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1 Painel: “Federação, distribuição das competências constitucionais e limites orçamentários: qual pacto federativo”. Tema: Federalismo brasileiro pós-88: a concretização do pacto cooperativo 1. Definições básicas: i) Federação: Em geral, todos sabemos que uma Federação pode ser compreendida como “um modo de ser, um modelo de estado, formado pela união de vários Estados-membros, que perdem a soberania em favor da União Federal, aparecendo no direito internacional público como estado simples”. A federação está relacionada mais fortemente à estrutura institucional 1 e em seu coração (núcleo) encontra-se o federalismo. ii) Federalismo: pode ser entendido como o princípio básico da Federação, um processo de governo que congrega um conjunto de idéias e valores que permitem a convivência de vários modelos de vida e/ou identidades culturais e sociais em um mesmo projeto ou pacto, conjugados a uma distribuição espacial de poder” 2 . Sua configuração essencial se funda na existência de múltiplos governos que devem atuar de maneira conjunta e integrada à um Governo Central União regida por uma Constituição. Ele deve prever regras de relacionamento entre essas esferas de poder aliviando 1 BERNARDES, Wilba Lúcia Maia. Federação e federalismo. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. 2 BERNARDES, Wilba Lúcia Maia. Federação e federalismo. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 119.

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1

Painel: “Federação, distribuição das competências

constitucionais e limites orçamentários: qual pacto federativo”.

Tema: Federalismo brasileiro pós-88: a concretização do pacto

cooperativo

1. Definições básicas:

i) Federação: Em geral, todos sabemos que uma Federação

pode ser compreendida como “um modo de ser, um

modelo de estado, formado pela união de vários

Estados-membros, que perdem a soberania em favor da

União Federal, aparecendo no direito internacional

público como estado simples”.

A federação está relacionada mais fortemente à

estrutura institucional1 e em seu coração (núcleo)

encontra-se o federalismo.

ii) Federalismo: pode ser entendido como o princípio básico

da Federação, um processo de governo que congrega

um conjunto de idéias e valores que “permitem a

convivência de vários modelos de vida e/ou identidades

culturais e sociais em um mesmo projeto ou pacto,

conjugados a uma distribuição espacial de poder”2. Sua

configuração essencial se funda na existência de

múltiplos governos que devem atuar de maneira

conjunta e integrada à um Governo Central – União –

regida por uma Constituição. Ele deve prever regras de

relacionamento entre essas esferas de poder – aliviando 1 BERNARDES, Wilba Lúcia Maia. Federação e federalismo. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.

2 BERNARDES, Wilba Lúcia Maia. Federação e federalismo. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 119.

2

suas tensões e contribui para aproximar o cidadão do

aparato estatal, tornando possível o aumento de sua

participação política.

Desse modo, entende-se que o federalismo traz um

importante avanço democrático, já que, para além da

divisão clássica dos poderes horizontais – Legislativo,

Executivo e Judiciário – promove um corte vertical,

fazendo com que esses diversos níveis estejam próximos

aos cidadãos.

A teoria federalista permite, assim, que países de grande

extensão territorial mantenham-se unidos, sem recair

em centralismo autoritário.

...

Como todos sabem, a origem do federalismo remonta à

Declaração de independência dos EUA, de 4 de julho de

1776, e das próprias características do

constitucionalismo americano.

No entanto, o modelo federalista pensado, por Madison,

Jay e Hamilton nos famosos artigos Federalistas,

estabelece uma estrutura de co-soberania – dualista e

centralizada – em que os Estados-Membros abrem mão

de uma parte de sua soberania para a União, ficando

com a outra parte3.

Já nesta época, previu-se o princípio da subsidiariedade

nas competências estaduais: delimitou-se as

3 BERNARDES, Wilba Lúcia Maia. Federação e federalismo. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 119.

3

competências da União e as remanescentes ficaram com

os Estados-Membros.

Esse modelo, em sua forma pura, deu ensejo ao

chamado “paradigma dualista” do federalismo4, baseado

na significativa descentralização do poder e autonomia

dos Estados – soberanos em seu âmbito de

competência.

Essa proposta se contrapõe ao chamado “paradigma

hierarquizador”, próprio de centralismo autoritário5 que,

por vezes, deturpa o Estado Federal e o transforma, na

prática, em Estado unitário – fato presente na história

republicana brasileira.

