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HISTÓRIA DA CIÊNCIA VOLUME I DA ANTIGUIDADE AO RENASCIMENTO CIENTÍFICO

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HISTRIA DA CINCIA VOLUME I DA ANTIGUIDADE AO RENASCIMENTO CIENTFICO

MINISTRIO DAS RELAES EXTERIORES

Ministro de Estado Secretrio-Geral

Embaixador Celso Amorim Embaixador Antonio de Aguiar Patriota

FUNDAO ALEXANDRE DE GUSMO

Presidente

Embaixador Jeronimo Moscardo

A Fundao Alexandre de Gusmo, instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada ao Ministrio das Relaes Exteriores e tem a finalidade de levar sociedade civil informaes sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomtica brasileira. Sua misso promover a sensibilizao da opinio pblica nacional para os temas de relaes internacionais e para a poltica externa brasileira.

Ministrio das Relaes Exteriores Esplanada dos Ministrios, Bloco H Anexo II, Trreo, Sala 1 70170-900 Braslia, DF Telefones: (61) 3411-6033/6034/6847 Fax: (61) 3411-9125 Site: www.funag.gov.br

CARLOS AUGUSTO DE PROENA ROSA

Histria da CinciaVolume I Da Antiguidade ao Renascimento Cientfico

Braslia, 2010

Direitos de publicao reservados Fundao Alexandre de Gusmo Ministrio das Relaes Exteriores Esplanada dos Ministrios, Bloco H Anexo II, Trreo 70170-900 Braslia DF Telefones: (61) 3411-6033/6034 Fax: (61) 3411-9125 Site: www.funag.gov.br E-mail: [email protected]

Capa: Rafael Sanzio, A Escola de Atenas Equipe Tcnica: Maria Marta Cezar Lopes Henrique da Silveira Sardinha Pinto Filho Andr Yuji Pinheiro Uema Cntia Rejane Sousa Arajo Gonalves Erika Silva Nascimento Fernanda Leal Wanderley Juliana Corra de Freitas Programao Visual e Diagramao: Juliana Orem e Maria Loureiro Reviso: Ftima Ganin Impresso no Brasil 2010Rosa, Carlos Augusto de Proena Histria da Cincia : da Antiguidade ao Renascimento Cientfico / Carlos Augusto de Proena Rosa. - Braslia : Fundao Alexandre de Gusmo, 2010. 1v. 496p. Volume I: Da Antiguidade ao Renascimento Cientfico Volume II: A Cincia Moderna. Tomo I: O Advento da Cincia Moderna. Tomo II: O Pensamento Cientfico e a Cincia no Sculo XIX. Volume III: A Cincia e o triunfo do Pensamento Cientfico no Mundo Contemporneo. Inclui bibliografia. ISBN: 978.85.7631.264-2 1. Cincia-Histria. 2. Cultura-Histria. 3. Civilizao-Histria. I. Ttulo. CDU 5/7".../20"(09) CDU 008".../20"(09)

Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacional conforme Lei n 10.994, de 14/12/2004.

Este livro dedicado, em reconhecimento e gratido, a meus pais.

Plano Geral da Obra

Volume 1 INTRODUO GERAL TEMPOS PR-HISTRICOS Captulo I: A Tcnica nas Primeiras Grandes Civilizaes Mesopotmia Egito China ndia Outras Culturas Antigas (Hititas, Hebraica, Fencia e Persa) Captulo II: A Filosofia Natural na Civilizao Greco-Romana A Civilizao Grega e o Advento do Pensamento Cientfico e da Cincia A Tcnica na Cultura Romana Captulo III: A Filosofia Natural nas Culturas Orientais A China da Dinastia Tang Ming e a Filosofia Natural A ndia Gupta e dos Sultanatos e a Filosofia Natural A Filosofia Natural no Mundo rabe Islmico

Captulo IV: A Filosofia Natural na Europa Medieval A Cincia na Europa Oriental grega e o Imprio Bizantino O Mundo Eslavo e a Filosofia Natural A Cincia na Europa Ocidental Latina Captulo V: O Renascimento Cientfico Volume 2 A CINCIA MODERNA Tomo 1 Captulo VI: A Cincia moderna Advento da Cincia Moderna O Desenvolvimento Cientfico no Sculo das Luzes Volume 2 A CINCIA MODERNA Tomo 2 O Pensamento Cientfico e a Cincia no Sculo XIX Volume 3 Captulo VII: A Cincia e o triunfo do Pensamento Cientfico no Mundo Contemporneo

Sumrio

APRESENTAO, 17 INTRODUO GERAL , 19 TEMPOS PR-HISTRICOS, 29 I. II. Evoluo da Espcie Humana, 32 a. O Processo Evolutivo do Gnero Homo, 34 b. Homo Sapiens, 36 Sociedades Primitivas, 39 a. Perodo Neoltico, 40 b. Idade dos Metais, 46

CAPTULO I, 49 A TCNICA NAS PRIMEIRAS GRANDES CIVILIZAES 1.1 MESOPOTMIA, 52 1.1.1 Consideraes Gerais, 53 1.1.2 A Tcnica na Cultura Mesopotmica, 59 1.1.2.1 Matemtica, 61 1.1.2.2 Astronomia, 63 1.1.2.3 Medicina, 64

1.2

EGITO, 65 1.2.1 Antecedentes Histricos, 66 1.2.2 Consideraes Gerais, 67 1.2.3 A Tcnica na Cultura Egpcia, 70 1.2.3.1 Matemtica, 71 1.2.3.2 Astronomia, 72 1.2.3.3 Medicina, 74 1.2.3.4 Qumica, 75 CHINA, 76 1.3.1 Consideraes Gerais, 77 1.3.2 Condicionantes Filosficos e Religiosos, 78 1.3.3 O Pensamento Filosfico Chins, 81 1.3.4 A Tcnica na Cultura Chinesa, 82 1.3.5 Desenvolvimento Tcnico, 87 NDIA, 87 1.4.1 Consideraes Gerais, 88 1.4.2 Perodo Vdico, 89 1.4.3 Perodo Bramnico, 90 1.4.4 Perodo Muria, 91 1.4.5 A Viso do Mundo na Cultura Indiana, 92 1.4.5.1 Matemtica, 93 1.4.5.2 Astronomia, 93 1.4.5.3 Qumica, 95 1.4.5.4 Biologia/Medicina, 95 OUTRAS CULTURAS ANTIGAS (HITITA, HEBRAICA, FENICIA E PERSA), 96

1.3

1.4

1.5

CAPTULO II, 99 A FILOSOFIA NATURAL NA CIVILIZAO GRECO-ROMANA 2.1 A CIVILIZAO GREGA E O ADVENTO DO PENSAMENTO CIENTFICO E DA CINCIA, 100 2.1.1 Consideraes Gerais, 100

Nascimento do Pensamento Cientfico, 102 O Pensamento Cientfico na Grcia, 110 Evoluo da Cincia Grega, 116 Filosofia e Cincia, 121 2.1.5.1 Tales, 122 2.1.5.2 Pitgoras, 123 2.1.5.3 Herclito, 125 2.1.5.4 Escola Eletica, 125 2.1.5.5 Anaxgoras, 126 2.1.5.6 Empdocles, 127 2.1.5.7 Demcrito, 128 2.1.5.8 Sofistas, 129 2.1.5.9 Plato, 130 2.1.5.10 Aristteles, 132 2.1.5.11 Epicuro, 136 2.1.6 Gnosticismo, Hermetismo, Neoplatonismo, 137 2.1.7 Desenvolvimento das Cincias, 139 2.1.7.1 Matemtica, 139 2.1.7.1.1 Aritmtica, 142 2.1.7.1.2 lgebra, 145 2.1.7.1.3 Geometria, 146 2.1.7.1.4 Trigonometria, 156 2.1.7.2 Astronomia, 158 2.1.7.2.1 Geografia - Geodsia, 171 2.1.7.3 Fsica, 174 2.1.7.3.1 Fsica Aristotlica, 175 2.1.7.3.2 Acstica, 177 2.1.7.3.3 ptica, 178 2.1.7.3.4 Mecnica, 180 2.1.7.4 Qumica, 184 2.1.7.5 Histria Natural, 187 2.1.7.5.1 Biologia, 188 2.1.7.5.2 Biomedicina Anatomia - Fisiologia, 192 2.1.7.5.3 Zoologia, 199 2.1.7.5.4 Botnica, 201 2.1.8 Quadro de Honra da Cincia Grega, 203

2.1.2 2.1.3 2.1.4 2.1.5

2.2

A TCNICA NA CULTURA ROMANA, 205 2.2.1 Antecedentes Histricos, 208 2.2.2 Evoluo Histrica, 209 2.2.3 Legado de Roma, 216 2.2.4 A Tcnica na Cultura Romana, 219 2.2.5 A Cincia na Civilizao Romana, 220

CAPTULO III, 225 A FILOSOFIA NATURAL NAS CULTURAS ORIENTAIS 3.1 A CHINA DA DINASTIA TANG MING E A FILOSOFIA NATURAL, 226 3.1.1 Desenvolvimento Tcnico, 227 3.1.2 Elementos Inibidores da Cultura Chinesa, 228 3.1.3 A Cincia Ocidental na China, 233 3.2 A NDIA GUPTA E DOS SULTANATOS E A FILOSOFIA NATURAL, 235 3.2.1 Consideraes Gerais, 236 3.2.2 A Cincia na ndia Gupta e dos Sultanatos, 237 3.2.2.1 Matemtica, 237 3.2.2.2 Astronomia, 239 3.2.2.3 Fsica, 239 3.2.2.4 Alquimia-Qumica, 240 A FILOSOFIA NATURAL NO MUNDO RABE ISLMICO, 240 3.3.1 Introduo, 240 3.3.2 Sntese Histrica, 243 3.3.2.1 Perodo Pr-Islmico, 243 3.3.2.2 Perodo Islmico, 245 3.3.2.2.1 Primeira Fase: das Origens at o Califado de Ali, 245 3.3.2.2.2 Segunda Fase: Dinastia Omada, 247 3.3.2.2.3 Terceira Fase: Dinastia Abssida, 248 3.3.2.2.4 Quarta Fase: Decadncia e Fragmentao, 252

3.3

3.3.3 3.3.4 3.3.5 3.3.6 3.3.7

Consideraes Gerais, 253 Poltica Cientfica, 255 Caractersticas e Contribuies Cientficas, 258 Difuso e Intermediao da Filosofia Natural Grega, 262 Desenvolvimento das Cincias, 263 3.3.7.1 Cincias Exatas, 263 3.3.7.1.1 Matemtica, 264 3.3.7.1.1.1 Aritmtica, 264 3.3.7.1.1.2 lgebra, 265 3.3.7.1.1.3 Geometria, 266 3.3.7.1.1.4 Trigonometria, 267 3.3.7.1.2 Astronomia, 267 3.3.7.1.3 Fsica, 271 3.3.7.2 Cincias Naturais, 273 3.3.7.2.1 Alquimia, 273 3.3.7.2.2 Geografia, 276 3.3.7.2.3 Mineralogia, 277 3.3.7.2.4 Biologia, 277 3.3.7.2.5 Medicina, 278 3.3.8 Quadro de Cientistas rabes Muulmanos, 281 CAPTULO IV, 283 A FILOSOFIA NATURAL NA EUROPA MEDIEVAL 4.1 A CINCIA NA EUROPA ORIENTAL GREGA E NO IMPRIO BIZANTINO, 284 4.1.1 Introduo, 284 4.1.2 Consideraes Gerais, 288 4.1.3 Sntese Histrica, 292 4.1.4 O Estado das Cincias, 296 4.1.4.1 Cincias Exatas, 297 4.1.4.2 Cincias Naturais: Medicina, 299 O MUNDO ESLAVO E A FILOSOFIA NATURAL, 300 4.2.1 Introduo, 300 4.2.2 Sntese Histrica, 302 4.2.2.1 Polnia, 304

