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1 1. INTRODUÇÃO Ao longo dos tempos, a civilização humana adaptou-se a um padrão definido de circulação da água, segundo o qual a Terra recicla continuamente esse recurso, através da evaporação e escoamento, e a distribui sob a forma de precipitação; a água é depois retida em lagos, pântanos, lençóis subterrâneos, glaciares, nuvens e, na verdade, em todas as formas de vida. A água doce em abundância foi sempre particularmente importante para a viabilidade e sucesso de desenvolvimento das grandes civilizações. Desde os primeiros sistemas de irrigação, ao longo do Nilo, há mais de cinco mil anos, até aos aquedutos romanos e às cisternas de Masada, passando pelo longo sistema adutor que diariamente abastece a cidade de Lisboa com as águas da albufeira de Castelo de Bode, a civilização humana tem revelado um engenho e uma coragem notáveis na concepção e execução de grandes obras de engenharia hidráulica. No entanto, particularmente nas últimas três ou quadro décadas, a intensa e contínua expansão urbana tem criado, nos aglomerados e na sua envolvente geográfica, problemas e dificuldades ao desenvolvimento equilibrado e ao bem estar e qualidade de vida do habitat humano. Entre os problemas criados incluem-se designadamente os seguintes: a) Inundações de zonas urbanas densamente povoadas, com elevados prejuízos económicos e sociais, motivados pelo sub-dimensionamento de secções de vazão de cursos de água canalizados. Esta situação resulta, em grande parte, do agravamento de caudais de ponta de cheia, resultantes da crescente impermeabilização e ocupação não planeada do território. b) Comportamento deficiente de sistemas de drenagem unitários, com frequente entrada em funcionamento dos descarregadores de tempestade. As águas residuais e pluviais em excesso são descarregadas directamente para o ambiente, sem ser sujeitas a qualquer tratamento prévio, deteriorando a qualidade da água e contribuindo para o agravamento das condições de poluição dos meios receptores. c) Descarga de escorrências pluviais para meios receptores especialmente sensíveis. Essas escorrências resultam do escoamento de superfície sobre zonas pavimentadas, assumindo, nesse contexto, e em termos de poluição, especial relevância os hidrocarbonetos e alguns metais como o chumbo e o zinco. d) Deterioração e colapso de infra-estruturas de drenagem, devido ao estabelecimento de condições de septicidade propicias à aceleração dos processos de corrosão microbiológica, à criação de atmosferas tóxicas, por vezes letais, e à libertação de odores desagradáveis. e) Falha de sustentabilidade económica e ambiental dos sistemas, com encargos em reagentes, energia e recursos humanos não justificados pelos benefícios trazidos. A tomada de consciência desses problemas veio operar uma profunda alteração dos conceitos de análise e dimensionamento dos equipamentos urbanos de drenagem, exigindo os novos desafios respostas, em particular dos profissionais de engenharia, que nem sempre podem ser adequadamente satisfeitas com a aplicação dos conhecimentos e técnicas tradicionais. No contexto da hidrologia urbana assumem importância crescente,

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1. INTRODUÇÃO

Ao longo dos tempos, a civilização humana adaptou-se a um padrão definido de circulação da água, segundo o qual a Terra recicla continuamente esse recurso, através da evaporação e escoamento, e a distribui sob a forma de precipitação; a água é depois retida em lagos, pântanos, lençóis subterrâneos, glaciares, nuvens e, na verdade, em todas as formas de vida. A água doce em abundância foi sempre particularmente importante para a viabilidade e sucesso de desenvolvimento das grandes civilizações. Desde os primeiros sistemas de irrigação, ao longo do Nilo, há mais de cinco mil anos, até aos aquedutos romanos e às cisternas de Masada, passando pelo longo sistema adutor que diariamente abastece a cidade de Lisboa com as águas da albufeira de Castelo de Bode, a civilização humana tem revelado um engenho e uma coragem notáveis na concepção e execução de grandes obras de engenharia hidráulica.

No entanto, particularmente nas últimas três ou quadro décadas, a intensa e contínua expansão urbana tem criado, nos aglomerados e na sua envolvente geográfica, problemas e dificuldades ao desenvolvimento equilibrado e ao bem estar e qualidade de vida do habitat humano.

Entre os problemas criados incluem-se designadamente os seguintes:

a) Inundações de zonas urbanas densamente povoadas, com elevados prejuízos económicos e sociais, motivados pelo sub-dimensionamento de secções de vazão de cursos de água canalizados. Esta situação resulta, em grande parte, do agravamento de caudais de ponta de cheia, resultantes da crescente impermeabilização e ocupação não planeada do território.

b) Comportamento deficiente de sistemas de drenagem unitários, com frequente entrada em funcionamento dos descarregadores de tempestade. As águas residuais e pluviais em excesso são descarregadas directamente para o ambiente, sem ser sujeitas a qualquer tratamento prévio, deteriorando a qualidade da água e contribuindo para o agravamento das condições de poluição dos meios receptores.

c) Descarga de escorrências pluviais para meios receptores especialmente sensíveis. Essas escorrências resultam do escoamento de superfície sobre zonas pavimentadas, assumindo, nesse contexto, e em termos de poluição, especial relevância os hidrocarbonetos e alguns metais como o chumbo e o zinco.

d) Deterioração e colapso de infra-estruturas de drenagem, devido ao estabelecimento de condições de septicidade propicias à aceleração dos processos de corrosão microbiológica, à criação de atmosferas tóxicas, por vezes letais, e à libertação de odores desagradáveis.

e) Falha de sustentabilidade económica e ambiental dos sistemas, com encargos em reagentes, energia e recursos humanos não justificados pelos benefícios trazidos.

A tomada de consciência desses problemas veio operar uma profunda alteração dos conceitos de análise e dimensionamento dos equipamentos urbanos de drenagem, exigindo os novos desafios respostas, em particular dos profissionais de engenharia, que nem sempre podem ser adequadamente satisfeitas com a aplicação dos conhecimentos e técnicas tradicionais. No contexto da hidrologia urbana assumem importância crescente,

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nomeadamente as preocupações com a qualidade da água e a minimização das descargas poluentes para o ambiente, sendo uma tendência actual a criação de volumes adicionais de reserva e a instalação de equipamentos para controlo do escoamento e gestão dos sistemas em «tempo real». Bacias ou reservatórios de retenção (também designadas bacias de detenção ou, em algumas circunstâncias, bacias de amortecimento), pavimentos reservatórios, trincheiras de infiltração, câmaras ou poços drenantes e descarregadores de tempestade são exemplos de órgãos cuja inserção nas antigas e modernas redes de drenagem pluvial, sejam separativas ou unitárias, interessa frequentemente considerar, em termos de beneficiação do próprio comportamento global dos sistemas.

No domínio das infra-estruturas de drenagem de águas residuais, os efeitos do crescimento urbano tem vindo progressivamente a reflectir-se na concepção, dimensionamento e execução de sistemas cada vez mais extensos e complexos. Como exemplo de obras e órgãos especiais em sistemas de drenagem podem referir-se, designadamente, as instalações elevatórias, os sifões invertidos e os atravessamentos com variação de secção. Como exemplo de impactes negativos frequentemente associados a longos sistemas com elevados tempos de detenção podem citar-se a corrosão, a toxicidade e o odor motivados pela ocorrência de septicidade da massa líquida. As transformações bioquímicas ocorridas no interior da massa líquida podem também conduzir a impactos negativos significativos no que respeita a operação das instalações de tratamento.

A matéria tratada neste livro inclui os seguintes temas principais: sistemas de drenagem de águas residuais domésticas e industriais, sistemas separativos de águas pluviais, sistemas unitários, concepção e dimensionamento de órgãos especiais, avaliação e controlo dos efeitos do gás sulfídrico e diagnóstico, avaliação de desempenho e reabilitação de sistemas. A matéria encontra-se distribuída conforme se segue.

No Capítulo 2 apresenta-se uma perspectiva histórica resumida da drenagem urbana e condição actual do saneamento em Portugal. Este capítulo versa a evolução fora do País, antes do século XVIII e depois do século XVIII, e a evolução no País, designadamente em termos de níveis de serviço em drenagem e tratamento de águas residuais.

O Capítulo 3 refere-se a dados base, nomeadamente horizonte de projecto, população de projecto e caudais de sistemas de águas residuais. Neste capítulo tratam-se de aspectos como a origem e natureza das águas residuais e caudais de infiltração.

O Capítulo 4 refere-se a sistemas de drenagem de águas residuais domésticas e industriais, incluindo a caracterização dos diversos tipos de sistemas, principais componentes, aspectos da concepção, traçado em planta e perfil longitudinal, critérios de projecto de soluções convencionais e descrição e caracterização de soluções não convencionais de drenagem.

O Capítulo 5 diz respeito a sistemas de drenagem de águas pluviais. Neste capítulo, apresentam-se as principais componentes e os princípios gerais da concepção dos sistemas. São abordados aspectos da qualidade da água das escorrências pluviais e dos impactos decorrentes da descarga da massa líquida nos meios receptores. São divulgados e discutidos métodos simplificados de cálculo de caudais pluviais em meio urbano. São enumerados os critérios para o escoamento de superfície e divulgadas

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expressões de cálculo da capacidade hidráulica de dispositivos interceptores. São apresentados, no fim do capítulo, as designadas soluções de “controlo na origem”: bacias de retenção, pavimentos com “estrutura reservatório”, poços absorventes, trincheiras de infiltração e valas revestidas com coberto vegetal.