Contudo, esses modelos não são exclusivos. Mais

adequado às exigências contemporâneas e às diretrizes

do Estado de Bem-Estar é o chamado “paradigma

cooperativo”, assentado nas ações de

coordenação/cooperação dos entes federativos, que

mantém certa autonomia, mas atuam de maneira

interdependente a partir de estratégias de integração,

solidariedade, coordenação e cooperação na

concretização de políticas públicas.

4 ABRUCIO, Fernando Luiz. SANO, Hironobu. A experiência de cooperação intereestadual no Brasil:

formas de atuação e seus desafios. In: Cadernos Adenauer XII. nº. 4. Municípios e Estados: experiências

com arranjos cooperativos. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, abril 2012. p. 91.

5 ABRUCIO, Fernando Luiz. SANO, Hironobu. A experiência de cooperação intereestadual no Brasil:

formas de atuação e seus desafios. In: Cadernos Adenauer XII. nº. 4. Municípios e Estados: experiências

com arranjos cooperativos. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, abril 2012. p. 91.

4

Tal é a perspectiva inicialmente prevista na Constituição

de 88, conforme demonstrarei a seguir.

2. Breve percurso do federalismo no Brasil

Na fórmula americana, o Federalismo surgiu de maneira

centrípeta – ou seja, os Estado-Membros se associaram,

formando a União Federal.

Isso possibilitou grande autonomia das entidades subnacionais,

seja no campo legislativo, administrativo e orçamentário.

Já no contexto brasileiro, esse processo ocorreu de maneira

inversa: com a Proclamação da República, o poder central cedeu

poder às províncias, formando o Estado Federal.

A descentralização se deu, então, de maneira centrífuga. Assim,

da pena de Rui Barbosa, o Decreto n. 01 de 15 de novembro

1889, declarou soberanas as províncias.

Desde então, nossa história revela um movimento pendular: há

momentos de grande centralização legislativa, administrativa e

especialmente fiscal e outros movimentos de maior

flexibilização, com maior autonomia dos Estados.

Assim, se a Constituição de 1891 trazia modernas idéias liberais

para um país ainda predominantemente agrário, marcado por

forte patrimonialismo e clientelismo, o resultado da política

federativa na República Velha não foi satisfatório.

Expandiu-se o poder das oligarquias locais e os grandes coronéis

abafaram as possibilidades de avanço democrático.

5

A adoção de “ideias fora do lugar” como diria Roberto Schwarz,

não logrou produzir, àquela época, efeitos promissores uma vez

que, a excessiva descentralização promovida em um contexto

dominado por caudilhismos e políticas regionalistas levou à

formação da República Velha e ao domínio dos Coronéis.

Com os ventos revolucionários de 30 e a subida ao poder de

Getúlio Vargas, assistimos a um intenso processo de

desenvolvimento pelo alto – ou seja, o desenvolvimento

econômico e industrial do país, bem como a outorga de direitos

sociais foi resultado de políticas centrais, em que a União Federal

toma progressivamente as rédeas do poder e cria uma

burocracia estatal independente dos coronéis.

Assim, ainda que a Carta de 1934 tenha buscado confirmar ideais

federalistas – para alguns ali já estava presente o germe do

federalismo cooperativo6, sua efêmera duração mostrou que

eles não se sustentaram.

Não precisa dizer que, o auge desse centralismo se dá com a

Constituição de 1937 – outorgada e autoritária, época do

chamado Federalismo nominal – paradigma hierarquizador.

No período de redemocratização, entre 1946 e 1964, assistimos

a um sopro de ideias liberais:

i) A Constituição de 1946, em seu art. 5º, recupera o princípio

federativo, estabelece as competências da União e

recupera a competência residual ou remanescente dos

Estados-Membros;

6 BERNARDES, Wilba Lúcia Maia. Federação e federalismo. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 229.

6

ii) Mantém também um sistema de competências

concorrentes e;

iii) Promove relevante transferência de receitas da União para

os Estados, vinculando-as.

Com o Golpe Militar de 64, o Poder Executivo da União se

fortalece, uma nova centralização é efetivada, especialmente

a partir do AI n. 02, de 27 de outubro de 1965.

Sob a égide da Constituição de 1967 e a posterior emenda de

n. 01, de 1969, o Brasil se torna quase uma pseudo-federação,

tamanha a força da União e as características centralistas

próprias de Estado unitário.

O sonho federalista, fortemente relacionado à democracia, se

perde.

