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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO THAÍS GUERRA LEANDRO A DESCRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE DROGAS ILÍCITAS PARA CONSUMO PESSOAL E O ESTIGMA DO USUÁRIO: UMA ANÁLISE COMPARADA. ORIENTADOR: PROF. DR. DANIEL PACHECO PONTES RIBEIRÃO PRETO 2015

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO

THAÍS GUERRA LEANDRO

A DESCRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE DROGAS ILÍCITAS PARA CONSUMO

PESSOAL E O ESTIGMA DO USUÁRIO: UMA ANÁLISE COMPARADA.

ORIENTADOR: PROF. DR. DANIEL PACHECO PONTES

RIBEIRÃO PRETO

2015

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THAÍS GUERRA LEANDRO

A DESCRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE DROGAS ILÍCITAS PARA CONSUMO

PESSOAL E O ESTIGMA DO USUÁRIO: UMA ANÁLISE COMPARADA.

Trabalho de Conclusão de Curso

apresentado à Faculdade de Direito de

Ribeirão Preto da Universidade de São

Paulo como requisito para a obtenção do

título de bacharel em Direito.

Área de Concentração: Direito Penal e

Criminologia.

Orientador: Prof. Dr. Daniel Pacheco

Pontes, do Departamento de Direito

Público (DPP) da Faculdade de Direito de

Ribeirão Preto da Universidade de São

Paulo.

RIBEIRÃO PRETO

2015

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FICHA CATALOGRÁFICA

Leandro, Thaís Guerra

A descriminalização do porte de drogas ilícitas para consumo pessoal e o

estigma do usuário: uma análise comparada. Ribeirão Preto, 2015.

166 p. ; 30 cm

Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado à Faculdade de

Direito de Ribeirão Preto/USP.

Orientador: Pontes, Daniel Pacheco.

1. A Sociologia do Desvio e os processos de criminalização dos

usuários de drogas 2. A Criminologia Crítica 3. Uma política

criminal alternativa 4. A política criminal de drogas no Brasil 5.

A política criminal de drogas portuguesa 6. Porto e o olhar

direcionado à saúde 7. Ribeirão Preto e as audiências coletivas

.

1. empresas sociais 1. 2. negócios sociais 2. 3. economia solidária

3. I. Título.

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Nome: LEANDRO, Thaís Guerra.

Título: A descriminalização do porte de drogas ilícitas para consumo pessoal e o estigma

do usuário: uma análise comparada

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Direito

de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo como requisito para a

obtenção do título de bacharel em Direito.

Aprovada em:

Banca Examinadora

Prof. Dr. __________________________________ Instituição:________________________

Julgamento: _______________________________ Assinatura: ________________________

Prof. Dr. __________________________________ Instituição:________________________

Julgamento: _______________________________ Assinatura: ________________________

Prof. Dr. __________________________________ Instituição:________________________

Julgamento: _______________________________ Assinatura: ________________________

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À Deus, por tudo o que Ele é.

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Eu quase que nada não sei, mas desconfio de

muita coisa. Guimarães Rosa.

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AGRADECIMENTOS

Escrever os agradecimentos, não nego, é uma das minhas partes preferidas. Não sei

se porque aqui é possível escrever em primeira pessoa sem medo, ou se é porque enquanto

escrevo lembro-me de alguns momentos ótimos e marcantes e também de pessoas muito

especiais, que fizeram esse caminho possível e delicioso.

Aprendi com a professora Ana Gabriela Mendes Braga que é necessário reconhecer

quais as motivações pessoais que nos levaram à escolha de um determinado tema. Antes de

prosseguir, aproveito para agradecer à Ana, que já seria merecedora pelo simples fato de ser

uma mulher tão inspiradora. Como se não bastasse, ela perdeu (e eu ganhei) um intervalo no

Seminário do Ibccrim de 2015 para ouvir minhas dúvidas a respeito dessa pesquisa e fez

algumas considerações extremamente válidas e pontuais. Pela atenção, pelo carinho, pela

humildade e por ser quem é, muito obrigada, Ana.

Sempre esteve claro pra mim qual foi o processo que me levou a pesquisar esse tema.

Apesar de ainda não ter reconhecido o objeto de pesquisa em mim, eu sei de onde veio essa

curiosidade sobre o tema. A defesa da legalização e regulamentação do comércio de drogas

ilícitas foi a minha primeira opinião progressista, por isso me marcou tanto.

Entrei na faculdade coberta de certezas e de lugares comuns, que começaram a ser

desconstruídas em uma palestra dada pelo Pedro Abramovay e pelo Denis Russo Burgiemann

na faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP. Logo após a palestra, li o livro do Denis,

“o fim da guerra”, e tive certeza: tudo o que eu sabia sobre o assunto deveria ser questionado.

Aos dois fica aqui o meu agradecimento, por terem plantado naquela aluna do segundo ano

um tema que me acompanharia por quase todo o resto da faculdade.

No início do terceiro ano, comecei a estagiar na Defensoria Pública Estadual e

percebi que a grande maioria dos processos estava relacionada às drogas: todos os dias eu

tinha contato processos de pessoas acusadas de tráfico ou uso de drogas – o uso sempre estava

relacionado à suposta prática de outros crimes. Dos tempos de defensoria fica aqui o meu

agradecimento ao Rafael Bessa Yamamura, que foi meu chefe pelas escolhas randômicas da

vida, mas que eu teria escolhido se me dessem a opção. Obrigada por ter me ensinado a

humanidade no trato aos nossos “assistidos”, pela paciência com a estagiária que mal sabia o

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que estava fazendo, pela visita à Fundação Casa e pela palestra inspiradora dada no

whorkshop da Faculdade de Direito. Muito obrigada. “Este caminho tem coração. Se tem, é

um caminho bom”.

Nessa época eu já estava decidida: iria para Portugal fazer intercâmbio na Faculdade

de Criminologia da Universidade do Porto e realizar estágio na CDT do Porto. Pela realização

desse sonho, eu agradeço à tia Glauce, que se não é minha tia de sangue, o é de coração. Tia,

obrigada por todo o empenho para que a minha viagem desse certo, obrigada pelo carinho e

pelo amor. Se hoje esse trabalho está escrito, é porque um dia você me mandou mensagem

falando que eu podia ficar tranquila porque você me ajudaria para que tudo desse certo. E deu.

Agradecimentos também aos meus tios Fábio e Fernando, que tornaram possível a

concretização do intercâmbio.

Portugal, ah Portugal, deixe que se mostre Portugal, que me ensinou que é possível

ter dois países do coração. Se eu já gostava de Portugal por ter me dado Fernando Pessoa,

descobri outros vários portugueses que me colocam no dever de amar Portugal.

Ao professor Jorge Quintas, que muito educadamente me auxiliou nessa pesquisa,

muito obrigada. À Cristina, Nana, Tereza, Maria Eduarda, Carla e à Kátia, minhas amigas da

CDT, agradeço por terem me recebido tão bem, por terem tirado as minhas dúvidas, me

ensinado da cultura portuguesa – inclusive a gostar do sotaque -, me fornecido material de

estudo e por terem aberto às portas da Comissão para uma menina que veio de longe com uma

conversa de criminalização da pobreza. A riqueza desse trabalho é a contribuição dada por

vocês.

Em Portugal também conheci amigos que levo para a vida e que me ensinaram

muito. Nossos jantares eram cheios de debates políticos e desconstrução de preconceitos.

Lucas, Leandro, Guilherme e Pet, muito obrigada. Ao Ewerton, duas frases especiais: que

bom que tive você do primeiro ao último dia. Obrigada por todo o ensinamento e

desconstrução.

Ao professor Daniel Pacheco Pontes, que esteve ao meu lado desde o primeiro ano

de faculdade, todo o meu carinho e admiração. Você acreditou em mim quando nem eu sabia

que gostava de pesquisar e me deu a oportunidade de fazer uma iniciação científica. Obrigada

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por ter sido o professor que eu sempre soube que poderia contar para tudo. Mais que um

docente, um amigo.

À professora Fabiana Severi, por toda a paciência e por acreditar que nós podemos

ser lapidados. Fabi, todas as lágrimas que eu derramei nas suas aulas serviram para me

incomodar mais, para me empoderar mais, para reconhecer mais os meus privilégios, para

entender que a luta nunca pode parar. Obrigada por todas as deliciosas leituras obrigatórias e

pelas rodas de conversa. Espero nunca ser uma “pinscher engomada”. Espero que você nunca

desista de nós e que em cada início de ano você veja aqueles olhinhos brilhantes e curiosos

que te dão forças para continuar.

À Gabi, obrigada pela amizade, pelas conversas, pelo apoio, por acreditar. Obrigada

pelo lindo trabalho com os usuários de crack e por me fazer acreditar que é possível conciliar

a advocacia com um trabalho empírico na academia. Obrigada pelas dicas e ajuda no meu

Tcc. Obrigada pelo Zaratustra e pelo desassossego constante. Que possamos ser boca para

todos os ouvidos.

À minha família, que sem entender muito bem o que eu estudo, sempre achou que eu

sonhava demais e sempre acreditou nos meus sonhos. Ao papai, que é a pessoa no mundo que

mais acredita em mim. À mamãe, que deixou de viver os seus sonhos para que eu realizasse

os meus. Ao Emanuel e ao Gabriel, pela amizade de quem tem o mesmo sangue. Nenhuma

palavra expressa aqui o tamanho da minha dívida, nem da minha gratidão.

Aos meus companheiros do laboratório do Ibccrim, a quem agradeço na pessoa do

professor Eduardo Saad Diniz. Se eu cheguei até aqui, boa parcela de responsabilidade é de

vocês, que abriram mão de tantas sextas feiras para estudar direito penal e criminologia.

Ao Theuan, amigo que eu não sei se ganhei da Defensoria ou do Laboratório do

Ibccrim. Esse trabalho não estaria pronto sem você. Obrigada por compartilhar comigo o

amor pela crítica ao Direito Penal e à criminologia crítica. Obrigada por ter lido tudo, por

todas as correções, dicas, puxões de orelha e apoio. Obrigada por me acalmar quando parecia

que não ia dar certo, por apertar o freio quando eu queria acelerar, por delimitar um assunto

quando eu queria falar de tudo. Obrigada por me estar sempre comigo e me levar sempre com

você. Por todo o companheirismo, você tem a minha amizade e o meu agradecimento sincero.

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Aos meus amigos, que aqui agradeço na pessoa da Juliana, do Júnior. Vocês fizeram

essa caminhada muito mais linda, deliciosa e divertida. Nesse parágrafo não posso nomear

mais pessoas, porque ao longo dessa pesquisa foram incontáveis as vezes em que alguém me

enviou um artigo ou uma pesquisa à respeito das drogas, que me encontrou no corredor pra

dizer que tinha lido algo e lembrou da minha pesquisa. Incontáveis foram aqueles que me

ouviram e que discutiram comigo. Por toda a paciência com uma pesquisadora que amou falar

da sua pesquisa, por todos os jantares, corridas, correrias, viagens, opiniões, brigas, séries,

sorrisos, sorvetes no Jô, lágrimas, provas, por tudo. Amo vocês. Aos Jus, obrigada por

dividirem a vida comigo e serem amigos mais chegados que irmãos.

À Deus, por todas as promessas que se cumpriram, por me ensinar o que é o amor,

por todas as palavras de consolo quando as lágrimas caíram e o desespero bateu. Por todas as

vitórias, pela saúde, por estudar nessa faculdade, por ter conhecido todas essas pessoas.

Obrigada por tudo o que tu és e por me amar mesmo sendo quem eu sou.

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RESUMO

A política proibicionista das drogas tem se mostrado ineficaz em todo o mundo.

Buscando reduzir os efeitos nefastos que essa política tem causado nos usuários de drogas

ilícitas, alguns países do mundo optaram por descriminalizar o uso de drogas. Um desses

países foi Portugal, que além de descriminalizar legalmente o uso de drogas ilícitas, criou um

sistema de políticas públicas para aproximar os usuários do sistema de saúde. O Brasil, por

sua vez, ainda mantém a criminalização do porte de drogas ilícitas para consumo pessoal, de

modo que o usuário ainda é tratado como um criminoso. A criminalização do uso de drogas,

contudo, além de desrespeitar princípios constitucionais como o da intimidade e da lesividade,

ainda opera de modo a estigmatizar o usuário selecionado pelo sistema penal. Por ser seletivo,

o Direito Penal seleciona substâncias a serem proibidas e indivíduos a serem processados.

Tudo isso culmina em um processo que além de não aproximar o usuário do sistema de saúde,

gera mais marginalização e estigmatização. Portugal, ao aproximar o usuário do sistema de

saúde e preparar profissionais para lidar com ele, retira o estigma de criminoso do usuário e

oferece um tratamento individualizado e humano. A pesquisa analisou as legislações

referentes a drogas dos dois países e apresentou perspectivas criminológicas para a

descriminalização do porte de drogas ilícitas para consumo pessoal. O trabalho se deu por

meio de investigação bibliográfica e empírica – através de audiências com usuários de drogas

assistidas no Brasil e em Portugal e buscou apresentar uma política criminal alternativa à que

tem sido utilizada no Brasil.

Palavras Chaves: Descriminalização, Porte de drogas ilícitas para consumo pessoal, Política

de drogas.

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ABSTRATCT

The drugs prohibition policy have been ineffective in the world. Seeking to reduce the

harmful effects that this policy has inflicted on the users of illicit drugs, some countries have

chosen to decriminalize drugs use. One of these countries is Portugal, which in addition to

decriminalize the use of illicit drugs, has created a system of public policies to bring closer

users to the health system. Brazil, for its turn, still criminalizes the possession of illicit drugs

for personal use, so that the user is still treated like a criminal. The criminalization of drug

use, however, and disregarding constitutional principles such as intimacy and harmfulness,

still operates to stigmatize the user selected by the penal system. Due to it is selective, the

Criminal Law selects substances to be banned and individuals to process. All of this

culminates in a process that in addition to not approximate the user to the health system,

generates more marginalization and stigmatization. Portugal, by approximating the user to

the health system and preparing professionals to deal with it, removes the criminal

stigma and offers an individualized and humane treatment for the user. The research

analyzed the laws relating to drugs of the two countries and presented criminological outlook

for the decriminalization of illicit drugs for personal use. The work was based on literature

and empirical research - through watching hearings with drug users in Brazil and Portugal and

sought to present an alternative criminal policy to the one applied in Brazil.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................. 23

METODOLOGIA .......................................................................................................................... 27

1. A SOCIOLOGIA DO DESVIO E OS PROCESSOS DE CRIMINALIZAÇÃO DOS USUÁRIOS DE

DROGAS ILÍCITAS ....................................................................................................................... 33

1.1. BREVE ANÁLISE DO CONTEXTO HISTÓRICO ................................................................. 33

1.2. A ATUAÇÃO DO CONTROLE FORMAL NA CRIAÇÃO DO ESTIGMA ................................... 36

1.3. A CONSTRUÇÃO DO ESTIGMA PELO INDIVÍDUO ............................................................ 38

1.4. OS EMPREENDEDORES MORAIS E A APLICAÇÃO DAS NORMAS ..................................... 43

1.5. A CRÍTICA CRIMINOLÓGICA E A GUERRA ÀS DROGAS .................................................. 45

1.6. CRÍTICAS À SOCIOLOGIA DO DESVIO............................................................................ 48

2. A CRIMINOLOGIA CRÍTICA ................................................................................................. 51

2.1. A SOCIOLOGIA DO DESVIO COMO INFLUÊNCIA À CRIMINOLOGIA CRÍTICA .................... 51

2.2. A INFLUÊNCIA DA ESTRUTURA ECONÔMICA NO SISTEMA PENAL E NO SURGIMENTO DE

UMA CRIMINOLOGIA CRÍTICA ................................................................................................. 52

2.3. AS RELAÇÕES DE (MICRO) PODER COMO DETERMINANTES PARA A NORMALIZAÇÃO DOS

CORPOS .................................................................................................................................. 55

2.4. A LÓGICA DA SELETIVIDADE DO SISTEMA ................................................................... 56

2.5. A CRIMINOLOGIA RADICAL ......................................................................................... 62

3. UMA POLÍTICA CRIMINAL ALTERNATIVA ........................................................................... 65

3.1. DO MINIMALISMO AO ABOLICIONISMO PENAL ............................................................. 69

3.2. CONCLUSÕES PRELIMINARES ...................................................................................... 70

4. A POLÍTICA CRIMINAL DE DROGAS NO BRASIL .................................................................. 75

4.1. BREVE ANÁLISE HISTÓRICA DAS DROGAS NO BRASIL. ................................................. 75

4.2. A LEI 11.434 ............................................................................................................... 81

4.3. O DEBATE A RESPEITO DA DESCRIMINALIZAÇÃO DO USO DE DROGAS NO LEGISLATIVO

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4.4. O JULGAMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 635.659 ..................................... 89

4.5. O BEM JURÍDICO TUTELADO ....................................................................................... 91

4.6. O DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA .............................................................. 95

4.7. A ANÁLISE DA EFICÁCIA DA POLÍTICA PROIBICIONISTA .............................................. 96

4.8. O ESTIGMA DO USUÁRIO ............................................................................................. 98

4.9. DA CRIAÇÃO DE UM CRITÉRIO OBJETIVO DE DIFERENCIAÇÃO ENTRE USUÁRIOS E

TRAFICANTES ........................................................................................................................ 98

5. A POLÍTICA DE DROGAS PORTUGUESA .............................................................................. 101

5.1. O PARADIGMA FISCAL ............................................................................................. 101

5.2. O PARADIGMA CRIMINAL (1970 – 1975) .................................................................. 103

5.3. DA ARQUITETURA DOS DISPOSITIVOS À CONSTRUÇÃO DO PARADIGMA CLÍNICO

PSICOSSOCIAL. .................................................................................................................... 105

5.4. A FASE DE 1983 – 1995: A CONSTRUÇÃO DO PARADIGMA BIOPSICOSSOCIOLÓGICO. 109

5.5. UM NOVO OLHAR .................................................................................................... 115

5.6. A ESTRATÉGIA NACIONAL DE LUTA CONTRA A DROGA E A TOXICODEPENDÊNCIA. .. 117

5.7. A OPÇÃO DESCRIMINALIZADORA .............................................................................. 120

5.8. O DIREITO CONTRA-ORDENACIONAL ........................................................................ 122

5.9. O CRITÉRIO OBJETIVO DE DIFERENCIAÇÃO ENTRE USUÁRIO E TRAFICANTE .............. 124

5.10. A ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE DA INCRIMINAÇÃO DO USO DE DROGAS

ILÍCITAS 127

5.11. AS PESQUISAS DE AVALIAÇÃO DA POLÍTICA DE DROGAS PORTUGUESA ................. 129

5.12. A ESTRUTURA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS TRAZIDAS COM A NOVA LEI .................... 130

6. PORTO E O OLHAR DIRECIONADO À SAÚDE ....................................................................... 135

6.1. A COMISSÃO PARA A DISSUASÃO TOXICOLÓGICA ..................................................... 136

6.2. COMPETÊNCIA .......................................................................................................... 137

6.3. OS MEMBROS E FUNCIONÁRIOS ................................................................................. 137

6.4. AS AUDIÊNCIAS E O OUVIDO ATENTO PARA O USUÁRIO ............................................ 140

6.5. O CONTATO COM A POLÍCIA ...................................................................................... 142

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6.6. AS POSSÍVEIS SANÇÕES A SEREM APLICADAS ............................................................ 144

6.7. A ENTREVISTA MOTIVACIONAL ................................................................................. 144

6.7.1. CASO 01 ............................................................................................................ 144

6.7.2. CASO 02 ............................................................................................................ 145

6.7.3. CASO 03 ............................................................................................................ 146

6.8. CONCLUSÕES PRELIMINARES .................................................................................... 147

7. RIBEIRÃO PRETO E AS AUDIÊNCIAS COLETIVAS ................................................................ 149

7.1. A INDIFERENÇA E O PRIMEIRO DIA DE AUDIÊNCIAS ................................................... 150

7.2. SEGUNDO DIA DE AUDIÊNCIAS .................................................................................. 161

CONCLUSÕES ........................................................................................................................... 167

BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................................... 171

ANEXO I ................................................................................................................................ 179

ANEXO II ..............................................................................................................................189

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INTRODUÇÃO

A preocupação com a produção, o tráfico e o consumo de uma série de substâncias que

alteram a consciência, mais conhecidas como drogas, têm variado ao longo dos anos, não

tanto pelo perigo que essas representam à saúde, mas por fatores econômicos e políticos (DEL

OLMO, 1989, P. 81). As variáveis a respeito da criminalização das chamadas drogas não tem

a ver com seus aspectos farmacológicos, mas com razões de política interna, externa ou de

protecionismo mercantil. Isto tem dado lugar a distorções no tema, causando a confusão entre

causas e efeitos. (DEL OLMO, P. 1989, P. 81).

A história da criminalização do uso de determinadas substâncias tem como marco

inicial a conferência de Xangai, em 1909, quando se dá o início do controle do ópio e de

outros estupefacientes em termos internacionais. A primeira justificativa do proibicionismo

radicou em aspectos morais, atendendo aos apelos do puritanismo, em especial por força das

convicções religiosas. O álcool e as outras drogas eram inimigos nefastos da civilização,

inimigos nefastos do American Dream. Por outro lado, essas atitudes demonstravam a

xenofobia, sendo apoiadas pelo mundo do trabalho, que se sentia ameaçado pela mão de obra

oriental, conhecida pela capacidade de abnegação pelo trabalho e por trabalhar em troca de

menores salários. (POIARES, 1998 P. 75).

De acordo com Rosa del Olmo (1989, P. 84), as leis anti-drogas começaram a ser

promulgadas nos Estados Unidos em razão de conflitos estruturais entre a classe media branca

e as três minorias étnicas em expansão dispostas a trabalhar por menos salários que os

brancos. Em 1909 é proibido o uso do ópio por sua associação com a migração chinesa. Em

1937 se promulga a lei “Marihuana Tax Act” para proibir o consumo de maconha por sua

associação com os imigrantes mexicanos, força de trabalho durante a grande repressão. A

cocaína, por sua vez, teve sua proibição por ter sido relacionada com os negros. No caso do

Brasil, a associação da maconha aos ex escravos deu à elite social nordestina a perfeita

oportunidade para manifestar seus sentimentos racistas (DEL OLMO, 1989, P. 86).

A criminalização do uso de drogas que começou, assim, selecionando as substâncias

relacionadas com populações marginalizadas, continua, nos dias de hoje, produzindo

violência e marginalização. Foi com essa preocupação que este trabalho se propôs a estudar

uma política alternativa de drogas.

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24

O usuário de drogas tem transitado tanto no discurso médico quanto no criminal,

sendo que a lei de drogas brasileira adotou uma postura dúbia: apesar de trazer princípios que

optam pelo respeito aos direitos humanos, especialmente quanto à sua autonomia e liberdade,

o respeito à diversidade, da reinserção social1 etc, manteve a criminalização do uso de drogas.

Assim, procurou-se estudar qual é a situação do usuário de drogas ilegais no atual

cenário brasileiro. Para isso, foi analisada a legislação brasileira de drogas, bem como sua

aplicação em algumas audiências no Juizado Especial Criminal da cidade de Ribeirão Preto –

SP. Além disso, o trabalho buscou elementos da criminologia que permitissem entendem

melhor o estigma que recai sobre o usuário de drogas, bem como o contexto estrutural que faz

com que o usuário seja selecionado pelo sistema criminal.

Como uma opção de política criminal para a questão das drogas no Brasil, foi

estudado o caso do Portugal, que há quinze anos descriminalizou o porte para consumo

pessoal de todas as drogas. Recorrendo a autores portugueses, estudaram-se os termos

dogmáticos da alteração legislativa, bem como as políticas implantadas pelo sistema de saúde

e seus resultados.

Este trabalho apresenta, assim, em sua primeira parte, uma análise criminológica da

seleção penal e do estigma que recai sobre o usuário de drogas. Partindo da teoria do

Labbeling Approach e passando pela criminologia crítica, a primeira parte aponta alguns

problemas do modo como se desenvolveu a criminalização dos indivíduos e conclui

apresentando alguns princípios que devem ser seguidos para uma política criminal alternativa.

A segunda parte do trabalho pretendeu comparar a política de drogas brasileira com a

política de drogas portuguesa. Entendemos que o contexto histórico é importante para explicar

alterações legislativas e de políticas públicas, sendo assim, optou-se por realizar uma análise

histórica dos discursos referentes às políticas de drogas nos dois países. Em seguida,

apresentamos a legislação de drogas dos dois países. Ressalta-se aqui que não se parte da

compreensão de que o Direito é um campo fechado do conhecimento e que sua análise deve

se limitar à leitura das leis e dos manuais de direito. Por isso, a análise da legislação sempre

apresenta o contexto econômico, político e social que influencia e é influenciado por cada lei.

11

Ver artigos 1 a 4 da lei 11.434/06.

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25

A última parte do trabalho procurou fazer uma análise empírica que amarrasse as

teorias críticas criminológicas com o momento em que o usuário, como destinatário final da

lei, entra em contato com os responsáveis por aplicar a sanção prevista legalmente. Assim,

foram assistidas audiências na Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência, na cidade

do Porto, em Portugal e no Juizado Especial Criminal de Ribeirão Preto/SP.

Em palestra concedida no seminário de drogas organizado pela Leap, Salo de

Carvalho apresenta um interessante questionamento. As pessoas que lerem esse trabalho,

provavelmente são aqueles que já possuem um interesse no tema, e possivelmente partidários

da descriminalização do porte para uso de drogas. Contudo, para que o objetivo da

descriminalização seja realmente atingido, é necessário demonstrar para aqueles que não

problematizam o tema, sendo favoráveis a políticas proibicionistas, que a criminalização do

uso de drogas traz resultados desastrosos e nefastos.

A proposta apresentada por Salo para resolver essa questão, é transformar a discussão

impessoal da descriminalização em um debate a respeito dos seres humanos que tem sofrido

com essa política. É preciso que as pessoas vejam o usuário como ser humano portador de

vontade e de direitos, é necessário que vejam o outro em si. Os relatos das audiências

buscaram, assim, aproximar os leitores desse trabalho das pessoas que tem sofrido as

violências dessa política com derramamento de sangue.

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METODOLOGIA

“A metodologia é importante demais para ser deixada aos metodólogos”.

Howard. S. Becker.

Partindo da noção de que a ciência não é neutra, visto que todo conhecimento

científico é histórico e socialmente condicionado, o trabalho explicita já em sua primeira parte

que a análise aqui realizada é feita desde o ponto de vista da criminologia crítica e da crítica

ao Direito Penal. O primeiro método utilizado neste trabalho, assim, é a pesquisa

bibliográfica, importante para dar o aporte teórico aos demais capítulos.

O trabalho parte da necessária desconstrução dos conceitos de método, cientificismo

e suas tentativas de classificar, hierarquizar e retirar o caráter histórico e despolitizar as lutas

dos pobres no mundo. (BATISTA, 2002, P. 14). Entendemos que as definições de

criminologia são atos discursivos de poder, que produzem efeitos concretos que não são

neutros dos objetivos aos métodos (BATISTA, 2002, P. 19). Assim, pretendeu-se apresentar

ao leitor a clara ideologia constante ao longo desse trabalho: da necessária desconstrução do

Direito Penal enquanto instrumento de dominação de classes e como esse instrumento tem

sido utilizado para marginalizar e normalizar2 os usuários de drogas.

Não se fala aqui de uma ideologia no sentido de que o estudo foi direcionado para

uma conclusão pré-concebida, mas que as escolhas realizadas ao longo da pesquisa, desde a

definição do tema, das bases teóricas, da escolha de Portugal, até o modo como foi realizada a

leitura das audiências, em última instância, são escolhas ideológicas. (VEDOVA, 2014, P.

23). O leitor, sabendo de onde partimos, poderá tirar suas conclusões de forma mais acertada.

2 A expressão “normalizar” é utilizada no sentido cunhado por Michel Foucault no livro vigiar e punir. Segundo

o autor, o castigo disciplinar tem como função afastar os desvios, é corretivo na medida em que penaliza tudo o

que está inadequado à regra, para que todos se pareçam. Sendo assim, esta punição não visa a vingança ou a

repressão, o objetivo é normalizar os indivíduos. Ela faz isso na medida em que os compara, hierarquiza,

homogeniza e exclui os que se desviam do padrão exigido.

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O segundo método utilizado foi o comparativo – Brasil e Portugal3. Nas palavras de

Günter Frankenberg (1985, P. 411/455), o direito comparado é como viajar: abre a

oportunidade de aprender sobre o diferente, penetrar em novos campos de ideias, desbravar

instituições e ideologias. Comparar é repensar, criticar o próprio sistema. Como crítico ao

método comparativo, G. Frankenberg milita pela reestruturação do Direito Comparado

“tradicional”.

O método deve ser baseado na autocrítica (desconfiar das próprias instituições), na

ausência de legocentrismo (consideração da concepção legal pessoal como neutra, objetiva) e

na tolerância à ambiguidade jurídica. Ou seja, a comparação hoje deve enfrentar as ditas

verdades, afastar preconceitos, assumir que a “história oficial” não é a história real4, pela qual

passaram os marginalizados, os “estranhos”, outsiders, minorias. Portanto, ciente dos limites e

críticas a este método, o presente trabalho perpassa as disposições legais portuguesas e inclui

relatórios oficiais, doutrina, jurisprudência, artigos jurídicos, além da investigação histórica

(método histórico) dos institutos pertinentes.

Por último, realizou-se pesquisa empírica através do método da observação

participativa. A opção pela pesquisa empírica se deu por entender que não há uma cisão

artificial entre teoria e prática – como se uma construção teórica não dependesse de um

mínimo de efetividade e a prática não estivesse invariavelmente informada por uma teoria,

mesmo quando o operador não se dá conta dos pressupostos que orientam o seu agir.

(CARVALHO, 2011, P. 27).

De acordo com a crítica realizada por Salo de Carvalho (2011, P. 30), a forma com

que os problemas são abordados no direito – início da pesquisa pra um museu histórico sem

vida ou para o tratamento na legislação estrangeira ou para o delineamento de uma

3 A escolha de Portugal se deu em razão de uma palestra que a pesquisadora assistiu em 2012, na Faculdade de

Direito de Ribeirão Preto – USP. A palestra, ministrada por Pedro Abramovay e Denis Russo Burgieman

apresentava o livro deste último, que viajou por alguns países estudando políticas de drogas alternativas. Um dos

países citados no livro é Portugal. O livro cita a experiência das Comissões para Dissuasão da

Toxicodependência (CDT) e outros dados importantes da política portuguesa. Para realizar essa pesquisa, a

autora realizou um intercâmbio de estudos na Faculdade de Criminologia da Universidade do Porto entre

setembro e fevereiro (2014/2015), onde cursou disciplinas que a auxiliaram a entender as políticas criminais de

Portugal, tais como “Drogas e questões criminais”, “Modelos de Polícia” e “Sistemas de Controle Social”.

Durante esse período a pesquisadora também estagiou, todas as quartas e quintas à tarde, na CDT do Porto,

conforme relatado na última parte deste trabalho. 4 De acordo com a tradução de BARREIROS, “G Frankenberg vai além. Para ele, a tarefa consiste na exploração

completa: textos, instituições, ações, ideias e fantasias. Sobre o método histórico, este deve ser visto não como

um único desenvolvimento linear, mas envolto por múltiplas trajetórias e agentes que subjetivamente são

isolados para o campo da irrelevância”. (FRANKENBERG, 1985, P. 411-455 in BARREIROS, 2014, P. 26).

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principiologia fundamentadora – tem funcionado como um meio para afastar ao máximo o

aluno de seu problema de pesquisa. Desse modo, buscou-se partir de um fato da realidade,

produzindo uma reflexão teórica problematizadora do tema, evitando os meros relatórios

bibliográficos ou relatórios de pesquisa empírica.

A pesquisa social qualitativa, por sua vez, é composta de variados e diferentes

procedimentos qualitativos, sendo assim, ainda não se chegou a um consenso sobre o modo de

proceder da investigação qualitativa ou sobre as concepções metodológicas que a

fundamentam. Nas palavras de Gabriele Rosenthal:

“A denominação “métodos qualitativos” compreende variados modos de

levantamento e análise, assim como posições bastante diversas quanto às bases

teóricas. Entretanto, é possível distinguir entre aqueles métodos que, em suas regras

e critérios, ainda se orientam segundo a lógica quantitativa – que busca

generalização estatística -, e os procedimentos qualitativos, que, em suas teorizações

e interpretações, não está fundamentalmente preocupado em identificar a frequência

da ocorrência de determinados fenômenos sociais, mas que tomam por base uma

lógica da generalização realizada a partir do caso particular (seja esse caso uma

determinada biografia, uma instituição ou meio específico) ou – com a mesma

pretensão generalizante – uma lógica da descrição microscópica ou densa

(GEERTZ, 1983, P. 37) do domínio do mundo cotidiano que configura objeto de

interesse. A lógica da generalização, assim como a lógica da descoberta e da

verificação de hipóteses alcançadas ao longo da investigação do caso particular,

conta com regras e critério diferentes dos da pesquisa quantitativa, na qual o que

está em jogo é o exame de hipóteses já disponíveis e a padronização de instrumentos

metodológicos. Em sentido estrido, à pesquisa social qualitativa corresponde uma

lógica de descobrir, isto é, de gerar hipóteses e teorias sobre o objeto em questão, e

isso ao longo do processo mesmo de investigação; a ela corresponde uma lógica

contrária, ou seja, a apresentação de hipóteses logo no início da pesquisa. Daí o

pressuposto de abertura do procedimento: ao invés de se chegar a uma padronização

dos instrumentos, alcança-se um modo de proceder que orienta observações ou

entrevistas – seja em entrevistas individuais, seja em discussões em grupo – pelas

especificidades e relevâncias dos próprios entrevistados ou observados, dando-lhes

maior espaço possível para a configuração da situação”. (ROSENTHAL, 2014, P.

20).

Assim, a proposta inicial da pesquisa, que consistia em estudar o estigma do usuário,

foi se modificando enquanto a pesquisa empírica era realizada. Em um primeiro momento, a

dificuldade se deu durante o estágio na Comissão para a Dissuasão para a Toxicodependência

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(CDT) da cidade de Porto. A expectativa era assistir a muitas audiências, contudo, as

funcionárias da CDT permitiram que as audiências fossem observadas apenas nas últimas

semanas de estágio, o que fez com que o contato com os usuários de drogas apreendidos pela

polícia e encaminhados para a CDT fosse pequeno.

Essa situação abriu uma nova possibilidade: o estudo da política de drogas

portuguesa a partir do ponto de vista das funcionárias da CDT, que exerciam suas funções ali

desde o início da Comissão, tendo acompanhado o desenvolvimento da política de drogas

portuguesa enquanto cidadãs e enquanto parte do processo de aplicação da política de drogas.

Essa observação foi importante para entender o processo que ocorre até o momento em que

elas entram na sala para conversar com o usuário, o funcionamento administrativo da

Comissão e, principalmente, a visão que elas possuem dos usuários, da política de drogas

portuguesa e de sua atuação na CDT.

Levando em consideração os processos complexos através dos quais se formam o

estigma, foi possível, assim, observar os processos de interação – internos e externos –

daqueles que possuem a chancela do Estado para rotular, reproduzir ou descontruir o processo

de estigmatização.

A realização dessa análise com os funcionários do Juizado Especial Criminal de

Ribeirão Preto se deu de uma forma mais limitada, haja vista que foram assistidas apenas duas

audiências5, sendo assim, foram observados apenas alguns diálogos entre os membros do

poder judiciário. Contudo, como as audiências de tóxicos realizadas no Jecrim da cidade de

Ribeirão Preto são, na maioria das vezes, coletivas, nesses dois dias foram realizadas

audiências com um número aproximado de 15 usuários. Algumas considerações relatadas no

trabalho fazem referência à opinião de dois funcionários do Juizado, que foram dadas em

conversa informal antes ou depois das audiências.

O simples fato de haver uma pesquisadora na sala, observando e fazendo anotações a

respeito da audiência, fez com que as interações que ali ocorriam fossem, no mínimo,

levemente modificadas. O claro exemplo dessa afirmação é possível ser verificado na leitura

do diário de campo, anexado a este trabalho. Em uma das audiências, o promotor presente,

após advertir os usuários de drogas com o uso de uma palavra pouco aceita em ambientes

5 As audiências de “tóxicos” acontecem no Juizado Especial Criminal de Ribeirão Preto quinzenalmente, às

quartas feiras. As audiências foram assistidas entre julho e setembro de 2015.

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formais, pediu, em tom de brincadeira, que a pesquisadora retirasse aquela palavra de suas

anotações – o que não foi feito, já que o próprio fato do promotor entender ser possível usar

tal palavra na audiência, mas não querer que ela conste nos registros, passa a ser objeto de

estudo.

Assim, as interações ocorridas nas audiências assistidas em Ribeirão Preto foram

utilizadas como referência de análise da percepção daqueles aplicadores da lei em relação aos

usuários de drogas e também em relação à sua atuação no Jecrim. A interligação que se

buscou fazer, ao final, foi entre os comandos legais e sua consequência na construção e

aplicação dos discursos de advertência aos usuários de drogas apreendidos pelo sistema de

controle formal.

Interligaram-se, assim, os conhecimentos criminológicos a respeito da construção do

estigma e da seletividade do sistema aos conceitos dogmáticos que se relacionam à

criminalização do porte de drogas ilegais para consumo próprio. Esses pontos foram

relacionados com o momento em que o usuário de drogas entra em contato com o sistema de

controle formal – no caso do Brasil, com o sistema judiciário, e no caso de Portugal com o

sistema do Direito Contraordenacional e dos órgãos de saúde.

É importante que se ressalte que essa pesquisa teve objetivos e alcances limitados,

tanto em razão de obstáculos inerentes às pesquisas empíricas qualitativas, muitas vezes por

causa de fatos alheios à vontade da pesquisadora, quanto por se tratar de um trabalho de

conclusão do curso de Direito, em que há pouca tradição em pesquisas empíricas, o que fez

com que o caminho metodológico percorrido fosse um caminho de descobertas, que por vezes

chegaram tarde para serem agregadas ao conteúdo final.

Em razão dessas limitações, não se pretendeu aqui chegar a conclusões gerais.

Precisa estar claro para o leitor que as conclusões referentes ao estágio em Portugal são

válidas apenas para a CDT da cidade do Porto. No mesmo sentido deve ser entendida a

observação das audiências no Jecrim de Ribeirão Preto. Foram assistidas apenas dois dias de

audiências – com um total aproximado de 15 usuários -, sendo que cada dia esteve presente

um magistrado e um promotor diferente, refletindo esse fato no modo como os usuários eram

tratados e nas ofertas de transação penal oferecidas

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Cabe ainda esclarecer que serão suprimidas datas e nomes, de modo que não se

permita a identificação dos funcionários e usuários citados nesse trabalho, não obstante a

concordância de todos eles com a presença da pesquisadora nas audiências e com a utilização

de suas opiniões nesta pesquisa.

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1. A SOCIOLOGIA DO DESVIO E OS PROCESSOS DE CRIMINALIZAÇÃO DOS USUÁRIOS DE

DROGAS ILÍCITAS

Com esses pregadores da igualdade não quero ser misturado e

confundido. Pois assim me fala a justiça: “Os homens não são iguais”.

(...)

Até em vossas mentiras ele acredita, quando mentis bem a respeito

dele: pois no mais fundo seu coração suspira: “Que sou eu?”

Friedrich Nietzsche. Assim falou Zaratustra.

1.1. BREVE ANÁLISE DO CONTEXTO HISTÓRICO

A história nos direcionou no sentido de aplicarmos modos disfarçados de controle,

com o monitoramento das definições e rótulos aplicados às pessoas. O controle é exercido

quando acusamos os indivíduos de se desviarem do padrão “normal” e praticarem atos

considerados “desviantes”. Ao perceber que os empreendedores morais são indivíduos que

conseguem criar e aplicar regras, observamos uma das formas como os grupos de status

superior mantem suas posições de privilégio inalteradas. Em suma, observa-se formas de

opressão e os meios pelos quais essas formas de opressão mantém o status de normal,

“cotidiana” e legítima. (BECKER, 2008, P. 204).

O Labelling Approach, surgido nos anos 60, é o marco das teorias do conflito. Antes

desse período, vigorava a ideia de que a sociedade era um todo pacífico, sem fissuras, que

trabalha de modo ordenado. Essas características eram a base das teorias do consenso e foram

substituídas em razão de uma crise de valores decorrente do período do pós guerra. As

relações conflitivas, que até então estavam mascaradas pelo sucesso do Estado de Bem-Estar

Social, passaram a ser adotadas como referência para a elaboração de novas teorias, que

foram chamadas de teorias do conflito (SHECAIRA, 2008, P. 269).

O Labelling é uma linha de pensamento crítica e indagativa que surgiu no horizonte do

pensamento sociológico e criminológico. Seu aparecimento se insere em um período de

efervescência cultural, que tocou as democracias europeias, os Estados Unidos e também o

Brasil. Nesse período, as ciências humanas sofreram um grande impulso crítico, passando a

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questionar alguns valores arraigados, debatendo-os de modo inovador e em alguns casos, até

revolucionário (DEL OLMO, 1990, P. 33).

Logo após a segunda guerra mundial, os Estados Unidos viviam um grande

crescimento econômico interno, gerando um grande aumento da classe média, que passou a

ter acesso ao Estado de Bem-Estar Social produzido pela economia americana. Os EUA se

transformou em uma das duas grandes potencias mundiais, estendendo seu mercado para todo

o mundo e garantindo o crescente aumento dos lucros das empresas nacionais.

No contexto externo, o mundo estava marcado pela dicotomia “socialismo versus

capitalismo”, caracterizando o período conhecido como Guerra Fria. O contexto mundial

influenciava a coesão interna entre os americanos. Era necessário se unir para lutar contra o

inimigo externo. Esse panorama foi ambiente propício para que surgisse o pensamento

chamado de ideologia do consenso. (SHECAIRA, 2008, P. 271).

Contudo, nos anos 60 iniciou-se um período de relações críticas com repercussões

notadas no plano das ideologias, na esfera da cultura, no alcance das relações humanas. É

comum às épocas que haja momentos de revolta, o que não poderia ser diferente nos anos 60.

Entretanto, ao lado da rebeldia característica de todas as épocas, surgiu um grande potencial

crítico e criativo, que carregou consigo uma força transformadora. (SHECAIRA, 2008, P.

271/272).

O American Way of Life começou a ser analisado de maneira crítica pelos jovens que

estavam em busca de novas sensações, emoções e de liberdade. Essa é a década marcada pelo

uso de drogas, pelo psicodelismo do rock and roll, pelo pedido de resistência pacífica à

Guerra do Vietnã, por lutas pelos direitos civis, lutas pelos direitos das minorias negras, pelo

fim das discriminações sociais, por uma conscientização política dos jovens, por

questionamentos existenciais etc. Tamanha fissura na aparente coesão cultural e social da

sociedade americana foi o estopim para o surgimento da sociologia do conflito e a ruptura

com a ideologia do consenso.

Neste período, também há uma mudança no modo de enxergar o uso de drogas, que

passou a ser defendido como uma forma de questionar os valores políticos, sociais e culturais

da sociedade americana. Usar drogas significava romper com aqueles valores arraigados e

transformava o usuário em um revolucionário. A maconha, por exemplo, se tornou um

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poderoso símbolo político de liberdade e desobediência civil (SHECAIRA, 2008, P. 274). O

uso de drogas era uma forma de protestar contra tudo o que estava errado. A prática

encontrou, inclusive, apoio nas músicas de grandes artistas, como é o caso dos Beatles e a

clara alusão de Lucy in Sky with Diamonds ao LSD.

Em razão de todo esse contexto favorável, pela primeira vez na história se procurou

uma explicação para o crime partindo de paradigmas diferentes daqueles da criminologia

tradicional.

A perspectiva interacionista, segundo a qual as pessoas tornam-se sociais no processo

de interação com outras pessoas, entrelaçando-se na ação projetada de outros, incorporadas as

perspectivas dos outros nas suas próprias (SHECAIRA, 2008, P. 287) ajuda a conceber esse

novo paradigma criminológico, que passa a analisar as instâncias formais de controle como

fator criminógeno. E é aqui que entra o labelling, deslocando o problema criminológico da

ação para a reação e afirmando que, se os criminosos tem algo em comum, é o fato de terem

sido etiquetados como tal. (BECKER, P. 21/22).