4.2

4.2.2.2 Bomia, 304 4.2.2.3 Bulgria, 305 4.2.2.4 Srvia, 306 4.2.2.5 Ucrnia, 307 4.2.2.6 Rssia, 308 4.2.3 A Cincia no Mundo Eslavo, 309 4.2.3.1 Matemtica, 311 4.2.3.2 Cosmografia-Astronomia, 312 4.2.3.3 ptica, 313 4.2.3.4 Qumica-Alquimia, 313 4.2.3.5 Histria Natural, 314 4.2.3.5.1 Medicina, 315 4.3 A CINCIA NA EUROPA OCIDENTAL LATINA, 316 4.3.1 Caracterizao da Europa Ocidental Latina, 316 4.3.2 Introduo, 317 4.3.3 Sntese Histrica, 319 4.3.3.1 poca dos Reinos Germnicos, 319 4.3.3.2 poca Pr-Feudal, 323 4.3.3.3 poca Feudal, 325 4.3.4 Consideraes Gerais, 328 4.3.5 A Descoberta da Cultura Grega Tradues, 332 4.3.6 A Cincia na Europa Ocidental Latina, 335 4.3.6.1 Matemtica, 336 4.3.6.2 Astronomia, 336 4.3.6.3 Fsica, 338 4.3.6.4 Qumica - Alquimia, 339 4.3.6.5 Biologia - Medicina, 340

CAPTULO V, 343 O RENASCIMENTO CIENTFICO 5.1 PRIMEIRA FASE, 347 5.1.1 Sntese Histrica, 347 5.1.2 Consideraes Gerais, 351 5.1.2.1 Ensino e Universidades, 351 5.1.2.2 Primeiro Renascimento Artstico, 354 5.1.2.3 Desenvolvimento Tcnico, 355

5.1.2.4 Presena da Igreja, 358 5.1.2.5 Debate Filosfico Escolstica, 359 5.1.3 A Cincia na Primeira Fase do Renascimento Cientfico, 364 5.1.3.1 Matemtica, 369 5.1.3.2 Astronomia, 373 5.1.3.3 Fsica, 376 5.1.3.3.1 ptica, 377 5.1.3.3.2 Magnetismo, 379 5.1.3.3.3 Mecnica, 380 5.1.3.4 Alquimia Qumica, 383 5.1.3.5 Histria Natural, 385 5.1.3.5.1 Medicina, 387 5.2 SEGUNDA FASE, 390 5.2.1 Consideraes Gerais, 390 5.2.1.1 Grandes Navegaes, 392 5.2.1.2 Desenvolvimento Tcnico, 397 5.2.1.3 Renascimento Artstico, 401 5.2.1.4 Humanismo Tomismo - Neoplatonismo, 402 5.2.1.5 Reforma Protestante - Contra Reforma, 407 5.2.2 A Cincia na Segunda Fase do Renascimento Cientfico, 411 5.2.2.1 Matemtica, 419 5.2.2.1.1 Aritmtica lgebra, 423 5.2.2.1.2 Geometria Trigonometria, 431 5.2.2.2 Astronomia-Cosmologia, 436 5.2.2.2.1 Primeira Fase Pr-Coprnico, 440 5.2.2.2.2 Segunda Fase O Sistema Copernicano, 441 5.2.2.2.3 Terceira Fase Ps-Coprnico Reao, 447 5.2.2.2.4 Reforma do Calendrio, 455 5.2.2.3 Fsica, 457 5.2.2.4 Qumica Alquimia, 464 5.2.2.5 Histria Natural, 466 5.2.2.5.1 Cincias da Terra, 467 5.2.2.5.2 Biologia, 474 5.2.2.5.2.1 Botnica, 475 5.2.2.5.2.2 Zoologia, 479 5.2.2.5.2.3 Anatomia Humana, 482

Apresentao

Em 2001 iniciei a aquisio de material para estabelecer uma base bibliogrfica adequada e suficiente que me permitisse, eventualmente, elaborar um pequeno trabalho sobre a Histria da Cincia, desde suas origens. Para tanto, recorri a obras de grandes cientistas e filsofos, a livros de Histria da Cincia e da histria de diversos ramos da Cincia, a biografias de eminentes cientistas e pesquisadores, a publicaes de divulgao cientfica, a enciclopdias e dicionrios, a revistas especializadas e a portais na Internet. medida que progredia a leitura e a compreenso do processo evolutivo do conhecimento cientfico, firmou-se em mim a convico de que o j ambicioso propsito inicial deveria ser modificado para contemplar, alm da anlise histrica da Cincia, consideraes de Filosofia da Cincia e de Sociologia da Cincia. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento da Cincia no deveria ser entendido como uma mera sucesso de descobertas de leis ou a ampliao de conhecimento sobre os fenmenos naturais, mas deveria ser estudado como diretamente vinculado ao e dependente do desenvolvimento do esprito, ou, do pensamento cientfico e do emprego da metodologia cientfica. Havia, portanto, necessidade de reconhecer um mbito mais amplo e complexo para a Histria da Cincia do que o inicialmente proposto. A imensa tarefa se transformou, assim, num desafio que significou, na realidade, interpretar a evoluo do pensamento cientfico e dos ramos da Cincia, considerar a Filosofia e a Sociologia da Cincia e comentar, por17

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indispensvel, o ambiente social, poltico, econmico, cultural, artstico e religioso que servia de pano de fundo para a Histria da Cincia. Dada a extenso da Histria da Cincia, foi conveniente dividir o conjunto do trabalho, mas respeitando a integridade de cada um dos sete Captulos, em trs volumes: A Introduo Geral, os Tempos Pr-Histricos e os primeiros cinco Captulos esto agrupados no Primeiro Volume; o Captulo VI, referente Cincia moderna, compe o Segundo Volume; e A Cincia e o Triunfo do Pensamento Cientfico no Mundo Contemporneo (Captulo VII) constitui o Terceiro Volume. Ainda que desnecessrio, acrescento que as ideias e interpretaes apresentadas expressam exatamente meu ponto de vista sobre a evoluo do pensamento cientfico e da Cincia, pelas quais assumo inteira responsabilidade. Adianto, desde j, igualmente, meu inquestionvel dbito e minha profunda gratido quela pliade de extraordinrios pensadores e cientistas que mantiveram, ao longo dos sculos, uma heroica e desinteressada luta sem quartel contra o preconceito e a ignorncia, e contriburam decisivamente, assim, para o triunfo do pensamento cientfico e o avano da Cincia. Aos meus familiares e amigos que me ajudaram neste empreendimento, com sugestes e reviso de textos, deixo registro aqui de meus sinceros agradecimentos. Outubro de 2009

18

Introduo Geral

O tema Histria da Cincia requer, por sua complexidade, extenso e abrangncia, algumas explicaes prvias, de forma a esclarecer os propsitos e os limites ao elaborar o estudo cujo prprio ttulo inclui trs conceitos que merecem, desde o incio, um esclarecimento de seus significados ou de como so interpretados neste trabalho. O primeiro conceito o de Histria, entendida aqui como uma narrativa sequencial e sistemtica de eventos e acontecimentos relevantes no domnio da Cincia. Tal exposio no deve ser limitada, contudo, mera cronologia dos fatos cientficos, como a sucesso de descobertas, mas deve abranger o complexo entrelaamento e interdependncia da evoluo da atividade humana nos diversos campos. Trata-se, portanto, de examinar a evoluo da Cincia tendo presente o contexto geral em que se desenvolve, como o social, o poltico, o econmico, o religioso e o cultural. Por essa razo, uma breve informao diversificada sobre o perodo em exame apresentada neste trabalho, exatamente com o propsito de situar a Cincia nesse quadro mais amplo. Esse enfoque, amplo e global, que inclui, necessariamente, aspectos do desenvolvimento mental e intelectual do Homem, foi o adotado aqui. O segundo conceito o da Cincia, sobre o qual no existe consenso. Oriunda do termo latino scientia, que significa conhecimento e erudio, a palavra tem sido utilizada por muitos autores para o conjunto do conhecimento humano; nesse sentido, teria havido cincia desde os Tempos Pr-histricos,19

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como quando o Homem dominou o fogo, inventou a agricultura e a roda, domesticou os animais ou trabalhou os metais. Para outros autores, cincia deve ser entendida como conhecimento refletido, no sentido da palavra grega episteme, devendo-se, portanto, distinguir Cincia de Tcnica ou Tecnologia. Cincia, neste caso, o conjunto de conhecimento terico sobre os fenmenos naturais, baseado em metodologia e em fundamentao experimental, ao passo que tecnologia corresponde Cincia aplicada em prol do Homem e da Sociedade. O conceito adotado neste trabalho corresponde a essa segunda interpretao, isto , o de entender a Cincia como o conjunto de teorias positivas, constitudas de princpios e leis naturais, referentes a determinada ordem de fenmenos ou, em outras palavras, como um conjunto coordenado de conhecimentos racionais e abstratos, conducentes descoberta de princpios e leis universais dos fenmenos naturais. O terceiro conceito o do pensamento cientfico, expresso em diversas passagens como mentalidade cientfica ou esprito cientfico. Sua evoluo e a da Cincia seguem paralelas ao longo dos tempos histricos e se beneficiam de mtua influncia, na medida em que so partes de um mesmo processo evolutivo. A Cincia uma criao exclusiva do Homem. Nenhum outro animal alcanou, em seu respectivo processo evolutivo, o suficiente e o adequado desenvolvimento fsico e mental capaz de proporcionar os necessrios meios criao cientfica. So exatamente as caractersticas especficas do Homem, ao distingui-lo dos demais animais, que explicam esse raciocnio criativo nico. Sua capacidade especulativa, inventiva, imaginativa, de abstrao e de memria, ou seja, seus atributos mentais, bem como suas caractersticas fsicas especiais, adquiridas ao longo do processo evolutivo, so, efetivamente, os responsveis pelas decisivas diferenas entre o Homem e as outras espcies animais. Produto, portanto, do raciocnio, observao, inteligncia e esprito crtico, ou seja, do pensamento cientfico, a Cincia s surgiria, na realidade, no perodo mais recente da Histria, uma vez que os antecessores do Homo Sapiens no eram ainda suficientemente evoludos para habilit-los a criar a Cincia, pois no dispunham de suficiente capacidade de comunicao oral, e dependiam exclusivamente da memria para suprir o desconhecimento da escrita. Cabe, desde j, adiantar, como o fez Horta Barbosa, que o pensamento cientfico no contrrio sabedoria universal, constitudo pela vasta experincia cotidiana, uma vez que desse saber que se nutre; dessa forma,20

INTRODUO GERAL

importante reconhecer a importncia da fase da evoluo do intelecto do Homem, que reflete o prprio processo do avano dos antecedentes empricos da Cincia. A inveno da escrita constitui, assim, marco fundamental no processo evolutivo da capacidade intelectual e criativa do Homo Sapiens, ao mesmo tempo em que serve como divisria entre o Tempo pr-histrico e o histrico. No entanto, como atestam os inmeros objetos, utenslios e materiais encontrados em diversas partes da Terra, os primeiros homindeos foram capazes de criar e desenvolver tcnicas com o fito de melhorar suas condies de vida, pelo que uma das caractersticas do Perodo Pr-Histrico o do avano tcnico, mas sem a criao cientfica. Em outras palavras, a Tcnica antecedeu aCincia, como o instinto de sobrevivncia do Homem PrHistrico num meio h ostil adiaria o desenvolvimento da capacidade humana de abstrao. Dessa forma, embora o chamado Homo Sapiens Sapiens tenha surgido h cerca de 40 mil anos no continente europeu, o Perodo Histrico remonta a apenas seis mil anos, e a Cincia, a no mais de 2500 anos. Nesse breve prazo de tempo, o Homem foi capaz de criar a Cincia, que se desenvolveria, inicialmente, em bases metafsicas. Na medida em que o esprito cientfico passou, lenta e gradualmente, a predominar nos estudos e pesquisas, ocorreria um progresso acelerado do conhecimento cientfico, o qual. somente na poca moderna, se estruturaria em bases lgicas, racionais e positivas. Diante da falta de consenso quanto ao conceito de Cincia, uma dificuldade adicional, e inicial, no estudo da sua evoluo, est na determinao de quando e onde foi ela criada. Para os que sustentam ter ocorrido tal criao no Perodo Histrico, trs principais correntes podem ser detectadas: uma recua o surgimento da Cincia s primeiras civilizaes, como a mesopotmica, a egpcia, a chinesa e a indiana; outra defende a Grcia do sculo V como bero da Cincia, produto direto da Filosofia, qual estaria estreitamente vinculada e subordinada, por muitos sculos; e uma terceira considera a Cincia uma recente criao europeia, da Era moderna (sculo XVI). A tese da origem grega da Cincia, a partir dos filsofos jnicos, a adotada neste trabalho, por entender que o surgimento, por primeira vez, de uma mentalidade crtica, de anseio pelo conhecimento racional e lgico dos fenmenos da Natureza e de questionamento de conceitos absolutos est na base da formao do pensamento cientfico, o qual proporcionaria o advento da Cincia. As mais diversas culturas (chinesa, indiana, sumeriana, egpcia,21