3. O federalismo cooperativo na Constituição de 1988

A reconstrução do federalismo brasileiro se dá, então, com o

advento da Constituição de 1988.

Com efeito, a renovação das estruturas federais no Brasil

aconteceu, no campo teórico, a partir da ênfase na cooperação

entre Estados-Membros e na superação das desigualdades

regionais.

A Constituição de 1988 e os ares do processo de

redemocratização trouxeram relevantes aperfeiçoamentos:

i) a forma federalista de três níveis, legando à União, aos

Estados (nele incluído o Distrito Federal) e aos

Municípios a condição de ente federativo,

7

ii) maior descentralização administrativa e legislativa,

determinando os âmbitos de competência a cada um

desses entes e, mais importante,

iii) o modelo cooperativo, entre os entes federativos, fazendo

com que seja necessária a adoção de fórmulas de atuação

conjunta na implementação de políticas públicas e adoção de

medidas legislativas.

Segundo Fernando Abruccio e Hironobu Sano,

“Esta nova configuração de poder garantiu aos governos

subnacionais instrumentos para fazer inovações em políticas

públicas, o que ocorreu em vários casos. Basta lembrar que

programas como o Programa Saúde da Família (PSF) e o Bolsa

Família, considerados muito bem sucedidos, tiveram suas origens

em administrações municipais, assim como as primeiras

experiências mais orgânicas de governo eletrônico e de centros

de atendimento integrado aos cidadãos aconteceram em

governos estaduais. Também vale citar o caso do Governo

Montoro, em São Paulo, que conseguiu construir uma nova

relação entre o Executivo estaduais e as prefeituras durante o

seu mandato, numa agenda que envolvia a montagem de

consórcios e políticas mais regionalizadas”.7

Chegou-se a falar em um novo “federalismo estadualista”. No

entanto, no contexto da Carta de 1988 é mais adequado

entende-lo como federalismo cooperativo e, alguns casos, de

coordenação.

7 ABRUCIO, Fernando Luiz. SANO, Hironobu. A experiência de cooperação intereestadual no Brasil:

formas de atuação e seus desafios. In: Cadernos Adenauer XII. nº. 4. Municípios e Estados: experiências

com arranjos cooperativos. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, abril 2012. p. 97.

8

Com efeito, se num primeiro olhar todo federalismo necessita de

cooperação entre os entes, é possível compreende-la de modo

mais especifico.

Nos explica Bercovici que a cooperação prevista no art. 23 da

Constituição – tratando de competências comuns – envolve a

tomada conjunta de decisões, na qual um ente não pode atuar

isoladamente dos demais8.

São as chamadas competências comuns, envolvendo temas que

vão desde a saúde, meio ambiente, moradia, fomento de

produção alimentar e agropecuária, até a educação.

Nessas questões, não há supremacia entre os entes federados e

a responsabilidade é comum.

Como todos sabem, essas competências não se confundem com

as competências concorrentes, nas quais União e Estado

concorrem para uma mesma função, mas a primeira em caráter

geral e a segunda, específico, na forma do art. 24, § 1º, da

Constituição.

4. Dificuldades na concretização do Federalismo cooperativo

Muitos foram os avanços no federalismo cooperativo desde 88:

houve incremento dos arranjos governamentais na realização de

políticas públicas, especialmente no plano vertical – vide SUS,

educação -; formaram-se consórcios intermunicipais e arranjos

metropolitanos que, efetivamente, trouxeram maior nível de

cooperação entre os entes federativos.

8 BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, Estado e Constituição. São Paulo: Max Limonad, 2003.

p. 153.

9

No entanto, apesar da reforma promovida pela Carta de 1988 e

da expressa previsão constitucional, o resultado ficou muito

aquém do esperado, demonstrando um certo colapso do modelo

cooperativo. Esse falência, presente de maneira mais

contundente nas relações horizontais intergovernamentais,

envolvem, principalmente os temas do chamado “federalismo

fiscal”, ponto sensível no qual não se instauraram relações

competitivas saudáveis.

