a agricultura sejam modos de produção, mas unicamente ramo de atividade ou formas diferentes de buscar o alimento, porquanto pode-se exercer, socialmente, cada uma delas de maneira muito distinta. Assim, temos a agricultura nas condições do comunismo primitivo, a agricultura na economia feudal da idade média e a agricultura sob o regime capitalista. A pesca, em tempos primitivos, praticava-se em comum; mas também temos a pesca no regime de produção simples, de mercadorias, com seu instrumento e sua barca; hoje, a pesca está organizada como indústria capitalista moderna, na qual um capitalista, proprietário do barco e instrumentos de pesca, dá ocupação a trabalhadores que apenas recebem um salário.

Diferença entre o modo de produção e a técnica. Deve-se também distinguir o modo de produção da técnica, cora a qual freqüentemente é confundido. O modo de produção é uma relação entre os homens, ou seja, uma relação social. A técnica, pelo contrário, é o meio que têm os homens de dominar a natureza. As expressões como produção mecânica etc. não caracterizam um modo de produção ou uma relação de produção, mas determinada técnica de produção. O mesmo sucede quando se fala das idades da pedra, do cobre, do bronze, do ferro, que representam épocas diferentes da pré-História e da História, nas quais o homem se servia de instrumentos de pedra, de cobre, de bronze, de ferro. Não se trata de uma divisão imposta pelo modo de produção e sim pela técnica.

Que causas determinam o desenvolvimento do modo de produção? Vimos que o modo de produção determina o caráter e o desenvolvimento de todas as demais relações sociais, constituindo a força motriz que faz avançar todo o desenvolvimento social. Cabe agora, porém, a seguinte pergunta: quais as causas que por sua vez determinam o desenvolvimento do modo de produção? Por que motivo a sociedade passa do comunismo primitivo à economia escravista, da economia escravista ao feudalismo, do feudalismo ao capitalismo e do capitalismo ao socialismo? A lei geral que rege as transformações do modo de produção é o desenvolvimento da produtividade do trabalho. Constatamos, ao examinar a série de diferentes modos de produção pelos quais passou a humanidade, que a lei geral da passagem de um modo de produção a outro é o aumento das forças produtivas. Cada modo de produção tem por base um nível técnico determinado. A força motriz, que obriga a sociedade a passar de um a outro modo de produção, que impulsiona todo o desenvolvimento, é a contradição existente no seu seio, entre ele e as forças produtivas, ou seja, as forças mediante as quais se fabricam certas quantidades de produtos. Cada modo de produção só permite o desenvolvimento das forças produtivas ou do rendimento do trabalho até certo limite, passado o qual se converte num obstáculo para esse mesmo desenvolvimento, não obstante fosse até então um fator positivo. Esse obstáculo se supera com a passagem para um novo modo de produção, superior àquele. Quando a sociedade se divide em classe dominada e classe dominante, essa transição só pode realizar-se por meio de uma revolução social.

Podemos explicar esse fenômeno com o exemplo de desenvolvimento da agricultura que, primitivamente, praticava-se em comum. A agricultura primitiva atravessou uma longa série de fases de desenvolvimento técnico e econômico até o momento em que o modo de exploração em comum constituiu um obstáculo ao progresso. Ocorreu, então, a passagem para nova forma de produção, que foi a exploração camponesa individual, a simples produção de mercadorias. A propriedade coletiva do solo deu lugar à propriedade individual, tanto do solo como dos meios de produção agrícola. Isso permite um tra-balho mais intenso o facilita o aumento das forças produtivas. Esse tipo de economia, porém, chega por sua vez ao seu limite e fica superado desde o momento em que aparecem métodos superiores e se introduz a maquinaria na agricultura. Nas condições de exploração agrícola individual da terra não é possível utilizar a força do vapor, da eletricidade e demais invenções da técnica moderna. Isso já supõe a passagem para a exploração capitalista, que se desenvolve e alcança seus limites, determinada pelas particularidades desse modo de produção capitalista. A etapa seguinte de progresso nesse desenvolvimento é a passagem para a agricultura socialista. Vemos que o que regula a passagem de um modo de produção a outro na agricultura, como igualmente nos diversos ramos da produção, é o desenvolvimento das forças produtivas.

