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Notícias do fantástico: jogos de linguagem e efeitos de sentido na comunicação jornalística
Luiz Gonzaga Motta
Resumo: Analise retórica e pragmática na comunicação jornalística. Toma como objeto o
enunciado de notícias sobre acontecimentos insólitos denominadas notícias do fantástico .
Revela que os editores dos jornais de referência costumam experimentar as fronteiras entre os
efeitos de real e poéticos para reafirmar a autoridade do jornalismo de dizer o que é e onde está
a realidade. Numa estratégia de sedução, oferecem fragmentos de irrealidade , mas logo recuam
para as explicações racionais. Esse parece ser o jogo: sugerir e recuar, nunca permitindo dúvidas
sobre o que é o real. Um dinâmico jogo de construção cognitiva intersubjetiva.
Palavras chave: jogos de linguagem, efeitos de sentido, pragmática, comunicação jornalística
Marcos da comunicação pragmática no jornalismo
Todo ato de romper o silêncio e falar está determinado por uma intenção que lhe imprime
força. Ao fazer uso da palavra, o emissor pretende de alguma maneira atuar sobre o estado de
coisas preexistente. Essa intenção manifesta-se como uma relação dinâmica de vontade de troca,
refletindo uma atitude do sujeito frente ao seu ambiente. Na pragmática a intenção funciona
como um princípio regulador da conduta no sentido em que conduz o sujeito falante a utilizar os
meios que considera mais idôneos para alcançar seus fins . 1
O significado que se produz é uma forma de intencionalidade derivada, como diz J. Searle.
A intencionalidade intrínseca do pensamento do sujeito falante se transfere às palavras. Elas
contêm não apenas o significado lingüístico convencional, mas também o significado que o
sujeito falante a elas quer imprimir. A intenção de comunicar é a intenção de produzir no ouvinte
ou leitor o reconhecimento do significado. 2 Para Searle a questão do significado se resume a
elucidar como a mente impõe intencionalidades a entidades não intrinsecamente intencionais. A
intenção de comunicação consiste na intenção de que a audiência reconheça que o ato foi
realizado com a intenção de representação. 3
1 Escandell Vidal, Maria Victória (2002), Introducción a la pragmática, Ariel, Barcelona, pag. 35. 2 As obras de J. Austin e de J. R. Searle sobre filosofia da linguagem e atos de fala nas quais se baseiam essas afirmações são conhecidas e citadas na literatura. Sobre a filosofia da linguagem, consultar Valdés-Villanueva, La búsqueda de significados. Para os temas tratados aqui, recomendamos a leitura dos capítulos 4 e 6 do livro de J. R. Searle, Mente, Lengua y Sociedad
La Filosofia en el Mundo Atual, Alianza, Madrid, 2001 (edição em português pela Martins Fontes, S. Paulo, 2002). 3 Searle, op. cit., pág. 235-6. Conclui o autor: Os estágios para passar da posse de estados intencionais à execução de atos ilocucionários convencionalmente realizados são os seguintes: primeiro, a expressão deliberada de estados intencionais com o propósito de dar conhecimento de que a pessoa os tem; segundo, a execução desses atos para
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O conceito de intenção envolve, portanto, não apenas o sujeito falante, mas também o
destinatário: o reconhecimento por parte do destinatário da intenção de seu interlocutor constitui
um passo iniludível na correta interpretação dos enunciados . 4 O ato de recepção correspondente
à atividade comunicativa que o receptor realiza. Essa recepção consiste na obtenção, por parte do
destinatário, da estrutura de sentido construída pelo produtor na sua manifestação textual. 5 Como
diz outro autor, para comunicar não é suficiente transmitir um conteúdo semântico. É preciso
que o interlocutor reconheça nossa intenção. Entender o que o outro diz é reconhecer-lhe a
intenção, e isso é muito mais que reconhecer o significado de suas palavras . 6 Comunicar é,
portanto, conseguir que o interlocutor reconheça a nossa intenção.
Essa relação comunicativa ocorre também no jornalismo. Para recuperar o sentido da
mensagem jornalística na sua totalidade o leitor destinatário precisa realizar a tarefa de
interpretação através de uma série de indícios contextualizadores disponíveis no ato de fala do
jornal: só assim se conseguirá a compreensão profunda da mensagem (A Escribano).
Há uma lógica no uso da linguagem e a sua cartilha é o princípio de cooperação . A
comunicação obedece a uma lógica segundo a qual produzimos e interpretamos significados de
um modo muito eficiente porque pretendemos nos entender. Para manter estável o princípio de
cooperação, o receptor precisa subentender que o autor observa os mesmos princípios para que o
ato comunicativo se cumpra satisfatoriamente. A situação pressupõe um contrato comunicativo
onde o autor se permite seguir ou burlar normas desde que saiba que o receptor o seguirá.