Assim, inúmeras razões concorreram para o atual quadro

federativo do país:

i) A repartição de competências previstas na Constituição

manteve um campo muito aberto para a União impor

diretrizes gerais aos Estados, consolidando sua

centralidade normativa9.

ii) A complexa repartição de receitas leva à dificuldade de

compreensão sistemática dos arts. 153, 157, 158 e 159

da CR/8810, sem contar que a ordem tributária e

financeira confusa gerou enorme contencioso judicial,

suportado tanto pelos entes públicos quanto pelas

privadas, que suportam um custo incompatível com o

desenvolvimento econômico do país.

iii) “Até 1994, a manutenção do poder dos bancos estaduais e

do controle do sistema de ICMS deu aos governadores

um forte poderio, levando diversos governos a atuarem

9 BERNARDES, Wilba Lúcia Maia. Federação e federalismo. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 248

10 BERNARDES, Wilba Lúcia Maia. Federação e federalismo. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 249.

10

de maneira irresponsável e a repassar as custas para a

viúva”11.

iv) Os resquícios do paradigma dualista e de seu oposto, o

paradigma hierarquizador, ainda arraigados na política

nacional, dificultaram a forma cooperativa e entrelaçada

de fórmulas políticas públicas, de modo que

“descentralizar significou repassar funções e lutar por

recursos, criando espaço para formas de gaming, como o

‘jogo do empurra’ (passar para outro a responsabilidade,

o ‘efeito carona’ (aproveitar dos serviços custeados por

outro) e o aumento dos custos de barganha referente à

cooperação federativa”12.

v) Houve forte aumento na competição entre os Estados,

especialmente na busca de investimentos privados,

levando à “guerra fiscal” ao invés de alternativas de

atuação conjunta na redução das desigualdades

regionais, o que ocasionou verdadeiro “carnaval

tributário” como diria Geraldo Ataliba, especialmente

em relação ao ICMS e sua regulamentação.

vi) A grave crise econômica do final dos anos 80 e dos anos 90,

aprisionaram as unidades federativas nas mãos da União

e o processo de estabilização econômica do Plano Real

exigiu forte centralização administrativa.

11

ABRUCIO, Fernando Luiz. SANO, Hironobu. A experiência de cooperação intereestadual no Brasil:

formas de atuação e seus desafios. In: Cadernos Adenauer XII. nº. 4. Municípios e Estados: experiências

com arranjos cooperativos. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, abril 2012. p. 98.

12 12

ABRUCIO, Fernando Luiz. SANO, Hironobu. A experiência de cooperação intereestadual no Brasil:

formas de atuação e seus desafios. In: Cadernos Adenauer XII. nº. 4. Municípios e Estados: experiências

com arranjos cooperativos. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, abril 2012. p. 98.

11

5. Desafios do federalismo fiscal e a emergência do novo pacto

cooperativo

Para que se possa falar em novo pacto federativo e de efetiva

cooperação, é preciso, em caráter urgente, enfrentar problemas

clássicos de gestão fiscal: “tributar com equidade e eficiência,

adequar a distribuição de recursos, via orçamento, às

necessidades, e executar o dispêndio com eficiência”.

Esses temas implicam em três grandes desdobramentos:

“estruturação eficiente do sistema de competências tributárias,

atribuição equilibrada de encargos entre níveis de governo e

formatação de um sistema eficiente de transferências

intergovernamentais”

Assim, com o objetivo de repensar o pacto federativo brasileiro é

que Requeri junto à Presidência do Senado Federal, a

constituição de uma Comissão de Especialistas do Pacto

Federativo, instalada em 12 de abril de 2012 e que, em seus

trabalhos, já enfrentou, na primeira Agenda, os temas mais

urgentes do federalismo fiscal, dentre os quais gostaria de

destacar três importantes análises:

5.1. A dívida dos Estados

Com a estabilização da moeda e a implantação do Real, era

necessário um amplo processo de reformas no âmbito de todos

os entes federativos, de modo a promover a reestruturação do

aparelho estatal e garantir a devida responsabilidade fiscal como

etapas imprescindíveis para o sucesso do Plano Econômico.

12

Nesse processo, surgiu um forte tensionamento entre

governadores e União, pois o governo federal tentava impor a

venda de empresas e bancos estaduais, bem como o

cumprimento de metas fiscais apertadas aos Estados, o que

gerou grande resistência.

Nesse contexto, a descentralização federativa promovida pela

Constituição de 1988, paradoxalmente, acabou se tornando um

obstáculo a mais para o fomento das políticas nacionais, pois os

governadores não estavam subordinados aos ditames da União.

Contudo, sem os artificialismos financeiros possibilitados pela

alta inflação, que chegou a superar incríveis 2.500% no ano de

199313, ficou mais evidente a fragilidade financeira dos Estados,

fazendo com que, aproveitando-se deste ambiente, o Governo

Federal iniciasse um reforma federativa que voltaria a centralizar

competências e receitas.