Essa passagem de um modo a outro da produção não se prodsz por si mesma, automaticamente, mas é realizada pelo homem e pela parte ou classe da sociedade para os quais o modo de produção existente converteu-se em obstáculo a seu desenvolvimento e cujo papel na produção fez nascer neles os germes de um modo de produção superior.

As classes. Isto nos conduz diretamente a estudar o papel desempenhado pelas diferentes classes. Estas não existiram nem existirão sempre. A divisão da sociedade em classes somente apareceu após um desenvolvimento relativamente prolongado e depois da divisão do trabalho ter surgido na sociedade primitiva sem classes. Historicamente, a divisão da sociedade em classes apareceu logo após a decomposição do comunismo primitivo e se acha estreitamante unida ao aparecimento da propriedade privada. A pertinência dos homens a uma classe está determinada pelas relações destes perante os meios de produção. Se examinarmos a sociedade capitalista atual, que classes principais distinguiremos e em que se diferenciam?

1. Os possuidores dos meios de produção, que não trabalham, e põem esses meios de produção em movimento mediante a força de trabalho de outro, ou seja, a classe capitalista.

2. Aqueles que não possuem nenhum meio de produção e se vêem obrigados a pôr sua força de trabalho à disposição dos

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capitalistas, isto é, os trabalhadores. Essas duas primeiras constituem as principais classes da sociedade capitalista atual. 3. A classe dos que possuem seus meios de produção trabalhando eles mesmos; os pequenos camponeses e pequenos

industriais. Essa classe é pré-capitalista, porém se mantém no regime capitalista. Na antigüidade grega ou romana se destacam, de um lado, os proprietários de escravos, possuidores dos meios de

produção e dos escravos; depois, os próprios escravos, que não possuíam nenhum meio de produção, nem sua própria força de trabalho. Igualmente havia na antigüidade pequenos artesãos e camponeses livres, isto é, simples produtores de mercadorias. Aqui, também, por conseguinte, a característica de classe, como no regime capitalista, é determinada pelas relações dos homens com os meios de produção.

CAPÍTULO XII

A LUTA DE CLASSES

Divisão do trabalho social e formação das classes. Vimos que a formação das classes provém da divisão do trabalho social. Porém, é preciso prestar atenção para o fato de que nem toda divisão do trabalho social coincide necessariamente com a formação das classes. Assim, vemos que numa horda australiana existe certa divisão do trabalho social, porém não existem classes. Igualmente existe certa divisão do trabalho numa família de camponeses que não emprega forças de trabalho estranho, porém esta divisão do trabalho não tem, de nenhum modo, um caráter de classe. As classes aparecem somente quando a divisão do trabalho implica a fabricação regular de quantidades de produtos, que ultrapassam as necessidades mínimas, e um ou vários grupos sociais se apropriam com regularidade, total ou parcialmente, da superprodução de outro grupo. A exploração econômica de uma parte da sociedade por outra é a base da formação das classes. Porém o aspecto essencial nestes assunto é que a exploração se verifique sobre a mesma classe e não seja fortuita e irregular, mas regular e permanente. A base da constituição das castas e estamentos é igualmente a divisão de classes; porém aqui intervêm outras causas, tais como a herança, o matrimônio no seio de cada grupo etc. A formação das classes é aqui a base geral, o que não impede a existência de castas e estamentos. A divisão em classes fortalece e assegura por sua vez a exploração. Toda formação de classes se agrupa em redor de dois pólos, ou seja, em redor daqueles que produzem o excedente de produção e a mais-valia e aqueles outros que se apropriam do excedente sem trabalhar. Para expressarmos, com brevidade, diremos que o antagonismo de classes não é outra coisa que o antagonismo entre o grupo dos exploradores e o dos explorados.