O labelling também se situa no horizonte da “etnometodologia”, segundo a qual a

sociedade não é uma realidade possível de se conhecer no plano objetivo, antes é produto de

uma construção social, que decorre de um processo de definição e tipificação por partes dos

indivíduos e dos diversos grupos existentes na sociedade. A consequência de estudar a

realidade social sob influência do interacionismo e da etnometodologia, é que os processos

serão analisados partindo da aplicação da norma a simples comportamentos, e chegando a

construções mais complexas, como, por exemplo, a concepção de ordem social (BARATTA,

2011, P. 87).

A concepção predominante, também conhecida como teoria do consenso, era limita e

acrítica. O paradigma etiológico está dentro dos moldes da criminologia positivista, derivada

das ciências naturais. Nele, a criminologia é uma ciência causal-explicativa da criminalidade,

ou seja, explica as causas da criminalidade com base no método experimental (ANDRADE,

2003, P. 198). O Direito Penal é recepcionado de forma acrítica, sendo que os tipos penais são

a definição suficiente do conceito de crime. A criminalidade, por sua vez, é uma realidade

ontológica pré-constituída ao Direito Penal. Para essa concepção sociológica, o desvio era a

infração de alguma regra aceita de forma geral pela sociedade.

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A criminologia positivista e, em grande parte, a criminologia liberal se valem do

direito penal e dos juristas para conceituar o crime, que é estudado como se a qualidade

criminal de um comportamento existisse objetivamente (BARATTA, 2011, P. 87). Toma-se

por pressuposto que as normas e valores sociais violados com o crime são racionais e

compartilhados por todos os indivíduos da sociedade.

1.2. A ATUAÇÃO DO CONTROLE FORMAL NA CRIAÇÃO DO ESTIGMA

O novo paradigma criminológico, contudo, parte da ideia de que não se pode entender

a criminalidade se não se estuda a ação do sistema penal, que é quem a define e reage contra

ela, iniciando pela escolha dos bens jurídicos protegidos pelas normas abstratas e chegando na

atuação das instâncias oficiais (polícia, juízes, instituições penitenciárias). Logo, o status de

delinquente pressupõe, necessariamente, que o indivíduo seja alvo da ação estatal, já que não

adquire esses status aquele que apesar de ter realizado a conduta criminosa não é alcançado

por estas instâncias, não sendo tratado pela sociedade como um “delinquente” (BARATTA,

2011, P. 86).

Um dos aportes mais esclarecedores dos teóricos da reação social a uma compreensão

do desvio foi a sua ênfase na necessidade de apreciar que a conduta desviada é, em parte, a

intenção do desviado em se acomodar à reação que sucedeu à sua infração original

(TAYLOR; WALTON; YOUNG, 1997, P. 290). Percebe-se que para entender a

criminalidade é imprescindível que se estude a ação do sistema penal. Assim, a teoria da

rotulação social seria o estudo da “formação da identidade desviante” e das agências de

controle social (BATISTA, 2011, P. 75).

Até então, a resposta da pergunta „Por que alguém pratica crimes?‟ era dada com base

no pressuposto do senso comum de que o crime resulta de alguma característica do criminoso,

que torna a prática de delitos necessária ou inevitável. Os criminólogos não questionavam o

rótulo “desviante” e quando o faziam, aceitavam os valores daqueles que estavam formulando

o julgamento (BECKER, 2008 P. 17). Ao buscar os fatores da criminalidade nas condições

pessoais do indivíduo, pressupõe-se que os que violam as regras fazem parte de uma categoria

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homogênea, o que é negado por Becker (2008), que afirma que se os desviantes tem algo em

comum é o fato de terem recebido o rótulo de “desviados”.

De acordo com Alessandro Baratta, o labelling traz uma mudança no paradigma,

alterando as perguntas de “quem é o criminoso?”, “como alguém se torna desviante?”, “em

quais condições um condenado se torna reincidente?” para “quem é definido como

desviante?”, “que efeito essa definição causa no indivíduo?” “em que condições este

indivíduo pode se tornar objeto de uma definição?”, e, enfim, “quem define quem?”

(BARATTA, 2011, P. 88).

Nesse sentido, o problema central a ser discutido na teoria do labelling é a “validade

do juízo pelo qual a qualidade de desviante é atribuída a um comportamento ou a um

sujeito”. (BARATTA, 2011, P. 94). Conclui-se que não é o comportamento por si só que é

considerado desviante, mas é a interpretação desse comportamento que o torna provido de

significado, sendo esta que define o que é desviante e o que não é. Desse modo, as

interrogações a respeito da causa da criminalidade se tornam interrogações a respeito da causa

da criminalização.

A respeito dessa criminalização, Nilo Batista6 afirma que ela reflete a seletividade do

sistema penal, definindo quem e quantos ingressarão nos registros. A criminalização é uma

construção humana, dependente de muitos fatores, como o humor do guarda, a localização da

câmera de segurança etc., e não faz sentido afastá-la das condições sociais nas quais é

produzida, dando-lhe uma suposta objetividade “tão falsa quanto a totalidade que tenta

representar”. (BATISTA, 2011, P. 22).

A criminalidade, enquanto realidade social, não é uma entidade pré-constituída em

relação à atividade dos agentes da lei (juízes, policiais), mas uma qualidade que estes

atribuem a determinados indivíduos e condutas, não sendo suficiente que o comportamento

desses indivíduos se subsuma a alguma norma penal. Antes, o processo de criminalização

observa os pressupostos políticos e os efeitos sociais das definições de criminalidade.

Alessandro Baratta realiza interessante análise a respeito da criminalidade, que aqui

entendemos como criminalização ou criminalidade registrada. De acordo com o autor, a

6 BATISTA, Nilo. Intervenção no XIII Congresso Internacional de Direito Comparado. Rio de Janeiro, 27 de

setembro de 2006, mimeo, p. 1 apud BATISTA, Vera Malaguti. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira.

2ª edição. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

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criminalidade não é considerada como um comportamento, mas como um „bem negativo‟,

análogo aos bens positivos, como patrimônio, renda, privilégio. Nesse sentido, como um bem

negativo, a criminalidade seria o contrário de privilégio e , assim como a seletividade que

opera na distribuição dos privilégios, também opera na distribuição da criminalização

(BARATTA, 2011, P 107/108).

1.3. A CONSTRUÇÃO DO ESTIGMA PELO INDIVÍDUO

Howard Becker escreveu um dos livros mais importantes para a teoria do labelling

approach. Outsiders, nome dado ao livro, faz uma análise específica de dois grupos

considerados desviantes: os usuários de maconha e os músicos de jazz. As conclusões a que o

autor chegou são interessantes e contribuíram para o novo modo de olhar para a

criminalização e para o criminoso. Becker (2008, P.24) afirma que a prática de um ato ilícito

por si só não faz com que o indivíduo seja tratado como desviante. Por outro lado, ele pode

ser tratado dessa maneira mesmo sem ter praticado nenhuma infração.

O autor foge da busca etiológica do desvio, ou seja, da busca pelas causas do desvio.

A esse respeito diz que as causas não operam ao mesmo tempo, sendo necessário um modelo

que leve em conta o fato de que padrões de comportamento se desenvolvem numa sequência

ordenada, sendo a explicação de cada passo parte da explicação do comportamento resultante.

Cada passo requer explicação, e uma causa importante para um passo pode ser desprezível

para outro (BECKER, 2008, P. 34).

Contrariando a concepção sociológica aceita até então, que afirmava haver

características inerentemente desviantes naqueles que praticam delitos, sendo o crime a

violação de uma regra altamente aceita pelos indivíduos, Becker afirma que o desvio é criado

pela sociedade. A afirmação do autor é que o desvio não é uma qualidade do ato que o

indivíduo comete, mas uma consequência da aplicação de regras e sanções a um “infrator”. O

desviante é, então, alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso e o comportamento

desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal (BECKER, 2008, P. 21/22).

A nova teoria está menos interessada nas características pessoais dos desviantes e mais

no processo pelo qual eles passam a ser definidos como tal. Esse seria o processo de

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etiquetagem ou de rotulação, por isso o labelling também é identificado por esses nomes.

Interessante destacar que o labelling não se refere aos outsiders - nome cunhado por Becker –

como criminosos, pois não coloca um desvalor intrínseco no fato do indivíduo se desviar do

padrão normativo e social.

É nesses processos de definição e estigmatização que o usuário de drogas recebe o

rótulo de criminoso. Nota-se que o contato com o processo penal já é estigmatizante por si só,

desde a abordagem policial até a audiência de julgamento são vistas violências baseadas no

controle do desvio. Aqui reside um dos interesses em estudar a teoria do labelling para

entender melhor os processos de estigmatização que sofre o usuário de drogas quanto em

contato com o processo penal.

Na análise do desviante, Becker afirma que dar a alguém um tratamento de desviante

produz uma profecia auto realizadora, sendo que entram em cena vários mecanismos que

atuam para moldar a pessoa segundo a imagem que os outros possuem dela. Isso porque é

necessário reconhecer que o desviado sempre tem certo grau de consciência a respeito das

possíveis reações contra ele, sendo que suas decisões posteriores se originam dessa

consciência inicial. (BECKER, 2008, P. 44).

Ao estudar o estigma, Goffman percebe a sociedade estabelece os meios de

categorizar as pessoas e de distribuir os atributos considerados mais comuns e naturais para os

membros de cada uma dessas categorias (GOFFMAN, 2004, P. 5). No mesmo sentido de

Becker, que chama os infratores de desviantes e não de outro nome que já tenha alcançado um

sentido depreciativo na linguagem, Goffman afirma que uma característica que estigmatiza

alguém em determinado contexto pode servir para comprovar a normalidade em outro

contexto, sendo assim, o estigma não é, por si só, bom ou ruim (GOFFMAN, 2004, P.6). O

que é desvantagem em um contexto, pode ser usado pelo estigmatizado para organizar sua

vida entre outros estigmatizados, seus iguais. (GOFFMAN, 2004, P. 21).

Cabe lembrar que a manipulação do estigma é uma característica geral da sociedade,

um processo que ocorre sempre que há normas de identidade (GOFFMAN, 2004, P. 111). Os

valores de identidade gerais de uma sociedade podem não estar firmemente estabelecidos em

lugar algum, e ainda assim podem projetar algo sobre os encontros que se produzem em todo

lugar na vida quotidiana (GOFFMAN, 2004, P. 110).

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Ainda analisando o estigma, o autor afirma que cada indivíduo pode participar,

simultaneamente, de relações sociais em que é considerado “normal” ou “desviante”. O

normal e o estigmatizado não são pessoas, e sim perspectivas que são geradas em situações

sociais durante os contatos mistos, em virtude de normas não cumpridas que provavelmente

atuam sobre o indivíduo em particular podem convertê-lo em alguém que é escalado para

representar um determinado tipo de papel; ele pode ter de desempenhar o papel de

estigmatizado em quase todas as situações sociais, tornando natural a referência a ele, como

uma pessoa estigmatizada cuja situação de vida o coloca em oposição aos normais. Não

deveria causar surpresa o fato de que, em muitos casos, aquele que é estigmatizado num

determinado aspecto exibe todos os preconceitos normais contra os que são estigmatizados

em outros aspectos (GOFFMAN, 2004, P. 118).

Goffman faz a diferença entre os indivíduos desacreditados e os desacreditáveis. O

primeiro é aquele que tem a sua característica estigmatizante imediatamente perceptível,

enquanto no segundo a caraterística especial não é imediatamente perceptível. Essa condição

de estigmatizado faz com que a pessoa se sinta insegura, pois não consegue afastar uma

formulação pré-definida em seu interior que diz que ele é inferior perante os demais

(GOFFMAN, 2004, P. 14). Essa falta de segurança seria um dos fatores que geraria a profecia

auto realizadora a que se referiu Becker.

E eu sempre sinto isso em relação a pessoas direitas: embora elas sejam boas e

gentis, para mim, realmente, no íntimo, o tempo todo, estão apenas me vendo como

um criminoso e nada mais. Agora é muito tarde para que eu seja diferente do que eu

sou, mas ainda sinto isso profundamente: que esse é o seu único modo de se

aproximar de mim e que eles são absolutamente incapazes de me aceitar como

qualquer outra coisa. (...) Assim, surge no estigmatizado a sensação de não saber

aquilo que os outros „realmente‟ estão pensando dele (GOFFMAN, 2004, P. 16).

Desse modo, o indivíduo estigmatizado pode responder antecipadamente através de

uma capa defensiva (GOFFMAN, 2004, P. 17). Como consequência, o indivíduo

estigmatizado pode vacilar entre o retraimento e a agressividade, variando de uma para a

outra, fazendo com que a interação com as demais pessoas possa se tornar muito violenta.

Goffman chama os momentos de integração entre os estigmatizados e os “normais” de

situações sociais mistas. Segundo ele, nesses momentos, os “normais” tratam os

estigmatizados como se eles fossem pessoas melhores do que acham que ele seja ou pessoas

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piores do que acham que ele realmente é. Se nenhuma dessas duas opções estiver disponível,

o estigmatizado é tratado como uma “não-pessoa”, como se não existisse. O estigmatizado

percebe o potencial de mal-estar nessa interação social, pois sabe que os “normais” também a

percebem. (GOFFMAN, 2004, P. 19).

Enquanto o positivismo nega vontade própria ao desviante, o labelling analisa seu

interior, vendo-o como um ser dotado de racionalidade. A teoria indica que o outro lado da

ordem é a liberdade – e não o caos -, colocando o rotulado não como alguém cujos

“mecanismos de cópia falharam”, mas como um ser que experimenta sua liberdade.

(SANTOS, 2006, P. 23).

Quando se estuda as pessoas estigmatizadas, o interesse normalmente se volta para o

tipo de vida coletiva que elas possuem. Sabe-se que membros de uma categoria de um

estigma específicos tendem a reunir-se em pequenos grupos sociais (GOFFMAN, 2004, P.

23). Seguindo a crítica formulada por Becker percebemos que os estigmatizados pelo sistema

penal não são um todo homogêneo, mas possuem particularidades, tendo como fator de união

o fato de terem passado por esse processo estigmatizante. Dessa maneira, estudar os infratores

da lei de modo generalizante é desconsiderar processos específicos que os levaram à prática

de determinado delito, ou pior, desconsiderar os processos específicos que permitiram que ele

fosse selecionado como desviante pelo sistema.

Goffman afirma que, no processo de socialização, a pessoa estigmatizada aprende e

incorpora o ponto de vista dos “normais”, adquirindo, portanto, as noções da sociedade em

relação à identidade e à crença do que significa possuir um estigma. Ele também aprende que

possui um estigma e quais as consequências disso. A sincronização desses dois processos (de

aprendizado da concepção geral de estigma e da descoberta de si como um estigmatizado)

estabelecem as bases para um desenvolvimento posterior, fornecendo meios de distinguir

entre as carreiras morais7 disponíveis para os estigmatizados (GOFFMAN, 2004, P. 30).

Cirino (2006, P. 20) acrescenta que a estigmatização criminal auxilia na formação de

carreiras criminosas. O estigma acaba provocando no indivíduo a assimilação das

características do rótulo, a expectativa social de comportamento do rotulado conforme as

7 De acordo com Goffman, as pessoas que têm um estigma particular tendem a ter experiências semelhantes de

aprendizagem relativa à sua condição e a sofrer mudanças semelhantes na concepção do eu – uma “carreira

moral” semelhante, que não só causa como efeito do compromisso com uma sequência semelhante de

ajustamentos pessoais (GOFFMAN, 2004, P. 30).

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características do rótulo, a continuidade do comportamento criminoso mediante formação de

carreiras criminosas e criação de subculturas criminais através da aproximação recíproca de

indivíduos estigmatizados.

Outro momento interessante a se considerar é a fase da experiência durante a qual o

indivíduo aprende que ele é possuidor de um estigma. Nesse momento é provável que ele

estabeleça uma nova relação com os outros estigmatizados. Em muitos casos, o início da

estigmatização está ligado com o contato com alguma instituição de custódia, como é o caso

das prisões. No novo local, o estigmatizado aprende sobre o seu estigma com os

companheiros de cela, com quem passa a ter contato íntimo em razão do longo tempo de

exposição. O novo estigmatizado começa a compreender quem são seus iguais, apesar de

sentir que os estigmatizados são diferentes da pessoa “normal” que ele julgava ser

(GOFFMAN, 2004, P. 34).

Entendemos, contudo, que o processo de estigmatização não ocorre apenas quando se

dá o contato do indivíduo com o sistema penal. É justamente o fato do indivíduo já possuir o

estigma que permite que ele seja selecionado pelos aplicadores da lei penal. O estigma é,

assim, reforçado.

Essa estigmatização, às vezes, vem “de berço”. Quando Vera Malaguti escreveu sobre

drogas e juventude no Rio de Janeiro, afirmou que o conceito de “atitude suspeita” implícito

nos inquéritos policiais era claro: um negro parado ou andando em qualquer lugar (BATISTA,

2003, P. 103). Ou seja, a simples característica intrínseca do indivíduo o torna suspeito e

criminoso em potencial, estigmatizado.

A identidade social e pessoal do indivíduo, antes de qualquer coisa, é parte dos

interesses e definições de outras pessoas em relação a ele. Esses interesses e definições

podem, inclusive, surgir antes do indivíduo nascer e continuam até depois de sua morte

(GOFFMAN, 2004, P. 91). Nesse sentido, o indivíduo constrói a imagem que tem de si

próprio a partir da base que as demais pessoas já construíram sua identificação pessoal e

social, tendo apenas certa liberdade na formação de sua identidade pessoal (GOFFMAN,

2004, P, 92).

Goffman afirma que os novos estigmatizados aprendem com os mais velhos que eles

possuem um estigma e o que isso significa em termos de vida em sociedade. Ao entrar em um

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grupo desviante, o indivíduo passa por um processo de interação, assimilando a

fundamentação para continuar na prática dos atos desviantes, além de aprender como evitar

maiores problemas (BECKER, 2008, P. 49). Assim, quando é institucionalizado, aumentam

muito as chances de que ele permaneça desviante.

Ainda segundo Goffman, o indivíduo estigmatizado se define como não-diferente de

qualquer outro ser humano, mas ao mesmo tempo ele e as pessoas próximas o definem como

alguém marginalizado (GOFFMAN, 2004, P. 94). Dessa maneira, o indivíduo tem dificuldade

em se conformar às regras que não tem o desejo de infringir e se descobre forçosamente

desviante em áreas que não desejava (BECKER, 2008, P. 44).

Esse é o caso do usuário de drogas que é descoberto por pessoas próximas. Por mais

que ele não seja um usuário problemático, passa a ser visto como desviante e tende a ser

impedido de participar dos grupos convencionais. A consequência que a exposição pública do

uso de drogas traz, incentiva o usuário a recorrer a mentiras para manter seu hábito oculto.

Esse comportamento, então, é consequência da provável reação pública e não uma

característica intrínseca do usuário.

A situação especial do estigmatizado é que a sociedade lhe diz que ele é um membro

do grupo mais amplo, o que significa que é um ser humano “normal”, mas também que ele é,

até certo ponto, “diferente”, sendo indevida a negação dessa “diferença”. (GOFFMAN, 2004,

P. 107).

Para compreender a diferença deve-se olhar para o comum e não para o “diferente”.

Pode-se tomar como estabelecido que uma condição necessária para a vida social é que todos

os participantes compartilhem um único conjunto de expectativas normativas, sendo as

normas sustentadas, em parte, porque foram incorporadas. Quando uma regra é quebrada,

surgem medidas restauradoras; o dano termina e o prejuízo é reparado, quer por agencias de

controle, quer pelo próprio culpado (GOFFMAN, 2004, P. 109).

1.4. OS EMPREENDEDORES MORAIS E A APLICAÇÃO DAS NORMAS

A questão que o labelling analisa na reparação do dano é a criação e imposição das

regras. Becker observa que a existência de uma regra não garante que ela será imposta e que

existem muitas variações na imposição de regras. Se não podemos afirmar que a imposição

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das regras é realizada conforme algum padrão, então essa imposição necessita ser explicada

(BECKER, 2008, P. 127).

Em seus estudos, Becker percebeu que a imposição não decorre automaticamente da

infração de uma regra. A imposição é seletiva. Seleciona os tipos de pessoas, em diferentes

momentos e situações. Levando em consideração que as ações dos aplicadores das normas são

orientadas por alguns valores, podemos concluir que a simples existência desses valores é

insuficiente para que o princípio da igualdade seja respeitado. Isto porque é complexo

relacionar as generalidades de valor com os detalhes complexos e específicos de situações

cotidianas. É difícil saber que linha específica de ação o valor recomendaria num dado caso

concreto. A situação fica mais complexa quando se confirma que os valores oficiais da

instituição não são exatamente aqueles que seus membros são ensinados a respeitar.

Partindo do pressuposto de que regras específicas são retiradas de valores gerais e

aplicadas em pessoas e casos específicos, é importante analisar as pessoas responsáveis por

interpretar esses valores e transformá-los em valores específicos bem como os responsáveis

por assegurar a aplicação e imposição das regras. Logo, o interesse centra-se no

empreendedor – aquele que aplica as regras -, nas circunstâncias que ele aparece e como ele

aplica seus instintos empreendedores (BECKER, 2008, P. 141).

Também deve observar-se atentamente o momento de produção das leis, pois é

provável que esteja ali presente um grupo empreendedor, que atua no sentido de criar um

novo fragmento da constituição moral da sociedade, um código de certo e errado. Segundo

Becker, os empreendedores morais acreditam que o que eles julgam correto é o que é bom

para os demais. Sendo assim, a reforma desejada por eles não é um simples modo de impor

sua moral, mas de melhorar o modo de viver das pessoas. (BECKER, 2008, P. 151)

Como se verá no próximo capítulo, este trabalho vai além. Entende-se que os grupos

empreendedores presentes no momento de criação das leis possuem motivos menos puros do

que o bem estar daqueles que serão atingidos pela norma. O que se percebe – com ênfase no

problema das drogas – é que os interesses de manutenção de privilégios sempre estiveram por

trás dos discursos morais proibicionistas.

Uma das críticas formuladas por Becker (2008, P.162) aos empreendedores morais se

encaixa perfeitamente à crítica dos discursos proibicionistas. Segundo o autor, em busca de

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auxílio para continuarem com sua “cruzada”, os empreendedores morais afirmam que, em

decorrência de sua atuação, o problema se aproxima de uma solução. Por outro lado, dizem

que o problema está mais grave do que nunca - não por culpa deles - e que é necessário que se

intensifiquem os esforços para vencer a guerra.

1.5. A CRÍTICA CRIMINOLÓGICA E A GUERRA ÀS DROGAS

A guerra às drogas pode ser considerada fracassada, já que além de não cumprir aquilo

que se propôs, causou outros inúmeros problemas, maiores do que o problema original. Não

obstante, continua-se insistindo na ideia de que as drogas devem ser extirpadas da sociedade e

que a guerra às drogas deve ser intensificada.

Especificamente no Brasil, vimos o aumento da pena do tráfico de drogas e a sua

equiparação aos crimes hediondos. Os usuários, por sua vez, recebem o tratamento e

consequente estigma de criminosos, sendo poucas as abordagens que buscam a aproximação

deles com o sistema de saúde. Entretanto, os danos causados pela war on drugs são

considerados danos colaterais, justificados pelo objetivo principal: que o mundo seja liberto

do flagelo das drogas.

Legitimados pelas justificativas morais de que estão fazendo o bem, os impositores

aplicam as regras e criam outsiders. A maior crueldade constante nesse processo é que esses

outsiders são criados de forma seletiva, sendo que uma pessoa que cometeu um ato desviante

será rotulada como tal apenas se ocorrerem uma sequência de acontecimentos alheios à sua

vontade. O desvio, no sentido utilizado por Becker, é sempre o resultado do empreendimento

moral (BECKER, 2008, P. 167).

A criação do desvio perpassa dois momentos importantes do empreendimento, que

pode ser analisado de um modo geral ou estrito. Em um primeiro momento – o do

empreendimento mais amplo – é necessário que uma regra seja criada, ou seja, que um grupo

observe alguma prática que considera prejudicial e chame a atenção dos demais para o

assunto. Antes que qualquer ação possa ser vista como desviante e antes que os membros de

alguma classe possam ser rotulados e tratados como outsiders, alguém precisa criar a regra

que os define como tal. O sentido estrito diz respeito a um segundo momento, quando a lei já

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foi criada e é necessário que os infratores sejam descobertos e estigmatizados por sua não

conformidade. É preciso que sejam identificados, presos e condenados (BECKER, 2008, P.

167).

O ato de rotular é importante, mas não pode ser concebido como a única explicação

para o desvio. A teoria aqui estudada não busca apenas afirmar que alguém é “ladrão” porque

alguém o rotulou como tal. Uma das contribuições mais importantes trazidas por ela foi

centrar a atenção “no modo como a rotulação põe o ator em circunstâncias que tornam mais

difícil para ele levar adiante as rotinas normais da vida cotidiana, incitando-o a ações

“anormais””. (BECKER, 2008, P. 181).

Rejeitando o nome de “teoria da rotulação”, Becker afirma se tratar de uma teoria

interacionista do desvio. Com isso quer dizer que, em geral, as pessoas levam em conta o que

está acontecendo à sua volta e o que provavelmente irá acontecer pra decidir um modo de

ação. Essa visão interacionista implica que é necessário considerar todas as pessoas

envolvidas no episódio do suposto desvio. Ao fazer essa observação, percebe-se que, para que

o desvio ocorra, é necessária a cooperação aberta ou tácita de muitas pessoas. Ao encarar o

desvio como ação coletiva, vemos que as pessoas agem atentas à reação dos outros envolvidos

na situação (BECKER, 2008, P. 184).

Se observamos os indivíduos que praticam atos desviantes, perceberemos que não há

alguma força misteriosa que os move, antes, eles agem por motivos mais ou menos iguais aos

que justificam as atividades comuns. As regras sociais não são fixas e imutáveis, mas

reconstruídas em cada situação, para que se ajustem à conveniência, à vontade, à posição de

poder de vários participantes (BECKER, 2008, P. 192). A interação entre os indivíduos faz

com que as ações não sejam tão voluntárias quanto se pressupõe.

Um claro exemplo da volatilidade das regras é proibição de certas drogas que em

algum momento foram não só lícitas como alvo de publicidade8 explícita, como por exemplo,

os dropes de cocaína para curar a dor de dente, ou a heroína vendida pela Bayer como um

substituto não viciante da morfina.

8 Disponível em <http://hypescience.com/10-inacreditaveis-propagandas-antigas-de-cocaina-e-outras-drogas/>

Acessado em 05 de outubro de 2015.

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A lei seca, nos Estados Unidos, foi uma demonstração de tentativa de moralização da

sociedade através de alteração legal com vistas a tornar ilícita determinada droga. A lei

vigorou por 13 anos e foi um fracasso, porque além de não acabar com o consumo de álcool

no país, aumentou os índices de violência e corrupção. (BURGIEMAN, 2011, P. 16). No

Brasil, temos o caso do lança perfume, que em 1983 passou a integrar o rol das substâncias

ilícitas e, por duas vezes (1984 e 2000) deixou de figurar no rol que determina as substâncias

ilícitas, ocorrendo, assim, abolitio criminis. (PEVERARI, 2014, P. 254).

Esses exemplos são claros para demonstrar que o proibicionismo criou um grupo de

criminosos – traficantes e usuários das drogas ditas ilícitas – que antes não existia. Além

disso, para justificar a criminalização, foi construída uma representação depreciativa de

usuários e traficantes, gerando na sociedade uma repulsa pelas pessoas envolvidas de alguma

forma com as drogas (que se tornaram) ilícitas. Em relato apresentado no trabalho de

mestrado intitulado “Fumo de Nego: A criminalização da maconha no Brasil”, é possível ter

uma ideia da imagem construída ao redor do usuário de maconha:

Entretanto, era necessário estar alerta: “os viciados, depois de usal-a em cigarros

durante cinco annos, tornam-se loucos furiosos, victimas de um estranho desespero

que os impelle á pratica de violências e finalmente a um desvairado desejo de matar

e mutilar”. Ao que parece, a imagem de pessoas dançando e caídas no chão não foi

uma boa escolha para ilustrar os efeitos descritos no texto. O vício se espalhava

facilmente entre os “artistas imaginosos e desregrados, escriptores, musicos e outros

artistas” que frequentavam o reduto. (SAAD, 2013, p. 83).

É mais fácil construir infratores míticos e atribuir-lhes características que se encaixam

com nossas teorias. Definir algo como desviante ou como problema social torna a

demonstração empírica desnecessária e nos protege da descoberta de que nossa concepção

prévia é incorreta. Assim, protegemos nossos juízos éticos de testes empíricos, encerrando-os

em dogmas (BECKER, 2008, P. 202).

A sociologia do desvio não é uma teoria neutra. Observa-se em sua escolha de temas

de pesquisa uma postura crítica à ideologia, aos valores e métodos das agências de controle

social formal. O desvio, nesse ponto de vista, é mais do que o resultado de uma decisão

arbitrária e fortuita por parte dos grupos de aplicação de regras, antes é o modo pelo qual

alguns grupos atuam para manter estáveis as relações de poder (BECKER, 2008, P. 195).

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É nesse sentido que a teoria do labelling coloca em questão as chamadas

teorias da prevenção especial ou da função reeducativa da pena, já que, ao contrário do que é

falado, a intervenção penal ajuda a consolidar a identidade desviante do condenado

(BARATTA, 2011, P. 90). Coloca à prova, também, o princípio da igualdade, ao afirmar que

apenas alguns são selecionados e estigmatizados, colocando por terra a afirmação que o

Direito Penal trata a todos igualmente e na medida de sua desigualdade.

1.6. CRÍTICAS À SOCIOLOGIA DO DESVIO

Não obstante a mudança de paradigma realizada pela teoria do labelling approach, a

teoria é criticada por ser considerada uma teoria de médio alcance, por considerar a realidade

social analisada não só como ponto de chegada da análise, mas também como ponto de

partida (BARATTA, 2011, P. 99). Young critica a teoria da reação social por entender que em

muitos aspectos ela é unilateralmente determinista, ou seja, considera que os problemas e a

consciência do desviado são uma resposta simples à sua prisão e à aplicação do controle

social. (TAYLOR; WALTON; YOUNG, 1997, P. 292).

Indubitavelmente a teoria trouxe instrumentos úteis para a análise da questão criminal,

oferecendo uma série de elementos descritivos. Contudo, como é comum nas teorias de médio

alcance, não busca a resposta nas raízes do problema, analisando o contexto global. Ao focar

a abordagem no momento do etiquetamento, deixa de fora o fato que os comportamentos ditos

problemáticos têm suas bases em processos anteriores, nas relações pessoais, sociais, culturais

e econômicas.

A sociologia de Becker, ao apontar as deficiências do controle social, se limita aos

funcionários inferiores, excluindo as relações de poder e de classes da sociedade, além de não

esclarecer a origem inicial do desvio. Ela é politicamente limitada por não compreender a

estrutura de classes na sociedade, não identificar as relações de poder político e de exploração

econômica e sua interdependência do modo de produção capitalista. Ela não toma posição nas

lutas fundamentais da sociedade moderna. (SANTOS, 2006, P. 23/24)

Ao focar a análise no efeito das definições legais e dos mecanismos de estigmatização

e de controle social, a teoria deixa de analisar as contradições do sistema sócio econômico,

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que ficam obscurecidas. Contudo, entendemos que a chave das diversas dimensões da questão

criminal está na análise da estrutura social, historicamente determinada, em que determinada

realidade está inserida. É nesse contexto que surgem as teorias críticas, estudadas a seguir.

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2. A CRIMINOLOGIA CRÍTICA

“Se afasto do meu jardim os obstáculos que impedem o

sol e a água de fertilizar a terra, logo surgirão plantas de

cuja existência eu sequer suspeitava. Da mesma forma, o

desaparecimento do sistema punitivo estatal abrirá, num

convívio mais sadio e mais dinâmico, os caminhos de uma

nova justiça”.

Louk Hulsman.

2.1. A SOCIOLOGIA DO DESVIO COMO INFLUÊNCIA À CRIMINOLOGIA CRÍTICA

A criminalidade, na visão do labelling, era consequência de um jogo formal de

recíprocas interações. O desenvolvimento do paradigma da reação social no marco do conflito

foi importante, mas insuficiente, já que a atenção se fixou no processo de criminalização em

si, sem analisar os componentes estruturais da dimensão macrossociológica.

A criminologia crítica vai além. Ela vem para recuperar a análise da estrutura da

sociedade que gera, no mundo capitalista, os fenômenos de desvio. Vem para investigar as

funções simbólicas e reais do sistema penal, buscando desconstruir a ideologia da defesa

social.

A criminologia crítica recebeu numerosos aportes teóricos do labelling,

desenvolvendo, para além da questão da reação social, a dimensão do poder “numa

perspectiva materialista, cujo nível de abstração macrossociológica alça as relações de

poder e propriedade em que se estrutura conflitivamente a sociedade capitalista”.

(ANDRADE, 2003, P. 214).

A valorização do labelling se dá porque foi em razão da mudança de enfoque – do

comportamento desviante para os mecanismos de controle social, em especial para o processo

de criminalização – que o momento crítico atingiu sua maturação na Criminologia,

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transformando-se em uma teoria crítica e sociológica do sistema penal e dos processos de

marginalização que o sucedem. (ANDRADE, 2003, P. 218).

2.2. A INFLUÊNCIA DA ESTRUTURA ECONÔMICA NO SISTEMA PENAL E NO

SURGIMENTO DE UMA CRIMINOLOGIA CRÍTICA

A crítica do paradoxo entre a igualdade formal do direito e a desigualdade concreta e

substancial foi desenvolvida por Karl Marx. O marxismo pôs por terra o mito da igualdade do

direito, base de sustentação da defesa social. (BARATTA, 2011, P. 159). Marx se concentrou

nos problemas na economia política e nas relações entre capital e trabalho. Partindo do ponto

de vista do marxismo sobre a luta de classes, observou-se que a concepção liberal burguesa da

questão criminal priorizou os interesses das classes dominantes, imunizando seus

comportamentos socialmente danosos e dirigindo o processo de criminalização para as classes

menos abastadas (BATISTA, 2011, P. 90).

Young afirma que a sociologia política do delito estava em Marx indissoluvelmente

ligada com uma crítica política e uma análise racional dos ordenamentos sociais vigentes. O

delito era uma manifestação das limitações que sofrem os homens dentro de ordenamentos

sociais alienantes e, em parte, um índice da luta para superá-los. (TAYLOR; WALTON;

YOUNG, 1997, P. 290).

Um dos marcos da criminologia crítica foi a publicação do livro “Punição e Estrutura

Social”, de Rusche e Kirchheimer, que se tornou conhecido no final dos anos 1970. No livro,

os autores afirmam que o problema da relação entre trabalho e pobreza sofreu uma mudança

profunda durante o transcurso do século XVI, quando as condições de vida das classes

inferiores se deterioraram de forma notável (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1984, P. 39).

Com o aumento da escassez da mão-de-obra, criou-se uma cultura de que o ócio é o

pecado do mundo (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1984, P. 45). Aumentaram as queixas pela

falta de mão-de-obra e as leis repressivas levaram em conta o problema. A ideia era prevenir

que os pobres se eximissem de trabalhar, o que acontecia quando mendigavam ou desistiam

dos empregos em razão dos baixos salários e péssimas condições de trabalho (RUSCHE;

KIRCHHEIMER, 1984, P. 46).

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Rusche jamais produziu um reducionismo determinista, embora tenha condicionado a

prisão à estrutura econômica, política e social. Ele demonstrou que o sistema penal não é

ontológico nem absoluto, mas é moldado de acordo com as conveniências da regulação do

mercado de mão de obra (BATISTA, 2011, P. 93). Ele foi o primeiro a sistematizar a questão

criminal a partir do marxismo, analisando historicamente as relações entre as condições

sociais, mercados de trabalho e sistemas penais. Partindo da análise das diferentes fases do

processo de acumulação do capital, o autor procurou mostrar as diferenças dos sistemas

penais em cada uma das fases históricas.

Com a reforma protestante, emergiu a ideia de que o trabalho era o verdadeiro fim da

vida. Contudo, muitos trabalhadores não foram persuadidos por tal ideia, não aceitando

voluntariamente as novas teorias a respeito do trabalho. Em razão disso, foram criadas

medidas extremas, como as prisões, instituições onde os presos foram obrigados a conduzir

sua vida cotidiana conforme as necessidades da indústria (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1984,

P. 47). O objetivo era transformar em útil a mão-de-obra ociosa.

Sendo obrigados a trabalhar dentro da instituição, os prisioneiros adquiriam hábitos de

trabalho ao mesmo tempo em que recebiam um adestramento profissional, com o objetivo de

que, quando livres, pudessem se incorporar voluntariamente ao mercado de trabalho

(RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1984, P. 48). Em razão de seu objetivo, a maioria da população

das casas de correção era composta por mendigos e prostitutas, pobres e marginalizados no

geral.

Esse foi um período em que o trabalho nas prisões rendeu benefícios econômicos ao

Estado, que dava mais importância a seu interesse financeiro do que à reeducação dos

reclusos (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1984, P. 54). Os novos métodos punitivos obrigavam

aqueles que haviam infringido a lei a trabalhar em benefício do Estado.

A ideia recorrente na época estudada pelo autor era que os reclusos praticavam crimes,

geralmente, em razão do ócio, sendo que o trabalho era considerado pelos presos como o

maior dos males. Nesse sentido, a detenção sem o trabalho obrigatório não constituía uma

pena, logo, a imposição do trabalho aos reclusos, com a observância da mais estrita disciplina,

era a primeira exigência dos estabelecimentos penais (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1984, P.

57). Nas palavras de Foucault, “é proibido perder um tempo que é contado por Deus e pago

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pelos homens”. O desperdício de tempo no trabalho, então, consistia em um erro moral e

desonestidade econômica. (FOUCAULT, 1997, P. 131).

A prisão, assim, não surgiu em razão de um sentimento público de humanidade, mas

foi resultado do desenvolvimento capitalista. Os baixos salários pagos aos presos e o

adestramento de trabalhadores não qualificados constituíram uma significativa contribuição

ao surgimento do modo de produção capitalista (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1984, P. 58).

À partir da segunda metade do século XIX a Europa ingressou em um período de

prosperidade. O aumento da população acabou com o problema da escassez de mão-de-obra e

a imensa expansão industrial possibilitou uma grande absorção da força de trabalho. Em razão

desses motivos, a pena de prisão passou a ser considerada inadequada e ultrapassada

(RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1984, P. 167).

A nova perspectiva liberal influenciou Von Liszt e outros reformadores em todas as

partes do mundo, encontrando sua máxima expressão na filosofia positivista da segunda

metade do século XIX. Os reformadores criam que o homem era capaz de influir no

desenvolvimento humano da mesma maneira que dominava a natureza e que o delito podia

ser combatido por meio de uma adequada política social. Buscando afastar a função

retributiva da pena, esta passou a ser justificada em razão dos fins ideais do sistema punitivo –

corrigir a ação presente e advertir para o comportamento futuro -, gerando um distanciamento

maior da realidade social (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1984, P. 169).

Tanto o princípio da proporcionalidade das penas, como os refinados métodos do

processo penal constituem um produto da revolução burguesa. A independência do poder

judicial e a racionalização do direito penal constituíram excelentes armas na luta contra o que

restou do feudalismo e da burocracia absolutista. O formalismo do novo sistema, por sua vez,

não foi um obstáculo na luta contra as classes inferiores, já que o poder judicial era composto

exclusivamente pelos membros das classes dominantes, predominando a desigualdade

material nos julgamentos (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 1984, P. 170).

Nesse sentido, de acordo com o defendido por Rusche e Kirchheimer, o Direito Penal

é uma forma de garantia do poder político e econômico burguês. Assim, a independência do

poder judicial se converteu em uma ideologia para fazer frente às classes inferiores. A teoria

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de Rusche e Kirchheimer afirma que o mercado de trabalho é o determinante fundamental do

sistema de justiça criminal e, portanto, a categoria principal para explicar o sistema penal.

O avanço principal trazido por Rusche e Kirchheimer se deu no sentido de que são as

relações entre classes sociais no mercado de trabalho que explicam a generalização da prisão

como método de controle e disciplina das relações de produção e de distribuição da sociedade

capitalista, com objetivo de incultar no ser humano a força de trabalho necessária e adequada

ao aparelho produtivo. (SANTOS, 2006, P. 63).

2.3. AS RELAÇÕES DE (MICRO) PODER COMO DETERMINANTES PARA A

NORMALIZAÇÃO DOS CORPOS

Outro livro fundamental para o corte epistemológico da criminologia crítica foi Vigiar

e Punir, de Michel Foucault. A leitura aprofundada dos dois livros – Pena e Estrutura Social e

Vigiar e Punir – revela a influência de Rusche e Kirchheimer sobre Foucault, apesar dos

primeiros serem pouco citados pelo autor francês.

Foucault, com sua formação marxista, e a partir da influência de Rusche e

Kirchheimer, entendeu precocemente as novas estratégias de controle social. Ele trabalhou no

sentido contrário de parte da esquerda dos anos 70, que ansiava pelo aumento do poder

punitivo, na ilusão de punir os poderosos. Para além da luta de classes, trabalhou com a

disciplina na economia política do corpo, introduzindo o conceito de microfísica do poder.

(BATISTA, 2011, P. 94).

Foucault trabalhou com a ideia que o controle é uma das formas modernas de punição,

agindo de modo a perpetuar os efeitos da prisão não apenas no corpo. O controle é uma forma

de punição à medida que o indivíduo que não se encaixa no padrão não alcança a felicidade

estabelecida pela ideologia burguesa.

Com a transformação da sociedade burguesa e com a saída de poder das mãos do

soberano, o poder passa a ser exercido através de micropoderes. O objetivo desse poder

disciplinar, lembra Foucault, é sempre adestrar e docilizar os corpos, para que eles possam ser

submetidos e utilizados. Os corpos tem que ser úteis, produtivos e disciplinados para atender

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aos interesses da burguesia. Assim, é importante otimizar o tempo, disciplinar o soldado, o

aluno, o operário. (FOUCAULT, 1997, P. 118)

Dessa maneira, o poder se exerce sobre o corpo dos indivíduos para que não só façam

o que se quer, mas para que operem como se quer, de acordo com as técnicas determinadas. A

disciplina atua no corpo de modo a aumentar suas forças em termos econômicos de utilidade e

de diminuir as forças em termos políticos de obediência. Por isso, pode-se dizer que cria

corpos dóceis, que fazem o que se quer sem ter forças para resistir à sujeição a que está

submetido.

O mérito de Foucault foi demonstrar a mediação política do sistema punitivo, como

domínio das forças corporais para realizar objetivos econômicos específicos, consistentes na

extração de utilidade das forças dominadas, sob a fórmula de produção de “corpos dóceis e

úteis”. As práticas punitivas estão vinculadas ao modo de produção capitalista e funcionam

como um sistema de dominação para constituir um poder sobre o poder do corpo. O sistema

penal é uma estratégia de poder, parte da política das classes dominantes para a produção

permanente de uma “ideologia da submissão” em que todos os indivíduos são úteis ao sistema

produtivo. (SANTOS, 2006, P. 64).

2.4. A LÓGICA DA SELETIVIDADE DO SISTEMA

Bourdieu chama de poder simbólico esse poder invisível, que se vê por toda parte e

que só pode ser exercido com o apoio daqueles que não querem saber que estão sujeitos a esse

poder ou daqueles que o exercem. (BOURDIEU, 1989, P. 7/8). Esse poder não pode ser

analisado sem observar as ideologias, que são um produto coletivo e coletivamente

apropriado, servindo a interesses particulares, mas que tendem a se apresentar como interesses

universais, comuns ao conjunto do grupo. Essas ideologias contribuem para a integração real

da classe dominante e na integração fictícia das classes dominadas, contribuindo para a falta

de consciência destas e para a legitimação da ordem estabelecida. (BOURDIEU, 1989, P.

10/11). Nas palavras do autor, é necessário:

Ter presente que as ideologias/são sempre duplamente determinadas, - que elas

devem as suas características mais específicas não só aos interesses das classes ou

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das frações de classe que elas exprimem, mas também aos interesses específicos

daqueles que as produzem e à lógica específica do campo de produção – é possuir o

meio de evitar a redução brutal dos produtos ideológicos aos interesses das classes

que eles servem (efeito de „curto-circuito‟ frequente na crítica marxista) sem cair na

ilusão idealista a qual consiste em tratar as produções ideológicas como totalidades

auto-suficientes e auto geradas, passíveis de uma análise pura e puramente interna.

(BOURDIEU, 1989, P. 13).

Bourdieu afirma que os sistemas simbólicos cumprem a função política de

mecanismos de imposição ou de legitimação da dominação, contribuindo para a dominação de

uma classe sobre a outra (violência simbólica), reforçando as relações que as compõem, e

fortalecendo a „domesticação dos dominados‟. (BOURDIEU, 1989, P. 11).