CARLOS AUGUSTO DE PROENA ROSA

mesopotmica, hitita, persa, hebraica, africanas, asteca, maia e inca), nas vrias regies do Globo (sia, Oriente Mdio, frica, Amricas) tiveram, em seus perodos iniciais, uma evoluo bastante assemelhada, cuja principal caracterstica, do ponto de vista mental e intelectual, foi a subordinao do mundo fsico, real, a um mundo superior, invisvel, dominador, habitado por entes e divindades responsveis pelos fenmenos da Natureza e pelo Destino do Homem. Trata-se da aceitao ou da explicao mtica, mgica, teolgica e supersticiosa dos fatos e dos fenmenos naturais e fsicos. O pensamento grego, diferentemente do que ocorria nessas outras culturas contemporneas, se basearia na observao e no raciocnio, a fim de descobrir uma resposta natural aos mistrios do Cosmos sem apelar para os mitos, distanciando-se do sobrenatural. A resultante dessa fundamental diferena de mentalidade seria a criao da chamada Filosofia Natural, denominao que prevaleceria at o sculo XIX, quando a expresso seria substituda, definitivamente, pela palavra Cincia. A viso grega do Cosmos (finito, fechado, hierarquizado, eterno) e dos fenmenos naturais seria rejeitada, no curso dos sculos seguintes, por uma concepo de um Mundo criado, passvel de ser conhecido quantitativamente, concepo que se assentaria ainda em bases metafsicas, com o predomnio do conceito de causalidade. Progressivamente, a busca das causas e da essncia dos fenmenos, de conotao teleolgica, seria substituda pelo estudo das propriedades, mais apropriado para a elaborao de leis universais que expressassem matematicamente essas propriedades. Essa crescente positividade no trato dos fenmenos fsicos e sociais se firmaria a partir da segunda metade do sculo XIX, incio de uma nova etapa da evoluo do esprito cientfico e do desenvolvimento dos diversos ramos da Cincia. Deve ser assinalado, contudo, o caminho cheio de alternativas percorrido, ao longo dos sculos, pelo esprito cientfico e pelo avano no conhecimento dos fenmenos naturais e sociais; pocas de estagnao, e mesmo de retrocesso, seguiram-se a pocas de progresso; perodos de acelerados e moderados avanos se alternaram, e o desenvolvimento dos diversos ramos cientficos ocorreu em ritmo distinto, em momentos histricos diferentes e em lugares diversos. Essa complexidade do processo histrico da Cincia explica a controvrsia interpretativa sobre alguns aspectos relevantes do processo, como a prpria definio de Cincia, poca de sua origem, metodologia adequada, validade da acumulao linear e sequencial do conhecimento ou da ruptura com o passado, atravs de novos paradigmas, e a relao entre Cincia e Teologia.22

INTRODUO GERAL

O formidvel legado cultural helnico, fonte inspiradora e promotora do Renascimento cientfico em diversos Reinos da Europa ocidental, no seria aproveitado pelas culturas orientais, que sustentavam valores e defendiam princpios opostos ao pensamento inquisitivo e racional grego. A grande maioria dos estudos de Histria da Cincia no menciona eventuais pesquisas e descobertas das culturas orientais no campo cientfico, por consider-las irrelevantes para o progresso da Cincia. Muitos autores defendem, contudo, a tese de que, ao tempo do Perodo Medieval europeu, as culturas chinesa e indiana estariam num nvel superior ao da europeia ocidental. Neste trabalho, com o propsito de estabelecer uma base de comparao, para efeitos da evoluo da Cincia, entre culturas to diferentes, foram includos captulos sobre o desenvolvimento cultural da China e da ndia, desde seus primrdios at a poca do Renascimento cientfico na Europa. A concluso da incompatibilidade das condicionantes dessas culturas orientais para o desenvolvimento de um pensamento cientfico demonstra no ter havido interesse, nem curiosidade para compreender e explicar os fenmenos naturais; o extraordinrio progresso tcnico ocorreu, assim, sem embasamento terico, de forma emprica e de natureza artesanal, o que levaria a um esgotamento do processo, ao cabo de alguns poucos sculos. O surgimento de uma reduzida elite intelectual, no mundo rabe muulmano, estudiosa da cultura grega e responsvel, em parte, por sua preservao, (o que viria a permitir sua divulgao na Europa ocidental, nos sculos XII e XIII), teria uma curta durao, e no assentaria razes na cultura local, devido oposio da comunidade religiosa ao estudo e ao ensino da Cincia. Em consequncia, a informao sobre a Cincia no mundo rabe se limitaria queles poucos sculos em que houve relativo interesse pelo conhecimento cientfico e ocorreu sua restrita contribuio para o desenvolvimento cientfico ocidental. As breves informaes sobre as culturas europeias, latina, bizantina e eslava, decorrem da irrelevncia, ou oposio mesmo, de suas atividades culturais para o desenvolvimento cientfico, opinio compartilhada pela esmagadora maioria dos historiadores. Dessa forma, a gradual evoluo do pensamento cientfico se restringiria, sem aporte externo, ao Ocidente, pelo que se pode considerar a Cincia como uma construo do mundo ocidental, cuja origem remonta civilizao grega. Muitos autores, inclusive, estendem a civilizao helnica at o sculo V de nossa era, incorporando, assim, a Europa ocidental (latina) e a oriental23

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(grega) ao captulo relativo chamada civilizao greco-romana. Tal critrio se deve a que tanto o Imprio Romano do Ocidente quanto o do Oriente no tiveram interesse em cultivar o estudo da Natureza e em avanar sobre as conquistas cientficas gregas. Esse foi, igualmente, o critrio adotado neste trabalho. No caso das culturas latina e bizantina, o monoplio religioso do monotesmo cristo, que baniria a cultura pag, por ser incompatvel com a nova concepo do Mundo e do Homem, , normalmente, apontado, ao lado da estrutura social vigente, como responsvel direto pela estagnao cultural e pelo abandono do acervo cientfico do passado. Na evoluo posterior ao sculo XII podem ser observadas as seguintes trs etapas: a do Renascimento cientfico, de durao de cerca de quatro sculos de grande atividade intelectual e de resgate da cultura grega; a do advento da chamada Cincia moderna, em que seus fundamentos conceituais, metodolgicos e institucionais seriam assentados em bases metafsicas; e a do triunfo do Esprito Cientfico, do qual resultaria grande desenvolvimento dos diversos ramos da Cincia, em bases racionais e positivas. Nesse processo evolutivo da Cincia os pressupostos bsicos da afirmao do esprito crtico, racional e investigativo viriam a prevalecer e viriam a se constituir nos fundamentos da Cincia contempornea. O emprego da Razo humana, a rejeio de elementos mitolgicos e sobrenaturais na explicao dos fenmenos naturais, a aceitao da relatividade do conhecimento e o recurso a uma metodologia que inclui observao sistemtica, experimentao rigorosa e demonstrao cabal dos fatos so elementos caractersticos atuais da Cincia. Embora seja inegvel o carter laico e positivo da Cincia contempornea, o que a distingue da Cincia dos tempos Clssico e Moderno, dominada ainda por preconceitos metafsicos, deve-se reconhecer a forte oposio ao atual tratamento estritamente cientfico de alguns temas, como os da evoluo da Vida e do Universo, por colocarem em xeque tradicionais explicaes baseadas na Revelao; em consequncia, certas teorias nos campos, por exemplo, da Cosmologia, da Evoluo e da Gentica so ainda rejeitadas por meras consideraes de ordem religiosa. Seis breves observaes ou comentrios introdutrios so ainda pertinentes. O primeiro comentrio ressaltar o acelerado avano do conhecimento cientfico devido i) ao desenvolvimento dos meios de comunicao, informao e divulgao cultural; ii) proliferao de publicaes tcnicas; iii) constituio de grande numero de associaes especializadas e realizao de conclaves internacionais; iv) crescente f24

INTRODUO GERAL

de uma Sociedade de consumo nos benefcios advindos da Cincia pura e aplicada; e v) independncia da Cincia vis--vis a Teologia e ao triunfo do esprito positivo sobre consideraes de ordem metafsica. O segundo comentrio relativo Cincia passar a ser cultivada em todos os rinces do planeta. A partir do incio do sculo XX, adquiriria a Cincia, assim, verdadeiro mbito global. A terceira observao se refere crescente vinculao entre pesquisa cientfica e desenvolvimento tecnolgico, sendo imprescindvel e inevitvel, no mundo contemporneo, a ntima cooperao entre essas duas atividades. A inovao e o aperfeioamento de instrumentos e mquinas, devido aos avanos no conhecimento cientfico, revertem em benefcio da prpria investigao, na medida em que tais aparelhos sero utilizados para permitir o desenvolvimento do conhecimento cientfico. O quarto comentrio relativo caracterstica de ser a Cincia atual um empreendimento de alto custo, que requer muito investimento financeiro e o emprego de pessoal especializado. do passado a figura do pesquisador, com poucos ajudantes e reduzidos recursos, limitado ao seu laboratrio. Hoje em dia, a pesquisa se desenvolve em grandes centros, com enormes fundos pblicos e privados, com a participao de equipes de cientistas e tcnicos, inclusive com a colaborao de laboratrios em diversos pases (exemplo: pesquisa do Genoma). A quinta observao amplia a anterior, no sentido de que, sendo a Cincia uma obra de natureza social, no pode ser examinada fora de seu contexto, isto , no obra de alguns homens de gnio, mas resulta das condies prevalecentes na Sociedade em dado momento; a grandeza do homem de gnio reside exatamente em saber dispor de conhecimentos e dados disponveis, de forma a modificar o padro existente de conhecimento. A reside a grandeza de um Aristteles, Hiparco, Apolnio, Arquimedes, Veslio, Coprnico, Harvey, Galileu, Kepler, Huygens, Newton, Redi, Leibniz, Spallanzani, Faraday, Lavoisier, Lagrange, Gauss, Schwann, Pasteur, Claude Bernard, Helmholtz, Maxwell, Liebig, Berthelot, Mendel, Darwin, Weismann, Curie, Planck, Einstein, Bohr, Heisenberg, Hubble, Lemaitre, Gamow, Crick, Pauling e tantos outros. O sexto comentrio trata da essencial questo da metodologia em Cincia, tema recorrente ao longo do trabalho. relevante assinalar, desde j, a importncia do mtodo cientfico, aplicvel a todas as Cincias, embora seja fundamental atentar para as importantes diferenas entre, por exemplo, Cincias experimentais, como a Qumica e a Fsica, e as histricas, como a Sociologia ou a Evoluo. A rigorosa aplicao do mtodo cientfico s25