O Capítulo 6 diz respeito ao comportamento e beneficiação de sistemas de drenagem unitários e incide, fundamentalmente, na apresentação, discussão e aplicação de metodologias para o dimensionamento de estruturas de armazenamento em sistemas de drenagem unitários, por forma a evitar ou reduzir a frequência e o volume de descarga de excedentes poluídos para o ambiente e a caracterização de diversos tipos de infra- -estruturas.

O Capítulo 7 diz respeito à concepção e dimensionamento de alguns órgãos especiais de sistemas de drenagem: descarregadores, sifões invertidos e instalações elevatórias. Estes órgãos, embora mais utilizados, em geral, em sistemas de drenagem separativos domésticos, têm também aplicação em sistemas de drenagem separativos pluviais e unitários.

No Capítulo 8 é tratada a problemática referente à formação, libertação e oxidação do sulfureto de hidrogénio em sistemas de drenagem de águas residuais. São apresentadas expressões de cálculo e são divulgadas as principais regras e procedimentos de controlo dos seus efeitos indesejáveis.

Finalmente, no Capítulo 9, são tratadas matérias relacionadas com diagnóstico, avaliação de desempenho e reabilitação de sistemas de águas residuais: conceitos básicos associados a reabilitação, instrumentos de engenharia para apoio a reabilitação, monitorização de sistemas e análise de dados operacionais, avaliação de desempenho técnico e considerações finais.

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2. PERSPECTIVA HISTÓRICA DA DRENAGEM URBANA E CONDIÇÃO ACTUAL DO SANEAMENTO EM PORTUGAL

2.1. Evolução fora do País, no período anterior ao século XVIII

Ao longo dos tempos, e até à Idade Moderna, as obras de drenagem não foram consideradas, em regra, como infra-estruturas necessárias e condicionantes ao desenvolvimento e ordenamento dos núcleos urbanos.

No entanto, existem registos de várias obras ou intervenções nesse domínio, levadas a cabo por antigas civilizações. Webster (1962) refere, por exemplo, o sistema de drenagem com colectores principais e drenos do aglomerado de Mohengo-Doro, desenvolvido pela civilização Hindu, e que actualmente faz parte do Paquistão Ocidental. As ruínas desse antigo sistema que se destinava sobretudo à drenagem de escorrências das vias, e que data de 3000 A.C., espanta pela atenção e o cuidado colocados, na altura, com a construção desse tipo de infra-estruturas. Os colectores dispunham mesmo de caleiras adaptadas ao escoamento dos caudais mais reduzidos.

Maner (1966) refere a actividade da Civilização Mesopotâmica nos anos 2500 A.C., que planearam e construíram, designadamente nas cidades de Ur e Babilónia, infra-estruturas de drenagem e saneamento, incluindo uma espécie de sarjetas e sumidouros para a recolha de águas de superfície e encaminhamento para os colectores. Os materiais de construção então utilizados foram, o tijolo e o asfalto. Em 800 A.C., o rei Senaquerib, que governava a Assíria, decidiu construir, em Nineveb, o chamado palácio “sem rival”. É conhecido o facto de, para isso, ter desviado o curso do rio Tebiltu e ter levado a cabo obras de abastecimento de água ao palácio.

Em Cnossos, urbe da ilha de Creta e centro da época egeia (3000 a 1000 A.C.), ainda actualmente se pode admirar, a sul da cidade de Iraklian, o famoso palácio, com seu majestoso terraço, seus pátios inferiores, sua decoração mural, seu gigantismo e seu sistema de drenagem. As ruínas existentes revelaram o recurso a desenvolvidos sistemas de drenagem construídos em pedra e terra-cota, com um colector ou emissário final das águas residuais (águas pluviais e de excreta) que descarregava o efluente a uma distância considerável da origem. As precipitações frequentes e intensas na região resultavam na ocorrência cíclica de condições de auto-limpeza. Hodge (1992) refere que foi construído um sistema separativo em Jerusalém, datado por volta de 1000 A.C., e que cobria uma pequena parte da cidade.

A civilização etrusca é a responsável pela construção de cidades bem organizadas e planeadas na Itália Central, por volta de 600 A.C. Marzobotto, uma dessas cidades, é conhecida, também, pelo engenhoso sistema de drenagem, bem adaptado às condições topográficas locais.

Ruínas de algumas grandes cidades da civilização Chinesa também revelam a existência de sistemas de evacuação de águas residuais, incluindo um importante sistema enterrado, executado por volta do ano 200 D.C. (Needham et al. 1971).

A Cloaca Máxima de Roma parece ter sido, no entanto, a primeira obra de dimensão relevante, construída por motivações de qualidade de vida urbana. Um sinal evidente do

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carácter de serviço público das cloacas de Roma é o facto de ter existido um imposto específico, destinado a assegurar a manutenção das mesmas, o cloacarium, e funcionários incumbidos da sua inspecção, os curatores cloacarum.

Cloaca é um termo latino que significa “condutor de drenagem urbana” e provém, segundo Plínio, do termo cluere que equivale a “purgar”. Paralelamente, o termo colector provém do latim co-lego, que significa juntar, reunir, e traduz o conceito da formação da rede de drenagem, construída por trechos interligados, os colectores, onde se reúnem e depois transportam as águas afluentes.

No Oriente, parecem ter assumido especial relevo os “canais de limpeza” de Angkor, a cidade dos cinco picos, construída pelo povo Khmer, possivelmente depois do século VI. Esta cidade, posteriormente esquecida e abandonada, veio a ser descoberta ocasionalmente, por cambojanos, e a sua fundação chegou a ser erroneamente atribuída, por missionários espanhóis, a “Romanos ou a Alexandre o Grande”.

Desde as épocas do Império Romano até ao Século XVII, as estratégias de drenagem e saneamento em meio urbano não sofreram na Europa praticamente nenhum avanço. Em termos sanitários, pode mesmo falar-se em “regressão” ao longo de pelo menos uma parte da Idade Média – a higiene e limpeza eram completamente ignoradas pela maior parte dos cidadãos. Em regra, os primeiros trabalhos relevantes de drenagem e de evacuação de “águas pestilentas” ocorre nas principais cidades Europeias, entre os Séculos XIV e XVIII.

Em Paris, a primeira vala coberta (colector enterrado) data de 1370 – essa obra, a fossa de St. Opportune – conhecida como o colector de cintura (em terminologia anglo-saxónica the “beltway sewer”) descarregava directamente no rio Sena e operava como um interceptor de uma das margens do rio. No entanto, o conceito de “colector enterrado” só foi vulgarizado vários séculos mais tarde. Por exemplo, na cidade de Londres, foi apenas planeado o primeiro colector enterrado no início do Século XVII, enquanto a drenagem de extensas áreas da cidade de Paris se mantiveram, até ao século XVIII, com “valas abertas de esgoto” (em terminologia anglo-saxónica “open sewers”).

No Século XVII admitia-se, em regra, que os parasitas abundavam no corpo humano fruto de “transpirações mal dominadas” e podia-se ler, num tratado de higiene da época, que “os corpos cacoquímicos com abundância de humores ácidos possuem geralmente muitos desses animais”.

Compreende-se que, nos finais do século, houvesse quem admitisse que as casas de banho eram supérfluas e defendesse “podemos, se quisermos, construir grandes casas de banho, mas a limpeza da nossa roupa e a sua abundância vale mais do que todos os banhos do Mundo”.

Estar “limpo” passa a ser uma referência estimável a partir sobretudo do Século XVIII. Criticados e mal vistos os que descuidavam a aparência, Saint-Simon exalta a “limpeza requintada da senhora de Conti” e menciona o “porte nobre e limpo” da senhora de Maintenon. O “limpo” hierarquiza-se; confere distinção. Mas já no século anterior, ainda que longe de um pressuposto de higiene, se tinha estabelecido uma nova relação com a água, pelo menos entre os privilegiados. Inclusive, iniciou-se a aceitação do banho de imersão, até então raríssimo. No Palácio de Versalhes, constroem-se compartimentos reservados aos banhos – Luís XV prefere a água tirada do Sena à

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conduzida pelos canos. No Século XVIII, a percentagem de casas com casa de banho era ainda muito reduzida, mesmo nas grandes capitais europeias, talvez inferior a 10%. É no entanto nessa altura que se inicia o estabelecimento das sentinas públicas e retretes com água corrente, e a medicina evolui de “magia e alquimia” para “ciência”. Em 1724, um médico inglês, enquanto fazia a apologia dos “banhos frios”, lastima-se que “especialmente entre cristãos” tivesse sido descurada ou abandonada a prática do banho. Referia então “sou da opinião que todos os que possam tomar regularmente um banho frio em suas casas, como se lavam as mãos numa bacia, o devem fazer duas ou três vezes por semana no Verão …”. E, para que não houvesse subterfúgios para escapar ao banho, o clínico dava alternativas à falta de banheira: “Todos os que não dispuserem de tal comodidade que se metam no rio ou num tanque o mais frequentemente que puderem a fim de lavarem o corpo”. Blondel, arquitecto de Luís XV, explica no livro Maisons de Plaisance, publicado em 1730, que a maioria das casas de banho da época dispunham de “duas banheiras: uma para lavar e outra para se passar o corpo por água limpa”.