As diferentes classes e frações de classes estão envolvidas numa luta propriamente

simbólica para imporem a definição do mundo social mais conforme aos seus

interesses, e imporem o campo das tomadas de posições ideológicas reproduzindo

em forma transfigurada o campo das posições sociais. Elas podem conduzir esta luta

quer discretamente, nos conflitos simbólicos da vida quotidiana, quer por procuração

por meio da luta travada pelos especialistas da produção simbólica e na qual está em

jogo o monopólio da violência simbólica legítima, quer dizer, do poder de impor – e

mesmo de inculcar – instrumentos de conhecimento e de expressão (taxinomias)

arbitrários – embora ignorados como tais – da realidade social. O campo de

produção simbólica é um microcosmos da luta simbólica entre as classes: é ao

servirem aos seus interesses na luta interna do campo de produção (e só nesta

medida) que os produtores servem os interesses dos grupos exteriores ao campo de

produção. (BOURDIEU, 1989, P. 12).

É nesse sentido que se afirma que a concepção liberal burguesa da questão criminal

priorizou os interesses das classes dominantes, imunizando seus comportamentos socialmente

danosos e dirigindo o processo de criminalização para as classes mais baixas. Assim, Baratta

afirma que a verdadeira relação entre o cárcere e a sociedade é entre quem exclui e quem é

excluído, entre quem tem o poder de criminalizar e quem está sujeito à criminalização. O

exercício de poder não se dirige à repressão do delito, mas à contenção de grupos sociais bem

determinados.

Essa análise nos ajuda a elucidar a origem da criminalização do uso de determinadas

substâncias, tais como o ópio, a cocaína e a maconha, proibidas por terem sido relacionadas,

respectivamente, com a população asiática, negra e latina. Assim, determinadas drogas

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passaram a ser associadas com a violência e a depravação sexual, como forma de conter a

“ameaça social” representada por determinados grupos. (DEL OLMO, 1990, P. 29).

Aqui está a quebra de paradigma realizado pela criminologia crítica. O enfoque dado

pelos conservadores não questiona a estrutura social ou as instituições jurídicas, dirigindo seu

estudo apenas para a minoria criminosa, fundamentando as causas do crime em patologias

individuais, traumas etc. Nesse estudo, o criminólogo é um indivíduo neutro, isento de

interesses pessoais (SANTOS, 2006, P. 4). O processo de formação dessa nova criminologia,

contudo, é inseparável da crítica aos componentes ideológicos e fundamentais da criminologia

dominante, isso porque já começa questionando as premissas que fundamentam o conceito de

crime e das estatísticas criminais.

De acordo com Foucault, o discurso “científico” da criminologia forneceu elementos

para que o sistema punitivo ocidental se legitimasse a partir do discurso científico da

criminologia. A função da criminologia tradicional, ao longo da história do Direito Penal

moderno, foi justificar as práticas punitivas sob a perspectiva do falso humanismo

representado pelo discurso ressocializador (CARVALHO, 2008, P. 127).

Desde o ponto de vista da criminologia crítica, o fundamento mais geral do ato

desviado deve ser investigado junto às bases estruturais, econômicas e sociais, que

caracterizam a sociedade na qual vive o autor do delito. O fundamento imediato do crime é a

ocasião, a experiência ou o desenvolvimento estrutural que fazem precipitar esse ato, não em

um sentido determinista, mas no sentido de eleger o caminho desviante como uma solução

dos problemas impostos pelo fato de viver em uma sociedade tão desigual (SHECAIRA, 2008

P. 352).

Em uma sociedade livre e igualitária, não só se troca uma gestão autoritária por uma

gestão social do controle do desvio, como o próprio conceito de desvio perde sua conotação

estigmatizante, recuperando funções e significados não exclusivamente negativos. Um

sociedade igualitária é aquela que deixa o máximo espaço ao desvio positivo, porque em um

sentido positivo, desvio quer dizer diversidade. (BARATTA, 2011, P. 207/208).

A sociedade igualitária é aquela que deixa o máximo de liberdade à expressão do

diverso, porque a diversidade é precisamente o que é garantido pela igualdade, isto

é, a expressão mais ampla da individualidade de cada homem, portanto, que

consente a maior contribuição criativa e crítica de cada homem à edificação e à

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riqueza comum de uma sociedade de “livres produtores”, na qual os homens não são

disciplinados como portadores de papéis, mas respeitados como portadores de

capacidades e de necessidades positivas. (BARATTA, 2011, P. 208).

Na concepção crítica, a criminalidade não é uma qualidade ontológica de

determinados comportamentos e determinados indivíduos, mas atua dando o status de

criminoso a alguns indivíduos específicos, crítica também realizada pelo Labelling Approach.

A diferença entre as teorias é que a criminologia crítica acrescenta que essa distribuição de

status se faz através de uma dupla seleção: em primeiro lugar, a seleção dos bens protegidos

penalmente e dos comportamentos ofensivos a estes bens; em segundo lugar, a seleção dos

indivíduos estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam infrações a normas

penalmente sancionadas. Como já afirmado, a criminalidade é um “bem negativo” distribuído

desigualmente de acordo com os interesses do sistema capitalista e conforme a desigualdade

social entre os indivíduos. (BARATTA, 2011, P. 161).

Baratta sintetiza a crítica ao Direito Penal em três proposições, que de acordo com

ele negam o mito da igualdade do Direito Penal. São elas:

a) O Direito penal não defende todos e somente os bens essenciais, nos quais

estão igualmente interessados todos os cidadãos, e quando pune as ofensas aos bens

essenciais, o faz com intensidade desigual e de modo fragmentário.

b) A lei penal não é igual para todos, o status de criminoso é distribuído de

modo desigual entre os indivíduos

c) O grau efetivo de tutela e a distribuição do status de criminoso são

independentes da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei, no

sentido de que estas não constituem a variável principal da reação criminalizante e

de sua intensidade. (BARATTA, 2011, P. 162).

A desigualdade constante no controle do desvio está presente nas chances que os

indivíduos possuem de serem definidos e controlados como desviantes. As maiores

possibilidades de ser selecionado para fazer parte da “população criminosa” estão

concentradas nos níveis mais baixos da escala social. A falta de qualificação profissional, os

problemas familiares e escolares, características comuns aos indivíduos pertencentes aos

níveis mais baixos, são considerados pela criminologia tradicional como causas da

criminalidade. A crítica, entretanto, os observa como pressupostos nos quais se assenta a

atribuição do status de criminoso. (BARATTA, 2011, P. 165).

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Quando se analisa os bens juridicamente protegidos observa-se que o “caráter

fragmentário” do Direito Penal não é neutro ou ingênuo, antes está baseado na ideologia

capitalista. Ele privilegia os interesses das classes dominantes, permitindo que estes sejam

imunes ao processo de criminalização.

Os comportamentos socialmente danosos ligados à acumulação de capital

recebem tratamento privilegiado face aos comportamentos socialmente danosos típicos dos

indivíduos das classes mais baixas. Isso se dá, por exemplo, na escolha dos bens jurídicos

protegidos e na intensidade da punição prevista para cada violação legal: a danosidade social

dos comportamentos não comporta proporcionalidade com as penas previstas e efetivamente

aplicadas.

Observa-se que quando se trata dos crimes tipicamente praticados pelas classes

subalternas a rede de repressão é muito fina, ao contrário do que acontece com os tipos legais

que tem por objeto a chamada criminalidade do colarinho branco. (BARATTA, 2011, P. 165).

Nesse sentido, é possível citar o exemplo dos crimes tributários, onde o pagamento integral do

débito, a qualquer tempo, extingue a punibilidade do agente9. Também nessa linha é o

entendimento jurisprudencial10

majoritário, que entende se aplicável o princípio da

insignificância em caso de sonegação de imposto em valor menor ao determinado por uma

Portaria da Fazenda Nacional. Atualmente, esse valor é de R$ 20.000, 0011

.

Por outro lado, não há previsão legal da extinção de punibilidade no caso do

ressarcimento do dano para os crimes contra o patrimônio, tais como roubo e furto. O

princípio da insignificância, por sua vez, não tem sido aceito no delito de porte de drogas

9 Lei 9.430/96: Artigo83 § 4

o Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no caput quando a pessoa física

ou a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos,

inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento. 10

O Supremo Tribunal Federal fixou entendimento quanto à aplicação do princípio da insignificância, na

hipótese da prática do crime de descaminho, no sentido de que "a análise quanto à incidência, ou não, do

princípio da insignificância na espécie deve considerar o valor objetivamente fixado pela Administração Pública

para o arquivamento, sem baixa na distribuição, dos autos das ações fiscais de débitos inscritos como Dívida

Ativa da União (art. 20 da Lei n. 10.522/02), que hoje equivale à quantia de R$ 10.000,00, e não o valor relativo

ao lançamento do crédito fiscal (art. 18 da Lei n. 10.522/02), equivalente a R$ 100,00"' (HC 96.309-9/RS, Rei.

Min. Cármen Lúcia, ia Turma do STF, unânime, julgado em 24/03/2009, DJe n. 75, divulgado em 23/04/2009 e

publicado em 24/04/2009; HC 96.374-9/PR, Rei. Min Ellen Gracie, 2a Turma do STF, unânime, julgado em

31/03/2009, DJe n. 75, divulgado em 23/04/2009 e publicado em 24/04/2009). 2. Hipótese em que o valor do

tributo devido é de R$17.510,07. A Portaria/MF n. 75, de 22/03/2012, elevou para R$20.000,00 (vinte mil reais)

(...). (STF – HABEAS CORPUS 126658. Rel. Min. Gilmar Mendes. DJe: 16/03/2015. 11

Portaria 75/2012, Artigo 1º, II - o não ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional,

cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais).

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ilícitas para uso pessoal, quando se trata de pequena quantidade de droga. Quanto à aplicação

do princípio da insignificância nos delitos de furto, a prática diária está repleta de exemplos

que demonstram a incoerência e a crueldade do sistema12

.

A ponta do iceberg do sistema penal burguês são as prisões. O momento do

aprisionamento é a consequência última de um processo de seleção que começa antes da

intervenção penal, com a discriminação social e escolar, com a intervenção dos institutos de

controle do desvio de menores, da assistência social etc. (BARATTA, 2011, P. 167).

Seguindo uma linha marxista, Young, Taylor e Walton, se interessaram pelos

ordenamentos sociais que obstruem o homem de alcançar a felicidade plena. Interessaram-se

pela libertação das limitações que impõem a produção forçada, a abolição da divisão do

trabalho, com a consequente evolução para uma sociedade em que não exista necessidade

política, econômica ou social de criminalização das condutas. (TAYLOR; WALTON;

YOUNG, 1997, P. 286).

A economia política do delito, segundo os autores, é a concepção de que as

origens mediatas do ato desviante só podem ser entendidas em função da situação econômica

e política da sociedade industrial. Assim, se deixa de lado a ideia do homem como indivíduo

“atomizado”, exilado em sua família ou em outras situações subculturais e afastado das

pressões existentes no contexto macro social em que está inserido. (TAYLOR; WALTON;

YOUNG, 1997, P. 286).

A crítica realizada pelos autores é que poucos são os criminólogos que

consideram os vínculos estreitos existentes entre a estrutura da economia política do Estado e

as iniciativas políticas que dão origem à sanção e às leis que definem o comportamento

punível na sociedade. (TAYLOR; WALTON; YOUNG, 1997, P. 289). A história da

criminologia é, assim, a história da despolitização dos problemas criminológicos. Importante,

por isso, uma nova criminologia, que deve ser apta para voltar a introduzir o político na

análise do que se tornaram questões técnicas. (TAYLOR; WALTON; YOUNG, 1997, P.

294).

12

Sobre o tema dos chamados “crimes de bagatela”, indicamos o documentário “Bagatela”, que relata algumas

histórias com sensibilidade e humanidade. Disponível em

<https://www.youtube.com/watch?v=HGzDSLokyGY> Acessado em 05 de outubro de 2015.

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2.5. A CRIMINOLOGIA RADICAL

Cirino defende uma criminologia radical, que teria como seu compromisso

primário a abolição das desigualdades sociais em riqueza e poder. De acordo com o autor, a

solução para o problema do crime prescinde da eliminação da exploração econômica e da

opressão política de classe, sendo o socialismo o fim último e desejado. (2006, P. 36)

O avanço em relação à teoria do labelling é que se parte do pressuposto que o

controle do crime pela ação da polícia, da justiça e da prisão assegura a continuidade do

sistema social de reprodução capitalista, que possui como dinâmica social a reprodução das

desigualdades e de marginalização. Sendo assim, é necessário estudar a ligação oculta entre o

controle e as relações de produção (SANTOS, 2006, P. 39, 40).

O sistema carcerário é o ponto central da crítica radical ao sistema de justiça

criminal. Isso porque ele reproduz as desigualdades das relações sociais capitalistas,

garantindo a separação do trabalhador aos meios de produção e reproduz um setor de

estigmatizados sociais. Ele recruta um exército industrial de reserva – como já adiantado por

Rusche -, qualificado negativamente em dois sentidos: pela posição estrutural de

marginalizado social e pela imposição superestrutural de sanções estigmatizantes. (SANTOS,

2006, P. 46).

A criminologia radical contesta o conceito burguês de crime, que é promovido

pela “cegueira ideológica” dos juristas, que não questionam o conteúdo da incriminação:

quem é prejudicado ou quem é beneficiado por ela. Esse conceito de crime descreve ações

contrárias à estrutura das relações sociais em que assenta seu poder de classe, sendo

imprescindível para a hegemonia do capital (SANTOS, 2006, P. 49-51).

A negação da igualdade do direito penal se dá na medida em que as massas

populares, circunscritas, geralmente, à criminalidade patrimonial, são submetidas a tribunais

ordinários e castigos rigorosos. A burguesia, por sua vez, circula nos espaços das leis em um

contexto silencioso, de omissões e tolerâncias. (SANTOS, 2006, P. 75). É o que Foucault

chamou de gestão diferencial da criminalidade, que se dá conforme a classe social do autor.

(FOUCAULT, 1997, P. 69/76).

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A prisão realiza a função de deduzir a dívida do crime na moeda do tempo do

condenado. Ela reproduz os mecanismos presentes na sociedade para a transformação coativa

do condenado. Nisto, aliás, reside a sua ineficácia ou “eficácia invertida”, que se dá através da

produção de reincidência, e da não diminuição da criminalidade. (FOUCAULT, 1997, P.

228/239). A prisão produz e reproduz fenômenos que, segundo o discurso ideológico, objetiva

controlar ou reduzir.

O objetivo real mais patente do sistema de justiça criminal é moralizar a classe

trabalhadora e camuflar a criminalidade dos opressores, de abuso do poder político e

econômico, com a tolerância das leis, a imparcialidade dos tribunais e o silêncio da imprensa.

A prática da administração diferencial da criminalidade se articula em um quadro histórico de

lutas sociais estruturadas no regime de propriedade privada e de exploração legal do trabalho.

(SANTOS, 2006, P. 82).

Nesse sentido, Zaffaroni afirma que a seletividade, a reprodução da violência, a

criação de condições para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a

concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou

comunitárias não são características conjunturais, mas estruturais do exercício de poder de

todos os sistemas penais. (ZAFFARONI, P. 15, 1991).

É por isso que juristas tem que parar de pensar a pena no “dever ser”, mas sim na

realidade letal dos nossos sistemas penais concretos. É com vista nessa realidade que se

propõe uma política criminal baseada na critica do direito penal e da criminologia tradicional.

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3. UMA POLÍTICA CRIMINAL ALTERNATIVA

“A melhor reforma do direito penal seria a de substitui-lo,

não por um direito penal melhor, mas por qualquer coisa

melhor que o Direito Penal.” Gustav Radbruch.

Partindo dos elementos já estudados, é necessário propor uma alternativa à

política criminal que tem sido aplicada no tema das drogas. Conforme já se viu, a política de

guerra às drogas parte do pressuposto de que o proibicionismo é apto a extirpar as drogas da

face da terra. Não obstante os esforços dos empreendedores morais13

, o que se observa é que a

atual política não foi apta a cumprir seus objetivos oficiais e, além disso, criou inúmeros

outros problemas, que podem ser considerados mais danosos do que o problema inicial a que

se buscou inicialmente combater.

A análise crítica da criminologia entende que as definições legais são atos

discursivos de poder, com efeitos concretos. Não são neutros no método ou nos objetivos.

Assim, para entender as políticas criminais, temos que entender a demanda por ordem de

nossa formação econômica e social.

A criminologia se relaciona com a luta pelo poder e necessidade de ordem

(BATISTA, 2011, P. 19). É essa ordem que é pregada pelos defensores da política criminal

proibicionista do uso de drogas. Essas substâncias inanimadas, que em dado momento da

história alcançaram a condição de ilegalidade, são consideradas como uma das grandes causas

– se não a maior - dos males do mundo. Da criminalidade à saúde pública, a legalização

drogas supostamente causaria a desorganização da sociedade.

A política criminal é o conjunto de princípios e recomendações para a reforma ou

transformação da legislação criminal e dos órgãos encarregados de sua aplicação. Ela engloba

a política de segurança pública, a política judiciária e a política penitenciária (BATISTA,

2011, P. 23) e não deve se reduzir à função de “conselheira da sanção legal”. Isso porque a

questão criminal se relaciona com a posição de poder e as necessidades de ordem de uma

13

Expressão cunhada por Becker e analisada na primeira parte deste capítulo.

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determinada classe social. Nesse sentido a política criminal surge como um saber/poder a

serviço da acumulação de capital.

A política criminal recebeu grande contribuição da teoria do labelling approach e

da teoria crítica de inspiração marxista. A criminologia do conflito deu grande importância ao

papel da criminologia como alimentadora da política criminal. (SÁ, SHECAIRA, 2008, P.

327).

Partindo da premissa de que a criminologia dá o direito penal o “substrato último

de conhecimento pré-jurídico”, a ideia é que a política criminal, enquanto disciplina

integrante das chamadas “ciências criminais”, indique aos agentes políticos as medidas e as

técnicas de intervenção com vistas a impedir ou diminuir o cometimento futuro de novos

delitos (SARCEDO, 2012, P. 145). Assim, utilizando o conhecimento científico

criminológico como referência e substrato, é função da política criminal transformar em

conhecimento “opções estratégicas concretas assumíveis pelo legislador e pelos poderes

públicos” (SÁ, SHECAIRA, 2008, p. 321 – 334).

Contudo, conforme já foi salientado neste trabalho, o sistema penal tem servido

para oprimir as populações marginalizadas ao longo da história. Essa opressão se dá sempre

com o substrato da ciência criminal, por isso é arriscado analisar uma política criminal como

se ela fosse apenas fruto de conhecimentos científicos e neutros. Vera Malaguti afirma que,

contra os perigos revolucionários da ideia de igualdade, nada melhor do que uma legitimação

“científica” da desigualdade. (2011, P. 27).

Roxin destaca que a dogmática deveria ser “penetrada” ou “influenciada” por

considerações político-criminais (ROXIN, 2000, p. 22). Figueiredo Dias vai além e afirma

que a posição de autonomia da política criminal deve passar para uma posição de domínio e

até de transcendência face à própria dogmática. Assim, os conceitos básicos da dogmática

penal devem não somente ser “penetrados” ou “influenciados”, mas sim determinados e

cunhados a partir de proposições político-criminais. (DIAS, 2007. P. 34).

Incumbe aos representantes da criminologia crítica elaborar as linhas de uma

política criminal alternativa, uma política das classes subalternas no setor do desvio. Só com

uma análise radical dos mecanismos e das funções reais do sistema penal na sociedade

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capitalista é possível criar uma estratégia autônoma e alternativa no setor do controle social

do desvio. (BARATTA, 2011, P. 197).

Salienta-se que para além de captar a descrição das desigualdades e das

contradições do sistema, é necessária a proposição de novas ideias. Isso porque, no nível

descritivo, resultados muito consideráveis já foram alcançados. A crítica é importante para o

processo de desconstrução de políticas criminais fracassadas, mas é necessário que além de

desconstruir, se construam novas políticas. É por isto que este trabalho buscou na política de

drogas portuguesa uma alternativa possível e viável para o modelo proibicionista adotado pelo

Brasil.

Filiando-nos à posição de Baratta, entendemos que a política criminal não deve se

circunscrever ao âmbito de exercício da função punitiva do Estado, mas deve agir como uma

política de transformação social e institucional. Nas palavras do autor, “entre todos os

instrumentos de política criminal o Direito Penal é, em última análise, o mais inadequado”.

(BARATTA, 2011, P. 201).

A questão penal está ligada às contradições estruturais que derivam das relações

sociais de produção, sendo assim, não é coerente que se sugira uma política criminal

alternativa com base em “substitutivos penais”, que permaneçam limitados a uma perspectiva

vagamente reformista e humanitária. Antes, é necessária uma política de grandes reformas

sociais e institucionais para o desenvolvimento da igualdade, da democracia, de formas de

vida comunitária e civil alternativas e mais humanas, enfim, da superação das relações sociais

e de produção capitalistas. (BARATTA, 2011, P. 201).

Interessa para o trabalho ressaltar que as decisões judiciais também são decisões

de política criminal, na medida em que elas aplicam a lei geral no caso concreto sob

julgamento, seguindo o programa valorativo e ideológico do juiz individualmente considerado

e do Poder Judiciário enquanto instituição (SARCEDO, 2012, P. 146). Nesse sentido,

Foucault afirmou que o sistema converteu o julgamento em prescrição técnica para normalizar

o sujeito. Os juízes, assim, legitimados pelo discurso científico predominante, têm

competência legal para impor medidas que visem normalizar os sujeitos (FOUCAULT, 1997,

P. 21/25).

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A classe dominante se interessa pela neutralização do desvio em limites que não

prejudiquem a funcionalidade do sistema econômico-social e os próprios interesses e, por

consequência, mantenham a hegemonia no processo seletivo de definição e perseguição da

criminalidade. As classes mais baixas, por sua vez, estão interessadas na luta contra os

comportamentos socialmente negativos, na superação das condições próprias do sistema

socioeconômico capitalista, às quais a própria criminologia tradicional não raramente tem

reportado os fenômenos da criminalidade (BARATTA, 2011, P. 198).

A política criminal moderna deve-se orientar no sentido da descriminalização e da

desjudicialização de modo a retirar do sistema punitivo o máximo de condutas possíveis

(BATISTA, 1974, P. 36) enquanto não for possível extinguir o sistema penal. Inversamente

do esperado numa sociedade democrática, o que assistimos, notadamente na questão das

drogas, é que o discurso jurídico-legal condiciona o debate, preestabelecendo dogmas que

terminam por engessar a discussão no campo dos demais atores do processo social no qual o

tema se insere. (RIBEIRO, 2014, P. 158).

A política criminal é subordinada à ideologia de classes dominantes. Sendo assim,

é imprescindível que se promova o desenvolvimento de uma consciência alternativa para

reverter as relações de hegemonia cultural (BARATTA, 2011, P. 205).

É com essa visão que Vera Malaguti, com sua posição sempre crítica, pergunta: a

que ordem os criminólogos devem seguir? “Devemos ser os criminólogos que formularemos a

política criminal da ordem necessária à reprodução do capital vídeo-financeiro, ou

estaremos na trincheira da resistência à barbárie?” (BATISTA, 2011, P. 28). Conclui a

autora:

Para os que estão na nossa trincheira, lembremo-nos das indicações

estratégicas de política criminal do imprescindível Alessandro Baratta:

1) Não reduzir a política de transformação à política penal.

2) Entender que o sistema penal é ontologicamente desigual, a

seletividade faz parte de sua natureza.

3) Lutar pela abolição da pena privativa de liberdade.

4) Travar a batalha cultural e subjetiva contra a legitimação do direito

desigual através das campanhas de lei e ordem. (BATISTA, 2011, p. 29)14

.

14

Conferir em BARATTA, 2011, fls. 201/205.

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3.1. DO MINIMALISMO AO ABOLICIONISMO PENAL

Os estudos de criminologia crítica contribuem para a formação de movimentos de

política criminal alternativa, representados pelas correntes de abolicionismo e do

minimalismo. Não se pode falar em apenas um tipo de minimalismo ou de abolicionismo,

uma vez que existem diferentes propostas das duas espécies.

Em uma visão geral, o abolicionismo não pugna extinção de qualquer controle

social e não prescinde da solução de conflitos. Ele busca soluções dialogais, não violentas e

democráticas dos conflitos. Para isso seria necessária “a reconstrução de vínculos solidários

de simpatia horizontais e comunitários, que permitam a solução desses conflitos sem a

necessidade de apelar para o modelo punitivo” atualmente em vigor. (ZAFFARONI, 1991. p.

104). O abolicionismo, pra além do fim do sistema penal, busca o fim de toda uma cultura

punitiva e estigmatizante. (ANDRADE, 2006, P. 473).

A grande questão que se coloca aqui é como será o dia seguinte após a abolição

do sistema penal, já que hoje não conseguimos enxergar nada além do caos e da guerra de

todos contra todos15

em uma sociedade sem o Direito Penal. A eliminação do sistema penal

não eliminaria as situações problemáticas, mas sim as soluções estereotipadas por ele

impostas. Seria possível, assim, que se criassem soluções que mal conseguimos imaginar. O

desaparecimento do sistema punitivo estatal abrirá, num convívio mais sadio e mais dinâmico,

os caminhos de uma nova justiça. (HULSMAN, 1993, P. 140).

Por outro lado, a proposta de abolição da pena não significa necessariamente

rejeitar qualquer medida coercitiva ou suprir totalmente a noção de responsabilidade pessoal.

A pena, como é concebida e aplicada no sistema penal de hoje é que deve ser abolida.

(HULSMAN, 1993, P. 86).

As correntes minimalistas também contestam a legitimidade do sistema penal,

mas propõem como alternativa um sistema penal mínimo. Nesse caso, os direitos humanos

cumpririam o papel limitador do Direito Penal, além de indicar quais os bens jurídicos

passíveis de tutela penal.

15

Termo cunhado por Thomas Hobbes no livro Leviatã e que descreve o estado da sociedade pré-contrato social

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70

O realismo marginal, de Eugenio Raul Zaffaroni, por exemplo, enumera

estratégias que objetivam reduzir o número de mortes e gerar “espaços de liberdade social

que permitam a reconstrução de vínculos comunitários apesar da concentração urbana”:

introduzir um discurso não violento, no que diz respeito ao sistema penal, nas universidades,

por exemplo, e neutralizar a propaganda violenta do sistema penal feita pelos meios de

comunicação de massa. O autor propõe o controle das notícias veiculadas, ressaltando que

isso não fere a liberdade de expressão (ZAFFARONI, 1991, p. 175/176).

3.2. CONCLUSÕES PRELIMINARES

Não cremos na separação da criminologia e da política criminal, porque todo

saber criminológico está previamente delimitado por uma intenção política (ou político

criminal, se assim se prefere). A criminologia não é, a nosso ver, uma ciência, mas o saber –

proveniente de múltiplos ramos – necessário para instrumentalizar uma decisão política, qual

seja, a de salvar vidas humanas e diminuir a violência política e, algum dia, chegar à

supressão da solução dos conflitos, se é que necessitam ser resolvidos, já que nem todos os

conflitos o necessitam, nem existe sociedade que tenha capacidade para resolver todos.

(ZAFFARONI, 1991, P. 177).

A ideia é salvar da solução penal tudo aquilo que for possível da sustentação para

a ideia da descriminalização (BATISTA, 1974, P. 34). O que se percebe é que alguns

comportamentos, como é o caso do uso de drogas, não merecem qualquer sanção penal. Isso

porque a consideração de política criminal que recomendou a incriminação desta conduta se

inspirou em apurados julgamentos morais do espírito e do tempo. (BATISTA, 1974, P. 38).

Hulsman, citado por Nilo Batista, afirma que a penalização não deve jamais ter

como primeiro objetivo a criação de um sistema visando ajudar ou tratar um delinquente no

seu próprio interesse (BATISTA, 1974, P. 39), como é o que acontece nos casos dos usuários

de drogas. Ela também não deve ocorrer quando gerar sobrecarga no sistema e não deve servir

para encobrir aparente solução do problema.

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71

Para Hulsman, a descriminalização16

é o “ato ou atividade pelos quais um

comportamento, em relação ao qual o sistema punitivo tem competência para aplicar

sanções, é colocado fora da competência desse sistema17

”. Sua discussão pressupõe um

descontentamento com o funcionamento atual do sistema penal e a ideia de que ela é capaz de

melhorar o atual estado das coisas.

O realismo marginal de Zaffaroni é, por certo, o que se pode chamar de estratégia

para alcançar o abolicionismo, que seria uma meta de longo prazo. Partindo da ideia de que a

situação é crítica e algo precisa ser feito agora, já que a sociedade proposta por Hulsman não

parece viável em um futuro próximo, cabe aos criminólogos a proposição de novas políticas

criminais.

Em razão da busca por uma política criminal específica e adequada ao caso

brasileiro é que se propôs a estudar o modelo português. Sabemos que o sistema penal é

seletivo e estigmatizante e que especialmente no que toca aos usuários de drogas ilícitas, a

ótica punitiva é útil apenas para causar mais danos aos envolvidos no processo.

Assim, o que podemos fazer para mudar o quadro em que os usuários estão

inseridos? Qual proposta jurídica poderia ser adotada? Qual órgão ficaria responsável pelos

eventuais problemas gerados pelo uso de drogas ilícitas? É necessário que se dê essa

responsabilidade a algum órgão? Quais profissionais estariam habilitados para lidar com os

usuários?

Para responder a essas perguntas, propomos uma análise das peculiaridades da

política de drogas adotada por Portugal, e a verificação da premissa que “as mudanças

trazidas com a descriminalização do uso de drogas foram benéficas ao usuário”.

Ressalta-se que os modelos alternativos não podem ser os mesmos para todos os

países. O problema da droga não se coloca da mesma forma e, portanto, as propostas de

solução devem levar em consideração o contexto social, cultural, econômico e político do

lugar. O fracasso do modelo proibicionista das drogas, para além de seus defeitos intrínsecos,

é prova que uma forma única não deve ser adotada simultaneamente em diversos países.

16

O conceito de descriminalização adotado neste trabalho será o de descriminalização legal, ou seja, quando a lei

afasta a ilegalidade da conduta. 17

HULSMAN, Louk H. C. Descriminalização, p. 7. Em HULSMAN, Louk. Penas perdidas, p. 105, o autor

afirma, de forma mais ampla, que: “Descriminalizar é tirar uma parte da realidade social do sistema penal.”

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Tratando-se de um trabalho que cuida especificamente da descriminalização do

uso de drogas, não é possível esquecer a crítica de Vera Malaguti a essa proposição. A autora

afirma que os projetos de descriminalização do usuário deixam ainda mais expostos à

demonização e criminalização as principais vítimas dos efeitos perversos da guerra às drogas:

a juventude pobre de nosso país, recrutada pelo mercado ilegal e pela falta de oportunidades

imposta pelo atual modelo econômico a que estamos submetidos. (BATISTA, 2013). Não

discordamos da crítica da autora, mas entendemos que por se tratar de uma guerra com

derramamento de sangue (BATISTA, 1997, P. 146), é imprescindível que alguma medida seja

tomada de imediato.

Zaffaroni afirma que o jurista tem que parar de pensar o direito no dever ser, e

começar a olhar para a crueldade do sistema. Observando a conjuntura política do Brasil, que

possui atualmente o Congresso Nacional mais conservador desde a ditadura militar18

, é difícil

acreditar que alguma medida muito progressista seja admitida. Sendo assim, lutar pelo menos

é lutar por uma possibilidade real de mudança. Ademais, como se verá na terceira parte deste

trabalho, os usuários de drogas que são apreendidos pela polícia são, em sua maioria, aqueles

normalmente selecionados pelo sistema penal, quais sejam, moradores de zonas periféricas da

cidade, negros, pobres.

É com base nessas ideias que apresentamos a política criminal adotada por

Portugal como uma alternativa ao nosso modelo. Partindo do paradigma da criminologia

crítica, observaremos quais foram as medidas adotadas por lá e em que os avanços

portugueses podem ajudar o Brasil a encontrar um novo caminho.

Nas palavras de Vera Malaguti:

Homenageando a Deputada Jandira Feghali, quero dizer que nossa política criminal

de drogas é um tigre de papel: sua fraqueza provém de sua força. Sua forma e seu

discurso de cruzada, moral e bélico, tem realizado muitas baixas, mas nada tem feito

contra o demônio que finge combater: a dependência química. Esta só pode ser

tratada com um olhar radicalmente diferente e que rompe com a esquizofrenia de

uma sociedade que precisa se drogar intensamente, mas que precisa demonizar e

vulnerabilizar as vítimas desse modelo perverso: dependentes químicos de

18

http://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,congresso-eleito-e-o-mais-conservador-desde-1964-afirma-

diap,1572528

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substâncias ilegais, jovens e negros pobres das favelas do Brasil, camponeses

colombianos ou imigrantes indesejáveis no hemisfério norte. (BATISTA, 2013).

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75

4. A POLÍTICA CRIMINAL DE DROGAS NO BRASIL

4.1. BREVE ANÁLISE HISTÓRICA DAS DROGAS NO BRASIL.

Só pra mostrar aos outros quase pretos (e são quase todos pretos)

E aos quase brancos pobres como pretos

Como é que pretos, pobres e mulatos

E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados.

(Haiti – Gilberto Gil e Caetano Veloso).

O percurso histórico da legislação de drogas do Brasil sofreu fortes influências

internacionais, mais especificamente, dos Estados Unidos, formando aquilo que Saulo de

Carvalho chamou de modelo transnacionalizado. A célebre fase do embaixador brasileiro nos

Estados Unidos, Juracy Magalhães, dita em 1966, confirma que o governo brasileiro se

preocupou em criar uma política de drogas alinhada com os anseios norte-americanos. O

embaixador afirmou na época que “o que é bom para os Estados Unidos, é bom para o

Brasil”. A tentativa de difundir um mesmo discurso universal, atemporal e a-histórico sobre o

“problema da droga”, como se a situação de cada país e de cada droga fossem semelhantes

(OLMO, 1990, P. 26), como se o contexto interno dos países fossem estáticos, e nada

tivessem a ver com o tema, contribuiu para que a política de drogas brasileira não alcançasse

o objetivo ao qual oficialmente se propôs, qual seja, o de acabar com as drogas ilícitas.

Até o final do século XIX não havia uma preocupação direta do Estado brasileiro com

o controle do uso de substâncias psicoativas. É verdade que em 1830 inicia-se o controle legal

sobre o uso da maconha, que passa a ser proibido. Contudo, naquele momento, a proibição

visava mais o controle da população negra e miscigenada, escrava ou liberta, na capital do

Império, do que o controle sobre o uso da substância em si. Isso porque a maconha era

diretamente associada às classes baixas, aos negros e mulatos e à bandidagem e era

necessidade do governo controlar práticas específicas dessas classes, que eram vistas como

perigosas (FIORE, 2005, P. 263).

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Nesse período, o uso de drogas como a cocaína, a morfina e a heroína era tolerado,

porque era comum nas classes mais abastadas. Essa tolerância encontrou seu fim quando o

uso dessas substâncias começou a ser realizado por indivíduos das camadas populares, por

prostitutas e delinquentes. O uso da maconha, por sua vez, nunca foi aceito, pois sua imagem

sempre esteve vinculada à de negros e mestiços (RODRIGUES, 2005, P. 302).

O fato da política de drogas brasileira ser uma forma de “importação” da política

americana causou muitos prejuízos, como por exemplo, a mistura incoerente de diversos

estereótipos da droga, surgidos em uma sociedade completamente distinta como a norte-

americana.

Na América Latina, quando se falava em “droga”, normalmente se referia à maconha,

que era a droga de maior consumo. Difundiu-se, então, uma série de informações que tinham

a ver com a heroína dos Estados Unidos, mas que, na América Latina, foram relacionadas

como características das drogas de uma maneira geral. Os resultados foram desastrosos,

porque foram importados e impostos discursos alheios que não consideravam as diferenças

entre as drogas ou entre os contextos dos países (OLMO, 1990, P. 46).

A Convenção de Haia (1912) foi o primeiro tratado internacional que estabeleceu

controles sobre a venda de ópio, e já em 1914 o presidente Hermes da Fonseca editou o

Decreto 2.861, que proibiu o uso da morfina, ópio, e seus derivados19

. O Decreto nº

4.294/2120

foi o primeiro a punir com prisão a venda de cocaína e do ópio e seus derivados.

Nesse diploma começa a surgir a figura do usuário de drogas, que é punido com internação

compulsória em estabelecimento correcional adequado, de acordo com o art. 3º:

Art. 3º Embriagar-se por habito, de tal modo que por actos inequivocos se torne

nocivo ou perigoso a Si proprio, a outrem, ou á ordem publica: Pena: internação

por tres mezes a um anno em estabelecimento correccional adequado.

19

O decreto possuía apenas um artigo, transcrito a seguir: Ficam aprovadas para produzirem todos eis seus

efeitos no território nacional as medidas tendentes a impedir os abusos crescentes do ópio, da morfina e seus

derivados, bem como da cocaína, constantes das resoluções aprovadas pela Conferência Internacional do Ópio

realizada em 10 de Dezembro de 1911 em Haia, e cujo protocolo foi assinado pelo representante do Brasil na

mesma Conferência. (Decreto 2.861, de 8 de julho de 1914).

20

Disponível em < http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1920-1929/decreto-4294-6-julho-1921-569300-

republicacao-92584-pl.html>. Acessado em 28/07/2015, às 10:28.

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77

Ainda em 1921, o Decreto 14.96921

, tipifica a figura do toxicômano e cria o

“Sanatório para Toxicômanos”. O Decreto nº 20.930/32, por sua vez, estabelece que a

toxicomania ou a intoxicação habitual por substâncias entorpecentes são consideradas

doenças de notificação compulsória, sendo que os “doentes” estavam sujeitos à internação

obrigatória ou facultativa, por tempo determinado ou não22

.

Nilo Batista salienta que o fato da lei prever que parentes de até o quarto grau

pudessem requerer a internação compulsória, criou um precioso instrumento de controle

familiar, porque uma vez decretada a internação pelo juiz, era nomeada “pessoa idônea para

acautelar os interesses do internado”, com “poderes de administração”, podendo o magistrado,

baseado em laudo médico, autorizar que o administrador, entre outras possibilidades,

alienasse os bens do “doente”, (BATISTA, 1997, P. 143).

Em 1938 é promulgado o Decreto nº 89123

, que proíbe o tratamento dos toxicômanos

em domicílio e prevê para usuários e traficantes a mesma pena: um a cinco anos de prisão.

Nesse período, outras três conferências, complementares às de Haia, tinham se realizado no

plano internacional, todas subscritas pelo Brasil e promulgadas internamente.

O golpe militar de 1964 aprofunda o caráter autoritário no Estado brasileiro, de acordo

com a doutrina de segurança nacional. Essa doutrina se justifica pela luta contra os “inimigos

internos” e a ameaça comunista (BATISTA, 2003, P. 78). Em pesquisa realizada pela

professora Vera Malaguti, foi encontrada em uma das fichas do Dops24

referências a Lenin,

Mao e Ho Chi Min, atribuindo-se a disseminação do uso de drogas a uma estratégia

21

Disponível em < http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1920-1929/decreto-14969-3-setembro-1921-

498564-norma-pe.html>. Acessado em 28/07/2015, às 10:41.

22 Art. 44 e 45 do Decreto Lei 20.930/32: A toxicomania ou a intoxicação habitual por substâncias entorpecentes

é considerada doença de notificação compulsória, feita com carater reservado, à autoridade sanitária local. Art.

45. Os toxicômanos e os intoxicados habituais por entorpecentes e pelas bebidas alcoólicas ou, em geral,

inebriantes, são passiveis de internação obrigatória ou facultativa por tempo determinado ou não. § 1º A

internação obrigatória dar-se-á quando provada a necessidade de tratamento adequado ao enfermo, ou a bem dos

interesses de ordem pública, sempre a requerimento do representante do Ministério Público, que, no Distrito

Federal, será o curador de Orfãos, e em virtude de decisão judiciária.

23 Disponível em <http://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/110787/lei-de-fiscalizacao-de-entorpecentes-

decreto-lei-891-38>. Acessado em 28/07/2015, às 11:22.

24 Departamento de Ordem Política e Social, que tinha como objetivo controlar e reprimir movimentos políticos

e sociais contrários à ditadura militar.

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78

comunista para a destruição do mundo ocidental (BATISTA, 2003, P. 85), tamanho é o

absurdo que se criou ao redor do “mito da droga”.

Nesse contexto é promulgada a Lei 5.726/7125

, que declara em seu artigo primeiro ser

“dever de toda pessoa física ou jurídica colaborar no combate ao tráfico e uso de substâncias

entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica”. Esse artigo foi inspirado

na Lei de Segurança Nacional de 1967, vigente no período26

. Assim, havia um dever jurídico,

fundamentado nos ilícitos omissivos, para converter qualquer opinião dissidente da política

repressiva em uma espécie de cumplicidade moral com as drogas (BATISTA, 1997, P. 139).

Nesse período, aumentam a quantidade de processos iniciados a partir da delação, sendo

grande o número de denúncias anônimas (BATISTA, 2003, P. 90).

Esta lei, além de manter a equiparação entre comércio ilícito e uso pessoal, permitiu o

oferecimento de denúncia sem o necessário laudo toxicológico, responsável pela

materialidade do delito, abrindo campo para o desrespeito às normas básicas de cidadania

(BATISTA, 2003, P. 88).

Interessante notar que o aumento da importância dada pela opinião pública ao tema

das drogas e da ação repressiva do Estado não teve como fator determinante o incremento do

consumo real, antes, se tratava do incremento do controle realizado pela medicina e pelo

Direito Penal, frutos de movimentos ligados à disputa do poder interno e internacional

(BATISTA, 2003, P. 82).

Desde sempre a nossa política de drogas exteriorizou a seletividade já conhecida do

sistema penal. Se no início da criminalização, as substâncias proibidas eram escolhidas de

acordo com o público que as utilizava, como forma de controlar determinados grupos, no

momento posterior, quando a maioria das substâncias já havia sido criminalizada, a diferença

se dava no tratamento que recebiam os usuários de classes diferentes. Aos jovens de classe

média, era aplicado o estereótipo médico, sendo assim, eles eram encaminhados para

tratamento. Aos jovens pobres, por sua vez, era aplicado o estereótipo criminal, com o apoio

da mídia e das campanhas de “lei e ordem”. Formava-se, assim, a figura do traficante, inimigo

25

Disponível em <http://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/103304/lei-5726-71>. Acessado em

28/07/2015, às 11:27.

26 Art. 1º, Decreto Lei 314/67 (Lei de Segurança Nacional): Art. 1º Toda pessoa natural ou jurídica é responsável

pela segurança nacional, nos limites definidos em lei.

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79

interno, sendo que a luta contra este novo inimigo justificava maiores intervenções no

controle social (BATISTA, 2003, P. 84).

No final da década de 1970, é lançada uma campanha antidrogas com conteúdo

semelhante em vários países da América Latina, fruto de propagandas norte-americanas, que

pretendiam incorporar na América Latina uma política antidrogas mais do que simbólica. Os

EUA, nesse período, separava os conceitos de “delinquente” e “doente”, com o objetivo de

livrar o consumidor da pena de prisão. Na América Latina, que não possuía os serviços de

assistência e tratamentos dos países do centro, essa diferenciação significou a privação da

liberdade e da capacidade de escolha do “doente”, que ficou sujeito a internações

compulsórias e, portanto, a um controle muito mais forte. (OLMO, 1990, P. 37/38).

Em 1978 é promulgada a lei 636827

, que volta a distinguir a figura do traficante e do

usuário no que se refere à duração da pena privativa de liberdade, contudo, o uso continua a

ser crime, ainda que volte a ser necessária a apresentação do laudo toxicológico.

Uma das análises mais interessantes que é possível fazer desse período nos é dada por

Vera Malaguti28

, que pesquisou o contexto em que a juventude do Rio de Janeiro era acusada

e processada pelo uso e tráfico de drogas durante a ditadura militar. O que se percebe é que,

infelizmente, o sistema sempre operou – e continua a operar – com o máximo de

arbitrariedade seletiva.

Em sua pesquisa, a autora observou que a maioria dos acusados tinham sido abordados

pelos policiais por estarem em “atitude suspeita”. Contudo, percebeu que a tão falada “atitude

suspeita” carrega um forte conteúdo de seletividade e estigmatização (BATISTA, 2003, P.