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pesquisas e aos estudos pertinentes a garantia de assegurar o desenvolvimento da Cincia em bases firmes e slidas, nico modo de permitir a compreenso dos fenmenos atinentes Vida, Sociedade e ao Mundo natural. Desde Aristteles, vrias classificaes da Cincia foram sugeridas, com o intuito de delinear to vasto, controverso e complexo campo. Ainda que consciente do relativo e temporal valor de qualquer classificao, dada a prpria dinmica da Cincia, foroso reconhecer sua importncia, com vistas a limitar e esclarecer seu mbito, e, por conseguinte, viabilizar o prprio estudo. A tradicional classificao de Augusto Comte, das Cincias fundamentais, foi a adotada, ou seja, ser estudada a evoluo da Matemtica, da Astronomia, da Fsica, da Qumica, da Biologia e da Sociologia, ordem estabelecida pelo critrio da generalidade decrescente e da complexidade crescente. Para facilitar a exposio e evitar possveis mal-entendidos, as denominaes oficiais dessas Cincias foram mantidas, mesmo para pocas anteriores sua criao e estruturao, como so os casos, por exemplo, de Astronomia quanto observao da abbada celeste para fins religiosos no Egito e na ndia, de Matemtica para a tcnica de contagem e de medio na Mesopotmia e na China, e de Fsica no que se refere a pesquisas em Mecnica. A expresso Histria Natural, muito usual at o sculo XIX, foi empregada para englobar as pesquisas na flora, fauna, Geologia e Paleontologia, bem como so fornecidas algumas informaes sobre os avanos na Medicina, por seu significado no desenvolvimento do conhecimento biolgico. Como os principais objetivos do estudo so a evoluo do esprito cientfico e o desenvolvimento das seis Cincias fundamentais, o problema da estruturao do trabalho fundamental, porquanto deve corresponder a concepes a expostas e que orientam a interpretao dos acontecimentos. A diviso do trabalho em captulos referentes a perodos da Histria Universal (Antiguidade, Idade Mdia, poca moderna e poca contempornea) inaplicvel para a Histria da Cincia, j que sua evoluo tem uma dinmica prpria, no necessariamente igual da Histria Universal. Como o enfoque histrico , contudo, conveniente, por permitir acompanhar a evoluo de cada Cincia e a correspondente influncia recproca e o vnculo mtuo, o critrio adotado foi o do processo evolutivo das Cincias, ou seja, respeitando as etapas dessa evoluo, independente da tradicional diviso dos perodos da Histria Universal. Para contornar possveis interpretaes inconvenientes, a meno a Perodos histricos foi deliberadamente evitada.26

INTRODUO GERAL

Em consequncia, o trabalho foi dividido em sete Captulos, antecedidos por uma Introduo Geral e um tpico sobre Tempos Pr-Histricos; a incluso de curta matria sobre a Pr-Histria serve ao propsito de apresentar uma breve informao sobre o tema, de bvio interesse para a compreenso dos antecedentes do Perodo Histrico de criao e desenvolvimento da Cincia. O Captulo I se refere s primeiras civilizaes, as quais deram um grande impulso ao desenvolvimento tcnico, de conhecimento meramente emprico. O Captulo II dedicado exclusivamente cultura Greco-Romana, bero da civilizao ocidental, por considerar a Grcia ptria da Filosofia, da Cincia e da Arte, e Roma como centro divulgador da cultura helnica, embora sua prioridade tenha sido a do desenvolvimento tcnico. O Captulo III examina trs grandes culturas orientais (chinesa, indiana e rabe islmica) at o sculo XVI, sendo que esta ltima teria um papel histrico relevante na redescoberta do conhecimento cientfico grego em regies da Europa. O Captulo IV apresenta a situao do conhecimento cientfico europeu nas culturas bizantina e eslava e no Perodo Medieval latino e grego (sculos IV/ XII), e suas relativas relevncias para o futuro desenvolvimento cientfico. O Captulo V se refere ao Renascimento cientfico, perodo da recuperao da abandonada e esquecida Filosofia Natural, bem como da emergncia de um esprito crtico e inquisitivo. O Captulo VI cobre o Perodo da Cincia moderna e termina no final do sculo XIX, dependendo da Cincia em estudo. O perodo se caracterizaria por um extraordinrio progresso nas pesquisas, na estruturao de algumas cincias, na criao da Biologia e da Sociologia e no significativo avano do esprito cientfico no meio intelectual e acadmico; a atividade cientfica continuaria praticamente restrita Europa. Finalmente, o Captulo VII trata do triunfo do esprito cientfico no mundo contemporneo, poca de formidvel avano nas pesquisas e nos estudos tericos das diversas Cincias fundamentais e na definitiva separao e independncia da Cincia e da Teologia. A importncia da Cincia, cujo objetivo passaria a ser social, isto , o de servir Sociedade, teria reconhecimento generalizado, e sua prtica se estenderia a todos os continentes, tornando-a de mbito mundial. Nos sete Captulos deste trabalho foi observado o critrio de examinar o desenvolvimento cientfico atravs dos diversos e principais ramos existentes da Cincia (Filosofia Natural) poca, tendo sido considerada indispensvel a incluso de comentrios sobre o contexto histrico, tanto do ponto de vista poltico e social, quanto econmico, cultural e religioso.27

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Finalmente, antes da apresentao da estrutura esquemtica desta Histria da Cincia, importante assinalar a convico de que, na medida em que avana o conhecimento, alicerado na racionalidade e na positividade, mais distante o recurso a desgnios misteriosos e a vontades sobrenaturais para explicar a realidade. Esse processo evolutivo, porm, no se esgota. O progresso da Humanidade depende, em parte, do contnuo avano do pensamento cientfico e das realizaes da Cincia, o que significa um reconhecimento da relatividade do conhecimento, que deve ser constantemente revisado luz de novas evidncias e anlises. A rejeio da noo do absoluto e o triunfo do princpio da relatividade reforam a convico na superioridade do pensamento cientfico, o qual, ao prevalecer, contribui, de forma decisiva, para o progresso da Humanidade.

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Tempos Pr-Histricos

A Pr-Histria, ou seja, o longo perodo anterior inveno da escrita, s comeou a ser conhecida e estudada a partir da segunda metade do sculo XIX. O entendimento at ento era basicamente o revelado pelas Escrituras a respeito da Criao do Universo, da Terra e do Homem. O tema no era objeto de pesquisas dos intelectuais, que, na realidade, nem mesmo cogitavam dedicar algumas horas de estudo ao assunto. A explicao teolgica era suficiente e bastante. A criao da Terra e do Homem e a fixidez das espcies (o que significava rechaar as noes de extino e evoluo das espcies) eram tidas como verdadeiros dogmas, isentas, portanto, de anlise objetiva. Fsseis eram conhecidos desde a Grcia Antiga, porm as discordncias interpretativas sobre a origem de tais conchas, detritos e vestgios impediam uma compreenso do que poderia ter ocorrido em pocas para as quais no se dispunha de provas irrefutveis. Os descobrimentos de esqueletos, partes do corpo, instrumentos e material diverso de pocas pretritas seriam indcios adicionais de uma antiguidade bem maior da Terra e do Homem do que aquela normalmente aceita at a primeira metade do sculo XIX. As descobertas de grandes animais (mamutes) extintos, de ossos de animais antediluvianos (dinossauros, pterodctilos) e de esqueletos de elefantes e rinocerontes na Europa eram evidncias de um passado mais longo para a Terra e para o Homem do que aquele atribudo pelo Gnese. Embora tenha progredido bastante o estudo desse passado, graas aos avanos permitidos29

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pelas pesquisas da Paleontologia, da Geologia, da Biologia, da Qumica, da Arqueologia, da Antropologia e de tantos outros ramos da Cincia, ainda h muitas incgnitas, muitas incertezas, muitas dvidas, muitas lacunas que impedem um seguro e exato conhecimento da Pr-histria. Evidentemente, medida que so descobertos fsseis, esqueletos, ossos, instrumentos, equipamentos e monumentos, aumenta a compreenso desses tempos bastante antigos, como, por exemplo, as descobertas, nesses ltimos dez anos, na frica, de vestgios e evidncias de homindeos. Para tanto, contudo, foi necessrio o desenvolvimento de tcnicas de aferio de antiguidade. Os cinco principais mtodos de datao utilizados atualmente so: a) dendrocronologia observao dos anis de crescimento das rvores; b) anlise dos sedimentos de materiais de origem glacial; c) carbono 14 anlise baseada na desintegrao radioativa desse istopo de carbono que os raios csmicos produzem na atmosfera. Este mtodo de datao tem o inconveniente de s poder ser usado em materiais com uma antiguidade inferior a 40 mil anos; d) potssio-argnio serve para determinar perodos extremamente longos (1,2 bilho de anos) e se baseia, igualmente, na radioatividade; e) termoluminescncia permite datar os utenslios de argila, baseando-se o mtodo no baixo nvel de radioatividade no interior da cermica. No conjunto, todos esses mtodos tm fornecido a estrutura para o desenvolvimento da Arqueologia, capaz, hoje, de retroceder a datao at os primeiros utenslios de pedra, de 2,5 milhes de anos de antiguidade. Adicionalmente, significativa a contribuio da Geologia (Estratigrafia) na datao, atravs do estudo da sequncia cronolgica, que se baseia na acumulao de depsitos, bem como da Arqueologia no da substituio dos objetos de pedra pelos de cobre, bronze e ferro (Idades da Pedra e dos Metais); tais tcnicas e sistemas so instrumentais de grande importncia na determinao do calendrio de eventos para pautar a Pr-Histria do Homem. Assim, j possvel saber, em linhas gerais, a evoluo gradual morfolgica, do gnero Australopitecus ao gnero Homo, at chegar espcie Homo Sapiens. O quebra-cabea dos Tempos Pr-Histricos continua, no entanto, a desafiar os pesquisadores, no sendo plausvel aguardar para um futuro prximo um conhecimento muito mais aprofundado, que o atual, da PrHistria. Para a Histria da Cincia, esse Perodo no tem maior significado, uma vez que a prpria Cincia uma inveno do Perodo seguinte, isto , do Perodo Histrico. Os estudos de Histria da Cincia variam de autor para30

TEMPOS PR-HISTRICOS

autor, porm pode-se considerar que comeam ou com as civilizaes da Mesopotmia e do Egito, ou com a civilizao grega, ou, ainda, com o Perodo correspondente ao incio da poca moderna (sculo XV) na Europa. A parte relativa Pr-Histria normalmente consta de uma pequena introduo, pois a Histria da Cincia, tal como compreendida habitualmente, no pode remontar alm de 2 ou 3 milnios antes de nossa era, a uma poca quando no havia livros ainda, mas onde monumentos, obras-de-arte e inscries arcaicas permitem decifrar o pensamento humano. Alm, a noite dos tempos...1. A importncia relativa do Perodo Pr-Histrico devida ao surgimento e ao desenvolvimento da Tcnica, a qual, ainda que totalmente emprica e de evoluo extremamente lenta, antecedeu a criao da Cincia, pelo simples fato de no terem os ancestrais do Homem atual tido a capacidade de abstrao requerida para o desenvolvimento de um esprito cientfico, indispensvel para a Cincia. A Pr-Histria , antes de tudo, uma histria de tcnicas. A sucesso, no tempo, de objetos cada vez mais diversificados e elaborados (machado de mo, seta, dardo, lana, perfuradores, agulha de costura) e a diversificao paulatina no uso de material empregado (pedra, osso, madeira, couro) se constituem em elementos da maior relevncia para a compreenso daqueles ancestrais que desenvolveram uma incipiente capacidade artesanal, cujas tcnicas no variaram durante milhares de anos. Rudimentares agasalhos e vestimentas, cestos e balaios para guardar alimentos, recipientes para transportar e armazenar lquidos, laos e arco e flecha para caar, arpo para a pesca, remos e velas para canoas, e moradias so alguns dos importantes desenvolvimentos tcnicos desse Perodo. Essa capacidade se manifestou simultaneamente em diversas regies, como atesta o grande nmero de evidncias encontradas em vrios stios arqueolgicos, no sendo possvel, assim, determinar quando e como se desenvolveu essa habilidade. O desenvolvimento dos meios tcnicos o resultado de uma experincia coletiva sempre cumulativa, voltada para as necessidades materiais. Cada gerao herdou a experincia das anteriores. Como escreveu Maurice Daumas, no domnio da tcnica, o progresso uma soma. A dificuldade, para no dizer a incapacidade, de inovao, explica, em parte, a lentido, no tempo, de seu desenvolvimento, dependente das necessidades materiais e da acumulao1

TATON, Ren. La Science Antique et Mdivale.