Ou seja, é permitido ser sério, irônico, metafórico, desde que o outro seja capaz de
interpretar essas intenções. Caso contrário, o jogo comunicativo se interrompe. O jogo admite
desvios precisamente porque é um jogo. Diz Reyes: fazer jogos de palavras, falar ironicamente,
manipular sons em lugar de sentidos, escrever poemas, inventar diálogos possíveis e não falar
sério são todas atividades que parecem desafiar as normas de cooperação lingüística, mas que
realmente as pressupõem e reforçam. 7
alcançar as metas extralingüísticas a que os atos ilocucionários caracteristicamente servem: e, terceiro, a introdução de procedimentos convencionais que convencionalizem os propósitos ilocucionários que correspondem aos diversos fins perlocucionários (pág. 250). 4 Escandell Vidal, op. Cit., p. 35-36 5 Mayordomo, Tomas A., Componente Pragmático, Componente de Representación y Modelo Lingüístico Textual, in E. Bernardes, compilador, Lingüística del Texto, Madrid, Arco Libros, 1987, p. 179-180, cit. por Escribano (2001), Pragmática e ideologia en las informaciones sobre conflictos políticos, U. P. de Salamanca, p. 14 6 Conesa, Francisco e Jaime Nubiola: Filosofia Del Linguajei, Herder, Barcelona, 1998, p. 183, citado em Escribano, op. cit., p. 30, grifo nosso. 7 Reyes, Graciela (1994), Pragmática Lingüística, Montesinos, Barcelona, pág. 72. O princípio de cooperação é socialmente neutro, observa a autora. Mas, ao mesmo tempo, por sermos nós humanos seres ambivalentes e contraditórios, não podemos esperar que os nossos atos de fala sejam o que não somos. Assim, a situação lingüística
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Nas análises da comunicação jornalística realizadas adiante parto do pressuposto de que um
sujeito falante realiza um ato de fala e impõe intencionalidades, explícita ou implicitamente, aos
seus enunciados proposicionais. Entendo que toda comunicação se faz nos marcos de
intencionalidades e que a comunicação jornalística realiza-se necessariamente dentro dos marcos
de um contrato cognitivo com o seu leitor . 8
O jornalista enuncia um fato como se fosse um mediador discreto, de maneira
pretensamente imparcial e neutra. Mas, além dessa intencionalidade pretendida como única (o
efeito de real ou de verdade), seu ato de fala está marcado por uma posição de observador da
realidade, implica seleções e escolhas e a presença oculta do leitor em sua mente, que influem na
sua maneira de dizer. Seu ato de fala é intencional, produz outros significados ainda quando o
jornalista não tenha consciência clara desses efeitos de sentido.
2. As notícias do fantástico e os efeitos de sentido
Para realizar a análise selecionei intencionalmente quatro notícias sobre acontecimentos
inusitados que sugerem efeitos de espanto ou incredulidade. Nessas notícias, o relato deixa de ser
apenas uma sentença lingüística declarativa que repassa linearmente informações. Ao lidar com
fatos nesse extremo de significação o relado das notícias sucumbe à força dos conteúdos,
contamina-se do subjetivo. Nessas fronteiras, o jornalismo parece ceder e abandonar sua
racionalidade. Por isso, esses relatos prestam-se particularmente a estudos sobre os efeitos de
sentido. Chamaremos a esses relatos de notícias do fantástico .
A estética do fantástico não costuma habitar o jornalismo. 9 Eventualmente, notícias sobre
fenômenos estranhos como os ETs de Varginha e o chupa-cabra ganham espaço nos noticiários.
Mas, são tratadas como notícias do exótico e relatadas de forma irônica debochando das
traz inúmeras variações e ambigüidades. A linguagem é como um grande texto em movimento contínuo, sempre se adaptando de alguma maneira a novas situações em que precisamos recriar e assim criar novas rotinas e regras. 8 Para que o contrato cognitivo se realize, jornalista e leitor precisam compartilhar o que alguns autores chamam de contexto extra verbal, que inclui tanto o contexto físico (coisas que estão à vista), contexto empírico (estado de coisas que conhecem aqueles que falam, ainda que não estejam à vista), contexto prático (conjuntura objetiva na qual se desenvolve o ato conversacional), contexto histórico (circunstancias históricas conhecidas dos falantes) e, enfim, um contexto cultural (tradição e cultura de uma comunidade ou sociedade). 9 As manifestações do fantástico fazem parte de experiências subjetivas e intersubjetivas do indivíduo e das coletividades. Defini-las como precisão é tarefa difícil, assim como delimitar a sua ocorrência na linguagem. Não há conceito preciso na literatura que possa ser tomado como referência. Pode-se definir o fantástico como uma experiência estética ou emocional que se manifesta através de um estado de espanto ou assombro frente a um fato ou ao relato de um fato inverossímil (insólito). Uma experiência temporariamente vivenciada quando se está diante de um significado novo e surpreendente e se experimenta uma incerteza sobre o significado daquele fenômeno. O melhor, entretanto, é seguir por aproximações sucessivas esperando que o fenômeno se torne claro no decorrer de uma análise. Há dois textos básicos: T. Todorov, Introdução à literatura fantástica, Perspectiva, S. Paulo, 1975 e D. Roas, Teorias de lo fantástico, Arco, Madrid, 2001.
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crendices populares. Esvaziam os fenômenos de suas significações. Neste contexto, resta pouco
espaço para as tradições e as fantasias.
Isso não quer dizer que o fantástico não se manifeste ocasionalmente no jornalismo, mesmo
no sisudo jornalismo de referência dominante. O insólito é uma qualidade dos fenômenos das
relações humanas que atrai o olhar do jornalista e se insere entre os valores-notícia. A notícia é
um relato das exceções e transgressões da normalidade. Na verdade, flerta com o aberrante e o
inverossímil, especialmente, o jornalismo popular. Também o jornalismo de referência é atraído
pelo inusitado porque não pode ficar alheio aos absurdos da realidade humana.