O antagonismo de classes. Resulta disto que ao se falar de classes se fala necessariamente também de antagonismo de classes, ou seja, de grupos econômicos que têm interesses opostos. Não é necessário que determinada sociedade de classes se reduza a duas classes somente: explorada e exploradora; podem ainda existir outras classes e este é o caso geral. O papel que desempenham, de um lado, a classe exploradora e, de outro, a explorada, exerce uma influência preponderante em suas relações mútuas. O antagonismo de classe somente significa que numa dada sociedade de classes existem classes que têm interesses econômicos opostos, isto é, que desempenham funções opostas na produção, na circulação e em toda vida social em geral. O antagonismo de classes é, por conseguinte, algo objetivo, real, independente da consciência. É algo tão objetivo como o antagonismo entre a eletricidade positiva e . eletricidade negativa, cujo antagonismo não depende de saber, se as pequenas partículas elétricas conhecem elas mesmas se são positivas ou negativas. Igualmente não depende este antagonismo entre os homens da questão de saber se eles se dão conta ou não da existência do dito antagonismo.

A luta de classes. O antagonismo de classes origina, necessariamente, a luta de classes mútua, que não é outra coisa que o dito antagonismo expressado pela ação, ou se se quer de outro modo, o antagonismo de classes como processo.

Por conseguinte, a luta de classes é o modo comum de existência de uma sociedade de classes. É impossível imaginar uma sociedade de classes sem luta de classes, do mesmo modo que não é possível imaginar a matéria sem movimento ou uma partícula de matéria sem as vibrações caloríficas da molécula que a compõe. Portanto, a luta de classes não é uma invenção de Karl Marx. Isso é verdade em duplo sentido. Primeiramente, Marx e Engels não foram os primeiros a descobrir a existência de classes e suas lutas na História. Este descobrimento o fizeram outros antes deles. O que eles comprovaram não foi a existência de classes nem as lutas que sustentam entre si, mas a importância preponderante destes dois fatores na história da sociedade de classes. Eles viram na luta de classes a chave de toda a História. Esta é uma abordagem original na teoria. Por outro lado, seria ridículo pensar que não houve luta de classes antes de Marx e Engels, e que foram provocadas por eles. Em suma, existiram essas lutas desde que existem sociedades de classes. Existiram durante muitos milhares de anos antes de Marx e Engels; o que eles descobriram nesse sentido, o que deram à classe trabalhadora e a outras classes exploradas, foi uma compreensão clara de seus interesses e do antagonismo destes interesses com os das classes dominantes; proporcionaram o método, a consciência, o espírito de organização na luta de classes do proletariado. Quando se fala da atitude dos comunistas ou socialistas na luta de classes, se entende sempre por isso certas formas e certo conteúdo da luta de classes, ou seja, as formas superiores, conscientes, organizadas, desta luta em oposição com suas formas elementares, inorganizadas.

Diferentes formas da luta de classes. A luta de classes implica uma série de formas diferentes, tão diferentes como o

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movimento de uma partícula de matéria. Por exemplo, tomemos um pedaço de ferro submetido a uma baixa temperatura; obteremos movimentos lentos e, ao elevarmos aquela, teremos movimentos mais rápidos das moléculas. A certo grau de temperatura e pressão se modifica por completo a composição molecular do ferro, passando ao estado líquido ou ao gasoso. Ademais, as formas do movimento podem ser muito diferentes. Assim, falamos de movimentos mecânicos, movimentos caloríficos, movimentos químicos etc. No movimento mecânico distinguimos de novo graus diferentes: movimentos mais ou menos rápidos ou repouso absoluto etc. Por conseguinte, assim como temos aqui formas e graus de movimentos, existem também formas distintas na luta de classes. A mais primitiva é aquela em que a classe trabalhadora se revolta contra a opressão que exercia o capitalismo em seus princípios; foi a destruicão das máquinas, movimento dos "ludistas". Ao mesmo tempo que destruíram as máquinas, os trabalhadores entregaram-se à sabotagem e ao incêndio das casas dos fabricantes.

