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Resenhas -- Laboratório de Lógica e Epistemologia Print by UFSJ 1 KRAUSE, Décio – Introdução aos fundamentos axiomáticos da ciência. São Paulo: E.P.U. (Editora Pedagógica e Universitária), 2002, 211 p. Enquanto preparava seu doutorado, na Universidade de São Paulo, Krause estudou certos temas de física moderna. Obtido o título de Doutor, estagiou em Florença (Itália) e Leeds (Inglaterra). Lecionou na Universidade Federal do Paraná e, salvo erro de informação, está hoje no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina. O fato de ter um artigo no Foundations of Physics Letters e o fato de ter um par de comentários acolhidos pelos autores da Encyclopedia of Philosophy (da Stanford University) permitiam supor que estivesse apto a produzir texto agradável e útil, esquematizando as importantes questões que cercam a axiomatização de teorias científicas. Antes de ver a obra, recebi cópia do “sumário”. Examinando de que modo o material seria distribuído, agradou-me o plano. Um primeiro capítulo abordaria aspectos do método axiomático. Em seguida, viriam (2) estruturas em ciência; (3) a teoria dos conjuntos (4) a axiomatização dessa teoria; (5) as principais teorias dos conjuntos; (6) comentário em torno da ciência “de um objeto qualquer”. É verdade que a teoria dos conjuntos está bem divulgada, inclusive em países de língua portuguesa, particularmente depois de se haver tornado “base” dos estudos de matemática. Também é verdade que o livro Foundations of set theory, de A. Fraenkel, J. Bar-Hillel e I. Levy (Amsterdam: North-Holland, 1973) expõe de maneira clara e precisa as várias teorias dos conjuntos (e os problemas relativos à fundamentação da matemática). Mesmo assim, cogitando das estruturas em ciência e do “objeto qualquer”, imaginei que o livro de Krause poderia trazer interessantes novidades.

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Resenhas -- Laboratório de Lógica e EpistemologiaPrint by UFSJ

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KRAUSE, Décio – Introdução aos fundamentosaxiomáticos da ciência. São Paulo: E.P.U. (EditoraPedagógica e Universitária), 2002, 211 p.

Enquanto preparava seu doutorado, naUniversidade de São Paulo, Krause estudou certos temasde física moderna. Obtido o título de Doutor, estagiou emFlorença (Itália) e Leeds (Inglaterra). Lecionou naUniversidade Federal do Paraná e, salvo erro deinformação, está hoje no Departamento de Filosofia daUniversidade Federal de Santa Catarina. O fato de ter umartigo no Foundations of Physics Letters e o fato de ter umpar de comentários acolhidos pelos autores daEncyclopedia of Philosophy (da Stanford University)permitiam supor que estivesse apto a produzir textoagradável e útil, esquematizando as importantes questõesque cercam a axiomatização de teorias científicas.

Antes de ver a obra, recebi cópia do “sumário”.Examinando de que modo o material seria distribuído,agradou-me o plano. Um primeiro capítulo abordariaaspectos do método axiomático. Em seguida, viriam (2)estruturas em ciência; (3) a teoria dos conjuntos (4) aaxiomatização dessa teoria; (5) as principais teorias dosconjuntos; (6) comentário em torno da ciência “de um objetoqualquer”. É verdade que a teoria dos conjuntos está bemdivulgada, inclusive em países de língua portuguesa,particularmente depois de se haver tornado “base” dosestudos de matemática. Também é verdade que o livroFoundations of set theory, de A. Fraenkel, J. Bar-Hillel e I.Levy (Amsterdam: North-Holland, 1973) expõe de maneiraclara e precisa as várias teorias dos conjuntos (e osproblemas relativos à fundamentação da matemática).Mesmo assim, cogitando das estruturas em ciência e do“objeto qualquer”, imaginei que o livro de Krause poderiatrazer interessantes novidades.

HEGENBERG, Leonidas: Resenhas

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Em Outubro de 2002, o livro veio a lume. Logodepois, um jornal de São Paulo saudou-o elogiosamente,chegando a dizer que “seria assinado por Mario Bunge”(filósofo argentino-canadense, autor de dezenas de obrasde filosofia da ciência). Discordando, quero registrar minhasimpressões, admitindo que eventuais interessados devemconhece-las antes de “enfrentar” a obra de Krause.[Números em colchetes, a seguir, indicam páginas do livro.]

