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 MELLO, Marco Antonio da Silva & VOGEL, Arno Livro: GENTE DAS AREIAS: História, meio ambiente e sociedade no litoral brasileiro Maricá-RJ 1975-1995 ( versão preliminar ) I - INTRODUÇÃO A Pes quisa: Busca, Encontro e Vici ssitudes do caminho “Possa quem procura seguir até que encontre. Tendo encontrado, maravilhar-se. Maravilhado, reinará. Tendo reinado, repousará, finalmente”. Clemente de Alexandria

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MELLO, Marco Antonio da Silva & VOGEL, Arno

Livro: GENTE DAS AREIAS: História, meio ambiente e sociedade no litoralbrasileiro Maricá-RJ 1975-1995 (versão preliminar )

I - INTRODUÇÃO

A Pesquisa: Busca, Encontro e Vicissitudes do caminho

“Possa quem procura seguir até que encontre. Tendo encontrado,maravilhar-se. Maravilhado, reinará. Tendo reinado, repousará,finalmente”.

Clemente de Alexandria

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1. A Grande Mortandade

O ano de 1975 foi trágico para Maricá. Aos vinte e oito de agosto, fria manhã de

inverno, a lagoa despertou coberta de peixes mortos. Quando o sol terminou de dissipar a névoa e

seus raios multiplicaram as reverberações prateadas em toda a superfície, como se esta não fosse

mais do que um imenso espelho estilhaçado, os pescadores tiveram a certeza de que o espectro da

fome tinha começado a rondar.

Não se enganavam. Poucos dias depois a situação era calamitosa. Os jornais do

Rio de Janeiro e Niterói mencionaram armazéns saqueados. A administração do Município apelou

ao Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) e à Fundação Estadual de Engenharia

do Meio Ambiente (FEEMA). Os próprios pescadores fizeram um abaixo assinado que entregaram

à Colônia Z-7, sediada em Itaipú (Niterói) solicitando providências urgentes. Esse pedido de

socorro foi encaminhado à Federação das Colônias de Pescadores do Estado do Rio de Janeiro que,por sua vez, resolveu dirigir-se à Secretaria Estadual de Agricultura e Abastecimento onde

funcionava, em convênio com o Ministério da Agricultura, o Programa de Assistência à Pesca

Artesanal (Pescart-RJ).

O meu encontro com Maricá deu-se, então, por motivos profissionais, pois

integrava a equipe destacada pelo Pescart para avaliar a extensão e os efeitos da grande mortandade

de peixes nas aldeias de pescadores situadas na orla da Lagoa.

O grupo-tarefa, composto por cerca de quinze pessoas, compreendia geógrafos,agrônomos, veterinários, assistentes sociais, sociólogos e antropólogos1. Tratava-se de uma equipe

constituída há pouco mais de seis meses e treinada sob a minha supervisão. Esta era, dada a

premência da crise, sua primeira oportunidade de ação conjunta. As grandes linhas dessa

intervenção merecem relato, nem tanto pelos seus efeitos, mas por tudo que nos permitiu descobrir

a respeito da pesca, dos pescadores e de suas lagoas.

1.1 Crônica de uma intervenção fracassada

O cheiro forte de toneladas de peixe em vias de apodrecer impregnava toda aregião de Maricá. O ambiente era sombrio. A consciência da tragédia encontrava-se estampada na

face de cada qual, quando chegamos à localidade de São José do Imbassaí, na manhã de uma sexta-

feira, seis de setembro, véspera do Feriado Nacional, e percebemos, de imediato, que era necessário

fazer com urgência um censo da população diretamente afetada pelo desastre.

1 Dos antropólogos, Elina da Fonte Pessanha (1977) e Roberto Kant de Lima (1978) viriam, mais tarde, adedicar suas teses de Mestrado a temas relacionados com a pesca na praia de Itaipú, Niterói/RJ.

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A rapidez desse levantamento dependeria do prazo em que a notícia de nossa

presença e objetivos pudesse alcançar os diversos assentamentos da lagoa. Esta era nossa grande

preocupação quando nos reunimos diante de um velho armazém de São José do Imbassaí.

Enquanto pensávamos no caso, ouvimos de um dos presentes que o interventor da

Colônia Z-7 estava convocando todos os pescadores de Maricá, a comparecer aos postos do

Pescart/RJ. Para tanto, valia-se de programa radiofônico com larga audiência, sobretudo no interior

do Estado.

O problema ficava, assim, em parte resolvido. Mas, além de não nos fiarmos

inteiramente no rádio, tínhamos necessidade de distribuir o grupo de técnicos pelos povoados que,

segundo indicações locais, melhor se prestassem à realização do levantamento. Com esse intuito,

mantive diálogo com um pescador e, ali mesmo, em frente ao armazém, começou a esboçar-se, no

chão, o mapeamento das aldeias e sua localização no perímetro das diferentes lagoas queconcorrem para formar o sistema lagunar. Outro pescador aproximou-se e os dois começaram a

desfiar um rosário de nomes de lugares. Como não os conhecesse, hesitava em plotá-los na

improvisada carta topográfica. Diante disso, um deles esboçou com rapidez todos os contornos e

meandros do conjunto. As referências foram sendo assinaladas, sem titubear, por gordos pontos

feitos com uma vareta. A boa disposição dos instrutores, permitiu-me convencê-los a passarem a

limpo o desenho, numa folha de caderno que lhes forneci com essa finalidade.

Fiquei ali de cócoras alguns minutos, conversando. Enquanto isso, um colega, ia tomando

providências, baseado nas informações que os dois pescadores, com o auxílio do grupo que se

formara, iam fornecendo. A primeira delas foi sugerir o envio de mensageiros, que a pé, de

bicicleta, ou em suas canoas, deveriam levar os detalhes da nossa convocatória aos lugares

escolhidos, o que foi feito com bastante presteza pelos próprios pescadores. A segunda medida foi a

imediata instalação dos postos de atendimento improvisados nas aldeias cuja situação tornara

propícias aos procedimentos do censo populacional por grupo doméstico atingido. Apesar das

precauções tomadas desde o início, no entanto, isto foi mais difícil do que parecia à primeira vista.

Embora todos os pescadores da região sofressem os efeitos desagregadores da mortandade dospeixes, os grupos dos diferentes povoados pareciam não ver a situação sob o mesmo ângulo. A

avaliação que faziam buscava estabelecer o que realmente tinha sido afetado pelo evento. Assim

começaram a se evidenciar as linhas de clivagem do sistema de relações. Para São José do

Imbassaí, por exemplo, Ponta Negra não deveria ser incluída nas nossas previsões de distribuição

emergencial de gêneros de primeira necessidade. De modo a evitar os desentendimentos resultantes

dessas dissensões internas, em cada posto, moradores do lugar deveriam ajudar no cadastramento.

O controle do registro estava, pois, afeto aos próprios atores.

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Durante a manhã, e grande parte da tarde, enquanto nossos técnicos faziam o

levantamento projetado, percorri as margens da lagoa, com um companheiro de equipe, procurando

avaliar a extensão dos danos causados2. Á medida que íamos seguindo, de um lugar para outro,

ouvíamos as versões locais sobre o desastre. Sequer uma delas deixava de referir-se à barra de

emergência. Segundo o consenso geral, não se podendo mais abri-la, pois, no lugar apropriado

para tanto a Prefeitura municipal construíra uma estrada, tornava-se impossível renovar as águas da

lagoa. A esse fato se atribuía não só a escassez do peixe em tempos recentes, como também a atual

mortandade que acabara por aniquilar o pouco restante.

Os comentários sobre a conjuntura da pesca na lagoa traduziam um profundo

desalento. A maioria dos pescadores acreditava não poder resistir por muito mais tempo às

investidas da especulação imobiliária, que vinha num crescendo, e à qual estaria vinculado o

advento da referida estrada.Um velho pescador, visivelmente emocionado, mencionou a batalha judicial que

vinham travando, há quase três décadas, contra Lúcio Thomé Feteira, poderoso empresário

associado a um grande cacique da política fluminense, diziam, e que reivindicava a propriedade de

toda a área compreendida pelos assentamentos pesqueiros

Outro pescador fez um relato profuso da sua vida nos últimos meses. Há tempo

não conseguia mais arrancar o parco sustento de sua família às águas da lagoa de Maricá. Por isso

tinha sido forçado a pescar na lagoa de Piratininga, em Niterói. E como ele, muitos outros, levando

suas canoas e redes e, com elas, a esperança de sobreviver. Logo, no entanto, surgiram conflitos

com os confrades desta lagoa. O resultado foram redes rasgadas, insultos e ameaças de ambas as

partes. Com isso espalhou-se a notícia da penúria de Maricá3 

O próprio fato dessa migração, que de resto não ficou limitada a Piratininga, pois

outros pescadores foram tentar a sorte ainda mais longe em Saquarema e até na Lagoa Rodrigo de

Freitas, no Rio de Janeiro, teria valido como o prenúncio de um inverno de fome na restinga de

Maricá. Mas disso sabiam apenas aqueles homens desgarrados dormitando à beira de lagoas

estranhas, falando com tristeza dos dias passados longe de casa -”jogados pelo mato, largados comobicho”

2 Tratava-se de Roberto Kant de Lima, também ele executor de projetos do PESCART/RJ.

3 O incidente foi registrado no campo por Elina da Fonte Pessanha (1977:66): “Um fato ocorrido durantenosso trabalho em Itaipu, no fim do inverno de 1975, exemplifica bem isso. Alguns pescadores domunicípio vizinho de Maricá, premidos pela ausência de peixes nas assoreadas lagoas locais, colocaramredes de emalhar na lagoa de Piratininga. Os pescadores de Itaipu e Piratininga, correndo o risco de serempunidos pelo órgão fiscalizador oficial, retiraram as redes durante a madrugada e abandonaram-nas navaranda do prédio da Colônia, em Itaipu (que tem jurisdição sobre Maricá), com um bilhete em queameaçavam de destruição as próximas redes encontradas. Manifestaram, assim, sua reação ao uso da lagoa -

aparentemente ociosa, pois há pouquíssimos pescadores em Piratininga e poucos são os de Itaipu que lápescam, eventualmente, mas que, em virtude do próprio assoreamento, oferece fracas oportunidades depesca - por profissionais como eles, membros da própria Colônia, mas estranhos ao grupo que ali atua”.

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Seus ressentimentos tinham, no entanto, uma origem ainda mais longínqua no

tempo. Remontavam à época em que, graças a uma manobra do governo estadual, gente de

Guarapina, sem levar em conta a situação dos demais aldeamentos de pescadores da lagoa de

Maricá, tinha apoiado a abertura do canal de Ponta Negra, obra crítica do projeto de saneamento

dessa região da baixada litorânea fluminense, no final dos anos quarenta

Aos seus olhos, a barra permanente constituída pelo canal de Ponta Negra,

estava associada ao fracasso da pesca na região. Quando os pescadores de Guaratiba, Barra de

Maricá, São José do Imbassaí, Praia Grande, Saco da Lama e Zacarias, se referiam a esse fato,

constatavam com amargura que, por terem cedido aos desejos de seus vizinhos, haviam se tornado

cúmplices da decadência da pesca e, portanto, do seu próprio empobrecimento. O canal tinha sido

para eles um autêntico presente de grego. Nos termos do modo de vida da região, foi uma escolha

desastrosa para todos, afetando até mesmo os que mais tinham esperado beneficiar-se com a suaabertura. Recebido, inicialmente, como uma dádiva, esse investimento trouxe consigo a discórdia,

envenenando as relações entre os povoados, acentuando diferenças, suscitando acusações e

disseminando, entre todos, um clima de mútua suspeição, cujos indícios encontramos por toda a

parte

O declínio da pesca em Maricá começara, pois, há muitos anos atrás. Para

convencer-se disso bastava olhar os monturos malcheirosos que começaram a se juntar nas

margens da lagoa. Neles não se encontraria qualquer vestígio da passada glória pesqueira da região.

Não havia camarões, robalos, paratis, corvinas, tainhas, ou exemplares do enorme bagre-chora 4. Ao

invés disso, amontoavam-se os acarás, as savelhas, os bagres-veludo e os mandís - todas elas

espécies de pouco ou nenhum valor. Até o começo da tarde o cadastramento, iniciado pela manhã,

fora concluído. Seus resultados haveriam de mostrar que as maiores concentrações de pescadores

da região estavam nas localidades de Zacarias, Barra de Maricá e Guaratiba (191 pescadores, com

165 dependentes) e do povoado de Araçatiba (10 pescadores com 52 dependentes). O censo

conseguiu, assim, atingir 240 famílias, num total de 1.305 pessoas, número que compreendia os

240 chefes de família e seus 1.065 dependentes, - com uma média de aproximadamente 05

dependentes por unidade doméstica

Novamente reunido, o grupo-tarefa assistiu, então, a abertura da barra de

emergência. Junto ao cômoro do mar, uma escavadeira procedia à abertura do canal. Repórteres,

auxiliares de gabinete e engenheiros; o Prefeito de Maricá, bem como alguns vereadores, além dos

4 Tachysurus grandicassis (Val.), também conhecido como bagre-branco.

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simples curiosos de todos os eventos públicos, acompanhavam a iniciativa, que contava com a

presença do próprio Governador.5 

Os pescadores, em pequenos grupos, presenciavam toda essa movimentação.

Bastava observar-lhes a postura, para perceber sua descrença que acabou, também, por se traduzir

em palavras. Céticos, limitaram-se, inicialmente, a murmurar. De súbito, dois deles, encorajados

por técnicos do grupo-tarefa, aproximaram-se e, do alto da duna, fizeram abertamente suas

ponderações. Aquela barra de nada adiantaria, afirmaram. Depois dela continuariam como antes,

sem poder tirar sustento da lagoa, ainda por muito tempo. O escoadouro era pequeno demais e não

teria nenhuma eficácia. Nesse ponto o porta-voz foi secundado pelo então Coordenador do

Programa de Assistência à Pesca Artesanal/RJ que se estendeu sobre o assunto. Cavado na duna e

de dimensões insuficientes, o canal não tardaria a ser obstruído pelo vento ou pela própria

arrebentação. Não bastava estabelecer uma comunicação da lagoa com o mar. Uma abertura debarra era muito mais

O diálogo subseqüente que se seguiu foi áspero. O Governador, sentindo-se

atacado, exigiu do técnico que declinasse as qualificações em que se apoiava sua interferência. Ao

saber de quem se tratava, recomendou ao interlocutor que se restringisse à sua área de competência.

Não se contendo, o técnico replicou que, além de coordenar o Programa, era geógrafo e nessa

condição julgava seu comentário pertinente6. O chefe do executivo fluminense, considerando-o

recalcitrante, afastou-se do local sem lhe dar mais ouvidos, recomendando, porém, a um oficial de

seu Gabinete registrar a ocorrência do que lhe pareceu uma provocação

Enquanto a escavadeira mecânica e o trator terminavam seu trabalho, os

caminhões da limpeza pública, um após outro, iam recolhendo toneladas de peixe em estado de

putrefação das margens da lagoa, para despejá-las no aterro sanitário do Município de Maricá. A

tarde começava a declinar quando se completou a abertura da barra de emergência. Um filete de

água da lagoa escorreu penosamente para o mar. Satisfeita, a comitiva do governo considerou a

tarefa encerrada e deixou Maricá

Em companhia de alguns pescadores, seguimos para um pequeno armazém, entreBarra de Maricá e Zacarias, onde os comentários sobre o acontecimento prosseguiram ainda por

cerca de duas horas. A tônica foi unanime: o que se tinha visto havia sido uma farsa. Para acentuar

esse fato nossos interlocutores descreviam com ênfase e detalhes, a abertura de barra como ela

5 Tratava-se do Alte. Faria Lima, nomeado pelo Pres. Geisel para governar o Estado do Rio de Janeirodurante o período correspondente ao primeiro mandato decorrido sob a égide da recente fusão com o antigoEstado da Guanabara (1974-1978).6 Dario Castelo, além de coordenar a equipe técnica do Pescart no Rio de Janeiro, era professor do Institutode Geo-Ciências da Universidade Federal Fluminense, posição que ocupa ainda hoje.

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deveria ser. Citavam o exemplo de barras anteriores, rememorando episódios, datas, dimensões e

efeitos

Quanto à barra cuja abertura tínhamos acabado de presenciar, profetizavam sua

total inutilidade. Justificavam sua omissão em face do trabalho, anunciando o próximo fechamento

do canal, que tinha sido aberto sem levar em conta seus conhecimentos e ponderações

Ao cair da noite, também nós deixamos Maricá. Não sem antes voltar ao local

onde se tinham desenrolado os acontecimentos daquela tarde. Vimos, então, que a barra estava em

fase final de assoreamento. Dentro de poucas horas estaria completamente fechada, interrompendo-

se a precária comunicação entre o mar e a lagoa, que há pouco tinha dado ao Governo o sentimento

de ter cumprido sua missão. Nesse momento, porém, ainda não podíamos antecipar as

conseqüências que toda essa farsa - pois, sem dúvida, foi esta a natureza do evento de que

havíamos participado - teria no futuro, tanto para os pescadores de Maricá quanto para nós mesmosenquanto técnicos do Governo.

2. O Encontro Etnográfico

O saldo disso tudo, para mim, foi um ano de dificuldades. Vi-me constrangido a

deixar o Pescart7. Ainda no primeiro semestre de 1976, perdi também o meu posto na Universidade

Federal Fluminense8. Desempregado, com mulher grávida e uma filha de colo, sobrevivi graças à

minguada, porém providencial bolsa de iniciação científica, que recebia como estagiário do Museu

Nacional, onde passei a trabalhar.9

.

O inicio do curso de mestrado, nesse mesmo ano, dentro do próprio Museu

Nacional, acabaria por levar-me ao Brasil Central, para pesquisas entre os Waurá, no âmbito do

“Projeto Estudo Comparado de Rituais no Alto e Médio Xingú”, durante o ano de 197710. Ao

retornar do meu segundo período de trabalho-de-campo, em março de 1978, soube que não havia

verba suficiente para a continuidade do projeto, apenas iniciado.

Nesse ínterim, embora absorvido pela etnografia alto-xinguana e pelo aprendizado

dos princípios elementares da língua Waurá, não cheguei a desligar-me inteiramente da pesca e de

7 A exoneração do Coordenador do Programa (executor do convênio estabelecido entre o Ministério daAgricultura e a Secretaria Estadual de Agricultura e Abastecimento/RJ) tornou insustentável a nossa posiçãocomo técnicos, submetendo-nos a todo tipo de chicanas, entre as quais o preenchimento constante de fichasdo Serviço Nacional de Informações (SNI).8 Meu contrato de auxiliar-de-ensino fora alterado. Passei a professor-colaborador. Em seguida, este contratofoi interrompido por motivos político- ideológicos, a exemplo do que aconteceu com o de outros colegasnum verdadeiro processo de desarticulação do corpo docente do Departamento de Ciências Sociais da UFF.9 Com os professores Luis de Castro Faria e Roberto Agusto da Matta, iniciei o estágio como bolsista ,do

CNPq, graças à compreensão e generosidade do Coordenador do PPGAS, Prof. Roberto A. da Matta.10 Coordenado pelos professores Anthony Seeger e Roberto A. da Matta. 