Um importante exemplo desse movimento se deu com a

promulgação da 3ª Emenda Constitucional, que incluiu o § 4° no

art. 167 da Constituição, permitindo que a União pudesse fazer a

retenção de créditos oriundos do principal imposto dos Estados:

o ICMS14.

Outras medidas fundamentais para o prosseguimento dessa

reforma centralista foram a criação do PROES (Plano de Incentivo

à Redução do Setor Público Estadual em relação à Atividade

Bancária) e a implantação do chamado Fundo de Estabilização

Fiscal – que vinculou 20% das receitas federais, reduzindo o

repasse aos Estados e Municípios, fez com que fossem 13

REGIS, André. O novo federalismo brasileiro. p.

14 REGIS, André. O novo federalismo brasileiro. p. 82.

13

concentrados nas mãos da União algo como 65% da receita

nacional.

Com dívida alta e falta de controle fiscal, os Estados se viram

praticamente obrigados a renegociar seus débitos, cedendo às

restrições administrativas e orçamentárias “impostas” pela

União.

Um exemplo claro dos resultados dessa política foi a Lei de

Responsabilidade Fiscal, que veio posteriormente para

consolidar esse programa de estabilização financeira em todos

os níveis federativos.

De qualquer modo, com a renegociação das dívidas estaduais,

em grande parte efetuada com base na Lei n. 9.496 de 1997,

houve significativa perda de autonomia dos Estados, que viram

sua capacidade de investimento bastante reduzida e foram

impedidos de contrair novos financiamentos que elevasse as

prestações acima do limite de compromentimento de sua

Receita Líquida Real (RLR). Ficaram, assim, à mercê do

Orçamento da União e suas transferências voluntárias para que

pudesse realizar suas políticas públicas.

Mato Grosso, por exemplo, submeteu-se a um limite máximo de

comprometimento de sua Receita Líquida de 15%, com sua

dívida corrigida pelo índice IGP-DI mais juros de 6 a.a..

Para se ter uma idéia, ainda que na época fosse importante para

o Estado celebrar tal contrato, esse índice é tão elevado para os

padrões atuais que se tornou mais vantajoso buscar o

refinanciamento dessa dívida junto a bancos internacionais, tal

como previsto na Mensagem n. 77 de 2012, cujo objetivo

declarado é “o refinanciamento e recomposição da principal

14

dívida, denominada residual proveniente dos contratos firmados

entre o Estado de Mato Grosso e a União”.

Dita Mensagem foi convertida no Projeto de Resolução (PRS) n.

44/2012, que foi aprovado pelo Plenário do Senado Federal

nesta semana.

Com efeito, conforme dados da Secretaria do Tesouro Nacional,

atualizados em 30/06/2012, a dívida residual do Estado de Mato

Grosso com a União está em torno de R$ 863 milhões e, na

esteira do PRS n. 4/2012, quase a totalidade desse montante

será refinanciado pelo Bank of America N.A.

Ora, com tamanha dependência e subordinação dos Estados em

relação à União, impossível se falar em federalismo cooperativo.

Ao invés, o que temos é um novo centralismo político, financeiro

e social.

Diante desse quadro, a Comissão de Especialistas para

rediscussão do Pacto Federativo do Senado Federal tem

direcionado seus estudos da primeira agenda no sentido de

permitir, em caráter excepcional e sem revogar o art. 35 da LC

101/2000 (LRF), que sejam aplicados nos contratos oriundos da

Lei n. 9494/97 índices de correção e de juros adequados à

situação econômica do país, como por exemplo, a substituição

do IGP-DI pelo IPCA e a cobrança de juros máximos de 4% a.a.

Está em estudo, também, a possibilidade de diminuir o teto de

comprometimento da Receita Líquida Real – RLR, para algo em

torno de 11%, ao invés dos atuais 15%.

Sem cair no canto da sereia do Governo Federal, que tem

acenado aos Estados a possibilidade de concessão de novos

15

financiamentos ao invés de corrigir as distorções, essa medida

singela favorece os Estados e contribui para maior equilíbrio nas

relações econômicas entre as entidades federativas.