104). Nas brilhantes e insubstituíveis palavras da autora:

Analisando a fala dos policiais o que se vê é que a “atitude suspeita” não se

relaciona a nenhum ato suspeito, não é atributo do “fazer algo suspeito” mas sim de

ser, pertencer a um determinado grupo social; é isso que desperta suspeitas

automáticas. Jovens pobres, pardos ou negros estão em atitude suspeita andando na

rua, passando num taxi, sentados na grama do Aterro, na Pedra do Leme ou reunidos

num campo de futebol. (MALAGUTI, P. 103).

27

Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6368.htm>. Acessado em 28/07/2015, às 14:19.

28 Cf. Tese de Mestrado de Vera Malaguti Batista: Difíceis Ganhos Fáceis.

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80

Da análise dos processos escolhidos aleatoriamente entre 1968 e 1988, a autora

observou que a grande maioria dos jovens institucionalizados por portarem pequenas

quantidades de droga para consumo próprio era pobre e negra. Logo, concluiu que o que

determina a intervenção do sistema penal não é a droga ou a infração em si, mas as condições

econômicas e a etnia dos adolescentes envolvidos (BATISTA, 2003, P. 111).

A Constituição Federal de 1988, apesar de ser considerada uma Constituição

garantista, determinou que o tráfico de drogas constituísse crime inafiançável e insuscetível de

graça ou anistia29

.

A lei dos crimes hediondos, por sua vez, (Lei 8.072/90), proibiu o indulto e a liberdade

provisória para o tráfico de drogas, bem como determinou que a pena por este crime seria

integralmente cumprida em regime fechado. No entanto, no julgamento do HC 97.256/RS30

, o

STF decidiu ser possível a conversão de penas privativas de liberdade em restritiva de direito

aos condenados pelo crime de tráfico de entorpecentes e declarou inconstitucionais trechos do

art. 33, §4º e do art. 44, caput, da Lei nº 11.343/06, mais precisamente a passagem “vedada a

conversão em penas restritivas de direito. Em decorrência desse julgamento, o Senado Federal

Publicou a resolução n. 5/201231

, que determinou a suspensão da execução de parte do §4º do

art. 33 da lei de Drogas.

A severidade observada na legislação brasileira de drogas reflete a necessidade dos

governos latino-americanos de serem mais rígidos do que o próprio governo dos Estados

Unidos da América. Para além disso, também reflete a instrumentalidade da política de

drogas, utilizada para o controle social da população marginalizada, cujos filhos são

recrutados para trabalhar no tráfico (BATISTA, 1997, P. 143).

29

Art. 5º, CF, XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da

tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por

eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;

30 Disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=617879>. Acessado em

28/07/2015, às 15:10.

31 Disponível em < http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=104556>. Acessado

em 28/07/2015, às 15:12.

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81

Para concluir, salienta-se que a guerra às drogas não é uma guerra contra substâncias

inanimadas, chamadas de drogas. Guerras sempre se dão contra pessoas, e, nesse caso, está

bem delimitado quem são as pessoas que a guerra às drogas busca atingir. Ao observar os

danos “colaterais” da guerra, percebe-se que são maiores do que os danos causados pelo uso

das drogas em si.

É de Galeano a afirmação de que a história é um profeta com o olhar voltado para trás:

pelo que foi e contra o que foi, anuncia o que será (2014, P. 25). A análise histórica nos

mostra que a política de drogas adotada pelo Brasil teve – e continua tendo - efeitos

desastrosos e nos confirma que, se não mudarmos a estratégia, continuaremos a sofrer as

consequências de permanecer no erro.

4.2. A LEI 11.434

“O acusado, um jovem de 19 anos, de classe baixa, vendeu sua

bicicleta e, ainda com o dinheiro consigo, foi comprar

maconha. Ele era usuário. Comprou algumas gramas de

maconha, que vieram separadas em pequenas quantidades.

Esse fato foi suficiente para qualificá-lo como traficante.

Enquanto aguardava pelo julgamento, o réu ficou preso por

dois anos.”32

No Brasil, a lei de drogas de 2006 veio para substituir a antiga lei de drogas, que

datava ainda do período da ditadura, tendo sido promulgada em 1976. Na lei de 2006, o

tráfico de drogas teve elevação da pena mínima. Por outro lado o usuário foi despenalizado,

muito embora a conduta continuasse sendo considerada uma infração penal, um ilícito

criminal.

32

Disponível em <http://www.bancodeinjusticas.org.br/vendeu-a-bicicleta-e-foi-comprar-maconha-

traficante/#more-524> Acessado em 20/09/2015.

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82

A lei de drogas 11.343/06 adotou uma orientação político criminal de caráter dúplice:

por um lado, prevê a prevenção para o uso indevido, a atenção e a reinserção social de

usuários e dependentes, de outro, inclemente repressão ao tráfico. O discurso do legislador foi

contraditório, pois ao mesmo tempo em que se comprometeu com o respeito aos direitos

fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto à sua autonomia e liberdade33

,

despenalizando34

o uso de drogas, aumentou o teor repressivo, alargando o campo punitivo

com o aumento de penas35

.

Não obstante os processos de descriminalização sustentados por vários países

europeus nos últimos anos, o Brasil optou por manter o sistema proibicionista. Assim, apesar

de estabelecer formalmente a impossibilidade de aplicação de prisão aos usuários de drogas, a

lei conservou mecanismos penais de controle, com efeito moralizador e normalizador,

aproximando o usuário do sistema policial e de justiça e obstruindo a implementação de

políticas públicas saudáveis (CARVALHO, 2014, P. 101).

A lei 11.343/06 manteve a criminalização da posse para uso pessoal das drogas

qualificadas como ilícitas, mas afastou a cominação de pena privativa de liberdade para

prever penas de advertência, prestação de serviços à comunidade, comparecimento a

programa ou curso educativo e, em caso de descumprimento, admoestação e multa.

33

Lei 11.343/06 - Art. 4o São princípios do Sisnad: I - o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana,

especialmente quanto à sua autonomia e à sua liberdade; II - o respeito à diversidade e às especificidades

populacionais existentes; IX - a adoção de abordagem multidisciplinar que reconheça a interdependência e a

natureza complementar das atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e

dependentes de drogas, repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas; 34

Não se entrará no debate trazido por Luíz Flávio Gomes de que a lei 11.343/06 teria descriminalizado

formalmente o uso de drogas. Segundo o autor: “O caminho da descriminalização formal (e, ao mesmo tempo,

da despenalização) adotado agora (2006) pelo legislador brasileiro em relação ao usuário, de modo firme e

resoluto, constitui o ponto culminante de uma opção político-criminal minimalista (que se caracteriza pela

mínima intervenção do direito penal), sobretudo no âmbito do consumo pessoal de drogas. A lei brasileira,

nesse ponto, está em consonância com a legislação europeia: Portugal, Espanha, Holanda etc. (que adota, em

relação ao usuário, claramente, a política de redução de danos, não a punitivista norte-americana.”. (GOMES,

2006, P. 123). Como se vê nesse trabalho, o lado punitivista da lei 11.343 prevaleceu sobre o lado médico-

preventivo. No mesmo sentido, não se pode falar em descriminalização, que está sendo discutida no RExt

635659. Se o STF está discutindo a possibilidade de descriminalização do porte para uso de drogas, não há como

afirmar que a lei 11.343 descriminalizou o porte para uso, mas apenas despenalizou. 35

O artigo 12 da lei 6.368/76 previa a pena de 3 a 15 anos para o tráfico de drogas. A lei 11.343/06 alterou as

penas do tráfico para 5 a 15 anos (artigo 33).

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83

A nova lei de drogas alterou pouco a realidade legal em relação ao tratamento do

consumidor36

, pois, em termos práticos, a posse de drogas ilícitas para uso próprio já havia

sido despenalizada pela lei nº 6.416/7737

, que ampliou o sursis. A realidade da despenalização

da posse de drogas foi ainda reforçada pela lei nº 9.099/9538

, que trouxe a possibilidade da

suspensão condicional do processo e pela lei nº 10.259/0139

, que aumentou o alcance da

transação penal. (BOITEUX, 2006).

A realidade prática, por sua vez, sofreu alterações tanto em razão do aumento do

superencarceramento, quanto em razão da condenação de consumidores por tráfico, com a

aplicação da pena de um ano e oito meses40

. Explico. A lei 11.343/06 prevê, no artigo 33, §4º,

a possibilidade da redução das penas (para o crime de tráfico) serem reduzidas de um sexto a

dois terços, desde que o agente seja primário e de bons antecedentes, não se dedique a

atividades criminosas ou integre organizações criminosas.

Na prática do sistema criminal, contudo, é comum encontrar casos como o da Tamiris,

que foi denunciada pela prática de tráfico ilícito de entorpecentes, porque tinha em depósito 4

gramas de cocaína, distribuídos em nove cápsulas de plástico incolor. O juízo de primeiro

grau entendeu que se tratava de usuária de drogas, aplicando a pena de advertência prevista no

artigo 28 da lei 11.343/06.

O Tribunal do Estado de Justiça de São Paulo, contudo, ao julgar apelação do

Ministério Público, condenou a acusada pelo crime de tráfico de drogas, previsto no artigo 33

da mesma lei, fixando a pena em um ano e oito meses de reclusão em regime inicial fechado.

O TJ/SP, violando entendimento mais recente do STF, e violando as súmulas 71841

e 71942

,

36

Salienta-se que a nova lei de drogas modificou a realidade social no que se refere ao tratamento do traficante,

já que exasperou o limite das penas. Desde a promulgação da lei se verifica um aumento proporcional no número

de presos por tráfico muito acima do aumento da população carcerária em geral. De 2006 a 2010, por exemplo, o

número de presos por tráfico aumentou 118% enquanto a população carcerária cresceu 37%. Informação

disponível em < http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2011/07/949245-lei-antidrogas-aumenta-lotacao-

carceraria.shtml?mobile> Acessado em 08 de outubro de 2010. 37

Disponível em < http://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/103276/lei-6416-77> Acessado em 04 de

outubro de 2015. 38

Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9099.htm> Acessado em 04 de outubro de 2015. 39

Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10259.htm> Acessado em 04 de

outubro de 2015. 40

A pena mínima para o tráfico de drogas é de cinco anos, como a lei permite a redução de um sexto a dois

terços da pena, a redução máxima, resulta em uma pena de um ano e oito meses. 41

Súmula 718, STF: A opinião do julgador sobre a gravidade em abstrato do crime não constitui motivação

idônea para a imposição de regime mais severo do que o permitido segundo a pena aplicada.

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84

ambas do STF, utilizou a gravidade abstrata do delito para impor o cumprimento de pena em

regime mais severo que o permitido na lei.

O caso chegou ao Supremo Tribunal Federal, em forma de Habeas Corpus43

, onde foi

concedida a ordem para fixar o regime aberto para início de cumprimento da pena e a

substituição da pena privativa de liberdade por duas penas restritivas de direitos. Veem-se,

assim, as violências impostas pelo sistema penal aos usuários de drogas, que podem ser

denunciados e condenados como traficantes, já que dependem da discricionariedade dos

agentes públicos.

Luciana Boietux afirma que a despenalização teve por objetivo atuar como uma

“cortina de fumaça”, encobrindo o desproporcional aumento da pena do delito de tráfico de

drogas ilícitas. (BOITEUX, 2006). A bem da verdade, a lei 11.343 foi apenas um símbolo,

por ser a primeira vez em que a lei aboliu a pena de prisão para o delito de porte de drogas

ilícitas para o uso, ainda que tenha mantido o usuário dentro da esfera do controle penal.

Embora tenha havido substanciais alterações no modelo legal de incriminação,

notadamente do processo de despenalização do porte para uso pessoal, ainda é possível

afirmar que a lei de drogas brasileira manteve inalterado o sistema proibicionista que foi

inaugurado com a Lei 6.368/76. Sendo assim, a lógica iniciada nos anos 70 ficou consolidada

na Lei 11.343/06, em detrimento de projetos descriminalizadores.

Ao manter a criminalização do porte de drogas para o uso pessoal, conservou-se no

ordenamento o anacronismo e o autoritarismo da política criminal de drogas adotada pelo

Brasil, uma política com derramamento de sangue44

, cujos principais desdobramentos são o

uso do Direito Penal como instrumento de marginalização social e a imposição de óbices a

políticas preventivas e de redução de danos eficazes (TAFFARELO, 2006).

42

Súmula 719, STF: A imposição do regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige

motivação idônea. 43

Habeas Corpus nº 129.872. Relator Min. Gilmar Mendes. Julgamento dia 15/09/2015. HC impetrado pelo

Defensor Público Genival Torres Dantas e pelo estagiário Otacílio José Barreiros Júnior.

44 Expressão utilizada por Nilo Batista no texto “Política Criminal com derramamento de sangue”. In. Revista

Brasileira de Ciências Criminais. Nº 20. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

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85

A nova lei repetiu as violações ao princípio da lesividade, à liberdade individual e ao

respeito à vida privada45

, que são alguns dos pilares do Estado de Direito Democrático. Desse

modo, ela não trouxe nenhum avanço no campo do tratamento do usuário, pois ao repetir

violações a princípios e normas constitucionais e também das declarações de direitos

humanos, não pode ser considerada um avanço. Nesse sentido, Maria Lucia Karam (2006)

afirma que “nenhuma lei que suprime direitos fundamentais pode merecer aplausos ou ser

tolerada como resultado de uma conformista „política do possível”.

O cenário mantido pela lei 11.343/06, qual seja, a persistência da lógica

criminalizadora, obsta formalmente que o Estado crie, financie e incentive práticas redutoras

(CARVALHO, 2014, P. 175). Ademais, observa-se que o proibicionismo contradiz a

ideologia de prevenção anunciada pela lei 11.343/06, porque como se verá na última parte

deste trabalho, os órgãos estatais que entram em contato com o usuário de drogas não estão

preparados para lidar com ele.

Assim, o usuário de drogas só consegue optar pelo tratamento médico se ao longo do

processo de dependência não for selecionado pelo sistema penal. Ao entrar em contato com a

polícia ou com os agentes do judiciário, o usuário passa a ser tratado conforme o estigma que

recai sobre ele.

Os princípios e diretrizes trazidos pela Lei 11.343/06, identificados com políticas de

redução de danos, acabaram por ser ofuscados pela lógica proibicionista. Em razão disso, não

representaram senão uma mera indicação de intenções direcionadas ao sistema de saúde

pública. É em razão disso que Salo de Carvalho afirma haver uma falácia politicista presente

na Lei 11.434/06. Isso porque a lei simula a existência de um poder público preocupado com

os direitos sociais e não interventor na órbita dos direitos individuais. Por outro lado, o

discurso de redução de danos é invertido e utilizado para legitimar políticas e intervenções

proibicionistas (CARVALHO, 2014, P. 198).

Ademais, o paternalismo e a criminalização em relação ao uso de drogas ilícitas ignora

que sempre existiram e existirão usuários (dependentes ou não) que, seja pelo motivo que for,

não deixarão de usar drogas São pessoas que escolhem consumir e assim permanecerão.

45

A análise detalhada da violação desses princípios será realizada ainda neste capítulo, no item 1.1 – “O Direito

à intimidade e à vida privada.”

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Sendo assim, estigmatiza-los como delinquentes ou doentes em vez de meros consumidores,

significa desrespeitar seus direitos como cidadãos (WEIGERT, 2009, P. 94).

A seletividade que opera na escolha daqueles escolhidos pelo processo penal, também

existe na escolha das drogas que serão criminalizadas. Algumas drogas, não obstante o

comprovado potencial lesivo – como álcool e tabaco – são legais e tem o comércio permitido

e regulado. O álcool é alvo de todo o tipo de publicidade, usando, inclusive, celebridades com

grande influência sobre o público. O interesse da indústria – de bebidas, tabaco e farmacêutica

– teve grande influência sobre a licitude da comercialização dessas drogas.

Por outro lado, outras drogas foram proibidas, sendo que por detrás do discurso

proibicionista por vezes estiveram fundamentos econômicos, morais ou de contenção de

populações marginalizadas. Foi assim que a maconha foi eleita como grande inimiga social

em determinado período46

. A criminalização do uso impediu, inclusive, que se realizassem

estudos científicos que tratassem dos possíveis danos – e benefícios – trazidos pelo uso da

maconha47

.

No Brasil, a nova droga queridinha dos proibicionistas é o crack. Os usuários dessa

droga são vistos e retratados como “zumbis”, pessoas que perdem a alma. As ideias que

vivem no lugar comum tem sido reforçadas pela mídia, como aconteceu recentemente em

uma novela transmitida pela maior emissora do país. Uma das personagens da novela era uma

modelo, em perfeitas condições de saúde, que iniciou um relacionamento com um usuário de

crack e, por causa disso, começou a usar a droga.

O resultado foi que em pouco tempo a modelo aparentava ser um zumbi. Muito magra,

com os cabelos desgrenhados e os dentes estragados, passou a viver na rua com outros

usuários de crack. A imagem passada pela novela – de que o crack é uma droga no estilo usou

uma vez, viciou – foi reforçada por uma das revistas de maior circulação no país, que

estampou na capa uma imagem da personagem definhada pela droga afirmando que aquilo

46

Segundo Rosa Del Olmo, “Anos mais tarde, Asnlinger empreenderia uma cruzada contra a maconha a qual

qualificaria de verba assassina e escreveria, por exemplo, o seguinte: „se o horrível monstro Frankstein lutasse

contra o monstro Maconha, cairia morto de medo” (Bonnie e Whitebread, 1987, P. 14 In DEL OLMO, Rosa.

1989, p. 82).

47 Denis Russo Burgieman, em seu livro “o fim da guerra”, faz uma análise mais detalhada da origem da

criminalização da maconha, bem como dos efeitos medicinais de seu uso.

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87

não era só ficção. Não obstante existirem estudos que desmistificam esses conceitos

construídos sobre o crack48

, essas informações continuam a ser transmitidas.

Assim, observamos que, quando o usuário de drogas é abordado pela polícia e

posteriormente encaminhado para o juizado especial criminal, ele já passou por vários

processos de seleção – seja pelo bairro em que mora, pela cor de sua pela, pelo local em que

estava usando a droga, pela natureza da droga utilizada e até pelo humor do policial no

momento da abordagem. Nossa política de drogas, portanto, escolhe a dedo, por motivos

escusos, o que e a quem criminalizar, cabendo a nós, que estamos na trincheira a que se refere

Vera Malaguti, problematizar essas situações e apresentar propostas de alteração, que podem

se dar pela via legislativa ou pelo judiciário, como se verá a seguir.

4.3. O DEBATE A RESPEITO DA DESCRIMINALIZAÇÃO DO USO DE DROGAS NO

LEGISLATIVO

A descriminalização legislativa em sentido estrito é normalmente precedida pela

descriminalização de fato. Isso porque algumas condutas criminalizadas deixam, ao longo do

tempo, de ser consideradas danosas e passam a ser aceitas pela sociedade. O legislador, por

sua vez, ao perceber a adequação social de tal conduta, acaba por retirar sua previsão legal

como delito (CARVALHO, 2014, P. 101).

O princípio da adequação social ajuda a entender o porquê grande parte da sociedade

aceita a descriminalização do uso da maconha, mas repudia a descriminalização do uso das

demais drogas. A maconha é mais aceita socialmente, talvez por possuir uma baixa

capacidade de adição, ou por ser a droga que é mais utilizada no mundo49

, tendo usuários em

todas as classes sociais.

48

O neurocientista Carl Hart, em seu livro “um preço muito alto”, relata sua trajetória acadêmica e suas

pesquisas a respeito das causas do vício, da criminalização do uso do crack como um modo de marginalizar a

população negra e as conclusões a respeito dos efeitos do crack e da cocaína, por exemplo.

49 United Nations Office on Drugs and Crime. World Drugs Report 2015. Disponível em

<https://www.unodc.org/documents/wdr2015/World_Drug_Report_2015.pdf> Acesso em 21/09/2015.

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Atualmente, tramitam alguns projetos de lei com vistas a legalizar a plantação, o

cultivo, a colheita, a comercialização e a distribuição de maconha, como por exemplo o

Projeto de Lei nº 7270/201450

e o Projeto de Lei nº 7187/201451

.

O Projeto do Novo Código Penal (Projeto de Lei nº 236/1252

), por sua vez, previa a

descriminalização do porte para uso pessoal. O relatório53

do Senador Pedro Tarques sobre o

PLS 236/12 propôs que a incriminação fosse acrescida da criação de critério objetivo

distintivo entre as figuras típicas do consumo pessoal e do tráfico. A comissão de juristas

responsável pela elaboração de anteprojeto de Código Penal propôs que fosse presumida a

destinação da droga para uso pessoal quando a quantidade apreendida fosse suficiente para o

consumo médio individual por cinco dias, conforme definido pela autoridade administrativa

de saúde54

, seguindo, nesse ponto, o exitoso modelo da legislação de drogas portuguesa, de

2001. (IBCCRIM, 2013, P. 151).

Interessante ressaltar que, quando da discussão da descriminalização do uso de drogas

no PLS 236/12, o relator55

da lei 7.663/1056

, que propõe, entre outras coisas, a internação

involuntária do usuário de drogas, afirmou que não era possível estabelecer no Brasil medidas

baseadas na experiência de alguns países europeus, já que os programas de redução de danos

existentes na Europa tratam de drogas como heroína e anfetamina, drogas diferentes do crack,

que segundo o deputado, não é uma droga passível de ser alvo de políticas de redução de

danos57

. O deputado, sem estar amparado em argumentos científicos, prefere a criminalização

do uso do crack, reforçando a máxima que onde falta o conhecimento, abunda o punitivismo

penal

50

Disponível em <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1237297

&filename=PL+727 0/2014 > Acessado em 21/09/2015. 51

Disponível em <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid

=300B5638A9F686F4BC11589A4B3CEBE1.proposicoesWeb2?codteor=1231177&filename=PL+7187/2014>

Acessado em 21/09/2015. 52

Disponível em < http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20130821-07.pdf> Acessado em 21/09/2015. 53

Disponível em < http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=142673&tp=1> Acessado em

21/09/2015. 54

Artigo 212, §4º, Anteprojeto do Código Penal. Disponível em < http://www.senado.gov.br

/atividade/materia/getpdf.asp?t=110444&tp=1> Acessado em 21/09/2015. 55

O relator era o então deputado federal Givaldo Carimbão 56

Disponível em < http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb /prop_mostrarintegra?codteor=

789804&filename=PL+7663/2010> Acesso em 21/09/2015. 57

Disponível em < http://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2013/junho/novo-codigo-penal-libera-

o-uso-de-crack-e-outras-drogas-no-brasil> Acessado em 21/09/2015.

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Observa-se, assim, que a maconha alcançou algum status de adequação social – assim

como as outras drogas legalmente comercializadas, tais como o álcool, o tabaco, rivotril etc –

sendo que os setores da sociedade são relativamente favoráveis à descriminalização do uso de

tal droga. Contudo, no que se refere às demais drogas, notadamente ao crack, não há sequer

diálogo à respeito da descriminalização, não obstante serem os usuários de crack os mais

afetados pela ação de repressão estatal, já que a ação da polícia se volta principalmente contra

aqueles indivíduos que fazem uso da droga em ambientes desprotegidos, como é o caso de

quem usa o crack58

(VEDOVA, 2015).

4.4. O JULGAMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 635.659

Apesar dos projetos de lei que visam discutir a possível descriminalização do porte de

drogas para consumo pessoal, a questão alcançou maior relevância no julgamento do Recurso

Extraordinário nº 635.659, no qual o Supremo Tribunal Federal julgou a constitucionalidade

do artigo 28 da lei 11.343/0659

.

O recurso foi interposto pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em face de

decisão proferida pelo Colégio Recursal do Juizado Especial da Comarca de Diadema/SP, que

manteve a condenação de Francisco Benedito de Souza à pena de dois meses de prestação de

serviços gratuitos à comunidade ou entidade pública, por violação do artigo 28, caput, da Lei

nº 11.343/06.

Segundo a inicial do Recurso Extraordinário, o artigo 28, caput, da referida lei, estaria

em desacordo com a ordem constitucional, uma vez que não haveria, em relação à conduta

incriminada, a necessária lesividade a bem jurídico digno da tutela penal, tendo em vista que a

ação proibida pela norma incriminadora em questão, quanto muito, atingiria a saúde

58

A Fundação Oswaldo Cruz constatou que aproximadamente 40% dos usuários de crack no Brasil se

encontravam em situação de rua, passando nelas parte expressiva do seu tempo e que cerca de 80% dos usuários

de crack utiliza a droga em espaços públicos, ficando mais vulneráveis às situações de violência urbana que

envolvem os circuitos de uso. FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Estimativa do número de usuários de crack

e/ou similares nas Capitais do País. Livreto epidemiológico. São Paulo, 2013. Disponível em:

<http://portal.fiocruz.br/pt-br/content/maior-pesquisa-sobre-crack-j%C3%A1-feita-no-mundo-mostra-o-perfil-

do-consumo-no-brasil>. Acesso em: 21/09/2015. 59

Art. 28. “Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal,

drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes

penas (...)”

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individual, jamais a saúde pública. Aliás, pelo contrário, a criminalização das drogas afeta a

saúde pública, na medida em que afasta os usuários dependentes de drogas ilícitas a

procurarem amparo institucional, o que aumenta a exclusão social.

Por esta razão, a discussão a respeito da descriminalização do uso de drogas no Brasil

deixou de ser um debate eminentemente relacionado à eficácia das políticas públicas, mas sim

à constitucionalidade da criminalização do porte para consumo pessoal. Não obstante o

Supremo Tribunal Federal ser o guardião da Constituição Federal, o debate deambulou para

além da questão constitucional, entrando nas searas das políticas públicas e dos conceitos de

direito penal, como a questão do bem jurídico afetado com tal criminalização.

Enquanto este trabalho é escrito, o Recurso Extraordinário foi votado por apenas três

Ministros, que decidiram pela inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/06, com

algumas peculiaridades em cada voto, como, por exemplo, a descriminalização apenas do

porte para uso da “maconha”, defendida pelos Ministros Luiz Roberto Barroso e Luiz Edson

Fachin.

Independente de qual seja o entendimento dos ministros, o resultado do julgamento irá

influenciar a política de drogas brasileira. Se houver a descriminalização do porte para uso

pessoal, poderá ser um ponto de partida para a criação de políticas públicas mais saudáveis,

que busquem a inclusão e a prevenção sem estigmatizar o usuário. Mantendo a criminalização

do porte pra consumo pessoal, o STF pode atrasar a situação do debate à respeito da

criminalização, gerando na sociedade uma ideia de que ela não deve ser questionada, por se

tratar de assunto já resolvido, inclusive, pela Suprema Corte.

É em razão da relevância de tal julgamento que se fará a seguir uma análise dos

argumentos levantados durante o julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659. Dada a

consistência das posições sustentadas e apresentadas no bojo do Recurso Extraordinário em

Exame, inclusive pelos amici curiae, insta ressaltar a impossibilidade do esgotamento dos

argumentos apresentados no espaço deste trabalho. Cabe, aqui, destacar os principais pontos

os pontos tocados no julgamento e que mais interessam a este trabalho.

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4.5. O BEM JURÍDICO TUTELADO

A questão jurídica central que se pretendeu analisar no julgamento do referido recurso

foi a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/06, notadamente sob a ótima dos

princípios da dignidade humana (CF, artigo 1º, III), do pluralismo (CF, artigo 1º V), da

intimidade (CF, artigo 5º, X) e da isonomia (CF, artigo 5º, caput).

A lei 11.343/06 – que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas

– alterou o tratamento penal para o porte de drogas ilícitas para consumo pessoal, substituindo

a prisão de 6 meses a 2 anos ( e o pagamento de 20 a 50 dias-multa) prevista no artigo 16 da

revogada Lei 6.368/76, pelas penas de advertência, prestação de serviços à comunidade ou

medida educativa obrigatória, dispostas no artigo 28 da Lei 11.343/0660

.

Por se tratar de questão de interesse de diversos setores da sociedade, o STF aceitou

algumas instituições61

como amicus curiae. Desse modo, essas instituições puderam intervir

no debate, apresentando suas posições a respeito da constitucionalidade do artigo 28 da lei de

drogas. Durante a instrução do Recurso Extraordinário, os amici curiae apresentaram seus

memoriais, de modo a contribuir para a decisão dos ministros da suprema corte.

O princípio da lesividade foi levantado como um obstáculo instransponível à

criminalização do porte de drogas para o consumo próprio. Isso porque este princípio

pressupõe que a conduta incriminada exceda ao âmbito do próprio autor e que a conduta

criminalizada afete bem jurídico penal (IBCCRIM, 2012, P. 15).

60

Artigo 28: Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal,

drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes

penas: I – advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III – medida

educativa de comparecimento a programa ou curso educativo 61

Foram admitidas como amicus curiae: (i) À favor da descriminalização: Instituto Viva Rio; Comissão

Brasileira sobre drogas e democracia (CBDD); Associação Brasileira de Estudos Sociais do Uso de Psicoativos

(ABESUP); Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM); Instituto de Defesa do Direito de Defesa

(IDDD); Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT); Conectas Direitos Humanos;

Instituto Sou da Paz; Instituto Terra, Trabalho e Cidadania; Pastoral Carcerária; (ii) Contra a descriminalização:

Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (ADEPOL-BRASIL);; Associação Paulista para o

Desenvolvimento da Medicina (SPDM); Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras drogas; Associação

Brasileira pró-vida e pró-familia; Central de Articulação das entidades de saúde (CADES); Federação do Amor

Exigente (FEAE).

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A jurisprudência, contudo, para superar esse obstáculo, fez o que o IBCCRIM chamou

de “salto triplo carpado hermenêutico” (IBCCRIM, 2012, P. 16), e pacificou que a

incriminação do porte de drogas para consumo pessoal ofendia o bem jurídico “saúde

pública”, sendo um crime de perigo abstrato. Contudo, segundo Luis Greco (2010, P. 100),

como o comportamento pertence à esfera privada ou de autonomia do agente, a questão do

bem jurídico sequer deve ser colocada em questão.

O Ministério Público, no julgamento em questão, defendeu que o bem jurídico

tutelado pelo artigo 28 da lei 11.343/06 é a saúde pública, haja vista que a ação de quem porta

drogas para consumo próprio contribui para a propagação do vício no meio social. O

procurador geral da república, Rodrigo Janot, iniciou sua fala no plenário do julgamento do

Recurso Extraordinário nº 635659 do seguinte modo:

“no que se refere a esta imputação, o bem jurídico tutelado aqui, é, sem dúvida, a

saúde pública. É a saúde pública com o impacto no sistema da saúde pública que

expõe o porte de droga. A conduta do porte traz consigo a probabilidade de

propagação de vício no meio social. O porte de entorpecentes afeta não somente o

usuário, mas impacta a sociedade como um todo”.

Esse argumento foi trabalhado pelo advogado Pierpaolo Cruz Bottini, representante do

Instituto Viva Rio, que afirmou que a proteção de um bem jurídico não pode passar pela

criminalização de seu próprio titular. Isso porque é contraditório que o Estado subtraia a

liberdade de alguém com o objetivo de proteger essa mesma liberdade sobre outro prisma

(BOTTINI, 2015, P. 21).

A saúde pública não pode ser considerada o bem jurídico penal a justificar a

criminalização do porte de drogas para consumo pessoal por um antagonismo evidente: se o

consumo é pessoal, afeta a saúde individual, sendo assim, há apenas autolesão, o que

inviabiliza a atuação do direito penal (IBCCRIM, 2012, P. 17). A saúde pública só é ferida em

um sentido muito vago e remoto e, por este fundamento, o consumo de álcool também deveria

ser banido (BARROSO, P. 8), uma vez que as estatísticas revelam sua íntima ligação com

crimes dolosos e culposos (65% dos acidentes de trânsito são causados por motoristas que

dirigem sob efeito de álcool) 62

.

62

<http://www.antidrogas.com.br/mostraartigo.php?c=897> Acesso em: 26 set de 2015. Nesse sentido,

SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Drogas e politica criminal: entre o direito penal do inimigo e o direito penal

racional. In: REALE JR., Miguel Reale (Coord.). Drogas: aspectos legais e criminológicos. Rio de Janeiro:

Forense, 2005, p. 41.

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A questão do bem jurídico tutelado também foi abordada pelos ministros, quando

proferiram seus votos. O ministro relator, Gilmar Mendes, afirmou que a questão colocava de

um lado o direito coletivo à saúde e à segurança públicas, e de outro, o direito à intimidade e à

vida privada, assim, é necessário que se examine se não é possível que o bem jurídico

supostamente afetado não possa ser protegido de uma forma menos gravosa aos direitos

individuais (MENDES, 2015, P. 26). O ministro ainda asseverou que para que se considere a

saúde pública enquanto bem jurídico penal não é suficiente que se contate a importância

abstrata do bem, mas é necessário que esteja demonstrada a concreta afetação do bem, sendo

que a simples alusão a um gênero tão amplo não serve à delimitação do que é passível de

proteção penal (MENDES, 2015, P. 34).

O ministro Fachin, ao analisar a questão do bem jurídico tutelado no caso concreto,

utilizou os princípios da proporcionalidade e da ofensividade para concluir que a ofensa a um

bem individual não pode dar ensejo à criminalização (FACHIN, 2015, P. 09). O ministro

Barroso, por sua vez, afirmou que o único bem jurídico lesado pelo consumo da droga é a

própria saúde individual do usuário, sendo assim, trata-se de auto lesão, que não é punida pelo

Estado, logo, não havendo lesão a bem jurídico, a criminalização do consumo não se afigura

legítima. (BARROSO, P. 09).

Não obstante terem enfrentado a questão do bem jurídico de modo condizente com a

moderna doutrina de Direito Penal63

, tanto o ministro Luiz Roberto Barroso quanto o ministro

Luiz Edson Fachin, abriram mão da coerência entre a argumentação e a conclusão e optaram

por descriminalizar apenas o uso da maconha.

Provocado pelo Ministro Gilmar Mendes, o Ministro Luis Roberto Barroso

reconheceu que sua argumentação a respeito da inconstitucionalidade do artigo 28 é válida

para todas as outras drogas, mas que a análise do mundo real lhe impedia de chegar à

conclusão de que é possível descriminalizar o uso de todas as drogas. O Ministro Barroso

chegou a afirmar, inclusive, que o crack “tira a alma das pessoas”. Infeliz o raciocínio jurídico

aplicado nas conclusões dos Ministros Fachin e Barroso, já que os usuários das drogas mais

nocivas, dentre as quais se inclui o crack, são os mais vulneráveis, logo, os que mais

necessitam da descriminalização (VEDOVA, 2015).

63

Ensina Roxin, “la protección de normas morales, religiosas o ideológicas, cuya vulneración no tenga

repercusiones sociales, no pertenece emnabsoluto a los cometidos del Estado democrático de Derecho, que por

el contrario también debe proteger las concepciones discrepantes de las minorías y su puesta en práctica”.

ROXIN, Claus. Derecho penal. Parte General. 2. ed. Madri: Thomson, 2006, p. 63.

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O Ministro Barroso lembrou que o custo social da criminalização é altíssimo e

gera o “genocídio brasileiro de jovens pobres e negros imersos na violência retro

alimentadora desse sistema”. Se o Ministro se referia a uma parcela marginalizada dos

usuários de maconha, no caso do crack as características de vítimas do genocídio estão

estampadas pela maioria: jovens, pobres e negros64

.

Durante o ano de 2014, Gabriela Prioli Della Vedova desenvolveu uma pesquisa de

mestrado intitulada “A influência da repressão Penal sobre o usuário de crack na busca pelo

tratamento”, que contou com a participação de pacientes usuários de crack e profissionais de

saúde do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes. A questão central da

pesquisa era: existe coerência entre uma política pública que dirija, aos mesmos indivíduos,

ações de atenção e de repressão? (VEDOVA, 2015).

Um dos primeiros entrevistados na pesquisa afirmou que seu principal desafio era

conseguir-se ver-se “hoje, todos os dias, como „um ser humano‟, com sentimentos”.

(VEDOVA, 2015). Nas palavras da autora:

Os relatos, embora variem, são sempre negativos. Um dos entrevistados disse

que eles “Batem, humilham, xingam de tudo o que é nome e falam que a

gente é um lixo; que a gente é raça que não podia viver…”. Esse relato é

confirmado por outro paciente, que também afirmou que os policiais “Te

xingam de tudo quanto é nomes. Te batem. Te agridem psicologicamente de

todas as formas possíveis” e completou dizendo que “uma vez, um policial

ameaçou a fazer roleta-russa comigo. Sabe?”. Perguntado sobre qual seria o

motivo do policial, respondeu: “Por prazer sádico de maltratar um outro ser

humano”.

(...)

Como bem foi resumido por um dos profissionais de saúde entrevistados: “A

repressão aproxima quando? Eu acho que não é com respeito ao crack. Eu

acho que é com respeito a qualquer outra coisa. Se você quer que alguém

venha te procurar, você acolhe. Se você começa já a botar o dedo no nariz

da pessoa, é óbvio que ela não vem te procurar. Ela está frágil, ela está

precisando de ajuda, ela está com vergonha. Vem alguém já mostrando:

64

FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Estimativa do número de usuários de crack e/ou similares nas Capitais

do País. Livreto epidemiológico. São Paulo, 2013. Disponível em: <http://portal.fiocruz.br/pt-br/content/maior-

pesquisa-sobre-crack-j%C3%A1-feita-no-mundo-mostra-o-perfil-do-consumo-no-brasil>. Acesso em: 14 de

janeiro de 2014.

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„Que vergonha‟. O que você faz? Você vai embora. Você foge. Essa é a pior

política que você pode querer ter para alguém vir buscar ajuda”.

(VEDOVA, 2015)

Desse modo, a reprodução por um Ministro do Supremo, do discurso generalizante

que equipara todos os usuários de crack a indivíduos sem poder de autodeterminação agrava o

estigma que pesa sobre eles e, consequentemente, reduz a sua margem de oportunidades

legítimas (VEDOVA, 2015). A descriminalização apenas da maconha, além de não guardar

uma lógica jurídica, demonstra certo elitismo, já que a descriminalização não alcança os

usuários de drogas mais marginalizados e vulneráveis.

4.6. O DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA

O julgamento também abordou a questão da autonomia do usuário e do direito à

intimidade e à vida privada, presentes no artigo 5º, X, da Constituição Federal Brasileira. É

certo que não devem ter relevância penal os atos praticados dentro do espaço de

autodeterminação do indivíduo, sem repercussão para terceiros, sendo que o espaço de

legitimidade do direito penal é limitado em relação aos comportamentos que afetem ou

tenham potencial de afetar bens jurídicos relevantes para a autodeterminação do indivíduo

(BOTTINI, P. 17-20).

A questão do direito à intimidade foi muito bem exemplificada pelo Ministro Barroso:

“É preciso não confundir moral com direito. Há coisas que a sociedade pode achar

ruins, mas que nem por isso são ilícitas. Se um indivíduo, na solidão das suas noites,

bebe até cair desmaiado na cama, isso não parece bom, mas não é ilícito. Se ele

fumar meia carteira de cigarros entre o jantar e a hora de ir dormir, tampouco parece

bom, mas não é ilícito. Pois digo eu: o mesmo vale se, em lugar de beber ou

consumir cigarros, ele fumar um baseado65

. É ruim, mas não é papel do Estado se

imiscuir nessa área.” (BARROSO, 2015).

Os indivíduos tem o direito de escolher seus prazeres legítimos, e punir o porte de

drogas para consumo pessoal é uma forma de autoritarismo e paternalismo que impede o

65

Salienta-se o entendimento de que o raciocínio válido para o uso de maconha deve ser reconhecido para o uso

das demais drogas ilícitas, sendo assim, também não cabe ao Estado intervir na decisão daquele que decide usar,

por exemplo, crack entre o jantar e a hora de ir dormir.

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indivíduo de fazer suas escolhas existenciais. Nas palavras do Ministro Barroso: “Para

poupar a pessoa do risco, o Estado vive a vida dela. Não parece uma boa ideia”.

(BARROSO, P. 09). O Ministro Gilmar Mendes, no mesmo sentido, entendeu que a

criminalização da posse de drogas é inconstitucional por atingir, em grau máximo e

desnecessariamente, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, logo, claramente

desproporcional (MENDES, P. 40).

O Ministro Fachin, citando Carlos Santiago Nino, afirmou que criminalizar o porte de

droga para consumo próprio é impor um padrão moral individual, na tentativa de proteger

excessivamente o cidadão. Contudo, a medida criminalizadora não protege nem previne que o

sujeito se drogue, logo, se traduz em um paternalismo indevido e ineficaz. (FACHIN, P. 05).

O uso de drogas, apesar de ser considerado um comportamento moralmente

reprovável, não pode ser combatido através do Direito Penal, de modo que se imponha um

padrão de conduta individual aos cidadãos, estabelecendo, assim, um modelo de moral

privada, individual, que o Estado julga digno e adequado. (FACHIN, 2015, P. 03).

4.7. A ANÁLISE DA EFICÁCIA DA POLÍTICA PROIBICIONISTA

Outro ponto importante do julgamento foi a questão do fracasso da política da war on

drugs66

, reconhecida pelos ministros que proferiram os três primeiros votos. Essa questão

havia sido levantada pela Defensoria Pública67

, e pelos amici curiae, como, por exemplo, o

IBCCRIM68

e o Instituto Viva Rio69

.

66

Salienta-se que o fracasso da guerra às drogas foi reconhecido e, 2004 pelo atual presidente dos EUA, Barack

Obama. Nessa mesma linha, alguns estados americanos descriminalizaram o uso da maconha, enquanto outros

permitem o uso medicinal da planta. Essas alterações são significativas, porque os Estados Unidos sempre

estiveram na liderança da política proibicionista mundial. 67

Ocorre que, nas quase sete décadas que se seguiram desde a inauguração do modelo proibicionista, a

repressão ao consumo de substâncias psicotrópicas pouco coibiu tal conduta. Pelo contrário, a despeito do

recrudescimento do poder punitivo nessa área, verificou-se a majoração nos índices de uso de drogas ilícitas,

conforme aponta o Escritório sobre Drogas da ONU (UNODC). DEFENSORIA,2015, p. 03. 68

A war on drugs fracassou miseravelmente: apesar da repressão sem quartel a certas substâncias nos últimos

cem anos, as drogas ilegais nunca foram tão abundantes, baratas e acessíveis. Além de não ter reduzido

demanda e oferta de drogas ilegais, o proibicionismo causou inúmeros males, dentre os quais encarceramento em

massa, violência – ínsita ao modelo bélico – e corrupção. Memoriais IBCCRIM, 2012, p. 04.

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Os efeitos práticos da política de drogas foram reconhecidos pelo Ministro Gilmar

Mendes, que citou a seletividade do sistema penal como um dos efeitos da política repressiva.

O Ministro citou as mazelas do processo penal e da seletividade operada pela polícia:

“O padrão de abordagem é quase sempre o mesmo: atitude suspeita, busca

pessoal, pequena quantidade de droga e alguma quantia em dinheiro. Daí pra

frente, o sistema repressivo passa a funcionar de acordo com o que o policial

relatar no auto de flagrante, já que a sua palavra será, na maioria das vezes, a

única prova contra o acusado.” (MENDES, 2015, P. 19)

O Ministro Barroso, por sua vez, afirmou que o custo político, econômico e social da

opção da política proibicionista tem sido muito alto, sendo que insistir na repressão é uma

forma de fugir da realidade. É preciso ceder aos fatos. De uma forma sensível, o Ministro

citou o poema de Bertold Brecht, intitulado “Louvor à dúvida”: “Não creem nos fatos, creem

em si mesmos. Diante da realidade, são os fatos que devem neles acreditar”.

Contudo, ficou provado pela conclusão do próprio Ministro que deixar de acreditar em

si para acreditar nos fatos é uma decisão que vem carregada de obstáculos. Luis Roberto

Barroso, apesar de apresentar os dados do fracasso da política proibicionista e de entender,

por diversos argumentos, ser inconstitucional a criminalização do uso de drogas, escolheu

restringir o debate à descriminalização da maconha, deixando para outro momento, a

discussão a respeito das outras drogas ilícitas, concluindo seu voto de forma contraditória à

lógica jurídica apresentada em sua argumentação70

.

69

Em suma, a criminalização falhou na proteção da saúde pública e contribuiu para intensificar o dano à saúde

individual, uma vez que impede o desenvolvimento das já mencionadas políticas de redução de

danos, como a distribuição de seringas descartáveis e o aparelhamento de um sistema de saúde atrativo para o

usuário. VIVA RIO, 2015, P. 29-30. 70

Essa situação não é nova. Em Portugal, no início da vigência do decreto lei nº 15/93, um de seus responsáveis

políticos proclamou: “Numa área onde o desconhecimento ainda impera – manda a verdade e a humildade dizê-

lo! – não se deve partir de uma realidade experimentada e conhecida para uma aventura, ao encontro de uma

realidade que pode gerar, como em toda a parte tem gerado, efeitos perversos e particularmente contrários aos

pretendidos. A esse propósito valerá a pena recordar a experiência de outros países que, tendo abandonado a

penalização do consumo, dela se aproximam de novo, agora por via administrativa.” (SOEIRO, 1994, P. 23).

