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A Modernidade em Weber, Baudelaire e Water Benjamin
Abstract:Este pequeno artigo tem por meta principal introuzir elementos relativos ao conceito de
modernidade, conforme ele aparece nas produções teóricas e/ou literárias de dos autores
em questão. Procura-se, complementarmente, explorar as conexões e aproximações
possíveis entre os mesmos, tendo por fundamento a noção weberiana de
desencantamento do mundo.
O desenvolvimento do tema permite delinear a necessidade de uma pesquisa
sistemática sobre um outro conjunto de conceitos e categorias, de que são exemplos os
de racionalidade técnica, sociedade técnico-burocrática, aura, original e cópia,
autenticidade, unicidade, entre outros. Fica indicada, ainda, a necessidade de se situar a
modernidade desde um ponto de vista propriamente estético.
“Desencantamento, em alemão Entzauberung, significa literalmente “desmagificação”. Zauber quer dizer magia, sortilégio, feitiço, encantamento e por extensão encanto, enlevo, fascínio, charme, atração, sedução... Der Zauberer nomeia o mágico, o mago, o feitiço, o bruxo, o encantador. Enfeitiçar, embruxar ou encantar pode ser zaubern, verzaubern, bezaubern, anzaubern, e encantamento se traduz o mais das vezes por Verzauberung, Bezauberung e Zauberei, que como Zauber também quer dizer magia, feitiçaria, bruxaria, encantaria e assim por diante.”1
Max Weber
Max Weber2 se inspirou no verso do filósofo e poeta Friedrich von Schiller
(1705-1805), Die Entzauberung der Welt - o desencantamento do mundo -, para
explicitar sua concepção de Modernidade e o processo de racionalização da vida social
que a caracteriza. Valeu-se ainda dessa imagem para desenvolver suas formulações
sobre as relações problemáticas entre ciência e política, além de procurar estabelecer os
limites e as limitações da racionalidade científica.
1 PIERUCCI, Antônio Flávio. O desencantamento do mundo. São Paulo: USP, 2003. p.8.2 O sociólogo alemão Max Weber (1864 - 1920), além de ser o autor de obras essenciais para o estudo das ciências sociais, da economia, da religião e da história, desenvolveu conceitos e termos fundamentais, e até mesmo obrigatórios, para a reflexão e compreensão do período Moderno.
Para Weber, uma das dimensões do desencantamento do mundo é a superação
das visões originais e tradicionais – mágicas - pelo novo modo de vida, a um tempo
acelerado e industrializado, ou seja, pela “racionalização intelectualista” gerada pelo
progresso científico, sem o qual aquele modo de exitência seria impensáve.
“A intelectualização e a racionalização crescentes não equivalem, portanto, a um conhecimento geral crescente acerca das condições em que vivemos. Significam, antes, que sabemos ou acreditamos que, a qualquer instante, poderíamos, bastando que quiséssemos, provar que não existe, em princípio, nenhum poder misterioso e imprevisível que interfira com o curso de nossa vida; em uma palavra, que podemos dominar tudo, por meio da previsão. Equivale isso a despojar de magia o mundo. Para nós não mais se trata, como para o selvagem que acredita na existência daqueles poderes, de apelar a meios mágicos para dominar os espíritos ou exorcizá-los, mas de recorrer à técnica e à previsão. Tal é o significado essencial da intelectualização.”3
Weber acredita que o processo de modernização, o trabalho científico e, por
conseqüência, a expansão da racionalidade técnico-científica, estão diretamente ligados
ao progresso e tendem ao infinito:
“(...) toda obra científica “acabada” não tem outro sentido senão o de fazer surgirem novas “indagações”: ela pede, portanto, que seja “ultrapassada” e envelheça. Quem pretenda servir à ciência deve resignar-se a tal destino. (...) Repito, entretanto, que na esfera da ciência, não só nosso destino, mas também nosso objetivo é o de nos vermos, um dia, ultrapassados. Não nos é possível concluir um trabalho sem esperar, ao mesmo tempo, que outros avancem ainda mais. E, em princípio, esse progresso se prolongará ao infinito”.4 5
Para Weber o cientista que puser “todo o coração em sua obra, e só nela, elevar-
se à altura e à dignidade da causa que deseja servir”6, terá seu esforço igualado ao do
grande artista. Mas, apesar dessa comparação, Weber afirma que entre o trabalho
científico e o artístico existe uma diferença essencial:
“O trabalho científico está ligado ao curso do progresso. No domínio da arte, ao contrário, não existe progresso no mesmo sentido. Não é verdade que uma obra de arte de época determinada, por empregar recursos técnicos novos ou novas leis, como a da perspectiva, seja, por tais razões, artisticamente superior a uma outra obra elaborada com a ignorância daqueles meios ou leis (...). Uma obra de arte verdadeiramente “acabada” não será ultrapassada jamais, nem jamais envelhecerá. Cada um dos que a contemplem apreciará, talvez diversamente, a sua significação, mas nunca poderá
3 WEBER, Max. “A ciência como vocação”. In: Ciência e política, duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1972. p.30. (Grifos meus)4 Idem.5 Note-se que essa concepção de um novo caducente, que é continuamente superado pelo novo ainda mais novo, também está presente em Baudelaire e como ele em Walter Benjamin.6 Idem.