2.2- Evolução fora do país, no período posterior ao século XVIII

O início do século XIX foi marcado por uma significativa evolução no sector, uma verdadeira revolução tecnológica, com a introdução dos sistemas de abastecimento e de distribuição de água domiciliária, construídos com tubagens de ferro fundido funcionando sob pressão. Anteriormente, já os romanos se serviam de balneários colectivos, mas não individuais. Nesses casos, o consumo não se processava ao nível de cada fogo, de cada edifício. Começa também, nessa altura, e paralelamente, a ser gradualmente generalizada a prática da instalação de ramais domiciliários e colectores prediais construídos, aliás, com materiais de utilização milenar, como o barro e o grés.

No final do século XIX, o uso do betão em colectores de secção circular, com auto-limpeza e sem juntas transversais, constitui também marco relevante. Anteriormente, era tradicional a construção de grandes estruturas em pedra ou tijolo. Mas em meados do século XIX, os engenheiros já tinham consciência da importância da auto-limpeza e do declive, para assegurar menores encargos e problemas com manutenção das redes públicas. É nesse século que também se desenvolvem, em Paris, diversos equipamentos de limpeza (as famosas “esferas metálicas”) e dispositivos de descarga automática ou que produzem efeitos tampão ou de “barragem”, a fim de criar condições cíclicas de arrastamento nos colectores.

O critério de velocidade mínima de 0,6 a 0,9 m/s (2 a 3 ft/s) é estabelecido em Londres na década de 1840 (Metcalf & Eddy, 1928). A velocidade mínima foi estabelecida com base em ensaios de sedimentação de areia e outros materiais, em água corrente. Os ensaios permitiram inferir que a velocidade de 0,6 m/s evita a deposição das partículas, e que a velocidade de 0,9 m/s é suficiente para garantir a ressuspensão e arrastamento para jusante de material, como areia e gravilha, previamente depositado.

Em Paris, ao longo dos séculos XVIII e XIX, são desenvolvidas obras de dimensão significativa respeitantes a drenagem das águas residuais – mas só em 1880 Belgrand leva a cabo um plano geral de drenagem e projecta e leva a construir grandes colectores enterrados. Nos textos da especialidade refere-se que Hamburgo, na Alemanha, foi a primeira cidade a ser dotada de um plano nacional de drenagem de águas residuais (um sistema do tipo unitário). Em 1842, parte de Hamburgo encontrava-se destruída e William Lindley, um inglês residente na cidade, foi encarregue de planear e projectar o

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sistema. Além de novos colectores, também foram projectadas vias e parques e foi, em parte, “redesenhada” a cidade. William Lindley colaborou também, mais tarde, no projecto de drenagem de águas residuais da cidade de Sidney, na Austrália.

No Reino Unido, Joseph Bazalgette foi encarregue, em 1852, de planear e projectar o sistema de drenagem da cidade de Londres – o que decorreu entre 1859 e 1865. No âmbito do trabalho foram executados estudos experimentais e estudados o regime de precipitação local.

Nos Estados Unidos da América, Sylverter Chesbough planeou e projectou, de forma integrada, o primeiro sistema de drenagem para Chicago, em 1858. Mais ou menos nessa altura, em 1870, Julius Adams projecta o sistema de Brooklyn, em Nova York. Os principais critérios de dimensionamento então seguidos, nessas e posteriormente noutras cidades americanas, tiveram origem, fundamentalmente, na experiência e prática europeias.

Entre 1870 e 1880, Waning projecta, nos Estados Unidos da América, os primeiros sistemas separativos – em Lenox, em Massachustets e Memphis, no Tenesse. Neste último caso, o sucesso da intervenção foi devido à coincidência de, ao mesmo tempo, se terem reduzido os efeitos de um surto de febre amarela na região.

É sobretudo na segunda metade do Século XIX que se inicia a discussão, entre técnicos e cientistas, das vantagens e inconvenientes de se recorrer ao sistema separativo, em vez de se recorrer ao sistema unitário.

Edwin Chadwick e John Philips, ambos do Reino Unido, foram percursores do princípio do sistema separativo – Philips propôs o sistema separativo para o saneamento de Londres em 1849, mas alguns anos depois, foi o sistema unitário de Balzagette que começou a ser implementado. De facto, na Europa, é fundamentalmente o sistema unitário que prevalece nas grandes cidades, pelas seguintes razões principais: a) não havia experiência suficiente sobre o comportamento dos sistemas separativos; b) prevalecia a opinião que os sistemas unitários eram mais económicos e c) a comunidade técnico-científica não estava suficientemente convencida que águas residuais domésticas pudessem, sem diluição, ser usadas na agricultura.

Rudolph Hering, um engenheiro americano, visitou a Europa em 1880 em nome da Comissão Nacional da Saúde (a “U.S. National Board of Health”) para estudar a prática de saneamento na Europa. No relatório então elaborado, Hering propõe um modelo para critério de escolha do tipo de sistema de drenagem – sistema unitário em grandes cidades muito urbanizadas ou em crescimento; sistema separativo para aglomerados de menores dimensões com menores percentagens de áreas impermeáveis, em que as águas pluviais não necessitassem de ser canalizadas. Nesse relatório, Hering refere que nenhum tipo de sistema pode ser considerado, em termos sanitários, melhor que o outro, e que a decisão ou escolha final deve depender de condições locais e de factores económicos.

As ideias consagradas no relatório Hering fizeram escola e a construção de novos sistemas unitários prevaleceu nas grandes cidades, pelo menos até 1930-1940, altura em que, devido, sobretudo, aos encargos com a construção e operação de sistemas de tratamento, começou a prevalecer, para os novos sistemas, o princípio da rede separativa .

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No início do século XX, era comum um sistema ser dimensionado por forma a rejeitar o efluente bruto em locais ou meios receptores com um caudal que garantisse condições apropriadas de diluição e de auto-depuração (em terminologia anglo-saxónica “self-purification”).

Fair e Geyer (1954) reportam o critério de caudal mínimo no meio receptor de 170 l/s, por cada 1000 habitantes equivalentes descarregados. Em finais do século XIX início do século XX, eram comuns os seguintes tipos de tratamento de águas residuais: aplicação no solo e irrigação agrícola (em terminologia anglo-saxónica “wastewater farming”), filtração e precipitação química. Em 1892, nos Estados Unidos da América, 27 cidades dispunham de instalações de tratamento, 21 da quais contemplando aplicação no solo e 6 precipitação química.

Em Paris, desde o século XIX que o efluente é conduzido para os campos de irrigação de Achères e sujeito a tratamento no solo (na terminologia francesa “champs d’épandage”). As instalações de Achères foram sendo progressivamente ampliadas e melhoradas, até a situação actual. Actualmente, esta ETAR de Paris inclui um sistema de tratamento por lamas activadas (Achères 4), para 12 m3/s, e um sistema de tratamento físico-químico avançado (em terminologia anglo-saxónica “advanced physico-chemical treatment”) com capacidade para um caudal excedente de 45 m3/s (Achéres 5), e que apenas entrou em operação no ano 2000.

Actualmente, na Europa, cerca de 70% da população é servida por sistemas de drenagem unitários, ocorrendo os valores superiores na Holanda (85%) e no sul da Alemanha. Nos Estados Unidos da América, a percentagem de redes unitárias é muito inferior, talvez da ordem de 15%.

2.3- Evolução em Portugal

Em Portugal, os primeiros elementos históricos que existem sobre o tema remontam ao século XV e revelam que o rei D. João II, em consequência da peste, mandou proceder activamente a operações de limpeza "nos canos". Em tais "canos", destinados inicialmente a drenagem das águas da chuva, se juntavam todo o tipo de estercos e imundícies, provocadas por uma população aglomerada "de modo espasmoso" na nova cidade de Lisboa, tornando-a menos elegante e mais insalubre.

No decorrer dos séculos XVI, XVII e XVIII, até ao terramoto de 1755, o crescimento populacional notável da capital avoluma os problemas relacionados com a ocorrência de "medonhas inundações" e com a higiene e limpeza da cidade. Estão particularmente bem documentados em obras históricas, os problemas de inundações na zona que hoje constitui a Praça da Figueira e o Rossio, em Lisboa.

A época que se seguiu ao terramoto de 1755 constituiu uma era de progresso na capital, marcada pela reedificação da cidade e pelo estabelecimento do princípio da "canalização metódica", cujos efeitos ainda actualmente se fazem sentir nas zonas mais antigas da cidade, em que perduram colectores unitários dispostos em malha, com ligação ao estuário do Tejo.