***Introdução aos fundamentos axiomáticos da ciência

tem todos os usuais defeitos de um primeiro livro. A palavra‘Introdução’, usada no título, é inadequada. A rigor, estamosdiante de um misto de “paper”, com centenas de notas depé de página, voltado para especialistas, e de “livro”destinado a público amplo. A obra não está “madura”, comose percebe pela enorme quantidade de temas que o autorexaminará “a seguir”, ou “à frente”, ou “nos capítulosseguintes”. Nas 24 páginas iniciais, expressões do gêneroaparecem vinte vezes. [Depois, nas p. 38; 67, 69, 72; 73;74; 75;...;84, 85,..,101;...] Tem-se a impressão de que ostemas estão “fora de lugar”, porque sempre há um item quedeixou de ser mencionado – e será visto adiante.

***Em razão de minha ojeriza pelas “notas de pé de

página”, desejo incluir uma “nota” a respeitos dessas“notas”. Muitos autores (suponho eu) ficam infelizes se nãocolocam dezenas de observações de rodapé em seusartigos. Usam-nas, talvez, para assegurar que “dominam” oassunto, para revelar quanto conhecimento ficou implícito --“fácil de evidenciar”, se espaço houvesse. Penso que asnotas são toleráveis em artigos curtos, pois não dá muitotrabalho examiná-las e recorrer à bibliografia, no final doartigo, meia dúzia de páginas adiante. Em livros, no entanto,poderiam ser omitidas ou, no máximo, deixadas em níveis

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“razoáveis”. Krause coloca nada menos de 445 notas de péde página em 196 páginas. O capítulo quatro tem 44 notasem apenas 16 páginas. Insisto. Em livros, além de provocarinevitáveis interrupções da leitura, obrigam a passar para as“longínquas” páginas finais [no caso, 197-206], em buscadas referências. Algumas notas de Krause são inteiramenteinúteis, pois se limitam a repetir o que já estava no texto {cf.nota 78 do cap. 3 [94]; mais:13; 31; 38; 43; 52; 71; 95.}Acresce que em um ou outro local, a nota esperada nãoaparece. Ver, [36]: faltou indicar o trabalho de Chiara eToraldo.

***Passemos ao texto. O autor desce a minúcias

extravagantes quando escreve acerca dos temas queestudou em pormenor. Menciona os predicados de Suppes[20s], obrigando o leitor a fazer certo esforço para “captar” aidéia. Em seguida, valendo-se de fórmulas complicadas,investiga tópicos novos e pouco divulgados entre nós(espaços de Fock [55], números de ocupação [59],operadores de criação e aniquilação [62], relações de anti-comutação [63], etc.) como se fossem familiares. Krauseaborda esses temas de maneira “natural“, imprópria emobra introdutória voltada para um público não familiarizadocom teorias quânticas. Por que não manter, no exemplo damecânica, o mesmo nível que foi estabelecido para otratamento da biologia? O tema tornar-se-ia mais fácil deacompanhar. [Ressalte-se, contudo, que os axiomas dabiologia [50] não têm sua significação e seu alcancedevidamente comentados.]

Em contraste flagrante, aborda alguns temas que(segundo parece) não teve oportunidade de examinarmelhor, descendo a pormenores que, a rigor, poderia darcomo familiares. Exemplificando, Krause cai no trivial,“explicando” os paradoxos de Zenon de Elea [89s].

Não pode passar sem registro a diferença entre“modus ponens” e “regra de destacamento” – que Krause

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deixa de lembrar [100]. A regra de inferência “modusponens” afirma que N se deduz (imediatamente) das duaspremissas M e M → N (usando-se a seta para indicar ocondicional “Se M, então N”). A “regra do destacamento”afirma que N é um teorema (de certa teoria) sempre que Me M → N forem teoremas (dessa teoria).

A determinação interna de um conjunto não estáclara [77]. De acordo com o que está escrito, se não entendimal a frase, ‘definido’ significa: “dado um conjunto A, ficainternamente determinado se um dado objeto x pertence ounão a A”. Sem saber o que significa ‘internamentedeterminado’, a frase pouco esclarece. São comuns as afirmações envolvendo ‘é claro’, ‘éóbvio’, ‘como é fácil ver’, ‘facilmente se prova’ e similares.Em [21] Krause diz que “é fácil imaginar” como construir umescala de vetores; em [50] afirma ser “fácil provar” que arelação hom é relação de equivalência; em [85] asseveraque certas considerações são óbvias. Na verdade, não éfácil (para o leitor que desconhece matemática) imaginar deque modo se constroem escalas de vetores. Nada tem defácil a demonstração de que certa relação é deequivalência, principalmente se a relação acaba de nos serapresentada, como se dá com “hom”. E as consideraçõesóbvias de [85] não podem ser óbvias, pois dependem de umaxioma que Krause só apresentará “à frente”...