alguém dizer de uma obra verdadeiramente “acabada” que ela foi “ultrapassada”por uma outra igualmente “acabada”.7, 8
Weber “pretende liberar o campo da avaliação estética, onde se afirma nossa
liberdade, das determinações advindas da esfera da investigação científica.”9 Assim, o
conceito de progresso em Arte deve ser apenas compreendido no sentido de um
aprimoramento técnico e ser restringido às questões mais objetivas.
Ao analisar o contraste entre o passado e o presente, buscando estabelecer o
valor da Modernidade e da ciência, o sociólog alemão apercebe-se de que o processo de
racionalização ocasionado pelo desenvolvimento da ciência recai sobre si mesmo. A
ciência, contudo, encontra suas limitações, pois é incapaz de estabelecer valore ou
submetê-los ao seu regime de verdade.
“Qual é, afinal, nesses termos, o sentido da ciência enquanto vocação, se estão destruídas todas as ilusões que nela divisam o caminho que conduz ao ”ser verdadeiro”, à “verdadeira arte”, à “verdadeira natureza”, ao “verdadeiro Deus”, à “verdadeira felicidade”? (...) ela não tem sentido, pois que não possibilita responder à indagação que realmente nos importa – “Que devemos fazer? Como devemos viver?” De fato, é incontestável que resposta a essas questões não nos é tornada acessível pela ciência.”10
A formação de especialistas, dada através da autonomização dos campos de
conhecimento, como a cultura, por exemplo, é outro indício da Modernidade que deve
ser destacado na abordagem weberiana. O distanciamento da experiência comum e a
vida fragmentada determinada pela lógica própria às sociedades capitalistas também
marcam de modo trágico o destino da cultura Moderna.
Segundo Weber, Goethe11 já havia anunciado anteriormente esse destino trágico.
Para ele uma das grandes lições de Fausto é de que “a consciência implicava na
despedida de uma era de plenitude e beleza humana, que no decorrer de nosso
desenvolvimento cultural tem tão poucas chances de se repetir como a época de
florescimento da cultura ateniense da antiguidade.”12
7 Idem, p.29.8 Nesse sentido se pode enter a obra de arte como uma tentativa de superar a morte.9 MORAES, Eduardo Jardim de. “Notas sobre a contribuição de Weber para a definição de uma história e de uma sociologia da arte”. In: Gávea 2. Rio de Janeiro: PUC, 1985. p.27.10 WEBER, Max. Ciência e política, duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1972. p.35-6.11 Johann Wolfgang Goethe (1749 - 1832) viveu na época em que a Alemanha deu passos importantes em direção à modernização e à sua constituição como nação, começando a se tornar independente de culturas dominantes, como a inglesa e a francesa.12 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Livraria Pioneira, 1985. p.130.
Charles Baudelaire
A Modernidade e seus elementos constitutivos também estão na essência da obra
de Charles Baudelaire (1821-1867). Na verdade, o poeta seria um dos criadores do
termo ao tê-lo citado para melhor relatar as particularidades do artista moderno, e poder
pensar como a poesia e a arte se inserem em uma época tomada pela técnica, pelo
comércio e pelo progresso.
Em seus escritos íntimos Baudelaire questiona a própria noção de progresso e,
em outras ocasiões, o define como “dominação progressiva da matéria”,
responsabilizando-o pelo “decaimento progressivo da alma” e pela “atrofia do
espírito”13.