O desenvolvimento industrial, com a consequente concentração populacional nas grandes cidades, levou a que só no século XIX tivesse sido autorizada a ligação das águas residuais doméstica às redes de drenagem pluvial existentes, o que agravou

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enormemente os riscos de transmissão de doenças de origem hídrica, devido às condições precárias daquelas redes. Foi o caso das cidades de Boston, em 1883, Londres, em 1847, Nova York, em 1854, e Paris em 1880.

Na segunda metade do século XIX, Ressano Garcia em Lisboa em 1984, tal como Belgrand, em Paris, e Garcia Faria, em Barcelona, são artífices de planos de saneamento inspirados nos princípios da corrente higienista de Edwin Chadwick, grande responsável pela chamada de atenção para a necessidade de planeamento e construção de infra-estruturas de drenagem urbana.

Na sequência da epidemia de cólera ocorrida em Lisboa, em 1856, e posteriormente alastrada, Bernardino Gomes elabora, por ordem da Academia Real das Ciências, e com a consciência e o tacto que distinguem a sua personalidade, um relato da situação na capital portuguesa, advogando a instalação de sistemas de drenagem, à semelhança dos existentes em outras cidades europeias, como Paris, Londres a Bruxelas, cuja descrição apresenta (Matos, 2000).

Nos séculos anteriores, os resíduos sólidos e líquidos decorrentes da actividade urbana ficavam no interior da urbe, e propiciavam tremendas epidemias, como a peste, transmitida pelo rato e pela pulga, ou a cólera, veiculada por água contaminada.

Em Lisboa, por exemplo, quando no século passado se iniciou o abastecimento de água domiciliário, já existiam, sob os arruamentos da cidade, estruturas para a drenagem das águas pluviais urbanas. Tinham geralmente a soleira plana e eram construídos em cantaria, como os famosos colectores pombalinos da baixa Lisboeta, ou em cascões de pedra rectangulares. Mais tarde, essas estruturas de drenagem passaram a drenar, também, águas residuais domésticas, funcionando como colectores, unitários.

Na figura 2.1 apresenta-se a secção tipo de colectores, em Lisboa, apresentados como “canos actuais” no projecto de Ressano Garcia de 1884.

“canos actuais” Segundo o projecto Ressano Garcia (1884)

Construção em cantaria (a maior parte) ou alvenaria de tijolo

Figura 2.1 – Secção-tipo de colectores implantados em Lisboa em 1884.

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A solução dos canecos à porta das casas, que consistia na recolha, por viaturas municipais, dos dejectos líquidos e sólidos domiciliários, previamente depositados em recipientes de barro, e colocados, de madrugada, do lado de fora das habitações, resultava, na grande maioria dos casos, de proibições de descarga dos resíduos nos colectores pluviais disponíveis, frequentemente do tipo "cascão", também designados por "rateiros", por propiciarem o acesso e proliferação desses indesejáveis roedores. Esses colectores não garantiam minimamente condições de estanquicidade e de verificação de auto-limpeza (Costa, 1990). Só praticamente no início século XX surgiu e se divulgou a instalação de colectores de betão, pré-fabricados ou betonados in situ, com juntas fechadas de argamassa de cimento, oferecendo garantias de verificação de condições de auto-limpeza e de estanquicidade.

Grande parte da rede de drenagem de Lisboa construída a partir dos fins do século XIX, nomeadamente nas chamadas "Avenidas Novas" e em bairros como o de Campo de Ourique, é executada com colectores de alvenaria de pedra ovóide, assentes em vala.

A evolução da passagem da drenagem puramente pluvial para a drenagem conjunta de águas residuais domésticas e pluviais deu-se, sensivelmente da mesma forma, por quase toda a Europa e América do Norte.

O princípio da rede separativa, inicialmente apenas divulgado no Reino Unido, tornou-se, em meados do século XX, praticamente universal, no que respeita ao estabelecimento da drenagem de novas urbanizações e núcleos urbanos. Existem, no entanto, países desenvolvidos, como a Alemanha, em que actualmente se concebem e constroem, por vezes, sistemas totalmente unitários, com os seus descarregadores de tempestade, seus reservatórios e bacias de regularização e seus equipamentos de controlo automático de descarga. É que, entretanto, mais uma vez a realidade evoluiu, e mais uma vez a escolha das soluções mais adequadas se complicou. Por um lado, constata-se que grande parte dos sistemas construídos com o intuito de apenas transportar águas residuais domésticas, também transportam, na verdade, águas pluviais resultantes de infiltrações e de ligações domiciliárias trocadas. Dada a magnitude dos caudais pluviais originados, mesmo em pequenas bacias de drenagem, basta uma pequena proporção de ramais trocados, para o problema da contribuição pluvial se tomar pertinente. Por outro lado, é actualmente tratada com preocupação crescente, a poluição veiculada por águas pluviais urbanas. As águas pluviais urbanas podem transportar, entre outros poluentes, quantidades significativas de sólidos em suspensão, metais pesados, nomeadamente chumbo e zinco, e hidrocarbonetos.

O primeiro sistema separativo doméstico construído no País terá sido o da cidade do Porto. Com projecto da autoria de ingleses, foram precisos mais de trinta anos para se realizarem as difíceis instalações e ligações domiciliárias, que nos anos "30" puseram a cidade em "polvorosa" (Costa, 1990).

Reportando a meados do século (até 1940-1950), grande parte dos maiores aglomerados urbanos do País dispunham já de colectores pluviais e unitários, parte deles executados no período da grande explosão construtiva que caracterizou o chamado "fontismo", e que a política, simbolizada por Fontes Pereira de Melo, tão claramente fomentou. Nessa altura, e com excepção da cidade do Porto e dos núcleos urbanos vizinhos, e de uma faixa litoral restrita, que compreendia Estoril e Cascais, as redes de drenagem separativas não se tinham ainda implantado em Portugal.

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A primeira rede separativa doméstica concebida e construída em núcleo urbano importante, no sul do País, foi instalada numa parte da então vila do Barreiro, em meados da década de quarenta.

Entre a década de cinquenta e a década de setenta, foram remodelados e complementados, com base em planos gerais de saneamento, grande número dos sistemas de drenagem unitários existentes, e foram instaladas novas redes de drenagem separativas. Casos houve, como o Barreiro (na década de quarenta), Beja (na década de cinquenta), Viseu e Tomar (na década de sessenta), e Lisboa e Elvas (nas décadas de sessenta e setenta), em que se mantiveram, nos núcleos urbanos mais antigos e mais densamente povoados, os antigos colectores unitários, complementando-os com descarregadores de tempestade e obras de desvio, promovendo a ligação às condutas e emissários dos sistemas separativos adjacentes, construídos nas áreas recentemente edificadas. Noutros casos, como em Almada, Cova da Piedade, Costa da Caparica, Setúbal e Espinho, foram projectados e construídos sistemas inteiramente separativos, que directamente substituíram os anti-higiénicos e obsoletos procedimentos de recolha de dejectos domésticos por viatura municipal. Nas povoações alentejanas de Beja, Évora e Elvas, foram projectados e construídos longos emissários domésticos "de cintura", que ainda actualmente colectam os caudais desviados das zonas urbanas centrais, mais antigas, e transportam as águas das redes separativas, instaladas nas zonas de expansão urbana, para os locais de tratamento. As cidades de Viseu e Tomar têm a particularidade de serem subdivididas por linhas de água importantes, cuja consideração obrigou, no primeiro caso, à instalação de dois emissários marginais. A Ressano Garcia, Arantes e Oliveira e Celestino da Costa cabe o mérito de terem contribuído para a concepção e o dimensionamento da rede principal de infra-estruturas de drenagem da cidade de Lisboa. Neste caso foi mantido o sistema unitário na malha densa e antiga da cidade (de Campolide à Baixa Pombalina e da Ajuda a Santa Apolónia), tendo sido executados colectores de drenagem separativos nas zonas baixas (frente de Algés a Belém) e nas então novas urbanizações de que são exemplos Olivais e Benfica

Nas décadas de oitenta e noventa do século passado, o investimento em saneamento cresceu de forma significativa, sobretudo vocacionado para os grandes núcleos urbanos. Nos últimos 20 anos foram realizados no País empreendimentos de dimensão significativa relacionados, entre outros, com o saneamento do Vale do Ave (incluindo os interceptores e ETAR de Gondar, Rabada e Agre), de Coimbra (ETAR de leitos percoladores de alta carga, para mais de 200.000 habitantes equivalentes), de saneamento da Costa do Estoril (incluindo um interceptor geral de mais de 20 km, vários emissários principais, várias instalações elevatórias das zonas baixas, uma ETAR actualmente em vias de beneficiação e um emissário submarino com dois anos), do Porto (ETAR do Freixo), de Loures e Concelhos vizinhos (ETAR de Frielas e ETAR de S. João da Talha), de Lisboa (ETAR de Alcântara, ETAR de Chelas e beneficiação de ETAR de Beirolas), de Setúbal, do Concelho de Almada (ETAR de Quinta da Bomba, da Mutela e do Portinho da Costa, estas duas últimas ainda em construção e da SIMRIA - Sistema Integrado de Águas Residuais dos Municípios da Ria de Aveiro (interceptores Norte, Sul a Vouga, ETAR Norte e ETAR Sul).