Em certos locais, Krause oferece os significados decertos termos razoavelmente conhecidos. Entre eles,‘análise matemática’ [69], ou ‘conjunto enumerável’ [72]. Hánumerosos termos, porém, que um leitor não especialistadesconhece e que, no entanto, Krause utiliza sem maiorescuidados. Entre eles, ‘satisfatoriedade’ e cognatos [20];‘variável livre’ [20]; ‘conjunto aberto’ [21]; ‘corpo topológico’[22]; ‘conexo’ [22]; ‘localmente compacto’ [22]; ‘ciênciasreais’ [32]; ‘aplicação’ [39]; etc, etc.

Vale a pena dizer que o autor emprega as aspassimples de maneira equivocada. Como sabido, aspas

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duplas prestam-se para citações de trechos alheios, paradestacar uma noção genérica, e, algumas vezes, paraindicar que um termo é utilizado com significadoligeiramente diverso do usual. Aspas simples destinam-se aindicar uma entidade lingüística. Parece oportuno respeitaressas convenções, hoje universais.

***E´ possível que as próximas críticas sejam vistas

como “nugas de leitor impertinente”. Ainda assim, desejoapresentá-las.

Em alguns casos, as .referências bibliográficas sãofeitas de modo inadequado. Há título em inglês para obra deBourbaki [24]; em espanhol para obra de Stegmuller [36] epara obra de Nagel & Newman [88]; assim como emportuguês para artigo de Frege [89].

A linguagem usada pelo Autor é um horrível“portinglês”. Krause recolhe palavras e expressões como “toassert”, “to assume”, “to quantify over”, “to summarize”,trazendo-as sem cerimônias para nosso idioma, escrevendo“assertar” (?!) [5], “assumir” [36;...,76], “quantificar sobre”[34], “sumarizar” [17;...,101;] e assim por diante. Além disso,“inventa vocábulos infelizes” como, p. ex., “consecutar” (?!)[18] e “adventar” (?!) [69]. (As ‘impropriedades’ [28] seriam,talvez, ‘impropérios’?) Em vários locais [desde 20], Krauseemprega a expressão “... é dita ser...” que, obviamente, estáno lugar de “is said to be”. Todas essas falhas chegam, emcertos momentos, a se tornar irritantes, mesmo para quemnão defenda purismos excessivos. Observar que aabreviação inglesa ‘vis’ [31] não existe em nosso idioma.

Krause fala da “doutrina dos tipos” [93] e da “teoriados tipos” [101]. A uniformidade em nomenclatura édesejável. Erros de concordância são muitos. P. ex.,”asmatemática” [30]; “questões esclarecidos” [31]; “nuanceslógicos” [34]; “a caso” [46]; “a requerido” [46]; “conceito aqual” [50];”definição publicado” [68]; “disciplinas utilizados”[69]; “pontos descritas” [74]; “pressupostos as quais” [74];

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“atitude apontado” [89]. Palavras repetidas, na mesma frase,ocorrem com grande freqüência. Não vale a pena insistirnesse ponto. Apenas a título de exemplo, ver [28], “pareceque parece”; [28] “que há que há”; [29] “há há”; [31]“explícita explicitação”; [38] “fundamentais emfundamentos”; [40] “poderia que poderia”; [69] “utilizadosnas utilizações”; [83] “podem ser ditas serem”; etc., etc.Frases mal construídas aparecem de vez em quando. Na p.[14], p. ex., temos “A partir dos conceitos primitivos... a partirdos primitivos.”, com descuidada repetição Uma das maiscanhestras é a longa sentença “Do tratamento ... osconjuntos” [101]. A tradução da carta de Russell a Heijenort[97] está mal feita (inclusive com um ‘eu’ no lugar do correto‘mim’). O pronome ‘ela’ da quinta linha alude a ‘fórmula’ daprimeira linha. O pronome ‘ele’ da terceira alude a ‘Zermelo’da primeira; o pronome ‘elas’ da sexta não tem referenteclaro. A sentença seguinte, “A bem ... os paradoxos” [101]deve ter tido algum trecho omitido – não tem sentido. Atradução do que Cantor afirmou a respeito de ‘Menge’ [73]está mal elaborada. A sentença seguinte [73-74] é confusa.Note-se que há uma sentença [78] contendo ‘que’ nadamenos que oito vezes! Erros tipográficos existem. P. ex.,‘podessamos’ (se possa) [24]; ‘como’ (com) [29]; ‘e’ (em)[51]; ‘Diriclet’ (Dirichlet) [70]; ‘paraxoxo’ (paradoxo) [99];(‘clado’ (?) [101]. Se a Editora tivesse tido a oportunidade derever o texto, muitos desses erros teriam sido evitados.Supondo que o autor haja insistido em manter inalterado oque escreveu, o número de falhas está acima do normal.Esperemos que Krause retorne, com calma, ao tema que oempolgou e que escreva o livro com o cuidado desejável.

Res. Dez. 2002 Leonidas Hegenberg