“Haverá algo mais absurdo do que acreditar no Progresso quando o gênero humano,
como podemos comprovar diariamente, continua semelhante e igual a si mesmo – isto é,
ainda no estado selvagem? O que são os perigos da selva ou os das pradarias
comparados com os choques e os atritos da civilização dos nossos dias?”14, 15
Para ele, o desenvolvimento industrial e seus produtos agem em detrimento das
artes. A poesia e o progresso são vistos como duas forças opostas capazes de se
subjugarem, caso cruzem no mesmo caminho. Em seu poema em prosa “Perda da
Auréola”, Baudelaire indica esse embate entre a poesia e a Modernidade:
“(...) Ainda há pouco, quando atravessava a toda pressa o bulevar, saltitando na lama, através desse caos movediço onde a morte surge a galope de todos os lados a um só tempo, a minha auréola, num movimento precipitado, escorregou-me da cabeça e caiu no lodo do macadame. Não tive coragem de apanhá-la. Julguei menos desagradável perder minhas insígnias do que ter os ossos rebentados. De resto, disse com os meus botões, há males que vêm para o bem. Agora posso passear incógnito, praticar ações vis, e entregar-me à crápula, como os simples mortais. (...) Depois, alegra-me pensar que talvez algum mau poeta encontre a auréola e com ela impunemente se adorne. Fazer alguém feliz, que prazer!”16
13 FRIEDRICH, Hugo. “Baudelaire”. In: Poesia e Prosa – Charles Baudelaire. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 1035.14 BAUDELAIRE, Charles. “Projéteis e Meu coração nu”. In: Poesia e Prosa – Charles Baudelaire. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 514.15 A noção de choque também é muito cara a Waler Benjamin, quando procura caracterizar a modernidade, assim como a escrita e estética que lhe corresponde.16 BAUDELAIRE, Charles. “Perda da Auréola”. In: Poesia e Prosa – Charles Baudelaire. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 333.
Ao deixar a auréola cair no lodo, o poeta nos mostra que a poesia deixou de
pertencer às esferas superiores para dedicar-se às trivialidades do mundo. O poeta
perdeu o vínculo com o sagrado quando sua subjetividade e vivências viraram
mercadoria à espera de um comprador. O que antes era consagrado ao lírico e
confirmava sua descendência divina passou a “adornar impunemente” o mau poeta que
hoje transita feliz pela metrópole.
No caso das artes plásticas, Baudelaire considera a fotografia, representante da
indústria, sua maior inimiga. Apesar de nada terem em comum, se os limites entre elas
fossem rompidos, a arte acabaria cedendo aos apelos da reprodução exata da natureza.
A nova técnica de Daguerre seria, então, eficaz para valorizar a vaidade de uma
burguesia que ignora arte e se rende à pintura ilusionista.
Através de críticas incisivas, Baudelaire alerta sobre o impacto da reprodução
técnica das obras de arte sobre as massas: o público moderno, obcecado pelas cópias da
natureza, passou a se satisfazer com uma simples gravura e a acreditar que uma imagem
é o bastante para se conhecer o trabalho dos grandes mestres. Ele se opõe às tendências
da época, que pretendiam colocar a arte ao alcance de todos com a ajuda da fotografia e
declara que “algum escritor democrata deve ter visto aí o meio barato de disseminar
entre o povo a aversão pela história e pela pintura.”17
No Salão de 1859, Baudelaire escreve que o papel da fotografia deveria ser
restringido ao de serva da ciência e da arte, assim como a imprensa é da literatura. Ela
deveria ser usada somente como registro para reavivar nossas memórias e para
conservar as ruínas corroídas pelo tempo. “Se lhe for permitido invadir o campo do
impalpável e da imaginação, aquilo que vale somente porque o homem acrescenta algo
da própria alma, então, pobre de nós.”18
Contudo, a noção de Modernidade em Baudelaire não é constituída apenas pelos
aspectos negativos do desenvolvimento. Ela é ambivalente pois também aponta para o
encanto e a magia existentes em meio à banalidade e à efemeridade da vida moderna:
“No enrugado perfil das velhas capitais,Onde até mesmo o horror se enfeita de esplendores,Eu espreito, obediente a meus fluidos fatais, Seres decrépitos, sutis e encantadores.
Esses monstros já foram mulheres um dia,
17 BAUDELAIRE, Charles. “Salão de 1859”. In: Poesia e Prosa – Charles Baudelaire. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 802.18 Idem, p. 803.