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de experincia. Sendo o conhecimento necessariamente transmitido pelo gesto ou pela fala (no havia sido criada ainda a escrita, e a prpria fala era precria), cada gerao dependia do contato pessoal para a aquisio da experincia e conhecimento, o que era dificultado pela baixa densidade demogrfica e pelo distanciamento geogrfico dos diversos grupos populacionais. Apesar de todas as compreensveis limitaes e dificuldades, preciso, portanto, para o entendimento global da evoluo do pensamento e do conhecimento humano, em particular da Histria da Cincia, examinar a sequncia evolutiva da espcie humana desde os primeiros ancestrais do Homem; em outras palavras, situar essa evoluo no contexto temporal da Humanidade. Os Tempos Pr-Histricos sero examinados em duas partes: a primeira, relativa evoluo da espcie humana desde o gnero Homo, e a segunda, referente ao desenvolvimento social, cultural, espiritual e tcnico dos chamados Perodos arqueolgicos do Neoltico (Idade da Pedra polida) e do Eneoltico (Idade dos Metais). I. Evoluo da Espcie Humana A compreenso real da evoluo da Vida e do Homem s ocorreu muito recentemente, a partir da segunda metade do sculo XIX, com a publicao, em 1859, de A Origem das Espcies, de Charles Darwin. A Teoria da Evoluo, para ter valor cientfico, dependia, contudo, de uma condio fundamental: um longo e complexo processo sequencial em um espao de tempo de milhes de anos, suficiente para explicar e justificar as transformaes que teriam ocorrido na Terra e nos seres vivos. A crena de uma antiguidade de alguns poucos milnios inviabilizaria o gradualismo evolutivo, pelo insuficiente prazo de tempo transcorrido para a ocorrncia do processo sugerido. Como escreveu o prprio Darwin, em A Origem das Espcies: ... a crena de que as espcies eram produtos imutveis era quase inevitvel enquanto se considerou ser de curta durao a Histria do Mundo.... A questo, portanto, implicava em recuar o momento da formao da Terra e do Homem a uma poca, negada por alguns, desconhecida por todos, para a qual no se dispunha de provas, ou, mesmo, de evidncias e dados comprobatrios. Conhecidos desde a Antiguidade Clssica, os fsseis vegetais e animais no eram, contudo, considerados ou estudados como evidncias de um processo evolutivo, mas como flora e fauna extintas pelo Dilvio.32

TEMPOS PR-HISTRICOS

Evidentemente, diversos cientistas, em pocas anteriores, j haviam defendido ideias, teses e conceitos compatveis com a evoluo dos seres vivos e uma antiguidade da Terra bastante superior aceita na poca (cerca de 5.800 anos). Alguns exemplos podem ser citados: i) o naturalista francs Isaac de la Peyrre (1594-1676) sustentou, em livro, que certas pedras encontradas no interior da Frana teriam sido moldadas por homens primitivos, anteriores a Ado (seu livro seria queimado em pblico em 1655); ii) o naturalista francs Georges Louis Leclerc de Buffon (1707-1788) sugeriu, em sua monumental obra, em 44 volumes, sobre Histria Natural, que os animais atuais seriam resultado de uma mudana evolutiva. Ademais, lanou o conceito de histria geolgica em etapas e a sugesto de uma escala cronolgica de 35 mil anos. Forado a se retratar, Buffon declarou: Abandono tudo o que em meu livro diz respeito formao da Terra e tudo o que possa ser contrrio narrao de Moiss; iii) o escocs James Hutton (1726-1797), com a publicao da Teoria da Terra fundou a Geologia, desenvolveu o princpio do uniformitarismo e admitiu a hiptese de a Terra ter centenas de milhares de anos de existncia; iv) o pastor alemo Johann Friedrich Esper (1732-1781) descobriu ossos humanos primitivos na Alemanha; v) o arquelogo britnico John Frere (1740-1807) encontrou utenslios de slex da Idade da Pedra em meio a ossos de animais extintos; vi) o bilogo francs Jean Baptiste Lamarck (1744-1839) publicou, em 1809, a FilosofiaZoolgica, na qual defendeu os princpios de que os rgos se aperfeioam com o uso e se enfraquecem com a falta de uso, e que as mudanas so preservadas nos animais e transmitidas prole; vii) o gelogo britnico Charles Lyell (1797-1875), em Princpios da Geologia estudou as formaes rochosas e fsseis, defendendo as ideias de Hutton, e sustentou o conceito de um processo geolgico lento e uniforme, pelo que a Terra poderia ter milhes de anos2. No sculo XIX, cabe mencionar, ainda, as descobertas do paleontlogo belga Philippe-Charles Schermeling (1791-1836) de utenslios de pedra e de dois crnios junto de ossos de rinocerontes e mamutes, em 1830, na Blgica; do arquelogo francs Jacques Boucher de Perthes (1788-1836), de machados de slex e outros objetos de pedra perto de Abbeville, no Norte da Frana, (que defendeu a tese de que tais machados teriam sido feitos por homens primitivos, antes do Dilvio); e do gelogo francs Edouard Armand2

BRODY, David; BRODY, Arnold. As Sete Maiores Descobertas Cientficas da Histria.

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Lartet (1801-1871), que descobriu o stio arqueolgico de Sanso, clebre pela quantidade e variedade de restos e materiais do Perodo Tercirio. Tais descobertas no serviram, contudo, de provas suficientes da antiguidade dos achados, por falta, naquela poca, de tcnicas apropriadas de datao. A descoberta, em 1924, pelo anatomista Raymond A. Dart (1893-1988) de um crnio de um beb, em Taung, no deserto de Kalahari, na frica do Sul, com cerca de 2 milhes de anos, seria a primeira prova concreta para a teoria de Darwin, inclusive de que fsseis de ancestrais do Homem seriam encontrados na frica. De acordo com o atual conhecimento geolgico e paleontolgico, a cadeia evolutiva do Homem se situa na Era geolgica Cenozoica (de 65 milhes de anos atrs at os dias atuais), a partir da poca Paleocena (de 65 milhes de anos a 54 milhes de anos atrs). No Plioceno (de 7 milhes a 2,5 milhes de anos atrs) apareceu o Australopiteco, j com ntidas caractersticas homindeas (assemelhado ao Homem), ancestral do gnero Homo (espcies Habilis, Rudolfensis, Ergaster, Erectus e Sapiens), surgido no Pleistoceno (de 2,5 milhes de anos a 200 mil anos atrs), no Perodo Quaternrio. Alguns autores classificam o Homem atual como tipo ou subespcie Homo Sapiens Sapiens, da poca Pleistocena (superior), com o intuito de dar maior refinamento ou preciso na classificao geolgica e zoolgica. a. O Processo Evolutivo do Gnero Homo Apesar do inegvel progresso nas pesquisas, nos ltimos anos, sobre a evoluo dos homindeos, por seleo natural, persistem, ainda, muitas incgnitas e diversas dvidas no esclarecidas pelos especialistas, o que tem gerado, em alguns casos, controvrsias no meio cientfico. Importantes descobertas recentes, a partir dos anos 80, contriburam a um reexame de certas interpretaes do processo evolutivo; assim, so aceitas, hoje em dia, algumas teses, como a da coexistncia, antes do Homo Sapiens, de algumas espcies de Homo, a de ser, atualmente, o Homo Sapiens o nico homindeo na Terra, e a da evoluo multirregional dos humanos, pela qual a atual espcie de Homo sapiens resultaria da evoluo ocorrida em diversas partes da Terra. Na poca geolgica Pleistocena (2,5 milhes a 200 mil anos atrs) do atual Perodo Quaternrio surgiu o gnero Homo, cujos primeiros representantes j mostravam mais ntidas e desenvolvidas caractersticas34

TEMPOS PR-HISTRICOS

do Homem atual. Os fsseis mais antigos so do Homo Habilis, e datam de 2 milhes de anos. Em Olduvai, Tanznia, e em Koobi Fora, no Qunia, foram encontrados fsseis que indicam evoluo, particularmente no crnio, pernas e quadris. As adaptaes observadas na pelve do Homo Habilis foram essenciais para permitir o nascimento de criana com um crebro maior, o qual atingiu o dobro do tamanho do crebro do Australopiteco. O Homo Habilis produziu objetos de pedra e construiu abrigos, o que indica modificaes anatmicas nas mos e nos centros cerebrais que as controlam. Vrias espcies de Homo devem ter convivido nesse Perodo com o Homo Habilis. Na mesma regio da frica, surgiu o Homo Rudolfensis, de crebro aparentemente menor que o do Habilis, mas cujas dimenses do corpo so desconhecidas. O Homo Ergaster, de crnio alto e redondo e esqueleto semelhante aos dos atuais humanos, foi o primeiro homindeo de forma corprea essencialmente moderna. O melhor espcime dessa espcie o chamado garoto de Turkana (Qunia), com uma antiguidade de 1,6 milho de anos. Deve-se confiar em descobertas, no futuro prximo, que possam trazer mais informaes sobre esse Perodo Pr-Histrico. No perodo aproximado de 1,7 milho at 400 mil anos atrs, o Homo Erectus apresentou importante e notvel desenvolvimento fsico e mental. Esqueleto bastante completo de um menino, encontrado perto do Lago Turkana, no Qunia, em 1984, pelo arquelogo Richard Leakey, permitiu conhecer aspectos importantes de sua anatomia: estatura mais elevada, testa mais achatada e inclinada para trs, queixo pequeno, modificao craniana. Exame do crnio sugeriu desenvolvimento no crebro de reas relacionadas com a linguagem, pelo que os cientistas consideram que aqueles homindeos foram capazes de se comunicar atravs de frases simples. O desenvolvimento mental, se comparado com o de seus ancestrais, extraordinrio, como atesta a descoberta da utilizao do fogo, conforme evidncias de cinzas, carvo e fornos em vrios locais arqueolgicos. O fogo seria usado para aquecimento, proteo de predadores e cozimento de alimentos, inclusive da carne, j regularmente consumida. Vestgios de onze tendas foram encontrados. O Homo Erectus criou, ainda, o machado de mo, feito de pedra, e objetos cortantes, essenciais em suas caadas. A introduo de um material (pedra) na fabricao de objetos foi um marco importante na evoluo dos homindeos, pelo que tal perodo passou a ser chamado de Idade da Pedra lascada,35

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correspondendo ao que arquelogos e historiadores classificam como Paleoltico Inferior. Esses homindeos, sob influncia do meio ambiente, foram os primeiros a migrar, se espalhando alm das zonas equatorial e subtropical da frica, atingindo regies da sia, Europa e Amrica, a partir da retrao do gelo nessas reas para o Polo. Imprprias at ento para a sobrevivncia do Homem, essas novas terras, livres, agora, do gelo, j poderiam ser ocupadas, principalmente por causa do domnio do fogo, que permitiu a essas populaes proteger-se do frio e cozinhar seus alimentos. Graas ao apoio das ferramentas, agasalhos e fogo, essas primeiras populaes de Homo Erectus atingiram distantes terras frteis e ricas em flora e fauna, at ento desconhecidas. Com antiguidade inferior a 700 mil anos, restos de esqueletos foram encontrados na sia (Homem de Pequim, Homem de Java) e na Europa, em diversos locais. b. Homo sapiens Grandes mudanas climticas e ambientais ocorreram na poca Pleistocena, h 500 mil anos. As chamadas grandes eras glaciais: Gunz, Mindel, Riss e Wurm, separadas por trs intervalos interglaciais, foram determinantes no processo evolutivo do Homem. Como consequncia das cambiantes condies climticas, por longos perodos de tempo, vrias espcies de flora e fauna foram extintas (inclusive vrias espcies do gnero Homo), ao mesmo tempo em que surgiram novos animais e plantas mais adaptados s novas circunstncias. Esse o Perodo da Pr-Histria, denominado pela Arqueologia de Paleoltico Superior, em que aparece o Homo Sapiens, dotado de reas corticais associadas com a motivao, memria, previso e imaginao bastante mais desenvolvidas no crebro do que no de seus ancestrais. Deve ser assinalada, tambm, por sua importncia, a modificao estrutural na laringe, na faringe e na lngua, que determinou uma vantagem na conformao humana no trato vocal; por ser mais longa que em outras espcies (inclusive a Neandertal), a faringe permitiu a variao de sons exigida na fala articulada. O desenvolvimento da linguagem falada, uma das significativas distines do Homem moderno em relao a qualquer outro animal, teria um impacto decisivo na evoluo do pensamento e do conhecimento humano. Duas teorias procuram explicar as origens do Homo Sapiens: uma, da continuidade regional, sustenta que toda a populao humana moderna se36