Na comunicação jornalística, a meu ver, existe um intricado jogo de atração e de desprezo
entre o factual e o inverossímil, particularmente presente nas notícias sobre fatos inusitados. Nos
limites entre o real e o absurdo pode-se, portanto, observar com mais riqueza o fascinante jogo de
contrários entre o mythos e o logos no jornalismo. Nesses limites, atraídos pela força do insólito,
os jornalistas experimentam e revelam criativos jogos da linguagem.
Tomarei o fantástico literário como referência. Mas, não se alimento expectativas de que o
fantástico exista no jornalismo em manifestações acabadas de sentido, como ocorre no conto ou
no cinema. A notícia é um relato fragmentado, superficial, aborda os assuntos de forma objetiva e
direta, pouco tem de expressividade literária. O objetivo é apenas observar como se manifesta nos
relatos da notícia o ambíguo jogo de significações, para além do ato de informar.
Todas as quatro notícias desta análise foram selecionadas de jornais de referência
dominante, que instauram as falas legítimas. Esses jornais se propõem a construir e a representar
a sociedade através da de-subjetivação dos fatos por mecanismos de neutralidade e isenção.
Teoricamente, não mentem nem enganam seus leitores, procuram de-subjetivar a informação
através de uma pretensa neutralidade técnica e pluralidade de informação. São vistos e lidos com
credibilidade por seus leitores, que acreditam naquilo que neles lêem. Há, portanto, um pacto de
confiança na relação emissor-destinatário. 10
Isso tem uma implicação fundamental no contexto conversacional no qual os
interlocutores do ato de comunicação jornalística se envolvem. Há uma relação de confiança,
uma sintonia empática entre emissor e receptor desses jornais. 11 Os leitores reconhecem a
competência profissional e confiam que os jornalistas vão dizer sempre a verdade de forma direta
10 Beneyto, Jose Vidal e Gerard Imbert: El País o la referencia dominante, Mitre, Barcelona, 1986. Grifo nosso. 11 Se as notícias tivessem sido selecionadas de jornais populares que exageram na linguagem emocional com a finalidade de seduzir o leitor e vender jornal, grande parte das implicaturas e efeitos de sentido de nossa análise seria inválida. A relação que os jornais populares mantêm com os seus leitores é de outra ordem.
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e objetiva. Esse reconhecimento implícito permite que os desvios de linguagem (as ironias, as
insinuações e efeitos de sentido) sejam reconhecidos por parte dos leitores. Ao burlar as
normas da objetividade, o jornalista intui que o leitor o acompanhará e saberá reconhecer os
efeitos de sentido. O jogo permite desvios precisamente porque é um jogo, mas com regras que
admitem o rompimento, até certos limites. Os desvios das normas não rompem as regras do jogo;
ao contrário, as pressupõem e reforçam.
Análise 1: Lobisomem apavora seringal no Acre - (O Globo, 11/08/1990)
A primeira notícia oferece a
oportunidade de identificação do
fértil jogo semântico do fantástico
enquanto valor-notícia. A
linguagem integral (título, texto,
léxico, diagramação e ilustração)
permite perceber o jogo dos
sentidos pretendidos no ato de fala,
os efeitos insinuados, os estímulos
e as implicaturas; permite observar
também o repasse de informações
no conteúdo manifesto e as transformações insinuadas que preparam o estado de ânimo com que
o leitor deve ler a notícia; permite, finalmente, observar o jogo de linguagem entre racionalidade
e imaginário e até onde o jornal investe na suspensão do real.
Vamos nos abstrair por alguns momentos da ilustração. Em princípio, teríamos um relato
que pode ser tomado como exemplo de ocorrência do fantástico literário no jornalismo. As causas
possíveis do fato não são explicadas pela notícia, permitindo branda hesitação e remetendo à
incredulidade. O mito do lobisomem é comum no meio rural brasileiro (particularmente na
Amazônia e Acre, origem do relato), e certamente familiar aos editores do jornal. Assim,
estabelece-se o entorno cultural (extra verbal) compartilhado, necessário ao jogo de sentidos. 12
A descrição incerta da criatura no texto cria o suspense. É interessante observar a
semelhante descrição do monstro na notícia com aquelas que Câmara Cascudo cita em sua
12 Vindo da Europa, o mito da transformação do homem em lobo traz consigo o tema da metamorfose, muito comum em relatos fantásticos. No Brasil, o mito refere-se a uma criatura dual, metade homem, metade lobo, predestinada a arrepiar quem encontrar em sua desabalada carreira nas noites de sextas-feiras. Quem for por ele mordido torna-se também lobisomem, daí o pavor que provoca.
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Geografia dos Mitos Brasileiros, onde o monstro é descrito como um bicho preto, do tamanho de
um bezerro, com imensas orelhas talantes, coberto de pêlos, que tocaia e salta sobre homens e
animais nas encruzilhadas. Em outra, é um animal corpulento, patas de porco, meio baixo,
sarrudo, cheio de lama e garranchos, sujo de cascas, que ronca e rosna aterradoramente. 13
Na notícia, o monstro é descrito como coberto de pêlo, com mais de três metros, que ataca
criações, capaz de matar um boi com um soco. 14 Texto e título exageram nos estímulos à
imaginação. O título chama o bicho de lobisomem trazendo a carga mítica que a denominação
tem na cultura popular. O subtítulo reforça a existência de algo estranho na expressão monstro
peludo , para criar um efeito do medo. O verbo apavorar
reforça esse estímulo frente a um
dano físico iminente. A. Escribano descreve esses verbos como verbos de sentimentos, muito
utilizados nos títulos dos jornais que estudou. 15 Aqui, o verbo é utilizado para expressar o
sentimento dos protagonistas e suscitar efeitos sobre o leitor. A intenção fica mais forte no
subtítulo: o monstro mede três metros e teria matado um boi a soco (abuso de hipérboles).