Mais uma vez, observa-se que a ignorância é amiga da criminalização.

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4.8. O ESTIGMA DO USUÁRIO

Em relação ao estigma do usuário, tema central deste trabalho, o Ministro relator,

Gilmar Mendes entendeu que a criminalização do porte para uso pessoal não condiz com a

realização dos fins almejados em relação ao tratamento dos usuários e dependentes, o que

demonstra a incongruência do sistema (MENDES, 2015, P. 16). Isso porque, na prática, a

simples previsão da conduta como infração penal resulta em crescente estigmatização,

neutralizando os objetivos expressamente definidos no sistema nacional de políticas sobre

drogas em relação a usuários e dependentes. Impede, portanto, uma sintonia do sistema com

políticas de redução de danos e de prevenção de riscos (MENDES, 2015, P. 18).

No mesmo sentido entendeu o Ministro Barroso, que afirmou que a criminalização

afasta o usuário do sistema de saúde pelo risco e pelo estigma, de modo que pessoas que

poderiam obter tratamento acabam não tendo acesso a ele. (BARROSO, 2015, P. 09).

4.9. DA CRIAÇÃO DE UM CRITÉRIO OBJETIVO DE DIFERENCIAÇÃO ENTRE

USUÁRIOS E TRAFICANTES

A política de drogas adotada por Portugal foi citada em vários momentos no

julgamento, tanto pelos amici curiae que se manifestaram, quanto pelos ministros em seus

votos, que apresentaram a política portuguesa como um modelo bem sucedido e uma possível

alternativa à política criminal brasileira, que optou pela criminalização do porte de drogas

para o consumo pessoal.

O Ministro Luis Roberto Barroso recomendou, inclusive, que se adote o critério de

diferenciação seguido por Portugal como regra geral, presumindo-se não se tratar de tráfico o

porte de até 25 gramas de Cannabis. (BARROSO, 2015, P. 16). O critério, contudo, não foi

seguido pelos Ministros Gilmar Mendes e Luis Edson Fachin, que consideraram muito

complexa a criação de um critério objetivo com vistas apenas em experiências internacionais.

O Ministro Gilmar Mendes entendeu que a regulamentação do critério objetivo de

diferenciação entre usuários e traficantes deve ser precedida de estudos sobre as

peculiaridades brasileiras. Como alternativas temporárias à ausência de critérios objetivos, o

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Ministro ressaltou que deve ser ônus da acusação a demonstração de finalidade diversa do

consumo pessoal e recomentou a apresentação do preso ao juiz, em curto prazo, para que o

magistrado possa avaliar as condições em que foi realizada a prisão. (MENDES, 2015, P. 52).

Para resolver o problema temporário que decorreria da descriminalização do porte

para uso pelo STF sem a definição de critérios objetivos para diferenciar usuários e

traficantes, o Ministro Fachin, seguindo o Ministro Gilmar Mendes, concordou que se adote a

audiência de apresentação do preso ao magistrado em até 24 horas, permitindo a verificação

no caso concreto pelo Magistrado. A decisão do Ministro está vinculada ao fato de que ele

acredita não ser papel do poder Judiciário, mas sim do legislativo, a fixação de tais parâmetros

objetivos. (FACHIN, 2015, P. 18)

Salienta-se que o Ministro Fachin sugeriu a criação de um Observatório Judicial sobre

Drogas, na forma de comissão temporária, para o fim de acompanhar os efeitos da deliberação

do STF a respeito da descriminalização do porte de drogas ilícitas para consumo pessoal,

especialmente em relação à diferenciação entre usuários e traficantes, bem como para ouvir

instituições, pesquisadores, cientistas, médicos, psicólogos, psiquiatras etc para apresentar

relato para subsidiar e sistematizar as mudanças advindas da decisão da Suprema Corte

(FACHIN, 2015, P. 19).

Nesse ponto, a decisão do Ministro lembra a política de drogas adotada por Portugal,

que criou o Servido de Intervenção nos comportamentos aditivos e nas dependências

(SICAD) para apoiar o governo a planejar as estratégias no campo das drogas, realizando

estudos de prevenção e de avaliação nos programas já adotados, como se verá no último

capítulo.

O julgamento do Recurso Extraordinário 635.659 apresentou alguns pontos ótimos,

em que os Ministros fundamentaram suas decisões com base em argumentos sólidos e frutos

de pesquisas científicas. Ao final, contudo, prevaleceu o preconceito em relação aos usuários

das outras drogas que não a maconha, de modo que dois dos três votos propalados até então

optaram por descriminalizar apenas esta droga.

Inúmeros países optaram recentemente pela descriminalização do uso apenas da

maconha. Salienta-se a fala do Ministro Luis Roberto Barroso, que afirmou que o Brasil

deveria sair na frente no que diz respeito à política de drogas. O Ministro, porém, votou pela

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100

descriminalização apenas da maconha. O ministro não se referiu exatamente a quais países o

Brasil “sairá na frente” se descriminalizar o uso da maconha. De Portugal, certamente não

será.

Resta, agora, aguardar os votos dos demais Ministros para saber qual posição

prevalecerá ao final do julgamento.

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101

5. A POLÍTICA DE DROGAS PORTUGUESA

“Arre, que tanto é muito pouco!

Arre, que tanta besta é muito pouca gente!

Arre, que Portugal que se vê é só isto!

Deixem ver o Portugal que não deixam ver!

Deixem que se veja, que esse é que é Portugal!

Ponto.”

Álvaro de Campos.

5.1. O PARADIGMA FISCAL

O paradigma fiscal pode ser considerado a primeira fase do Direito da Droga em

Portugal. Ela perpassa o período entre 1912 (Convenção Internacional do Ópio) e 1970. Para

explicar a grande duração desta fase é importante ressaltar que o problema da droga se

acentuou em Portugal na década de 1970, fase das guerras de independência das colônias

africanas, em que há um grande número de portugueses voltando para o país. Até este

período, os consumos eram quase exclusividade das elites, não conflitando com a ordem

estabelecida (POIARES, 1998, P. 96).

O primeiro registro de legislação internacional sobre o tema da droga é a conferência

de Haia (ou Convenção Internacional do Ópio - 1912), onde Portugal fazia parte do grupo

mais moderado em relação ao proibicionismo (POIARES, 1998, P. 78). Os motivos para uma

posição mais liberal, entretanto, eram diferentes dos existentes hoje.

No início do século XX, Portugal obtinha altos lucros com a comercialização do ópio

em suas colônias, especialmente na colônia de Macau. Nesta época, o Direito da Droga ainda

era essencialmente fiscal e comercial, sendo as vertentes penal e sanitária utilizadas apenas

em termos subsidiários (POIARES, 1998, P. 81). Nesse sentido, Almeida Santos71

assevera

que “(...) tempo houve em que o humanista ocidente, possesso de desumanidade, empreendeu

71

Discurso ministrado no Congresso Internacional para a Problemática da Droga em 1977.

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guerras para defender e impor o seu direito de exportar estupefacientes, ou seja, de vender,

com lucro, a destruição e morte (...)”.

O decreto nº 12.210, de 24 de agosto de 1926 foi a principal norma da fase do

paradigma fiscal. Nele se demonstra que a iniciativa nacional foi sempre resultante de

processos internacionais. Aqui, pretendeu-se adaptar o tema à Convenção do Ópio. Este

decreto mantém a perspectiva da droga como mercadoria, objeto de relações jurídicas,

comerciais e fiscais. Contudo, inicia uma preocupação com a saúde pública como bem

jurídico a ser protegido, desviando o foco, ainda que timidamente, para uma racionalidade

pré-sanitária (POIARES, 1998, P. 104).

Durante o período do chamado paradigma fiscal, a figura do consumidor começa a

aparecer nos normativos internacionais. Como exemplo, cita-se o artigo 5º da Convenção

Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 1950,

que equipara os toxicômanos aos vagabundos e aos eventuais propagadores de doenças

transmissíveis72

. Constata-se, então, que ainda não se pode falar em uma lógica criminal,

clínica, ou psicossocial: é uma lógica de neutralização e apartamento, permitindo a

estigmatização.

O direito internacional da droga, nesta época, caminhava no sentido de limitar a

fabricação e regulamentar a distribuição de estupefacientes73

. Importante citar a convenção

única sobre estupefacientes (1961), aprovada por setenta e sete países, que entrou em vigor

em 1964. Este tratado possuía como filosofia base a proibição total das das drogas à escala

planetária, por outro lado, atribuiu aos Estados o dever de assegurar o tratamento, a educação,

a pós-cura e a ressocialização dos toxicodependentes como substituto ou complemento da

condenação ou da sanção penal74

.

A época legislativa analisada, compreendida como do “Paradigma Fiscal”, portanto,

comporta institutos predominantemente fiscais e comerciais, representando a droga enquanto

72

Art. 5º, 1, e: e) Se se tratar da detenção legal de uma pessoa susceptível de propagar uma doença contagiosa,

de um alienado mental, de um alcoólico, de um toxicómano ou de um vagabundo; Disponível em

<http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhregionais/conv-tratados-04-11-950-ets-

5.html>.Acesso em 30/03/2015. 73

Cf. Convenção de Genebra (1925), O Acordo de Bangkok (1931), O Protocolo de Lake – Sucess (1946), O

Protocolo de Paris (1948), O Protocolo de Nova Iorque (1953). 74

Art. 36, 1-b, Convenção Única de 1961 sobre os estupefacientes. Disponível em

<http://www.obid.senad.gov.br/portais/OBID/biblioteca/documentos/Legislacao/ONU/329619.pdf> Acesso em

30/03/2015.

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103

mercadoria, cujas especificidades impõem a adoção de normas especiais sobre o comércio, a

distribuição e a venda de estupefacientes. Essas normas eram determinadas pela salvaguarda

da saúde pública, contudo, ainda se fala de uma noção de saúde limitada, que não permitia a

adoção de uma vertente sanitária, que primasse pela prestação de cuidados aos usuários e

dependentes de drogas.

O paradigma fiscal, assim, se mostrou essencialmente preocupado com a questão

econômica da comercialização das drogas, principalmente pelo fato de duas colônias

portuguesas – Timor e Macau- serem grandes produtoras de ópio, além do que, em Macau, o

consumo de ópio fazia parte de hábitos ancestrais, assim, é possível dizer que também

existiam razões culturais por detrás da oposição de Portugal aos interesses proibicionistas dos

Estados Unidos e da China. (GONÇALVES, 2012, P 162/163)

5.2. O PARADIGMA CRIMINAL (1970 – 1975)

O Paradigma Criminal se caracterizou pela instabilidade social em Portugal, e por ser

o período que antecedeu o 25 de abril de 1974, data da Revolução dos Cravos.

Utilizando a questão das drogas como uma estratégia para concretizar seus

interesses, os poderes públicos estabeleceram um paralelismo entre o consumo de substâncias

tóxicas, as rebeliões e a fuga à guerra (POIARES,1998, P. 141). Portugal vivenciava neste

momento um período de guerra com as colônias, que almejavam a independência, sendo

assim, necessitava de jovens que se dispusessem a lutar.

Esse era o momento em que a Pátria chamava os jovens a combater, para que a

grandeza do país – personificada no resquício do que um dia foi o império colonial - não

desaparecesse. Em resposta àqueles que se recusavam a lutar, criou-se a ideia de que a droga

havia dominado os jovens, conduzindo-os à loucura e ao enfraquecimento (POIARES, 1998,

P. 142). A droga se tornou, assim, o inimigo comum, que poderia levar o país à ruína, já que

contrastava com a grandeza nacional – que estava sendo defendida nas guerras nas colônias e

que necessitava de soldados para ser vencida.

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104

A primeira campanha de prevenção ao uso de drogas realizada pelo governo

português possuía como slogan a expressão Droga, Loucura e Morte. A campanha se traduziu

na afixação de cartazes pelas paredes de Lisboa e outras localidades75

. Fernandes (1993, p.

40) defende como essa campanha chamou a atenção para algo que ainda não se enraizara na

vida portuguesa, constituindo em fator de aliciamento ao uso de drogas e um apelo oficial ao

desconhecido. Completa Agra ( 1993, P.31-35) que a propaganda não lançou mão de nenhum

estudo epidemiológico sobre a incidência e prevalência76

do fenômeno, não sendo a campanha

baseada em critérios científicos ou técnicos.

Naquele momento não havia nenhum fato que pudesse alarmar a sociedade sobre o

problema das drogas, sendo assim, a propaganda foi uma tentativa do governo de criar um

inimigo externo comum a toda a sociedade, um “bode expiatório” que canalizasse o

descontentamento e os esforços dos cidadãos, relegando a insatisfação política e social a um

lugar de menor importância, contribuindo, assim, para a então ameaçada coesão nacional

(AGRA, 1993, P. 31-35).

É preciso destacar qual o perfil de consumidor que surgiu desta campanha. Criou-se

a imagem de um usuário perigoso para si e para terceiros, um ser humano dominado pela

substância entorpecente, que perde sua capacidade de ser um ente de contribuição social.

O grande avanço deste período é a quebra da lógica fiscal, dominante até então. A

opção legislativa de 1970 aponta no sentido de uma racionalidade criminal em relação ao

usuário de drogas, que se torna protagonista do Direito da Droga, recaindo sobre ele os

propósitos da punição jurídico penal. O consumidor é envolvido na lógica punitivista, sem se

recorrer a mecanismos terapêuticos e de intervenção psicológica e sociológica. O

protagonismo dado à figura do usuário, entretanto, ainda o mantém afastado de iniciativas

clínicas e psicossociais.

75

Cf. Anexo 1 (imagem droga loucura e morte com a explicação: "A caveira tem um símbolo de paz na testa,

numa alusão aos hippies. Por cima, duas palavras em letras garrafais: primeiro "DROGA", depois

"LOUCURA". Por baixo da caveira, a palavra apontada como consequência última da droga: "MORTE". Em

Abril de 1972 havia pelo país cartazes destes, e ainda hoje muitos se lembram desta imagem macabra como

tendo sido a primeira campanha oficial contra o consumo de droga em Portugal. "). 76

Incidência e Prevalência são medidas estatísticas. A prevalência, neste caso, mede a proporção de indivíduos

que são usuários de drogas em um determinado momento. A incidência se refere ao número de novos usuários

em uma população durante um determinado período.

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105

5.3. DA ARQUITETURA DOS DISPOSITIVOS À CONSTRUÇÃO DO PARADIGMA

CLÍNICO PSICOSSOCIAL.

A Revolução dos Cravos foi o marco que possibilitou a recuperação da liberdade dos

portugueses. A derrubada dos instrumentos de controle político vigentes durante o Estado

Novo, como a repressão policial e a censura, abriu a perspectiva para a participação popular

na edificação de um novo sistema. Após a Revolução de 25 de abril, o país iniciou uma série

de mudanças políticas, econômicas e sociais (POIARES, 1998, P. 162).

Neste período temos a edição do Decreto Lei nº 745/7577

. Observa-se neste diploma

uma lógica paternalista78

de necessária proteção da juventude79

. Há, também, uma lógica de

repressão, na medida em que o clínico80

e o policial são entendidos como elementos que

devem merecer uma ação coordenada e interligada entre si e entre os problemas psicossociais

da juventude.

Este diploma não sucede a nenhum estudo acerca das relações entre o consumo de

drogas e o cometimento de crimes, entretanto, cria o Centro de Estudos da Juventude,

competente para realizar o estudo dos problemas ligados ao uso da droga. Cria também o

Centro de Investigação Judiciária da Droga, a quem compete os estudos dos problemas

ligados à atividade judiciária relacionada com a droga.

Os centros criados, apesar de não terem abandonado a perspectiva criminal, possuem o

mérito de enveredar pelo caminho da pesquisa médica, demonstrando a compreensão de que a

questão da droga necessitava de outras linhas de intervenção. Desde já, observa-se que o

discurso técnico-científico foi progressivamente introduzido no discurso jurídico. A intenção

77

Disponível em <http://dre.tretas.org/dre/12155/>. Acessado em 31/03/2015. 78

Nas palavras de Rogério Taffarelo, “Assim é que, com algumas variações, a pretensão de se estabelecerem

deveres positivos ou negativos a indivíduos em nome de sua própria proteção costuma ser classificada como

paternalismo”. Disponível em <http://jota.info/paternalismo-legal-e-criminalizacao-das-drogas> . Acessado em

08 de outubro de 2015. 79

Consta no diploma legal nº 745/75: “Considerando ser de sérias proporções os números já atingidos por

consumidores de drogas no País, em especial nas camadas jovens; Considerando que é urgente a tomada de

medidas que visem o tratamento clínico, dos casos conhecidos, em moldes apropriados (...)”. Evidenciando a

lógica paternalista de necessária proteção da juventude e determinação de tratamentos clínicos. 80

Consta ainda no diploma, evidenciando seu caráter clínico: “Considerando a necessidade inadiável de

assegurar a cobertura profiláctica da população em alto risco recorrendo a métodos já comprovados e a técnicos

qualificados (...) Considerando que os dois aspectos do problema - o clínico e o policial – deveráo ser

equacionados a um nível nacional em organismos independentes, mas de acção coordenada e interligados com os

problemas psico-sociais da juventude”.

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era assimilar e explicar o fenômeno da droga, servindo-se das componentes médicas,

psicológicas e sociológicas. No entanto, ainda persistia o fundo político moral dos

normativos.

O Decreto 791/7681

vem para reforçar a ideia da droga como um flagelo que ameaça

destruir as sociedades humanas, sendo o tráfico de drogas a fonte e origem da disseminação

do consumo. Ao Centro de Investigação e Controle da Droga, caberia o papel de combater

„desde a folha até a raiz‟, as organizações responsáveis pelo tráfico. Aqui se observa que o

desejo de lucrar com a mais-valia política da droga fala mais alto do que a busca científica por

respostas.

A teimosia do legislador em insistir na política de guerra às drogas, iniciada nos anos

40 nos Estados Unidos da América82

, fica clara na expressão “Não se parte da certeza de

conseguir o que outros tentaram em vão. Mas ajuizará erradamente quem confiar que

partamos derrotados ou descrentes83

”. Ora, em vez de aceitar o fracasso da política de guerra

às drogas, que em 35 anos de existência não tinha cumprido o objetivo para o qual se propôs,

o governo português aceita o desafio de continuar a guerra contra as drogas, esperando um

resultado diferente, apesar de não alterar a „receita do bolo‟. Não há referência a nenhuma

base científica que tenha orientado as correlações droga/crime constantes no diploma, o que

há é a comprovação de que a ignorância sempre foi uma grande aliada da repressão penal.

Apesar das críticas necessárias, é importante ressaltar que o Decreto Lei, na sequência

dos normativos anteriores, mantém o órgão de investigação, que agora passa a se denominar

Centro de Investigação e Controle da Droga (CICD). A ele competia, entre outras coisas, a

investigação e o estudo dos problemas relacionados ao tráfico e ao consumo de drogas, bem

como ao tratamento centralizado de toda a informação com interesse para a prevenção e

investigação das infrações criminais relativas à droga.

O normativo deixa claro que, para o legislador, o problema não se resolvia apenas ao

nível singular – a prevenção carecia de um tratamento também global. Sendo assim, não

hesitou em determinar como incumbência do CICD o estudo científico e tratamento teórico de

dados: as características paradigmáticas revestidas pelo fenômeno droga suscitavam ao autor

81

Disponível em <http://dre.tretas.org/dre/98143/>. Acessado em 31/03/2015. 82

Cf. Capítulo I do livro O fim da guerra, do Denis Russo Buergiman. 83

Cf. Justificativa do Decreto Lei 791/76.

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das normas a necessidade de ver realizada uma investigação generalizada, buscando uma

explicação científica da toxicodependência. Ao legislador importava, então, não apenas a

gestão, mas também a compreensão do problema.

Contudo, ainda estamos em um período histórico em que o discurso político é de que

todos devem se unir nessa „guerra santa‟ contra a nova peste. O objetivo era erradicar a droga

da Terra (ALMEIDA SANTOS, 1977, P. 13-14). Há neste momento a edição do Decreto Lei

792/7684

, que destaca três fatores contribuintes para o problema das drogas: a crise de valores

da juventude nas sociedades de consumo; a crise das estruturas sociais e da família e os lucros

proporcionados pelo comércio e tráfico da droga.

O decreto-lei, contudo, é feliz ao afirmar que o problema não deve ser encarado

isoladamente, mas na sua complexidade médico-psico-sociológica:

Com efeito, situações de inadaptação social, de conflito na estrutura familiar, de

ócio laboral e escolar, e de insegurança, entre outras, constituem condições de alto

risco para o uso da droga, bem como para outras formas de condutas associais ou

anti-sociais. (Justificativa do Decreto Lei 792/76).

Ao mesmo passo que criminalizava o consumo de drogas, o governo deixava aberta a

porta para o uso das ciências médicas, buscando o tratamento do usuário. Observa-se que a

vertente clínica é invocada85

, mostrando um início de busca pela interdisciplinaridade no

tema. Assim, pode-se dizer que, reconhecida a multicausalidade86

do problema da droga, a

multireatividade foi adotada enquanto instrumento preventivo e de defesa social.

Apesar dos avanços e da afirmação de que é necessária uma atitude não alarmista nem

sensacionalista, adequada ao tratamento do problema, ainda se fala em internação

compulsória do usuário87

, que era considerado um infrator e um doente, O normativo

84

Disponível em < http://dre.tretas.org/dre/98131/>. Acessado em 31/03/2015. 85

Artigo 12, 1, a do Decreto Lei 792/76: A execução de programas de prevenção secundária do consumo da

droga, nomeadamente de apoio permanente, consulta, tratamento, ocupação terapêutica e observação. 86

Justificativa do Decreto Lei 792/76: Com efeito, situações de inadaptação social, de conflito na estrutura

familiar, de ócio laboral e escolar, e de insegurança, entre outras, constituem condições de alto risco para o uso

da droga. 87

Não obstante esse posicionamento a respeito da internação involuntária já ser sido abandonada há algum

tempo em Portugal, tramita no senado brasileiro o projeto de lei nº 7663/10 que propõe em seu artigo 23 a

internação involuntária – contra a vontade do usuário e a pedido de terceiro - , e a internação compulsória – por

decisão judicial. Esse projeto demonstra o preconceito e a desinformação de alguns setores da sociedade

brasileira com relação ao uso de drogas ilícitas. Salienta-se que estamos comparando um projeto de lei de 2010

com uma lei promulgada em 1976, demonstrando a iniciativa de implantar no Brasil um instituto que há muito

Portugal já desconsiderou.

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preleciona a necessidade de institucionalização em certos casos e condições em que o sujeito

não colabora com o tratamento clínico adequado. Ressalta-se que a medida obrigatória do

tratamento não deveria se possuir natureza penal88

.

Na sequência é promulgado o Decreto Lei 365/8289

, que traz informações relevantes a

respeito das avaliações da política de drogas adotadas até então. O Decreto afirma que após

cinco anos de atividade, já era possível realizar uma avaliação aprofundada dos meios e

competências atribuídos ao Centro de Estudos da Profilaxia da Droga (CEPD) e ao Centro de

Investigação e Controle da Droga (CICD).

Concluiu-se dos resultados obtidos até então – complementados com os elementos

colhidos da experiência mundial – que era necessária uma correção das estruturas

inicialmente estabelecidas para aqueles órgãos. A erradicação do tráfico ainda era vista como

a saída para a reinserção social e recuperação clínica dos dependentes e a profilaxia passaram

a receber um tratamento especial.

Os serviços orientados pelo decreto lei ficaram direcionados à análise dos problemas,

estudos científicos e tratamento teórico dos dados, devendo trabalhar em conjunto para criar

as diretrizes da política a ser seguida. O objetivo era criar uma filosofia comum com a

participação de todos os intervenientes do processo. A busca de informações que auxiliem na

formação de políticas públicas fica clara no artigo 2º, a, do Decreto Lei90

.

Fica clara a percepção de que são necessários estudos científicos que possam servir de

base para a intervenção na política de drogas. Desde cedo, observa-se que o legislador

português se preocupou não apenas com a especificidade pluridisciplinar do tema das drogas,

abrindo o campo para outras áreas do conhecimento, mas também se preocupou com a

produção de pesquisas que auxiliassem a criar respostas adequadas.

Verifica-se no Decreto Lei 365/82 que o programa nacional e os planos anuais de ação

do CEPD deveriam ser submetidos ao Ministro da Justiça, sendo este o responsável por

coordenar a execução de tais planos. O Decreto ainda informa que o CICD é um órgão

88

CF. Justificativa do Decreto Lei 792/76. 89

Disponível em <http://dre.tretas.org/dre/19546/>. Acessado em 01/04/2015. 90

“Preparar estudos de fundamentação estratégica e de definição de políticas para elaborar em colaboração com

o CEPD e com os organismos que integram o grupo de planeamento um programa nacional de luta contra a

droga, bem como os objetivos a atingir anualmente no seu âmbito.”

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integrado na Polícia judiciária, que deverá exercer todas as atribuições e competências legais

do organismo. Importante ressaltar que, ao atribuir essa questão aos órgãos de justiça,

permanece a ideia de que o usuário de droga é um „problema de polícia‟. Logo, apesar desse

período ser chamado de “clínico”, ainda se observa uma lógica de criminalização do usuário.

Com o aumento da entrada de drogas em Portugal na década de 1970, o governo

iniciou uma nova modalidade de combate à droga, se socorrendo de outros campos do saber,

que não o direito. Como visto acima, o legislador ainda fundamentava-se no senso comum na

formulação dos normativos. Contudo, a perspectiva essencialmente criminal foi abandonada,

iniciando-se uma fase clínico-psicossocial da droga, havendo um processo de maturação, em

que o legislador demonstrou o intento de dotar a política de droga com uma feição científica.

A linha plurisdisciplinar que foi gradualmente adotada veio em conjunto com a criação

de institutos de pesquisa relacionados ao tema da droga. A contribuição da ciência fez com

que o usuário de drogas deixasse de ser visto preponderantemente como um criminoso,

abrindo caminho para a construção do paradigma biopsicossociológico.

Insta salientar que a alteração do modo como era visto o usuário foi, em grande parte,

motivada pelo conhecimento do quotidiano judicial. Os julgadores começaram a formar a

convicção de que o flagelo da droga era mais do que um caso criminal e não possuía natureza

jurídica (POIARES, p. 222).

5.4. A FASE DE 1983 – 1995: A CONSTRUÇÃO DO PARADIGMA

BIOPSICOSSOCIOLÓGICO.

O Decreto lei 430/83 foi paradigmático no que diz respeito à reforma da lei da droga.

Ele emanou dos Ministérios da Justiça e da Saúde e tipificou novos ilícitos penais e

contravencionais, definindo novas penas ou modificando as vigentes até então. O objetivo do

normativo era se adequar aos parâmetros internacionais91

, pois era necessária uma moldagem

91

Portugal ratificou, em Dezembro de 1971, a Convenção única de 1961 sobre os Estupefacientes e, em Abril de

1979, aderiu à Convenção sobre as Substâncias Psicotrópicas, de 1971.

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do direito interno para se inserir harmonicamente na luta internacional contra o tráfico e o

consumo de drogas92

.

Neste momento inicia-se uma política que parte do princípio de que o combate ao

consumo de estupefacientes e psicotrópicos deve incidir mais no componente preventivo do

que no repressivo (POIARES, 1998, P. 247). Esta lógica estava presente na legislação desde o

Decreto –Lei nº 745/75, evoluindo nos anos seguintes e atingindo seu ápice no Decreto-Lei nº

365/82, na demonstração de que a perspectiva legislativa mudava de rumo. Essa mudança foi

acentuada pelo documento elaborado pelos especialistas das Nações Unidas que, para a

elaboração de tal documento93

, se deslocaram a Portugal e levaram em conta algumas

experiências estrangeiras, como a italiana, a francesa e a suíça, bem como as recomendações

internacionais a respeito do tema94

.

A alteração mais importante na visão do legislador português se deu com relação ao

usuário, que deixou de ser visto apenas como um delinquente. A lei passou a englobar a

tentativa de compreender o fenômeno multicausal da droga, solicitando ajuda às ciências do

comportamento. Este pedido fica mais explícito nos decretos leis nº 792/76 e 365/82. A partir

desses normativos operou-se a mudança decisiva na trajetória legal, adotando uma perspectiva

mais abrangente das componentes médica, psicológica e sociológica (POIARES, 1998, P.

253). Desde 1975 observa-se uma maior receptividade aos saberes, à medida em que se ia

adquirindo a conscientização que o surto da droga não acharia solução no espaço fechado do

Direito.

Com a abertura ao saber observa-se uma mudança de postura. Em 1976 a

racionalidade legislativa indicava que era necessária a erradicação do tráfico, já que era ele o

responsável pela existência do consumo. No Decreto-Lei de 1983, seguindo uma tendência

normativa já indicada em 1982, a questão já era encarada pela ótica inversa: da necessidade

de diminuição na procura por parte dos consumidores.

As atenções terapêuticas dispensadas aos usuários de drogas passam a incidir não

somente na vertente médica, ocorrendo também em outros níveis, particularmente na vertente

psicológica. O Instituto de Reinserção Social passa a ser solicitado para dar informações aos

92

Cf. Justificativa do Decreto-Lei 440/83 93

Disponívelem<http://assembly.coe.int/Main.asp?link=/Documents/AdoptedText/ta91/EREC1141.htm>.

Acessado em 03/04/2011. 94

Disponívelem<http://www.sicad.pt/PT/Institucional/Historico/Paginas/detalhe.aspx?itemId=7&lista=SICAD_

HISTORICO&bkUrl=BK/Institucional/Historico/>. Acessado em 02/04/2015.

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julgadores. Assiste-se, assim, à construção do estatuto do toxicodependente fundado nas

componentes médica, biológica, psicológica e sociológica (POIARES, 1998, P. 307).

Em 1992 se acentua a necessidade de reformar o ordenamento jurídico-penal da droga,

buscando adequá-lo aos pactos internacionais aprovados (Convenção das Nações Unidas

contra o tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas, de 1988)95

.

Dessa necessidade de compatibilizar o Direito nacional com o Direito internacional

surgiu a lei nº 15/9396

. Essa lei, na continuidade de suas antecessoras, fixou a ideia de que o

fenômeno da droga era de natureza pluridisciplinar, reclamando uma abordagem de diversas

áreas do saber, propondo uma profunda conjugação entre o sistema judiciário e os serviços de

saúde, mantendo a opção pelo modelo médico-psicosociológico.

O avanço do modo como o consumidor era visto, contudo, não se deu de tal modo que

fosse afastada a criminalização do uso. A defesa da perspectiva proibicionista ainda era

defendida por detentores do Poder, como era o caso do Secretário de Estado Borges Soeiro:

“Se a opção pela penalização do consumo não traduz ser essa a única solução

possível, afirma claramente que a mudança em matéria tão delicada e tão

complexa, responsavelmente, só poderia e poderá ser assumida se os dados

adquiridos fossem ou forem suficientemente sólidos para demonstrar que o

sistema novo era claramente melhor que o tradicionalmente conhecido. Fazer

o contrário seria indesculpável e a nossa consciência pessoal, social e política

irremediavelmente se vergaria ao dedo acusador de novas vítimas.”

(SOEIRO, B., 1994, P. 25).

Ou seja, o secretário deixa claro o que já é sabido: a ausência de conhecimento é

grande parceira do recrudescimento penal. A ideia era que em uma área onde o

desconhecimento ainda imperava, não se devia partir de uma realidade experimentada –

mesmo que a experiência tenha concluído pela falência do sistema vigente – para uma

aventura. A criminalização, contudo, não era defendida apenas pelo Poder Público: a

manutenção da opção criminalizadora foi objeto de uma sondagem pré-legislativa, de acordo

com a qual 67% dos inquiridos se manifestou à favor da continuação da punição do uso de

drogas, incluindo as ditas leves (POIARES, 1998, p. 62).

95

Disponível em <http://www.unodc.org/pdf/convention_1988_en.pdf>. Acessado em 03/04/2015. 96

Disponível em <http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=181&tabela=leis>. Acessado em

03/04/2015.

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112

A posição do secretário significa, portanto, que alteração da postura legislativa, no

sentido de proceder com a descriminalização, deveria ser precedida de estudos que concluam

pela certeza de que um modelo não punitivo seria melhor. Enquanto as pesquisas não

alcançassem esses dados, a incriminação deveria ser mantida, reforçando, mais uma vez, a

noção de que a punição habita as lacunas do conhecimento do legislador.

Não obstante a criminalização, assumiu-se que o Direito Penal, sozinho, não era capaz

de resolver o problema da droga, sendo necessárias contribuições de outras áreas do saber

para a formulação de políticas eficientes. A contribuição principal do Direito Penal seria na

construção de um ponto de partida para a motivação dos consumidores ao tratamento

(SOEIRO, B. 1994).

A lei de 1993 vem trazer a compreensão biopsicossociológica do usuário. A alteração

em relação à lei de 1983 é no sentido de que nesta o doente só era medicado na presença do

consumo. A lei de 1993 veio assumir, sem pretensos moralismos, que este doente recai,

transgredindo continuamente, repetidamente. Desse modo, houve uma ação menos disciplinar

e mais ligada ao saber.

A análise do trajeto evolutivo da legislação penal da droga entre os anos de 1975-1993

revela um percurso de continuidade, marcando mutações do olhar jurídico lançado sobre os

consumidores de droga e sobre a problemática da toxicodependência.

Em relação às políticas públicas de prevenção adotadas por Portugal, é necessário citar

o Projeto Vida, aprovado em 1987 pela resolução do Conselho de Ministros nº 23/8797

. A

justificativa do normativo reafirma a importância que o uso indevido de estupefacientes

adquiriu em Portugal no início dos anos 70. Constatou-se que nos cinco anos anteriores à

resolução o número de drogas apreendidas praticamente quintuplicou (cerca de 1,2 t e de 5,7

t, respectivamente em 1982 e 198698

), havendo um aumento cada vez mais significativo da

apreensão de heroína e cocaína. O governo, então, se comprometeu a desenvolver um amplo e

coerente conjunto de iniciativas capazes de contribuir para inverter a tendência,

estatisticamente comprovada, do progressivo agravamento da situação.

97

Disponível em

<http://www.sicad.pt/BK/Institucional/Legislacao/Lists/SICAD_LEGISLACAO/Attachments/889/RCM_23_87.

pdf> Acesso em 12/04/2015.

98 Cf. Resolução do Conselho de Ministros nº 23/87

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113

As ações previstas pela Resolução 23/87 foram colocadas em trinta princípios, que

foram dispostos em ações no domínio da prevenção da toxicomania, ações no domínio do

tratamento, reabilitação e inserção social dos toxicômanos e ações no domínio do combate ao

tráfico.

No que se referem às ações de prevenção, observa-se o foco nos programas escolares e

formação dos professores do ensino básico e secundário. Com o objetivo de prevenir a

propagação da AIDS entre os usuários, um tratamento especial foi reservado para este grupo.

Quanto ao tratamento, observa-se uma preocupação em facilitar o acesso dos usuários ao

sistema de saúde e às técnicas de tratamento mais adequadas a cada caso. Também é prevista

a realização de estudos tendo em vista a incidência e a prevalência do consumo de substancias

estupefacientes e psicotrópicas, mantendo a tradição portuguesa de preocupação com o

usuário e com a busca de cientificidade para as soluções adotadas para o problema das drogas.

O perfil do consumidor de droga na fase analisada já não é mais o de delinquente, mas

um enfermo, que carece de cuidados de saúde e posterior ressocialização. Esta é a mensagem

que atravessa todo o período, demonstrando uma filosofia biopsicossocial.

Observa-se, assim, que em um primeiro Portugal adotou uma política de drogas sem

nenhum amparo que a sustentasse, operando a lógica punitivista na “lacuna do

conhecimento”. A partir do momento em que pesquisas e estudos foram sendo realizados, a

lógica da punição foi gradativamente sendo revista, o que reforça a crítica de que o

punitivismo, nesse caso, é a lógica da falta de conhecimento sobre o problema.

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114

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115

5.5. UM NOVO OLHAR

“Por isso eu tomo ópio. É um remédio

Sou um convalescente do Momento.

Moro no rés-do-chão do pensamento

E ver passar a Vida faz-me tédio.”

Fernando Pessoa – Opiário.

De acordo com Greenwald99

, durante os anos 90, Portugal foi um dos países que mais

tiveram problemas com drogas. Durante esse período, houve um recrudescimento da

criminalização, o que só aumentou o problema. No final dos anos 90, o país estava perdido

sobre o que fazer para resolver a questão das drogas, que havia atingido pontos críticos, como

por exemplo, no bairro Casal Ventoso100

.

Nesse período, o país ainda se encontrava em uma situação paradoxal, por um lado, no

nível dos consumos da população em geral, estava abaixo da média europeia. Por outro lado,

no nível dos consumos problemáticos101

, o país registrava um dos valores ais altos no nível

europeu (PAIS, 2003, P. 29).

Portugal foi um dos últimos países da Europa a implementar programas de redução de

riscos102

e minimização de danos. Em razão disso, apresentava prevalência desse tipo de

consumos superior aos dos outros países da Europa, que investiram mais cedo nessas

medidas. Para controlar essa situação, era necessário diminuir a porcentagem de

consumidores problemáticos, quer evitando o surgimento de novos consumidores, quer

investindo em medidas de redução de danos e promovendo a estabilização da situação clínica

99

GREENWALD, Glenn. Intervenção no Seminário “Drogas: dos perigos da proibição à necessidade de

legalização”, realizado pela LEAP Brasil. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=ykTRHAIgu4U>

Acessado em 03 de outubro de 2015. 100

O Casal Ventoso ficou conhecido como o símbolo da degradação dos usuários de drogas em Portugal.

Principalmente à partir do ano de 1991, o bairro da cidade de Lisboa foi a primeira manifestação inequívoca da

presença de utilizadores de drogas vivendo em condições precárias. (FUGAS, P. 215). 101

Por consumos problemáticos entenda-se o consumo intravenoso ou de longa duração / regular de opiáceos,

cocaína e / ou anfetaminas. Ecstasy e cannabis não estão incluídos nesta categoria (Definição do EMCDDA). 102

Reino Unido, Espanha, Itália, Alemanha, Suiça e Holanda são exemplos de alguns países europeus que

instituíram programas de redução de danos, como troca de seringas e substituição de metadona e até de heroína

(no caso da Suíça). Disponível em

<http://www.uniad.org.br/desenvolvimento/images/stories/publicacoes/ensino/aulas/Reducao_de_danos.pdf>

Acesso em 03 de outubro de 2015.

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116

do usuário com a respectiva integração nos programas de tratamento mais adequados a cada

caso. (PAIS, 2003, P. 29).

O ponto de virada da política de drogas portuguesa se deu nos anos de 1998 a 2000.

Foi nesse período em que foi designada uma Comissão de especialistas para elaborar a

Estratégia Nacional de Luta contra a droga e a toxicodependência (ENLDT), posteriormente

aprovada pela Comissão de Ministros e incorporada ao ordenamento jurídico português

através da lei 30/2000.

Nesse período, abriu-se uma nova metodologia de abordagem do fenômeno das

drogas, fundamentada nos seguintes parâmetros: (a) a investigação do fenômeno da droga; (b)

a busca da compreensão deste fenômeno – indagando os próprios usuários, dado que o

conhecimento sobre a droga só pode ser aprendido dando vos aos seus usuários; (c) a

explicação, fundada no conhecimento, que poderá definir estratégias e estabelecer princípios

de intervenção. (POIARES, 2000, p. 10).

Esse é o primeiro momento na política de drogas portuguesa em que o legislador,

explicitamente, reconheceu a necessidade de se recorrer ao saber autônomo, fruto das

pesquisas independentes e dos trabalhos empíricos. Procurou-se uma intervenção fundada no

conhecimento e não a intervenção pelo prazer de intervir, em busca das mais-valias eleitorais,

como era de costume. (POIARES, 2000, P.).

Há, também, uma ruptura com a ordem internacional, que sempre influenciou a

legislação portuguesa, conforme analisado na primeira parte desse capítulo. Desse modo,

deixou-se de realizar a simples aplicação das imposições internacionais, característica

histórica da legislação das drogas em Portugal. (POIARES, 2000, P.).

À época da descriminalização, Portugal era signatário de alguns tratados

internacionais que obrigavam ao estabelecimento de leis internas que proibissem o uso de

drogas. A solução encontrada pela comissão da Estratégia Nacional de Luta contra a droga e a

toxicodependência (ENLDT) foi a descriminalização. Assim, Portugal continuava a proibir o

uso, conforme os tratados exigiam, mas retirava essa proibição da esfera do Direito Penal.

(GREENWALD, P. 2009, P. 07).

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117

5.6. A ESTRATÉGIA NACIONAL DE LUTA CONTRA A DROGA E A

TOXICODEPENDÊNCIA.

A determinação para a criação de uma Comissão que estudasse o problema da droga

em Portugal se deu em um contexto de consumos problemáticos de heroína e de um

acréscimo de oferta de cocaína e de novas drogas sintéticas, que diversificavam o perfil dos

usuários de drogas ilícitas. Com a visibilidade pública de espaços de consumo e dos

problemas associados à AIDS, aumentou o sentimento social de uma necessária mudança em

relação à política de drogas, com a introdução de novas medidas que assegurassem condições

sanitárias do uso de drogas. (QUINTAS, 2011, P. 117/118).

É nesse contexto que o governo socialista decide, em 1998, constituir uma comissão

de especialistas que pudesse sugerir uma política de drogas alternativa à que estava sendo

utilizada. A Estratégia Nacional de combate à droga teve como principais consequências a

descriminalização do consumo; a adoção de uma política explícita de redução de riscos e

minimização de danos; a criação de novas estruturas de combate à droga (QUINTAS, 2011, P.

118/119) – principalmente no campo de redução de danos, prevenção e dissuasão.

A Comissão para a Estratégia Nacional de Combate à Droga103

, criada pelo despacho

3229/98104

, ficou incumbida de propor ao Governo uma estratégia em que constassem as

orientações fundamentais da política relativa à droga e à toxicodependência, nos diversos

domínios, notadamente na prevenção primária, no tratamento, na reinserção social, na

formação e investigação, na redução de riscos e no combate ao tráfico.

Interessante ressaltar a formação dos membros da comissão, composta por nove

homens e apenas uma mulher. Integrada por especialistas de formação diversa e que

trabalhavam em diferentes contextos, a comissão era integrada por pesquisadores de renome

em Portugal, dentre eles havia pessoas formadas em medicina, física, psicologia, direito,

psiquiatria e enfermagem. Observa-se que houve uma preocupação com a questão médica do

uso de drogas, daí o porquê de se observar do relatório da Comissão uma preocupação em

relação à questão médica.

103

Disponível em < http://www.sicad.pt/BK/Publicacoes/Lists/SICAD_PUBLICACOES/Attachments

/48/ENcomissao.pdf> Acessado em 29 de setembro de 2015. 104

Disponível em < http://dre.tretas.org/dre/90851/> Acesso em 29 de setembro de 2015.

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118

Salienta-se que um dos membros da Comissão era Cândido da Agra, fundador da

Faculdade de Criminologia da Universidade do Porto e autor do Livro “Criminologia: um

arquipélago interdisciplinar”, onde afirma que a Criminologia é um domínio

interdisciplinar105

. (AGRA, 2012, P. 11). Nuances como essas, deixam explícita a intenção em

criar uma Comissão que obtivesse a característica da interdisciplinaridade. Ademais, nos

permite compreender as conclusões a que chegou a Comissão, que abandonou o discurso

majoritariamente penal para adentrar no campo da saúde, assumindo a necessidade de se

recorrer aos vários campos do saber para trabalhar o problema da droga.

Os desafios pautados pela Comissão estavam claros: como proteger os jovens e os

mais vulneráveis, que tipo de alternativas oferecer aos marginalizados, como impedir que as

regras sejam violadas, como sancionar os que se beneficiam do tráfico de drogas?

(ESTRATÉGIA, 1999, P. 05).

Era necessário ultrapassar o paradigma da war on drugs, o paradigma daqueles que,

dominados pelas emoções, agiam sem pensar. Após décadas de política proibicionista, nem o

fenômeno das drogas estava vencido nem dele se havia conhecimentos solidamente fundados,

como era de se esperar (ESTRATÉGIA, 1999, P. 05).