Eponina ou Laís! Recurvos ou corcundas,Amemo-los assim – almas em agonia!Sob os frios andrajos e as saias imundas (..)”19
Walter Benjamin acredita que Baudelaire “não teria escrito poemas se só tivesse
tido os temas poéticos que os poetas habitualmente têm.”20 Ele é capaz não só de ver a
decadência do homem e a artificialidade da cidade, mas também de encontrar a
misteriosa beleza moderna que marca sua poesia. A Modernidade se mostra
problemática não por causa de suas sarjetas, prostitutas, asfaltos, velhos e solitários
porque esses possuem a “beleza particular” ou a “beleza de circunstância”. Seu
problema reside nas promessas duvidosas que garantem que a exatidão, proporcionada
pela indústria e pela fotografia, poderia substituir o que é imaginativo, fantasioso, o que
é visto com os olhos do homem.
Walter Benjamin
Baseado na noção do “fim da arte” de Hegel (1770-1831), nas teses de Max
Weber e influenciado pelos escritos de Baudelaire, Walter Benjamin formulou os
conceitos centrais de sua estética. Assim como Heidegger, Adorno e inúmeros filósofos,
Benjamin se debruça sobre a crise da arte e especula sobre o papel secundário ao qual
ela está aparentemente destinada.
Como vimos, para Weber, o processo de racionalização, iniciado com a
Modernidade, resultou no desencantamento geral do mundo e fez com que a arte ficasse
à sombra da ciência, restrita à esfera privada.
Walter Benjamin, apesar de utilizar as reflexões de Weber, não se coloca como
observador do “desencantamento” da arte. Antes de tudo, ele tenta determinar as
transformações que envolvem a produção, os meios técnicos e a recepção da obra,
situando-a na época moderna e segundo a realidade industrial.
Ao escrever a Pequena história da fotografia, Benjamin desenvolve de sua
teoria recorrendo ao conceito de “aura”, que logo se tornará a principal chave para seus
textos estéticos e, pela primeira vez busca defini-lo:
19 BAUDELAIRE, Charles. “As flores do mal”. In: Poesia e Prosa – Charles Baudelaire. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 176.20 BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do Capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 158.
“Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que ela esteja.”21
Entretanto, ao longo desse e de outros textos, como A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica e Sobre alguns temas em Baudelaire, Walter Benjamin adota
uma postura ambivalente e, até mesmo, paradoxal em relação ao que seria a aura e o seu
declínio. Em determinados momentos o fenômeno é visto de maneira positiva, sem
restrições, e em outros se nota uma certa melancolia, um ar negativo.
Tal variação é bem comum, tanto no meio erudito quanto no popular, pois as
aplicações do termo “aura” são muitas e diversas. Ele pode ser utilizado no campo da
medicina, do espiritismo, da metapsicologia e das crenças lendárias; na mitologia grega
as aurae são as filhas de Éolo, sopros de ar, brisas; simbolicamente a aura está ligada ao
sobrenatural e indica algo sagrado, dotado de luz divina.
Walter Benjamin foi o primeiro pensador a atribuir um significado filosófico à
palavra, o que ocorre por volta de 1930, momento em que se ocupa de modo particular
em teorizar a Modernidade. Na Pequena história da fotografia o filósofo dá a definição
clássica do termo, como foi dito, e, com bases em uma reconstrução histórica da
fotografia, discute as mudanças sofridas pela obra de arte, as causas do “declínio” e,
principalmente, o valor mágico da fotografia em oposição à racionalidade técnica.
Ao montar uma pequena história, Benjamin está mais interessado em
compreender as questões filosóficas ou históricas que surgiram com a fotografia do que
traçar sua trajetória ao longo dos anos. Aqui a fotografia aparece não como sendo
apenas um procedimento formal ou técnico, capaz de levantar debates sobre o fim da
arte, mas como objeto digno de ser estudado através da filosofia.
No texto, Benjamin conta à história da fotografia a partir dos seus momentos
mais relevantes: o período de seu surgimento, em 1839, quando ainda se chamava
daguerreótipo e não havia sido industrializada; o período que é considerado próspero e,
ao mesmo tempo, decadente, já que a produção industrial começou a priorizar a
quantidade de fotografias e não sua qualidade; e a fase em que a busca pela qualidade da
imagem é retomada, principalmente pelo fotógrafo Eugène Atget (1857-1927).