O enredo é construído através do relato da existência de um animal estranho, querendo
deixar os leitores na hesitação entre buscar uma explicação racional ou acreditar em algo
sobrenatural. Mas, apesar de truncado e deficiente, o texto do relato conta a história de um mundo
de pessoas reais e procura reforçar a referencialidade identificando o lugar da ocorrência e
fornecendo a distância precisa dos locais da aparição.
Revela-se aqui uma verossimilhança que pretende a criação do efeito do real onde ocorre
o irreal, buscando garantir credibilidade ao relato, como ocorre na literatura. O texto reafirma o
referente para aderir à ilusória realidade do narrado ao mundo empírico do leitor, visando
provocar a comoção do espanto. A hesitação é ainda mais estimulada quando o relato conta que
três policiais e um vereador enviados para verificar a existência do bicho não voltaram para
contar o que viram, deixando a verdade em suspenso.
Se nos restringirmos ao título e texto da matéria, teríamos aqui um relato próximo daquilo
que Todorov chama de fantástico puro, guardadas as diferenças por se tratar de uma breve e
truncada notícia. Entretanto, o medo não é a comoção principal desejada pelos editores da notícia.
Ao contrário, insinuam esse efeito no título e em algumas passagens, mas carregam o texto com
13 Cascudo, Luís da Câmara: Geografia dos mitos brasileiros, Itatiaia\Ed. USP, S. Paulo, 1983, pág. 159-160 89 Diz textualmente Câmara Cascudo sobre os mitos do bicho-homem: O bicho-homem é um ser primitivo, grande, atlético, feroz devorador de viajantes e descuidados... Escondido nas alturas da serrania, invisível aos que o procuram, deixa rastos enormes de gigantes...descomunal, estranho e exótico, é capaz de esmigalhar montanhas a murro, beber rios, transportar florestas. Cascudo, op.cit., pág. 210
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elementos de referencialidade e marcam o ambiente da notícia com inúmeros indícios que
instigam uma outra leitura: sugerem uma interpretação divertida do relato. A notícia está cercada
por um fio que a isola das outras notícias sérias , tem uma ilustração jocosa onde um monstro
sonolento usando uma camiseta de malandro descansa inofensivo ao lado da carcaça de um boi.
A ilustração tem preponderância sobre o título e o bloco de texto e condiciona a leitura.
Na verdade, toda a apresentação da notícia contribui para desacreditar o fato, especialmente
o desenho do bicho nada ameaçador, mãos na nuca e pernas cruzadas, como quem
inofensivamente descansa entediado depois de uma lauda refeição. Acrescenta outros sentidos ao
texto, sugere que o monstro é provavelmente algum ladrão comum de bois ou algum faminto que
mata os animais para se alimentar. Quer desacreditar o fato, transformar o conteúdo do relato em
ingênuos exageros de populares , transformar o tema em piada. O efeito desejado é, portanto, a
comicidade. O efeito de sentido é desprezar o sobrenatural, desacreditá-lo. O efeito de
comicidade é nitidamente predominante. Mas, há um claro jogo entre provocar um espanto inicial
no leitor, logo trazê-lo de volta à razão e, finalmente, desprezar o sobrenatural, debochar e rir
dele. O jogo é outro, não permite ao leitor deslizar para o livre imaginário.
O jogo insinua algo de irreal, mas valoriza o referente. Sugere o fantástico irreal a partir de
dados do mundo real, mas recua, debocha dele, brinca, faz rir, não permite a derrapagem para o
assombro, efeito próprio da literatura ou do cinema, não do jornalismo. Esse parece ser o jogo de
contrários dessas notícias enquanto forma de conhecimento do mundo. Como processo cognitivo,
insinua-se certo efeito de sentido emocional, mas traz o leitor de volta para o mundo da ordem
lógica das coisas, zombando do mundo noturno dos lobisomens que não é o mundo da razão,
onde descansa o jornalismo objetivo.
15 Escribano, Asunción, op. cit., pág. 144-151. Entre os verbos de sentimento encontrados por ela estão envergonhar-se, desconfiar, temer, desdenhar e outros.
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2: Ladrão Misterioso Assusta Tocantins (Folha S. Paulo 14/02/1992)
O texto desta notícia é demasiado curto
para permitir uma análise detalhada. 16
Mesmo assim, possibilita algumas
inferências. Se nos ativermos ao título e
texto, temos elementos para dizer que
também aqui efeito inicial é seduzir pelo
assombro. A centralidade do verbo assustar
no título insinua um breve mistério. Assustar
é um verbo de sentimento que cria ansiedade.
O adjetivo misterioso aparece no título e
indica também o eixo em torno do qual gira o
relato: deixar o leitor levemente apreensivo.