Nessa seara, cinco convicções nortearam a Estratégia Nacional de Luta contra a droga:

1) Reconhecimento da dimensão mundial do problema das drogas, que

reclama respostas à escala internacional e continental;

2) Convicção humanista, que considera o toxicodependente um doente

e exige a garantia de acesso a meios de tratamento a todos os

toxicodependentes que se desejam tratar, incluindo os que se encontram nos

estabelecimentos prisionais;

3) Ao humanismo há que se juntar uma atitude pragmática, que permita

o uso de resultados cientificamente comprovados, admitindo soluções que

possam, ao menos, reduzir os danos causados ao toxicodependente, à saúde

pública e à comunidade;

105

“Esta obra teve como objetivo transmitir a ideia da Criminologia como arquipélago. Não é, pois, um tratado

que apresente os grandes sistemas da Criminologia. Também não é uma obra temática, metodológica ou

epistemológica. É uma dispersão controlada de discursos, situados em diferentes formas de repartição discursiva

(uso o conceito de Foucault, 1969) sobre o crime e a justiça. É uma obra interdisciplinar. Melhor dito: a obra

pretende traduzir a Criminologia como uma não ontologia disciplinar. Houve, por isso, a preocupação de

convidar autores que, não habitando o arquipélago do discurso criminológico, integraram ou integram o crime no

sistema dos objetos das suas formações discursivas, nos arquipélagos ou continentes de saberes, de ciências, de

artes, onde desenvolvem o seu labor investigatório.” (AGRA, 2012. P. 18).

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119

4) Adequadas políticas de prevenção das drogas;

5) O reforço ao combate ao tráfico ilícito de drogas e ao

branqueamento de capitais constitui um imperativo para o Estado de Direito

106; (ESTRATÉGIA, 1999, P 9/10).

Cabe observar que o debate a respeito da legalização do comércio de substâncias hoje

consideradas ilícitas estava, em 2001 – e, 14 anos depois, não sofreu muitas alterações – longe

de ser colocado na pauta de discussão. Ao contrário, a Estratégia propôs o reforço ao combate

ao tráfico ilícito de drogas.

Contudo, interessante a posição adotada por Portugal, que há 14 anos demonstrou em

um documento oficial a convicção humanista de sua política de drogas, e a necessidade “da

garantia de acesso a meios de tratamento a todos os toxicodependentes que se desejam

tratar, incluindo os que se encontram nos estabelecimentos prisionais”.

Salienta-se a expressão “a todos os toxicodependentes que se desejam tratar”.

Conforme será visto no próximo capítulo deste trabalho, esse é um princípio aplicado pelas

funcionárias das Comissões para a Dissuasão Toxicológica. Em momento algum se fala em

tratamento coercitivo ou compulsório107

, antes, se trabalha com o conceito da

autodeterminação do agente, que pode optar por participar ou não em algum programa de

tratamento, sendo que nem sempre se trata de tratamento específicos para dependentes

químicos, podendo ser, por exemplo, acompanhamento psicológico, para que se trabalhe as

causas do problema que tem levado o indivíduo a utilizar drogas.

Durante o processo de elaboração da ENLDT, houve a preocupação em discutir o

relatório que estava sendo elaborado com vários setores da sociedade. Sendo assim, centenas

106

Disponível em: < http://www.sicad.pt/BK/Publicacoes/Lists/SICAD_PUBLICACOES/Attachments

/71/EM resolucao.pdf> Acessado em 29 de setembro de 2015. 107

Como exemplo é possível citar as informações colhidas do site do Serviço de Intervenção nos

Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD). O site possui uma área reservada para o cidadão onde

se encontra o item “Perguntas Frequentes”. Em uma dessas perguntas encontra-se o exemplo: “Podem obrigar o

meu filho a tratar-se?” E a resposta: “Os tratamentos para os comportamentos aditivos e dependências

realizados nas estruturas públicas do Ministério da Saúde são voluntários - o utente tem de aceitar fazê-los,

podendo abandonar o tratamento se e quando o desejar. Nesse sentido, todas as intervenções terapêuticas

procuram aumentar a motivação das pessoas para iniciarem e se manterem em tratamento. O envolvimento da

família é geralmente um fator de motivação para o tratamento: mesmo quando as pessoas estão motivadas, o

facto de poderem contar com a família e amigos é um elemento positivo que reforça o seu envolvimento neste

processo.” Disponível em < http://www.sicad.pt/PT/Cidadao/FAQ/Paginas/default.aspx> Acesso em

29/09/2015.

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120

de cópia do relatório foram enviadas a diversas entidades públicas e privadas com intervenção

na área da toxicodependência. O relatório também foi divulgado através da internet, daí tendo

resultado dezenas de observações escritas sobre as propostas em discussão. Também foram

realizadas audiências públicas de norte a sul do país, todas com a presença de membros da

comissão e abertas à participação do público108

.

Não obstante o amplo debate público realizado, a descriminalização não foi tão bem

recebida por todos os setores da sociedade. Houve, inclusive, manifestação do Partido

Popular, então partido de oposição, no sentido de recolher assinaturas para se realizar um

referendo contra a descriminalização. O presidente que promulgou a lei, Jorge Sampaio, foi

acusado de assinar “precipitadamente uma lei que muitos interpretaram como sendo o

primeiro sinal de rendição e de abdicação do Estado no difícil combate contra a droga”. O

presidente foi ainda acusado de privilegiar a opinião o Partido Socialista, do qual fazia parte,

em detrimento da vontade dos portugueses109

.

Após 14 anos da lei que descriminalizou o consumo de drogas em Portugal, nenhum

dos medos levantados pelos opositores da descriminalização se efetivou, ao contrário, muitos

foram os benefícios trazidos com a nova política de drogas. (GREENWALD, P. 27).

5.7. A OPÇÃO DESCRIMINALIZADORA

Em 1999, através da Resolução do Conselho de Ministros nº 46/99, foi aprovado o

texto da Estratégia Nacional da Luta contra as drogas e a toxicodependência para que fosse

um instrumento orientador da política de drogas adotada por Portugal, norteando a atividade

dos diferentes organismos da Administração Pública com competência nessa área110

.

108

Texto introdutório da Resolução dos Ministros nº 46/99. Disponível em < http://dre.tretas.org/dre/102771/>

Acesso em 29 de setembro de 2015. 109

Disponível em <http://www.publico.pt/politica/noticia/cdspp-e-ferreira-do-amaral-acusam-sampaio-de-ter-

cometido-erro-grave-ao-promulgar-descriminalizacao-da-droga-1005> Acesso em 29 de setembro de 2015.

110 Texto introdutório da Resolução dos Ministros nº 46/99. Disponível em < http://dre.tretas.org/dre/102771/>

Acesso em 29 de setembro de 2015.

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121

O Conselho de Ministros entendeu que a ENLDT era um documento essencialmente

voltado para o futuro e optou pela aprovação da totalidade do documento, que possuía como

ponto mais polêmico a descriminalização do uso de drogas ilícitas.

A opção descriminalizadora é vista como decorrência do princípio da subsidiariedade

do Direito Penal, bem como dos princípios da proporcionalidade e seus corolários, como a

necessidade, a adequação e a proibição do excesso. Admitiu-se, assim, a ineficácia,

inoperância e desnecessidade do recurso à intervenção criminalizadora, concepção

historicamente predominante em Portugal. (POIARES, 2000, P.11).

A lei nº 30/2000111

, que aprovou a descriminalização do uso de drogas em território

português, foi criada especialmente para definir o regime jurídico aplicável ao consumo de

estupefacientes e substâncias psicotrópicas, sendo que as plantas, substâncias e preparações

sujeitas ao regime previsto nessa lei são definidas pelas tabelas constantes no Decreto Lei nº

15/93.

O segundo artigo da lei é o responsável por trazer a principal inovação legislativa:

1 - O consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas,

substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior

constituem contra-ordenação. 2 - Para efeitos da presente lei, a aquisição e a

detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não

poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o

período de 10 dias.

Uma preocupação comum aos autores portugueses é demonstrar que Portugal não

procurou incentivar o uso de drogas com a nova lei. A prova disso é que a conduta que antes

era criminalizada, foi transferida para o direito das contra-ordenações, sendo assim,

permaneceu uma conduta proibida.

111

Disponível em < http://www.infarmed.pt/portal/page/portal/INFARMED/LEGISLACAO /LEGI

SLACAO_FARMACEUTICA_COMPILADA/TITULO_III/TITULO_III_CAPITULO_III/lei_30-2000.pdf>

Acesso em 29 de setembro de 2015

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122

5.8. O DIREITO CONTRA-ORDENACIONAL

A nova lei manteve, pela via contra-ordenacional, a censura social e jurídica do uso de

drogas. Contudo, a sinalização dessa censura é uma tentativa de conduzir os consumidores ao

tratamento e não um modo de estigmatização ou castigo, é um meio e não um fim, uma forma

de chamar a atenção do sujeito que consome drogas e fazê-lo olhar para si. (FONSECA, 2006,

P. 41/42).

O direito das contra-ordenações é um instrumento da administração pública que atribui

às autoridades administrativas a competência para sancionar em primeira instância as

infrações abrangidas, relegando a intervenção judiciária para uma mera função de garantia.

(DANTAS, 2003, P. 175).

A sanção típica do direito das contra-ordenações é a coima, sanção meramente

econômica, que materializa uma censura ao agente da infração. Contudo, a Estratégia

Nacional reconheceu a dificuldade de reagir ao consumo de drogas e, sobretudo, à

toxicodependência com a aplicação de uma sanção patrimonial. (DANTAS, 2003, P. 181).

Isso porque há dificuldades manifestas perante a degradação pessoal e patrimonial dos

toxicodependentes, o que faz com que esse tipo de sanção seja contraditório aos objetivos do

sistema, quais sejam, a indução ao tratamento e a dissuasão do consumo de drogas.

(DANTAS, 2003, P. 181). Em razão disso, a lei portuguesa veda sanções pecuniárias aos

consumidores toxicodependentes112

.

Ademais, a sanção pecuniária poderia prejudicar ainda mais as relações familiares, já

desgastadas, acentuando o risco da pequena delinquência aquisitiva, sendo tais sanções

totalmente ineficazes. Não pode ser eficaz o pagamento de uma sanção pecuniária que resulta

em sacrifício para o obrigado ou que é cumprido à custa do patrimônio familiar ou de

terceiros. A opção de penalizar pecuniariamente o dependente de drogas poderia provocar um

efeito tão vazio quanto o simbolismo penal ou, pior, conduzir à prática de novos crimes.

(POIARES, 2000, P. 13).

O direito das contra-ordenações possui natureza sancionatória, porém, o regime do

consumo de estupefacientes decorrente da Lei nº 30/2000 possui como escopo principal o

112

Artigo 15, nº2, Lei 20/2000: “Aos consumidores toxicodependentes são aplicáveis sanções não pecuniárias”.

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tratamento do autor e não o sancionamento da conduta ilícita. O tratamento é a finalidade

última do processo, enquanto as sanções são uma forma de indução ao tratamento.

(DANTAS, 2003 P. 189).

O tratamento do usuário é sempre voluntário, não havendo medida sancionatória que

vise coagir o agente a receber ajuda médica. A lei também não prevê mecanismos de reação

efetiva ao descumprimento das medidas sancionatórias, o que impede que aqueles autores que

não aderiram ao programa de tratamento, ou que dele desistiram, sejam obrigados a recebê-lo.

(DANTAS, 2003, P. 189).

O novo regime manteve os laços com a intervenção policial, pois a lei prevê que as

autoridades policiais deverão proceder com a identificação do usuário, que será remetido à

Comissão para a Dissuasão Toxicológica (CDT). O usuário não poderá ser detido, com a

exceção de quando não for possível a sua identificação, quando as autoridades policiais, se

julgarem necessário, poderão proceder à detenção para averiguação.

A questão da detenção para averiguação está prevista no artigo 4º da Lei nº 30/2000 e

é vista por alguns como necessária para o sucesso da política de drogas, especialmente para a

identificação do consumidor e apreensão da droga. Desse modo, a descriminalização do

consumo exigiria não um abrandamento policial, mas sim seu reforço, sendo que, em última

instância, no caso de resistência dos consumidores, permitiria a cominação com a punição

pelo crime de desobediência. (PEREIRA, 2003, P. 159).

Contudo, não entendemos correta essa posição, pois ela vai de encontro ao objetivo

principal da lei, que é proporcionar o tratamento médico para os usuários problemáticos que

assim desejarem. A coerção policial cria obstáculos para que os usuários acessem ao sistema

de saúde, pois os cidadãos passam a ter medo do governo. Nas palavras de Greenwald,

quando um usuário é tratado como criminoso, ele passa a se enxergar como uma pessoa má e

isso faz com que seja mais difícil que ele aceite ajuda113

.

113

GREENWALD, Glenn. Intervenção no Seminário “Drogas: dos perigos da proibição à necessidade de

legalização”, realizado pela LEAP Brasil. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=ykTRHAIgu4U>

Acessado em 03 de outubro de 2015.

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124

5.9. O CRITÉRIO OBJETIVO DE DIFERENCIAÇÃO ENTRE USUÁRIO E TRAFICANTE

O artigo segundo também trouxe o critério objetivo para realizar a distinção entre

usuários e traficantes. De acordo com a lei, “não poderão exceder a quantidade necessária

para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”. A quantidade média para

dez dias está disposta na tabela presente no artigo nº 9, da portaria 94/96 (ANEXO).

Antes da entrada em vigor da lei 30/2000, prevalecia o elemento subjetivo para a

diferenciação entre usuário e traficante. De acordo com Carlos Poiares (2002), o critério

quantitativo trazido pela nova lei é extremamente falível. O usuário e o toxicodependente tem

a tendência natural de adquirir a substância de acordo com a sua necessidade e a possibilidade

de aquisição. Desse modo, diferenciar o uso do tráfico com base apenas em critérios

quantitativos torna essa diferenciação suscetível a erros grosseiros (POIARES, 2002, P. 35).

A solução apresentada para este problema está no surgimento das CDT, que possuem

funcionários qualificados a avaliar as condições de cada indivíduo, sendo suscetíveis a menos

erros na apreciação dos casos e dos sujeitos que os corporizam (POIARES, 2002, P. 35).

Esse posicionamento, contudo, tem sido muito criticado, pois a falta de um critério

objetivo e o consequente aumento de poder discricionário do funcionário estatal tem histórico

de gerar abusos em relação aos indivíduos que são abordados com substâncias ilícitas.

O artigo 28 da lei nº 30/2000 revogou expressamente o artigo 40 do Decreto Lei nº

15/93, que previa a pena de prisão para o usuário:

1- Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas,

substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de

prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias. 2- Se a quantidade de plantas,

substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a

necessária para o consumo médio individual durante o período de 5 dias, a pena é de

prisão de 1 ano ou multa até 120 dias. 3- No caso no nº1, se o agente for consumidor

ocasional, pode ser dispensado de pena.

A revogação gerou dúvidas se ocorreu a descriminalização do consumo, aquisição e

detenção para consumo próprio de estupefacientes, independentemente da quantidade de

produto adquirido ou detido, tendo em vista que o artigo 2º, nº2, da Lei 30/2000, estabeleceu

que a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias não poderia exceder a

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125

quantidade para o consumo médio individual durante o período de dez dias. (REIS, 2006, P.

43).

A questão a respeito da situação do usuário encontrado com uma quantidade de droga

maior do que a permitida dividiu a doutrina e a jurisprudência, até que foi julgada pela

Suprema Corte Portuguesa, em meados de 2008. A decisão foi publicada no Acórdão de

Fixação de Jurisprudência nº 8/2008, o que significa que os tribunais devem, a princípio,

seguir a posição emanada do Acórdão de Fixação114

. Quatro soluções eram sustentadas a

respeito desse tema.

A primeira posição entendia que o legislador quis claramente descriminalizar o consumo,

sendo assim, ao se estabelecer uma plataforma de 10 doses médias diárias para o consumo de

estupefacientes, pretendeu fornecer apenas um critério legal meramente orientador de

distinção entre o consumo e o tráfico. Desse modo, sempre que a quantidade detida exceda o

consumo médio individual durante o período de 10 dias, não havendo dolo de comercializar a

droga, deveria ser aplicado o regime de contra-ordenação. (FONSECA, 2006, P. 44).

O Tribunal entendeu equivocada essa tese, pois no novo regime jurídico o legislador não

visou legalizar o consumo das drogas ditas ilícitas, mas apenas descriminalizar as situações

que considerava revestirem-se de menor gravidade. (Rext 1008/07, P. 5236). A nova lei não

comprometeu a possibilidade de que as condutas consistentes na detenção ou aquisição de

estupefacientes para consumo próprio que excedam a quantidade para consumo médio

individual durante 10 dias deixassem de ser punidas conforme previa o nº 2 do artigo 40, do

Decreto-Lei nº 15/93. Se assim fosse, o legislador não teria procedido à indicação de qualquer

limite, relegando ao intérprete a decisão a respeito da diferenciação entre tráfico e uso.

Para o segundo posicionamento, se a quantidade da substância ilícita ultrapassasse a

quantidade de dez dias, o fato não era punível, pois não haveria nenhuma norma vigente que

preveja tal conduta. (FONSECA, 2006, P. 44). Quanto a esse argumento, o Tribunal afirmou

que seria ilógico que o legislador punisse a conduta menos grave - o consumo, a aquisição e a

detenção para consumo próprio que não excedesse a quantidade médica para 10 dias de uso –

e despenalizasse o comportamento mais grave. Uma solução desse tipo, para além de

consubstanciar um absurdo jurídico e configurar uma situação de manifesta e flagrante

114

Disponível em <https://dre.pt/application/dir/pdf1s/2008/08/15000/0523505254.pdf> Acessado em 30 de

setembro de 2015.

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126

injustiça, desvirtuaria a política criminal instaurada pelo legislador, que não visou legalizar o

consumo, mas apenas descriminalizar as condutas menos gravosas. (Rext 1008/2007. P.

5237).

A terceira posição entendia que, quando estiver em causa a detenção de estupefaciente

em quantidade superior à permitida, dever-se-ia considerar a conduta como tráfico de menor

quantidade, e considerar que o destino ao consumo é, no contexto daquele tipo legal, uma

circunstância que diminui de forma acentuada a ilicitude do fato, devendo, por isso, atenuar a

pena. Desse modo, a detenção para consumo próprio cuja quantidade exceda o consumo

médio individual durante o período de dez dias seria sancionada como um ilícito criminal,

qual seja, o tráfico de drogas. (FONSECA, 2006, P. 44).

O Supremo Tribunal entendeu que essa solução não se enquadrava nas finalidades

visadas pela Lei nº 30/2000, que privilegiou a figura do consumidor, através da

despenalização das condutas menos gravosas de consumo de substâncias ditas ilícitas e do

tratamento e integração social do usuário de drogas. Adotar o posicionamento sugerido aqui

iria contra toda a lógica da nova lei, pois transformaria o “doente” em traficante em razão de

alguns gramas a mais de estupefacientes. Essa posição viola, ainda, os princípios da

presunção de inocência, da proporcionalidade das penas e da legalidade. (Rext 1008/07, P.

5237).

A quarta posição, que foi adotada pelo Supremo Tribunal, preleciona que o artigo 40 do

Decreto Lei nº 15/93 continua em vigor para as situações de detenção para consumo, cuja

quantidade exceda o consumo médio individual durante o período de dez dias. (FONSECA,

2006, P. 43). Desse modo, a condição para que a aquisição ou detenção para consumo próprio

seja sancionada como contra-ordenação é que se respeite o limite da quantidade média para

10 dias de uso individual. Permaneceu incólume a posição de que a quantidade de droga

nunca transforma o consumidor em traficante.

O Tribunal concluiu que a nova lei não tratou de legalizar ou despenalizar o consumo de

estupefacientes, mas de substituir a proibição por um meio mais adequado, qual seja, o direito

das contra-ordenações. Isso porque a prisão ou multa não vinham constituindo a resposta

adequada ao problema de mero consumo de drogas. Ademais, a sujeição do consumidor ao

procedimento criminal, com todas as suas consequências, não constituía o meio mais

adequado e eficaz de intervenção. (Rext 1008/07, P. 5239).

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127

O Tribunal entendeu que existe uma boa razão para levar o legislador a querer continuar a

punir como crime, em função de um critério puramente quantitativo, uma conduta que, com

fundamentos vários, decidiu despenalizar: o perigo de a droga adquirida para consumo

próprio, quando superior às necessidades pessoais mais urgentes, vir a ser oferecida, posta à

venda, vendida etc. (Rext 1008/07, P. 5242). Aqui, os julgadores foram contra os próprios

argumentos, utilizados no início do acórdão, quando foi afirmado que a nova lei não intentou

violar o princípio da proporcionalidade, legalidade e presunção de inocência.

5.10. A ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE DA INCRIMINAÇÃO DO USO DE DROGAS

ILÍCITAS

Assim como no julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659 – Julgado pelo

Supremo Tribunal Brasileiro – a Suprema corte portuguesa analisou a constitucionalidade da

incriminação do consumo. De acordo com os ministros, tratar o consumidor como fonte de

perigo e não como sujeito de decisões lesivas de bens jurídicos viola o artigo 1º da

Constituição Portuguesa, que consagra o princípio da dignidade da pessoa humana, que é uma

expressão da máxima de que cada pessoa é um fim em si mesmo. Também não é compatível

com a Constituição Portuguesa a incriminação do consumo em função da autolesão, já que

extrapola à legitimidade do poder punitivo de um Estado de direito democrático. (Rext.

1008/07, P. 5242).

Por outro lado, não deve prevalecer a ideia de que o Estado não pode intervir a título

algum, na medida em que o consumo generalizado de estupefacientes produz danos sociais

graves que reclamam a intervenção do Estado, tais como perturbações e rupturas na família,

problemas de saúde, problemas de integração social, dissolução de relações sociais de

autonomia e respeito etc. Dessa forma, a descriminalização não pode ser justificada na

perspectiva de que se trata da pura esfera da liberdade individual. (Rext. 1008/07, P. 5242).

A proposta considerada pela Corte é a do tratamento do consumidor como um doente.

É na conjugação da perspectiva do consumo como problema social e da perspectiva do

consumidor como doente em potencial ou doente que parece brotar uma justificação da tutela

penal à luz de princípios constitucionais. A intervenção penal sobre o consumo justifica-se,

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128

assim, pela carência de tutela penal do cumprimento pelo consumidor dos referidos deveres e

não do próprio fato do consumo. (Rext. 1008/07, P. 5242).

Observa-se que o posicionamento da Corte se inseriu em uma perspectiva

conservadora em relação à Estratégia Nacional de Luta contra a droga e a toxicodependência.

Talvez resida aqui a importância principal de se ter retirado essa decisão do judiciário e tê-la

entregue nas mãos de técnicos da saúde e profissionais especializados no tema das drogas. A

Estratégia citou os princípios da subsidiariedade e da ultima ratio para justificar a

descriminalização. Acrescentou que descriminalizar não significa desproblematizar, mas

apenas não agravar os males decorrentes da incriminação, através de procedimentos criminais

estigmatizantes, que podem tornar mais difícil a ajuda aos indivíduos. (ESTRATÉGIA, 1999,

P. 83).

Ademais, a Estratégia salientou que predomina o uso recreativo de drogas, sendo que

apenas uma pequena quantidade de usuários se torna toxicodependente, a este,

principalmente, que devem ser oferecidas as estruturas de saúde e assistência psicológica e

social. (ESTRATÉGIA, P. 05). Esta distinção é importante, pois foge da concepção trazida no

Julgamento do Recurso Extraordinário nº 1008/07, que se refere sempre aos indivíduos como

doentes.

A decisão da Suprema Corte portuguesa, que definiu como crime de consumo a

apreensão de droga ilícita acima do permitido, pode ser considerada um retrocesso, pois vai

de encontro à bem sucedida política de descriminalização iniciada com a Lei nº 30/2000. Esta

posição constituiu uma importante amputação do alcance e da eficácia da opção

descriminalizadora, eloquentemente enunciada na Estratégia Nacional de luta contra a droga,

que continua a ser o texto estruturante e orientador da política de drogas em Portugal.

(COSTA, 2009, P. 07).

Há que se salientar que a criminalização do uso nega todas as conclusões a que chegou

a Estratégia Nacional e que já foram tratadas nesse trabalho. Além de não haver respaldo

dogmático constitucional-penal para a criminalização, ela ainda opera com efeitos perversos,

estigmatizando o usuário e afastando aqueles que necessitam de cuidado do sistema de saúde.

O retrocesso se mostra patente, porque a decisão do Tribunal também ignorou os

resultados práticos da política descriminalizadora, que em 2008, oito anos após a

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129

descriminalização, já produzia seus efeitos positivos, podendo ser considerada uma política

bem sucedida.

5.11. AS PESQUISAS DE AVALIAÇÃO DA POLÍTICA DE DROGAS PORTUGUESA

Uma das características da política de drogas portuguesa, é a realização constante de

pesquisas de auto avaliação115

. O Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT), hoje

transformado em Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências

(SICAD) é responsável por elaborar o “Relatório Anual sobre a situação do país em matéria

de Drogas e Toxicodependencias” e o apresentar anualmente à Assembleia da República e ao

Governo Português, fornecendo elementos de apoio às decisões políticas e ao planejamento de

intervenções.

O relatório também constitui um referencial importante no acompanhamento regular

da implementação das ações do Governo Português. É importante também para que se

estabeleçam comparações com outros dados nacionais e internacionais, verificando a

existência de assimetrias e identificando diferentes padrões, que sugerem a necessidade de

intervenções diversificadas. (FEIJÃO; LAVADO, 2003, P. 73).

Já na época do julgamento supracitado, haviam dados116

que constavam dos benefícios

da nova política de drogas. Apesar de ter aumentado a prevalência de consumo ao longo da

vida, na população total (15-64 anos) e no grupo dos jovens adultos (15-34 anos), desde a

descriminalização, diminuiu significativamente o número de consumidores problemáticos117

.

115

Não se ignora as críticas ao uso de estatísticas oficiais para avaliar políticas públicas. Segundo BARREIROS,

“a lógica estatal se ocupa em reproduzir lógicas autônomas e corporativistas ao invés de valorizar a eficiência e o

controle social. Assim, a primeira dúvida é quanto ao papel do dado oficial, se ele ajuda a elucidar a

racionalidade do sistema e sua articulação”. (BARREIROS, 2014, p. 36).

116 Estão disponibilizados no site do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências

(www.sicad.pt) e no site do Observatório Europeu da droga e da toxicodependência (www.emcdda.europa.eu/pt)

informações estatísticas detalhadas a respeito dos resultados da política de drogas portuguesa. Não iremos

aprofundar nesse ponto, pois o objetivo do trabalho é testar a hipótese de que o sistema português, que

encaminha o usuário apreendido com drogas para um órgão administrativo do Ministério da Saúde, é mais eficaz

em retirar o estigma que recai sobre o usuário. Sendo assim, os número absolutos nos servem para demonstrar

que a política é eficaz como um todo, mas não cabe aqui uma análise específica da evolução desses dados 117

Dados retirados do Relatório anual de 2007 – A situação do país em matéria de drogas e toxicodependências .

Disponível em <

http://www.sicad.pt/BK/Publicacoes/Lists/SICAD_PUBLICACOES/Attachments/72/Relat%C3%B3rioAnual_2

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130

Esses dados demonstram que nenhum dos medos propalados por aqueles que eram

contra a descriminalização118

se cumpriu. Antes da aprovação da lei, aqueles que eram

contrários a ela afirmavam que a alteração legal tornaria Portugal um local de “turismo para o

uso de drogas”. Essa teoria estava completamente errada, haja vista que 95% dos cidadãos

que são apreendidos com drogas em Portugal são portugueses. (GREENWALD, 2009, P. 06).

Também não ocorreu uma “explosão” no consumo de drogas ilícitas. Se é verdade que o nível

de prevalência geral do uso de drogas sofreu um sensível aumento, também é verdade que

essa tendência de aumento é anterior à descriminalização (COSTA, 2009, P. 04). Ademais,

quando comparado com os demais países da União Europeia, Portugal não se encontra em

nenhum quadro dentre os países com maior taxa de prevalência119

.

5.12. A ESTRUTURA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS TRAZIDAS COM A NOVA LEI

A política de drogas portuguesa foi pensada para ser abrangente e incluir todas as

questões direta ou indiretamente relacionadas com o consumo de drogas. As principais áreas

abordadas foram a prevenção, dissuasão, redução de riscos e danos, tratamento e reinserção

social.

Em 2005, o Instituto da Droga e da Toxicodependência 120

(IDT) iniciou um

diagnóstico a nível nacional com o objetivo de identificar áreas e grupos de pessoas em

situação de risco de desenvolver problemas de consumos de drogas e/ou dependência.

Baseado nesse estudo, o IDT desenvolveu medidas que incluíam educação de âmbito global,

mas também esforços focalizados em grupos ou áreas de maior risco. (DOMOSTAWSKI,

2011, P. 31).

O IDT optou por uma abordagem mais discreta e localizada do que por campanhas de

larga escala, que mostraram ser capazes de despertar a curiosidade de pessoas para as drogas,

013_A_Situa%C3%A7%C3%A3o_do_Pa%C3%ADs_em_mat%C3%A9ria_de_drogas_e_toxicodepend%C3%

AAncias.pdf> Acessado em 01 de outubro de 2015. 118

Votaram contra a descriminazalição o Partido Social Democrata e o CDS – Partido Popular, votando a favor

os demais partidos políticos. 119

Dados retirados do Relatório Europeu sobre drogas – 2015. Disponível em <

http://bookshop.europa.eu/pt/emcdda-observat-rio-europeu-da-droga-e-da-toxicodepend-ncia-

cb9lUKABst9YMAAAEjTYcY4e5K/> Acessado em 01 de outubro de 2015. 120

Hoje transformado no Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD).

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131

induzindo uma primeira experimentação, em vez de dissuadiram dessa primeira

experiência121

.

Observa-se aqui uma mudança de estratégia. Se nos anos 90, Portugal investiu em

campanhas de prevenção voltadas para o medo, como é o exemplo da campanha “Droga,

loucura e morte”, muda-se a estratégia para tentar atingir os jovens de uma forma indireta,

com uma mensagem que defende um estilo de vida saudável e não na condenação agressiva e

desencorajamento ao consumo de drogas.

Os resultados dessa política parecem estar surtindo efeito, já que os níveis de

prevalência do uso de drogas no meio escolar decresceram. Entre os anos de 1998 e 2002,

houve um aumento do consumo de cannabis ao longo da vida de 3,8% para 9,2% entre os

jovens de 11 a 15 anos. Esse valor abaixou para 8,3% em 2006. (COSTA, 2009, p. 05).

A segunda linha de intervenção do Estado é a dissuasão, operacionalizada pelas

Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência122

(CDT), que são responsáveis por

processar as contra-ordenações e aplicar as respectivas sanções. De acordo com o artigo 7º,

nº2 da lei, cada Comissão deve possuir um jurista, designado pelo Ministério da Justiça. Os

demais membros devem ser indicados pelo Ministério da Saúde, devendo ser escolhidos entre

médicos, psicólogos, sociólogos, técnicos de serviço social ou outros com currículo adequado

na área da toxicodependência.

As CDT, segundo a perspectiva legal, não são instâncias de julgamento, logo, qualquer

semelhança que se pretenda estabelecer entre as CDT e os tribunais é infundada. Isso porque

elas visam o ator e não o ato. Tratam de um trabalho de apoio psicológico, de

encaminhamento para o sistema de saúde, com o acompanhamento do indivíduo. A intenção

aqui é motivar o sujeito a mudar de rumo, optando por um estilo de vida mais saudável, para o

que é convidado e não obrigado. (POIARES, 2002, P. 34).

Os programas de redução de danos, por sua vez, já eram desenvolvidos pelo governo

português antes da descriminalização do uso de drogas. Em 1993, por exemplo, teve início o

121

Estudo realizado pela University of Pennsylvania, (Explaning the Boomerang Effect of the National Youth

Anti-Drug Media Campaign) disponível em <http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2636

541/>Acesso em 01/10/2015. 122

As comissões para a Dissuasão da Toxicodependência serão detalhadamente analisadas na terceira parte deste

trabalho.

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132

programa “diz não a uma seringa de segunda mão123

”. O objetivo do problema era prevenir a

transmissão do vírus da AIDS entre os utilizadores de drogas injetáveis, através da

distribuição de material esterilizado e da recolha e destruição do material utilizado.

O primeiro kit era composto por uma seringa, um toalhete e um preservativo. Em

1998, foi adicionado ao kit mais uma seringa, um toalhete, um filtro e uma ampola de água

bisdestilada. De acordo com a informação fornecida pelo Relatório Anual do programa de

troca de seringas de 2013, um estudo realizado em 2002 demonstrou que houve cerca de

7.000 novos casos de AIDS evitados nos primeiros oito anos do programa por cada 10.000

utilizadores de drogas injetáveis124

. Salienta-se que a justificativa de um programa de redução

de danos voltados para as drogas injetáveis em Portugal tem sua justificativa no fato de que o

uso injetável de heroína era um problema particular no país (GREENWALD, 2009, P. 14).

Quando a descriminalização entrou em vigor, as atividades de redução de riscos e

danos tornaram-se sistêmicas. Essa realidade verifica-se no trabalho diário das equipes de rua,

que vão ao encontro dos consumidores. Tratam-se de equipes multidisciplinares, que possuem

técnicos conhecidos dos consumidores, havendo, assim, uma relação de confiança. O papel

das equipes de rua é, entre outros, distribuir kits125

aos consumidores. As equipes também se

informam sobre o histórico de uso dos indivíduos e os informam acerca das possibilidades de

tratamento ao seu dispor. Elas ainda mediam a relação com os centros de tratamento e

auxiliam com o apoio psicológico ou médico. (DOMOSTAWSKI, 2011, P. 36).

Portugal também opera com um programa de substituição por metadona126

. A dose

dada é o mínimo necessário para tirar a necessidade de heroína e é individualizada para cada

123

Relatório anual de 2013 disponível em <http://spms.min-saude.pt/wp-

content/uploads/2014/05/Relat%C3%B3rio-Anual-do-Programa-Troca-de-Seringas-2013.pdf> Acessado em 01

de outubro de 2015. 124

Relatório anual de 2013 disponível em <http://spms.min-saude.pt/wp-

content/uploads/2014/05/Relat%C3%B3rio-Anual-do-Programa-Troca-de-Seringas-2013.pdf> Acessado em 01

de outubro de 2015. 125

Os componentes mais importantes desses kits são as seringas e agulhas limpas para consumidores de heroína.

O kit contém também outros utensílios de higiene como água destilada, gaze e um preservativo. 126

“Metadona é um opiáceo, com efeitos semelhantes ao da heroína. A diferença fundamental é que ela é

ingerida, não injetada, e, portanto, não age tão rapidamente, nem gera um pico tão súbito de prazer, que é boa

parte da razão pela qual a dependência da heroína é tão irresistível. A metadona permite que os níveis de

opióides no corpo se mantenham mais ou menos constantes. Assim, o usuário não fica alternando entre euforia

e depressão, e sua vida se aproxima da normalidade”. (BUERGIMAN, 2011, P. 108).

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133

usuário. Além dos centros fixos de distribuição de metadona127

, onde os dependentes de

heroína recebem uma dose diária de metadona, o país opera com um projeto mais ousado: as

“carrinhas” são vans que circulam por locais onde se dão o uso de drogas, distribuindo

metadona em doses bem diluídas sem exigir quase nada em troca. O usuário ou dependente

pode receber uma quantidade de metadona sem que seja necessário, inclusive, sua

identificação. (BURGIEMAN, 2011, P. 112).

“As carrinhas são uma porta de entrada ao sistema de tratamento e também uma

porta de saída”, explica Nuno, da CDT. De entrada porque elas podem servir a um

dependente no fundo do poço, que tem um segundo de lucidez. Ele pega a

metadona, clareia um pouco a mente e, quem sabe, conversa com o pessoal da

carrinha, recebe informações sobre tratamento, começa a confiar no governo, em vez

de ter medo dele. De saída porque muita gente, depois que consegue largar a heroína

e a metadona, acaba, de tempos em tempos, tendo um desejo súbito de um pico de

opióides. Quando isso acontecer, basta passar na carrinha, deixar a fissura passar e

seguir a vida. Funciona. E o sistema português faz o que funciona128

.

(BUERGIMAN, 2011, P. 112).

Desse modo, verifica-se uma política “humanista e pragmática, que visa a melhora do

quadro geral do cidadão que usa drogas, sem que lhe seja exigida a abstinência ou imposta a

renúncia do consumo dessas substâncias”. (RIBEIRO, 2012, P. 37).

A redução de danos não visa eliminar ou minimizar apenas os riscos referentes à

saúde, como a prevenção da propagação de doenças infectocontagiosas, mas também a

prevenção da marginalização social e da delinquência, assim como a promoção de condições

que permitam ao toxicodependente buscar programas de tratamento. (PAIS, P. 34).

O tratamento, outro vetor de intervenção da política de drogas portuguesa, também

tem obtido sucesso. Com a nova política, toxicodependentes podem receber tratamento em

vários centros especializados, que possuem equipes de psicólogos, psiquiatras e assistentes

sociais, além de oferecer consultas, tratamento e programas de metadona. Essa área de

127

Em 2013 estiveram integradas 16.401 pessoas em programas terapêuticos, sendo que 10.613 só em

metadona. Disponível em

<http://www.sicad.pt/PT/EstatisticaInvestigacao/InformacaoEstatistica/ConsumosProblemas/Documents/2015/pr

ocura_tratamento/Carateriza%C3%A7%C3%A3o%20e%20Evolu%C3%A7%C3%A3o%20da%20Situa%C3%A

7%C3%A3o_Parte%20A%20.pdf> Acessado em 01 de outubro de 2015. 128

Salienta-se que, conforme estudo publicado pela Canadian Medical Association Journal, a prescrição médica

de heroína para toxicodependentes da droga é mais eficaz do que a substituição por metadona, sendo que no

primeiro programa, os indivíduos permaneceram em tratamento por mais tempo e tiveram menos recaídas. A

prescrição médica de heroína já foi utilizada na Suíça, mas sofreu grandes críticas da opinião pública.

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134

intervenção utiliza a rede de recursos de saúde, pública ou privada, visando auxiliar no

cuidado à população com consumos problemáticos de drogas, baseados em abordagens

terapêuticas multidisciplinares integradas, articuladas e complementares129

.

Em entrevista dada por João Goulão, presidente do SICAD, o aumento no número de

toxicodependentes que vem se submetendo a tratamento não se dá em razão de um aumento

significativo dos consumos, mas sim por causa programas de prevenção, que atingem cada

vez mais toxicodependentes. (DOMOSTAWSKI, 2011, P. 36).

O governo português realiza anualmente relatórios detalhados com as informações à

respeito de quantos usuários obtiveram tratamento, qual a porcentagem em relação com os

outros anos, tipo da droga utilizada etc. As redes de tratamento ainda permitem o

levantamento de dados a respeito de quem são os usuários, qual o sexo, a idade, estado civil,

nível de ensino, situação profissional, fonte de renda, local e tipo de residência, se já realizou

tratamentos anteriores etc130

. Os dados são reunidos e publicados ano a ano, funcionando

como base para avaliação dos programas de tratamento e para alterações nos programas de

prevenção e de tratamento.

129

Disponível em <http://www.sicad.pt/PT/PoliticaPortuguesa/SitePages/Home%20Page.aspx>. Acessado em

01 de outubro de 2015. 130

Dados disponíveis em <http://www.sicad.pt/PT/EstatisticaInvestigacao/InformacaoEstatistica

/ConsumosProblemas/Paginas/default.aspx> Acessado em 01 de outubro de 2015.

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135

6. PORTO E O OLHAR DIRECIONADO À SAÚDE

Durante os meses de Setembro a Janeiro foi realizado um estágio de observação na

Comissão para Dissuasão Toxicológica (CDT) da cidade do Porto. O estágio se situa no

contexto da pesquisa realizada sobre a política de drogas portuguesa.

A pesquisa tinha com objetivo analisar a política de drogas adotada por Portugal

depois da mudança legislativa trazida pela lei nº 30/2000, que descriminalizou o uso de

drogas e propôs a proibição administrativa do consumo de estupefacientes e substâncias

psicotrópicas. Por entender que a análise do texto da lei deve se dar em conjunto com a

análise das políticas públicas instituídas e com as alterações práticas que sugiram com a

mudança legislativa, o estágio apareceu como uma oportunidade de ter contato direto com um

dos órgãos responsáveis pela execução de políticas de apoio à lei.

A CDT trabalha com a dissuasão, que é apenas uma das frentes de trabalho propostas

na Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga. Ao lado da dissuasão há outras linhas de

intervenção, tais como a prevenção, o tratamento, a redução de danos, a reinserção social e o

combate ao tráfico ilícito de drogas. Os redatores da Estratégia Nacional entenderam que era

necessário uma intervenção multidisplinar e em vários campos para que o problema da droga

fosse realmente combatido.

O interesse de estagiar especificamente na CDT surgiu após algumas leituras sobre o

trabalho realizado no órgão. De acordo com informações preliminares, a CDT atendia os

indivíduos apanhados com drogas em quantidades associadas ao uso e disponibilizava uma

equipe multidisciplinar para dar atendimento aos usuários/toxicodependentes. O fato de haver

um órgão estatal que atendia usuários de drogas, partindo do olhar de profissionais da área da

saúde, do direito e das ciências sociais, despertou grande atenção e curiosidade.

A solicitação do estágio foi feita através do e-mail institucional. Após a aprovação do

pedido, três funcionárias da CDT do Porto ficaram responsáveis por realizar a orientação do

estágio, bem como por oferecer todo o auxílio necessário durante os quatro meses de estágio.

O objetivo inicial do estágio era participar das reuniões com os usuários para vivenciar

a abordagem do tema das drogas. Após algum período de observação do funcionamento

interno e administrativo da Comissão e de inúmeras conversas com as funcionárias, que

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136

passaram uma visão geral do que era feito, foi dada a oportunidade de assistir a algumas

intervenções.

Salienta-se que foram disponibilizados todos meios para esclarecer como se davam as

entrevistas. Através da leitura de alguns processos administrativos, de artigos científicos

fornecidos e de informações cedidas pessoalmente pelos funcionários da comissão, foi

possível entender um pouco mais como se dá o funcionamento da CDT do Porto.

Para entender melhor como funcionam as audiências, é importante que o leitor saiba

algumas definições básicas e importantes para entender o conceito de uma CDT. Logo a

seguir foram relatados os casos assistidos em audiência e as impressões retiradas do estágio.

6.1. A COMISSÃO PARA A DISSUASÃO TOXICOLÓGICA

A Estratégia Nacional de luta contra a droga surgiu em razão do problema mundial da

droga, que apesar de ser um problema em comum entre os países e de exigir uma resposta

adequada e eficaz da comunidade internacional, não se coloca da mesma maneira em todos os

lugares. Mostrou-se, assim, importante criar um modelo que se adequasse à realidade

portuguesa, um modelo que se baseasse em conhecimentos científicos e não em dogmas e

preconceitos.

A CDT é um órgão administrativo e foi criada especialmente para o processamento

das contra-ordenações pelo consumo, aquisição e detenção para consumo de estupefacientes e

substâncias constantes das tabelas I a IV e para aplicação das respectivas sanções131

.

As atribuições da CDT são as de processamento dos autos de contra-ordenação

elaborados pelas autoridades policiais, as de decisão e aplicação as correspondentes sanções.

A comissão deve respeitar os princípios norteadores da administração pública, sempre

buscando o interesse público de diminuição de consumidores e toxicodependentes e dos riscos

sanitários e higiênicos.

131

Cfr art. 5º da Lei 30/2000.

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137

O órgão funciona apenas administrativamente, não aplicando sanções judiciais. Isto

porque a descriminalização se assenta na possibilidade de utilizar os princípios do consenso e

da oportunidade, sendo assim, não faria sentido a permanência da estrutura judicializante, que

é sempre fiscalizada e controlada (VALENTE, 2006, P. 160). Logo, o órgão judiciário só é

chamado em sede de recurso ou quando um direito do indiciado não esteja sendo respeitado

pela CDT.

6.2. COMPETÊNCIA

A competência que prevalece é a territorial do domicílio do indiciado, nos temos do

DL nº 130-A/2001. Nos casos em que o indiciado não revelar o domicílio às autoridades

policiais, a CDT territorialmente competente é a da área em que o indiciado foi encontrado na

posse ou a adquirir/consumir droga.

Essa situação acontece quando o indivíduo, por vergonha e até proteção da família, se

escusa em indicar o local da residência. A regra da competência já demonstra certa

preocupação com os usuários atendidos pelas CDTs. Existe a preocupação com o

deslocamento do indivíduo, já que é sabido que muitas vezes esse pode ser o obstáculo que o

impeça de comparecer à reunião da CDT. Sendo assim, a ideia é facilitar a mobilidade do

indivíduo, que será sempre atendido na Comissão mais próxima de sua residência.