2.4- Condição actual do saneamento em Portugal

O saneamento básico em Portugal constitui um sector alvo de particular atenção, no quadro da designada Indústria da Água e do desenvolvimento do País.

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Em 1990, ao nível do atendimento de saneamento básico, apenas 55% da população portuguesa era servida por sistemas de drenagem e 21% por sistemas de tratamento de águas residuais, percentagens significativamente afastadas da média europeia que se situava, respectivamente, em 83% e 69%.

Em 1997, a média nacional cifrava-se em 68% no que respeita à drenagem e em 40% relativamente ao tratamento de águas residuais, enquanto que em 1999 os valores aumentaram para, respectivamente, 75% e 55% conforme se pode constatar no Quadro 2.1.

Quadro 2.1 – Níveis de atendimento em regiões de Portugal Continental, adaptado de MAOT (2000)

Drenagem (%) Tratamento (%) Nível de atendimento

1990 1997 1999 1990 1997 1999

Norte 36 51 59 11 24 42 Centro 39 54 71 18 36 51 L. V. Tejo 79 86 89 26 53 64 Alentejo 69 84 85 32 59 74 Algarve 76 81 84 37 64 83

Apresentam-se, na Figura 2.2, os níveis de atendimento em saneamento de águas residuais, por concelho. A Figura foi desenvolvida tendo em conta a informação apresentada em MAOT (2000).

Em relação à distribuição geográfica dos níveis de cobertura, constata-se, pela análise do Quadro 2.1, a existência de assinaláveis disparidades regionais, sendo as regiões menos apetrechadas ao nível das infra-estruturas de saneamento e tratamento, o Norte e Centro, quer litoral quer interior, conforme ilustrado na Figura 2.2.

Figura 2.2 - Níveis de serviço em drenagem de águas residuais, em Portugal Continental, por concelho

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Embora nos últimos 10 a 15 anos se tenha observado uma progressão assinalável, Portugal ainda não se encontra próximo de atingir os parâmetros estabelecidos em 2000 e consignados no Plano de Desenvolvimento Regional 2000-2006, cujos objectivos traçados visam a cobertura dos aglomerados em 90% em serviço de drenagem e tratamento de águas residuais.

Uma das principais razões conducentes aos níveis de atendimento registados é o facto da implementação de soluções convencionais de drenagem de águas residuais nos aglomerados rurais e nos aglomerados urbanos de baixa densidade populacional poder ser bastante onerosa.

As soluções convencionais implicam, para redes de pequeno diâmetro, como previsto no “Regulamento geral dos sistemas públicos e prediais de distribuição de água e de drenagem de águas residuais”, um escoamento com superfície livre a menos de meia secção, um diâmetro mínimo de 200 mm e uma inclinação mínima de 0,3% (continuamente descendente, mesmo quando o perfil do terreno é ascendente), os quais correspondem a dimensionar o sistema de colectores para uma população servida limite superior a 2000 habitantes. Ou seja, na concepção de um sistema de drenagem para servir uma população rural, por exemplo, inferior a 500 habitantes, que constitui uma situação frequente no interior de território nacional, o custo da implementação do sistema convencional referido torna-se, em regra, muito elevado, do ponto de vista do custo unitário por habitante servido.

São precisamente estas populações rurais, sobretudo em concelhos do interior do país, as que apresentam maiores carências de índole económica e que têm menores taxas de cobertura em termos de sistemas de drenagem e tratamento de águas residuais. No entanto, o esforço de criação de novas infra-estruturas de drenagem e tratamento de águas residuais em território nacional é actualmente muito elevado, mesmo nas zonas e regiões anteriormente mais desfavorecidas, em termos de investimentos nesse sector. Em 2002, por exemplo, previa-se que no âmbito dos então quinze sistemas multimunicipais de saneamento de águas residuais existentes, se viessem a construir, até 2006, cerca de 600 ETAR, 1000 sistemas elevatórios e 9500 km de emissários e condutas.

Crê-se que os valores anteriormente referidos terão tendência a ser superiores, e que, nesta década, o investimento no sector do Saneamento será muito relevante e significativo. Acredita-se, também, que no futuro se vão colocar problemas acrescidos em termos de garantir uma operação e gestão integrada dos sistemas de saneamento que permita que se obtenham melhores resultados, com menores custos económicos, sociais e ambientais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DO CAPÍTULO 2

Costa, P.C. – Alguns Aspectos Menos Conhecidos de Problemas de Drenagem e Poluição. Texto de Palestra Comemorativa do centenário da Câmara Municipal do Barreiro, Lisboa, 1990.

Fair, G. and Geyer, J.C. – Water supply and waste-water disposal. Wiley, New York, 1954.

15

Hodge, A.T. – Roman aqueducts & water supply. Gerald Duck-worth & Co. Ltd., London, 1992.

Maner, A.W. – Public works in ancient Mesopotamia. Civ. Engrg., 36(7), 50-51, 1966.

Matos, R.M. – Gestão Integrada de Águas Pluviais em Meio Urbano – Visão Estratégica e Soluções para o Futuro. Teses e Projectos de Investigação. LNEC, 2000.

Metclaf and Eddy – American Sewerage Practice. I: Design of Sewers. McGraw-Hill, New York, 1928.

Needham, J.; Ling, W. and Gwei-Djen, L. – Science and Civilization in China – Vol. 4: Physics and physical technology. III: Civil engineering and nautics. Cambridge University Press, New York, 1971.

Webster, C. – The sewers of Mohenjo-Daro. J. Water Pollution Control Fed., 34(2), 116-123, 1962.

Ministério do Ambiente e Ordenamento do Território (MAOT) – Plano Estratégico de Abastecimento de Águas Residuais, Lisboa, 2000.

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3. DADOS BASE

3.1. Considerações introdutórias

Este capítulo diz respeito a dados base, fundamentalmente horizonte de projecto, população de projecto e caudais de projecto de sistemas de drenagem de águas residuais domésticas. Apresenta-se, também, alguma informação referente a caudais industriais. No âmbito do capítulo 5 deste documento apresentam-se elementos para a determinação de caudais de sistemas pluviais ou com contribuição significativa de águas pluviais (sistemas unitários).

A fiabilidade dos dados de base constitui um aspecto essencial na concepção e dimensionamento de sistemas de águas residuais. As principais dificuldades e limitações associadas aos dados de base prendem-se, em regra, com lacunas de informação decorrentes do facto das redes ainda não estarem construídas ou da informação disponível não estar tratada ou, ainda, daquela informação não se apresentar suficientemente credível ou fiável.

Este texto foi adaptado, em grande parte, de Matos et al (2002).

3.2. Origem e natureza das águas residuais

Ao utilizar a água nas suas actividade domésticas, nomeadamente na confecção de alimentos e na higiene pessoal, o homem altera as suas características físicas, químicas e biológicas, dando origem às chamadas “águas de sabão”. As águas residuais domésticas incluem não só as “águas de sabão” mas também os “excreta”, resultantes da acção dos processos digestivos.

Estas águas devem ser drenadas por sistemas de drenagem onde, por vezes, também podem afluir águas resultantes da actividade industrial e de estabelecimentos comerciais. Ao conjunto destas águas dá-se o nome de águas residuais ou, ainda, águas residuais comunitárias.

De acordo com os artigos 119º e 120º do Decreto-Regulamentar nº 23/95, de 23 de Agosto, na concepção de novos sistemas deve optar-se, em regra, o sistema separativo, devendo ser considerada a transição para o sistema separativo no caso da remodelação de sistemas unitários existentes. Considera-se de manter os sistemas unitários apenas se, devido a condicionalismos locais, for praticamente inviável a transição para o sistema separativo, nomeadamente pela dificuldade do estabelecimento de ramais de ligação.

Segundo ASCE e WPCF 1982, deve privilegiar-se. em regra, a construção de sistemas de drenagem separativos, ao contrário de sistemas unitários. Esta situação tem em vista reduzir os investimentos e encargos de exploração nas instalações de tratamento que se desenvolvem a jusante e proteger contra a poluição, mais eficazmente, os cursos de água para onde são conduzidos os caudais excepcionais de tempestade.

Este capítulo refere-se, fundamentalmente, a sistemas separativos de águas residuais, isto é, a sistemas que são concebidos para transportar exclusivamente águas residuais e não águas pluviais.

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3.3. Horizonte de projecto

Define-se como horizonte de projecto o número de anos durante os quais o sistema ou as estruturas e equipamentos que o constituem devem operar em boas condições. O horizonte de projecto de uma obra deve ser determinado tendo em atenção factores técnicos, económicos, financeiros e sociais tais como os seguintes:

a) os períodos de vida útil das obras de construção civil e equipamentos;

b) a facilidade ou dificuldade de ampliação das infra-estruturas;

c) a previsão da evolução da população;

d) o funcionamento da instalação nos primeiros anos de exploração;

e) a previsão do aumento da taxa de juro durante o período de amortização do investimento ou a capacidade financeira da entidade adjudicante, designadamente em termos de financiamento e das condições do empréstimo.