TEMPOS PR-HISTRICOS

originaria do Homo Erectus, mas cada populao regional teria evoludo ao longo de linhas prprias e distintas; e outra, da origem nica, defende que o Homo Sapiens descende de uma nica populao ancestral, que surgiu em algum local da frica. O tema continua aberto discusso. Muitos autores subdividem a espcie Homo Sapiens em duas: a primitiva, que teria existido de 200 mil a 40 mil anos atrs, e a atual, ou do Homo Sapiens Sapiens, evoluo alcanada por volta de 40 mil anos atrs. O crebro atingiria o volume de 1350 cm, comparado com os 450 cm do australopiteco. Grupos de primitivos Homo Sapiens, originrios da frica, provavelmente fugindo de condies climticas e ambientais adversas (frio e seco), teriam emigrado para regies menos inspitas, alcanando o Oriente Mdio por volta de 90 mil anos atrs; a Austrlia h 50 mil anos; a Europa h 40 mil anos, e as Amricas h 15 mil anos. No continente europeu se encontrariam com uma espcie de homindeos conhecida como Homem de Neandertal3, porque o crnio e alguns (11) ossos fragmentados foram encontrados no vale do Neander, na Alemanha, por Johann Karl Fuhlrott, em 1856. Pouca ateno foi dada a essa descoberta, que muitos cientistas, inclusive, negavam tratarse de ossos humanos. Dois esqueletos, alguns utenslios e vestgios de animais extintos, descobertos, em 1868, perto de Spy, na Blgica, e fsseis mais bem completos, encontrados na Frana, a partir de 1908, comprovaram, definitivamente, a existncia do Homem de Neandertal, que, no entanto, no um antepassado direto do Homem atual. Subsequentes descobertas de restos mortais (cerca de 300 indivduos), utenslios, instrumentos, inscries rupestres, na Europa, sia e frica permitem um conhecimento razovel de seu modo de vida, de sua cultura. De acordo com os registros disponveis, o Homem de Neandertal teria surgido por volta de 230 mil anos atrs e desaparecido h 30 mil anos, espalhando-se pela Europa, frica e sia, inclusive China. Quanto anatomia, tinha membros e tronco assemelhados aos humanos atuais, mas seriam mais musculosos: seu crebro (1,4 quilo) j teria o tamanho do crebro humano. Fabricavam instrumentos de pedra, sem, contudo, ter introduzido inovaes; praticavam a caa, e, na fase mais recente, celebravam ritos funerrios. Uma variedade da populao do Homo Sapiens primitivo surgiu, por volta de 40 mil anos atrs, em diversas regies do Globo, e viria a ser conhecida3

JAGUARIBE, Helio. Um Estudo Crtico da Histria.

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como Homo Sapiens Sapiens. Fsseis e vestgios encontrados (1868) em Cro-Magnon (Norte da Europa e da frica, Oriente Mdio), Grimaldi (regio do Mediterrneo) e Chancelade (Europa) atestam possurem as caractersticas do Homem moderno. Criaram e desenvolveram utenslios e ferramentas, praticavam a caa, a pesca e a coleta, tinham uma embrionria organizao familiar, ampliaram as inovaes culturais, enterravam seus mortos (com utenslios e objetos) e revelaram mais capacidade criativa que seus ancestrais. Espalhados por diversas partes da Terra, desenvolveram os Sapiens Sapiens culturas distintas, sendo as mais significativas a chatelperronense, na Frana; a aurignaciana, na Crimeia, Blcs, Europa central, Frana, Inglaterra e Espanha; as culturas magdalenense e solutrense, na Europa ocidental; a aterense e a capsense, na frica. A presena do Homo Sapiens Sapiens, ou seja, do Homem atual, na Terra, , portanto, de data bastante recente, se se considerar o tempo transcorrido de toda a sequncia evolutiva. O momento correspondeu ao incio da poca holocena, no final do Paleoltico Superior e incio do Mesoltico, e correspondeu, tambm, ao final da ltima glaciao (de 100/80 mil anos a 10 mil anos atrs), o que permitiu o deslocamento do Homo Sapiens Sapiens para todas as partes da Terra. O Homo Sapiens herdaria o conhecimento tcnico relacionado com as atividades de caa, pesca e coleta, de construo de abrigos, de fabricao de agasalhos, da criao e do uso de utenslios e instrumentos de pedra de diversas finalidades, e do domnio do fogo para fins domsticos. Nesse perodo de cerca de 200 mil anos, o Homem criou instituies reguladoras da vida familiar e grupal, acumulou conhecimento e desenvolveu crenas, atravs das quais procurava alcanar segurana emocional em face dos riscos a que estava sujeito e dos quais se tornara consciente, como a dor e a morte4. Conforme explicou o pensador Condorcet, a arte de fabricar armas, de preparar alimentos, de conseguir os utenslios necessrios a esta preparao, a arte de conservar esses alimentos durante algum tempo, de armazen-los para as estaes em que seria impossvel conseguir novos; estas artes, consagradas s mais simples necessidades, foram o primeiro fruto dessa reunio prolongada e o primeiro caractere que distinguiu a Sociedade humana daquela que forma as vrias espcies de animais5.4 5

RIBEIRO, Darcy. O Processo Civilizatrio. CONDORCET. Esboo de um Quadro Histrico dos Progressos do Esprito Humano.

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Ainda que no se possa determinar a origem da linguagem oral, evoluiu ela dos primeiros sons e gritos emitidos por seus ancestrais para expressar dor, medo e sentimentos. A inveno da linguagem, como assinalou Condorcet, no foi obra de um indivduo de gnio, mas tarefa de uma Sociedade inteira, uma elaborao coletiva que precedeu, necessariamente, os avanos na rea social, e que reflete um estgio mais adiantado de pensamento que o alcanado por outras espcies. O gradual desenvolvimento da linguagem articulada seria um fator decisivo para a evoluo social, cultural e tcnica do Homo Sapiens. Graas ao desenvolvimento cerebral atingido, seria possvel, ainda no final do Paleoltico Superior, a expanso da atividade criativa pelo Homem, como no campo da Arte (inscries e desenhos rupestres, adornos) e da Tcnica. O Perodo arqueolgico seguinte, mais recente, da Pr-Histria, se iniciou h uns 12 mil anos, com o chamado Neoltico, palco das revolues agrcola e urbana, o que vale dizer, do surgimento do sedentarismo, seguido pelo Eneoltico, ou Idade dos Metais (cobre, bronze, ferro), aproximadamente de 8 mil a 5 mil anos atrs, data considerada de encerramento da Pr-histria, porquanto correspondeu inveno da escrita. O Homo Sapiens Sapiens, ou Homem atual, estabeleceria, nessa fase final da Pr-Histria, graas a seus atributos anatmicos e mentais e herana recebida de seus ancestrais, as condies para o surgimento de culturas e civilizaes em diversas partes do Globo. II. Sociedades Primitivas O surgimento do Homo Sapiens Sapiens (h cerca de 40 mil), de caractersticas fsicas e mentais atuais, significou e determinou uma radical, profunda e rpida modificao no desenvolvimento do processo evolutivo, at ento lento, porquanto fruto de mera acumulao e somatrio de experincia. O Homem atual, que recebeu de seus ancestrais tcnicas simples e incipientes, desenvolvidas ao longo de centenas de milhares de anos, no Paleoltico Superior, teria, agora, as condies necessrias para inovar em diversas atividades, ampliando o mbito de sua atuao e realizando, em poucos milhares de anos, verdadeira revoluo em seu modo de vida. To extraordinrio avano tcnico s foi possvel em decorrncia de uma nova capacidade mental que permitiu o desenvolvimento da imaginao, curiosidade e observao. A resultante uma Sociedade mais complexa e sofisticada, totalmente distinta da anterior.39

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Esse relativamente curto Perodo Pr-Histrico, denominado pelos historiadores de acordo com os materiais descobertos ou utilizados pela primeira vez, dividido, em geral, em Neoltico ou Idade da Pedra polida e em Eneoltico ou Idade dos Metais, ou, ainda, Proto-Histria. a. Perodo Neoltico O termo Neoltico Perodo da Pedra polida foi criado em 1865 pelo naturalista ingls Sir John Lubbock (1834-1913), em sua obra Prehistoric Times, em oposio ao Paleoltico, Perodo da Pedra lascada. Ainda que essa classificao continue em uso, a noo de Neoltico mudou bastante. Hoje em dia, se considera que outros aspectos da cultura dessa fase Pr-Histrica seriam mais representativos dos desenvolvimentos ocorridos em muitas populaes, como a inveno da agricultura, o incio dos agrupamentos urbanos e a vida sedentria, enquanto outros povos se dedicariam ao pastoreio, caa e coleta, permanecendo nmades. Tais denominaes so, assim, insuficientes para traduzir a real complexidade de uma nova Sociedade, cujas caractersticas transcendem a mera utilizao da pedra. Dessa forma, alguns autores denominam o Perodo como o da Grande Revoluo agrcola; outros enfatizam o aspecto da formao de uma nova organizao social; outros, ainda, priorizam o estgio fetichista da sociedade primitiva. O desenvolvimento dessas primeiras comunidades seguiu um ritmo distinto nas diversas regies da Terra. Iniciado em momentos diferentes e com durao varivel, esse processo evolutivo foi, em muitas reas, concomitante, o que dificulta, bastante, a fixao de datas de aplicao generalizada. As datas tm, assim, um carter indicativo e aproximativo, inclusive porque, na ausncia da escrita (inventada no quarto milnio), no so disponveis evidncias comprobatrias definitivas de datao dos fatos e acontecimentos prhistricos. As regies para as quais se dispe de razovel nmero de dados e informaes so a Mesopotmia, a Europa e os vales do Nilo, Indo e Amarelo. Considera-se que o Neoltico teve incio na regio mesopotmica, h uns 12 mil anos; no Sul da Europa (Grcia, Blcs) e Anatlia, h 9 mil anos; no Vale do Indo, h 7 mil anos; e na China, h uns 6 mil anos; independentemente desse desenvolvimento na Eursia, o Perodo Neoltico teria comeado na Amrica Central e Mxico por volta de 8 mil anos atrs, com o incio da chamada Revoluo agrcola.40

TEMPOS PR-HISTRICOS

O processo evolutivo no ocorreu, assim, por igual e simultaneamente, nas diversas regies da Terra. Com defasagem e sujeitas a condies locais, as diversas comunidades tiveram, contudo, uma base comum ou uma cultura neoltica comum, muitas das vezes facilitada pelos contactos de comrcio com vizinhos e at com populaes de outras regies; mesmo no caso de sociedades isoladas, como o caso da Amrica Central, a evoluo seguiu o caminho percorrido por outras na Eursia, como atestam a agricultura, a cermica, os metais. O desenvolvimento tcnico foi, basicamente, equivalente, nesse Perodo Pr-Histrico, nas diversas partes do Mundo. A explicao se encontra em a inveno, impulsionadora da Tcnica, ser produto do meio, de sua poca, e no de um indivduo. Tais foram os casos, por exemplo, da linguagem, da agricultura, da cermica e da domesticao dos animais. Na realidade, a primeira grande inovao nasceu da necessidade de subsistncia de uma populao cada vez maior (crescimento de comunidades), cujos produtos de caa, pesca e coleta j eram insuficientes para satisfaz-la. As crescentes dificuldades para o deslocamento de grupos cada vez maiores, errando pelas terras circunvizinhas atrs de um alimento aleatrio, contriburam decisivamente para a busca de suprimento garantido, abundante e menos penoso de alimentos. As plantas locais, complemento das necessidades alimentares em momentos de escassez de caa e frutos, viriam a se constituir na principal fonte de alimentos. Depois de inmeras tentativas, erros e acertos, e, para alguns autores, aps uma boa dose de sorte, aquelas populaes adquiriram a tcnica do cultivo do arroz e do sorgo (China e Sudeste da sia), do trigo, da cevada, do centeio, da aveia e de leguminosas (Mesopotmia, Anatlia, Sul da Europa), do milho, do feijo e da batata (Amrica Central, regio andina). A fartura resultante da incipiente agricultura incentivou o aumento demogrfico, o qual requereu novas tcnicas a fim de aumentar a produo e a produtividade. A expanso da fronteira agrcola para novas terras frteis propiciou a inveno do arado (Europa 6 mil anos atrs), enquanto a irrigao e a barragem foram utilizadas nas terras abundantes de gua (Mesopotmia, vales do Nilo, do Indo e do Amarelo). A agricultura fixou o Homem terra, transformando-o em um ser sedentrio, que passaria a viver em pequenas granjas ou vilas agrcolas. A transio decorrente da implantao da agricultura teria amplas e profundas consequncias, transformando uma Sociedade predadora, nmade e formada de agrupamentos familiares em uma produtora, sedentria e de dimenso multifamiliar. A resultante mais significativa para essa nova e emergente41