5.2. Guerra fiscal

A Comissão de Especialistas do Senado tem proposto que a “guerra fiscal” deve ser definida como toda forma de competição fiscal entre os Estados, tais como a concessão de isenção, anistia e incentivos, em desacordo com disposto na Lei Complementar n. 24/75, a lei que disciplina a concessão de benefícios do ICMS, tributo de competência estadual, regulamentado pela Lei n. 87/96. Com efeito, em razão da profunda desigualdade regional tornou-se comum em nosso país que os Estados, notadamente os mais pobres ou distantes dos grandes centros de produção e consumo, na legítima expectativa de atrair investimentos de infra-estrutura e indústria, concedam benefícios fiscais ao arrepio da lei, promovendo uma guerra fratricida que tem se tornado extremamente maléfica para a Nação. Para entender essa problemática, é importante lembrar que a Lei complementar n. 24/75 estabeleceu o “princípio de que todo tipo de isenção deve resultar de decisão formalizada em convênios celebrados pelos estados (art. 1o.), em reunião com a participação da maioria dos estados ((art. 2o. par. 1o.) e por decisão unânime dos estados representados (art. 2o. par. 2o.),

sujeitando-se os ausentes ao disposto no convênio7. Esta lei cria o

CONFAZ – Conselho de Política Fazendária - composto por aqueles secretários, cuja finalidade principal era regulamentar consensualmente os tratamentos especiais na tributação do então ICM. Fica claro, portanto, que a legislação, ao mesmo

16

tempo que transfere aos estados todo o poder para arbitrar sobre incentivos do ICM, tendo retirado do governo federal esta prerrogativa, postula também um rígido mecanismo para sua aprovação, que exige homogeneidade na abrangência e unanimidade entre os estados”15. Contudo, diversos Estados concedem isenções diretas de ICMS, quando não diminuem sua alíquota interna, sem passar pelo crivo do CONFAZ, prejudicando completamente a análise do interesse nacional na concessão do benefício. Para entendermos algumas dessas distorções, vejamos o caso da aplicação do ICMS para exportação, em situação hipotética descrita por Ricardo Varzano, que interessa aos mato-grossenses e é extremamente emblemática do caos da guerra fiscal: “Considere-se uma empresa localizada no estado de MT, cuja produção é total e diretamente exportada. Devido à isenção das exportações, as saídas de mercadorias realizadas pela empresa não geram débitos de ICMS. Mas as aquisições de insumos geram créditos, os quais, na falta de débitos que os compensem, precisam ser ressarcidos à empresa exportadora para assegurar a isenção do valor total das exportações. Se as aquisições são feitas de outras empresas do estado de MT, o ressarcimento corresponde exatamente ao que o estado arrecadou anteriormente dos produtores de insumos. Se, no entanto, os insumos são adquiridos do estado de SP, cabe a ele a arrecadação do imposto incidente sobre os insumos, e ao estado de MT a concessão do crédito de imposto correspondente.

15

PRADO, Sergio. Guerra fiscal e políticas de desenvolvimento regional do Brasil.

http://www.sefa.pa.gov.br/site/semin_poltrib/materestudo/P5_GuerraFiscal_SergioPrado.pdf

17

A exportação, além de não gerar receita, cria um ônus para os cofres estaduais. Em contrapartida, se a exportação, ao invés de direta, é feita por uma firma situada no estado do PR, o estado de SP arrecada o imposto correspondente ao valor dos insumos, o estado de MT coleta o referente ao valor adicionado pelo produtor, e o estado do PR paga toda a conta relativa ao imposto anteriormente incidente. Nesse caso, é um excelente negócio para o estado de MT atrair para seu território a empresa produtora do bem exportado. Este pode abrir mão de apenas parte de sua receita e, além das vantagens econômicas, ainda arrecadar alguma coisa. A sistemática de tributação das operações interestaduais estimula a concessão do incentivo”16. Instaura-se, assim, a guerra fiscal, cujo resultado final é sempre nocivo para todos, conforme bem demonstra Ricardo Vanzano: “Se MT consegue atrair empresas e, com isso, obter vantagens para sua população, o estado de MS, que dispõe de idênticos instrumentos, pode agir da mesma maneira. Começa a guerra fiscal, a qual reduz ainda mais a disponibilidade de recursos públicos; ainda assim, é vantajosa. Mas, PR, GO e SP também dispõem dos instrumentos. A guerra fiscal se espraia e aprofunda. Com o passar do tempo, as renúncias fiscais se avolumam, e os estados de menor poder financeiro perdem a capacidade de prover os serviços e a infra-estrutura de que as empresas necessitam para produzir e escoar a produção.