Segundo ASCE e WPCF (1982), no caso do dimensionamento de emissários e interceptores de relativa importância (diâmetro superior a 500 mm), o horizonte de projecto deve ser de cinquenta anos, podendo ser ainda superior no caso de túneis, por exemplo. Em redes de drenagem de águas residuais em Portugal é corrente considerarem-se horizontes de projecto inferiores, entre trinta e quarenta anos (Matos, 1988).

Regra geral, deve adoptar-se para as obras de construção civil como colectores, emissários, interceptores ou obras de instalações de bombagem ou de estações de tratamento de águas residuais, um horizonte de projecto entre trinta e quarenta anos. Para os equipamentos electromecânicos é comum adoptar-se um horizonte de projecto de cerca de quinze a vinte anos.

Em casos muito particulares pode ser justificável proceder a estudos específicos, de índole técnico-económica, tendo em vista seleccionar o horizonte de projecto da obra a que corresponde a solução global mais favorável.

3.4. População de projecto

3.4.1. População actual

No âmbito da elaboração de estudos e projectos de sistemas de águas residuais torna-se indispensável conhecer, de forma tão fundamentada quanto possível, a situação demográfica na data correspondente ao início de funcionamento das infra-estruturas e a sua evolução previsível ao longo da vida útil da obra, até ao ano de horizonte de projecto. Para tal, deve-se atender aos dados publicados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) e a eventuais estudos levados a cabo na área de influência dos sistemas a projectar, por forma a assegurar estimativas fiáveis da população e da sua evolução previsível (por exemplo, planos directores, planos de urbanização e planos de desenvolvimento industrial ou de desenvolvimento turístico).

Para estimar a população correspondente à data de início de funcionamento das infra-estruturas a projectar devem ser consultados estudos existentes e dados disponíveis,

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nomeadamente os censos populacionais e, quando necessário, os censos eleitorais, o número de camas de instalações hoteleiras e turísticas e planos de desenvolvimento urbanístico.

Relativamente a fontes de informação disponíveis com interesse para a estimativa da população salientam-se, entre outras, as seguintes:

• INE (1944) - VIII Recenseamento Geral da População, Instituto Nacional de Estatística, Lisboa, Portugal (dados sobre a população residente no âmbito do Censo à população 1940);

• INE (1961) - X Recenseamento Geral da População, Instituto Nacional de Estatística, Lisboa, Portugal (dados sobre a população residente no âmbito do Censo à população 1960);

• INE (1972) - XI Recenseamento Geral da População, Instituto Nacional de Estatística, Lisboa, Portugal (dados sobre a população residente no âmbito do Censo à população 1970);

• INE (1982) – XII Recenseamento Geral da População, Instituto Nacional de Estatística, Lisboa, Portugal (dados sobre a população residente no âmbito do Censo à população 1980);

• INE (1991) – Censos 91, Instituto Nacional de Estatística, Lisboa, Portugal (dados sobre a população residente no âmbito do Censo à população 1991);

• INE (1993) – Censos 91 – Resultados definitivos. Região Norte. Instituto Nacional de Estatística. Lisboa. Portugal;

• INE (1993) – Censos 91 – Resultados definitivos. Região Centro. Instituto Nacional de Estatística. Lisboa. Portugal;

• INE (1993) – Censos 91 – Resultados definitivos. Região do Algarve. Instituto Nacional de Estatística. Lisboa. Portugal;

• INE (1993) – Censos 91 – Resultados definitivos. Região Lisboa e Vale do Tejo. Instituto Nacional de Estatística. Lisboa. Portugal;

• INE (1993) – Censos 91 – Resultados definitivos. Região do Alentejo. Instituto Nacional de Estatística. Lisboa. Portugal;

• INE (1993) – Censos 91 – Resultados definitivos. Região dos Açores e Madeira. Instituto Nacional de Estatística. Lisboa. Portugal;

• INE (1999) – Anuário estatístico de Portugal. Instituto Nacional de Estatística. Lisboa. Portugal;

• INE (2000) – Estimativas da população residente em 31 de Dezembro de 1999. Instituto Nacional de Estatística. Lisboa. Portugal.

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Chama-se ainda a atenção para o Censo geral da população 2001, recentemente efectuado, cujos dados já se encontram disponíveis na internet, que poderão constituir uma fonte de informação mais actualizada, e ainda os Planos de Bacia, o Plano Nacional da Água e os estudos de concepção geral e de desenvolvimento de projecto dos Sistemas Multimunicipais de Abastecimento de Água e Saneamento de Águas Residuais.

3.4.2. População no horizonte de projecto

A população no horizonte de projecto deve incluir população residente e população temporária ou flutuante. A população residente no horizonte de projecto, ou no ano de horizonte de projecto, pode ser obtida a partir de estudos de evolução da população baseados nos resultados dos Censos e também em estudos de planeamento ou em estudos urbanísticos actualizados. Em alguns casos pode ser recomendável a realização de inquéritos locais ou consultas e recolha de dados designadamente junto de Juntas de Freguesias e Câmaras Municipais, com vista ao melhor conhecimento das populações e das respectivas tendências de evolução, nomeadamente do ponto de vista do balanço da emigração e do impacto da população flutuante.

A quantificação da população flutuante e sua evolução pode ser levada a cabo com base na análise de registos disponíveis e na quantificação dos aglomerados potenciais existentes e condições de ocupação local prevista.

A modelação ou estimativa do crescimento populacional, em termos de população residente, pode ser efectuada recorrendo a diversos modelos ou métodos, designadamente os seguintes:

• aritmético; • geométrico; • mínimos quadrados; • comparação; • extrapolação visual; • taxa de crescimento decrescente; • curva logística; • razão-correlação; • parcelar; • previsão de emprego.

É muito vulgar em Portugal, e na falta de elementos informativos complementares, como estudos urbanísticos, ser utilizado o método geométrico. No método geométrico considera-se que a evolução populacional segue uma progressão geométrica, podendo ser traduzida pela expressão (3.1).

ngT tPP )1(0 += (3.1)

sendo,

PT, P0 - população respectivamente no horizonte de projecto e no ano de referência;

tg - taxa geométrica de evolução n - número de anos.

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A taxa geométrica de evolução deve ser determinada a partir dos resultados dos Censos aplicando, eventualmente, o método dos mínimos quadrados. Complementarmente, para a determinação da evolução em lugares onde não se disponha de informação populacional (por exemplo, resultados de censos anteriores) pode recorrer-se ao método da razão-correlação, em que se admite analogia entre a taxa de crescimento do lugar e da região onde se insere (freguesia ou concelho, por exemplo) para a qual se dispõe de dados de evolução de população.

Dados os erros ou incorrecções a que as previsões de evolução da população podem, em algumas circunstâncias, conduzir, aconselha-se que nos estudos de projecto se realizem ensaios de sensibilidade aos valores atribuídos às taxas de crescimento populacional e se ponderem, para cada situação, dois ou três cenários de evolução correspondentes.

Os resultados obtidos podem ser utilizados no âmbito da verificação dos dados base utilizados para o dimensionamento dos sistemas projectados e no âmbito da verificação da capacidade dos sistemas existentes, para os diversos cenários de evolução ou nas fases de concepção e planeamento de novas infra-estruturas.

3.5. Caudais de projecto

3.5.1. Nota Introdutória

Um sistema de águas residuais, designadamente uma rede de drenagem, deve ser concebida e dimensionada tendo em conta o cumprimento das seguintes funções:

⟩ transporte das águas residuais, nomeadamente do caudal máximo instantâneo, para o local de tratamento ou de rejeição;

⟩ arrastamento dos sólidos em suspensão, nomeadamente quando se escoam os menores caudais, tendo presente a necessidade de promover a sua afluência aos locais de tratamento.

Torna-se, assim, especialmente importante para o desenvolvimento dos sistemas de drenagem, avaliar correctamente os caudais de projecto (nomeadamente no ano de início de exploração, e no ano horizonte de projecto), a fim de garantir o respectivo escoamento em condições hidráulico-sanitárias convenientes.

Para efeitos de cálculo, considera-se que os caudais de projecto são constituídos, no essencial, por três parcelas:

• caudais domésticos – inclui o caudal resultante dos usos da água na habitação e na sua envolvente (caudal doméstico propriamente dito) acrescida do caudal proveniente de actividades comerciais (nomeadamente estabelecimentos, lojas e restaurantes) e ainda o consumo público (tais como escolas, estabelecimentos de saúde, instalações desportivas, quartéis e jardins);

• caudais industriais – incluiu a contribuição dos estabelecimentos indústrias ligados à rede, cuja caracterização deve ser feita caso a caso;

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• caudais de infiltração – inclui a água subterrânea que aflui à rede de colectores através de deficiências das tubagens, juntas ou câmaras de visita (designadamente decorrentes de assentamentos, fissuras e roturas).

Nos sub-capítulos seguintes aborda-se a avaliação destas componentes, através da especificação dos elementos de base necessários e da metodologia utilizada.

Refere-se ainda que, embora não seja em regra tida em consideração, na prática afluem aos sistemas separativos caudais pluviais provenientes de ligações indevidas de pátios, telhados, ou da via pública. Pela importância que assume, por vezes, essa contribuição, entendeu-se útil fazer-lhe também referência.