Misterioso é um adjetivo subjetivo
empregado para ressaltar características do
objeto. 17 É utilizado para qualificar a
personagem principal e expressar o ponto de
vista através do qual o emissor quer que a notícia seja lida. A personagem ladrão misterioso é o
elemento motor da narrativa, marcada por caracterização excessiva dos detalhes do vestuário e do
comportamento. Quando o texto do relato diz que o ladrão usa um capuz branco, adjetiva para
criar em torno da personagem algum mistério. Costuma-se dizer que a descrição de personagens
ou cenários tem nos relatos a função do olho fixo, diante do qual uma cena ou um protagonista é
visto (showing). Cumpre uma função pictórica, faz ver. Aqui, mediante marcas diversas que se
abrem e se fecham, a descrição revela o marco ambiental onde as cenas acontecem, cria certo
suspense. É o efeito que produz ao dizer que a principal característica do ladrão é a tranqüilidade,
expressão adjetivada que indica frieza na ação, reforçada pelo relato de que ele apenas roubou
discos e comeu melão. Porque um encapuzado corre risco ao roubar casas apenas para comer
16 A curta extensão das matérias selecionadas para este estudo indica o espírito com que elas são selecionadas pelos editores dos jornais de referência. O reduzido tamanho, a falta de cuidado com a edição e a descontinuidade dos temas revelam que a piada já foi contada . O efeito pretendido não é informar e sim divertir os leitores.. 17 Para Rudolf Otto, mais do que o substantivo mistério, o adjetivo misterioso tem uma ressonância que evoca fenômenos e coisas surpreendentes da natureza e do mundo humano. O que não compreendemos, mas que em princípio é compreensível, chamamos enigmático. O realmente misterioso é inapreensível porque tropeçamos com algo absolutamente heterogêneo e que por esta razão nos faz recuar espantados. O absolutamente heterogêneo é
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melão e roubar objetos sem valor? A dúvida é insinuada ao leitor, cuja identificação com os
moradores é estimulada pela insinuação contida na frase existem muitos boatos pela cidade .
Mas, esse efeito é apenas superficialmente insinuado. Como na notícia anterior, a comoção
principal pretendida é outra. Mais uma vez a notícia vem cercada por um fio negro demarcando o
texto. O fio reverte a significação. A jocosa ilustração contribui para desarmar os espíritos e
menosprezar o ladrãozinho misterioso, insinuando que aparentemente ele quer apenas comer. A
significação gira da intenção inicial de criar o brando fantástico até o efeito da ironia para
desacreditar os acontecimentos, revertendo o efeito.
Na ilustração (volume igual ao texto) o ladrão encapuzado parece faminto ao arreganhar a
boca para comer um pedaço de melão enquanto é observado pela mulher atrás da greta da porta.
A mulher parece em dúvida, sem saber quais as intenções do ladrão. Mas, nada induz ao medo.
Ao contrário, o efeito pretendido é uma leve comicidade. A essência desta notícia, como da
anterior, é estimular inicialmente uma branda hesitação no leitor, mas ele é logo induzido à
ironia. O jogo cognitivo é interessante: estimula-se inicialmente um movimento de sentido que
transtorna levemente a estabilidade do leitor, mas a comicidade o traz de volta.
Como a anterior, esta notícia serve para observar como os editores dos jornais de referência
brincam com o contrato cognitivo que têm com os seus leitores: insinuam inicialmente uma
leitura quando, na verdade, pretendem outra. Em ambos os casos, as ilustrações são recursos
simbólicos que cumprem a função de desqualificar os fatos, esvaziando possíveis interpretações
que poderiam reforçar um efeito de estranhamento. Repete-se aqui o jogo entre anunciar o
estranho para logo rir dele, esvaziá-lo de significações sobrenaturais, converter o fato com
potencial efeito ameaçador em algo banal, risível.
Análise 3: Presente de Natal: filha enterrada volta ao lar, O Globo, 09/01/1992
A começar pelo título, o fato narrado por esta notícia quer induzir a dúvidas. O título
insinua algo inexplicável ocorreu, pois mortos não ressuscitam. Note-se que o título utiliza
intencionalmente a expressão enterrada (o significado está em suspenso pelo uso das aspas,
para isentar os editores) ressalta uma inversão, mas não corresponde à verdade: a pessoa de fato
enterrada não estava viva nem era quem voltou ao lar posteriormente, como a frase faz crer. Há
um jogo pragmático de sentidos para criar ambigüidades e atrair o leitor.
aquilo do qual nada se pode dizer senão que se opõe a tudo que pode ser pensado. R. Otto, Lo Santo, Alianza, Madrid, 2001, pág. 38 e seguintes.
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Reforçando o título, a intenção do primeiro parágrafo é
deixar no leitor o efeito de espanto. O estranho-insólito é o
eixo a partir do qual o resto da história é narrado. A primeira
frase do lide (um presente de Natal de arrepiar os cabelos)
estimula desde o início o efeito do espanto. O relato pode ser
identificado com aquilo que Todorov chama de fantástico-
estranho, um subgênero que situa-se entre o estranho puro e
o fantástico verdadeiro porque os fatos parecem
sobrenaturais mas recebem no fim uma explicação
racional.18 Esse é o jogo.