Essa forma primitiva do movimento possibilitou imediatamente outras formas de luta, com greves de fábricas, de ramos de indústrias, de indústrias inteiras e a greve política de massas ou econômica, que é a forma de greve mais desenvolvida, Aparece em seguida a luta de classes no campo político: a agitação e a propaganda oral e escrita, a luta eleitoral, as manifestações de rua. Finalmente, a luta passa para as diferentes formas da luta armada: guerras de militantes, insurreições armadas, guerras revolucionárias etc. Estas formas de luta têm cada uma, por sua vez, seus setores, suas fases, seus aspectos determinados. O fato de que se estabeleçam armistícios, às vezes, que se estabeleçam pausas na luta, não impede que esta seja um fenômeno permanente na sociedade de classes. Uma guerra não deixa de ser uma guerra pelo fato de que se interrompam os combates, se efetuem retiradas, reagrupamentos de forças, haja intervalos de calma ou se façam armistícios. O mesmo ocorre na luta de classes. Esta luta não somente reveste de diferentes formas e passa por graus distintos, mas também se interrompe por armistício, pausas etc. Por outro lado, estas interrupções não se referem à luta de classes em geral mas somente a certas formas desta luta. Assim se explica que os reformistas, que têm por princípio a colaboração da burguesia com o proletariado, não podem suprimir a luta de classes e se esforçam em atenuá-la, reduzi-la ou anulá-la. Sobretudo, se esforçam em impedir que degenere em luta armada para a conquista do poder. Porém, são incapazes de suprimi-la. Portanto, não significa grande coisa, praticamente, o fato de reconhecer ou não a luta de classes.

Quanto às formas de luta, estas não são arbitrárias. Estão determinadas pela natureza particular da classe em luta, pela natureza das classes contra as que lutam e também pela das aliadas; dito de outro modo, pelo conjunto das relações de classes e o grau de amadurecimento de todas elas. Vejamos alguns exemplos: a greve é uma forma natural de luta operária, porque corresponde de fato ao papel particular que desempenha na produção. Porém, a greve não era uma arma possível para a burguesia quando lutava contra as classes feudais .pela conquista do poder. Em sua luta contra o feudalismo, a burguesia empregou meios distintos, principalmente a hostilidade para os impostos, como arma de ataque. Utilizou sua potência econômica para arrancar ou comprar direitos às classes feudais ou à monarquia absoluta. Em 1905, na Rússia, e, posteriormente, na China, vimos certas frações da burguesia utilizar a greve como arma, o qual é um sintoma que demonstra que a classe operária assume o papel dirigente na luta e transfere as formas de luta proletária a certas frações da burguesia, de onde resulta que as formas de luta das diferentes classes, longe de ser arbitrária, guardam estreita relação com o papel econôníico e social de cada uma destas classes e suas relações recíprocas.

Os objetivos da luta de classes. Tão várias e diferentes como as formas da luta de classes são os conteúdos e objetivos desta luta em si. Podem ser de ordem econômica, política, cultural etc. A luta pode ter por objetivo um aumento de salário, ou a melhoria das condições de trabalho, isto é, ter um caráter econômico. Também pode ser uma luta eleitoral, isto é, ter um caráter político. A luta pela melhoria do ensino é uma luta cultural. Vemos que a luta de classes pode ter os conteúdos e objetivos mais variados. Ademais, esses objetivos, da mesma maneira que as formas de luta, estão estreitamente determinados pela natureza da classe em questão. Assim, a burguesia, em sua luta contra o feudalismo, buscava fins diferentes daqueles da classe operária em luta contra a burguesia ou daqueles do campesinato em luta contra o feudalismo.

Consciência de classe e ideologia de classe. O antagonismo de classes cria a luta de classes. Esta, por sua vez, cria a consciência ou ideologia de classe. Que é a consciência de classe? É a consciência: primeiro, da comunidade de interesses dos membros de uma classe determinada; segundo, a consciência do antagonismo de interesses desta classe com os da classe adversa. Essa consciência de classe não existe o tempo todo, mas aparece somente durante o curso da luta, conduzida ao princípio sem objetivo, instintivamente sem consciência comum. O antagonismo de classe cria primeiramente a consciência do antagonismo que opõe as classes oprimidas às classes dominantes, e, essa, à consciência da comunidade de interesses da classe oprimida.