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temas relativos ao litoral fluminense11. Talvez por esse motivo, o acaso tivesse voltado a sorrir-me,

em 1978.

A Secretaria Estadual de Educação e Cultura/RJ vinha-se interessando, há algum

tempo, pelos “aspectos do folclore e da cultura popular” na baixada litorânea. A área focalizada,

naquela ocasião, era a Região dos Lagos. Assim, bastou um encontro fortuito com a responsável

pela implementação de pequenos projetos de pesquisa, que visavam documentar esse tipo de

manifestação, para me colocar, outra vez, em contato com o assunto da pesca12.

Em fins de julho de 1978, retornei, pois, a Maricá, encarregado de executar o

projeto “Pescadores: suas técnicas e seu artesanato”, que deveria contemplar, também, o

conhecimento naturalístico associado às referidas técnicas e artesanato. Prazo de realização - dois

meses13.

Como já conhecia a área, sabia que o desempenho das atividades pesqueiras no

sistema lagunar dependia da abertura das chamadas barras-de-emergência, cuja interdição era, pois,

identificada como um grave problema para o ofício da pesca. Por isso, tinha em mente sistematizar

o máximo de informações sobre esse procedimento de manejo do ecossistema lagunar. Imaginava

recolher, não só dados técnicos, mas inquirir, também, do significado que essas aberturas tinham,

segundo o ponto de vista dos diferentes aldeamentos de pescadores, sobretudo os da restinga.

Com essa perspectiva parti para o campo. Fui a Maricá, onde cheguei no começo

de um dia invernal. Procurei a Prefeitura a fim de obter informações sobre a pesca na região. Comoera, ainda, muito cedo, resolvi andar pelo mercado de peixe, situado logo em frente. Lá conheci

“seu” Henrique, aliás, “Poeira”, como este velho pescador era também chamado.

“Encontro trivial, de certo modo, como são, aparentemente todos os encontros cujo

verdadeiro significado só se revelará mais tarde, no tecido de suas implicações...”14. Percebo justas

as palavras de Alejo Carpentier, quando considero, hoje, o evento, pois este foi, verdadeiramente,

decisivo para pesquisa, conforme o tempo se encarregaria de demonstrar15.

11 Sao desse período a palestra "Muxuango e Mocorongo: a construção de dois tipos sociais fluminense", noCurso “RJ - O Homem e a Terra” (INDC-UFF); e o trabalho de curso "A Itaipú dos Companheiros"(Problemas de Análise Etnológica - Rituais e Simbolismo. Prof. Roberto A. da Matta - PPGAS/MuseuNacional-UFRJ).12 Tratava-se da professora e musicóloga Maria de Cáscia Nascimento Frade.13 O órgão financiador era a Divisão de Folclore do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC) doDepartamento de Cultura da SEEC/RJ.14 Carpentier, 1975:18.15 Se o encontro com Henrique teve um quê de serendipity, a escolha de Zacarias fôra uma conseqüência da

enquete feita no mercado. Desta resultara que, dentre as comunidades de pescadores, Zacarias abrigava umgrupo inteiramente voltado para a pesca lagunar, além disso, dos mais numerosos, e, neste momento,submetido à pressão crescente do processo de urbanização, na restinga.

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Através de “seu” Henrique fui ter, no dia seguinte, a um povoado da restinga, à

beira da Lagoa de Maricá, a maior das sete que, interconectadas, formam o sistema lagunar do

Município.

Escandido entre a Ponta da Pedra e a Ponta do Capim, o casario de Zacarias

amoldava-se à vegetação da restinga. A maioria absoluta das casas olhava para a lagoa, de costas

para o mar, de cujos ventos fortes se protegiam, aninhadas por detrás dos cômoros da restinga. Era

preciso aprender a distinguir nessa paisagem o lugar dos homens. Num primeiro instante custei a

reconhecer as quarenta e uma (41) casas que formavam o aldeamento, tal era o modo pelo qual se

engastavam na restinga, a ponto de quase se confundirem com ela.

Durante não mais de quinze dias fui hóspede no rancho de “seu” Henrique. Um

tempo relativamente curto, porém muito denso, quando estimo, agora, a intensidade e a

produtividade do trabalho realizado nesse período.

O ter permanecido nesse rancho-de-pesca pode ser considerado um incidente do

trabalho-de-campo. Mais precisamente uma conseqüência da situação singular de meu anfitrião.

Separado de sua mulher Brígida, que eu só viria a conhecer em outra ocasião, Henrique morava no

rancho. Como seu hóspede, também eu passei a habitá-lo e, desse modo, fiquei de imediato

envolvido pelas atividades e ritmos da pesca.

Do rancho podia presenciar as saídas e chegadas das canoas; e, com algum

esfôrço e as necessárias explicações de Henrique, vislumbrar, à distância, as fainas das pescarias.Além disso, no entanto, toda a atmosfera do rancho respirava pesca. O fato de não mais pescar não

tornava “Poeira” menos interessado no assunto. Ao contrário, imerso ainda em suas rotinas de

dono-de-pescaria e estimulado pelas minhas perguntas sobre técnicas e conhecimentos necessários

à pesca, discorria longa e animadamente sobre esses temas.

Embora lhes faltasse uma certa formalização, como no caso dos “seminários

teológicos” de Turner com Muchona e Winston16, ou das entrevistas de Griaule com Ogotemmeli17,

nossas conversações tiveram o mesmo caráter pedagógico. Todos os tópicos de algum modo

relevantes para o assunto foram objeto de exposições prolongadas. Não havia hora certa para esses

diálogos instrutivos. Quando Henrique se dedicava a alguma tarefa relacionada com a pescaria

tratava, ao mesmo tempo, de expor, circunstanciadamente, as informações pertinentes à mesma.

16 Cf. Victor W. Turner "Muchona the Hornet, Interpreter of Religion" (Northern Rodhesia), in Casagrande

(ed.) 1964:333-555).17 Cf. Marcel Griaule, Dieu D`Eau, entretiens avec Ogotemmeli (1966).

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Valia-se do mesmo discurso processual18 quando me surpreendia envolvido com algum afazer

vinculado à atividade pesqueira.

O ponto alto dessa iniciação, entretanto, eram os serões no rancho. Às vezes, em

companhia de outros (Benjamin, Marcos), ou, quando já era mais tarde, só nós dois, a conversa

estendia-se, noite afora e madrugada adentro. Nessas ocasiões, estimulados pelo tema (e pela

cachaça), os espíritos se animavam. Sobretudo “Poeira”, na sua condição de pescador emérito,

discorria, então, com argúcia, vivacidade e abrangência sobre a lagoa, as estações do ano, os ventos

e as marés, os ciclos da lua, os peixes e as pescarias, os petrechos do ofício, as constelações do

firmamento, a restinga, as demais lagoas, os outros assentamentos pesqueiros, as casas do povoado,

as relações dos habitantes, seus parentescos, conflitos, “questões” e costumes... e assim por diante,

interminávelmente. Creio, vez por outra, ter caído no sono, enquanto meu anfitrião ainda falava.

Dentre os temas preferidos, voltava, constantemente, um, que já tinha despertadominha atenção na oportunidade do primeiro encontro - a abertura da barra. Só que, agora, vinha

associado a uma outra dimensão, não menos significativa, de suas vidas - a moradia.

Para os habitantes de Zacarias, a forma corrente de atestar sua vinculação àquela

área da restinga, consistia na referência obrigatória à casa. Não a qualquer casa, mas a algumas em

particular, que ancoravam no tempo o pequeno povoado. Essas casas, enquanto marcos históricos

de ocupação da restinga, pareciam legitimar a presença, na Praia de Zacarias, de toda a

comunidade.

Assim, a memória do povoado podia ser reconstituída com uma simples alusão ao

copiar de uma casa centenária. O desenvolvimento de um ciclo doméstico reificava-se nos

cômodos sob a égide da mesma cumeeira. As casas, portanto, contavam uma história. A partir delas

era possível remontar no tempo, desfiar o rosário das gerações, recuperar as alianças do parentesco,

rememorar nomes, datas, episódios e querelas.

Diante disso, minha atenção foi se deslocando, pouco a pouco, para a densidade do

sentido que meus interlocutores atribuiam a acontecimentos tais como a abertura de uma barra, a

construção de uma casa (ou sua demolição), a sucessão de uma herança e, com ela, a multiplicação

ou dispersão de um patrimônio.

E quanto às motivações dessas eventualidades, sempre dramáticas, não era

necessário procurá-las muito longe. Estavam logo ali sob a forma de uma estrada que, abrindo

caminho no friso litorâneo, progredia arrasando a vegetação da restinga e, quando necessário,

passando por cima das casas, como se fosse difícil separá-las da paisagem.

18 Discurso descritivo que procede por etapas, articulando-as, em seqüência, para dar a idéia de um todo queé, por sua vez, um procedimento (técnico, ritual, etc).

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Não era, pois, sem razão que, nos fins de tarde, quando as canoas estavam de volta,

Henrique e os seus companheiros e amigos retornavam, sempre, ao problema da estrada, das casas 

e da barra.

Nessas ocasiões, pareciam fazer questão da minha presença. Insistiam em ver

registradas todas as suas observações sobre esses temas. Percebi, então, que não estavam apenas

conversando comigo. O tempo todo formulavam denúncias. Lembro até que de uma feita cheguei a

desligar o gravador, temendo complicar a nossa situação pelo simples registro de suas queixas.

Meu temor não era infundado. Poucos dias antes, um oficial de justiça,

acompanhado de policiais militares, cometera atos de violência no povoado. Casas estavam sob

ameaça de demolição e seus moradores sob a mira de armas de fogo. Tais arbitrariedades

contavam, segundo eles, com a conivência da administração municipal.

A nuvem de poeira levantada pelas máquinas, que trabalhavam no extremo do

assentamento, junto à Ponta da Pedra, impregnava de barro as roupas nos varais. Tensão e

desalento haviam tomado conta do lugar. Sobre quaisquer veleidades de protesto, pesava a pecha

da subversão. E foi com esse fantasma, tão comum naquela época, que precisei conviver, durante

todos os dias desse segundo encontro. Apesar disso, posso reconhecê-lo, para além de todos os

constrangimentos políticos, como um encontro propriamente etnográfico. Nessa condição

representou a primeira etapa do meu trabalho-de-campo e serviu como ponto de partida para todos

os encontros subseqüentes. Por isso, vale a pena ocupar-se dele, ainda que de forma esquemática.

2.1 Quinze dias com Henrique

O período que passei em Maricá, no inverno de 1978, viria a ser o primeiro de uma

série que, com eventuais interrupções, cobriu, aproximadamente, uma década de trabalho-de-

campo.

Apesar da repetição dos encontros, que variaram quanto ao ritmo e à intensidade,

este primeiro continua sendo, ainda hoje, aquele do qual conservo a memória mais nítida e a mais

indelével das impressões. Vejo-o, neste sentido, como o encontro etnográfico por excelência. Nãoapenas quando o considero em contraste com o contato de 1975, mas também porque detecto nele,

de forma extraordinariamente densa, todas as características que permitem qualificá-lo como tal.

Quanto ao primeiro ponto, isto é, à distinção entre o encontro político e o encontro

etnográfico, convém rememorá-los, em suas linhas de fôrça:

1975

a)  Em função do trabalho que exercia na época, fui levado, juntamente com

outros, a tomar conhecimento de um drama, que se desenrolava, então, noentorno das lagoas de Maricá;

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b)  nas margens destas, encontramos enormes quantidades de peixes mortos, em

estado de putrefação, tendo perdido, pois, sua qualidade característica de

pescado (fresco);

c)  a impossibilidade de exercer seu ofício, dada a situação, levou os pescadores a

se aglutinarem em diversos locais, no perímetro das lagoas, independentes de

sua pertinência a este ou àquele povoado;

d)  em cada uma dessas reuniões, eram debatidos três temas inextricavelmente

relacionados uns aos outros - a lagoa; a barra e a estrada (esta, associada à

“Companhia”, entidade que só compreenderia mais tarde);

1978

a)  Em função de um projeto de pesquisa, fui colher, em Maricá, elementos parauma etnografia da pesca, na Região dos Lagos;

b)  no mercado Municipal, junto às bancas de peixe fresco, encontrei um pescador,

que, com seus sessenta e oito anos de idade, passava por um expert no ofício:

“seu” Henrique;

c)  nesse rancho, todas as conversas e discussões, das quais participavam,

também, outros membros desse mesmo assentamento, giravam em torno de

quatro temas fundamentais - a lagoa; a barra; a casa e a estrada (a

“Companhia”).

Os dois encontros tiveram, pois, como origem o meu trabalho. Uma vez como

agente de um programa de governo, a outra como pesquisador. Essa mudança de posição levou a

distintas identidades no campo.

O primeiro encontro ocorreu entre um funcionário público e um pescador

genérico. Nessa relação vemos, de um lado o poder, do outro a carência. O segundo encontro pôs,

face a face, um pesquisador e um conhecedor, invertendo-se as posições relativas do poder e da

carência. Esta última estava, agora, do meu lado. Era eu quem precisava das informações que outro,

um pescador específico, detinha. A este cabia, portanto, decidir sobre a partilha de seu saber.

Essa inversão, de um encontro para o outro, parece significativa. No primeiro, nem

a carência pôde ser resolvida pelo poder, nem este, na sua vertente técnico-burocrática, foi capaz de

alcançar suas demandas implícitas. Nosso esforço de levar a ação governamental a pautar-se pelas

manifestações explícitas do saber dos pescadores, teve conseqüências desastrosas.

Desastrosas, mas certamente não imprevisíveis. A razão técnica é monológica e

legiferante. Pouco lhe interessa o que os demais envolvidos possam pensar do problema que intenta

resolver. E, de acordo com sua perspectiva, o problema de Maricá era simples e passível de uma

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solução igualmente simples - uma lagoa estagnada, onde os peixes morrem porque a água não se

renova, precisa abrir-se por meio de um sangradouro. Para fazê-lo não era preciso mais do que uma

escavadeira. Levar em conta uma multiplicidade de aspectos técnico-naturalísticos e sociológicos,

considerados relevantes pelos pescadores para uma abertura de barra, significava complicar a

intervenção em nome de um conhecimento desqualificado por “empírico”, “tradicional”,

“impreciso” e “supersticioso”. E, assim fazendo, prolongava-se o escândalo dos peixes

apodrecidos, do mau cheiro e da possível contaminação das águas, com grave prejuízo para o

turismo e, através dele, para a política e as finanças locais.

Nosso erro, nesse contexto, foi a tentativa de instaurar uma relação dialógica,

incorporando os argumentos dos diferentes sujeitos políticos, para, a partir deles, chegar a uma

pauta convincente de soluções e intervenções. Neste sentido, o equivoco fundamental era agir como

se o Pescart não fôsse um aparelho de estado e sim uma instituição de pesquisa.

19

O problemaestava na ambigüidade do orgão, que envolvia quadros acadêmicos, tendo mesmo financiado

pesquisas de alguns dentre eles.20 Nossa “ingenuidade” levou-nos a extrapolar o âmbito que a ação

governamental nos havia destinado. O problema da lagoa era da alçada dos engenheiros, o nosso

era “evitar possíveis tumultos”, distribuindo víveres!

Disso tudo resultou, no entanto, um fato positivo. O aspecto dramático dos

acontecimentos, acentuados pela farsa da abertura-da-barra, serviram para dar ao meu projeto de

1978 um foco e um campo de questões definido.

Ao chegar em Zacarias, cerca de três anos depois, estava sozinho. Embora

portador de um vínculo com a esfera governamental, minha identidade ficou sendo a de professor.

Apesar de suas virtualidades favoráveis, esta não conseguiu poupar-me, inteiramente, de uma certa

desconfiança reinante no povoado. O fato de ser hóspede de “seu” Henrique, entretanto, contornou

essa dificuldade, em pouco tempo.

Através dele o mundo genérico da pesca lagunar encarnou-se num assentamento

distinto, onde os pescadores passaram a ter nomes, fisionomias, temperamentos e histórias,

igualmente distintos. Ainda que provisoriamente, Zacarias tornava-se minha morada, dando-me,não só uma inserção na realidade cotidiana de uma aldeia de pescadores, mas também um ponto de

19 Como avisadamente observara o professor Luis de Castro Faria, convidado a ministrar, juntamente com os professores Otávio A. Velho, Edson de Oliveira Nunes, Wagner Neves Rocha,entre outros, o curso de treinamento dos técnicos recém admitidos pelo Programa de Assistênciaà Pesca Artesanal. 

20 Como por exemplo, a de Túlio Persio Maranhão, da qual resultou sua dissertação de Mestrado(Maranhão, 1975). 

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vista dentro do sistema, diverso daquele eventualmente proporcionado por Barra de Maricá,

Guaratiba ou Ponta Negra, por exemplo21.

Como pesquisador não podia desejar sorte melhor do que a proporcionada pela

hospitalidade de Henrique. À maneira dos antropólogos fui, no início, um hóspede auto-convidado,

desses que se insinuam com a intenção de achar um pouso e ir ficando. Isso, no entanto, só foi

possível porque Henrique se dispôs a atender minhas expectativas, convidando-me a permanecer

no rancho.

Sua hospitalidade ofereceu-me não só um abrigo, comida e bebida, mas, ainda,

aquilo de que mais carecia - uma paciente e autorizada socialização no universo onde pretendia

desenvolver a pesquisa. E, neste sentido, nenhum antropólogo poderia desejar um interlocutor mais

qualificado.

Henrique era um dos mais velhos e prestigiosos pescadores de Zacarias. Tinha

uma memória prodigiosa, uma trajetória profissional exemplar, uma vivacidade intelectual

extraordinária, a serviço da qual mobilizava seus notáveis dons de observador e narrador, que

combinava com apurado senso pedagógico.

Sua virtude como informante, porém, não derivava, apenas, de suas características

pessoais. Sua peculiar inserção social era igualmente importante, neste caso. Graças ao fato de não

ter filhos, ter deixado de pescar e viver no rancho, em decorrência do seu curioso arranjo

matrimonial com Brígida, “Poeira” tinha, na Zacarias, uma posição excêntrica, que lhe dava umapercepção mais aguçada e crítica do povoado, apesar de seus vínculos morais e afetivos com o

mesmo.

Assim, cumpre-me reconhecer que, neste primeiro encontro etnográfico, Zacarias

se transformou para mim num ponto de vista, em grande parte através dos olhos e das palavras de

Henrique. Foi sua maneira de considerar as coisas e de as formular, num constante e variado fluxo

narrativo, que fez desses quinze dias passados no rancho, uma experiência radical e propriamente

etnográfica.

Com efeito, nunca deixei de me surpreender com a reiterada constatação de que,

no campo, tudo para o que minha atenção se voltaria nos anos subseqüentes, alguma vez já havia

sido abordado durante essa primeira estadia.