16

Extraído do artigo “A guerra fiscal do ICMS: quem ganha e quem perde”, de Ricardo Vanzano, com

adaptações. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/ppp/pdf/ppp15.pdf

18

As batalhas da guerra fiscal passam a ser vencidas somente pelos de maior poder financeiro, que são também os que têm acesso mais fácil a crédito. Ao mesmo tempo, com a generalização dos benefícios fiscais — todos os estados concedendo incentivos semelhantes —, estes perdem seu poder de estímulo, que depende de diferenças na tributação. A guerra fiscal transforma os incentivos em meras renúncias de arrecadação, que não têm qualquer efeito estimulador. Em face da redução generalizada do peso da tributação, as empresas passam a escolher sua localização em função da qualidade da infraestrutura oferecida. Evidentemente, a guerra fiscal é inimiga tanto da política de desenvolvimento regional quanto da desconcentração industrial”. Por essas razões, os estudos do Senado Federal indicam que “o cenário ideal para o ICMS é o de uma reforma que tornasse a alíquota interestadual igual a zero. Esta parece ser uma opção que vai na direção correta em termos técnicos, ainda que alguns ajustes e adaptações viessem a ser necessários17. Com essa reforma, o tributo passa a ser pago ao estado no qual o contribuinte utiliza os serviços públicos, torna-se possível desarmar a guerra fiscal e passa a ser viável a simplificação da legislação, reduzindo os custos administrativos dos contribuintes e do fisco”18. Por meio dessas medidas, institucionaliza-se o chamado princípio do destino, amenizando, esse relevante conflito federativo.

17

Abstrai-se, aqui, de detalhes técnicos como a inexistência de incentivos à fiscalização pelo estado de

origem. A alíquota zero é usada como uma referência. A adoção de alíquotas interestaduais de 2% ou

4%, como mostrado em Khair (2011) amenizaria as perdas e ganhos, mas não alteraria seus sinais nem

mudaria a posição relativa dos estados.

18 Fonte:NI n. 1204/2012. Consultoria Legislativa do Senado Federal – Marcos Mendes.

19

Além disso, a Comissão de Especialistas tem trabalhado para uniformizar o tratamento legal, seguindo as definições adotadas pela Constituição, de modo a disciplinar as diferenças entre isenção, incentivo e benefício fiscal, delimitando suas hipóteses de cabimento e revogando dispositivos da já antiquada Lei Complementar n. 24/75.

5.3. Fundo de Participação dos Estados – FPE

Fundo de Participação dos Estados – FPE foi criado no contexto

da Reforma Tributária de 1965, que gerou o Código Tributário

Nacional, com o objetivo inicial de compensar a desigualdade na

arrecadação do então ICM, que estava concentrada na região

sudeste19.

Nessa época, o Fundo era composto por 10% da arrecadação

federal com o IR e o IPI e previa que 5% do seu montante fosse

distribuído em razão do território, 47,5% em relação ao tamanho

da população e 47,5% ao inverso da renda per capita.

Esses critérios de distribuição de receitas permaneceram até

1988, quando a Constituição reafirmou a existência do Fundo,

ampliou sua receita para 21,5% da arrecadação de IR e IPI (art.

159, I, a), bem como determinou que ele seria regulamentado

por Lei Complementar com o objetivo de promover o equilíbrio

sócio-economico entre os Estados (art. 160, II, CF/88).

No entanto, em razão da ausência de consenso, o Congresso,

aproveitando-se de estudos do CONFAZ, editou a Lei

19

Revista Conjuntura economic.

20

Complementar n. 62/82, estabelecendo, em caráter provisório,

coeficientes fixos para os 27 Estados da federação20.

Naquela ocasião Mato Grosso ficou com 2,38% dos recursos do

Fundo, o que, em valores corrigidos, gera aproximadamente

1bilhão e 616 milhões de receita para o Estado, ante os 70

bilhões do montante líquido total, em dados atuais (aprox.

1,4% do PIB nacional).

No entanto, o que era para ser provisório, foi se mantendo no

tempo. Isso se deveu, em grande parte, à ausência de vontade

política e certo conformismo com os valores repassados.