Isso leva em consideração que alguns usuários estão, também, desempregados, ou

possuem baixo rendimento mensal, o que dificulta o pagamento dos bilhetes necessários para

o uso dos transportes públicos. Portanto, já na determinação da competência do órgão se

observa que o acesso à saúde é um dos principais objetivos perseguidos.

6.3. OS MEMBROS E FUNCIONÁRIOS

De acordo com o art. 7º da Lei nº 30/2000, a CDT terá obrigatoriamente um membro

jurista, designado pelo Ministério da Justiça, sendo que outros dois serão designados pelo

Ministério da Saúde e pelo membro do governo responsável pela coordenação da política da

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138

droga e da toxicodependência. Os profissionais serão selecionados entre médicos, psicólogos,

sociólogos, técnicos de serviço social ou outros com um curriculum adequado à área da

toxicodependência. A ideia era englobar várias áreas do saber científico, permitindo decisões

capazes de promover a reinserção social do usuário, bem como a prevenção secundária,

terciária e a prevenção especial132

.

A CDT deve ser guiada pelo princípio da celeridade. O legislador procurou evitar que

os processos de contra ordenação pelo consumo de droga se estendessem ad infinitum, como

acontecia com os processos por consumo. O princípio ficou consagrado no art. 33º do DL nº

130-A/2001. Importante ressaltar que a celeridade processual não deve ser alcançada com a

mitigação dos direitos e garantias processuais do arguído.

O DL 130-A/2001 ainda estipula que a Comissão se reúna em sessão sempre que se

processe a audição de um indiciado ou de outra pessoa ligada ao processo. Esta reunião

deverá compreender a presença de todos os membros da CDT, a menos que um dos membros

não possa estar presente em razão de algum impedimento previsto na lei.

De acordo com Manuel Valente (2006, P. 166) , quando o legislador determinou que a

CDT se reúna em sessão, ele quis evitar que as decisões fossem tomadas de forma individual.

O objetivo era que com a multidisciplinaridade se alcançasse a melhor solução para o

indiciado.

A função específica dos membros da CDT é processar as contra ordenações e aplicar

as sanções correspondentes. Antes de chegar a uma decisão, a CDT deve ouvir o indiciado,

que terá a oportunidade de se defender, podendo, inclusive, ser assistido por um defensor133

.

Na prática, porém, a oitiva do indivíduo se processa de maneira diferente. A CDT do

Porto conta com uma equipe de três membros na Comissão e mais quatro membros na equipe

técnica, responsável por dar suporte técnico às decisões. Por motivos de pouco contingente de

132

De acordo com Manoel Valente, a prevenção secundária preconiza as consultas “destinadas aos indivíduos

dependentes ou em risco de o ser e às pessoas a eles ligadas (<<envolventes>>: pais, outros familiares, etc.) e,

ainda, o tratamento quer em regime de internato, quer no de ambulatório. A prevenção terciária, por sua vez,

traduz-se na ajuda a prestar ao ex-toxicodependente na sua reintegração social (família, meio laboral,

comunidade) e na ajuda aos que o irão receber, apoiar e ajudar a permanecer abstinente ao consumo de drogas.

Este estágio depende muito da forma como as prevenções anteriores foram conduzidas. Ainda segundo o mesmo

autor, a prevenção especial recai sobre o consumidor e as razões específicas que conduziram aquela pessoa a

enveredar pelo caminho da droga. (VALENTE, 2006, p. 65/67). 133

Nº 1 do art. 13º do DL nº 130-A/2001.

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139

pessoal, tanto a comissão quanto a equipe técnica se responsabilizam por todos os casos, que

são distribuídos igualmente por cada funcionário. As arguições também não são realizadas

com a presença dos três membros da equipe multidisciplinar, mas por apenas um deles, que é

o responsável por fazer a avaliação e relatório do caso. Conforme a avaliação é feita, o relator

propõe a medida a ser aplicada, os meios que devem ser utilizados para alcançar o objetivo da

dissuasão.

Dado o parecer, os membros da comissão recebem o processo para decidir qual sanção

deve ser aplicada. É normal que as indicações do relator sejam seguidas, já que ele

acompanhou o caso de perto, fez a entrevista com o usuário e pôde perceber melhor o

contexto do indivíduo. Todas as relatoras da CDT do Porto possuem competência e estudos

específicos que permitem avaliar cientificamente o caso e optar por uma sanção.

Também cabe ressaltar que os casos mais complexos são discutidos entre as relatoras,

mesmo que de modo informal. A ideia da equipe multidisciplinar era justamente essa

interligação de pontos de vista. A visão de um jurista acaba por ser diferente da visão do

psicólogo, que é diferente da visão da assistente social. Quando se juntam profissionais dessas

áreas, é possível ter uma visão mais ampla da situação.

Apesar das entrevistas não serem feitas pela equipe em conjunto, a

interdisciplinaridade não fica completamente prejudicada, já que existe esse diálogo entre as

profissionais e sempre é possível que outra relatora, com uma formação de base mais

específica para o caso, se junte à audição. Ademais, o relatório realizado pela equipe técnica

só surte efeito depois de corroborado pela comissão, o que permite que mais profissionais

estejam ligados ao caso.

Ainda sobre a formação dos profissionais da CDT, a lei afirma que é necessário que

eles possuam o curriculum adequado à situação da droga. Quando da contratação dos

profissionais, eles passam por uma entrevista e por análise curricular.

Em que pese um ou outro não ter especialização nessa área do conhecimento, a

maioria já havia trabalhado com o tema das drogas. Ademais, no inicio da carreira há um

breve curso de formação dos profissionais. Além desse curso inicial, os profissionais sempre

participam de congressos, institucionais ou não, para aperfeiçoar o conhecimento referente ao

tema com o qual trabalham.

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140

Interessante também a percepção de que a equipe técnica da CDT, com quem tive

mais contato, demonstrou grande conhecimento teórico sobre o assunto. Com efeito, cada

profissional tem um conhecimento mais aprofundado em sua área de formação, mas todos

apresentaram vastas leituras e conhecimento de teorias psicológicas e sociais sobre o tema das

drogas. As profissionais se mostraram atentas às pesquisas qualitativas e quantitativas feitas a

respeito do tema e da política de drogas portuguesa, com ênfase nas pesquisas que tem a CDT

como objeto de estudo.

A comissão ainda pode decidir pela proposta da realização ou não de exames e

perícias psicológicas, assim como procedimentos de diagnóstico (análises de sangue, de urina

ou outros), que se apresentem necessárias e adequadas à conclusão de se saber se o indiciado

é ou não um consumidor toxicodependente134

. A audição do indiciado irá guiar o plano de

tratamento elaborado pela CDT, que também deve levar em consideração a colaboração dos

familiares, que detém uma informação mais ampla sobre a trajetória de vida do indiciado e

sobre as medidas de tratamento já adotadas.

A CDT pode optar pela presença de um psicólogo ou técnico cientificamente apto à

circunstância135

. A audição se mostra o momento mais importante do processo, sem o qual,

aliás, a comissão não pode tomar uma decisão. Percebe-se que o legislador procurou meios

para que a decisão da CDT fosse baseada em conceitos científicos, e não em achismos dos

membros da comissão. Assim, busca-se uma análise aprofundada e individual de cada caso,

com o objetivo de prevenir o consumo e reinserir o indiciado através do melhor tratamento.

6.4. AS AUDIÊNCIAS E O OUVIDO ATENTO PARA O USUÁRIO

Quando da oitiva do indiciado, os membros da comissão devem se reunir em sessão

para realizar a entrevista. A comissão deve ler o auto de ocorrência para o arguído e pesquisar

sobre eventual registro prévio de contra ordenação. A comissão deve interrogar o indiciado

sobre as condições que considere pertinentes: antecedentes contra-ordenacionais, contexto em

que foi abordado pela autoridade policial, se estava ou não a consumir, se estava a consumir

em local público, qual droga consumia e se consome mais que uma droga. Também deve

134

Nº 3 do art. 16º do DL nº 130-A/2001. 135

Nº 1 do art. 20º do DL nº 130-A/2001

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141

questionar o arguído a respeito de sua situação econômica, social e familiar; os meios de

subsistência e outros condicionantes da vida136

.

De acordo com a equipe técnica, o objetivo principal da entrevista é identificar o

indivíduo como consumidor ou toxicodependente e fazer com que ele desenvolva uma

reflexão sobre seus hábitos. Os profissionais da CDT trabalham com objetivo de criar no

usuário um pensamento reflexivo sobre sua conduta, para que ele compreenda as

consequências (biológicas, psicológicas e sociais) do uso de drogas. A análise dos aspectos

sociais da vida do usuário, como por exemplo, a conjuntura financeira e a estrutura familiar,

são imprescindíveis para entender a situação e propor estratégias de tratamento.

Interessante notar que as entrevistas saem do contexto da judicialização e da

formalidade. A direção da entrevista se dá conforme a percepção do entrevistador sobre o

indivíduo. Aquele tenta apontar que o uso de drogas é problemático, se não em termos sociais,

familiares ou profissionais, em termos de saúde.

Especificamente em Portugal, notou-se uma alteração no perfil dos usuários de drogas.

Nos anos 80 e 90 havia um grande contingente de usuários de heroína. Hoje é pequeno o

número de usuários de opiáceos atendidos pela CDT, sendo maior o número de usuários de

derivados da canábis.

De acordo com a equipe técnica, é maior a dificuldade do usuário de canábis se

identificar como toxicodependente. Quando o entrevistador percebe problemas familiares e

sociais decorrentes do uso da droga, ele tenta mostrar ao indivíduo que o uso da droga tem

sido problemático e trazido problemas que muitas vezes não tinham sido percebidos até então.

Interessante notar que o uso de drogas pode ser um sintoma de desequilíbrios preexistentes na

vida do indivíduo. Se isto é percebido no momento da entrevista, o foco passa a ser o

tratamento da condição psicológica, por exemplo, que leva o indivíduo a procurar a solução

no uso de drogas psicoativas.

Quando o usuário não é toxicodependente, ou quando se trata de um toxicodependente

funcional, ou seja, que consegue manter na normalidade a execução das tarefas diárias, o

objetivo é mostrar que o uso da droga traz consequências a nível da saúde, sendo uma porta

para o desenvolvimento de doenças posteriores.

136

Art. 14º do DL nº 130-A/2001.

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142

As sanções são aplicadas de maneira diferente conforme se trate de um usuário não

toxicodependente reincidente, de um usuário não toxicodependente não reincidente e de um

toxicodependente.

A maior crítica ao trabalho da CDT é o fato de que o processo não ter verdadeiramente

o condão de dissuadir o indivíduo do uso de drogas. Um dos motivos é a ausência de

continuidade no processo, já que, com algumas exceções, o contato é praticamente perdido

após a primeira entrevista e a consequente suspensão do processo.

6.5. O CONTATO COM A POLÍCIA

A polícia, ao abordar um indivíduo com a quantidade de droga associada do uso, deve

confeccionar um auto de ocorrência, que deverá ser “enviado pelo meio mais célere à

Comissão (...) territorialmente competente, de modo que seja recebido em até trinta e seis

horas depois daquela ocorrência” (n.º 2 do art. 9º do DL nº 130-A/2001) O indiciado é

notificado pela entidade autuante para se apresentar na CDT, cujo dia e hora jamais deverá

ultrapassar 72 horas após a ocorrência (nº 1 do art. 11º do DL nº 130-A/2001).

A audição do indiciado é importante, pois tem o objetivo de reunir todos os elementos

necessários para que a Comissão formule um juízo a respeito da condição do indiciado, ou

seja, se este é toxicodependente ou um consumidor não toxicodependente. Caso ele seja um

toxicodependente, a comissão só poderá aplicar alguma das sanções alternativas, estando

proibida de aplicar uma sanção pecuniária137

.

A natureza do consumidor é essencial para a determinação da sanção. Isto demonstra o

respeito do princípio humanista e ao princípio do pragmatismo138

. Se é sabido que muitas

vezes o toxicodependente não tem recursos para comprar a droga, é muito incoerente que se

aplique uma multa pecuniária, que agravaria ainda mais a busca do usuário por recursos

financeiros.

137

Nº 2 do art. 15º da Lei nº 30/2000. 138

A doutrina do pragmatismo procura adotar como critério de verdade a utilidade prática, identificando o

verdadeiro como útil, ou seja, é a filosofia dos resultados, da experiência e da ação. (VALENTE, 2006, p. 79).

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143

Uma das questões pertinentes é a de se saber como se procede se o indiciado não

comparecer à CDT na data para o qual foi notificado pela autoridade policial. Os normativos

legais não trazem nenhuma determinação que implique a condução forçada do indivíduo.

Levando em consideração que a comissão não pode decidir sem proceder com a audiência,

encontramos aqui um grande problema para o deslinde do processo.

Uma das soluções, proposta por Manuel Valente (2006, P. 181), é esperar que o

arguído seja novamente interceptado pela autoridade policial, e depois de saber se se encontra

algum membro na CDT, conduzi-lo de imediato. De acordo com o autor, apesar de ser uma

solução prática, “é amoral e despida de qualquer sentido jurídico face aos princípios inerentes

ao Estado de Direito Democrático”.

Outra opção seria a aplicação subsidiária do Código de Processo Penal, tornando

possível a emissão de mandado de notificação de comparecimento por parte da autoridade

policial, a pedido da Comissão. Ainda segundo o mesmo autor, numa próxima alteração legal

dever-se-á contemplar a possibilidade da Comissão emitir mandado de comparecimento ou

solicitar a outra autoridade que o faça (VALENTE, 2006, P. 182).

A solução adotada pela CDT do Porto foi o encaminhamento de notificações para a

polícia, que informa o indivíduo da necessidade de comparecimento à CDT. As notificações

são realizadas com respaldo no direito sancionatório público, mais especificamente o direito

contraordenacional, já que a CDT é um órgão de direito administrativo. O direito das contra

ordenações é direito sancionatório público e obedece aos mesmos princípios do direito penal,

tem as mesmas instituições fiscalizadoras de cumprimento dessa norma e é competente para

emitir notificações.

Quando do início da CDT do Porto, foi discutida a possibilidade de proceder com a

notificação de comparecimento compulsório daquele que descumpre o dever de se apresentar

na CDT, porém optaram por não fazer uso deste recurso por entender que desvirtua o

princípio descriminalizador e desestigmatizante. Se o objetivo é deixar de utilizar o direito

penal, por que recorrer a ele quando o indivíduo desobedece ao dever de comparecimento? Se

não se está a usar o direito penal para tutelar o uso de drogas, que é o fator principal aqui

tratado, não é justificável seu uso para o descumprimento da ordem comparecimento.

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144

6.6. AS POSSÍVEIS SANÇÕES A SEREM APLICADAS

O art. 15 da lei 30/2000 traz o regimento legal das sanções a serem aplicadas no

regime de estupefacientes139

. O artigo 17, por sua vez, elenca um rol de sanções, que podem

ser aplicadas a título principal ou alternativamente às multas. A escolha da sanção deve ser

feita de forma individualizada, de modo a influir no processo de dissuasão.

É importante frisar que para os toxicodependentes, a multa não pode ser aplicada e que

após a entrevista motivacional a maioria dos processos é arquivada, sendo assim, a aplicação

de sanções fica restrita a alguns casos, como a multa aplicada aos reincidentes, por exemplo.

6.7. A ENTREVISTA MOTIVACIONAL

Segue, agora, a uma pequena análise das três entrevistas assistidas no dia 19/01/2015.

6.7.1. CASO 01

A primeira entrevista da manhã foi realizada com o Jõao140

, um homem de 38 anos,

casado e pai de uma menina de nove anos. O atendimento foi realizado pela Ana, que é

psicóloga. Ele havia sido apreendido pela polícia três dias antes portando 4,90 gramas de

haxixe.

Já no primeiro momento da entrevista foi perguntado para o arguído como se deram os

fatos e foi explicada a diferença entre crime e contra ordenação.

O arguído chegou na sala muito retraído, fazendo pouco contato visual e visivelmente

constrangido, mas foi ficando mais confortável conforme a técnica iniciava um assunto

139

Art. 15: 1 - Aos consumidores não toxicodependentes poderá ser aplicada uma coima ou, em alternativa,

sanção não pecuniária. 2 - Aos consumidores toxicodependentes são aplicáveis sanções não pecuniárias. 3 - A

comissão determina a sanção em função da necessidade de prevenir o consumo de estupefacientes e substâncias

psicotrópicas. 4 - Na aplicação das sanções, a comissão terá em conta a situação do consumidor e a natureza e as

circunstâncias do consumo (...). 140

Todos os nomes foram trocados para impedir a identificação dos participantes.

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145

descontraído, mostrando interesse pela profissão dele, criando um ambiente agradável já no

início da conversa.

Logo em seguida, ela iniciou os questionamentos sobre o consumo. O arguído usava

apenas haxixe, sozinho e aos fins de semana, nunca em casa, já que a filha e a esposa são

alérgicas. Afirmou que a esposa não sabia dos consumos e que ele usava para se sentir

“calmo, para desligar por um tempo”. A técnica esclareceu sobre os problemas de saúde

trazidos pelo fumo e ainda ressaltou os efeitos sociais e psicológicos.

Durante a entrevista, a psicóloga percebeu uma condição depressiva no entrevistado.

Ela realizou algumas perguntas sobre o modo como ele se sentia e ele respondia que sempre

se sentia triste e que isso era percebido pela esposa às vezes. Por esse motivo, ela indicou que

ele fosse a um psicólogo para trabalhar o modo como ele se sente, mas frisou que a escolha

era dele.

João aceitou ser encaminhado a uma psicóloga e Ana marcou uma consulta para o dia

seguinte. Ele pediu à Ana que fosse marcada uma psicóloga longe da casa dele e em um

horário específico, para que sua esposa não percebesse que ele iria atrás de atendimento

psicológico, o que foi prontamente atendido pela Ana. Ao final da entrevista a técnica passou

para o arguído seu contato e se colocou à disposição para alguma ajuda ou esclarecimento.

Cerca de 20 minutos depois do início da entrevista, que tinha começado com o arguído

tímido e desconfortável, o processo já estava pronto para ser arquivado e o João se despediu

de nós com um sorriso no rosto, transmitindo uma sensação de alívio. Com simpatia, respeito

e, acima de tudo, interesse, a confiança do João foi conquistada e ele pode ser encaminhado

para o tratamento psicológico.

6.7.2. CASO 02

A segunda entrevista acompanhada também foi conduzida por uma psicóloga da

equipe técnica, a Miriam. Dessa vez o entrevistado era um jovem de 22 anos.

Já no começo ela explica a diferença entre as drogas legais e as ilegais e do crime de

consumo e da contra ordenação. Ela também explica que a CDT é um serviço de saúde que

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visa ajuda-lo. O entrevistado se encontrava desempregado e entrou na sala bem falante.

Quando era perguntado sobre o uso de drogas, sempre se referia ao haxixe como uma droga

leve. Ele apresentou uma opinião já formada sobre os perigos (no caso, a ausência deles) do

uso de haxixe. Disse, por exemplo, que essa droga não viciava que nunca se sentiu mal com o

consumo.

A técnica começou a orientar a entrevista para o lado dos danos causados à saúde,

explicando que também existe a habituação ao haxixe e que o consumo traz problemas de

saúde. As respostas do jovem se davam sempre no sentido de relativizar os males da conduta,

afirmando, por exemplo, que até comida faz mal.

Esta entrevista se mostrou mais no padrão dos indivíduos recebidos pela CDT,

conforme já me havia sido informado pelas técnicas. Em sua maioria se tratam de jovens não

toxicodependentes e usuários de haxixe ou derivados. São usuários funcionais e não

problemáticos.

Nesses casos, a ideia principal é mostrar que, ao contrário do que a maioria deles

pensa, o uso dessa droga causa problemas de saúde. Nessa segunda entrevista a técnica

também se mostrou muito simpática e interessada. A mudança do comportamento do jovem

foi contrária à da primeira entrevista. Ele chegou todo falante e “cheio de si” e com o decorrer

da entrevista se mostrou mais atento aos alertas que eram feitos pela técnica.

6.7.3. CASO 03

A terceira entrevista que assisti também foi conduzida pela Mirian. Foi entrevistado

um jovem de vinte anos que vive com a mãe e o irmão mais velho. Ele é reincidente em

processo de contra ordenação por consumo de haxixe e afirmou consumir mais de quatro

vezes por semana. Os consumos se dão em grupo ou individualmente. A mãe não tem

conhecimento dos consumos e o irmão mais velho, que já foi consumidor, o alerta para os

riscos do uso do haxixe. Mais uma vez a entrevista é conduzida de maneira informal, na

tentativa de criar empatia com o entrevistado.

Quando chamado a fazer uma reflexão crítica ao uso de drogas, ele afirmou que sabe

que não deveria ter “andado na rua carregando a droga, devendo ter mais cuidado ao fazer

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147

isso”. Após essa resposta, fica claro que seu receio ao uso de drogas se limita ao fato de ser

ilegal, ou seja, de não ser „pego‟. Essa afirmativa é corroborada ao longo da entrevista quando

ele diz que o consumo não o preocupa, pois não consome em grande quantidade. Afirma

também que já assistiu a vários documentários a respeito dos riscos do haxixe, sendo esses

umas das bases da ausência de preocupação.

Neste momento, a técnica insiste em relacionar os problemas de saúde que podem ser

causados pelo uso da droga. Explica que o fumo é tóxico e que pode desencadear doenças

como a esquizofrenia. Ele explica que nunca se sentiu mal com o fumo e que fuma porque se

sente mais criativo, característica importante em sua profissão (atualmente ele trabalha em

casa). A técnica explica que a questão da criatividade é um mito e que na verdade ele se sente

mais relaxado e fechado para o mundo exterior, o que traz essa impressão de criatividade. Ele

afirma que o fato de relaxar já é suficiente. Ela reafirma que o uso da droga não aumenta a

criatividade e que um dos efeitos do uso é a diminuição da ansiedade naquele momento, mas

que a longo prazo há um aumento do nível basal da ansiedade, sendo assim, não deve ser

usado como um medicamento para a redução da ansiedade. Ele se justifica mais uma vez e a

entrevista termina com a aplicação da multa, necessária por se tratar de usuário reincidente e

não toxicodependente. Mais uma vez ele é alertado sobre os efeitos do uso a longo prazo e a

entrevista termina.

A terceira entrevista apresentou um padrão mais comum na CDT. Interessante notar

que este entrevistado se encontra na fase de pré contemplação, ou seja, entende que os

consumos lhe fazem mal, mas ainda não está refletindo sobre isso. Ainda não há a intenção de

reduzir ou de abandonar o consumo.

6.8. CONCLUSÕES PRELIMINARES

A realização do estágio foi enriquecedora em vários aspectos. Ter contato direto com a

CDT e com as profissionais do órgão, fez com que fosse abandonada a noção romantizada da

realidade. Foi possível observar a aplicação de uma política de drogas inovadora e respeitada

no mundo inteiro.

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148

O acompanhamento dos trabalhos fez perceber o que funcionou e o que ainda pode ser

aprimorado, sendo que no âmbito da aplicação prática da lei, a CDT cumpre com maestria as

funções que lhe foram designadas. Se, por um lado, o ideal de dissuasão desejado pela

estratégia nacional acaba não sendo eficaz, já que a maioria dos usuários não muda de ideia

em razão da audição na CDT, por outro lado o Estado consegue criar uma oportunidade de

diálogo com os usuários de drogas, consegue aproximá-los do sistema de saúde e fornecer

informação e oportunidade de mudança.

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149

7. RIBEIRÃO PRETO E AS AUDIÊNCIAS COLETIVAS

Toda a análise da luta política deve ter como fundamento as

determinantes econômicas e sociais da divisão do trabalho

político, para não ser levada a naturalizar os mecanismos

sociais que produzem e reproduzem a separação entre os

agentes politicamente ativos e os agentes politicamente passivos

e a construir em leis eternar as regularidades históricas válidas

nos limites de um estado determinado da estrutura da

distribuição do capital. Bourdieu, p. 163.

Até assistir a primeira audiência no Jecrrim de Ribeirão Preto, eu não fazia ideia de

como eram processados os usuários de drogas. Ao contrário das audiências de Portugal, que

eu já tinha lido a respeito de como se davam as audiências, o processamento das audiências no

Brasil era completamente desconhecido para mim.

A natureza do meu estágio em Portugal foi diferente da experiência que tive no Brasil.

Em Portugal, eu fiquei quatro meses indo à CDT todas as quartas e quintas, quando passava a

tarde na mesma sala que as técnicas da Comissão. Assim, pude ficar próxima das técnicas e

ter uma impressão mais próxima do real funcionamento das audiências.

Em Ribeirão Preto, eu pretendia assistir três dias de audiências, porque havia assistido

três audiências na CDT do Porto. Contudo, logo no início da audiência notei diferenças com o

modelo português. Enquanto na CDT cada indivíduo tem horário marcado para ser atendido e

é entrevistado de forma individual, no JECRIM de Ribeirão Preto, as audiências são

realizadas de forma coletiva, ou seja, entram na sala de audiência, ao mesmo tempo, vários

acusados, conforme agrupamento previamente realizado pelo funcionário competente.

Aqui eu encontrei a primeira diferença: a individualização no tratamento dispensado

aos usuários de drogas. Apesar da medida aplicada ser teoricamente muito semelhante – a

advertência – o fato das audiências no Jecrim de Ribeirão Preto serem coletivas impede que as

advertências sejam específicas para cada acusado.

Essa desconfiança pôde ser observada na fala dos promotores que aplicaram a

advertência. Com pequenas nuances em suas falas, a impressão foi que os dois promotores

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possuem uma “advertência padrão”, que eles utilizam em todas as audiências. Não havia

diferenciação em relação à quantidade ou natureza da droga apreendida, a advertência verbal

era aplicada a todos e todas de forma indistinta.

Aliás, não era de se esperar coisa diferente, já que os processos são entregues ao

promotor e ao advogado imediatamente antes da audiência. O promotor, especificamente, tem

acesso aos autos antes da audiência. É nesse momento que ele observa a proposta de transação

penal, e decide se oferecerá advertência verbal, prestação de serviços à comunidade,

pagamento de cestas básicas etc.

O resultado do diário de campo das audiências assistidas em Ribeirão Preto em cotejo

com as teorias criminológicas estudadas neste trabalho seguem no próximo tópico.

7.1. A INDIFERENÇA E O PRIMEIRO DIA DE AUDIÊNCIAS

As audiências realizadas no Jeccrim de Ribeirão Preto são, quase sempre, coletivas.

Há um agrupamento entre os indivíduos presentes nas audiências, pelo que todos parecem

fazer parte de um mesmo grupo, de uma categoria.

O conceito de categoria, contudo, segundo Goffman (2004, P.05) é muito abstrato e

pode ser aplicado a qualquer pessoa com um estigma particular, de modo que os que estão de

fora da “categoria” definem quem eles acham que pode fazer parte de tal categoria. A

consequência disso é que um conjunto de membros que não faça parte de um grupo estrito é

alvo de tratamentos iguais, por pertencerem ao mesmo grupo, apesar desse grupo não existir

de fato, ser apenas um resultado dos processos de estigmatização.

Observa-se esse fato com os usuários de drogas nas audiências assistidas, haja vista

todos serem tratados como se fizessem parte de uma categoria única de pessoas: os usuários

de drogas ilícitas apreendidos pela polícia. Não se considera como critério de diferenciação

nenhuma individualidade do sujeito, como seu histórico de uso, ou familiar ou a natureza da

droga e contexto da abordagem policial.

Ao receber esse tratamento padronizado, o usuário aprende sobre o estigma que recai

sobre ele, podendo incorporar o ponto de vista dos “normais” em relação à sua identidade.

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151

Passa a ter também uma ideia geral do que significa possuir um estigma em particular.

(GOFFMAN, P. 30).

Cabe ressaltar que a relação do estigma não é estática, separando em duas pilhas

estigmatizados e normais. Nas palavras de Goffman:

“O normal e o estigmatizado não são pessoas, e sim perspectivas que são

geradas em situações sociais durante os contatos mistos, em virtude de

normas não cumpridas que provavelmente atuam sobre o encontro. Os

atributos duradouros de um indivíduo em particular podem convertê-lo em

alguém que é escalado para representar um determinado tipo de papel; ele

pode ter de desempenhar o papel de estigmatizado em quase todas as suas

situações sociais, tornando natural a referência a ele, como eu o fiz, como

uma pessoa estigmatizada cuja situação de vida o coloca em oposição aos

normais. Entretanto, os seus atributos estigmatizadores específicos não

determinam a natureza dos dois papéis, o normal e o estigmatizado, mas

simplesmente a frequência com que ele desempenha cada um deles.”

(GOFFMAN, 2004, P. 118).

Entendemos que no caso dos usuários de drogas selecionados pelo sistema penal, o

estigma é apenas reforçado no momento das audiências. Analisando os usuários presentes nas

audiências, observou-se que a maioria deles havia sido abordada pela polícia em bairros

periféricos de Ribeirão Preto. Chamou atenção um dos casos, em que o usuário foi abordado

no centro da cidade de Ribeirão Preto, em um local relativamente elitizado. Nesse caso,

curiosamente, tratava-se de um usuário negro, corroborando a visão de Vera Malaguti, de que

os negros são sempre vistos como suspeitos.

O panóptico de Bentham, analisado por Foucault, funcionaria para que houvesse uma

vigilância 24 horas sobre os detentos. O panóptico moderno visa controlar populações através

da vigilância constante, que acaba sendo efetiva apenas quanto a classes específicas da

sociedade. Para eles, a vigilância é constante e qualquer deslize é alvo da criminalização. A

visibilidade é, assim, um fator crucial, porque o que pode ser dito sobre a identidade social141

141

De acordo com Goffman, “quando um estranho nos é apresentado, os primeiros aspectos nos permitem

prever a sua categoria e os seus atributos, a sua “identidade social” – para usar um termo melhor do que

“status social”, já que nele se incluem atributos como “honestidade”, da mesma forma que atributos

estruturais, como “ocupação”. Baseando-se nessas preconcepções, nós as transformamos em expectativas

normativas, em exigências apresentadas de modo rigoroso”. (GOFFMAN, P. 06).

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de um indivíduo em sua rotina diária e por todas as pessoas que fazem parte dela é de grande

importância. (GOFFMAN, 2004, P. 44).

Desse modo, explica-se o fato das leis antidrogas prenderem tantos membros de

minorias étnicas. Em geral, essas pessoas moram em bairros periféricos, em casas menores,

com paredes mais finas, em ruas mais estreitas e mais frequentadas pela polícia. Drogas ditas

ilícitas são usadas por todas as classes e por todos os grupos étnicos em proporções

semelhantes, contudo os membros das classes mais abastadas fazem negócio atrás de muros

altos, enquanto a população marginalizada usa droga nas ruas, ou é alvo de “revista”

constante. (BURGIEMAN, P. 25). Soma-se a isso que a estigmatização de membros de certos

grupos raciais ou étnicos tem funcionado como um meio de afastar essas minorias de diversas

vias de competição. (GOFFMAN, P. 118).

Cada promotor usa seus critérios pessoais para decidir o que será oferecido em

transação penal. O promotor nº 1,advertiu a quase todos os usuários presentes na audiência,

tendo oferecido transação penal apenas para um dos usuários, que era reincidente. Contudo,

esse usuário se encontrava preso e disse que não possuía a quem recorrer, em razão disso, o

promotor também o advertiu e não determinou o pagamento de cestas básicas. O promotor nº

2, por sua vez, demonstrou uma tendência maior em determinar o pagamento das cestas

básicas.

Do início ao fim das audiências assistidas em Ribeirão Preto, observa-se interações

violentas entre os membros do judiciário e os usuários de drogas. Trata-se de uma violência

implícita, mas que para olhos e ouvidos mais atentos, se torna explícita. As audiências são

marcadas pelo desrespeito e indiferença, que vem de todas as partes: magistrado e magistrada,

promotores e até pelo advogado dativo, que era o mesmo nas duas audiências assistidas.

Apesar da frequência com que esses profissionais têm contato com os usuários de

drogas, a familiaridade com aquela situação não reduz o menosprezo. As marcas que a

sociedade coloca no indivíduo ficam claramente impressas nos contatos entre os usuários e os

funcionários, colocando cada um “em seu lugar”. (GOFFMAN, P. 48). O fato dos

funcionários ignorarem os indivíduos presentes na audiência faz crer que eles estão

habituados a não ter de justificar sua presença naquele local.

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Pôde-se observar que os usuários presentes nas audiências vacilaram entre o

retraimento e a agressividade. Alguns usuários mal tinham voz para responder às provocações

do promotor, outros respondiam prontamente, o que pode ser lido como agressividade, por se

esperar que as pessoas presentes ali sejam passivas em relação à posição de superioridade dos

funcionários do Estado em relação à ele, um usuário de drogas ilícitas. A interação face a face

entre esse polos torna-se, assim muito violenta. (GOFFMAN, P. 18). As características

singulares, historicamente insculpidas, cria um conjunto de previsões socialmente

padronizadas que se tem quanto à conduta esperada do indivíduo estigmatizado. (GOFFMAN,

P. 48).

O magistrado e a magistrada estiveram na audiência apenas de corpo presente, pela

formalidade. Os promotores, protagonistas das audiências, esperavam ansiosamente pelo

momento em que deveriam dar a advertência. Após cumprirem sua fala, esqueciam-se que

havia pessoas na sala esperando informações ou o mínimo de empatia e voltavam a falar de

outros assuntos.

Na primeira audiência assistida, o promotor estava muito incomodado, porque um

aplicativo do seu celular novo, comprado recentemente em Miami, estava com problemas. A

angústia era dividida com o advogado, que opinava sobre o que poderia ser feito.

Foi possível observar que no Juizado Especial Criminal de Ribeirão Preto, há um

acordo prévio entre o Ministério Público e o juízo, permitindo que seja aplicada uma resposta

padrão a todo e qualquer tipo de caso de usuário de drogas. Esse acordo não significa que

antes do usuário entrar na sala de audiência o magistrado e o promotor discutem qual pena

será aplicada, mas significa que o Ministério Público tem total liberdade para decidir quais

sanções serão oferecidas para cada usuário para que se realize a transação penal142

. O

resultado, como já foi dito, é uma resposta padrão.

Observou-se, contudo, que cada promotor possui uma sua própria resposta padrão.

Sendo assim, como as audiências não são sempre realizadas pelo mesmo promotor, a resposta

penal que cada usuário receberá, depende de qual promotor será o responsável pela audiência

no dia. Logo, percebe-se que há toda uma estrutura que permite e chancela o oferecimento de

respostas padrões aos usuários de substâncias ilícitas.

142

A transação penal está prevista na lei 9099/95 e é prerrogativa do Ministério Público.

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Esse padrão de respostas é sabido por todos. Um dos funcionários do juízo, por

exemplo, informou em conversa informal que as audiências eram rápidas, porque o promotor

sempre aplicava a advertência, a menos que se tratasse de usuário reincidente, quando era

aplicado o pagamento de um a três salários mínimos para alguma instituição de caridade.

Conforme o que foi previamente avisado pelo funcionário, as audiências de fato foram

rápidas, um pouco mais rápido do que se espera que demore uma audiência, ainda mais se

tratando de uma audiência coletiva. Em cerca de uns 3 a 4 minutos os usuários entram e saem

da sala. Essa duração é permitida pelos arranjos previamente realizados entre juízo, promotor,

advogado e funcionários.

Os funcionários já deixam a proposta de transação redigida, sendo que quando ela é

“aceita” pelo usuário, já está pronta para ser impressa e assinada. Desse modo, a parte mais

demorada da audiência é o oferecimento da transação penal, que se observou não ser bem um

oferecimento, já que muitas vezes os usuários entram e saem da sala sem saber qual tipo de

relação jurídica se estabeleceu ali.

Os funcionários, aliás, foram os responsáveis por orientar cada usuário a respeito do

que estava acontecendo na audiência. Ações simples, como explicar que os usuários deveriam

sentar em alguma cadeira ao redor da mesa, ou de explicar que a audiência já tinha acabado e

que eles estavam liberados, eram sempre papel do assistente judiciário, haja vista que juiz,

promotor e advogado eram, na maior parte das vezes, indiferente ao que acontecia antes ou

depois da fala do promotor.

Os promotores foram os protagonistas das audiências assistidas. O promotor número

01 apresentou a preocupação em explicar para os acusados porque eles estavam ali e qual a

finalidade daquela audiência. Logo após essa explicação, era aplicada a advertência:

O promotor diz que todos estão aqui pela mesma razão: posse de estupefacientes.

Diz que a audiência é marcada para alertar dos efeitos das drogas. Começa falando

do problema das drogas. Diz que é mentira que o tem tratamento, que existe

recuperação: entrou no crack, acabou. Que entra numa droga e vai para outra, vai

para outra. (...) Disse que se você vai comprar a droga e a polícia pega você

comprando e o traficante diz que você estava vendendo, o traficante diz que você

estava vendendo, você pode ser condenado por tráfico e que se for condenado não

sai, não tem beneficio nenhum, não arruma emprego, se é reincidente é pena inteira

na cadeia. A conversa é pra você que vocês tem que tomar a decisão de não mais

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mexer com drogas, porque eles vão pegar uma mão de via única. Vocês optaram por

uma coisa que estão sendo advertidos pelo promotor pelo risco que estão correndo.

Risco jurídico criminal, risco do trabalho, risco de saúde. Diz que não esta dando

uma de conselheiro, mas que é promotor desde 88 e que já viu muita gente se

destruir. Diz que vai entregar um papel para eles assinares. Naõ explica NADA. O

que é transação penal, que o problema acaba aqui, não explica que a ação acaba

aqui, não lê o que eles estão assinando. Só diz que eles estão dispensados. Cada um

recebe uma cópia do que assinou. O juiz não está presente na sala. Promotor está no

whatsapp.

O promotor rouba a cena como sempre. Diz que foi encontrada droga dentro do

carro do usuário. Explica que é audiência de advertência. Ele diz que a ideia é

conscientizar o Marcelo dos riscos que ele corre ao entrar nesse mundo. Diz que se

for dependente químico, não sai. Diz que se não for, vai acabar ficando, diz que se

entrar no crack morre. Faz a ameaça com a possível condenação por tráfico. Diz pra

ele pensar o que vai fazer na vida dele. Diz que essa é a chance que ele está tendo,

pq isso aqui não vai ficar nos antecedentes dele.

Anderson, Adailson e Rafael n tem condenação transitada em julgado ainda, por isso

serão só cientificados de tomarem esse rumo na vida (do tráfico – citado aqui pela

primeira vez, ou do uso). Diz que corre o risco de nunca mais arrumar emprego e ter

que ser traficante o resto da vida. Diz que eles tem que pensar bem se é essa a vida

que eles vão querer. Explica que marca essa audiência quando a pessoa é mais nova,

pra dar um toque. O Jorge já tem condenação, no caso dele n da p falar muda porque

ainda da pra mudar, pq ele já tem condenação, nesse caso o que da pra fazer é

determinar uma multa pra ele pagar. O réu avisa que não tem ninguém pra ajuda-lo a

pagar. Ai o promotor diz que vai deixar a advertência pra ele também. Avisa que ele

vai ficar entrando e saindo da cadeia. Pergunta se ele é bom de empreiteira, porque

quem é não fica preso. Pergunta pra um preso que é mais velho se ele já tem

condenação e ele diz que não. Diz que eles estão avisados para não tomarem esse

caminho.

Observa-se que o promotor 01 possui uma forma semelhante de advertir os usuários.

Em seu discurso sempre constam, pelo menos, duas considerações. A primeira é a afirmação

de que o usuário começa em uma droga mais “leve” e vai progredindo, até chegar ao uso de

drogas “pesadas”. Nas palavras do promotor, “entrou no crack, acabou”.

Essa divisão entre drogas boas e drogas perigosas, entendendo-se por perigosas

aquelas que têm potencial de causar dano social, nocividade ou dependência, encontra-se em

um campo de difícil demonstração objetiva. Em relação com a categoria das drogas boas/más,

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há a categoria das drogas institucionalizadas, drogas que pertencem à nossa cultura, como o

álcool, e as drogas não institucionalizadas, que condenamos, não porque sejam mais

perigosas, mas porque a associamos com culturas alheias às nossas. Desse modo, a divisão

entre drogas legais/ilegais, leves/pesadas é feita muito mais com base em conceitos políticos

do que científicos. No final o eventual perigo causado pelas substâncias não é o que causa a

proibição, mas sim razões de interesses econômicos e políticos. (DEL OLMO, 1989, P. 92).

O promotor reproduziu o discurso do senso comum, que é a sabedoria tradicional, a

mistura das “coisas que todo mundo sabe”, os estereótipos da vida cotidiana. Nas

generalizações de senso comum os erros cometidos não são aleatórios e favorecem as

instituições estabelecidas. (BECKER, P. 190). Todavia, para que haja um saber científico, é

necessário romper com o senso comum, ou seja, com as representações oficiais presentes nas

instituições, com as representações partilhadas com todos. (BOURDIEU, P. 34).

Esse não é um campo simples de romper, porque há uma luta simbólica pela produção

do senso comum, pelo monopólio da visão legítima do mundo social. Para isso, os indivíduos

investem o capital simbólico que adquiriram ao longo de sua história. Os promotores,

enquanto mandatários do Estado, têm a seu favor a força do coletivo, do consenso, são, assim,

(alguns dos) os detentores do monopólio da violência simbólica legítima. (BOURDIEU, P.

146).

Existe uma luta simbólica entre os grupos para impor a definição do mundo social

mais conforme aos seus interesses e determinar qual será o campo das decisões ideológicas,

reproduzindo o campo das posições sociais. De acordo com Bourdieu:

Contra todas as formas do erro “interacionista”, o qual consiste em reduzir as

relações de força a relações de comunicação, não basta notar que as relações de

comunicação são, de modo inseparável, sempre, relações de poder que dependem, na

forma e no conteúdo, do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes (ou

pelas instituições) envolvidos nessas relações e que, como o dom ou o potclatch,

podem permitir acumular poder simbólico. È enquanto instrumentos estruturados e

estruturantes de comunicação e de conhecimento que os “sistemas simbólicos”

cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da

dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre a outra

(violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que

as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a

“domesticação dos dominados”. (BOURDIEU, P. 11).

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Os sistemas simbólicos, que Bourdieu considera instrumentos de conhecimento e

comunicação, só podem exercer um poder estruturante porque são estruturados. O poder

simbólico, que atua na construção da realidade, tende a estabelecer uma ordem do sentido

imediato do mundo. (BOURDIEU, P. 09).

As ideologias, produto coletivo e coletivamente apropriado, servem a interesses

particulares que tendem a se apresentar como interesses universais, comuns ao

conjunto do grupo. A cultura dominante contribui para a integração real da classe

dominante e para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, à

desmobilização das classes dominadas, para a legitimação da ordem estabelecida por

meio do estabelecimento das distinções e para a legitimação dessas distinções.

(BOURDIEU, P. 10).

Segundo Goffman (2004, P. 91), as identidades social e pessoal do indivíduo são parte

dos interesses e definições de outras pessoas em relação ao indivíduo cuja identidade está em

questão. O indivíduo tem certa liberdade para construir sua identificação pessoal e social, mas

a imagem que constrói de si próprio parte do mesmo material que as outras pessoas usaram

para construir sua identificação social. Assim, as informações que o indivíduo recebe podem

influenciar na identidade do eu e manipulação do estigma. (GOFFMAN, 2004, P. 92).

Convém ressaltar que partilhamos da ideia de Becker, segundo a qual o desvio é criado

pela sociedade que cria regras cuja infração constitui desvio. Essas normas, ao serem

aplicadas, rotulam, no caso em estudo, os usuários de drogas ilícitas como outsiders.

(BECKER, P. 22). Assim, o uso de drogas por si só não é considerado desviante, mas a

consequência da aplicação da lei a alguns dos usuários das drogas selecionadas para serem

ilícitas os transforma em infratores.

Salienta-se que nem todo o usuário de drogas ilícitas é estigmatizado como desviante,

sendo que esse rótulo depende de como as pessoas reagem ao ato. Aqui recaí uma das críticas

da criminologia crítica, que pode assim ser interpretada: é mais comum que se considere

desviantes os usuários de drogas mais pobres e previamente marginalizados por outra

situação, sendo o novo estigma um agravante à situação em que ele já se encontrava.