Ao consultar hoje o resultado dessa incursão etnográfica22, entretanto, não só

ressurge a pletora dos conteúdos, mas, junto com ela, um certo modo de tratá-los. Henrique falava

21 São estes, outros povoados pesqueiros da lagoa, do lado da restinga. Do lado oposto, "na terra firme",

havia ainda outros, como São José do Imbassaí, Araçatiba, Saco das Flores, Saco da Lama, etc.22 “A técnica e o folclore dos pescadores do Estado do Rio de Janeiro” (Mello e Rodrigues, 1978).

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das coisas desse seu mundo com encantamento. Suas descrições eram tão vivazes quanto

exaustivas. O fato de estarem motivadas por um interesse prático, no entanto, jamais tornava

enfadonha a abordagem. Como todos os narradores natos, imprimia aos temas essa tonalidade épica

que marca a tradição oral. Graças a ela, apresentava cada fenômeno, ou incidente, como uma peça

exemplar desse mundo, misturando orientações práticas, artifícios cognitivos, normas de vida e

lições de moral.

Dessa perspectiva, não posso senão descrever a natureza do seu discurso,

recorrendo às palavras de Walter Benjamin, quando afirma: “A narrativa, da maneira como

prospera longamente no círculo do trabalho artesanal - agrícola, marítimo e depois urbano - é ela

própria algo parecido a uma forma artesanal de comunicação”23. E, com isso, não me refiro apenas

à sua construção peculiar, mas, para além dela, à extensa gama de práticas que tendem a

acompanhá-la, envolvendo tanto o narrador quanto o seu ouvinte.Escutei as histórias de Henrique enquanto este desempenhava as mais diversas

tarefas, nas quais cuidava, por decisão própria ou a convite, de secundá-lo. Assim, participei do

tratamento das redes; da coleta e preparação dos materiais para esse fim; do aparelhamento e reparo

das canoas; e do manuseio, conserto e acondicionamento de todo tipo de itens da pescaria, até que,

finalmente, estivesse apto para embarcar, como “companheiro” de Benjamin (“Beco”), sobrinho e

arrendatário de uma das canoas do velho pescador. Além disso, acompanhei meu anfitrião nas suas

costumeiras excursões à restinga, durante as quais o fio da narrativa prosseguia a propósito da

multiplicidade de frutos, flôres, madeiras, raízes e de tudo em geral que merecesse alguma atenção

pelo seu caráter útil, estético ou curioso, isto é, especulativo.

Não eram, porém, apenas as tarefas manuais que suscitavam o comentário

narrativo. Bastava uma circunstância. Certa noite, por exemplo, quando já estávamos acomodados

para dormir, e o rancho às escuras, Henrique começou a dissertar sobre os ventos:

“Tá ouvindo o vento? Essa porta batendo natramela? É um nortezinho caindo. É um vento fresquinho, quandodá de noite. É bom para o pescador, como também o Leste e o

 Nordeste. Já o Sudeste, não é muito bom. Quer dizer, é ruim para  pescar de lanço  , mas não para a  rede de espera. Mas ventodanado para o peixe é o Lé-Sueste. Esse vento esconde o peixe.Traz chuva e temporal. É um quarto de vento que depende da

  parte do mar. Tem uma porção de ‘quarto de vento’, como agente trata aqui... O Sudoeste traz chuva também. Agora, o Lestee o Nordeste só trazem trovoada e relâmpago, mas chuva nãovem não. O Leste pertence ao mar mesmo; e o Norte pertence ao

 Norte mesmo; o Norte falado. O Nordeste, o Oeste e o Sudoeste,vem da parte de baixo, da terra firme, abrindo para o mar. O

 Noroeste, o ‘minuano’, cái por cima da Pedra de Inoã, é vento

23 Benjamin, 1980:62-63. Artesanal, inclusive, porque é concebida para cada ocasião e para cada auditório,sendo, pois, única, como qualquer peça da lavra do mestre-artesão.

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brabo! Vento que não sabe ventar fraco. Mas é um vento antigo, enós já estamos acostumados com ele. O Leste é manso e escurecea água. Manso para nós, aqui, atrás do combro. Lá fora é a‘lestada’ - o ‘mata-poveiro’. Cansamos de acudir eles na

 costeira  , quando dava a ‘lestada’... Aqui tem muita raça devento!” 

Dos ventos, Henrique passou, não me lembro mais como, para as luas, sempre

associadas às marés. Acho que a conversa tinha derivado para os ciclos do ano, as estações:

“O sol varia, mas a Lua é o ano todo. Ela  funciona assim: tres cheias, tres secas, tres enchendo e tressecando. No duro, ela não fica nem cheia, nem sêca. Ela fica dozehoras fora e doze horas escondida. A Lua Nova a gente nãovê,mas ela está trabalhando, só que é de dia. Ela continua - as6:00 da manhã está seca; ao meio-dia está cheia, está à pino; às6:00 da tarde está seca de novo, depois vem enchendo até a meia-

noite”.Esses excertos dão uma idéia aproximada do estilo que Henrique imprimia às suas

dissertações. Funcionam, ainda, no sentido de ilustrar o elenco temático das nossas conversas. Este

se organizava em torno de alguns centros gravitacionais. A lagoa e a pesca formavam um deles.

Outro era constituído pela casa, isto é, pelo parentesco, não apenas na sua dimensão atual, mas

também na dimensão diacrônica da genealogia; uma e outra rebatidas no espaço da moradia e da

aldeia.

Dentro do campo estruturado em torno da pesca lagunar, surgiam diferentes

subtemas, entre os quais é possível distinguir, numa hierarquia de recorrência e relevância. O

camarão é, nesse particular, o grande subtema. Apresentava-se, invariávelmente, em conexão com

o glorioso passado pesqueiro de Maricá, “nos tempos da lagoa antiga”. Logo a seguir, na escala,

parece-me situar-se a pesca-de-galho, ou “de parcé”, como preferia Henrique. Se a esta última

faltava a complexidade sociológica da pesca do camarão, sobrava-lhe, no entanto, requinte, quando

vista sob o ângulo da engenhosidade técnica e cosmológica.

O camarão apontava não só para uma espécie de época de ouro da pesca, no

Município, mas, também, para uma extensa e complexa rede de relações, envolvendo rivalidades,reciprocidades, trocas, maximização e complementaridade de atores sociais e de seus respectivos

recursos.

A pesca-de-galho remetia a uma igualmente complexa e, talvez, ainda mais

intrincada rêde de correspondências cosmográficas e cosmológicas.

Os dois outros temas maiores eram a barra e a Companhia. Ambos tão

recorrentes quanto polêmicos. Temas diretamente relacionados tanto à pesca lagunar, quanto ao

tripé casa - parentesco - genealogia. Se a presença da Companhia era uma ameaça para a casa, a

 já longa ausência das aberturas de barra punha em risco a lagoa, e com ela a pesca. Desse modo,

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os dois últimos temas relacionavam-se com os dois primeiros, revelando-se, como eles,

inseparáveis. A urbanização intentada pela Companhia, em vista do turismo, com sua estrada

litorânea, etc., inviabilizava as barras. À falta dessa comunicação com o mar, a pescaria minguava,

tornando-se incapaz de sustentar a casa. Esta, por sua vez, vitimada pelo processo de relocação

praticado, estava fadada a afastar-se da lagoa ou a desaparecer; pondo em cheque a sobrevivência

da família.

Com isso, chego aos dois últimos grandes temas desse elenco. São na verdade duas

histórias. As referências à cisão do povoado, em virtude da qual tinham passado a existir duas

Zacarias - a “de cima” e a “de baixo”; a das “casas novas”, insidiosamente chamada de Vila dos

Pescadores, distante dos portos da lagoa, e a das “casas antigas”, à beira do Lago Grande, olhando-

o, por assim dizer.

A primeira dessas histórias era a da Companhia; melhor dizendo, a de LucioThomé Feteira, empresário e estrangeiro e relatava o episódio que, segundo os pescadores,

constituíra, ao mesmo tempo, o ato fundador de um empreendimento, baseado na traição e na

usurpação.

Essa história trazia consigo, invariavelmente, uma segunda - a história de Juca

Tomás. Também ele um empresário e pai fundador, só que numa versão positiva, pois era nativo e,

mais que isso, pai (ou tio), avô (tio-avô), bisavô e tataravô dos nativos da Zacarias, personagem

fundamental do clã dos Marins, fons et origo da família.

O mundo de Henrique tinha acabado de sofrer uma redução drástica, quando o

conheci. Em parte, essa limitação tinha-lhe sido imposta, em conseqüência do abandono da

pescaria, ele mesmo determinado pela idade e pelas suas condições de saúde. Por outra parte,

entretanto, era fruto de uma escolha, pois inúmeras vezes insisti em vão, para que juntos

visitássemos a Lagoa Rodrígo de Freitas e seus arredores, no Rio; as lagoas de Piratininga e Itaipú,

em Niterói; Saquarema e o outeiro de Nossa Senhora de Nazaré, com suas famosas festas da

padroeira; a Serra do Espraiado, todos eles lugares onde o tinham levado sua atividade, seus

relacionamentos e suas folganças, da juventude e da idade madura.

No inverno de 1978, porém, esse universo restringia-se ao povoado e ao seu

entorno imediato. Quando deixava o rancho, Henrique podia dirigir-se para a beirada da lagoa, a

restinga ou a costeira. Ia sempre à casa de sua mulher, para apoiá-la em certos afazeres.

Freqüentava a birosca de “Ginho”, seu primo e cunhado, quando não ia ao armazém de Alcina, ao

de Jessé ou, vez por outra, à birosca de “Tuguesa”. Podia ser visto na casa de Ari, seu sobrinho,

atravessador de peixe do povoado, ou, mais adiante, no armazém de “Totonho”, na estrada do

Boqueirão. O mais longe que ia era à Vila, isto é, ao núcleo urbano de Maricá, para passar no

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mercado de peixe, na feira e no banco, onde sacava os reduzidos proventos do seu Funrural24. Fazia

tudo a pé, empurrando um carrinho-de-mão, da sua própria lavra. No tempo sêco, levantava o pó da

estrada, o que lhe valeu o último de seus apelidos, o de “Poeira”.

Apesar disso, não poderia dizer que seu mundo fosse pequeno. Henrique possuía

informações atualizadas sobre o que se passava “lá fora”. Era uma pessoa interessada, que gostava

de ouvir, comentar e passar adiante as notícias. Para inteirar-se dos eventos exteriores, freqüentava

o comércio de “Ginho”, ou permanecia à sombra do grande bapébuçu na porta de “Tuguesa”, ao

cair da tarde, bebendo cachaça com cambuím e proseando com seus pares.

Mas não era só isso que dava amplitude ao seu mundo. Era antes um modo de falar

das coisas mais imediatas, isto é, daquelas que estavam ao alcance da vista, ou à distância de uma

breve caminhada. Quando se detinha numa apreciação da lagoa ou das serras, da restinga ou do

mar, das águas lacustres, das florestas, ou do firmamento estrelado, sabia atribuir inusitadagrandeza a tudo isso. Não só pela abrangência de sua visão, sempre atenta às totalidades, como

também pela extraordinária multiplicidade de detalhes pertinentes que era capaz de entrelaçar, de

maneira significativa, nos seus excursos. Finalmente, creio que não era estranho à essa impressão

de magnitude, evocada por suas palavras, a emoção estética e o arsenal de metáforas que davam

sustentação ao seu discurso. Para ele, o céu era mais do que um arranjo espacial de corpos celestes.

Descrevia-o segundo uma semiologia poética, apontando entidades como o “Caminho do Céu” (a

Via Láctea), a “Arca de Noé”, o “Poço do Céu” (um grande vazio na Via Láctea), e assim por

diante.

Da mesma forma a lagoa, isto é, o sistema lagunar como um todo, revelava-se,

através de Henrique, em toda a sua riqueza e complexa diversidade. Ele dominava uma extensa

toponímia de praias, portos, sacos , coroas, pontas, canais e pedras. Conhecia o fundo da lagoa, isto

é, sabia, além das profundidades propriamente ditas, a configuração e a natureza das áreas

submersas; se o chão era de lama, cascalho, areia; se era limpo ou sujo. Neste último caso, conhecia

o tipo de vegetação do fundo, os “lixos”, como dizem os pescadores - lixo-roseta25, lixo-capim26,

24 Fundo de aposentadoria e pensão dos trabalhadores rurais, pois vinculara-se ao sindicato, no passado.25 Chara 26 É uma Najadacea Ruppia maritima, L.

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lixo-peteque27, lixo-de-limo28, lixo-de-algodão-verde29, lixo-do-camarão30 - “formando gigantescos

canteiros sub-aquáticos”31.

De sua semiologia do Lago Grande, por exemplo, faziam parte, ainda, as pedras da

Saputera (ou Taputera) e a Pedra Alta, além de duas pedras submersas, sem nome - “todas elas raiz

lá do mar, filhas daquelas que tem no mar”. Isto sem falar nos “parcéis”, ou “lugares”, ou “galhos”,

como também são chamados. E que são pesqueiros, várias dezenas deles - criados e localizados

com base num processo de triangulação, que se vale de um extenso e variado sistema de pontos

referenciais, identificáveis na linha do horizonte mais imediato (beirada da lagoa) ou mais distante

(serras, falésias e cômoros da restinga), e aos quais se dá o nome de marcas.

“Poeira” estava longe de ser um letrado, mas sabia ler e escrever. Diante da folha

do caderno-de-campo que lhe apresentei, não se fez, porém, de rogado, e produziu, em pouco

tempo, uma espécie de mapa das lagunas, num desenho acompanhado de muitas explicações, dasquais fui plotando as que me pareciam mais importantes nesta primeira carta nativa das lagoas de

Maricá.

Quase tudo que fazíamos, e sobre o que conversávamos, tinha a ver com a pesca,

nosso assunto predileto, graças a uma oportuna convergência de interesses, dessas sem as quais o

trabalho-de-campo costuma transformar-se em uma tarefa penosa e, na maioria das vêzes, de

parcos sucessos.

Não poso dizer que fosse um quotidiano de pescador, pois Henrique não pescavamais. Apesar disso, nosso dia-a-dia era, ainda, pautado pela atividade pesqueira, da qual meu

anfitrião conservava todas as rotinas, com excessão da principal. E mesmo esta não estava de todo

ausente, porque Henrique acompanhava, à distância, as pescarias alheias.

Enquanto isso cuidávamos das canoas, quer para baixá-las, do rancho ou da praia,

para a lagoa, quer para tirá-las desta, acomodando-as em um desses dois espaços. As canoas de

Zacarias, sobretudo as mais antigas, cuja idade variava de 35 anos para mais de 50, eram de

vinhático ou de cedro. Mas existiam algumas feitas de oiti, cica e bacurubú. Esta última, no entanto,

era tida como madeira inferior, demasiado macia, “igual a cortiça”. Canoas de bacurubú eram,

portanto, pouco duráveis, exigindo uma demão de tinta, de 3 em 3 meses, para não apodrecer.

27 Não me foi possível identificar.28 São algas filamentosas Ulothiricaceae 29 É formado por uma cloroficea, "verde cobreada, muito berrante".30 A Enteromorpha, "alga verde de tubinho, como um macarrão fino, conforme conhecem os pescadores".31 A expressão é de Lejeune de Oliveira (1955:191). As identificações dos "lixos" encontram-se nestemesmo autor.

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Ao cuidar do objeto, este se convertia no tópico principal da conversação. E, dessa

maneira, iam se desdobrando todas as suas implicações. Aquelas referentes ao fabrico, por

exemplo. Como nenhuma das madeiras próprias para a construção de canoas existisse na área dos

baixos e da restinga, era necessário procurá-las nas serras (em Itapeba ou no Espraiado), ou mesmo

em outros municípios (como Macaé), às vezes mais longe ainda, na Ilha Grande.

Assim, quem precisasse de uma canoa tinha de contratar com um profissional,

geralmente lavrador, o serviço de derrubada32. No dia marcado pelo canoeiro, abatia-se a árvore

escolhida, respeitando a fase da lua. O abate ocorria, obrigatoriamente, no quarto minguante,

quando a madeira “está fechada”. A tarefa era árdua e, quando o trabalho familiar não era

suficiente, lançava-se mão de ajutório, sobretudo para trazer o madeiro até o local onde seria

preparado.

Da habilidade do canoeiro, ao escavar o tronco com enxó e machado, dependiamas qualidades da embarcação. Esta tinha de resultar estável. Ninguém gostava de “canoa

bandoleira” (“que ginga muito”). Às vêzes, porém, não havia como evitar essa eventualidade,

quando o tronco tem pouca largura, por exemplo. Neste caso, tornava-se necessário abrir o fundo

da canoa, inserindo-se aí uma “bandoleira”, nome dado a um madeirame que, engastado “no meio”

da embarcação, passava a servir-lhe de “tábua de fundo”. Era ponto de honra que essa emenda

fosse executada com perfeição, tornando difícil, ao leigo, reconhecê-la.

O “fundo da canoa” devia ser considerado bom quando o espigão era de cedro. O

banco de proa costumava ser de “pinho sangrado”, que era “o pinho sem o breu” (“sem óleo”,

“sêco”). O banco do meio (ou contrameio) assentava-se, praticamente, sobre o “pré-pau da canoa”,

sendo este um cavername forte, cuja função consistia em impedir os bordos de se “fechar”, pela

ação da água e do sol. As ligas dos eventuais remendos eram feitas com machetes, pequenas

chapas de cobre, capazes de garantir-lhes firmeza e durabilidade.

Essas canoas, mediam cerca de 7 metros de proa à pôpa, com 3 palmos de largura

no meio. Eram impelidas por dois remos - o do mestre (ou popeiro) e o do chumbereiro. Para eles

deviam preferir-se certas madeiras como o louro (“lasca pouco com o sol”), o “louro cabureíba”(“tem o cerne forte”)33, ou vinhático, cedro e jequitibá.

Ainda a propósito da canoa, a conversa derivava para assuntos correlatos,

determinados pelo ponto de vista que se adotasse a respeito dela.

Como unidade de produção, colocava o problema da partilha. Antigamente,

vigorava o sistema do quatro em um. A safra dividia-se em quatro partes iguais: duas para o

32 Em Itapeba era "Zinho" Oliveira que fazia canoas e remos.33 Cabreúva do Campo, árvore da família, das leguminosas - papilionáceas.

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mestre, uma para o chumbereiro e uma “para a canoa”, isto é, para o dono da pescaria. Depois,

passou a usar-se o três em um, onde cabiam partes iguais ao mestre, ao chumbereiro e à “canoa”.

Como bem durável a canoa era passível de propriedade, sendo, nesta condição,

indivisível. Podia transmitir-se por herança. A propósito, sucedia algo curioso. Henrique sustentava

que “mulher não tem canoa”. Verificava-se, no entanto, que a canoa era invariavelmente associada

a um grupo de irmãos uterinos, como meio de assegurar a subsistência de uma família.