Somente a partir da insurgência de alguns Estados, através das

ADINs de nos 875, 1.987, 2.727 e 3.243, ajuizadas,

respectivamente por (i) Rio Grande do Sul; (ii) Mato Grosso e

Goiás; (iii) Mato Grosso; e (iv) Mato Grosso do Sul é que o debate

para a reforma do FPE começou a ganhar força.

Com efeito, no julgamento de 24 de fevereiro de 2010, o

Plenário do STF, através de voto da lavra do Min. Gilmar Mendes,

confirmou a inconstitucionalidade das alíquotas fixas, haja vista

que não atendiam à dinâmica da realidade social, imprescindível

para que o Fundo atingisse seu objetivo constitucionalmente

determinado, qual seja, o de promover o equilíbrio entre os

Estados da federação, atenuando as desigualdades de suas

receitas.

Enquanto critério de transição, o STF permitiu que a Lei

Complementar n. 62/89 continuasse a ser aplicada até

20

Revista Conjuntura econômica.

21

31/12/2012, tempo suficiente para que o Congresso Nacional

tomasse as devidas providências.

Porém, apesar de haver inúmeras propostas legislativas

regulamentado essa distribuição de receitas, não houve

aprovação, em nenhuma das Duas Casas, de nenhum projeto,

em que pese a proximidade da data final determinada pelo STF.

De qualquer modo, as discussões avançaram e o grande debate

instaurado está centrado na adoção de critérios paramétricos

(definição de variáveis como população e renda per capita) ou

critérios de equalização das receitas (diferença da receita dos

estados de menor arrecadação em relação aos de maior

arrecadação)”21.

Ambos atendem os ditames do STF, sendo que os paramétricos

já possuem uma metodologia bastante conhecida, por se

aproximarem dos velhos critérios do CTN, sendo de simples

aplicação e maior viabilidade política. Todavia, apesar de

dinâmicos, eles não possuem flexibilidade em relação às

variações de receitas que podem ocorrer em razão de perdas de

arrecadação de um Estado por algum fator imprevisto, por

exemplo.

Já os critérios de equalização pecam por possuir uma

metodologia mais complexa, mas atacam frontalmente o

problema das desigualdades, funcionando com uma válvula que

regula a transferência de recursos aos Estados que mais

21

Fonte:NI n. 1204/2012. Consultoria Legislativa do Senado Federal – Marcos Mendes.

22

precisam. É o modelo adotado em países como Alemanha,

Canadá e Austrália.

No âmbito da Comissão de Especialistas do Senado, a tendência

é o estabelecimento de regras de transição que mantenham a

atual arrecadação dos Estados fazendo com que nenhum

Estado sofra prejuízos com a Reforma.

No montante excedente, aferível devido ao aumento da

arrecadação federal, a preferência tem recaído, num primeiro

momento, sobre os critérios paramétricos, com alguns

aperfeiçoamentos visando diminuir as desigualdades regionais.

Contudo, já se faz a previsão para que, no futuro, haja uma

reforma mais ampla, com a aplicação de critérios de equalização

de receitas.

Com a maior promoção do equilíbrio regional e maior

racionalização na distribuição de recursos da União, espera-se

combater não apenas a desigualdade, mas também a existência

da malfadada guerra fiscal.

Desse modo, também já é corrente no Senado Federal que a

Reforma do pacto federativo deve ser feita em conjunto,

tornando possível que, eventual prejuízo em uma das medidas,

possa ser compensada a partir de outras.

Fomentam-se, assim, estratégias de cooperação e solidariedade

interestadual que possam evitar a guerra fiscal horizontal.

6. Qual pacto federativo?

Por todo o exposto, não tenho dúvidas que a efetivação do pacto

cooperativo, com repartição racional e proporcional de receitas,

aliada à adequação e reorganização das competências dos entes

23

federativos com vistas ao entreleçamento e ação conjunta na

consecução das políticas públicas – saúde, educação, segurança,

meio ambiente, etc... é o cerne do novo federalismo, cuja

concretização se espera desde 1988.

Como visto, os desafios são inúmeros. Mas somente assim será

possível pensar o Estado Brasileiro como um Estado Social e

Democrático de Direito, no qual a necessária diminuição das

desigualdades regionais seja conciliada com as necessidades

democráticas de participação e autonomia de gestão das

entidades subnacionais e de seus cidadãos, aliado a amplo

desenvolvimento político, econômico e social a partir de gestão

cooperativa, situação que nunca ocorreu na nossa história, mas

que se mostra, hoje, como uma verdadeira janela de

oportunidade.