Isso não é surpreendente, porque no começo, as classes oprimidas não são dominadas unicamente pela força material, mas também pela força intelectual, pelas idéias da classe dominante. A consciência de classe desenvolve-se somente no curso da luta e é neste onde aparece mais clara e precisa. Por outro lado, essa consciência engloba frações cada vez mais consideráveis da classe em questão. No princípio, somente uma pequena minoria compreende que existem interesses comuns entre os membros de uma classe; porém, pouco a pouco, vai aparecendo mais clara essa consciência de classe. Experimenta-se a necessidade de possuir órgãos especiais que encarnem a consciência mais clara da classe. Dessa necessidade nascem os partidos políticos, que agrupam os elementos caracterizados por uma consciência particularmente clara da situação e das tarefas que esta impõe à dita classe, e que conduzem, metodicamente, conscientemente e de modo organizado, a luta desta classe contra a classe adversa.

Consciência de classe, verdadeira e falsa, e ilusões de classe. A consciência de classe pode refletir de forma mais ou

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menos justa os interesses de uma classe determinada. Por esse motivo, se não quisermos cair no "confusionismo", devemos distinguir entre consciência de classe em sentido estrito e consciência de classe em sentido amplo. Essa consciência de classe engloba, também, a consciência justa e a consciência falsa dos interesses e da situação da classe em questão. Emprega-se igualmente para a consciência de classe a expressão "ideologia de classe", ou seja, todas aquelas representações que uma determinada classe faz de seus interesses, sem considerar a justeza ou falsidade disso.

Por consciência de classe, no sentido estrito, entendemos a consciência justa, a expressão exata dos interesses e da situação da classe em questão; e é nesse sentido que se emprega para o caso da classe operária. Quando se fala de operários mais ou menos conscientes, entende-se por isso operários que compreendem de forma mais ou menos clara a solidariedade, a igualdade de interesses da classe operária e o antagonismo fundamental que a opõe aos interesses da burguesia. Da mesma forma se dá a falsa consciência de classe em nome de ilusões de classe, ou seja, as ilusões de uma classe no que diz respeito a sua verdadeira situação e interesses. Tais ilusões de classes se produzem com tanta freqüência quanto, às vezes, acontece a um homem isolado ter ilusões sobre si próprio. Como materialistas dialéticos diferençamos entre o que uma classe realmente é e o que pensa ser. É entre estas duas coisas diferentes que é preciso fazer uma severa distinção. Uma dessas ilusões mais comuns e freqüentes é aquela em que caem as classes exploradoras e exploradas em luta contra uma terceira classe, quando imaginam, num determinado momento, não existir entre elas nenhum antagonismo de interesses.

Existem também ilusões conscientes, ou seja, idéias que uma classe divulga com a finalidade de desorientar ou enganar a outra classe. Todas as classes dominantes utilizaram, e utilizam ainda, certos meios para fazer circular idéias falsas com a finalidade de enganar as classes oprimidas a respeito de seus verdadeiros interesses. A imprensa, a literatura, o ensino, o cinema etc., das classes dominantes são, em última instância, apenas meios de difundir idéias falsas e de turvar a consciência das classes oprimidas. O grau mais elevado de consciência de classe reside na compreensão científica da natureza das classes e de suas leis de desenvolvimento, tendo por base o materialismo dialético.