Como dispositivo fundamental da reprodução das unidades domésticas, por sua

vez, a canoa surgia em estreito vínculo com as rêdes de pesca e as tarrafas. Estas, em contrapartida,

eram, por excelência, fruto do trabalho doméstico, sobretudo das mulheres, associando-as, pois, ao

empreendimento pesqueiro.

No passado, as redes eram confeccionadas a partir de fibras vegetais34. Assim, era

preciso fiar, seja o algodão, seja o tucum, ambos adquiridos na feira, ou nos armazéns da Vila ou

dos povoados da restinga. Eventualmente, esses produtos podiam ser obtidos através do escambo.

Neste caso, o pescador levava aos portos da terra firme “um almoço de peixe”, trocando-o com os

lavradores por um carregamento de banana, mandioca, guando, algodão e... tucúm.

Para tecer as redes usavam-se moldes de bambú, com vistas ao tamanho da malha,

além de agulhas de diversos tamanhos, geralmente de pitangueira ou batinga. Os moldes eram de

um, dois, três ou quatro dedos35, conforme a finalidade da rêde e/ou a espécie a cuja captura se

destinavam. O tamanho das agulhas variava de acordo, não só com o tamanho da malha, mastambém com a espessura do fio, e ainda com a fase da confecção. De resto, estes objetos são,

apesar de sua aparente simplicidade, complexos, na descrição nativa. Sua elegante forma oblonga

compreende ponta, meio e pé. O meio é “como a tábua do fundo da canoa”. A parte dianteira do

corpo da agulha, se aguça num bico, bifurcando-se na direção do meio em torno de um vazio, no

qual se projeta a lingüeta. A parte, de trás se abre em dois, formando a bunda. O objeto inteiro é

pensado como um símile reduzido da canoa, estendendo-se, como ela do bico da proa ao espelho

da popa.

Henrique comentava cada detalhe, quando, em diferentes momentos, se dedicava a

consertar as redes de sua pescaria, quase sempre de madrugada, à luz incerta do candeeiro. Nessas

oportunidades, não se contentava com demonstrar o funcionamento de cada ítem. Fazia questão de

que eu tentasse imitá-lo, manuseando esses requisitos, para compreender as peculiaridades de sua

operação. Desse modo, tive de aprender, ainda que precariamente, como se confeccionavam os

34 Nos tempos atuais, grande parte das redes e tarrafas é de nylon. O tucúm desapareceu de todo. Permanecea linha de algodão, necessária às pescarias de certas espécies, como o bagre, por exemplo.35 Há, também, moldes ditos de um dedinho ou dois dedinhos, sendo subdivisões dos moldes de um e doisdedos, respectivamente. Com eles é tecida a malha mais fina das redes e tarrafas de camarão.

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complementos para aparelhar e entralhar as redes. As bóias, por exemplo, eram feitas com uma raiz

que podia ser encontrada na restinga ou no brejo da lagoa - o ariticum, leve e fácil de ser trabalhado

(“mais maneiro”)36. Sua confecção exigia o uso de compassos, obtidos dos galhos da pitangueira

ou do camará, para dar à “cortiça” um padrão regular. Há uma bóia diferente das outras - o capitão,

apetrecho singular, cabaça, bola de vidro ou isopor, assinalando a ponta da rede, que é a primeira a

ser jogada na água, por ocasião de um lanço. Referindo-se a um desses dispositivos, Henrique

falava dele como de um companheiro de pescaria - “Esse capitão tem pescado comigo há mais de

vinte anos!”. Verifica-se, pois, que os homens pescam junto, não só com seus parceiros, mas,

também, com seus instrumentos, muitos dos quais os acompanham por inúmeros anos, rompendo,

às vezes, a barreira das gerações, como é o caso dos grandes remos de mestre e das tarrafas, por

exemplo.

Das rotinas fazia parte, ainda, a manutenção do rancho. Era preciso tê-lo semprelimpo, arrumado e abastecido. Parecíamos estar sempre num barco, pronto para zarpar. A cada

tanto era necessário varrer e lavar o piso do rancho, mantendo-o desimpedido para a “traficância”,

nesta aguada fina de cimento que nos servia de tombadilho. A semelhança com uma embarcação

acentuava-se, ainda mais, com o escrupuloso arranjo dos objetos, como se fosse necessário

encontrá-los no escuro e com máxima economia de movimentos. Finalmente, era necessário manter

o estoque de lenha, água e comida, refazendo-o na medida dos gastos quotidianos.

Quando Henrique caiu doente com erisipela (“isipra”), mal comum entre os

pescadores da Zacarias, tive eu mesmo de assegurar todos esses cuidados, além de fazer comida e

lavar a roupa, pois, o meu anfitrião ardeu em febre, durante dois dias. Presa do que chamava isipra

fogo, Henrique tiritava, deitado no seu catre. A moléstia produzia-lhe bolhas, nas duas pernas e no

braço esquerdo. As dores tornavam-lhe insuportável qualquer movimento do corpo. As compressas

de azeite doce e o expediente de amarrar um barbante na altura do bíceps, para obstar a “subida da

isipra”, não se revelaram capazes de fazer regredir a “queimação”, os gânglios entumescidos e o

inchaço dos pés e da mão. Somente a intervenção de “tia Jona”, rezadeira local, logrou, enfim, deter

o avanço da infecção, debelando-a depois de alguns dias. Em nenhum momento Henrique pareceu

disposto a admitir que as injeções de antibiótico, aplicadas por Alcina, tivessem parte nessa

melhora. Segundo ele, eram necessárias, porém ineficazes sem a reza.

Em todos os momentos e circunstâncias, durante minha estadia no rancho, e a

propósito dos mais diversos assuntos, Henrique voltava ao parentesco. Mencionando pessoas e

acontecimentos, passados ou presentes, parecia fazer questão de desfiar trechos do que se

configurou, com o tempo, como um extenso, minucioso e preciso mapa genealógico da Zacarias.

Depois da pesca, ou junto dela, era este o seu tema preferido. Era como se nada pudesse ser

36 De determinado momento em diante as bóias de rede passaram a ser feitas também com restos de plásticoou isopor, materiais que costumam "dar na costa".

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satisfatoriamente compreendido sem que se tivesse, na cabeça, este quadro. De algum modo, tudo,

ou bem partia dele, ou bem retornava a ele - alianças, rivalidades, conflitos, casas, canoas (redes e

remos), e tudo o mais que pudesse, porventura, ser objeto de herança e/ou disputa.

Tentei, muitas vezes, achar um nome para a experiência constituída nesses quinze

dias passados em companhia de Henrique, sobretudo quando pensava em descrevê-la. A expressão

lição de pesca não me satisfazia, embora designasse um aspecto notável do processo. Com efeito,

posso dizer que através da pessoa de Henrique tinha-se configurado para mim uma amostra do

mundo que ele habitava e do qual cuidava com tanta paixão e esmero. Neste sentido, é lícito dizer

que tive nele um mestre, cuja competência nos assuntos da pesca lagunar e do povoado, o tempo se

encarregaria de revelar como inigualável.

Creio, no entanto, vislumbrar, para além desse caráter instrutivo de nossas

conversações, uma outra relação, também ela dialógica. Esta, no entanto, sem a assimetria daanterior e baseada numa experiência de envolvimento mútuo e concreto, e que, seguindo Martin

Buber, pode chamar-se amizade.

Prova disso era o fato de que, ao deixar a Zacarias, em agôsto de 1978, trazia

comigo, além dos cadernos-de-campo, recheados de informações, muitas das quais levaria anos

para digerir, e dos presentes de despedida, todos eles apetrechos de pesca (tarrafas, fuso, fios,

compassos, cortiças, chumbos, moldes, agulhas, etc.)... a chave do rancho. E com ela veio não só a

garantia de um pouso certo, mas também o penhor de uma relação de reciprocidade e o convite

para renová-la, doravante.

Se alguma dúvida persistisse neste sentido, estava destinada a se desfazer por

ocasião do meu próximo retorno ao povoado. Ao partir, deixara, numa das prateleiras do rancho,

uma certa quantia em dinheiro, com a qual pretendia ressarcir meu anfitrião das despesas que lhe

havia causado. Quando regressei, próximo do Natal, Henrique estendeu-me o maço de notas - “Sor 

Mello, aqui tá o dinheiro que o senhor esqueceu da última vez”. Desse modo, qualificava-se uma

relação que admitia a troca de presentes, mas não aceitava conviver com nenhuma forma de

pagamento.

3. Cartas sem Enderêço: o hóspede

Após um interstício de aproximadamente um ano37, retomei o trabalho-de-campo,

no Município de Maricá, em 1980, com uma pesquisa sobre hábitos alimentares no litoral

fluminense38.

37 Em 1979, dediquei-me ao Projeto “Apropriação de Espaços Coletivos para Fins de Lazer”, IBAM/FINEP.

Daí resultou o livro Quando a Rua vira Casa, coeditado pelas duas instituições em 1981.38 Tratava-se do projeto "Alimentação e Ritual: os tabús alimentares e as práticas cerimoniais ligadas aosatos de comer em grupos de Niterói e das baixadas litorâneas/RJ", financiado pelo FNDE/MEC, e

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Os resultados desse survey desenvolvido em três localidades da região - São José

do Imbassaí, Zacarias e Espraiado, proporcionaram-me uma compreensão mais nítida da

diversidade do sistema de relações, onde os povoados da restinga, como Zacarias, estavam

inseridos. Pude, ao mesmo tempo, submeter os dados demográficos e genealógicos de 1978 a um

processo de complementação e controle. Daí resultou o segundo censo da população de Zacarias,

além de um primeiro esforço de síntese do material etnográfico consolidado.

Adotei nessa época uma estratégia, que, inspirado num título de

Plekhanov, batizei de “Cartas sem endereço”. Essas missivas, escritas no campo e dirigidas a um

colega e amigo, ao qual foram eventualmente remetidas, serviram-me como uma espécie de

repositório comum de dados etnográficos, rotina quotidiana, impressões, sentimentos e reflexões

suscitadas no e pelo trabalho-de-campo.

As “cartas sem enderêço”, não eram, pois, senão o meu diário de campo que nãoconseguia realizar como solilóquio, conforme a tradição anglosaxônica incorporada nos cânones do

método antropológico. Em compensação, resultava-me fácil concebê-lo e concretizá-lo como um

“diálogo” com alguém que me era próximo, afetiva e intelectualmente.

Juntamente com os quinze dias de 1978, o período de campo que se estendeu ao

longo de 1980-1981, mas, sobretudo este último ano, foi de grande importância para a pesquisa.

Neste sentido, as “cartas sem endereço”, são um documento eloqüente da efervescência que

caracterizou esta fase do trabalho etnográfico.

Encontram-se aí, registrados de um jorro, e como atropelando-se uns aos outros, os

mais diversos recortes da minha experiência em Maricá: flagrantes da vida no rancho e no

povoado; observações sobre a morfologia e dinâmica social do assentamento; personagens da

Zacarias que me serviram como informantes e interlocutores; notas esparsas do saber naturalístico

local; dados sobre grandes eventos, como a abertura da barra e o conflito com a Companhia;

tateamentos, percalços e horas afortunadas da pesquisa-de-campo; indicações sobre minhas leituras

e partidos teóricos; e, finalmente, o registro do penoso processo de familiarização com o universo

da pesquisa, com seus distintos atores sociais, imersos numa problemática e temporalidadepróprias.

O resultado mais importante, dos muitos que esta etapa me permite contabilizar, no

entanto, foi a configuração de um projeto propriamente dito para todo o empreendimento

etnográfico. Com efeito, em 1981, pude conceber uma primeira forma estruturada da abordagem do

meu assunto.

desenvolvido do Departamento de Ciências Sociais da UFF, no qual reingressei em 1979. Participavamainda do projeto os colegas Wagner Neves Rocha e Almir dos Santos Abreu, além de estágiarios do Cursode Ciências Sociais.

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Imaginava tratá-lo de acordo com um roteiro. Após a introdução de praxe, este

determinava, ao longo de tres capítulos centrais, os temas básicos destinados à elaboração

etnográfica: primeiro, uma descrição densa do ritual da abertura de barra; segundo, uma análise

da morfologia social do assentamento da Zacarias, com foco principal na casa; e, em terceiro lugar,

uma apreensão abrangente do sistema de relações que ligava entre sí a restinga, a “terra firme”, as

“serras”, as lagunas e a “vila”, em Maricá, sem esquecer a inserção desta na dinâmica da Região

Metropolitana do Rio de Janeiro.

Essas três linhas deviam, ao final, confluir num capítulo conclusivo, onde se

discutiria o que, na época, me ocorreu chamar de “a função pedagógica do ritual”. Com essa

expressão tentava, como percebo agora, referir-me a pelo menos três questões distintas, porém

entrelaçadas. Queria, tomando como foco um processo ritual, refletir sobre sua relevância para a

construção da identidade de pescador, para a reprodução de um sistema peculiar de relações sociaisem torno da pesca lagunar, e para a compreensão das vicissitudes ecológicas das quais tanto a

identidade quanto o sistema de relações dependiam.

Em resumo, o que eu me perguntava era o que a abertura da barra era capaz de

ensinar, tanto ao nativo quanto ao etnógrafo, para levantar, em seguida, a questão de como e

porque o seu ensinamento calava fundo em ambos.

Os anos subseqüentes foram marcados pelo esforço de reunir e consolidar um

corpus etnográfico, suficientemente elaborado, para dar consistência a esse projeto. Foram

empregados, além disso, na tarefa de maturação da abordagem teórica, bem como da análise e

exegese do material de campo.

Em 1983 identifico outro momento particularmente rico da pesquisa. Este ano

ofereceu-me a oportunidade de observar in loco uma abertura-de-barra à maneira dos pescadores,

embora não mais de um modo estritamente tradicional39. Trouxe consigo, além disso, a realização

de um terceiro censo de Zacarias, sem contar as diversas iniciativas de reflexão sistemática sobre o

meu tema, na esfera acadêmica40.

Além disso, em conseqüência das minhas atividades de ensino, incorporou-se ao

trabalho-de-campo, sob minha orientação, uma estudante, à qual caberia, no ano seguinte,

desenvolver um projeto de iniciação científica, com vistas à obtenção de material para: “(1)

delinear a trajetória de uma comunidade de pescadores a partir de suas representações; (2) propiciar

39 A SERLA participou da abertura, mobilizando seus engenheiros e máquinas.40 Entre elas a elaboração do projeto "A pesca artesanal no RJ: o sistema de representações e as práticasprofissionais" (CNPq-GCS/UFF), coordenado pelo professor Luis de Castro Faria, e com a participação deRoberto Kant de Lima. Dessa época são, igualmente, as palestras sobre "A dramatização da abertura de

barra e os assentamentos dos pescadores de Maricá" (Seminário Lagunas Litorâneas do Estado do Rio deJaneiro - FEEMA/RJ e UFF) e sobre "Artes e Tecnologia da Pesca" (Semana do Pescador - Pref. Mun. deCabo Frio - RJ).

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uma leitura do sistema de relações que caracteriza o modo básico do entorno; e (3), finalmente,

apreender a dinâmica da mudança e suas implicações na estrutura e no modo de vida da

comunidade41.

O contato com botânicos, zoólogos, limnólogos, geo-químicos e biólogos, no

“Seminário sobre as Lagunas Litorâneas do Estado do Rio de Janeiro”, em 1983, iniciou um

período de estimulantes debates com alguns colegas dessas áreas, durante os anos de 1984 e 198542.

Em 1985, outra estudante começou a desenvolver, na Zacarias, o projeto “Disputa

e Negociação: o direito costumeiro de uma comunidade de pescadores”43. Neste mesmo ano,

iniciou-se o quarto censo da população de Zacarias, com vistas à expansão e complementação das

genealogias das famílias do povoado. Desse modo, foi possível abordar, mais de perto, o domínio

das atividades e perspectivas femininas, incluindo a socialização das crianças, bem como as

estratégias de ocupação do espaço, agenciadas pelas mulheres.

Não deixa de ser significativa, para a posição e atuação destas últimas, na

Zacarias, a fundação nesse mesmo período, do Centro Comunitário de Cultura e Lazer 

(CECLAZ)44. Esta sociedade civil “sem fins lucrativos, políticos, raciais ou religiosos”, sediada “no

bairro de Zacarias, no núcleo dos pescadores, na Barra de Maricá - 1º Distrito”, definia como sua

área de atuação o “Bairro de Zacarias, no núcleo dos pescadores alí residentes, até a Barra”. Seus

objetivos eram, segundo o artigo 4º dos Estatutos, os seguintes:

I.  desenvolver e manter a união entre os moradores e amigosda área, visando o estudo e a obtenção de soluções para os

problemas da comunidade e zelando pela melhoria e

manutenção de sua qualidade de vida;

II.  congregar os esforços de todos os moradores e amigos da

área, na criação e desenvolvimento de atividades

comunitárias;

III. propiciar o desenvolvimento cultural da populaçãoorganizando reuniões sociais de natureza recreativa, cultural e

de lazer ou outras atividades inerentes;

41 Projeto: "Zacarias Revisitada", CNPq-DCS/UFRJ, acadêmica Mariana Ciavatta Pantoja Franco.42 São dessa época as palestras sobre "Populações Humanas em Ambientes Lagunares (Deptº deOceneanografia/UERJ) e sobre "Metodologia para Estudo de Lagunas: aspectos antropológicos"(FEEMA/RJ), em 1984 e 1985, respectivamente.43 Acadêmica Denise Maria Duque Estrada, Iniciação Científica, DCS/UFRJ.44

A lista de presença da Assembléia Geral para aprovação dos Estatutos e eleição da primeira diretoria, em1º de abril de 1984, é assinada por 20 pessoas, das quais 14 mulheres. Dos 11 cargos (Diretoria e ConselhoFiscal), 9 eram ocupados por mulheres, sendo que os dois únicos homens integravam o Conselho Fiscal.

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IV. estimular o crescimento do Bloco Carnavalesco Unidos de

Zacarias, como programa de suas atividades, promovendo

festividades que contribuam para sua apresentação em desfiles;

§ Único. No cumprimento de seus objetivos o CECLAZ

representará a comunidade perante as autoridades e

órgãos federais, estaduais e municipais, bem como,

promovendo, em juízo ou fora dele, as ações e medidas que se

tornarem necessárias. (grifos meus).

A ausência dos homens, entretanto, não se refletia, apenas, na sua fraca

representação numérica, seja na Assembléia Geral, seja na primeira diretoria do CECLAZ. Surgia,

também, com bastante clareza, na omissão de seus estatutos quanto ao Cruzeiro Futebol Clube,

iniciativa dos homens e seu mais abrangente plano de organização social.