Inicialmente, Benjamin usa os retratos de David Octavius Hill (1802-1870) para
exemplificar a existência da aura em fotografias antigas e para nos mostrar que “a
técnica mais exata pode dar às suas criações um valor mágico que um quadro jamais
21 BENJAMIN, Walter. “Pequena história da fotografia”. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996. p.101.
terá para nós”.22 Segundo ele, as condições da época exigiam um longo período de
exposição para que a luz sensibilizasse as chapas, o que criava “o continuum absoluto
da luz mais clara à sombra mais escura”23. Ao contrário do que acontece com a
fotografia moderna, ainda não havia a correspondência com o instantâneo. Um bom
resultado não dependia do acaso ou das frações de segundos, e os modelos, durante a
pose, eram levados a viver a duração do processo, a crescer dentro da imagem, a
participar de um momento planejado para durar.
Com a modernização da técnica e o aumento da fabricação de equipamentos,
ocorreram uma série de mudanças no processo fotográfico que contribuíram para a sua
popularização. A nova temporalidade do ato, a simplificação dos procedimentos
técnicos e o barateamento dos aparelhos e das fotos fizeram crescer o número de
profissionais movidos mais pelo lucro do que pelo desejo de obter boas imagens.
Benjamin destaca, nesse segundo momento histórico, a produção de retratos
fotográficos sem qualidade, que atendiam aos burgueses que queriam ter o mesmo
direito da aristocracia, o de ter sua imagem para a prosperidade. Essa demanda, aliada à
falta de parâmetros visuais e de uma sintaxe própria, fez com que os fotógrafos usassem
o código da pintura, tirassem partido de sua tradição, e contribuíssem, assim, para
fomento das discussões sobre a conturbada relação entre a fotografia e a pintura.
“Como a indústria fotográfica era o refúgio de todos os pintores fracassados, sem talento ou demasiado preguiçosos para concluírem seus esboços, essa mania coletiva possuía não só o caráter de cegueira e imbecilidade, mas assumia também o gosto de uma vingança. (...) Estou convencido de que os progressos mal aplicados da fotografia contribuíram bastante, como aliás todo progresso puramente material, para o empobrecimento do gênio artístico francês, já tão raro.”24
Nesse contexto de empobrecimento da imagem fotográfica, surgiu o que
Benjamin chamou de “ilusão da aura”. Uma série de aparatos começaram a ser
utilizados nos estúdios para ambientar as pessoas retratadas e diversas técnicas de
retoques foram desenvolvidas para evocar a aura dos tempo antigos. Ocorreu uma
espécie de movimento de reconstrução do mistério extraviado, uma busca pela
temporalidade perdida, pela individualidade tomada pelas massas.
22 Idem, p.94.23 Idem, p 98.24 BAUDELAIRE, Charles. “Salão de 1859”. In: Poesia e Prosa – Charles Baudelaire. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 802.
Como fruto dessa época de declínio, aparece o emblemático retrato de infância
de Franz Kafka, que “contrasta com as primeiras fotografias, em que os homens ainda
não lançavam no mundo (..) um olhar desolado e perdido”. Segundo Benjamin, “havia
uma aura em torno deles, um meio que atravessado por seu olhar lhes dava uma
sensação de plenitude e segurança”.25
O trabalho do francês Atget surge em oposição a essa tendência de declínio e
inaugura uma espécie de período de purificação da imagem fotográfica. É através de
reflexões sobre sua obra que Walter Benjamin aprofunda o conceito de aura, iniciado
nas observações sobre o retrato de Kafka. Segundo ele, Arget “foi o primeiro a
desinfetar a atmosfera sufocante difundida pela fotografia convencional, especializada
em retratos, durante a época da decadência. Ele saneia essa atmosfera, purifica-a:
começa a libertar o objeto de sua aura, nisso consistindo o mérito mais incontestável da
moderna escola de fotográfica.”26 Seu valor está em acabar com os artifícios e voltar
novamente a fotografia para os aspectos da realidade.
Enfim, para Benjamin, a noção de aura passa por três fases distintas ao longo da
história da fotografia. Na primeira fase, a aura é identificada como autêntica, como uma
qualidade estética resultante da adequação entre o objeto e a técnica utilizada nos
antigos retratos, e por isso, é historicamente determinada. No momento seguinte, essa
aura primitiva entra em crise e tenta ser restaurada pelos fotógrafos através de artifícios
ilegítimos, do estabelecimento de uma pseudo-aura que simboliza as aspirações
burguesas. E por último, o terceiro período, o da destruição da aura, louvado por
Benjamin por ser a liquidação da falsa aura e não a da aura autêntica.