3.5.2. Considerações gerais sobre consumo urbano da água

De acordo com a informação disponível mais recente são fornecidos pelos municípios portugueses 572×106 m3/ano de água (INAG, 2001), sendo, segundo APDA (1999), cerca de 64,4 % deste total consumo doméstico, 13,5 % industrial, 13,2 % relativo a serviços (comércio) e 8,8 % relativo a outros (consumo público). Esta subdivisão do abastecimento através da rede pública foi obtida com base em valores de consumos facturados resultantes de um inquérito levado a cabo pela Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Águas no ano de 1997, ao qual respondeu um número significativo de entidades gestoras.

Para um melhor enquadramento da estimativa de capitações urbanas do consumo de água, procede-se seguidamente a uma referência sumária aos consumos domésticos, comerciais e públicos.

Consumo doméstico

Por consumo doméstico entende-se o consumo associado aos usos de água efectuados no interior e na envolvente das habitações. Os consumos no interior da habitação, tendencialmente proporcionais ao número de elementos do agregado, incluem a água utilizada para beber, na preparação de alimentos, na higiene pessoal, nos autoclismos, na limpeza e na lavagem de roupa e loiça. Os consumos exteriores incluem a rega de plantas e espaços verdes, a lavagem de viaturas e o enchimento de piscinas. Ao contrário dos usos interiores, a componente exterior do consumo doméstico apresenta uma grande variação em termos percentuais, dependente da tipologia da habitação, da região, do respectivo clima e da estação do ano. Estes consumos são, em geral, superiores nos meses quentes.

Não se conhecem em Portugal estudos globais sistemáticos de caracterização quantitativa detalhada das diversas parcelas do consumo doméstico. Com base em referências estrangeiras, é possível estimar que as descargas de autoclismos e os duches/banhos surgem como as parcelas mais importantes do consumo total (60 %), seguidos dos consumos associados a torneiras (16 %). Seguem-se as parcelas de usos exteriores (10 %), de lavagem de roupa e loiça (10 %) e a parcela de perdas (em torneiras, chuveiros e autoclismos).

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Consumo comercial

Inclui os consumos associados às diversas actividades comerciais, que são muito variáveis, dependendo, entre outros, de factores como o tipo e a dimensão de cada unidade. A algumas destas actividades estão associados consumos similares aos domésticos, como é o caso dos serviços onde predominam os escritórios e os armazéns.

Consumo público

Os consumos públicos incluem os consumos associados às actividades municipais, às instituições públicas (como estabelecimentos de ensino e de saúde, instalações desportivas, quartéis e oficinas). Os usos de água podem resultar do funcionamento de instalações sanitárias, balneários, regas de espaços exteriores e serviço de bocas de incêndio.

Consumo industrial

O consumo industrial inclui aquele que é afecto às actividades industriais, verificando-se em Portugal que só cerca de 40 % do sector industrial consome água da rede pública. Em geral, as instalações industriais de maiores dimensões possuem captações e sistemas de abastecimento próprios, enquanto que as de menor capacidade, quando inseridas na malha urbana, são alimentadas pelos sistemas públicos.

3.5.3. Caudais domésticos

3.5.3.1. Aspectos gerais A avaliação dos caudais domésticos deve basear-se, tanto quanto possível, no conhecimento dos consumos de água obtidos a partir dos registos das entidades gestoras de abastecimento de água. Com base nestes valores e na população servida é possível estimar a capitação média anual do consumo de água, à data do estudo, e prever o valor da capitação no horizonte de projecto. De acordo com NP 752-4, as capitações mínimas de projecto a considerar em Países da Europa como o Reino Unido, a França e a Alemanha é de 150 l/(hab.dia).

A capitação de águas residuais domésticas obtém-se afectando o valor da capitação de água por um factor designado coeficiente de afluência à rede. O caudal doméstico resulta, assim, da multiplicação da capitação de águas residuais domésticas pela população a servir com rede de águas residuais. Finalmente, o valor do caudal de ponta de projecto obtém-se multiplicando o valor de caudal atrás referido por um factor de ponta instantâneo ou horário, a que se deve adicionar o caudal de infiltração, os caudais industriais e, eventualmente, caudais de origem pluvial, em conformidade com a expressão (3.2):

oplindippd QQQfQQ +++×= max (3.2)

sendo,

Qpd - caudal de ponta de projecto [m3/s]; Qmax - caudal máximo doméstico (no ano horizonte de projecto)

[m3/s]; fp - factor de ponta instantâneo ou horário [ - ];

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Qi - caudal de infiltração [m3/s]; Qind - caudais industriais [m3/s]; Qopl - caudais de origem pluvial [m3/s].

3.5.3.2. Capitações

Em APDA (1999), são apresentados dados, por concelho, relativos a capitações domésticas, de serviços, comerciais e industriais abastecidos pela rede pública, entre outros. Segundo esta fonte, a capitação urbana média em Portugal, incluindo todos os usos anteriormente mencionados, é de 167 l/(hab.dia).

Nos casos em que não se disponha de informação correcta de consumos deverão estimar-se valores de capitação atendendo à dimensão do aglomerado, ao nível de vida das populações e aos hábitos de higiene e às condições climáticas locais.

Em articulação com o referido anteriormente, os factores que mais afectam o valor da capitação são: tipo de ocupação residencial, demografia, nível socio-económico e clima. Nos itens seguintes referenciam-se, brevemente, cada um destes aspectos.

Tipo de ocupação residencial

O tipo de ocupação residencial (apartamentos e tipologia destes ou moradias) afecta naturalmente o consumo de água per capita. Em particular a existência de zonas de jardim afectas à habitação contribuem para o incremento do consumo de água.

Demografia

A taxa de ocupação da habitação constitui um factor de influência na capitação do consumo de água. Com efeito, famílias de maior dimensão tendem, em geral, a contribuir para valores de capitação mais baixos. Por outro lado, populações com uma percentagem elevada de reformados e de pessoas idosas têm tendência a fazer elevar os valores dos consumos (Butler e Davies, 2000).

Nível socio-económico

O nível socio-económico da população tem efeito sobre os consumos de água, verificando-se em geral que a populações de maior capacidade económica e poder de compra estão associados maiores valores do consumo de água. Estudos a nível internacional têm demonstrado a relação entre o valor patrimonial da habitação e os consumos.

Clima

O clima, nomeadamente a temperatura e a precipitação, têm efeito sobre os valores de consumo de água. O consumo doméstico de água tende a ser mais elevado em zonas mais quentes e secas, devido em parte ao aumento do consumo de água para rega e jardinagem. Contudo, o impacto em termos das redes de águas residuais é menos pronunciado, já que a parte da água consumida na rega não chega a afluir aos colectores.

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Em Portugal, e de acordo com a legislação, as capitações de água a considerar no ano de horizonte de projecto não devem ser inferiores aos seguintes valores, em função da dimensão do aglomerado ou aglomerados a servir:

• 80 l/(hab.dia) até 1000 habitantes; • 100 l/(hab.dia) de 1000 a 10 000 habitantes; • 125 l/(hab.dia) de 10 000 a 20 000 habitantes; • 150 l/(hab.dia) de 20 000 a 50 000 habitantes; • 175 l/(hab.dia) acima de 50 000 habitantes.

As capitações correspondentes aos consumos comerciais podem, na generalidade dos casos, ser incorporadas nos valores médios de capitação global; em zonas de actividade comercial intensa pode admitir-se uma capitação adicional da ordem dos 50 l/(hab.dia), conforme estabelece o Artigo 14º do Decreto-Regulamentar nº 23/95. Os consumos públicos, tais como de rega de zonas verdes e de limpeza de colectores, podem ser considerados também integrados nos valores médios da capitação global, considerando-se adicionalmente como públicos os consumos de estabelecimentos de saúde, ensino, militares, prisionais, hoteleiros e instalações desportivas, que devem ser avaliados de acordo com as respectivas características, caso a caso.

3.5.3.3. Coeficiente de afluência à rede

Nos aglomerados populacionais nem toda a água consumida aflui ao sistema de drenagem devido às perdas verificadas nos ramais domiciliários e à utilização, mais ou menos significativa, da água na rega de espaços verdes e agrícolas, lavagens municipais e enchimentos de piscinas.

O coeficiente de afluência à rede (também designado factor de afluência) é o valor pelo qual deve ser multiplicada a capitação média anual do consumo de água, para se obter a capitação média anual de afluência à rede. Os coeficientes de afluência são função do tipo de ocupação residencial, dos hábitos de higiene e de vida da população, da extensão de zonas verdes ajardinadas ou agrícolas, das condições climáticas, da estrutura tarifária e da ligação ao sistema ou não de pequenas actividades comerciais, públicas ou industriais.

Segundo ASCE e WPCF (1982) a relação entre as capitações de águas residuais e de abastecimento podem descer, em zonas áridas, até valores da ordem de 0,40. Em Portugal, os valores do coeficiente de afluência a considerar em dimensionamento devem, a não ser em casos devidamente justificados, variar entre 0,70 e 0,90, como refere o Decreto-Regulamentar nº 23/95.