Os atos de imposição não decorrem automaticamente da infração de uma regra, porque a

imposição é seletiva. Seleciona os tipos de pessoa, os momentos e as situações em que a

norma será aplicada. (BECKER, P. 140). Portanto, se regras específicas são impostas a

pessoas específicas em situações específicas, é necessário procurar quem se encarregou de

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assegurar a aplicação e imposição das regras, aqueles a quem Becker chamou de

“empreendedores”. (BECKER, P. 141). Se uma pessoa que pratica algum delito será de fato

rotulada depende de vários fatores alheios ao seu comportamento. (BECKER, P. 166).

De acordo com Goffman, para compreender a diferença, não é para o diferente que se

deve olhar, mas para o normal, sendo central a questão das normas sociais. Para que a vida

social seja possível, é necessário que seus indivíduos compartilhem um único conjunto de

expectativas normativas, sendo que as normas se sustentam porque foram incorporadas.

Contudo, o estigma gerado pelo desvio pode estar relacionado com a identidade do ser, tendo

uma influência direta sobre a integridade psicológica do indivíduo. (GOFFMAN, P. 109).

Os processos de criminalização do uso de drogas ignoram, assim, atitudes que dizem

respeito apenas ao eu e à busca pelo prazer ou pela fuga da realidade, não influindo na vida de

terceiros. Ao se proibir uma conduta que se refere à autodeterminação do ser humano em

relação ao seu próprio eu, além de violar princípios constitucionais – consequência externa -,

ainda se ignora a influência de tal proibição na construção da identidade – consequência

interna.

Os controles sociais influenciam o comportamento individual pelo uso do poder e por

meio da aplicação de sanções. O comportamento valorizado é recompensado e o

comportamento desvalorizado é punido. (BECKER, P. 70). Para manter o controle, surgem

mecanismos sutis para desempenhar essa função, de tal maneira que os indivíduos possam

reconhecer o uso de drogas como algo desagradável, inconveniente ou imoral, não devendo

realizar tal conduta.

Na linha do criminólogo Salo de Carvalho, que afirma que são necessárias histórias reais

para aproximar as pessoas dos problemas do sistema penal, vê-se um dos problemas dos

estudantes de Direito concluírem o curso com um número extenso de leituras e pouco contato

com “as pessoas de carne o osso”. Um livro tipicamente indicado no início dos cursos de

Direito chama-se “O processo”, de Franz Kafka. A história de K., que é processado e termina

o livro sem sequer ter conhecido o juiz, parece não mais do que um livro de ficção de um

escritor criativo:

- Não pode sair, o senhor está preso.

- Assim parece – disse K. – E por que razão?

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- Não é da nossa incumbência darmos-lhe explicações. Volte para o seu quarto e

aguarde. O processo já está a correr, o senhor será informado de tudo na devida

altura. Já estou a exceder os limites da minha missão ao falar-lhe assim tão

amavelmente; no entanto, espero que pessoa alguma além de Franz me ouça; Franz,

aliás, contra todos os regulamentos, trata-o com verdadeira amizade. Se daqui para o

futuro o senhor tiver tanta sorte como a que teve com os seus guardas, poderá

acalentar esperanças. (KAFKA, P. 05).

Esse pequeno excerto do livro demonstra algumas semelhanças com as audiências

assistidas. A realidade do sistema penal, por um lado, se mostra cruel a ponto de processar um

indivíduo que não é devidamente informado sobre o fato pelo qual ele está sendo processado.

A educação e empatia dos funcionários estatais – sua amabilidade, no caso – é visto como

algo que extrapola suas funções normais. E a esperança, essa depende da sorte. Deixai toda a

esperança, ó vós que entrais no processo penal.

A violência das interações entre os representantes do Estado e os usuários de drogas

fica explícita no momento em que um dos usuários, após ter sido advertido pelo promotor,

pergunta por que ele estava ali. Nesse momento o promotor já estava de saída, porque aquela

seria a última audiência da tarde. O promotor, então, voltou e pegou o processo para conferir

em qual contexto o usuário havia sido apreendido com a droga. Salienta-se o

desconhecimento do promotor em relação às circunstâncias fáticas do caso que havia acabado

de oferecer a transação penal, sendo que o próprio promotor afirmou naquele momento que já

recebia os processos prontos.

Ao verificar o processo do usuário em questão, o promotor disse que havia sido

encontrado um pé de maconha em sua residência. Ao observar que se tratava de um pé de

maconha de 2,5 metros de altura, o promotor achou por bem iniciar uma série de piadas sobre

o assunto. Nesse momento, o usuário, em manifesta situação de desconforto, foi alvo de uma

piada do advogado dativo, que estava ali para, teoricamente, realizar sua defesa. O juiz, por

sua vez, disse que o usuário, que estava preso pela prática de outro crime, possuía dois irmãos

que também estavam presos. Aqui, mais uma vez, o usuário foi alvo de risadas, tanto dos

funcionários, quanto dos demais usuários, que também estavam presos.

Fica claro o quão traumático foi o contato entre esse usuário de drogas e o sistema

penal, que não vez mais do que o ridicularizar. Assim, vê-se que para além da ausência de

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uma preocupação médica com os usuários, opera-se com violência em relação a esses

usuários. Os conselhos ao estigmatizado se referem à parte de sua vida da qual ele mais se

envergonha e que considera mais privada, suas feridas profundamente escondidas são

examinadas publicamente. (GOFFMAN, P. 96).

Na mesma audiência, outro réu, animado pela coragem do primeiro, diz seu nome e

afirma que também não sabia por que estava ali. O juiz respondeu que o Gaeco havia

encontrado em sua residência drogas, além de oito celulares. Nesse momento o promotor

pergunta para o usuário, em tom jocoso, se ele possui uma loja de celulares. Com o silêncio

do usuário, o promotor repete a pergunta, que é respondida: - “não, senhor”. Fica claro que os

estigmatizados se veem inseguros sobre a recepção que os espera na interação face-a-face.

(GOFFMAN, P. 124).

A ineficácia do sistema criminalizador é percebida pelos funcionários, que se sentem

frustrados, porque é dado ao usuário de drogas apenas uma advertência, em razão disso, um

dos funcionários afirmou que, na prática, o uso de drogas já é permitido no Brasil. De acordo

com ele, o dependente deveria ser encaminhado para tratamento e que deveria ser feita uma

análise social e familiar dos usuários. Outra funcionária afirmou que o que se fazia ali era um

“faz de conta”. Segundo ela, o juiz aplicava a transação penal porque entendia que não valia

continuar o processo para que o usuário recebesse como pena a mesma advertência que pode

ser dada em sede de transação penal.

Em conversa com o advogado dativo, ficou claro que a percepção dos envolvidos nas

audiências é unânime: a advertência não funciona. A questão que se coloca aqui é: qual o

significado que se dá para a palavra „funciona‟? O que poderia ser considerado um sucesso

em termos de eficácia da advertência? Por um lado, poder-se-ia considerar que a dissuasão ao

uso de drogas seria o objetivo final das advertências. Por outro, pode-se argumentar que o

objetivo final deve ser o encaminhamento para tratamento, a redução de danos, a aproximação

do usuário com o sistema de saúde.

O contato com as funcionárias da CDT da cidade de Porto fez perceber que elas

também têm essa percepção das advertências aplicadas aos usuários: não são eficazes.

Contudo, elas reconhecem que as advertências não são eficazes para dissuadir o usuário de

deixar de usar drogas. Levando-se em consideração que o nome do órgão em que elas

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trabalham se chama “Comissão para a dissuasão da toxicodependência”, seria possível

considerar que o objetivo principal da comissão – dissuadir – não está sendo cumprido.

Entretanto, o fato de Portugal ter construído uma política que visa, primordialmente,

aproximar o usuário de drogas do sistema de saúde, observa-se que a Comissão tem cumprido

um papel importante. Não se pode esquecer das críticas a esse sistema, é verdade. O Estado

português acaba, por exemplo, gastando muito dinheiro143

e tempo com usuários não

problemáticos da maconha uma substância com baixo poder aditivo.

É importante frisar que nas CDTs, o usuário é tratado com o máximo de respeito e

atenção. A funcionária, antes de iniciar a entrevista, já leu e estudou o caso do entrevistado. O

chama pelo nome durante todo o tempo e conduz a entrevista de uma maneira informal, de

modo a retirar a relação de hierarquia, que distancia atendente e usuário e diminui as chances

de uma conversa honesta.

7.2. SEGUNDO DIA DE AUDIÊNCIAS

No segundo dia de audiências, havia outro promotor representando o Ministério

Público. A juíza era substituta e entrou na sala de audiências 21 minutos após o horário

marcado para o seu início. A primeira usuária de droga a participar de audiências naquele dia

foi recebida pelo promotor com a seguinte pergunta: Você gosta de vender a droga quentinha?

A acusada respondeu que ela não vendia drogas.

A leitura do processo da usuária permitiu entender a inoportuna pergunta do promotor.

Consta do Boletim de Ocorrência que os policiais estavam no local onde há grande incidência

de tráfico de entorpecentes – curiosamente, trata-se de um bairro periférico da cidade de

Ribeirão Preto – fazendo patrulhamento com um cão farejador, que parou em frente a uma

residência, farejando algo. Os policiais, então, bateram na porta da casa e explicaram a

situação para a mãe da usuária, que franqueou a entrada dos policiais que, após vasculharem a

casa e com o auxílio do cão farejador, encontraram 156 gramas de maconha dentro do forno.

143

Em um dos processos analisados em Portugal constava o recibo pago pelo governo Português para que se

realizasse o exame químico para verificação da natureza da droga. Um exame para diagnosticar se a erva verde

apreendida era “maconha” custava cerca de 300 euros.

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162

Fato interessante desse caso – além do excelente faro do cão policial – é que foi anexado ao

processo da usuária o inquérito policial de seu marido, que estava preso por tráfico.

A essa usuária foi oferecido pagar meio salário mínimo ou prestar sete meses de

serviços à comunidade. O advogado perguntou para a usuária se ela aceitava pagar meio

salário mínimo e ela respondeu que sim. Salienta-se que a medida preferida pelo advogado,

por ser considerada mais benéfica ao acusado, é o pagamento do valor oferecido em

detrimento da prestação de serviços. Ocorre que advogado e promotor acabam ignorando a

situação financeira dos usuários de drogas apreendidos pelo sistema e a dificuldade

encontrada em pagar a quantia exigida.

Logo após a usuária aceitar a transação, o promotor e o advogado iniciaram uma

conversa, que gerou algumas risadas. Enquanto isso, o funcionário ficou responsável por

entregar a folha de transação penal para ser assinada e recolhida. O funcionário também

explicou onde deveria ser retirada a guia para pagamento do valor ajustado. Nesse momento,

promotor e advogado já estão alheios ao que acontece com a usuária, não obstante estarem

todos sentados ao redor da mesma mesa.

A seguir, entram na sala mais quatro usuários, que serão defendidos pelo advogado

dativo, que ainda não teve contato com os processos. Nesse dia, o advogado, que é professor

universitário, entendeu por bem corrigir as provas de seus alunos durante as audiências.

Iniciou-se mais uma audiência coletiva, agora com quatro usuários. O promotor parece

ter escolhido a dedo as palavras para advertir os usuários sobre os problemas do uso de

drogas:

Todo mundo sabe por que esta aqui ne? Larga a mão dessa bosta, isso só leva a

dois lugares, cadeia ou cemitério. Vocês estão aqui para serem advertidos dos

problemas da droga e que da próxima vez serão processados.

As mesmas palavras foram utilizadas em uma segunda audiência, quando o promotor

advertiu outras três usuárias. Interessante notar que no dia em que se processava essa

audiência, estava ocorrendo o julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659 no STF, que

discutia a constitucionalidade da criminalização do porte de drogas para consumo pessoal. O

promotor comentou que “o discurso do procurador geral da república foi pífio. Não sei como

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163

ele teve coragem de dizer aquilo”. Não obstante a crítica realizada ao procurador geral, o

discurso do promotor não foi o que se pode chamar de progressista.

A posição do promotor, que reproduz um discurso do senso comum e não se

preocupa com as idiossincrasias de cada indivíduo presente na audiência não é alvo de

repressão. O promotor, ao assim agir, cumpre o seu dever, não apenas obedecendo a

ordens144

, mas também obedecendo à lei. (ARENDT, P. 93). Os membros do Ministério

Público, assim, aplicam a resposta legítima aos usuários e por isso se apresentam como

servidores públicos exemplares, cumpridores da ordem penal e isentos de qualquer

responsabilidade. É a banalidade do mal que deixou de ser um simples conceito filosófico pra

ser o fundamento de um sistema.

Aqui, fazendo uma analogia entre a figura do promotor com a dos empreendedores

morais de Becker, é possível perceber que não é correto deduzir que o promotor acredita estar

simplesmente impondo sua moral aos usuários, mas que, ao agir desse modo, cria condições

para melhorar o modo de viver dessas pessoas. Há uma ideia de reformismo moral daqueles

que extraem da legitimidade de sua posição moral o poder que extraem de sua posição

superior na sociedade. (BECKER, P. 155).

Nessa tarde foram realizadas outras três audiências. Duas delas realizadas com réus

presos – um deles na Fundação Casa -. Também foram aplicadas advertências, em que o

promotor, após perguntar o motivo pelo qual estavam presos, disse:

Vocês estão advertidos que a droga faz mal para a saúde e para serrem advertidos

que poderão ser processados da próxima vez. Podem sair se quiser.

Salienta-se que, o menino recluso na Fundação Casa havia sido denunciado por

encontrarem maconha em sua cela. Antes de começar a audiência, promotor e advogado,

provavelmente se referido a esse caso, conversaram sobre a falácia das denúncias de drogas

encontradas dentro das celas. O promotor afirmou que quem assume a culpa pela droga

encontrada, normalmente, são aqueles que não têm responsabilidade sobre ela. Não obstante a

problematização da situação, nada foi feito com vistas a elucidar o que teria ocorrido de fato.

144

Talvez não ordens diretas, mas em um sentido de reprodução do discurso de seus superiores. Quando o líder

de uma instituição – no caso do Ministério Público é o Procurador Geral da República - , utiliza os conceitos do

senso comum para defender a criminalização do porte de drogas ilícitas para uso pessoal em um julgamento

transmitido ao vivo em rede nacional, o promotor não só se sente respaldado pelo discurso oficial da instituição,

como pode se sentir no dever de reproduzir aquele discurso.

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O interno da Fundação Casa ainda teve que ouvir do promotor que havia começado

cedo (na vida do crime). Durante todo o tempo da audiência o interno permaneceu com as

mãos para trás, apesar de não estar algemado. Em todas as outras audiências realizadas com

réus presos, eles se encontravam algemados145

, sem que houvesse qualquer manifestação

nesse sentido por parte do advogado ou do promotor – visto que, como custus legis, tinha o

dever legal de requerer que os réus assistissem à audiência sem algemas. Quanto à omissão do

advogado, desnecessária qualquer consideração.

O último usuário estava sendo acusado de cinco crimes: lesão, resistência,

desobediência, desacato e porte de drogas para uso pessoal. O promotor afirmou que ele não

devia estar lá, dado à quantidade de crimes supostamente praticados. Esse caso também gerou

desconfiança: de duas uma, ou o usuário havia praticado os cinco crimes a que estava sendo

acusado, ou se tratava de mais um caso de abuso de autoridade dos policiais. O Boletim de

ocorrência foi esclarecedor.

Segundo a versão dos policiais, o acusado, um jovem negro, foi abordado em uma

das ruas do centro da cidade com um cigarro de maconha146

. O policial, então, sacou a arma e

abordou o usuário, que se negou a ir para a posição de abordagem (virar de costas e colocar a

mão na cabeça). Desacatou o policial, dizendo: “não sou bandido, vai prender ladrão, seus

filhos da puta”. Tentaram algemar o usuário, mas ele resistiu, lesionando o policial, que ficou

com dores nas coxas.

Segundo Becker, os impositores de regras – nesse caso, os policiais – acreditam que

é necessário que as pessoas com quem ele lida o respeitem, porque se assim não for será

muito difícil realizar seu trabalho. Portanto, boa parte da atividade de imposição é voltada não

à imposição efetiva de regras, mas à imposição de respeito. Desse modo, uma pessoa pode ser

rotulada de desviante não porque infringiu uma regra, mas por ter mostrado desrespeito ao

impositor da regra. (BECKER, P. 163).

De acordo com a versão do acusado, ele estava andando na rua fumando um

“baseado”, quando foi abordado pelos policiais, sendo que um deles apontou a arma na sua

145

Desrespeitando frontalmente a Súmula Vinculante nº11: Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência

e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros,

justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da

autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do

Estado. 146

A perícia constatou que o cigarro possuía 132 miligramas de “maconha”.

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cara. Em razão disso, afirmou ter reclamado da abordagem. Disse, ainda, que não resistiu ou

ofendeu os policiais e que foi jogado no chão para ser rendido.

A esse usuário foi oferecido o pagamento de um salário mínimo ou cinco meses de

prestação de serviço comunitário. O usuário questionou qual era o preço do salário mínimo e

se era necessário pagar à vista. O promotor respondeu que poderia ser parcelado em três

vezes. Aqui, ocorre o que já foi dito acima, os membros do Estado ignoram a situação

financeira do usuário e quais as consequências advém da imposição de um pagamento desse

valor. O salário mínimo é justamente o valor que muitos brasileiros recebem por um mês de

trabalho. É proporcional, justo, necessário, eficaz, determinar que um indivíduo dê ao Estado

um mês de seu trabalho – dinheiro de pagar contas básicas – porque estava na posse de menos

de um grama de maconha e porque (supostamente) reagiu à abordagem policial violenta?

À proposta de pagamento de um salário mínimo o usuário respondeu que estava caro.

O promotor, imediatamente retrucou: “está saindo de graça, não era nem para você estar

aqui, era para estar na vara comum”. O advogado dativo, por sua vez, confirmou para o

acusado que “estava saindo barato”. O usuário, então, aceitou a proposta de transação penal –

se é que pode dizer que ele teve escolha – e foi informado pelo funcionário sobre a forma que

deveria agir para quitar a nova dívida.

O estigmatizado, assim, tem que agir como se os esforços dos “normais” para

facilitar-lhe as coisas fossem efetivos e apreciados. Oferecimentos não solicitados de

interesse, simpatia e ajuda, mesmo quando percebidos pelo estigmatizado como uma

intromissão em sua intimidade, devem ser aceitos. (GOFFMAN, P. 102). Um dos usuários,

por exemplo, após sair da sala pediu para um funcionário perguntar para o promotor se era

possível parcelar o valor – meio salário mínimo – e o promotor respondeu ao funcionário que

não e que se ele pedisse mais alguma coisa, sairia preso do fórum. Vê-se que qualquer

proposta oferecida ao usuário deve ser aceita de bom grado, porque qualquer recusa ou

tentativa de negociação acaba sendo vista como um ato de rebeldia e de falta de gratidão.

Espera-se que os estigmatizados ajam de forma cortês e não forcem as

circunstâncias. Não devem testar os limites da aceitação que lhes é dada, muito menos fazer

exigências maiores. A tolerância é quase sempre parte de uma barganha. (GOFFMAN, P.

104). Pede-se ao estigmatizado que ele seja, pacientemente, frente aos outros, o que não lhe

deixam ser, sendo que essa expropriação de sua resposta a sua melhor recompensa. O que é

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um bom ajustamento para o indivíduo, é ainda melhor para a sociedade. (GOFFMAN, P.

106).

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167

CONCLUSÕES

A política de guerra às drogas, intensificada pelos Estados Unidos na década de 1960

tem se mostrado um fracasso. Durante os mais de 50 anos em que ela vigora, não se passou

perto de extinguir o uso e o comércio das drogas ilícitas da face da terra. Por outro lado,

observou-se um aumento na violência associada ao proibicionismo. Apesar da bandeira da

legalização e regulamentação do comércio de substâncias ilegais ser levantada por muitos

estudiosos do tema, quase que a totalidade dos países não vê essa alternativa como uma

possibilidade. A descriminalização do porte de drogas ilícitas para consumo pessoal, por outro

lado, é uma alternativa que vem sendo adotada por alguns países há algum tempo.

É da natureza do Direito Penal a seletividade tanto de bens jurídicos protegidos –

e a proporcionalidade das penas – quanto dos alvos da ação penal. Estes costumam ser

indivíduos que fazem parte de minorias e populações marginalizadas. O Direito Penal não é,

assim, um instrumento para a prevenção e controle da criminalidade registrada, mas de

manutenção de poder e de status quo. É um instrumento de dominação de classes.

Uma das características reconhecidas do Direito Penal é o estigma que ele traz ao

usuário. Esse estigma por vezes é considerado uma das vantagens desse direito, pois pode

funcionar como uma ameaça e como um modo de prevenção, já que os indivíduos, no geral,

não querem ser estigmatizados como criminosos. Contudo, o estigma não é dado apenas

àqueles que já entraram em contato com o sistema penal. Aliás, o estigma é um dos critérios

de pré-seleção dos alvos do sistema penal.

A criminalização do porte de drogas ilícitas para o consumo pessoal torna o

usuário um criminoso, criando ou reforçando o estigma que havia sobre ele. Em um sistema

criminalizador, ficam afastadas as possibilidade de tratamento para os usuários de drogas que

dele necessitam. Ademais, estigmatizam-se aqueles usuários não problemáticos, que de nada

precisam da intervenção do Estado nas decisões que dizem respeito à sua vida privada.

O Brasil é um dos países que adota o modelo proibicionista, criminalizando o

usuário de drogas ilícitas. Apesar da criminalização, a lei de drogas brasileira também prevê

uma série de princípios respeitadores da dignidade da pessoa humana e autodeterminação do

indivíduo, bem como do tratamento multidisciplinar e reinserção social de usuários

dependentes. Contudo, tem sobressaído o modelo criminalizador na prática do dia-a-dia do

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judiciário, de modo que os usuários de drogas – dependentes ou não – se afastam cada dia

mais de qualquer possibilidade de tratamento médico – quando necessário.

Conforme analisado na ultima parte do trabalho, em alguma medida, a legislação

proibicionista influencia a política criminal judiciária, que mesmo desacreditada dos efeitos

da advertência que deve ser aplicada ao usuário, não busca novas formas de trabalhar o

problema. As advertências são aplicadas de forma mecânica e genérica, com indiferença até

onde é possível e através de discursos violentos. Conforme já salientado diversas vezes nesse

trabalho, as conclusões são retiradas apenas das audiências que se assistiu, sendo assim,

perfeitamente possível que em outras partes do país - e até em Ribeirão Preto – existam

juizados especiais criminais que abordem a questão de outra maneira.

Portugal foi um dos países que descriminalizou o porte de drogas ilícitas para

consumo pessoal. Desde que o novo modelo foi adotado, há 14 anos, o país tem colhido bons

frutos. Além de não terem sido realizadas as teorias que previam o caos após a

descriminalização, as pesquisas ainda mostram que o número de consumos problemáticos

diminuiu e que os usuários estão mais próximos do sistema de saúde.

Essas informações foram confirmadas através do estágio realizado na CDT da

cidade do Porto. Observou-se que o país preparou profissionais para lidar com os usuários de

drogas, problemáticos ou não. Esse olhar voltado para o consumidor permite que as interações

entre o Estado e o usuário sejam menos violentas e busquem o bem estar daquele que usa

drogas ilícitas. Superado o estigma de criminoso, o usuário é visto como alguém repleto de

autonomia e independência para escolher – ainda que mal – o que fazer em sua vida privada.

O sistema português comporta críticas, é verdade. A maior delas foi o retrocesso

trazido pela Suprema Corte portuguesa, que optou por considerar crime de consumo o porte

de droga ilícita em quantidade maior do que a prevista por lei. Se trata de um retrocesso, pois

vai contra a política que vinha sendo implantada – com sucesso – no país. Viola, ainda, os

princípios adotados pela lei portuguesa quando da descriminalização.

Outra crítica passível de ser feita ao modelo, é que o país acaba dispendendo

muito tempo e recursos – pessoais e financeiros – com algo que não deveria ser preocupação

do Estado, porque não é passível de causar danos à saúde pública ou à saúde individual. O

maior exemplo é o encaminhamento de usuários de maconha à CDT. Por se tratar de uma

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substância com baixo nível de adição, a maconha acaba por produzir um número

reduzidíssimo de usuários problemáticos. Nesse ponto, a política de drogas de Portugal

demonstra traços de paternalismo.

Trata-se de questões que necessitam ser aperfeiçoadas. É necessário olhar para

fora e para dentro com um olhar crítico. O que se viu em Portugal, foi um tratamento humano

dos usuários de drogas, ainda que se considere que não cabe ao Estado intervir na decisão do

indivíduo de usar determinada substância. No Jecrim de Ribeirão Preto – especificamente nas

audiências assistidas -, por outro lado, o tratamento do usuário tem traços de indiferença e de

simples cumprimento da ordem legal.

O usuário não é pensado como um ser humano dotado de vontade e de autonomia,

com a prerrogativa de escolher ou não se drogar. Não é visto como alguém que pondera os

benefícios e os prejuízos de tal conduta. É visto mais como um ser humano inconsequente ou

vítima da droga. O usuário, se já chega fragilizado na audiência, sai com sua intimidade e

dignidade mais violada. Essa situação no trato com os indivíduos processados penalmente não

deveria ser aceita em circunstância alguma, principalmente em um contexto onde o indivíduo

não praticou nenhum ato lesivo a terceiros – talvez tenha praticado um ato lesivo a si, talvez

nem isso.

O Brasil precisa repensar sua política de drogas em um sentido amplo, mas

especialmente no que tange ao usuário de drogas. O modelo português, apesar de bem

sucedido, não pode ser copiado pelo Brasil. Lugares diferentes, histórias diferentes, contextos

diferentes, dimensões territoriais diferentes, necessitam de abordagens diferentes. É possível

aprender algumas coisas com o modelo português, por exemplo, que o caos não é a

consequência obrigatória da descriminalização e que dispensar um tratamento humano aos

usuários de drogas, para além de um direito deles, traz bons resultados. Mas, essencialmente,

é possível aprender que é essencial – e urgente – recorrer a pesquisas empíricas e específicas

ao contexto do nosso país para criar uma nova política criminal de drogas.

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ANEXO I – Diário de Campo das audiências assistidas.

As drogas são sempre apreendidas nos mesmos lugares: parque ribeirania, Simioni,

João Rossi, perto do aeroporto.

Cheguei na sala de audiência às 13:21 e a audiência estava marcada para começar às

13:30

Lá na delegacia assina o termo circunstanciado de ocorrência que se compromete a

comparecer aqui quando for chamada

O funcionário me perguntou sobre o que era a minha pesquisa. Eu expliquei mais ou

menos, falando como funcionava em Portugal. Ele perguntou se eu sabia como funcionava

aqui e disse que era frustrante, porque é dado ao usuário de drogas apenas uma advertência.

Ele afirmou que na ideia dele as drogas no Brasil são permitidas, só não são legalizadas,

porque a pessoa vem aqui e só recebe uma advertência.

Eu perguntei se a advertência dava reincidência (se gera condenação) e ele não soube

me responder, perguntou para a outra funcionária, que disse que aqui o juiz dava a transação

penal, porque entendia que não adiantava levar adiante um processo que não ia levar a nada,

que depois seria dada como sentença penal a mesma advertência que podia ser dada em sede

de transação penal. A funcionária disse que o que acontecia aqui era um „faz de conta‟. O

funcionário disse que nada que era feito aqui visava ajudar o dependente, porque ele acha que

o dependente deveria ser encaminhado para tratamento, deveria receber uma análise social, do

contexto da família, para que ele pudesse abandonar o uso de drogas. Disse que a maioria dos

usuários comparece às audiências, porém, sem a presença de um advogado.

Conversa com o defensor dativo – ele vê como maior problema entre a distinção entre

a posse e o tráfico, que fica a cargo do subjetivismo do policial, que pode decidir se é crime

de porte ou de tráfico. Ele está de plantão e só conversa com os usuários reservadamente,

quando for necessário. Ele também me explica que as penas são sempre leves...raramente

penas de prestação de serviços, fala da pena de advertência como uma coisa absurda (não

funciona de nada). O advogado acha que viu uma prescrição no caso. Conversa com o juiz

que explica porque não ocorreu a prescrição retroativa.

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O juiz chegou e perguntou para o advogado se ele podia fazer a defesa do usuário que

está preso. O advogado disse que sim. O juiz combina antes qual a pena vai dar: não vai dar

prestação de serviços porque ele está preso, também n vai fixar pena detentiva porque ele

também já está preso. Disse que vai dar dez dias mais 1/6, ou seja, onze dias (não entendi

muito bem como seria isso). O advogado disse que ok.

O réu entra na sala. Menino de 19 anos que está preso. Advogado cumprimenta o réu.

Juiz explica para p réu que o Dr. N. é o advogado que está aqui para orientação. O advogado

explica a acusação pra ele. Estava dirigindo sem habilitação. Foi denunciado pelo crime de

trânsito – dirigir sem habilitação. Já foi preso por tráfico e agora está preso por 157.

Advogado muito educado explica tudo pra ele. Ele pergunta se isso vai prejudicar o fato dele

estar no semi-aberto. A resposta é não. Ele pergunta se o que ele fez é crime. O advogado

explica que dirigir sem carteira é sim.

O caso não me interessa porque não se trata de consumo de tóxicos. Chega um outro

funcionário na sala (parece que não trabalha aqui) e o juiz fica conversando de assuntos

triviais com ele. O réu fica sentado na cadeira muito observativo. Está com a calça parda,

camisa branca (roupa da penitenciária) e algemado. Já são 13:57 e o juiz está conversando

com duas pessoas. O juiz está sentado na cadeira dele da audiência. O réu está impaciente. O

funcionário veio aqui me explicar que essa audiência é diferente, porque é audiência de

instrução. Eu quero pedir para alguém tirar a algema do réu, mas não tenho coragem. Não sei

se quero ser uma pesquisadora de observação ou de participação (interferindo na questão da

algema, por exemplo).

Promotor chega em cima da hora e pergunta para o réu se explicaram pra ele o que

aconteceu. Promotor fala alto. Explica que dirigir sem habilitação não é crime, mas dirigir

sem habilitação colocando as pessoas em perigo ai sim é crime. Ao colocar a vida dele, dos

policiais e das outras pessoas em crime. O promotor pergunta se ele fugiu mesmo com a

moto. O réu responde que sim. Ele havia dito para o defensor, em separado (mas eu ouvi), que

ele fugiu com medo de perder a moto, porque se ela fosse apreendida (o que foi), ele não teria

dinheiro para pagar. Perguntei para o advogado se ele pode pedir pra tirar a algema do réu.

Ele disse assim que isso não costuma acontecer (“mas entendo seu ponto de vista”). O réu

disse que nem lembrava do dia do fato, ai o advogado disse pra ele confirmar o que o policial

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falou, porque confissão é causa de redução de pena. Foi entregue uma garrafinha de água para

o advogado e para o promotor, mas não para o réu.

O juiz tinha ido fazer a sentença sem interrogar o réu. Depois de uns 5 minutos voltou

porque lembrou. Advogado e promotor conversando sobre assuntos triviais. Juiz conta que

esqueceu de fazer o interrogatório. No interrogatório o réu diz que foi do jeito que o policial

falou, que “foi assim mesmo que aconteceu”. Promotor fala o nome do réu e diz: W* é com w

e y, é um nome sofisticado. O réu faz cara de quem não gostou.

O promotor pede pra colocar uns 4 ou 5 de uma vez por audiência. A funcionária vai

passando a ordem dos que serão ouvidos. Avisa ao dativo que um deles está com advogado.

Saí da sala para comer. O promotor estava aqui dentro conversando com o advogado

que só um dos réus não seria advertência. O funcionário que estava lá na porta conversou

comigo e me disse que as audiências seriam rápidas, porque era tudo advertência. Eu

perguntei pra ele se eles já sabiam de antemão se daria advertência. Ele me disse que o

promotor e o advogado conversam e já sabem que será advertência. A exceção é quando ele é

reincidente na advertência. Aí aplica pena de pagamento de um a três salários mínimos pra

alguma instituição de caridade.

Ouvi o réu contar para os policiais civis que o policial que deu depoimento o prendeu

três vezes. Na ultima vez ele disse que chegou na cdp sem conseguir respirar de tanto que ele

tinha apanhado. O réu reclamou de frio e ninguém fez nada.

Entraram todos esses pra audiência. O promotor diz que todos eles estão aqui pela

mesma razão: posse de estupefacientes. Ele diz que a audiência é marcada pra alertar dos

efeitos das drogas. Começa falando do problema das drogas. DIZ QUE É MENTIRA QUE

TEM TRATAMENTO QUE RECUPERA, QUE ENTROU NO CRACK ACABOU. Que

entra numa droga e vai pra outra, vai pra outra vai pra outra (teoria da escalada).

Diz que se você vai comprar droga e a policia pega você comprando e o traficante diz

que você que estava vendendo, você pode ser condenado por tráfico, e que se for condenado

não sai, não tem beneficio nenhum, não arruma emprego, se é reincidente é pena inteira na

cadeia. A conversa é pra você que vocês tem que tomar a decisão de não mais mexer com

drogas, porque vão pegar uma mão de via única. Vocês optaram por uma coisa que estão

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sendo advertidos pelo promotor pelo risco que estão correndo. Risco jurídico criminal, risco

do trabalho, risco de saúde.

Diz que não esta dando uma de conselheiro, mas que é promotor desde 88 e que já viu

muita gente se destruir. Diz que vai entregar um papel para eles assinarem. Não explica

NADA. O que é transação penal, que o problema acaba aqui, não explica que a ação acaba

aqui, não lê o que eles estão assinando. Só diz que eles estão dispensados. Cada um recebe

uma cópia do que assinou. O juiz não está presente na sala. Promotor está no Whatsapp.

Enquanto isso o réu da primeira audiência esta esperando sua sentença, morrendo de frio.

Antes da próxima audiência o promotor questiona o fato de estar prevista a prestação

de serviço pra quem está preso. Faz a piada: “é pra remissão de pena?”

Chega mais um para a audiência: M*. O promotor rouba a cena como sempre. Diz que

foi encontrada droga dentro do carro dele. Explica que é audiência de advertência. Ele diz que

a ideia é conscientizar o Marcelo dos riscos que ele corre ao entrar nesse mundo. Diz que se

for dependente químico, não sai. Diz que se não for, vai acabar ficando, diz que se entrar no

crack morre. Faz a ameaça com a possível condenação por tráfico. Diz pra ele pensar o que

vai fazer na vida dele. Diz que essa é a chance que ele está tendo, porque isso aqui não vai

ficar nos antecedentes dele. Fala mal do réu da ultima audiência e diz que deu vontade de

falar que ia colocar ele na cadeia por desacato (porque a pessoa não quis transação penal. Diz

que o cara não entendeu que o processado será ele.) o réu do processo de drogas sai da sala

sem ouvir um tchau do promotor e do advogado, que estão conversando sobre o outro réu.

Entraram quatro presos para a próxima audiência. Todos algemados.

A*, A* e R* n tem condenação transitada em julgado ainda, por isso serão só

cientificados de tomarem esse rumo na vida (do tráfico – citado aqui pela primeira vez, ou do

uso). Diz que corre o risco de nunca mais arrumar emprego e ter que ser traficante o resto da

vida. Diz que eles têm que pensar bem se é essa a vida que eles vão querer. Explica que marca

essa audiência quando a pessoa é mais nova, pra dar um toque. O J* já tem condenação, no

caso dele não da para falar muda porque ainda da pra mudar, porque ele já tem condenação,

nesse caso o que da pra fazer é determinar uma multa pra ele pagar.

O réu avisa que não tem ninguém pra ajuda-lo a pagar. Ai o promotor diz que vai

deixar a advertência pra ele também. Avisa que ele vai ficar entrando e saindo da

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cadeia..pergunta se ele é bom de empreiteira, porque quem não é não fica preso. Pergunta pra

um preso que é mais velho se ele já tem condenação e ele diz que não. Diz que eles estão

avisados para não tomarem esse caminho. Falou com eles numa boa. Depois já começa a

conversar com outras pessoas sobre o assunto. Um dos réus pergunta se isso vai agravar

alguma coisa na pena dele. O promotor explica que depende se foi pego antes ou depois de ser

preso.

O R*pergunta pro promotor: eu sou o Rafael, estou aqui por causa de que? O promotor

já estava de saída. Diz que ele só recebe os processos prontos. Ai o promotor leu e diz que é

plantação. Ai ele lembra e todos começam a rir. Ai ele diz que lembrou. Ai o promotor

começa a rir e fazer piada dele plantar maconha (era um pé de 2,5 metros de altura). O juiz

fala de outro dia em que ele estava andando de moto com outro cara e deixou droga cair.

Disse que ele está no lucro porque eram dois processos e um prescreveu. Sobre o cara que

tinha a plantação de maconha, o advogado faz a piada: diz que ele tinha uma floresta em casa.

O juiz diz ainda que os dois irmãos dele estão presos. O promotor pergunta se o juiz conhece

a família e ele afirma que viu no processo. Todos começam a rir quando o juiz diz que ele tem

mais dois irmãos presos.

A* diz que ele também não sabia porque estava aqui. O juiz lembrava o apelido dele:

alemão. Diz que o Gaeco foi na casa dele e encontrou droga. Fala pro promotor que o A* é o

caso que encontraram 8 celulares. O promotor pergunta em tom joscoso se ele tem uma loja

de celulares. Ele não responde. O promotor repete. Ele diz: não senhor. Os presos fazem

perguntas sobre dúvidas dos outros processos deles para o advogado.

SEGUNDO DIA DE AUDIÊNCIAS

O promotor é outro

O advogado dativo é o mesmo

Estão conversando sobre o julgamento da descriminalização. O promotor disse que o

discurso do procurador geral da república foi pífio. Que não sabe como tem coragem de dizer

aquilo.

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A juíza chegou às 13-51. A audiência estava marcada para as 13-30.

Parece que é uma juíza substituta. Deve ter menos de 30 anos. Cumprimentou as

pessoas da sala.

Promotor está falando que quem assume a droga que está na cela era quem não tinha

nada a ver com a droga. “blitz na cela”.

Entrou na sala um senhor com seu advogado. O advogado cumprimentou só o

promotor. O réu é um senhor idoso com muleta.

O promotor diz o que cabe suspensão do processo, porque ele já fez transação. Eu não

sei qual de qual crime se trata. Falou pra colocar seis meses de serviço comunitário. O

advogado tentou retirar o serviço comunitário, porque é um idoso de muletas que operou o

joelho. O promotor disse que ele pode trabalhar sentado. O advogado e o réu concordaram. A

juíza está fazendo outra coisa. O dativo (que não advoga para esse réu) está corrigindo provas

(ele é professor em uma faculdade). Foi condenado ao pagamento de cestas básicas. O

funcionário está explicando para o advogado e para o réu o que está escrito na folha da

transação. O advogado do réu pede pra ele esperar lá fora que ele vai explicar direitinho. Essa

era jogo de azar.

Antes do idoso sair, já pediram para a próxima ré entrar. O funcionário confirma se ela

é a A*. O advogado é o mesmo.

O promotor: você sabe porque você está aqui né A*? Você gosta de vender a droga

quentinha? Normalmente a droga é vendida gelada. Ela fala baixo: eu não vendo drogas.

Promotor: a proposta para você não ser processada criminalmente é prestar sete meses

de serviço comunitário ou pagar meio salário mínimo. Você aceita alguma das duas? O

advogado pergunta se ela aceita pagar meio salário mínimo. Ela responde que sim.

Promotor conversa com o advogado dativo e com o particular sobre cachorros que são

usados para descobrir drogas se viciarem. Eles riem.

O funcionário entrega nas mãos do advogado os processos dos próximos réus que

entrarão na audiência.

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Entraram quatro pessoas na sala. Duas mulheres e dois homens. Um casal negro e um

casal branco. Serão defendidos pelo dativo, que ainda não olhou o processo.

Promotor: teve um promotor na sua casa, P*? Teve. Como ele era fisicamente?

Branco. Só? Não era um que tinha uma voz de taquara não ne? Não sei. Não sabe? Não ouviu

ele falar? Engraçado que não tem nenhum promotor com o nome de P* aqui

Todo mundo sabe por que esta aqui ne? Larga a mão dessa bosta, isso só leva a dois

lugares, cadeia ou cemitério. Vocês estão aqui para serem advertidos dos problemas da droga

e que da próxima vez serão processados.

O promotor levanta e vai tomar café. O funcionário entrega os papeis para eles (os

acusados) assinarem.

O promotor ao voltar do café para do meu lado e olha para o que eu estou escrevendo:

ele diz pra mim: você está fazendo um resumo da audiência? Eu respondo que estou fazendo

etnografia. Ele diz: que coragem. Fiquei constrangida.

Entrou outra pessoa na sala. O promotor: deu sorte hein? Se tivesse pegado um

promotor um pouco mais laboroso você estava preso. Faz a proposta.

Proposta: cinco meses de serviço comunitário ou pagar meio salário mínimo. Você

concorda? Ele diz que trabalha viajando, por isso queria estar pagando ...o promotor diz: estou

vendo pra onde você está viajando. Você quer estar pagando o que? O advogado explica que

ele tem que escolher um ou outro. Ele diz que quer pagar mesmo. O advogado pergunta se ele

consegue pagar até dia 30, ele diz que sim.

Ele aceita pagar o meio salário mínimo. O promotor fala: quem sabe da próxima vez

você não dá tanta sorte assim.

O funcionário leva o papel pra ele assinar e explica aonde ele vai para pegar a guia de

pagamento.

Depois que ele saiu, o funcionário voltou perguntando se ele podia parcelar. O

promotor diz que se ele pedir mais alguma coisa ele sai daqui preso. Que eles deixaram passar

projétil, balança, dois tijolos. Promotor: esse cara é traficante.

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Estão falando mal (promotor e dativo) do promotor que denunciou por porte e não por

tráfico, falam que ele não conhece o estatuto do desarmamento, que fica dando entrevista na

tv, mas...

Cada audiência dura cerca de uns 2 ou 3 minutos.

Os próximos réus estão presos. Os dois estão algemados nos pés e nas mãos.

W* quem é ? sou eu. Está preso porque? 33.

Y* também está preso por tráfico ne?

Vocês estão advertidos que a droga faz mal para a saúde e para serrem advertidos que

poderão ser processados da próxima vez. Podem sair se quiser.

O funcionário leva a folha para os dois assinarem. Estão dispensados.

Entram 3 mulheres na sala e ficam em pé sem saber o que fazer. O funcionário diz que

elas podem entrar.

Promotor: Larga a mão dessa merda hein. Droga só leva a cadeia ou a cemitério.

Vocês estão aqui para serem advertidas que o uso de drogas faz mal e que dá próxima vez as

senhoras serão processadas.

O promotor levanta e fala rindo pra mim: corta a “merda” ai do resumo. Respondi com

um sorriso. Enquanto isso as três moças (uma delas é advogada da outra) aguardam pela

impressão do termo de transação penal. O funcionário pede pra elas assinarem o termo e elas

são dispensadas.

Entra o próximo réu. É da fundação casa.

R* ne? Você savb porque você esta aqui R*?. Não senhor. Porte de entorpecentes.

Está lembrando? Não. Que dia? Tem tantos assim pra não saber qual é? Dois senhor. O

promotor pede o procedimento e fala o dia que ocorreu.

Está aqui para ser advertido que droga faz mal para a saúde e para ser alertado que da

próxima vez será processado.

Quantos anos o sr tem? 18. Começou cedo hein? O acusado fica com as mãos para trás

o tempo inteiro. Não está algemado. O funcionário da fundação casa está em pé de escolta.

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O funcionário leva o termo para ele assinar.

Entra mais um réu. Senta do lado do dativo.

E*? Sim. Você sabe por que você está aqui? Que alias não era pra estar. Quatro

crimes, cinco na verdade (promotor).

- lesão, resistência, desobediência e desacato e porte (está sendo processado por todos

esses hoje. A transação é para todos eles, por isso o comentário sobre estar “saindo barato”).

- paga um salario mínimo ou presta 5 meses de serviço comunitário. Aceita um dos

dois?

- quanto é o salario mínimo? A vista?

- pode parcelar em 3x.

- tá caro hein?

- tá saindo de graça, não era nem pra estar aqui, era pra estar na vara comum. (o dativo

vira para o réu e confirma que está saindo barato).

- promotor conversando com o funcionário: pra que serve advertência? Pra gente

perder tempo.

- fui picada pelo mosquito da indiferença e quando percebi eu estava checando meu

celular sem perceber o que ocorria à minha volta. Enquanto isso o funcionário preparava o

termo para ser assinado. O dativo corrigia as provas e o promotor lê alguma coisa que não sei

o que é.

- O funcionário é sempre muito educado e explica para o réu onde ele tem que ir e que

quando ele pagar o processo está encerrado. Dispensa o réu.