Passados quatro anos, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica
retoma o tema da aura e estabelece ligações mais estreitas com a tese do
desencantamento do mundo de Max Weber.
Este novo texto surgiu com o objetivo de estudar as mudanças ocorridas no
conceito de aura e na história da arte depois do surgimento dos meios de reprodução
técnica. Agora a aura não aparece associada somente à fotografia e a um determinado
período histórico, ela é observada como uma característica própria de toda obra de arte,
desde suas origens mágicas e religiosas até o momento em que sucumbe aos termos de
sua reprodutibilidade técnica.
25 BENJAMIN, Walter. “Pequena história da fotografia”. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 98.26 Idem, p.101.
Para iniciar suas reflexões sobre como as condições produtivas interferiram no
domínio da arte, Benjamin aborda a questão da autenticidade em oposição à
reprodutibilidade. Para ele, as noções de autenticidade, de unicidade e de tradição estão
diretamente ligadas:
“Mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra. É nessa existência única, e somente nela, que se desdobra à história da obra. (...) O aqui e agora do original constitui o conteúdo da sua autenticidade, e nela se enraíza uma tradição que identifica esse objeto, até nossos dias, como sendo aquele objeto, sempre igual e idêntico a si mesmo. A esfera da autenticidade, como um todo, escapa à reprodutibilidade técnica, e naturalmente não apenas à técnica.”27
Ou seja, um objeto só é capaz de constituir uma tradição e uma história pela sua
unicidade, e é através dessa qualidade que ele se torna autêntico. A reprodução pelas
novas técnicas ataca justamente a existência única e rompe o elo entre a obra a tradição,
mesmo quando preserva o conteúdo dessa obra. Ela substitui a singularidade pela
produção serial, o que, conseqüentemente, causa a atrofia da aura da obra de arte, afirma
Benjamin.
Neste ponto, o conceito de aura se une ao de autenticidade para indicar que
determinada obra é superior por ser única e por estar inserida em uma tradição, mas
logo Benjamin estende a idéia de aura ao domínio da natureza para pensar o seu
declínio:
“Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho. Graças a essa definição, é fácil identificar os fatores sociais específicos que condicionam o declínio da aura. Ele deriva de duas circunstâncias, estritamente ligadas à crescente difusão e intensidade dos movimentos de massas. Fazer as coisas “ficarem mais próximas” é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade.”28
Ao aplicar a aura à natureza, nos é oferecida à possibilidade de encará-la de
maneira particular, como uma experiência individual que independe da materialidade do
objeto. Assim, Benjamin toca na extraordinária impressão que a aparição da aura causa
em nós e nos dá abertura para pensá-la em relação à percepção e também a um contexto
místico.27 BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996. p.167.28 Idem, p.170.
Na parte intitulada “Ritual e política”, podemos verificar a forte presença da
estética de Hegel - que considera a religião a essência da obra de arte - nas teorias de
Benjamin. Neste trecho é destacado o alicerce teológico da obra de arte, constituído a
partir de suas funções mágicas e religiosas. Para Benjamin, o caráter aurático de uma
obra não é totalmente separável de sua origem ritual porque “a forma mais primitiva de
inserção da obra de arte no contexto da tradição se exprimia no culto.”29
Contudo, com o surgimento revolucionário da fotografia, “a obra de arte se
emancipa, pela primeira vez na história, de sua existência parasitária, destacando-se do
ritual.”30 A produção de cópias, proporcionada pelo advento da reprodução técnica,
elimina o caráter singular das obras e esgota as idéias de autenticidade e tradição.