E, no entanto, o CECLAZ e o “clube de futebol” não podiam ignorar-se, tendo o

primeiro edificado sua sede nos fundos da sede do último. De um modo geral, parecia ter-se

consagrado, aí, em que pese a contigüidade sócio-espacial, uma clivagem da representação do

povoado. Ao “clube de futebol” coubera, desde sempre, a representação corporada de Zacarias para

fora, junto aos demais assentamentos, povoados ou bairros, dentro ou fora do Município, graças à

sua participação no circuito de competições característico das populações de baixa renda, no âmbito

da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

O CECLAZ, em contrapartida, parecia voltado, não só para a esfera pública, no

que tocava às autoridades e “amigos da área” (pessoas notáveis passíveis de cooptação), como

também para dentro do povoado, com a pretensão, mais ou menos explícita, de regular e disciplinar

o uso do espaço na Zacarias45. Desse modo, transparecia a preocupação específica das mulheres,

cuja liderança, embora menos visível de imediato, tinha peso considerável, na medida em que eram

capazes de melhor perceber as influências da mudança social sobre a esfera familiar. A outra

grande preocupação dessa liderança feminina era a de unificar as iniciativas de contestação jurídica

do avanço da Companhia, por exemplo.

O ano de 1985 tornaria possível, finalmente, juntar as duas vertentes a propósito de

um projeto de extensão em torno do tema “Meio Ambiente e Gestão Comunitária: problemas de

educação ambiental no litoral fluminense/Maricá”46, que identificou como críticas, para os

45 Convém assinalar que o CECLAZ encontrava alguma resistência dentro da própria "comunidade", poissua formalização havia sido proposta por uma "pessoa de fora", que vivia maritalmente com um zacarieiro eresidia em Barra de Maricá, onde tinha um hotel. Sobre o envolvimento das mulheres nos processo demudança e no “movimento social" em Zacarias, consulte-se Duque Estrada, 1992.

46 Projeto de extensão universitária financiado pela SEPS/MEC e executado pelo PATAE/UFF, em 1985/86.Participavam do projeto, os colegas Arno Vogel (Deptº de Antropologia) e Renato Lessa (Deptº de CiênciaPolitica), ambos do ICHF/UFF. Completavam a equipe, como auxiliares de pesquisa, os acadêmicos

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moradores de Zacarias, duas questões - a da pesca e a da posse da terra, suscitando,

respectivamente, o envolvimento dos homens e das mulheres.

Uma feliz coincidência deu a este projeto uma amplitude imprevista. Em meados

de 1985, a Fundação Estadual de Engenharia e Meio Ambiente (FEEMA), foi encarregada,

  juntamente com a Fundação de Desenvolvimento da Região Metropolitana (FUNDREM) e a

Secretaria de Estado de Obras e Meio Ambiente (SOMA), de elaborar um projeto de

regulamentação da Área de Proteção Ambiental (APA) de Maricá. Ao mesmo tempo, entrava em

vigor o Plano de Desenvolvimento Urbano de Maricá47.

Surgiu, então, de parte dos órgãos governamentais, o interesse numa articulação do

seu staff técnico com as lideranças locais através da equipe do projeto SEPS/MEC-UFF. A partir

daí, desenvolveu-se um processo de cooperação, compreendendo reuniões de trabalho das equipes

técnicas da UFF e da Divisão de Dinâmica de Ecossistemas da FEEMA, visitas a campo, encontroscom representantes comunitários, contatos com as instâncias políticas municipais (Prefeitura e

Câmara de Vereadores) e assim por diante.

Foi mesmo possível reunir, no “Seminário de Metodologia para Estudos de

Lagunas”, todo o espectro de técnicos que, na época, estudavam a região; ou seja, profissionais das

áreas de antropologia (UFF/UFRJ), hidrologia (SERLA), ictiofauna (FEEMA), recursos pesqueiros

(UFRJ), geo-química e hidro-química (UFF), botânica e zoologia (FEEMA, UFF, UFRJ e UERJ).

Ao mesmo evento compareceram representantes das diferentes associações de moradores e amigos

de Maricá.

Essas articulações inter-institucionais foram bastante favorecidas pela posição que

eu ocupava, na época, como diretor do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro48. Igualmente

propícia, neste sentido, foi a grande efervescência de políticas públicas voltadas para o atendimento

das populações de baixa-renda, a exemplo dos programas “Cada Família um Lote” e “Uma Luz na

Escuridão”, entre outros49. Last but not least , cabe mencionar a importância, nessa conjuntura, da

quantidade e variedade dos projetos de pesquisa, em curso na região das lagunas e restingas de

Maricá.

Antonio Carlos Alkmin dos Reis (UFF), Carmen Alkmin dos Reis (UFF), Denise Maria Duque Estrada(UFRJ), Jorge Luiz Sant`Anna dos Santos (UFF) e Mariana Ciavatta Pantoja Franco (UFRJ).47 Lei Nº 463, de 17/12/1984, transcrita no Correio de Maricá, 03/02 à 10/02/1985, aprovada pela CâmaraMunicipal, substituindo a Lei Municipal Nº 37 de 23/12/1977, que havia instituído o primeiro Plano Diretorde Maricá elaborado pela FUNDREM (SECPLAN/RJ), no segundo semestre de 1976.48 Departamento Geral da estrutura básica da Secretaria de Estado de Justiça/RJ, onde funcionava, também,a Comissão de Assuntos Fundiários, para cujas atividades muito contribuíram os técnicos do ArquivoPúblico, sobretudo no restabelecimento de cadeias sucessórias.49

O primeiro visava o reassentamento e a regularização da posse da terra, para famílias de baixa-renda. Osegundo, voltado para o mesmo segmento, era um programa de eletrificação de favelas, loteamentosperiféricos e bairros rurais.

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A extensa discussão suscitada pela APA de Maricá trouxe, uma vez mais, à baila

as duas dimensões críticas da ecologia do sistema lagunar - a permanência dos assentamentos de

pescadores, em face do avanço da urbanização e o manejo das lagoas por intermédio de sua

comunicação com o mar, seja através da barra permanente (Canal de Ponta Negra, por exemplo),

seja graças à retomada das barras de emergência (ou “barras nativas”).

Todo esse processo viria a culminar no 1º Cabildo Aberto de Maricá50, onde a

Câmara de Vereadores, acrescida de técnicos e representantes comunitários, debateu a questão

ambiental no município. E, novamente, a polêmica girou em torno das mesmas questões: a

ocupação desordenada da terra pelo capital imobiliário e seus efeitos sobre os assentamentos de

pescadores e a pesca lagunar.

O evento foi extraordinariamente instrutivo, em todos os sentidos. Revelou as

posições dos diversos segmentos envolvidos com o difícil problema, para o Município, dacompatibilização de seu desenvolvimento urbano e turístico com a manutenção de seu sistema de

relações tradicional, impensável sem a pesca lagunar, isto é, sem os pescadores e sem a barra.

Para a pesquisa de campo, porém, o Cabildo teve a virtude de evidenciar as interconexões

e as linhas de clivagem do sistema, confirmando suas hipóteses sobre as complementaridades que o

tornavam viável e operacional. Além disso, revelou o acerto de se haver tomado como focos da

investigação etnográfica a casa (espaço, parentesco, genealogia) e a barra (saber naturalístico e

manejo do sistema lagunar, voltado para a pesca).

4. O Estrangeiro de Dentro

O ano de 1986 encontrou-me transformado em morador da Praia de Zacarias. Não

que minha intermitência tivesse cedido à continuidade, no campo. Segui freqüentando o povoado

nos fins-de-semana, nos feriados, nas férias escolares e, eventualmente, nos chamados “dias úteis”,

na medida em que o permitiam meus afazeres.

O fato novo, a que se deveu esta mudança radical de minha inserção no

assentamento, foi ter alugado uma casa. Autêntica novidade. Para mim, porque, desse modo,deixava o meu pouso no rancho, passando a ocupar uma casa-de-família. Para os zacarieiros,

porque, pela primeira vez, se estabelecia no povoado alguém de fora, sem que isto acontecesse em

virtude de laços de parentesco ou afinidade51.

50 O evento realizou-se, em duas etapas, nos dias 14 e 21 de maio de 1986, na Câmara Municipal de Maricá.Discutiram os problemas da gestão do meio-ambiente vereadores, representantes das associaçõescomunitárias, técnicos da FEEMA e da SERLA e membros do Ministério Público (Curadoria do MeioAmbiente). O tema principal dos debates foi a APA de Maricá (Cf. FEEMA, 1986).

51 A casa tinha sido, na realidade, habitada, anteriormente, por uma “gringa”, como afirmavam.Chamava-se Elza Kleiss, de origem alemã, portanto. Mantinha a casa, na qual vivia comArnulfo, filho de “Cida” (Alcides Evaristo da Costa). Após sua morte, Arnulfo, do qual se diz que

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Quando me refiro à casa-de-família, isto tem um duplo sentido. Tratava-se, com

efeito, de uma casa que eu habitava com minha família. Além disso, no entanto, esta casa, da qual

nos tornamos moradores, pertencia ao conjunto das casas antigas do assentamento, tendo sido

propriedade, outrora, de um ramo da família da Costa, por sua vez aparentado com os Breves de

Marins.

A maneira pela qual cheguei a esta casa é, ela mesma, significativa e merece ser

contada. Trata-se de uma história com duas vertentes. A primeira relata como o imóvel veio se

tornar disponível para mim, enquanto a segunda dá conta das razões que me dispuseram a adotá-la

como residência.

Os antigos proprietários haviam cedido às pressões da Companhia. Temerosos de

verem sua casa demolida, trataram de realizar o valor possível, alienando sua posse a um

funcionário aposentado do Ministério da Marinha, residente na “vila”. Este, que não pretendiahabitá-la, saiu em busca de um inquilino. Sabia, no entanto, que os zacarieiros não aceitariam

qualquer um. Por isso, foi buscar conselho no povoado, junto aos vizinhos imediatos do imóvel.

Desse modo, veio a ter com os irmãos Marques (“Mieca” e “Neia”), netos de Juca Tomás e

sobrinhos de Henrique, dos quais partiu a minha indicação.

O outro lado da história refere-se à minha decisão de alugar uma casa na Zacarias.

Como sempre, vários motivos concorreram para o mesmo fim. Havia, em primeiro lugar, a situação

no rancho que era propícia, apesar das espartanas acomodações que proporcionava. A convivência

com Henrique contava muito. Nossas conversas continuavam a render frutos. E ainda por cima,

haviamo-nos tornado próximos. “Poeira”, cuja saúde fraquejava, parece ter manifestado, à minha

revelia e sem o meu saber, a intenção de fazer de mim o seu herdeiro no rancho. Este fato, que

custei a descobrir, valeu-me uma pertinaz, embora disfarçada, hostilidade, por parte de “Beco”,

cujas pretensões sucessórias ao patrimônio do tio eram conhecidas. Tudo sob o manto das relações

  jocosas, mas nem por isso menos claro. Daí resultou, para mim, um duplo desconforto.

Incomodava-me ser tratado como um provável usurpador, da mesma forma que me aborrecia o

assédio de “Beco” ao espólio do tio, de um modo que me parecia agourento e desrespeitoso.Ao mesmo tempo, a presença mais constante das minhas estagiárias, no campo,

começou a suscitar a necessidade de instalações menos dependentes da hospitalidade local. A essa

busca de autonomia somava-se, ainda, um outro fator, menos utilitário, porém não menos

ponderável - o apego a um lugar aprazível e de grande beleza, capaz, de satisfazer os ideais

escapistas de qualquer habitante da cidade. Do lado prático, porém, tampouco faltavam motivos. A

intensificação das atividades preparatórias do 1º Cabildo Aberto aconselhavam a existência de

“não gostava de trabalhar”, vendeu a casa para um morador da Vila, de quem, por sua vez, aaluguei.

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uma base de operação na Zacarias, função que nem o rancho de “Henrique”, nem a casa de

Brígida, podiam suprir adequadamente, sem falar nos transtornos que tal uso traria aos dois.

Assim, tomei, finalmente, a resolução de alugar o imóvel, sito à Avenida Lucio

José de Marins, Nº 12. Era uma casa caiada de branco, com portas e janelas azuis, coberta por duas

águas, em telha vã. Tinha, além da sala, dois quartos, uma “varanda” interna, através da qual se

chegava ao banheiro e à cozinha, com seu fogão de lenha. Ficava logo na entrada do assentamento,

um pouco abaixo da crista do cômoro da lagoa, olhando para esta, de costas para o mar.

Estava escrito, porém, que essa casa não se converteria num mero escritório-de-

campo, embora viesse, também, a cumprir esta função. Com efeito, ao casar-me com uma das

pesquisadoras, passamos a habitá-la como marido e mulher, e com minha enteada, à qual, vinham

 juntar-se, eventualmente, os meus filhos.

A partir daí, minhas relações com Zacarias entraram em outra fase. Passamos a

participar da vida do povoado como uma família. Freqüentávamos as casas de nossos conhecidos e

amigos, os quais podíamos, agora, receber. Iamos a aniversários, batizados, casamentos, bailes e

velórios. Em suma, participávamos das relações de vizinhança, no dia-a-dia, nas festas e nas

comunidades de aflição.

Um balanço dessa transformação mostra que houve perdas e ganhos. O prejuízo

mais imediato foi o meu afastamento do rancho, que deixei de freqüentar com a assiduidade de

antes. Acho que Henrique se ressentiu dessa distância. Eu, com certeza, perdi grandesoportunidades de aprofundar-me no saber naturalístico, em torno do qual nossas conversas se

adensavam. Desse modo, acabei, também, por afastar-me da pescaria, o que, a curto prazo, teve

reflexos sôbre minhas recém-adquiridas habilidades, neste campo.

De tudo isso, advieram, no entanto, benefícios que, na minha qualidade de

pesquisador, não podia desprezar. A casa introduziu-me de vez no domínio genealógico, que era o

segundo grande eixo do meu projeto. O assunto parecia suscitar-se plenamente a partir dessa nova

posição. Pude adquirir, então, uma perspectiva mais abrangente da assim chamada “comunidade”.

Creio que a própria localização da casa, meio isolada, a montante do povoado, como um posto de

observação, não foi de todo inocente nesse relativo distanciamento. O fato é que comecei a ver com

mais crueza as peculiaridades dos arranjos sociológicos que viabilizavam a Zacarias. Fui quase

obrigado a tomar conhecimento do que, até então, permanecera na sombra; das muitas querelas; do

azedume que consituia seu rastro infalível; dos nem sempre edificantes dramas domésticos; do

moralismo agressivo dos pasquins; das ambições mal disfarçadas; das invejas corrosivas; das

acusações veladas de adultério e incesto; da maledicência miúda de todo dia, tanto quanto das

imputações graves, algumas delas caluniosas.

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A “fofoca”, esse poderoso mecanismo de controle social52, entretanto, abriu-me, de

par em par, as portas das relações de parentesco. Graças à participação feminina, sobretudo, tomou

impulso a revisão dos dados de censo e, com ela, foram-se completando e corrigindo os diagramas

de parentesco53. Assim, começou a tomar forma, aos poucos, um quadro genealógico integral dos

habitantes da Zacarias.

Tudo isso, porém, teve sobre mim um efeito inesperado, e, certamente, indesejado.

De forma imperceptível, a princípio, mas acelerando-se de maneira inquietante com o passar dos

mêses, meu encantamento participativo, doença infantil de todo etnógrafo, foi cedendo lugar ao

tédio e à desilusão. Permanecer na Zacarias tornou-se, para mim, uma experiência penosa, que nem

toda a sutileza alcançada pelas conquistas da etnografia era capaz de mitigar.

5. A Proposta

Era esse o meu estado, quando, no início do ano de 1987, expus, na parede da sala

de minha casa, o quadro genealógico completo do povoado, para pouco depois inscrever-me no

curso de doutoramento da Universidade de São Paulo, com uma proposta de projeto - “Um Evento

Social Paradigmático e seu Contexto Etnográfico: a dramatização da abertura-da-barra entre os

pescadores de Maricá/RJ”:54 

“O ofício de etnólogo guarda com a arte danarrativa um parentesco intrigante. Afinal, o exercício de ambossupõe o desejo manifesto de um diálogo, no sentido radical do

termo. Nossas etnografias apresentam-se tão indissoluvelmenteancoradas em nossas vidas que seria de todo inútil buscar nelasmais do que o simplesmente verossímil.

“Sei perfeitamente bem que este juízo não é  partilhado pela unanimidade dos cientistas sociais. No entanto,estou seguro de contar com a adesão de inúmeros colegas naedificação de teorias que não pretendam, uma vez mais,naturalizar o mundo social. Prefiro a alternativa mais generosade conceber a ciência social como ciência empírica dosignificado, rejeitando os lugares - comuns dos reducionismosdeterministas acalentados pela razão prática.

“ Adotar esta perspectiva é menos o fruto de uma pretensão de refutar teorias sociológicas de extração naturalista,do que o desejo e a necessidade de rever conceitos e categoriasquando o objeto de nossa investigação se impõe resistente. É 

52 A propósito, consulte-se Gluckman (1963:307-316). Em Zacarias, a “fofoca” é, apropriadamente, referidacomo “política” (“Aí começou aquela política...”).53 Participaram, além de Denise Maria Duque Estrada e Mariana Ciavatta Pantoja Franco, “Maninha” (filhade “Mieca” e “Ita”) e “Déia” (filha de “Beco” e Ruth).54 O que segue é a íntegra da proposta de projeto com que a Profª Dra. Luciana Pallestrini me aceitou como

candidato ao doutoramento em Antropologia, após longa entrevista realizada no seu gabinete, no MuseuPaulista, em 12 de fevereiro de 1987. Na ocasião, apresentei-lhe, e aos demais membros da banca, todo omaterial de campo relevante, inclusive as genealogias.

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reconhecer não só as limitações de nossas teorias historicamentedadas, mas admitir nossas intuições como socialmentemediatizadas.

“Uma visão não empiricista do trabalho-de-campo na tradição dos estudos antropológicos, tem contribuído,

significativamente, para a aceitação de uma postura maisrelativizadora não só do mundo dos fenômenos gerais da vidasocial, como também das próprias teorias que empregamos natentativa de sua compreensão.

“ Durante os últimos dez anos venho realizando eorientando pesquisas entre grupos de pescadores no Estado do

  Rio de Janeiro. Essa atividade, mais recentemente, tem sidoobjeto sistemático e focalizado de atenção, no exame extenso dos

  processos sociais em curso na região das lagoas litorâneas,sobretudo no Município de Maricá.

“O quadro estereotipado que se delineia com o

acelerado processo de urbanização de toda área, não é muitodistinto, ao que tudo indica, daquele que vem ocorrendo nasúltimas décadas ao longo de nosso litoral. O turismo, essacuriosa topofilia , com suas derivações e variações sazonais, alémde trazer alterações na morfologia social dos lugares, segregaum desejo de permanência capaz de gerar uma verdadeira

 topofobia  , ao redefinir e potenciar sistemas de representaçõesconcorrentes.

“ A paisagem e a poética dos lugares é função doconjunto de valores que costumamos emprestar-lhes. Seussignificados, por isso mesmo, são cambiantes e mutáveis. O

recente incremento da ocupação urbana em Maricá espelha osconflitos inerentes a tal processo.