É interessante observar a exploração da temática da relação
entre a vida e a morte, entre alguém que morreu, mas
retorna. Seduz e provoca o efeito do assombro. Temas da
relação entre a vida e morte são recorrentes na cultura
popular e preenchem imaginários, têm grande atração
simbólica e reaparecem constantemente nos contos,
mitologias e relatos do fantástico, especialmente as
metamorfoses e retornos. 19 A morte é o fim absoluto, do
qual ninguém pode retornar e por isso o regresso de alguém
que morreu é sempre um tema simbólico que assombra. A
notícia traz como motivo principal o jogo entre vida e morte,
morrer e voltar, tema constante no fantástico literário. Mas,
18 Todorov, Tzvetan: As Estruturas Narrativas, Perspectiva, S. Paulo, 1970, p. 156-158 19 Há na cultura popular brasileira uma história sobre uma menina enterrada viva, recolhida por Câmara Cascudo no seu Contos tradicionais do Brasil. Trata-se de uma menina órfã cujo pai casou-se em segundas núpcias. A madrasta má dava pouco de comer à menina e a submetia aos trabalhos mais duros nas ausências do pai. Um dia, quando o pai andava de viagem, a mulher mandou a menina vigiar uma figueira e espantar os passarinhos. Exausta depois de passar horas enxotando as aves, a menina adormeceu e os pássaros bicaram todos os figos. Enfurecida, a madrasta enterrou a menina viva no fundo do quintal. Depois, disse ao pai que a menina havia fugido e andava pelo mundo Triste, o pai nada pôde fazer. Em cima da sepultura da menina nasceu um capim bonito e o dono da casa mandou um criado cortá-lo. Mal começou a cortar o mato, o criado ouviu uma voz dizer: Capineiro do meu pai, não me corte os cabelos... Apavorado, o criado chamou o dono da casa, que desenterrou a menina, vivinha! A madrasta má fugiu e nunca mais voltou. Difícil estabelecer uma relação entre essa expressão da cultura popular e a exploração pelos editores de uma história aparentada. Mas, é possível que o fértil imaginário dos enterrados vivos tenha
influenciado a forma que o jornal deu à história real.
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no jornalismo de referência, reino da razão, o sobrenatural não tem lugar e as causas do milagre
são logo explicadas. O reino do imaginário chega a ser insinuado, mas não é estimulado nem
deixa o relato escorregar para o fantástico.
Os acontecimentos narrados pela notícia ocorreram de fato, tais como anunciados, sem
explicação à primeira vista. Mas, suas causas são o acaso e se revelam com todas as explicações
no final da história. É importante observar que o texto identifica a cidade onde os fatos
ocorreram, o município de Santa Rosa, no RS. Traz as idades e nomes das personagens, identifica
os hospitais, tudo para fincar raízes na realidade e reiterar que as coisas se passaram tais como
descritas. As identificações são reafirmadas para quem quiser confirmar a realidade do narrado,
para estimular no leitor a adesão ao referente e prepará-lo para o irreal que vai acontecer. Como
na literatura fantástica, onde a dupla verossimilhança é requerida. Mas, a história é outra, o
sobrenatural não prossegue, é logo explicado.
Diferentemente das notícias antes analisadas, este relato não vem cercado por fios nem tem
ilustrações. Pretende ser lida como hard news. No entanto, o texto se permite algumas liberdades
não usuais na linguagem das notícias sérias . Um breve nariz de cera afirma que os pais da
moça ganharam um presente de Natal de arrepiar os cabelos , frase cujo efeito é amenizar a
leitura, ao mesmo tempo em que sugere um espanto. No último parágrafo há o incomum uso de
linguagem literária ao descrever que a mãe da moça estava triste e sozinha em sua casa na tarde
do dia de Natal quando a filha regressou, insinuando a leitura comovida, efeito típico do conto.
Instruções pragmáticas de leitura que dão força ilocutiva do relato.
Desde a perspectiva da teoria do fantástico literário, é preciso realçar que por trás do relato
do fato há uma causalidade deficiente que vai deixar no leitor um estado de hesitação. Como
destacam as teorias, uma das constantes da literatura fantástica é a presença de causalidades
opacas nos episódios relatados. O sobrenatural vem, então, substituir a causa deficientemente,
que não está ligada às causas que regem a regularidade de nossas vidas. 20 Este relato poderia ter
algo a ver com a teoria da literária na medida em que também exige do leitor um estado de inicial
de hesitação. Mas, se fosse literatura, solicitaria uma suspensão mais radical do efeito de real.
20 Todorov diz que, nessas situações, estamos diante de uma das constantes da literatura fantástica: a existência de seres sobrenaturais mais poderosos que os homens, simbolizam um sonho de poder e substituem causalidades deficientes: Digamos que na vida cotidiana há uma parte dos acontecimentos que se explica por causas conhecidas por nós; e uma outra, que nos parece devida ao acaso. No último caso, não há, de fato, ausência de causalidade, mas intervenção de uma causalidade isolada que não está ligada diretamente às outras séries causais que regem nossas vidas . Todorov (1976) op. cit., p. 118
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4: Empregada doméstica tem dois velórios (Folha S Paulo, 03/09/1990)
Esta notícia tem elementos estruturantes semelhantes à história anterior. Como o relato
precedente, situa-se entre o estranho e o fantástico: descreve um fato insólito, difícil de acreditar,
tendendo para o estranho, que solicitaria do leitor uma fuga completa da realidade regular rumo a
um imaginário sobrenatural. O fato realmente aconteceu, mas as suas causas são explicadas e
racionalizadas ao longo do texto como obra do puro acaso. O título provoca um princípio de
espanto em quem não lê o texto todo porque insinua um disparate. Inicialmente considerada
morta, durante o seu primeiro velório suspeitou-se que a mulher ainda respirava. Suspendeu-se o
velório e novos exames foram feitos. Constatada a morte, o corpo volta para continuar sendo
velado, mas o novo velório acabou sendo adiado para o dia seguinte por questões administrativas.
São pequenos fatos e coincidências compreensíveis e perfeitamente explicadas.
No entanto, o título e a primeira
frase da notícia priorizam a
singularidade do fato de uma pessoa ter
tido dois velórios, ocorrência
incomum, para gerar no leitor o efeito
do espanto e de incerteza. A
incoerência quer apenas atrair a leitura
e insinua algo fantástico, um efeito sem
causa, pelo menos até a leitura do texto
integral. Logo em seguida à primeira
frase, começam as explicações que vão
se sucedendo até a última frase, onde
as razões se completam.