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Sociedade foi o nascimento de um novo modo de vida totalmente diferente do de seus antepassados. A Cultura Pr-Histrica foi oral, o que significa no haver registro escrito desse perodo. O conhecimento atual desse perodo , assim, necessariamente superficial e tentativo. As descobertas de utenslios, adornos, restos mortais, vestimentas, rodas e runas de construes so algumas das evidncias do tipo de cultura de tradio oral dessas populaes. AAntropologia, ao estudar as comunidades grafas contemporneas, e as informaes dos primeiros documentos escritos tm contribudo, tambm, para uma compreenso da cultura dos povos do Perodo Neoltico. Dependentes exclusivamente da memria para a transmisso de conhecimento, no foi permitido a tais povos alcanar saber terico, mas lhes foi possvel obter e desenvolver a tcnica de como fazer as coisas. Os grandes avanos tcnicos, movidos pelas crescentes necessidades, em um meio hostil, e pela capacidade inventiva e imaginativa, podem ser assim resumidos: a) utilizao de novos materiais pedra polida e argila, da qual criaram a cermica, com a fabricao de um grande nmero de utenslios (copos, vasilhames, jarras, potes), inclusive para a estocagem de alimentos, e o tijolo, que seria usado na construo de habitaes; b) alimentao mais rica e variada, com a introduo de novos produtos, como o leite, cereais, leguminosas; c) vestimentas e agasalhos mais confortveis de tecidos (linho, l), o que significou, ao menos, uma incipiente e tosca tecelagem; d) desenvolvimento do curtume peles, couro ; e) domesticao de animais para alimento e trao (co, cavalo, boi, porco, carneiro, cabra, rena, camelo, galinha). A pecuria (criao de animais) e a atividade de pastoreio foram decorrentes diretos dessa importante inovao; g) utilizao da energia elica (barco vela) e da trao animal para moagem e semeadura, para as quais desenvolveram a atrelagem e a junta de bois; h) inveno da roda, roldana, rolos, aumentando a capacidade de fora muscular humana e animal; i) fabricao de cestos e balaios de uso domstico; j) identificao de plantas venenosas e de plantas medicinais; k) construo de moradias (palafitas) mais apropriadas para uma vida sedentria, o que corresponderia aos primeiros tempos da Arquitetura. As manifestaes artsticas, inclusive a Arte decorativa se expandiram, como atesta o grande nmero de esculturas e adornos encontrados em vrios locais arqueolgicos. Esses extraordinrios avanos no se limitaram ao campo tcnico (tecelagem, cermica) ou ao campo das Artes (Escultura, Pintura, Arquitetura),42

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vinculados satisfao das necessidades materiais e culturais de uma nova Sociedade mais complexa e sofisticada. Transformaes profundas na organizao social, decorrentes das novas exigncias comunitrias, foram os pontos altos desse processo evolutivo. As novas e variadas atividades na agricultura, no pastoreio, no artesanato de cermica, na construo de moradias, no comrcio com outras comunidades, na defesa da vida e dos interesses comunitrios, ao promover uma incipiente especializao, estabeleceram uma diviso de trabalho da qual surgiu a classe dos proprietrios, a dos empregados, a dos escravos, a dos operrios ou artesos e a dos mercadores6. A necessidade de um chefe, a fim de poder agir em conjunto, tanto para a defesa da comunidade, diante de um inimigo, quanto para dirigir os esforos na obteno de sua subsistncia, introduziu na Sociedade a ideia de uma autoridade poltica. Consolidar-seia, com o tempo, a figura do chefe e de seus auxiliares mais prximos, e surgiria, como representante do poder espiritual, a casta sacerdotal, aliada e suporte dos detentores do poder poltico. Essa diviso de trabalho se refletiu no processo de urbanizao, ao separar o poder defensivo e religioso, localizado nas vilas, das populaes camponesas, vivendo prximas da lavoura. Seria nesses centros populacionais, onde passaram a habitar os chefes militares e religiosos e parte dos artesos, e onde se estocariam os alimentos, que seriam adotadas as decises polticas regulatrias da vida comunitria7. O dispositivo funcional, escreveria Daumas, se transformou progressivamente, ao ponto que se produziu uma separao tanto social quanto territorial entre a maioria rural, engajada na produo alimentar, e a minoria urbana, dedicada, nos planos profanos e religiosos, ao capital coletivo. Desses centros urbanos, onde se concentravam a riqueza e o poder (militar e religioso), surgiriam as inovaes tcnicas, como a metalurgia, que s tardiamente beneficiaro as populaes do campo. A noo de propriedade se firmaria definitivamente, e os novos detentores do poder passariam a gerir a coisa pblica. Os processos de estratificao social e de organizao poltica se acentuariam, enquanto o sistema produtivo se tornaria cada vez mais complexo. Algumas comunidades mais avanadas deixariam de sacrificar os prisioneiros de guerra em cerimnias de6 7

JAGUARIBE, Helio. Um Estudo Crtico da Histria. RIBEIRO, Darcy. O Processo Civilizatrio.

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antropofagia, para apres-los como trabalhadores cativos, surgindo, desse modo, o escravismo8. Como seus antepassados, o Homem desse Perodo Pr-Histrico tinha como prioridade absoluta sua sobrevivncia em um meio hostil. Da sua objetividade, seu pragmatismo, seu interesse no desenvolvimento de coisas prticas e teis que lhe facilitassem enfrentar as dificuldades do dia-a-dia. No havia outra preocupao alm das de assegurar uma melhoria das condies de vida. No Mundo Pr-Histrico e Proto-Histrico, a Natureza, to diversa e misteriosa, deve ter maravilhado, e apavorado, aqueles habitantes, ainda impossibilitados de compreender os fenmenos naturais ou de procurar uma explicao racional e lgica para o que acontecia a seu redor. Apesar de o Homem primitivo constatar, atravs da observao, a ocorrncia de fatos extraordinrios, como o movimento dos corpos celestes, variao climtica, sucesso do dia e da noite, chuva, eclipse, tremor de terra, doenas e morte, no lhe ocorria, nem o preocupava, buscar explicaes para tais fenmenos, carente que era de esprito crtico e analtico. Sua prpria observao dos fenmenos naturais era passiva, deficiente, assistemtica e sem objetividade, no sentido de que no lhe aguava a curiosidade. Sua reduzida capacidade de observao e sua imaginao lhe seriam suficientes, contudo, para deslanchar impressionante desenvolvimento tcnico. Sua imaginao desempenharia um papel central em sua evoluo mental e cultural, porm no se subordinaria observao e, at mesmo, em alguns casos, e em determinadas situaes, a substituiria pela pura imaginao. Como ensina Ivan Lins, era inevitvel que o Homem primitivo atribusse os fenmenos ou acontecimentos a vontades fictcias, isto , sobrenaturais e imaginrias, que s existiam em sua prpria fantasia e eram infirmadas pela observao9. Surgiria, em consequncia, como fruto da imaginao, a magia, que procuraria expressar uma sntese do Mundo natural e de seu relacionamento com o Homem. Para Colin Ronan10, a magia exprimiu o que, de um modo geral, era uma viso anmica.... em um mundo onde as foras eram personificadas. Esse relacionamento (chuva e crescimento das plantas, porRIBEIRO, Darcy. O Processo Civilizatrio. LINS, Ivan. Escolas Filosficas ou Introduo ao Estudo da Filosofia. 10 RONAN, Colin. Histria Ilustrada da Cincia.8 9

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exemplo) era facilmente observvel, mas a dificuldade se encontrava em explicar tais fenmenos e em coloc-los a seu servio. Como escreveu Maurice Daumas durante muito tempo ainda, tudo decorrer da simples experincia, de uma espcie de submisso ativa s leis naturais. O homem do campo se contentar durante sculos, em todas as latitudes, com os conhecimentos prticos, e este ser o tesouro que ele legar s geraes que o seguiro. Aquilo que ele no compreende, ele o explicar por sua ao diria, mesmo a mais humilde, em ritos tornados tradicionais.... O Mundo tornar-se-ia compreensvel somente atravs da ideia de que os objetos e fenmenos tinham vida prpria ou eram manifestaes de deuses e divindades, que deveriam ser agradados de forma a terem boa vontade para com os homens em sua labuta diria. Assim, o Mundo era povoado por um conjunto de seres visveis (animais, plantas) e controlado por espritos e foras ocultas e misteriosas que habitavam os seres, objetos e elementos (animais, rvores, mar, vento, chuva, Sol); algumas dessas foras eram perceptveis (raio, trovo, tremor de terra), e a doena era tida como uma manifestao dos espritos do mal. Os fenmenos naturais eram, assim, relacionados com o mundo dos espritos, desenvolvendo-se procedimentos (atravs da magia) para lidar com os dois mundos. A reencarnao era uma crena amplamente difundida. A Medicina, ou melhor, a arte de curar, nas culturas orais ou grafas, era inseparvel da magia. O valor do especialista na cura no era devido sua habilidade cirrgica ou ao uso correto de plantas medicinais, mas ao seu conhecimento das causas sobrenaturais da enfermidade. Surgiu, ento, a figura do feiticeiro, mago, curandeiro, que incentivaria a imaginao popular e criaria uma ritualstica pela qual seria possvel prestar homenagens a essas foras misteriosas. Detentor dessa capacidade de interpretar a vontade superior de tais entidades, o feiticeiro transformou-se em uma das autoridades da Sociedade, constituindo-se, inclusive, em uma casta, a sacerdotal. Como escreveu Darcy Ribeiro, os especialistas no trato com o sobrenatural, cuja importncia social vinha crescendo, tornam-se, agora, dominadores. Constituem no apenas os corpos eruditos que explicam o destino humano, mas tambm os tcnicos que orientam o trabalho, estabelecendo os perodos apropriados para as diferentes atividades agrcolas. Mais tarde, compendiam e codificam todo o saber tradicional, ajustando-o s novas necessidades, mas tentando fix-lo para todos os tempos. Este carter conservador era inarredvel sua posio de guardies de verdades reveladas, cuja autoridade e cujo poder no se encontravam neles, mas nas45

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divindades a que eram atribudas11. Preces, invocaes, feitios, sacrifcios, purificaes, amuletos e poes seriam, ento, utilizados para apaziguar e festejar essas divindades e espritos. Essa viso anmica do Mundo e da Natureza, essa mentalidade fetichista levaria, inexoravelmente, a uma noo do absoluto; o Homem acreditaria ter posse do conhecimento absoluto, pois no encontraria nenhuma dificuldade ou problema em se satisfazer com a intervenincia de divindades para justificar os fenmenos. O problema da compreenso no surgia, assim, para o Homem Neoltico, j que a explicao fetichista lhe satisfazia. Bastavam-lhe as constataes do que ocorria ao seu redor e a crena em um poder superior, responsvel pelo que ocorria e ao qual deveria submeter-se e adorar12. b. Idade dos Metais O terceiro e ltimo Perodo da Pr-Histria conhecido como o da Idade dos Metais, ou Eneoltico, ou ainda de Proto-Histrico, de curta durao (de 8 mil a 5 mil anos atrs), mas de grande importncia no processo evolutivo da Sociedade Pr-Histrica, pois corresponde transio para o Perodo Histrico. As atividades agrcolas e de artesanato, iniciadas no Neoltico, se expandiriam e se diversificariam para atender a uma maior demanda de uma crescente populao que se urbanizava rapidamente; surgiriam centros urbanos em pontos estratgicos das rotas comerciais. Uma nova atividade, a da minerao do metal, contribuiria para a diversificao econmica, propiciando o aparecimento da Metalurgia. To importante quanto foram, em pocas anteriores, a argila, o osso, a madeira e a pedra, o novo material, de mltipla utilizao, teria um papel decisivo no plano econmico e social das sociedades do perodo, a ponto de caracteriz-lo. O primeiro metal descoberto foi o cobre (cerca de 8 mil anos atrs, no Sudoeste europeu, espalhando-se pelo resto da Europa, sia e Norte da frica), usado em utenslios domsticos; sua importncia e significado explicam ser esse Perodo inicial chamado, por muitos autores, de Calcoltico. O ouro e a prata tambm foram conhecidos nessa poca e tiveram muitas aplicaes, inclusive em adornos. O bronze (liga de cobre e estanho) segue cronologicamente os trs metais anteriores, mas pela tcnica requerida para11 12

RIBEIRO, Darcy. O Processo Civilizatrio. LINS, Ivan. Escolas Filosficas ou Introduo ao Estudo da Filosofia.