“O caso de Zacarias, assentamento de pescadores às margens do Lago Grande, seja pela expressividadeque detém no sistema, seja pela profundidade histórica que aliassumem os conflitos derivados da forma de ocupação referida, é exemplar em todos os sentidos. É a partir dele e através da

 perspetiva que oferece de leitura do sistema de relações vigentesna região, que pretendo desenvolver meus argumentos e dar consistência a um projeto de pesquisa.

“Tudo já foi pensado alguma vez, diz Goethe, só

o que precisamos fazer é pensá-lo mais outra vez. Tenho sempreem conta essa afirmativa quando ouso expor alguma questão ou

 formular um problema, pois toda a tarefa do etnógrafo consisteem permanentemente reinventar o mundo. Não qualquer mundo,

  porque o ofício supõe, como já disse, uma relação dialógica,  portanto referida a no mínimo dois sujeitos, dois modos de pensar, duas formas possíveis do discurso.

“Para contar, sugere-nos Umberto Eco, é necessário primeiramente construir um mundo, o mais mobiliado

  possível, até os últimos pormenores. Pretendo seguir a risca arecomendação erudita: Rem tene, verba sequentur - tenha (a

coisa) isso, as palavras virão. Ora, isso precisa ser definido casoa caso quando se trata de apreender contextualmente o que isso efetivamente quer dizer. Portanto, ao inspecionar a assertiva

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latina em seu modo acusativo, retornamos ao problema deconsiderar, no âmbito da descrição etnográfica, as coisas em suadimensão narrativa, quer dizer: socialmente validadas.

“  Daí resulta que o etnógrafo não só estáimpedido de transmitir o puro ‘em si’ da coisa, como seria vão

dedicar tanto esforço para simplesmente fazer do ofício relatórioou informação. Muito ao contrário, mergulha a coisa na vida dequem relata, a fim de extraí-la outra vez dela, pois, tal qual oartesão, é assim que adere à narrativa a marca de quem narra,como à tigela de barro a marca das mãos do oleiro, como nosensina Walter Benjamin.

“Ouvir uma história é pôr-se a caminho nacompanhia daquele que sabe; mesmo aquele que não teve o

  prazer do evento narrado, ao lê-lo não pode subtrair-se dessacompanhia do narrador. O conhecimento etnográfico, tal qual aarte da narração, resulta do tempo. Não do instante homogêneo,

mas da sucessão de eventos que vão tramando e deixam entrever o seu objeto. Vou tentar, em poucas palavras, fornecer uma visãogeral do setting onde serão, pouco a pouco, introduzidos os

 personagens com seus desempenhos singulares.

“Quem chega a Zacarias começa logo acompreender, ou pelos menos a suspeitar, que acontecimentosrecentes produziram efeitos indesejáveis para grande parte deseus moradores. Não é preciso grande esforço nem perspicácia,

 pois as referências são imediatas. Qualquer um é capaz de desfiar um sem número de razões para justificar não só um modo devida, mas uma disposição espacial peculiar do assentamento.

“  Zacarias está dicotomizada, dividida. Suamorfologia social traduz uma topografia moral. Entre a Ponta doCapim e a Ponta da Pedra, topônimos locais, estão aqueles que

 ficaram na ‘luta do tostão contra o milhão’. Mais acima, entre ocômoro da lagoa e as taboas do Lago do Bacopari, inscrevem-seos signos de uma grande cisão. Estão ali ‘os que se renderam’

 juntamente com ‘os que se venderam’. Essa retórica dos motivosdesenha e circunscreve na paisagem, a história de uma saga. Asaga dos pescadores da Lagoa de Maricá do ponto de vista doassentamento de Zacarias. Dizer    ponto de vista implica,necessariamente, assumir uma mediatização. Esta, por sua vez,institui um olhar.

“ As ‘casas de cima’ vis-à-vis as ‘casas de baixo’opõem de forma complementar três respostas, ou três modos deescolher: a rendição, a venalidade e a permanência. Por detrásdo bucolismo nostálgico que essa área da restinga traduz,constata-se a convivência e o contraste que processos sociais deelevados custos acarretam para diferentes dimensões do sistemade relações de todo o complexo lagunar que constitui, de maneiragenérica, a Lagoa de Maricá.

“Tudo, segundo a perspectiva dos que ficaram(‘os que lutaram’), teve início há aproximadamente quarentaanos atrás. Lúcio Thomé Feteira - português, industrial, casado,residente em Lisboa, Portugal, conseguira do então interventor do Estado, Ernani do Amaral Peixoto, a concessão para explorar 

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as areias das dunas de Maricá, visando seu aproveitamento naCompanhia Vidreira de sua propriedade, situada no Município deSão Gonçalo. Passa ano, entra ano, nosso industrial foi além,muito além do que havia sido concedido. Arroga-se o direito desenhor e legítimo possuidor de várias glebas de terra,remanescentes da antiga ‘Fazenda de São Bento’, investindosobre os moradores de Zacarias na tentativa de erradicá-losdaquela área para o desenvolvimento do ambicioso projeto deconstrução da ‘Cidade de São Bento’. Toda a concepçãourbanística vem assinada por prestigioso arquiteto cujo nome

  poderia perfeitamente jamais ter sido associado a tal empresa.  Lúcio Costa e sua equipe legitimava, com o peso de seu estrocriativo o acontecimento mais violento e dramático que deveriaser digerido pelas estruturas locais. É desse acontecimento edessas estruturas que nos falam, incessantemente, os moradoresdos diversos assentamentos de pescadores do entorno das lagoasde Maricá.

“‘A luta do tostão contra o milhão’ é muitomenos a história de um cisma na comunidade de Zacarias do quea expressão dramática da produção de uma identidade. O projetoda ‘Cidade de São Bento’ supunha uma alteração significativa noecossistema lagunar, além da intervenção catastrófica navegetação existente em toda faixa de restinga. Do ponto de vistasociológico, no entanto, a alteração mais crucial foi aquela queresultou da construção de uma estrada litorânea que impedia aabertura sazonal da barra oceânica. Com isto, com essa simplesestrada, estava colocada em questão a reprodução da identidadesocial de pescador da Lagoa de Maricá.

“ A   abertura de barra é o que poderia ser considerado, num contexto etnográfico determinado, um eventosocial paradigmático. Um evento a partir do qual todo o sistemade relações vigentes na região pode ser apreendidosinteticamente. A ‘barra’ desempenha aqui a possibilidade detotalização do sistema em sua unidade dramática. Por issomesmo é pedagógica no entendimento dos processos sociais emcurso. Constitui uma verdadeira arkhé  , princípio, matéria

  primordial na elaboração dramática da identidade social dos pescadores da lagoa.

“  A estrada impediu o desempenho desse rito

extremamente expressivo. No entanto, sua presença nas  formulações discursivas, narrativas, é constante. Ato técnico eexpressivo, a abertura da barra era precedida pelo procedimentode demarcação (‘riscar a barra’) de pontos que iam desde asmargens do Lago do Bacopari, atravessando toda a faixa derestinga até chegar ao mar. Recaía esse privilégio sobre algunsnotáveis do assentamento de Barra de Maricá. Verdadeira castasacerdotal, guardiães da barra, exibiam, a cada abertura da

 barra  nativa , com a prudência e a sapiência daqueles que têm odireito de se pronunciar em tais ocasiões, sua tekhné. Era preciso‘curar’ a lagoa. Suas águas precisavam ser renovadas e

  fertilizadas por aquelas do mar. O phármakon era por eles

conhecido e sua justa medida, administrada com todo o rigor,

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conferia, sazonalmente, vida àquelas águas - lavoura do pescador.

“ A ‘Cidade de São Bento’ basculou para dentrodo sistema muito mais do que a utopia onipotente de Lúcio Thomé Feteira. Com ela veio junto a cizânia e o desespero daqueles que,

impotentes, renunciaram à sua condição de produtores ousimplesmente abandonaram suas casas e o lugar onde deixaramseus ‘umbigos enterrados’.

“Os elementos integrantes do sistema produziramarranjos diante desse acontecimento com o intuito de superaremo cisma dando continuidade a um modo possível de convivênciacom as alterações e mutações a que foram submetidas asestruturas locais.

“Penso narrar ao longo de minha tese todo o processo dramático e aflitivo a que foram e estão submetidos osassentamentos de pescadores de Maricá. Esse empreendimento

requer uma certa estratégia que assegure ao mesmo tempo a boacompreensão do sistema em sua totalidade e garanta, pela

  propriedade de tratamento dos dados etnográficos, o alcanceanalítico necessário para o entendimento da questão da produçãodramática da identidade social em contextos específicos.

“O quadro geral da argumentação foi esboçado.O problema agora é constituir o mundo de que falávamos noinício, as palavras virão quase por si sós. Narrar é pensar com osdedos e não posso continuar sem ter definido um modeloespecífico de leitor, pois necessito saber, antes de mais nada, se omeu convite para mergulhar no contexto etnográfico de uma

  pequena aldeia de pescadores às margens do Lago Grande de Maricá, será aceito”.

* * *

Não mencionei as circunstâncias nas quais esta proposta de projeto foi concebida

pelo gosto do detalhe auto-biográfico. Quis precisar e qualificar o momento, porque representou

uma inflexão decisiva na trajetória do meu trabalho.

Quando vi concluída a genealogia, compreendi que a pesquisa de campo tinha-se

encerrado, para mim. De algum modo, tal circunstância ficou-me na memória sempre associada aum episódio.

Muita gente foi até minha casa olhar o imenso quadro genealógico, cheio de linhas

coloridas, na parede da sala. Houve, naturalmente, comentários. Cada um tratava de localizar-se e

aos seus, no diagrama, o que levou, eventualmente, a retificações do mesmo. Em geral, porém, o,

sob determinados aspectos, monstruoso dispositivo, não parecia espantar ninguém.

Recordo, no entanto; que, ao final da tarde do primeiro dia, apareceu “Bengo”,

Antonio Breve Marins. Trazia consigo uma das netas. Depois de ouvir minhas explicações sobre anatureza do quadro, declarou, com solenidade, o chapéu encostado ao peito, que aquilo era “uma

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coisa muito importante” que eu havia feito por eles. Deteve-se a olhar o labirinto genealógico dos

Marins. Mostrou à neta onde se encontravam o seu nome e o dela. Em seguida agradeceu,

despedindo-se, com algumas palavras mais, visivelmente emocionado. A partir daí desencadeou-se

o fluxo das visitas.

Desse dia em diante, aconteceram duas coisas. A primeira delas correspondeu a

uma mudança radical da minha presença na Zacarias. Continuei a frequentá-la, não mais como

pesquisador, entretanto. Passava lá os fins de semana, os feriados e as férias como um veranista,

adotado pelos zacarieiros. Tinha-me transformado, pois, numa espécie de estrangeiro de dentro55.

O segundo fato relevante foi a decisão de elaborar o projeto, anteriormente

apresentado. Com isso, vi-me lançado a uma nova tarefa, em tudo e por tudo distinta da pesquisa

propriamente dita: a de escrever, ou de preparar-me para escrever.

A propósito dessa nova etapa do ciclo etnográfico, não posso senão concordar com

Michel de Certeau, quando observa que “a construção de uma escrita (no sentido amplo de uma

organização de significante) é uma passagem, sob muitos aspectos, estranha”56.

Com efeito, esse deslocamento do universo aberto da pesquisa desemboca,

fatalmente, naquilo que Henri-Irenée Marrou, referindo-se ao discurso histórico-gráfico, denomina

a servidão da escrita57.

Também a etno-grafia se subordina à lei dos discursos escriturários, mediante a

qual as regras da prática, às quais se subordina o trabalho-de-campo, terminam por inverter-se.

Assim, por exemplo, a escrita prescreve “como início aquilo que na realidade é um ponto de

chegada, ou mesmo um ponto de fuga da pesquisa”58. A segunda imposição, que se acrescenta à

anterior, estabelece que, sendo embora interminável a busca, o texto deve estruturar-se em vista de

um fim ou fecho, prefigurado desde o começo. A terceira e última prescrição do texto escrito sendo

sua plenitude, determina à tarefa etnográfica sejam preenchidas, ou obliteradas, “as lacunas que

constituem, ao contrário, o próprio princípio da pesquisa, sempre aguçada pela falta”59.

Como toda e qualquer disciplina, também a antropologia “mantém suaambivalência de ser a lei de um grupo e a lei de uma pesquisa científica”60. Assim, vemo-nos

obrigados a levar para o campo determinados instrumentos conceituais, e somos instados a expor e

55 Esse período compreendeu, grosso modo, os anos de 1987 e 1988, encerrando-se em fevereiro de 1989.56 Certeau, 1982:94.57 apud , Certeau, idem:ibidem.58 Certeau, idem:ibidem.

59 Certeau, idem:ibidem.60 Certeau, 1982:70.

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a dar conta dos mesmos no pórtico da nossa tarefa escriturária. Por isso, convém dedicar-lhes, antes

de nos embrenhar-mos na etnografia, alguma atenção.

6. O Campo e as Teorias

Num ensaio intitulado “Aprender e Ensinar”, Emanuel Carneiro Leão afirma:“Para aprender, não podemos receber tudo mas devemos, de certo modo, trazer alguma coisa

conosco para o encontro”61. Ora, o que conduz a todo e qualquer encontro é sempre uma

inquietação. O outro é, por excelência, o alvo das nossas questões, o destinatário eletivo das nossas

perguntas. Contra ele assestamos nossas baterias, submetendo-o ao fogo cruzado dos quês - Quare?

Quis? Quã? Quid ? Qualis? Qui? Quo? Quomõdo? Quando? Quorsum? Quotíes? Quantum? Quot ?

E, às vêzes até, à perigosa questão da serpente: Quidni? - “Por que não?”62.

É, portanto, sempre de uma busca que se trata. Mas não de uma busca qualquer,

pois segue um modo sui generis de inquirir. Propor um questionamento obrigado a mover-se dentro

de certos limites, determinados, num extremo, pela permissão (quiçá prescrição) e, no outro, pelos

interditos.

Quem dá ao ofício de etnólogo sua forma específica de perquisicionar são as

teorias. Victor Turner, no entanto, admite que “embora levemos conosco, para o campo, teorias,

estas só se tornam relevantes se e quando iluminam a realidade social”63. Acrescenta, ainda, que

nem sempre são os sistemas teóricos na sua totalidade os responsáveis pela dita iluminação. Às

vezes, apenas idéias esparsas, fulgurações conceituais, aplicadas a dados igualmente dispersos,realizam essa virtualidade.

São essas intuições fundamentais, e não o arcabouço lógico no qual estão

inseridas, que constituem a panóplia do pesquisador. Tudo se passa, portanto, como se ao invés de

partir para o combate revestido com as armas completas de um grego, um romano, um godo, um

tártaro-mongol, ou um guerreiro medieval, lhe fôsse facultado ingressar na luta de armadura

compósita, guarnecido com o carro de combate de um, o escudo de outro, a espada de um terceiro,

a lança e o elmo de um quarto, a cota de malhas de outro ainda, e assim por diante.

Cada apetrecho, com suas virtudes próprias, tem, no entanto, de ajustar-se a um

propósito e a um contexto de atuação particulares. Talvez seja este o significado das palavras de

Georges Dumézil, quando diz: “sempre que começamos uma pesquisa, somos forçados a inventar

um método”64. Da mesma forma poderíamos interpretar as palavras de Lévi-Strauss, quando, para

escândalo de leitores em busca de coerência, afirmava: “En matière de philosophie j'ai fait flèche

61 Carneiro Leão e Lacombe, 1975:45.62 Cf. Graves, 1961:252.

63 Turner, 1974:23. A propósito, consulte-se, também Evans-Pritchard, 1978.64 Dumézil, 1981:89.

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de tout bois”65. Ou ainda a famosa blague de Marcel Granet - “ La méthode, c'est le chemin, après

qu'on l' a parcouru”66.

Ora, o projeto formulado em 1987 não é senão uma tentativa de articular os

diversos insumos teóricos que, cada um a seu modo, se provaram e aprovaram no trabalho-de-

campo, na medida em que foram capazes de responder, satisfatoriamente, aos problemas suscitados

pela observação sociológica. Convém, pois, arrolar aqueles que se revelaram os mais importantes,

dentre os muitos recursos mobilizados para superar as dificuldades do caminho.

Vejo que, neste sentido, o partido básico do método foi determinado pela noção de

drama social. A escolha dessa metáfora se impôs, por assim dizer, com o próprio campo empírico

da pesquisa. Victor Turner cunhou a categoria drama social para dar conta dos dilemas inerentes

aos processos de segmentação e continuidade das aldeias ndembu. Sucede que também o

assentamento da Zacarias se encontrava, desde o início dos anos setenta, às voltas com um cisma ecom a busca agônica de permanência de um dos seus segmentos, aquele, precisamente, em que

decidi desenvolver minha investigação sobre o dispositivo técnico-naturalístico da pesca lagunar.

“A luta do tostão contra o milhão”, como dizem os pescadores da Praia da

Zacarias, não era, entretanto, o único grande evento dramático desse contexto etnográfico. Além

dele, podiam assinalar-se, ainda, as repetidas mortandades de peixes, dentre as quais a maior foi a

de 1975.

Também elas envolviam uma questão de continuidade. Tratava-se de saber se,diante da recorrência do fenômeno, a identidade social de pescador tinha alguma chance de se

reproduzir no futuro imediato ou se, ao contrário, este reservava aos seus respectivos portadores a

dissolução, pura e simples, do seu modo de vida.

A resposta a essa questão dependia, por sua vez, no entender dos zacarieiros, da

possibilidade de se reeditarem, periodicamente, as aberturas de barra, eventos dramáticos por

excelência do sistema de relações sociais do qual a pesca lacustre fazia parte.

Diante disso, não havia como ignorar que toda a vida social da Zacarias era umaespécie de epítome dos conflitos aos quais muitos dos outros aldeamentos pesqueiros haviam

sucumbido, ou estavam em vias de sucumbir.

Em Zacarias, no entanto, este processo assumia uma densidade dramática peculiar,

para a qual contribuiam dois fatores. Primeiro, sua luta de vida ou morte,não apenas contra essa

vanguarda da vida urbana que eram os loteamentos, mas contra uma cidade inteira - a Cidade de

São Bento da Lagoa. Em segundo lugar, por causa de uma história que os zacarieiros contavam a si

65 Lévi-Strauss, 1972:89-90. “Em matéria de filosofia, fiz flecha de qualquer pau”.66 apud Dumézil, 1948:12. “O método, é o caminho, depois de o termos percorrido”.

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mesmos sobre si mesmos, e em virtude da qual se reconheciam como personagens de uma saga

inscrita na paisagem da restinga - a história de Juca Tomás e sua descendência.