A eterna luta do homem contra
a morte e a possibilidade de enganar a
morte, mote de grande apelo simbólico
é utilizado no título da notícia para
seduzir o leitor. Os editores sabem
disso e exploram a cultura popular da
morte. A morte é destruição
irreversível da vida, mas é um tema
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ambivalente que traz consigo uma tensão dos contrários. Traz igualmente a fantasia da transição,
da passagem de um estado a outro, da relação entre matéria e espírito, de entrada em uma outra
vida. Em muitas mitologias a morte significa simbolicamente uma mudança profunda: é preciso
morrer para alcançar a verdadeira vida superior. Nesse aspecto, a morte tem um caráter iniciático
de renascimento e inúmeras significações populares exploradas pelos editores para provocar
perplexidade nos leitores. 21
Observe-se na linguagem a preocupação do texto com a idade e o nome das personagens
envolvidas no relato, com a identificação dos médicos, com a correção do tempo das ocorrências
para que não reste dúvida sobre a realidade do evento. Mas, se no conto fantástico essa
característica de linguagem tem o objetivo de afirmar o real para a realização do irreal, na notícia
ele reafirma o real para permitir zombar do irreal: o efeito de ironia quebra o efeito do
sobrenatural e interrompe o fantástico pleno. O tema do jogo entre a vida e a morte volta sempre,
mas nas notícias acaba quase sempre em ironia. Há uma ilustração com a figura da morte e sua
simbólica foice nas mãos, batendo os pés na borda da mesa onde está o caixão, como que
esperando impaciente pelo defunto, que não quer ir embora. O homem da esquerda, que sai de
cena, carrega duas velas gastas, indicando que as velas do primeiro velório foram substituídas e
ainda precisarão ser gastas para que a morte possa levar o defunto (como nos contos populares).
A linguagem do conjunto da notícia (título, texto, diagramação, ilustração) indica
novamente o jogo entre insinuar o fantástico para retornar em seguida ao real verossímil. No caso
deste relato o fantástico anunciado no título tem apenas a função de atração e o jogo tende mais
uma vez para o irônico, induzindo no leitor uma leitura bem humorada. O fato sobrenatural de
uma pessoa morrer duas vezes é explicado e depreciado em favor do sentido racional do evento.
Com esse propósito, os editores do jornal de referência brincam com o fato para fazer rir o leitor.
O efeito de comicidade revela, porém, uma significação cognitiva mais profunda, aquela entre
ironizar o sobrenatural e retornar com segurança ao mundo racional: ninguém morre duas vezes,
21 Há um conto popular brasileiro muito ilustrativo sobre como enganar a morte. Diz que um homem encontrou a morte e a convidou para madrinha de um de seus filhos. Agradecida, a morte dotou o compadre com poderes que o tornaram rico. Certo dia ela convidou o compadre a conhecer sua casa. Lá ele encontrou várias velas acesas, cada uma correspondendo à vida de uma pessoa conhecida. Quando uma vela se apagasse, a pessoa a quem ela correspondia morreria. O homem perguntou à morte qual das velas correspondia à sua própria vida e ela indicou uma vela de chama tênue, quase se apagando. Ele percebeu que sua morte era iminente e pediu um favor à comadre: permitir-lhe que ela só o levasse depois que ele rezasse um padre-nosso inteiro. A morte consentiu. O homem começou a rezar a oração, mas interrompeu-a indefinidamente e nunca terminou, impedindo a morte de levá-lo até que, algum dia, ele terminasse a oração. Assim, o homem enganou a comadre morte e viveu enquanto quis. Contos Tradicionais do Brasil, Luis da Câmara Cascudo, Ediouro, Rio de Janeiro, 2000.
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ninguém volta da morte, além da morte só há imaginação. Para os jornalistas, o melhor remédio é
rir da imaginação, debochar, pois a verdade está no mundo da razão.
4. Conclusões sobre o fantástico jornalístico e o jogo de sentidos
Não encontramos no jornalismo nada semelhante ao gênero que muitos críticos literários
identificam como fantástico . No fantástico literário a característica principal do relato, segundo
Todorov, é criar no leitor um estado de hesitação e deixá-lo na dúvida entre acreditar ou não no
que está sendo contado. Para Roas, a presença do sobrenatural como transgressão do real é a
condição de ocorrência do fantástico. Ora, o jornalismo é um gênero que sequer investe na
suspensão parcial do efeito de real nem sugere hesitação sobre a verdade. Tampouco é o lugar do
assombro diante do sobrenatural, pois reafirma sempre a verossimilhança do relato para que o
leitor não tenha nenhuma dúvida de que aquilo que está lendo corresponde ao que ocorreu.
No entanto, de vez em quando os editores gostam de experimentar e explorar suas fronteiras,
oferecendo ao leitor algumas notícias cujos relatos podem estimular dúvidas entre crer ou não
naquilo que está sendo relatado. Jogo de sedução, efeitos de sentido. Mesmo os editores dos
jornais de referência dominante parecem gostar de experimentar e explorar fronteiras.