3.5.3.4. Factor de ponta

Para o dimensionamento de infra-estruturas de saneamento deve ser considerado o factor de ponta instantâneo ou horário. Esse valor, multiplicado pelo caudal médio anual, permite obter os correspondentes caudais de ponta.

O factor de ponta instantâneo é, assim, o quociente entre o caudal máximo instantâneo do ano e o caudal médio diário anual das águas residuais devendo ser determinado, sempre que possível, com base na análise de registos locais. Na ausência de elementos

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que permitam a sua determinação, o factor de ponta deve ser estimado através da expressão (3.3):

P601,5f += (3.3)

sendo,

P - população a servir [hab]; f - factor de ponta instantâneo [ - ].

No âmbito do dimensionamento de infra-estruturas de saneamento (colectores e emissários) não devem ser considerados factores de ponta instantâneos superiores a 5.

3.5.4. Caudais industriais

Tal como referido no Decreto Regulamentar nº 23/95, na estimativa dos caudais de projecto de águas residuais domésticas com ligações industriais é indispensável aceder à informação relativa ao inventário e caracterização das indústrias a ligar /ligadas ao sistema, de modo a serem conhecidos os caudais rejeitados, suas características físicas, químicas e bacteriológicas ao longo do tempo e os períodos de laboração. Neste sentido, todos os consumidores especiais, que impliquem consumos de água significativos, devem ser analisados separadamente com o objectivo de estimar os respectivos caudais de águas residuais industriais.

Para aferir valores ou suprir eventuais falhas de informação fornecem-se, no Quadro 3.1, algumas indicações orientadoras referentes a consumos de água industriais e comerciais.

Quadro 3.1 - Consumos industriais e comerciais (adaptado de DGRN, 1991).

Tipo de estabelecimento ConsumoValor Unidade

Adegas 5 l/litro de produtoLacticínios 4-12 l/kg de produtoMatadouros (animais de grande porte) 300 l/cabeçaMatadouros (animais de médio porte) 150 l/cabeçaEstações de serviço 150 l/(veículo.dia)Padarias 0.6 l/kg de farinhaPensões (sem cozinha nem lavandaria) 120 l/(hóspede.dia)Restaurantes 25 l/refeição

No Quadro 3.2 apresentam-se valores orientadores relativos a consumos de água por animal, em explorações agro-pecuárias e outras.

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Quadro 3.2 - Consumo por animal (adaptado de DGRN, 1991).

Tipo de animal Capitação[l/(animal.dia)]

Vacas leiteiras 75Cavalos, mulas e burros 40Porcos 10Cabras e ovelhas 8Perús 0.75Galinhas 0.40

Os volumes de água rejeitados no sistema, no âmbito da actividade industrial, podem ser elevados quando comparados com os volumes domésticos transportados. Esta razão leva a que, por vezes, se dimensionem tanques de retenção, de modo a que se amorteçam as descargas industriais antes do lançamento no sistema municipal. Em certas circunstâncias, pode justificar-se o controlo das descargas industriais, de forma a que elas só se verifiquem em períodos determinados (em regra, à noite), correspondentes ao escoamento de caudais domésticos reduzidos nos colectores da rede.

3.5.5. Caudais de infiltração

Os sistemas de drenagem de águas residuais devem ser concebidos e dimensionados tendo em vista minimizar os caudais de infiltração e os caudais resultantes da drenagem de águas pluviais, promovida através de ligações incorrectas ao sistema. Para controlar os caudais de infiltração devem ser adoptados procedimentos adequados de projecto, nomeadamente em termos da selecção dos materiais, juntas e de disposições construtivas.

Os caudais de infiltração provenientes, em regra, de aquíferos com níveis freáticos próximos do solo, drenam para os colectores através de juntas mal construídas, fendas em câmaras de visita e ligações domiciliárias mal construídas. Segundo ASCE e WPCF (1982), mais de 90 % dos caudais de infiltração podem resultar dos ramais domiciliários que, no seu conjunto, podem apresentar uma extensão superior à do sistema de drenagem municipal ou multimunicipal propriamente dito. Segundo aqueles autores, têm sido medidos valores, em sistemas de drenagem implantados abaixo do nível freático, entre 1 e 27 l/(s.km).

Embora os materiais e as tecnologias de construção de colectores tenham vindo a aperfeiçoar-se, nomeadamente no sentido de reduzir ou mesmo evitar completamente a ocorrência de infiltração, na prática, se os sistemas de drenagem são implantados sob o nível freático, torna-se especialmente difícil, e por vezes mesmo anti-económico, atingir esse objectivo. As águas infiltradas podem resultar da existência de juntas imperfeitas ou mal construídas, fendilhação por assentamento diferencial dos colectores e falta de estanquidade das câmaras de visita ou dos ramais domiciliários afluentes.

Desde que não se disponham de dados experimentais locais ou de informações similares, o valor do caudal de infiltração a considerar em projecto deve ser, de acordo com a legislação portuguesa, o seguinte:

a) Igual ao caudal doméstico médio anual, em redes de pequenos aglomerados com colectores com diâmetro até 300 mm.

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b) Proporcionais aos comprimentos e diâmetros dos colectores nas redes de médios e grandes aglomerados. Neste caso, e quando se trata de colectores recentes ou a construir, podem estimar-se caudais de infiltração de 0,5 m3 por dia por centímetro de diâmetro e por quilómetro de comprimento de rede de drenagem (0,5 m3/(dia.cm.km)). No caso de colectores existentes de precária construção e conservação, aquele valor poder atingir 4 m3/(dia.cm.km). Em alternativa pode simplificar-se o procedimento, considerando valores de infiltração entre 0,25 e 1,00 do caudal médio.

Os valores referidos em a) e b) podem ser reduzidos sempre que estiver assegurada uma melhor estanquidade da rede. No âmbito do dimensionamento de colectores e emissários deve ter-se em conta a contribuição da infiltração proveniente das redes “em baixa” e de ramais e caixas domiciliárias.

3.5.6. Caudais pluviais ligados directamente ao sistema

Teoricamente, não deve afluir caudal de origem pluvial a uma rede separativa doméstica. No entanto, é frequente, sobretudo em redes extensas e antigas, verificar-se a existência de contribuição pluvial, devido aos seguintes factores:

• ligação errónea de colectores pluviais da rede pública ou das redes prediais ao sistema separativo doméstico;

• mistura de caudais pluviais com domésticos nas redes prediais (parcial ou totalmente) sendo estas ligadas ao sistema público separativo doméstico;

• entrada das águas pluviais através das tampas das câmaras de visita de colectores domésticos;

• entrada da água de linhas de água em situação de cheia, particularmente através de colectores de descarga de emergência da rede separativa doméstica não equipados com válvulas de retenção, ou através de colectores domésticos que se encontram danificados.

A afluência pluvial directa a redes domésticas pode, em alguns casos, constituir uma contribuição significativa. Em tempo húmido, e durante precipitações intensas, os caudais de ponta podem ser superiores a10 a 15 vezes o caudal de ponta em tempo seco. Em termos de caudais médios anuais, naturalmente que este efeito é amortecido devido à distribuição temporal da precipitação.

A quantificação das afluências pluviais a uma rede separativa doméstica pode ser efectuada, através de monitorização, comparando caudais registados, num mesmo local, em tempo seco e em tempo chuvoso.

No caso de alguns grandes sistemas de drenagem de águas residuais operados por empresas do Grupo Águas de Portugal, em que se dispõe de medições de caudal, a informação disponível aponta para valores de contribuição pluvial directa anual (excluindo infiltração) entre 20 a 30 % do caudal médio de água residual doméstica. Esses valores podem constituir referências a considerar no âmbito de futuros estudos e projectos.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DO CAPÍTULO 3

Associação Portuguesa de Distribuidores de Água (APDA) – Água, quem é quem. Suplementaria. Lisboa. Portugal, 1999.

American Society of Civil Engineers and Water Pollution Control Federation (ASCE e WPCF)– Gravity Sanitary Sewer Design and Construction. Manuals and Reports on Engineering Practice-no.60, ASCE, New York, 1982.

Butler D.; Davies, J.W. – Urban Drainage. E&FN Spon, 2000.

Diário da República – Regulamento geral de sistemas públicos e prediais de distribuição de água e de drenagem de águas residuais, Diário da República, Série 1-B, N.º 194/95, de 23 de Agosto, 1995.

INAG – Plano Nacional da Água – Parte 1 – Enquadramento e contextualização. Volume II – Caracterização e diagnóstico da situação dos recursos hídricos. Usos, consumos e necessidades de água. Versão de Trabalho. Abril de 2001.

Matos – Sistemas de drenagem e destino final de águas residuais e pluviais – origem e quantificação de águas residuais comunitárias. Curso de formação em Tecnologias de Engenharia Sanitária no âmbito da Gestão Autárquica. FJE, 1988.

Matos, R.; Matos, J. – Requisitos e Especificações Técnicas para Elaboração de Projectos para o Grupo Águas de Portugal, SGPS – Águas Residuais. Doc.1 – Dados Base, pp 1-16, AdP, Lisboa, 2002.

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