Uma vez adotada, essa perspectiva do drama social trazia consigo a referência

básica ao conflito. Esta referência consagrou-se, em oposição à ortodoxia estrutural - funcionalista

do modelo homeostático, na antropologia britânica, sobretudo a partir de Edmund Leach e Max

Gluckman. Em torno deste último, a assim chamada “escola de Manchester” dedicou-se à

compreensão da vida social como processo, palavra com a qual não pretendia, apenas, designar o

seu movimento, enquanto devir, mas, apoiando-se no sentido judicial da metáfora, aludir ao seu

 primum mobile, o conflito e suas formas de composição.

Assim, a vida social, no seu caráter essencialmente dinâmico, surgia,

concomitamente, como produtora e produto do tempo. No seio deste, entretanto, emerge uma

distinção. Há um tempo comum, o fluxo constante da vida quotidiana, e um outro tempo, a cadatanto marcado por momentos onde o processo social parece ganhar um ritmo, uma tensão e uma

intensidade singulares.

Convencido dessa qualidade dinâmica das relações sociais, pela leitura de

Znaniecki, Turner enxergava no mundo social “o movimento tanto quanto a estrutura, a

persistência tanto quanto a mudança, na verdade, a persistência como um aspecto marcante da

mudança”67.

As implicações dessa perspectiva para a apreensão da vida social levam a admitir,como unidades irredutíveis de análise desta, não somente a ação social, mas, sobretudo,

determinadas fases da mesma, nas quais ocorre uma obvia e nítida oposição de interesses e atitudes

de grupos e indivíduos.

Consideradas como “unidades isoláveis e, detalhadamente descritíveis do processo

social”68, com uma tonalidade marcadamente agônica, vemo-las surgir, nas análises de situação

social (Gluckman)69, ou como etnografias de dramas sociais e processos rituais (Turner)70.

São, pois, as situações, dramas e processos rituais momentos críticos da apreensãoetnográfica, graças à sua capacidade de ressaltar e, desse modo, evidenciar a forma e o perfil

processual característicos das totalidades sociais. Foi esse tipo de compreensão que deu origem ao

67 Turner, 1974:32.68 Turner, 1974:33.

69 Gluckman, 1940.70 Turner, 1957, 1967, 1969, 1974 e 1980.

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que, no campo dos métodos etnográficos, ficou conhecido, seja como situational analysis, seja

como extended - case method 71.

Esse partido metodológico impunha uma inequívoca preferência pelos dados

colhidos no calor da hora, quando diante de um conflito de regras ou direitos sociais, ou diante de

uma passagem crítica e ritualizada da vida social, não resta aos homens senão assumir posições e

dar expressão aos seus sentimentos.

Se os ritos e conflitos, no seio de uma sociedade, põem em movimento os homens,

e se é verdade que os homens encarnam valores sociais72, então é nessas oportunidades que surgem

os personagens, individuais ou coletivos, cuja interação dá ao grupo seus enredos paradigmáticos,

conferindo aos distintos momentos da vida social o seu tempêro específico.

É, pois, esse tipo de evento que proporciona ao etnógrafo as melhores ocasiões

para surpreender a qualidade da vida social, isto é, na expressão de Florian Znaniecki, o seu

coeficiente humanístico73. Com isso, não se quer descartar a relevância da observação minuciosa

da vida quotidiana, mas indicar ao etnógrafo uma espécie de território preferencial para o seu

desempenho, enquanto “caçador ativo”74.

Isto serve para esclarecer o propósito do trabalho-de-campo. Em sua busca o

etnógrafo vê-se obrigado a prestar atenção na busca do outro, isto é, naquilo que confere sentido à

existência desta. Ora, onde há busca há conflito, porque homens são valores, e onde há valores, há

contendas em torno de valores. E quando é mesmo que um valor adquire toda sua carga? Quando éencenado, isto é, quando surge no seio do rito, da cerimônia, do processo judicial, ou de outra

representação dramática qualquer, como uma associação inextricável de categorias e sentimentos;

de intelecto e emoção, de forma estética e conteúdo moral75 

De algum modo, tais formas sempre me pareceram ter recebido de Marcel Mauss o

seu batismo mais sugestivo quando se refere ao fato social total, típico ou privilegiado76. Quando

71 Esse método de estudos-de-caso detalhados, que retoma e aprofunda um preceito de Malinowski, foi odispositivo heurístico privilegiado em Manchester (Gluckman, 1961, 1965 e 1967; Mitchel, 1956;Middleton, 1960. Van Velsen, 1967). É com Turner, porém, que alcança sua forma mais acabada, tal comoa encontramos em Schism and Continuity in an African Society (1957), conhecido no Brasil no ano seguintede sua publicação, como atesta o exemplar lido e anotado por Gioconda Mussolini, doado à biblioteca daFFLCH da USP, por exemplo.72 Cf. Znaniecki, 1934:176.73 Znaniecki, 1934:36-37. É interessante observar que The Method of Sociology circulou no campointelectual brasileiro, conforme prova o exemplar de Gioconda Mussolini datado de 12/XI/51, e que seencontra na biblioteca da FFLCH da USP.74 Malinowski, 1978:8.75

Ver, a propósito, Bateson, 1971:10, 41-42 e 229.76 Evans-Pritchard, em sua “Introdução” à versão inglesa do Essai sur le Don (1952), considera “total” apalavra-chave do Essai. Ressalta o valor metodológico do estudo, bem como o seu pioneirismo enquanto

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se diz que um fato social é total, considera-se-o como atualização condensada da diversidade social,

em termos de domínios, atores e valores. Quando se afirma que tal fato é privilegiado, pretende-se

considerar sua capacidade de ilustrar, estética e moralmente, um determinado contexto sócio-

cultural. Mas, ele é privilegiado, também, na medida em que a própria sociedade lhe atribui um

lugar especial77. Do ponto de vista do trabalho-de-campo, poder-se-ia considerá-lo, ainda,

privilegiado porque é nele e através dele que se torna possível surpreender a sociedade como

demiurgo de sí mesma, no fugidio e preciso instante de sua mímesis78.

Ao escolher a expressão evento humano paradigmático, para a briga de galos em

Bali, Clifford Geertz enfatiza, nesse tipo de evento, o seu caráter modelar79. Diz que se trata de

“uma estória que [os balineses] contam a si mesmos sobre si mesmos”80, acentuando a dimensão

pedagógica do evento, na medida em que reconhece nele “uma espécie de educação sentimental”81.

Desse ponto de vista, tudo que o etnógrafo pode almejar é que um (ou mais) dessesfatos paradigmáticos, típicos, totais, ou privilegiados, se ponha(m) diante dele no campo, pois seu

ofício crê ser este o mais seguro atalho para o âmago de qualquer totalidade sócio-cultural, a via

régia que leva ao corpo, ao coração e ao espirito dos homens em sociedade.

Se é verdade que “etnógrafo é o nome de um papel que todos os antropólogos

desempenham ocasionalmente”82, fatos sociais totais, típicos, privilegiados, ou eventos humanos

[sociais] paradigmáticos, oferecem ao profissional as mais profícuas oportunidades de encarnar

esse papel.

Ao estabelecer o elenco das fontes do cientista social, Znaniecki, o eminente

sociológo polonês, contemporâneo de Malinowski, classificava-as em duas categorias - a

observação e a experiência pessoal83. Através de uma e outra vai constituir-se esta “série de

“estudo sistemático e comparativo de um costume muito difundido: a troca-dádiva”, e como explicação dafunção desta no sistema social (1972:28:31).77 Trata-se, pois, não só de um recurso metodológico, mas de um dispositivo que a própria sociedade erige,para se reconhecer, em seguida, neste seu artifício de totalização.78 Com efeito, este auto-engendramento pode ser melhor caracterizado como criação artística (ver Peters,1977:64-65).79 Geertz, 1973:450. De minha parte prefiro trocar "humano" por social, pois o paradigmático só o é nocontexto nativo, ou naqueles que lhe sejam congêneres.80 Geertz, 1973:448.81 Geertz, 1973:449.

82 Freedman, 1978,V.1:44.83 Znaniecki, 1934, cap. IV.

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impressões multitudinárias”, capaz de prevenir, como uma espécie de princípio de admissibilidade,

as interpretações errôneas, para usar as palavras de Radcliffe-Brown84.

A observação, direta ou indireta, no entanto, permaneceria privada de qualquer

“coeficiente humanístico” não fôssem as experiências pessoais do pesquisador, ou suas

experiências vicárias, isto é, aquelas que lhe foram contadas por terceiros.

Desse modo, coloca-se o problema da narrativa, forma desde sempre privilegiada

da experiência pessoal. Quem viveu algo que mereça ser transmitido trata de contá-lo. Ora, dentre

os eventos passíveis de causar impressão, vêm, em primeiro lugar, as formas dramáticas do

conflito, do ritual, da festa. Ao descrevê-los, a narração restitui aos dados esse encantamento

proveniente da vivacidade das idéias, emoções, objetos e matizes de cor e som, do episódio em

cena aberta.

Narrar, do latim narrare (“contar”), é uma derivação do radical indo-europeu

gná, que significa “conhecer” (ter gnósis, sobre algo). A narrativa é, pois, um modo peculiar de

reflexão sobre eventos notáveis precedentes, em busca do seu significado. Seu referente, é algum

tipo de ação, técnica ou ritual, ou as duas coisas ao mesmo tempo.

E, assim, voltamos aos dramas que, como eventos paradigmáticos, são o objeto

eletivo do narrador, pois, como observa Victor Turner, derivando-se drama do grego drân (“fazer

ou agir”), “a narrativa é conhecimento (e/ou gnósis) que emerge da ação, isto é, conhecimento

experiencial”85

.

O etnógrafo é obrigado a lidar com dois tipos de narrativas. Com as narrativas dos

eventos dos quais ele mesmo participou (como ator ou espectador) e com as narrativas dos eventos

de que terceiros participaram. Desse modo, os dramas configuram-se, para ele, seja como narrativas

próprias, seja como narrativas dos seus informantes, sobre eventos por eles vividos, ou, finalmente,

como narrativas de segundo grau, quando estes dizem - “os antigos contavam que...” Por isso, as

etnografias, profundamente entranhadas na vida do etnógrafo, enquanto pesquisador-de-campo,

dependem, em grande parte, de uma ars narrandi, inexoravelmente presa ao ponto de vista e à

habilidade do narrador, e, como tal, comprometida, menos com critérios de verdade, do que com a

verossimilhança.

Os nativos, entretanto, não são apenas fontes inesgotáveis de stories, isto é, de

experiências pessoais, próprias ou alheiras, ocupados em carregar trigo ao moinho do etnólogo.

Muitos deles arriscam suas próprias generalizações, ou veiculam as dos seus confrades,

84 Radcliffe-Brown, (1964:231) vê nessas “impressões multitudinárias” a fonte de uma “impressão geral”,impossível, segundo ele, de analisar, registrar e transmitir a outrem, e que, no entanto, serve como

dispositivo de segurança da interpretação.85

Turner, 1980:167.

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contemporâneos ou predecessores. Vale dizer que têm suas próprias teorias sobre o mundo em que

vivem. E essas teorias nativas constituem, também, fonte preciosa de material para a reflexão

sociológica.

Nesse particular, o meu esforço de compreensão e análise da identidade social do

pescador, inserido no sistema de relações da pesca lacustre em Maricá, beneficiou-se,

extraordinariamente, da teoria nativa sobre as barras sazonais como dispositivo crítico para o

manejo de todo o ecossistema lagunar. Do mesmo modo, revelou-se básica, para o entendimento da

sociedade e da atividade pesqueiras, a metáfora contida numa frase recorrente entre os zacarieiros -

“A lagoa é a lavoura do pescador”.

Foi com relação a esta última que me ocorreu, em boa hora, a pergunta da

serpente. Por que, ao invés de considerá-la uma analogia, fácil e superficial, não se haveria de levá-

la a sério, perguntando-se em que sentido a lagoa poderia ser, propriamente, entendida como alavoura do pescador?

E, se assim fosse, por que não considerar a existência de um nexo significativo

fundamental entre esse tipo de lavoura, praticado pela pesca lacustre, e os grandes ritos sazonais

das barras nativas, buscando explicitar a natureza e a relevância de tal nexo para a construção

dramática da identidade social de pescador, em Maricá?

Tal foi, em última análise, o aguilhão, que me acompanhou, desde o encerramento

do trabalho-de-campo, e ao qual caberia impulsionar, daí por diante, a etapa final de todo esse ciclo- sua transformação em texto, a prática escriturária da qual resulta toda e qualquer etnografia.

Este, no entanto, não é um passo de somenos importância. Embora presente, desde

o início, no campo, a tarefa de escrever assume, na elaboração final do relato etnográfico, o caráter

de um ciclo à parte.

Configura-se como busca concomitante de substância e forma do argumento.

Exige, por isso mesmo, inúmeras decisões, sobre pontos de partida e pontos de chegada, passagens

obrigatórias, caminhos adequados e atalhos oportunos, estratégias e táticas discursivas, paraenfrentar desafios, contornar tentações, flanquear obstáculos previsíveis ou surpreendentes,

escolher e alinhar dados e conceitos, dosando sua intervenção, ora com prudência, ora com audácia.

Em tudo isso, esforçar-se para não perder de vista nem a retaguarda, nem os

objetivos da argumentação, para que ao termino possa resultar, com a limpidez possível, a trajetória

desta, que outra coisa não é senão o método efetivamente adotado pelo estudo.

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7. Etnografia: Rem tene verba sequentur  

Aventura é uma palavra que, vez e outra, tem-se associado à atividade reflexiva.

Também os cientistas sociais invocam-na para qualificar suas incursões aos mundos das sociedades

e culturas, próprias ou alheias86.

Bronislaw K. Malinowski dá aos Argonautas do Pacífico Ocidental, o sub título - 

“Um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné -

 Melanésia”. Essa referência ao Argos, e à sua tripulação de heróis, para introduzir as façanhas

náuticas dos ilhéus trobriandeses, é, ao mesmo tempo alusão a uma aventura paradigmática, no

imaginário do Ocidente.

Os Argonautas, texto inaugural da antropologia moderna, fornece à disciplina seu

modelo e missão. Propõe-lhe um objeto - os nativos de determinado lugar; um tema - os

empreendimentos aventurosos desses nativos; e um gênero - o relato cujo eixo é a viagem. Não

apenas a viagem dos nativos, senão também a do antropólogo, como eles envolvido na busca de

bens simbólicos.

Sob o ascético rótulo de trabalho-de-campo, a viagem etnológica conservou o

nexo originário com a aventura, e, assim, manteve o apelo à imaginação, que surge, a cada tanto,

nas fórmulas encantatórias da narrativa etnográfica:

“ Imagine yourself suddenly set down surrounded 

by all your gear alone on a tropical beach close to a nativevillage... (...) Imagine further that you are a beginner, without  previous experience, with nothing to guide you and no one to help you. (...) Imagine yourself then, making your first entry into thevillage...”.

Se o leitor, porventura, não resistir a esse chamado, poderá encontrar-se, páginas

adiante, a bordo de uma masawa87, com o etnógrafo e toda a tripulação nativa:

“  Let us imagine that we are sailing along thesouth coast of New Guinea towards its Eastern end ”88.

Marcel Griaule, etnógrafo francês, notável pelas suas pesquisas entre os dogon,considerava o trabalho-de-campo uma espécie de “continuação, por meios científicos de uma

grande tradição de aventura e exploração”89.

Esse ponto de vista não surpreende, em se tratando de um viajante experimentado

como Griaule90. Que este, no entanto, tenha sido instigado às viagens por Marcel Mauss é, no

86Exemplos dessa associação encontram-se em Whitehead (1947), Nunes (1978) e Cardoso

(1986).

87Grande canoa marítima usada, no circuito do kula , pelos trobriandeses.

88 Malinowski, 1978 [1922]:4 e 33.89

 Apud Clifford, 1983:121, referindo Griaule, 1948:199.

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mínimo, curioso, sendo Mauss, notoriamente, homem de gabinete, etnólogo sem trabalho-de-

campo, no sentido usual do termo.

Mais curioso, ainda, quando se considera o modo de falar que tinha o velho

mestre, tal como o recorda um de seus alunos:

“Todo o tempo ele tinha falado caminhando, eracomo se os segredos de raças longínquas, um pedaço dosarquivos da humanidade vos tivessem sido revelados por umexpert sob a forma de uma simples conversação, pois ele tinha

 feito a volta ao mundo sem deixar sua poltrona, identificando-secom os homens através dos livros. Donde o tipo de frase tãocomum nele: eu como... eu amaldiçôo... eu sinto, significando deacordo com as circunstâncias: o melanésio de tal ilha come, ou ochefe maori amaldiçoa, ou o índio pueblo sente.”91.

Esse comportamento bizarro causaria perplexidade, também, a outro de seus

alunos, que não sabia nunca se podia ou não dar crédito a esses relatos, feitos na primeira pessoa,

por alguém que, manifestamente, não tinha estado lá92.

O fato de ter Mauss viajado o mundo por pessoas interpostas em nada diminuiu

suas qualidades de observador, como prova o Essai sur le don (1925), cuja interpretação da dádiva

resulta mais acurada do que a de seu amigo Malinowski, como este mesmo reconheceria mais

tarde93.

Marcel Mauss revela-se, desse modo, não só companheiro da viagem alheia, mas,

em princípio, adepto da viagem como recurso privilegiado da (in)formação etnográfica. Crê, pois,

na aventura, nas suas virtudes como caminho capaz de conduzir à revelação. Neste sentido, a

viagem alheia era, para ele, uma realidade, na medida em que realidade é tudo aquilo que excita e

estimula o nosso interesse, como sustentava William James, nos seus Principles of Psychology 

(1890)94.

90Griaule, foi, com efeito, um dos etnológos mais viajados, destacando-se, em sua carreira, a

missão científica à Etiópia (1928-1929), estimulada por Mauss, e a missão Dakar - Djibouti(1931-1933), além das suas repetidas visitas aos Dogon, na região das falésias de Bandiagara,no Niger.

91Dumont, 1972:10.

92“(...) não confiava nas pessoas que falavam dos “primitivos” sem jamais ter deixado seu

Gabinete. Mauss - por quem eu tinha a maior estima - sentia isso. Ele dizia que, infelizmente,só tinha encontrado alójenos durante uma temporada no Marrocos”. (Dumézil, 1981:89).

93Veja-se, a propósito Malinowski, 1973 [1926]:55, Nota 1; e sua Introdução aos Feiticeiros de 

Dobu  (1977), datada de 1931. Se com isso perde em títulos teóricos, Malinowski vê, noentanto, por este mesmo fato, asseguradas suas honras de observador e narradorescrupuloso.

94A propósito, veja-se o ensaio de Schutz - “Símbolo, realidade e Sociedade” in  Schutz,

1974:303.

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Excitação e estímulo, no entanto, são os ingredientes, por excelência, da aventura,

que, no dizer de Georg Simmel é “aquela parte de nossa existência que, embora vinculada às

anteriores e posteriores, transcorre, no sentido mais profundo, à margem da continuidade normal

dessa existência”, e cujas marcas são “a intensidade e a radicalidade com que nos faz sentir a

vida”95.