Pertinência de classe e consciência de classe. Acabamos de ver que a situação de classe determina, geralmente, tanto a consciência e ideologia de classe, como as ilusões de classe. Esta lei é aplicável a uma grande parte de cada classe. Para compreender melhor isto, daremos um exemplo de física. Sabe-se que na teoria dos gases se dão certas explicações referentes ao movimento geral de uma massa gasosa e ao movimento médio de uma partícula gasosa; porém é impossível explicar o movimento de cada partícula gasosa. Chamam-se essas leis, leis médias ou estatísticas. O mesmo sucede no campo social. A determinação da consciência de classe pela situação de classe é aplicável pela média dos membros de uma classe para a classe em sua totalidade, o que não impede que certos membros dessa classe possam passar à outra, possam tomar a consciência de outra classe e vice-versa. Daremos o exemplo de Marx e Engels, fundadores do materialismo dialético. Marx e Engels provinham ambos da classe burguesa e, sem dúvida, transformaram-se nos representantes da classe operária. Modificaram sua consciência de classe, elaboraram o socialismo científico e dirigiram durante várias décadas o movimento da classe operária. Numa palavra, passaram de uma classe a outra. Pelo contrário, temos um grande número de casos de operários que passam para as fileiras da burguesia e, por conseguinte, não adquirem uma consciência de classe proletária mas burguesa, fazendo todos os esforços possíveis para propagá-la em seu redor. Porém, estes fenômenos isolados não anulam a lei geral, mas, pelo contrário, formam parte dela, do mesmo modo que as exceções formam parte integrante da regra. Fenômenos tais como a passagem de alguns membros de uma classe para outra são freqüentes nas épocas de grandes modificações históricas em que, por exemplo, uma revolução burguesa se transforma em revolução proletária. Isso não é apenas verdadeiro para o caso de Marx e Engels, mas também para a história da Revolução russa e de todas as demais revoluções.

As classes e os demais agrupamentos sociais. Não constituem as classes o único agrupamento de homens de uma sociedade de classe determinada. Além do agrupamento de classe existem outros diferentes, como os agrupamentos baseados na profissão, na religião, no grau de cultura, na raça, na nacionalidade. Entre todos estes agrupamentos, os últimos, ou sejam, os da raça e nacionalidade, oferecem uma importância particular e têm constituído a base de certas teorias históricas. Existe, entre outras, uma teoria que pretende que a raça constitua o fator decisivo da História. O materialismo histórico não nega que junto aos agrupamentos de classe têm existido e existam ainda muitos outros agrupamentos; porém crê que o agrupamento de classe exerce uma influência preponderante na marcha da história da sociedade de classes, enquanto os demais agrupamentos não desempenham senão um papel secundário.

Evolução e revolução. Mencionaremos, para terminar, duas noções que desempenham um papel importante na teoria da história, a saber: as noções de evolução e de revolução. É impossível compreender de um modo preciso a relação entre estas duas noções se não se compreende dialeticamente, isto é, no sentido de que a evolução e a revolução são, ao mesmo tempo, opostas e unidas entre si. Entende-se por revolução a transformação completa das relações de força das classes, de tal modo que a classe até então dominante é derrubada pare abrir caminho a uma classe até então oprimida. Cada passo de um modo de produção a outro se realiza nas sociedades de classes com a ajuda de revoluções políticas e sociais. O caráter externo de uma revolução é a forma repentina e a violência, o que não quer dizer, entenda-se bem, que todo ato violento ou repentino seja um acontecimento revolucionário. O essencial é a transformação completa da relação de forças. A revolução busca a solução violenta das contradições sociais fundamentais, dos antagonismos de classes e constitui a força motriz da história nas sociedades de classe.

Quanto à evolução, caracteriza o desenvolvimento social nos limites de certas relações de classe. A relação entre estas duas noções nas sociedades de classes é como segue: a revolução faz o balanço da evolução que a precedeu enquanto a

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evolução prepara a revolução. Por outro lado, toda revolução, uma vez efetuada, toda transformação de certa relação de forças, se traduz numa nova evolução. A revolução é a passagem de certa forma de sociedade a outra que se encontre nas condições da sociedade de classes; porém, somente nestas condições. Com efeito, a passagem de uma forma de sociedade a outra, numa sociedade sem classes, não se efetua por uma revolução. Disto resulta: primeiro, que temos uma série de formas de sociedade antes do aparecimento da sociedade de classes, as quais se substituem uma à outra sem revolução social; segundo, que depois da supressão da sociedade de classes, teremos um desenvolvimento social que não se continuará em forma revolucionária.