As análises acima são parciais e suas implicações para uma teoria da notícia são frágeis. Mas,
pode-se observar a partir delas o jogo de retórica da comunicação jornalística: o rico jogo
cognitivo de construção de sentidos em seu processo dinâmico. Há nítida intrusão do autor, por
exemplo, quando o relato afirma que a mãe da moça estava triste e sozinha em sua casa na
notícia da filha considerada morta. A ocorrência não é comprovável e por isso seria inadmissível
na linguagem do jornalismo sério dos jornais de referência dominante. Além disso, as notícias
trazem inúmeras figuras de linguagem e abusam de hipérboles. O uso de superlativos, como as
definições do monstro são freqüentes: é peludo, tem três metros de altura, é capaz de devorar um
boi inteiro. A filha que volta ao lar depois de enterrada é um presente de arrepiar os cabelos e
sua mãe quase teve um ataque no dia do seu retorno.
As matérias vem cercadas por fios negros que isolam o texto das demais notícias dos jornais,
demarcando os limites do livre jogo lingüístico: definem os contornos para um tratamento mais
hilário do assunto sem comprometer a seriedade e a veracidade dos demais fatos, isentando o
jornal de estar fazendo literatice . Os desenhos jocosos sugerem ao leitor de que maneira os
editores do jornal querem que essas notícias sejam lidas. O leitor fica advertido do caráter
burlesco dos fatos. Assim, os jornais parecem brincar com a realidade, introduzir efeitos de
quase-irrealidade no meio das demais notícias sérias para amenizar a leitura das tragédias
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reveladas no dia-a-dia. Por exemplo, a figura da morte batendo o pezinho impaciente à espera do
defunto interfere definitivamente na interpretação do texto.
Parece ocorrer aqui uma versão jornalística da visão aristotélica segundo a qual a comédia
existe para amenizar os efeitos da tragédia, esta sim, um gênero nobre. A comédia põe em cena
homens comuns ou homens medíocres, ações contraditórias da vida cotidiana, temas populares e,
portanto, inferiores, Como gênero inferior, a comédia é tomada como um apêndice entre os
relatos sérios de tantas desventuras do drama existencial do homem, das quais os jornais são
testemunhas diárias: O espectador é rapidamente advertido de que participa de um jogo e não de
um sonho. Colocado fora do circuito (de) sua participação afetiva, ele pode admitir aquilo que tal
participação lhe teria proibido: uma incoerência contrária à sua experiência real das ações
humanas, de suas causas e efeitos. Pois se encontra precisamente nisso a liberdade do jogo:
paradoxalmente, a mais mítica das tragédias tem menos direito ao irreal do que a mais quotidiana
das comédias . 22
Parece haver aqui um jogo de contrários: no meio do sério se oferece algo bastante
inusitado exatamente para mostrar que a verdade está em outro lugar, está nos conteúdos que
podem ser racionalmente compreendidos através da ordem lógica das coisas, não na fuga da
realidade ou na livre fantasia. Parece haver uma necessidade de explorar o lugar da verdade. Os
editores parecem compreender que estas notícias podem derivar o efeito do relato para o nível do
estranho, portanto, para as fronteiras da literatura, da anedota, do mito. Os editores parecem
querer correr os riscos do jogo, possivelmente para reafirmar o lugar do jornalismo enquanto
delimitação da realidade atual e predominante dos homens.
Talvez seja por isto que os editores dos jornais de referência, ao oferecer ao leitor fragmentos
de irrealidade em certas notícias indicam, desde logo, como elas devem ser lidas. Algumas vezes
utilizam a surpresa como um efeito de sedução dos leitores. Uma breve fuga do real. Mas,
recuam logo para as explicações do irreal, reduzindo-o a acasos ou meras coincidências .
Outras vezes utilizam sinais para indicar aos leitores uma leitura irônica. Repassam nas
ilustrações jocosas, nas aspas, no uso de certas palavras das retrancas, título e texto, ou nos fios
negros sinais que indicam ao leitor como tais notícias devem ser lidas. Parece haver um jogo
entre dar e tomar, sugerir e recuar, nunca permitindo, porém, que recursos da linguagem do
fantástico provoquem hesitação ou transgressão do real, nem que as fantasias do fantástico se
imponham ao texto objetivo do jornalismo de referência.
22 Mauron, Charles, citado por Ives Staloni, Os Gêneros Literários, Difel, S. Paulo, 2000, p. 58-59
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As notícias analisadas revelam o jogo dos editores em permitir uma leve hesitação e logo
recuar para o real. O débil fantástico aparece como uma categoria flutuante entre outras
qualidades dos fatos relatados, como o estranho. Na maior parte das vezes, o insólito se revela
não exatamente por criar possíveis dúvidas no leitor, mas para revelar algo muito inverossímil,
obedecendo certamente às exigências próprias do jornalismo-entretenimento.
Dessa forma, o fantástico tal como definido na teoria literária não ocorre no jornalismo. Nada
semelhante à teoria literária ocorre no jornalismo, onde o desprezo pelo sobrenatural submete o
relato a outras exigências: os possíveis efeitos do fantástico são reduzidos à ironia, ao sarcasmo e
ao deboche, levando o efeito de sentido para outras dimensões. No entanto, as análises revelaram
a riqueza do diversificado jogo de sentidos que se cria e se recria entre a intencionalidade do
jornalista enquanto enunciador e o leitor co-autor.
O que está por trás dos efeitos insinuados e interrompidos é a insinuação de uma desordem
para demonstrar onde está a ordem, nunca permitindo o avanço demasiado dos efeitos
subversivos da imaginação. O mundo dos jornais de referência é o mundo da razão, não da
imaginação. Sua função é de-subjetivar o mito, as crendices, as hesitações e a imaginação
popular.