Desse ponto de vista, é aventura não só o trabalho-de-campo, que envolve,

sempre, algum tipo de viagem. Aventura é, igualmente, cruzar esse “grande deserto a ser

atravessado, jamais atravessado” que é, na expressão de Gaston Bachelard, a página em branco96.

A etnologia supõe duas viagens, das quais a primeira deve levar-nos ao outro,

enquanto a segunda nos impõe trazê-lo para junto de nós, o mais possível vívido, na sua diferença e

humanidade, para que possa servir à compreensão e aceitação construtiva dessa mesma

humanidade e diferenças em nós. Por isso, talvez haja em cada etnografia um quê de iniciação,como desejava Griaule.

A primeira dessas viagens é, sem dúvida, importante, na medida que permite ao

etnógrafo apropriar-se das coisas necessárias à construção do seu universo etnográfico.  Rem tene,

aconselha Umberto Eco, verba sequentur . Sem coisas, não há palavras.

Não menos crucial revela-se, entretanto, a viagem escriturária. Palavras não

brotam naturalmente das coisas, ou a página em branco não seria um deserto. Etnografia é a

redução das “impressões multitudinárias” à forma singular, por meio da escrita. É a transformaçãopaciente, e não raro penosa, de conversas, encontros, entrevistas, documentos heteróclitos,

conflitos, personagens, objetos e enunciados, num gênero de discurso.

A enunciação desse discurso, porém, não é tão fácil quanto nos faz supor o verba

sequentur . A construção do texto tem, igualmente, os seus “hóspedes não convidados”. E uma vez

escolhido o caminho, cada passo abre possibilidades e impõe restrições ao seguinte.

Além disso, por menor que possa ter sido o universo que o trabalho-de-campo

procurou abranger, este se revela, potencialmente, infinito, num verdadeiro “jardim dos caminhosque se bifurcam”.

Quem se vê obrigado a escrever sua etnografia vislumbra as dificuldades desse

tipo de viagem, talvez a mais difícil das duas, pela ascese interior que impõe ao etnógrafo. Uma vez

iniciada, requer inúmeras renúncias, apenas superadas pelas suas exigências, igualmente

avassaladoras.

95 Simmel, 1934:123 e 135.96

Bachelard, 1989:109.

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De certo modo, escrever pressupõe, não só a decisão de enfrentar as vicissitudes

desse processo, mas também o desapego do campo, isto é, uma separação, e, em virtude dela, um

retorno.

Com esse distanciamento deve iniciar-se um período de decantação da experiência

de campo. Nada há prescrito quanto ao tempo de duração desse interstício, nem tampouco quanto

ao modo de atravessá-lo.

Para mim esse interregno significou o progressivo deslocamento da pesquisa para

o plano acadêmico. O envolvimento com o estudo cresceu em proporção inversa à minha presença

no campo. De 1987 em diante, minhas idas à Zacarias foram rareando, até cessarem, quase

inteiramente, em 1989.

A decisão de escrever demorou, ainda, até 1991. Com ela encerrava-se um período

de latência durante o qual os materiais colhidos no campo visitavam, de forma às vezes

fragmentária, desordenada e fugaz, os meus pensamentos, tornando-se, para mim, uma obsessão

acalentada, porém inquietante.

Nas horas de vigília encontrava, por toda a parte, referências ao tema da pesquisa.

À noite, sonhava aberturas-de-barra e ouvia dos pescadores ponderações a respeito. Acordado,

procurava acrescentar coisas ao elenco das que tinham vindo comigo do campo. Dormindo, tentava

solucionar os quebra-cabeças dos quais me ocupava durante o dia. Sentia-me impregnado e, talvez

por isso, falava muito sobre o assunto, destilando-o, com diversos interlocutores.

O resultado foi a banalização da experiência etnográfica vivida no campo. Vieram,

então, as dúvidas sobre a relevância das questões e a pertinência das respostas que havia esboçado

para elas. E, por que não confessá-lo, a tentação de abandonar todo o projeto.

Ao longo dessa fase dediquei-me a todo tipo de manobras diversionistas. Dei

aulas, participei de órgãos colegiados na universidade, engajei-me em projetos de cooperação

científica e desenvolvi pesquisas, sempre sobre outros temas e jamais sem culpa. Sentia-me duas

vezes devedor. Uma vez diante de meus compromissos acadêmicos com o doutoramento, a outradiante dos zacarieiros, aos quais havia tomado tempo e atenção e de cuja cálida hospitalidade havia

desfrutado, por tantos anos.

Para o trabalho de escrita, entretanto, a coisa mais importante que sucedeu, nesse

ínterim, foi a mudança de ponto de vista. Até um certo momento, continuei a olhar as coisas como

se ainda estivesse no campo. Era, ainda, o etnógrafo que via, ao seu redor, o campo, com seus

personagens, lugares, rotinas e eventos.

Na medida em que me fui distanciando, porém, cristalizou-se uma nova

perspectiva. Olhava para o setting e via nele o etnógrafo que eu tinha sido, como se fosse um

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tertius: personagem, como os demais, da experiência passada no terreno. E, se isto nem sempre me

dava motivo de satisfação ou orgulho, habilitou-me, no entanto, a enfrentar a escrita.

Admiti, por fim, a necessidade de retomar o ciclo original da aventura

antropológica, que começa pela busca (viagem), se realiza no encontro e na admiração, mas cujo

coroamento é a narrativa, que não consiste senão em refazer todo o périplo, para si mesmo e para

outrem, no papel.

Ao narrar, entretanto, fui irresistivelmente atraído pela primeira pessoa do plural,

menos para solenizar a palavra do autor, do que para fazer justiça às muitas e diversas parcerias que

tornaram possível todo esse empreendimento.

Em seu conjunto, o argumento articulado no decorrer da narrativa etnográfica,

estruturou-se em seis partes, constituindo cada uma delas um capítulo, onde se (re)constrói,

reflexivamente, “uma forma de humanidade [que] somente se pode convenientemente denominar

pelas suas ocupações e, principalmente, pela ocupação central que organiza e regula as restantes”97 

- o mundo da pesca lacustre da praia da Zacarias, em Maricá.

O ano de 1991 decorreu na elaboração de dois desses capítulos. O primeiro deles,

sob o título de A Longa Agonia, configurou-se como uma discussão ampla da natureza, dinâmica e

perspectivas dos sistemas lagunares do litoral fluminense, para deter-se, em particular, no de

Maricá, cenário mais amplo da pesquisa.

As mortandades de peixes, sobretudo a grande mortandade, ocorrida em 1975,

serviram, não só de ponto de partida, mas também de questão ao capítulo.

A compreensão dos sistemas lagunares, desde sua formação até o seu estado atual,

constituiu-se, sobretudo, a partir dos trabalhos de Alberto Ribeiro Lamego, autoridade consagrada

na matéria.

O contexto ambiental específico do sistema lagunar de Maricá foi esboçado,

inicialmente, nas notas dos viajantes do século XIX - Luccock, Wied-Neuwied, Saint-Hilaire e

Darwin. Especial atenção mereceram os caminhos através dos quais a região se articulava com oscentros urbanos mais próximos - Niterói e Rio de Janeiro, principalmente. Os comentários de

Backheuser sobre o conhecido mapa de Vieira Leão (1767) foram, neste sentido, tão valiosos,

quanto as indicações dos viajantes.

A leitura de Marston Bates (1965) foi crucial para o entendimento das

determinações inerentes às águas interiores, das quais as lagunas são um caso particular e notório.

Com ele ocorreu um deslocamento, passando o foco da vida do sistema para a vida no sistema

lacustre.

97Cf. Ortega y Grasset, 1989:89.

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Quanto ao sistema-Maricá, como tal, a descrição pôde se adensar graças ao

exaustivo trabalho da equipe liderada por Lejeune de Oliveira (1955). Com este autor entrou em

cena o Canal de Ponta Negra, ainda e sempre, bête noire dos pescadores do Lago Grande, desde

sua abertura, nos idos de 1951.

Este canal, por sua vez, evocava um prospecto político, eminente no Brasil desde o

Império e começo do século que, a partir dos anos 30, se torna avassalador - o saneamento. Com

ele, porém, o espectro se amplia e incorpora a cidade, lugar nativo da cruzada sanitarista, seu

território primordial de experimentação e, finalmente, epicentro de sua ofensiva. Neste sentido, a

cidade-moderna surgia, antes de tudo, como cidade saneada, onde o princípio da circulação

disciplinada dos fluxos deveria substituir toda e qualquer forma de estagnação, a começar pela das

águas. Um ensaio de Didier Gilles (1988) foi esclarecedor quanto a essa diferença entre a cidade

moderna e sua rival antiga.O segundo capítulo esboçado chamou-se Gente das Areias e compreende uma

espécie de tríptico. A primeira parte deste recorreu, novamente, aos viajantes, nos quais se

evidenciava a convicção de que as paisagens geram e acalentam, nos homens, determinados

sentimentos, sendo pois capazes de plasmar, além de sua natureza física, também sua constituição

moral - hábitos, inclinações, temperamento e intelecto. Sob esta ótica foram percebidas as relações

entre a paisagem da restinga, assimilada ao deserto, e seus habitantes.

A parte central do capítulo tratou do processo de construção de um personagem-

tipo - o muxuango, caracterizado como o ocupante fortuito, abatido e decadente das restingas

fluminenses. Quis, além disso, situar esse empreendimento no contexto do pensamento social

brasileiro, onde se travou, sobretudo nas décadas iniciais do século, uma verdadeira querela em

torno dos estereótipos sobre as populações do interior brasileiro, opondo às idealizações

sentimentais do “caboclismo” as representações críticas dos partidários do saneamento, como

Belizário Penna e Monteiro Lobato.

A terceira parte buscou evidenciar a transformação dos personagens-tipo em tipos

concretos, valendo-se do exemplo do muxuango e da trajetória de seu criador, Alberto RibeiroLamego. Através dela pôde recuperar os nexos históricos e políticos entre a ideologia do

higienismo, a geografia humana e o mandato imperial da Nova República98, depois Estado Novo,

sob a égide de Vargas. Seu objetivo maior e final, no entanto, foi, além de situar o saneamento

enquanto política pública voltada para uma autêntica reforma da natureza, mostrar as repercussões

desta em Maricá, particularmente no povoado de Zacarias, desde o final dos anos 40.

98

Com a expressão “mandato imperial” procura-se enfeixar a reabilitação, pela NovaRepública, das realizações do Império, em oposição à República Velha, bem como umapropensão centralizadora e anti-federativa, cuja concretização se dá no Estado Novo.

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Em 1992 foram escritos os capítulos gêmeos Zacarias Sitiada e A Aldeia dos

Irredutíveis. O primeiro deles era uma extensa etnografia das transformações operadas na restinga

de Maricá pelo avanço da urbanização. O segundo concentrou-se na descrição circunstanciada do

assentamento da Zacarias e seus moradores.

A gemelaridade dos dois capítulos advinha do fato de servirem a propósitos

complementares, pretendendo, um caracterizar as forças conjuradas no assédio ao povoado, e, o

outro, o próprio lugar chamado Zacarias, enquanto ator coletivo da resistência ao avanço da cidade.

O primeiro, Zacarias Sitiada, mostra o esforço desenvolvido para incorporar ao

Estado-Nação as populações litorâneas e ribeirinhas, com o artifício das Colônias de Pesca. Ao

mesmo tempo, coube-lhe a tarefa de evidenciar a consagração do modo de vida urbano, ao longo de

seu processo de expansão, cujos reflexos se fizeram sentir, em Maricá, e portanto na Zacarias, com

mais força, a partir dos anos 70.

Zacarias Sitiada era, ao mesmo tempo, uma tentativa de restituir, ao drama das

mortandades e da urbanização, vivido pelos zacarieiros, o seu contexto sócio-político mais amplo,

no qual a cidade foi, aos poucos, afirmando-se como um valor inquestionável, em nome do qual se

podia, justificadamente, fazer tabula rasa de qualquer outro modo de vida.

O segundo, A Aldeia dos Irredutíveis, tratou desse mesmo drama, só que visto de

dentro. Para isso teve de caracterizar o povoado. Com essa finalidade, valeu-se de uma narrativa - a

saga de Juca Tomás e da família Marins, cuja importância para a Zacarias, tanto sociológica,quanto historicamente, referendam o papel que lhe cabe na etnografia.

Uma segunda preocupação do capítulo foi a localização da Praia da Zacarias no

contexto sócio-espacial que gravita em torno do sistema lagunar. A caracterização do lugar

empreendeu-se por meio da descrição exaustiva da casa, do grupo doméstico, do parentesco e do

patrimônio, na Zacarias.

A partir daí, abriu-se o caminho para uma discussão extensa da “luta do tostão

contra o milhão”. Esta culmina com o esforço de resgatar a retórica dos motivos invocados peloszacarieiros, a qual, por sua vez, tem sustentado sua disposição de resistir ao deslocamento do

povoado e do seu modo de vida, fundamentado na pesca lacustre.

Ainda em 1992, concebeu-se o capítulo sobre A Lavoura do Pescador que,

 juntamente com O Conúbio das Águas, foi concluído, embora parcialmente, no decorrer de 1993.

A Lavoura do Pescador consistiu, essencialmente, na busca de um sentido pleno

para a expressão nativa. Começou, pois, com a discussão da sorte do pescador, procurando

relacionar escassez e abundância do pescado com os fatores de incerteza e/ou previsibilidade

inerentes ao ofício da pescaria. Para ilustrar a natureza deste último, no caso da pesca lacustre

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praticada pelos zacarieiros, no Lago Grande, recorreu à etnografia circunstanciada da pesca-de-

galho. Com esta, evidenciou-se um manejo do eco-sistema capaz de conferir ao enunciado nativo

toda sua amplitude e plausibilidade.

O Conúbio das Águas, por fim, desenvolveu-se em torno de um tipo de evento -

as barras-de-emergência, barras sazonais ou “barras nativas”, como são melhor denominadas, pelos

próprios pescadores. Tratou-se aí de restabelecer as aberturas-de-barra de acordo com as

evidências disponíveis nos relatos dos viajantes, nas descrições dos naturalistas e dos pescadores,

nas posturas da legislação provincial, na memória narrativa dos zacarieiros e nas raras ocasiões em

que foi possível observar, diretamente, tais acontecimentos.

As barras nativas revelaram-se, a partir daí, como o dispositivo crítico de todo o

sistema de relações, do qual faziam parte os assentamentos pesqueiros da lagoa de Maricá, entre

eles Zacarias. Verdadeiros eventos sociais paradigmáticos, essas aberturas-de-barra surgiram, aí,como o princípio estruturante de um modo peculiar de implementação da vida, tal como o

conheceram, praticaram e acalentaram muitas gerações de pescadores, não só em Maricá, mas em

toda faixa litorânea do Brasil, onde a vida ou a morte de lagunas aprisionadas por restingas depende

da sua comunicação com o mar.

* * *

Se a escrita impôs o recolhimento aos limites estreitos do gabinete, não permitiu,

entretanto, isolar-se inteiramente do campo. Determinou sim uma distância, mas, com esse sentido

radical do di-stare, pois, encontrando-se embora no seu escritório, o etnógrafo é, intensiva e

quotidianamente, obrigado a manter-se em sintonia com o domínio empírico de sua investigação.

Tal exigência, resulta do esforço de elaboração dos dados que a experiência de

campo lhe proporcionou. Não é incomum, nessas circunstâncias, a descoberta de insuficiências no

corpus consolidado dos materiais da pesquisa. Lacunas, imprecisões, contradições, ambigüidades,

toda elas resultantes de perguntas mal postas ou, simplesmente, não formuladas, por inabilidade ou

ignorância, ou, ainda, por que as situações vividas no campo excedem, invariávelmente, aspossibilidades de apreensão e entendimento do etnógrafo.

O trabalho-de-gabinete, conduzido pela escrita é, neste sentido, um impiedoso

revelador de carências etnográficas e, assim, reclama o retorno eventual ao campo.

Trata-se, neste caso, de verdadeiros raids etnográficos. Incursões mais ou menos

fulminantes visando a captura de um dado ou esclarecimento indispensável á argumentação cerrada

das questões propostas no trabalho. Tais incursões são feitas, diretamente pelo pesquisador, agora

orientado pelas necessidades do texto - rem tene, verba sequentur ...

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Às vezes foi possível obter coisas que faltavam pelo telefone, pois, desde 1986,

existe um aparelho na Zacarias. Mesmo nessas circunstâncias, porém, foi sempre fundamental a

participação de um informante ilustrado - Prelídiano José de Marins, “seu” Mucinho, conhecedor,

tanto do terreno, quanto dos temas e das indagações da pesquisa99.

Houve um momento nítido de inversão, quando “Mucinho” começou a reunir-se

com o etnógrafo, no escritório deste, para repassar dados e discutir sua interpretações, o que,

circunstancialmente, gerava novas tarefas de campo e, mais que isso, quebra-cabeças, cuja

resolução exigia o concurso de outros informantes.

Mais de uma surpresa nos esperava, a partir daí. Em diversos casos foi necessário

rever informações. O quadro genealógico de Zacarias, por exemplo, sofreu retificações e

acréscimos, embora tivesse resultado de nada menos do que quatro censos, o último dos quais com

participação nativa.

A etnografia, porém, não submete ao crivo apenas os dados de campo. Desafia,

igualmente, os insumos teóricos do escritor. Dessa maneira, impõe-lhe, no decurso do trabalho, a

revisão e ampliação de seus instrumentos conceituais. Também aí se manifestam as incompletudes

e, com elas, a necessidade do estudo, cujo centro gravitacional é o gabinete.

Nada pára de mover-se, portanto, embora o levantamento de dados e o estudo

tenham de cessar em algum momento. No campo os dias continuam a se suceder, e, com eles, os

eventos.

Henrique morreu, quando o ano de 1992 declinava. Abriu-se, pois, a sucessão ao

rancho. E com ela o sistema de relações da Zacarias voltou a mobilizar-se, em torno de casa e

patrimônio. Benjamin (“Beco”), filho de “Lilina”, neto de Juca Tomás, era sério pretendente. Foi,

no entanto, a filha de Napoleão José de Marins (“Nizinho”), sobrinha-neta de Henrique e sobrinha-

bisneta de Juca Tomás, quem acabou ficando com o rancho, o qual, desse modo, passou, para um

ramo colateral da família.

Para compreender o que isso significa, porém, será necessário consultar aetnografia, sem a qual esta observação permanecerá desprovida de sentido e, de qualquer modo,

supérflua.

Se a antropologia é uma ciência empírica do significado da ação, e se este não

pode ser deduzido aprioristicamente, por que depende do contexto particular em que a ação é

intentada, então, o que quer que isso (a coisa) signifique, é que o leitor terá de buscar nas páginas

subseqüentes. 

99

Henrique, irmão mais velho de “Mucinho”, não sabia falar ao telefone. Além disso, não iria àcasa da sobrinha, filha de seu irmão, onde se encontra instalado o aparelho, por causa, talvez,de sua briga com “Mucinho”, no enterro de Antonica, mãe de ambos.