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sua fabricao, originou a Metalurgia, avano tcnico fantstico, o que justifica chamar esse Perodo de Idade do Bronze. O bronze foi fabricado primeiro na Mesopotmia, por volta de 6 mil anos atrs, e na Grcia e China, h 5 mil anos, vindo, rapidamente, outras populaes a aprender a tcnica e a utilizar o metal. O ferro s viria a ser conhecido h cerca de 3.300 anos, usado, por primeira vez, em artefato de guerra, pelos hititas. A linguagem falada permitiria melhor convivncia social entre os diversos grupos multifamiliares, ao mesmo tempo em que o avano econmico e a diviso de trabalho favoreciam um emprico desenvolvimento tcnico, de efeito altamente positivo, nas condies de vida das populaes. A noo de propriedade privada se estenderia aos meios de produo e ao campo, consolidando-se a hierarquizao social, com uma classe rica, dominante, prxima e beneficiria do poder poltico, exercido por um governante, apoiado por uma casta sacerdotal. A tradio, os costumes, as crenas e o conhecimento tcnico eram transmitidos oralmente, de gerao a gerao, constituindo-se na caracterstica marcante dessas comunidades. A descoberta, em setembro de 1991, de uma mmia de caador, em perfeito estado de conservao, na geleira do Tirol, com datao estimada em 5,3 mil anos, poder trazer preciosas informaes sobre hbitos da populao das comunidades da regio. O homem de gelo, que recebeu o nome de Otzi, por causa de a rea em que foi encontrado se chamar Oetzal, se encontra no Museu da pequena cidade de Bolzano, na Itlia. Duas extraordinrias inovaes tcnicas ocorreram no perodo. A primeira foi a contagem provavelmente apenas soma e subtrao para fins de medio de peso, volume e rea, dadas as necessidades de comrcio e de armazenamento do excesso de safra, alm do requerimento de quantidade envolvida com a propriedade dos rebanhos de animais. Incipiente e precria, e fruto exclusivo das prementes necessidades comunitrias, a contagem, nesse estgio, foi um mero desenvolvimento tcnico. A segunda inovao, a escrita de signo, surgiu por volta de 3,5 mil antes da Era crist, na Mesopotmia (tbuas de argila em Uruk), dada a necessidade de consignar o conhecimento obtido nas diversas atividades, de registrar os principais acontecimentos e decises dos lderes da comunidade e de atender aos interesses comerciais. A transmisso oral, dependente da memria, era j insuficiente para esses propsitos, razo bastante para o desenvolvimento de uma tcnica capaz de satisfazer os interesses comunitrios. A inveno da escrita, instrumento fundamental na preservao e divulgao da cultura, um marco no47

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desenvolvimento da Humanidade, e serve, inclusive, como fecho do Perodo Pr-Histrico e momento inicial da Histria. Apesar de todo o desenvolvimento tcnico e acumulao de dados e informaes, compreensvel no ter surgido a Cincia no Perodo PrHistrico, porquanto no se tinham ainda reunido as condies necessrias para a transformao do conhecimento emprico em conhecimento cientfico. Seria contraditrio a uma comunidade grafa dispor de conhecimento terico e desenvolver um saber cientfico. A falta da escrita e de um esprito cientfico, crtico, analtico, foi suficiente para inviabilizar o nascimento da Cincia naquele contexto Pr-Histrico, mental e social. Avanos tcnicos (emprego de drogas extradas de ervas, trepanao) e observaes na rea da sade no podem ser considerados como indicao de algum conhecimento biolgico, como a ideia do nmero, evidncia de alguma capacidade de abstrao, no serve como momento da constituio da Cincia matemtica. Da mesma forma, o conhecimento de algumas plantas no cria a Botnica, ou de certos animais, a Zoologia. O que havia era uma tcnica, um conhecimento prtico, um empirismo sem qualquer abstrao dos princpios subjacentes. Assim, apesar dos incontestveis progressos tcnicos, a Cincia no foi criada nesse Perodo da Pr-Histria da evoluo humana. O surgimento das primeiras grandes civilizaes, s margens dos vales do Tigre e Eufrates, do Nilo, do Amarelo e do Indo e Ganges, incio do Perodo Histrico, beneficiou-se pela incorporao do adiantamento social, cultural e tcnico ocorrido em pocas anteriores, especialmente no Perodo arqueolgico Neoltico e na Idade dos Metais, nessas regies. Assim, no surgiram tais culturas por acaso ou por milagre nesses locais, nem desenvolveram esses povos seus conhecimentos e seu modo de vida sem uma base prvia; essas civilizaes primrias emergiram diretamente de seu passado neoltico13. H, assim, um legado importante, recebido no incio dos tempos histricos, que no deve ser esquecido ou desprezado, porquanto ele contm respostas para uma srie de indagaes sobre os primrdios do Homem, sua evoluo e suas realizaes, bem como sobre a emergncia das civilizaes primrias.

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JAGUARIBE, Helio. Um Estudo Crtico da Histria.

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Captulo I - A Tcnica nas Primeiras Grandes Civilizaes

As comunidades que se formaram nos frteis vales dos rios Eufrates e Tigre, do Nilo, do Amarelo e do Indo e Ganges, evoluiriam para um estgio relativamente avanado, origem das primeiras civilizaes da Histria, ou seja, das culturas da Mesopotmia, do Egito, da China e da ndia. Esse incio do processo civilizador s foi possvel a partir da inveno da escrita, por volta de 5,5 mil anos atrs, que ocorreria, de forma independente e quase simultnea, como uma necessidade social desses povos, provavelmente para registrar contas e operaes comerciais, acontecimentos polticos, religiosos e militares, e regras de convivncia social. O primeiro sistema de escrita, que utilizava um bambu talhado em forma de cunha sobre tbuas de argila mida (da o nome de escrita cuneiforme), foi inventado na Sumria, na regio Sul da Mesopotmia. Inicialmente, os sumrios usavam desenhos para representar cada objeto ou acontecimento, chegando, segundo os estudiosos, a 1.600 o nmero de pictogramas na escrita cuneiforme inicial. O sistema seria simplificado, depois, pelos prprios sumrios, com a aproximao da escrita ao som da palavra atravs de signos ou ideogramas. Por essa mesma poca, os egpcios inventariam os hierglifos, que escreviam com sinais grficos mais simples em papiros (rolos e folhas). Chineses e hindus criariam, tambm, nessa poca, sistema de escrita em ideogramas, a exemplo dos sumrios. A escrita alfabtica surgiria apenas no segundo milnio, com os fencios (22 letras), aperfeioada,49

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posteriormente, pelos gregos, com a introduo das vogais, num total de 24 letras. Apesar da complexidade da escrita por ideogramas, e de sua utilizao restrita a um pequeno grupo de iniciados (escribas), o papel da escrita, ao proporcionar o registro das tradies orais, substituindo, com evidentes vantagens, a memria como depsito principal do conhecimento, seria determinante e decisivo na passagem da Sociedade humana de um estgio cultural para um mais complexo, estimulante do exame e da crtica e exigente de novos processos de pensamento, como a abstrao. A partir da, o desenvolvimento cultural, econmico, tcnico e social dessas comunidades adquiriria novo ritmo, o que viria permitir o surgimento dessas civilizaes, dado que estariam preenchidas condies de urbanizao, estrutura social, comunidade de lngua, crena e costumes, e um sistema de contagem e de escrita. Dessas quatro grandes civilizaes, as duas primeiras duraram pouco menos de 4 mil anos. A civilizao da Mesopotmia terminaria com a conquista da Babilnia pelo Rei persa Ciro, em 539 a.C., e, posteriormente, pela submisso do Imprio Persa a Alexandre da Macednia, que expandiria a cultura grega na regio. A cultura mesopotmica seria gradativamente abandonada, at seus ltimos vestgios desaparecerem definitivamente, com a conquista de toda a regio, inclusive a Prsia, pelo Isl, nos sculos VII e VIII. A civilizao do Egito, iniciada com a unificao, por Mens (3150-3125), do Alto e Baixo Egito, entraria em crise a partir da conquista do Imprio por Alexandre, em 332, quando a influncia grega se firmaria, com o desenvolvimento de Alexandria como grande centro da cultura helnica sob a dinastia dos Ptolomeu. A derrota egpcia, em 31 antes da Era crist, na Batalha de cio, transformou o Imprio em mera provncia romana, o que agravaria, ainda mais, o grau de deteriorao e de decadncia da antiga cultura egpcia. Quando a regio foi invadida e dominada pelos rabes muulmanos (sculo VII), pouco ou quase nada restara da antiga civilizao. As outras duas grandes civilizaes, a da China e a da ndia, tm a particularidade de uma existncia de mais de 4 mil anos, resistindo a invases e dinastias estrangeiras e se mantendo at os dias atuais por um processo evolutivo prprio. At a proclamao da Repblica na China (1912) e da independncia da ndia (1947), os fundamentos de ambas as culturas, ainda que diferentes entre si, permaneceram atuantes e vlidos,50

A TCNICA NAS PRIMEIRAS GRANDES CIVILIZAES

ao longo desse processo histrico, o que explica a surpreendente continuidade dessas civilizaes at hoje. Os avanos dessas duas culturas sero, no entanto, examinados, neste Captulo I, desde seu incio at a poca aproximadamente correspondente ao final da Antiguidade Clssica greco-romana. Alm dessas quatro grandes civilizaes, uma curta referncia a outros povos e culturas da Antiguidade no Oriente Prximo consta de um captulo parte, se bem que a quase totalidade de estudos da Histria da Cincia no se ocupe desses povos, em vista de no terem contribudo para o desenvolvimento cientfico e tcnico da poca. Hititas, persas, fencios e hebreus foram, basicamente, caudatrios de tcnicas desenvolvidas por outros povos, mas tiveram algumas caractersticas e iniciativas que os diferenciaram das outras culturas: os fencios, pela inveno do alfabeto; os hebreus, pelo monotesmo; os hititas, pelo aproveitamento pioneiro do ferro; e os persas, pela criao de um formidvel Imprio. A Cincia uma criao grega, primeiro povo que demonstrou a necessria capacidade de abstrao e de racionalidade, inexistente em outras culturas da poca, para desenvolver um esprito inquisitivo, crtico e analtico, indispensvel para tal criao. A ausncia desses atributos nas culturas mesopotmica, egpcia, chinesa e hindu, bem como nas demais de mesma poca, explica no ter sido possvel a esses povos criar a Cincia. Fruto da imaginao, da capacidade inventiva e das demandas da Sociedade, essas quatro grandes civilizaes seriam capazes, contudo, de criar, aperfeioar e inovar, em diversos campos, atravs da Tcnica, o que lhes permitiria estabelecer as condies para o grande desenvolvimento de suas sociedad