“A afirmação Existem obras de arte quer portanto dizer que, historicamente, a arte realizou-se por completo, que se sentido já não é vivido no modo de uma presença imediata. Em outras palavras, que ela não está viva, mas morta, exibida fora de seus locais de origem, como signo de um período que não é mais nosso (...).”31
Acontece, então, a destruição da aura, o desencantamento da arte, a liquidação
de seu valor de culto. Aqui, também é evidente a aproximação dos princípios
fundamentais de Weber e Walter Benjamin. Para ambos, a Modernidade, o processo de
racionalização e suas implicações são os responsáveis pela e extinção da magia, tanto da
arte quanto do mundo. Agora “não mais se trata, como para o selvagem que acredita na
existência daqueles poderes, de apelar a meios mágicos para dominar os espíritos ou
exorcizá-los, mas de recorrer à técnica e à previsão.”32
Outros pontos da arte atingidos pelo desenvolvimento dos modos de reprodução
foram os valores de culto e de exposição. Segundo Benjamin, eles seriam pólos opostos
e através da análise da transferência do peso de um para o outro seria possível
reconstituir a história da arte:
“A produção artística começa com imagens a serviço da magia. O que importa, nessas imagens, é que elas existem, e não que sejam vistas. (...) À medida que as obras de arte se emancipam do seu uso ritual, aumentam as ocasiões para que elas sejam expostas. (...) A exponibilidade de um quadro é maior que a de um mosaico ou de um afresco, que o precederam.”33
29 Idem, p.171.30 Idem.31 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. In: BRAS, Gerard. Hegel e a Arte – uma apresentação à Estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. p. 28.32 WEBER, Max. “A ciência como vocação”. In: Ciência e política, duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1972. p.30.
Os recursos oferecidos pela reprodutibilidade foram capazes de aumentar o valor
de exposição de uma obra a ponto de suplantar, finalmente, o valor de culto. Por isso,
Benjamin compara a arte pré-histórica com a arte reproduzida tecnicamente e nos alerta
para a necessidade de uma refuncionalização:
“Assim como na pré-história a preponderância absoluta do valor de culto conferido à obra levou-a a ser concebida em primeiro lugar como instrumento mágico, e só mais tarde como obra de arte, do mesmo modo a preponderância absoluta conferida hoje a seu valor de exposição atribui-lhe funções inteiramente novas, entre as quais a “artística”, a única de que temos consciência, talvez se revele mais tarde como secundária.”34
Adiante, o autor retoma a questão da aura dos retratos antigos, já discutida na
Pequena história da fotografia, juntamente com as reflexões sobre os valores de culto e
de exposição, para tratar da sua última aparição:
“Com a fotografia, o valor de culto começa a recuar, em todas as frentes, diante do valor de exposição. Mas o valor de culto não se entrega sem oferecer resistência. Sua última trincheira é o rosto humano. Não é por acaso que o retrato era o principal tema das primeiras fotografias. O refugio derradeiro do valor de culto foi o culto da saudade, consagrada aos amores ausentes ou defuntos. A aura acena pela última vez na expressão fugaz de um rosto, nas antigas fotos. (...) Porém, quando o homem se retira da fotografia, o valor de exposição supera pela primeira vez o valor de culto.”35
É necessário observar que tal aura, a que resiste nos retratos antigos, deve ser
atribuída ao valor mágico das fotografias antigas, e não aos conceitos de autenticidade,
unicidade ou ao valor de culto, tratados anteriormente. Nesse sentido, a perda da aura na
fotografia, não é explicada tecnicamente mas é justificada com a retirada do homem na
fotografia, o que ultrapassa a oposição entre autenticidade e reprodução.
Aqui, nos defrontamos, mais uma vez, com a ambigüidade do conceito de aura
de Walter Benjamin. Entretanto, esse caráter contraditório se torna aceitável quando
observamos que poderia ser uma espécie de reflexo das condições conturbadas de sua
época, assim como também aconteceu com Baudelaire e a Modernidade. No ensaio A
obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica encontramos outros diversos pares
bipolares que também marcam sua postura ambivalente, como imagem-cópia, recepção
óptica-recepção tátil, contemplação-distração, entre outros.
33 BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996. p.173.34 Idem.35 Idem, p.174.
Verificamos, então, que a fotografia é um meio híbrido na qual reprodutibilidade
técnica e magia ainda não estão totalmente dissociados. Talvez resida aí o fascínio que a
imagem fotográfica exerce, até hoje, nos artistas e nos estudiosos.
O importante é fixar a influência da fotografia no meio artístico em geral, desde
seu surgimento até sua assimilação, como um meio de ampliação e alargamento das
possibilidades criativas da arte e do repertório visual. Não se trata mais de retomar as
discussões do século XIX entre a pintura e a fotografia, de questionar se ela é ou não
arte, mas de pensar a fotografia como “uma verdadeira categoria de pensamento,
absolutamente singular e que introduz a uma relação específica com os signos, o tempo,
o espaço, o real, o sujeito, o ser e o fazer.”36
36 DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Campinas: Papirus, 2003. p. 60.