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MINISTRIO DA SADE Instituto Nacional de Cncer (INCA) Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein

COMUNICAO DE NOTCIAS DIFCEIS:compartilhando desafios na ateno sade

Rio de Janeiro, RJ 2010

2010 Instituto Nacional de Cncer/ Ministrio da Sade. Todos os direitos reservados. permitida a reproduo parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e que no seja para venda ou qualquer fim comercial. Esta obra pode ser acessada, na ntegra, na rea Temtica Controle de Cncer da Biblioteca Virtual em Sade - BVS/MS (http://bvsms.saude.gov.br/bvs/controle_cancer) e no Portal do INCA (http://www.inca.gov.br). Tiragem: 10.000 exemplares Elaborao e informaes MINISTRIO DA SADE INSTITUTO NACIONAL DE CNCER (INCA) Coordenao Geral de Gesto Assistencial Praa Cruz Vermelha, 23 4 andar Centro Rio de Janeiro RJ Cep 20231-130 Tel.: (+55 21) 2506-6727 / (+55 21) 3970-6105 E-mails: [email protected] / [email protected] www.inca.gov.br Apoio Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein Av. Albert Einstein, 627/701 Morumbi So Paulo SP Central de Atendimento: (+55 11) 2151-1233 www.einstein.br Distribuio Coordenao Geral de Ateno Hospitalar Departamento de Ateno Especializada SAF SUL, Quadra 2, Lotes 5/6 Edifcio Premium - Bloco II, 2 andar, sala 204. CEP 70070-600 - Braslia-DF. Telefone: (+55 61) 3315-6161/ 6153/ 6179 www.saude.gov.br/sas Coordenao de Elaborao Priscila Magalhes, Liliana Planel Lugarinho, Liliane Mendes Penello Equipe de Elaborao Carlos Alberto Lugarinho, Ana Perez Ayres de Mello Pacheco, Jane Gonalves Pessanha Nogueira, Selma Eschenazi do Rosario Edio INSTITUTO NACIONAL DE CNCER (INCA) COORDENAO DE EDUCAO (CEDC) Servio de Edio e Informao Tcnico-Cientfica Rua do Rezende, 128 - Centro 20231-092 - Rio de Janeiro RJ Tel.: (+55 21) 3970-7818 Superviso Editorial Letcia Casado Edio e Produo Editorial Tas Facina Reviso ATO Projeto Grfico e Diagramao Ceclia Pach Capa Ceclia Pach, baseada em arte de Maurcio Planel Ficha catalogrfica Esther Rocha (estagiria)

Publicao financiada pelo Projeto de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS (Lei n 12.101, de 27 de novembro de 2009). Impresso no Brasil / Printed in Brazil Ficha CatalogrficaI59c Instituto Nacional de Cncer (Brasil). Coordenao Geral de Gesto Assistencial. Coordenao de Educao. Comunicao de notcias difceis: compartilhando desafios na ateno sade / Instituto Nacional de Cncer. Coordenao Geral de Gesto Assistencial. Coordenao de Educao. Rio de Janeiro: INCA, 2010. 206p. : il. color. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7318-168-5 1.Humanizao. 2. Neoplasias. 3. Atitude frente a morte. 4.Cuidados paliativos. 5. Revelao da verdade. I. Ttulo. CDD-616.9940019

Catalogao na fonte Seo de Bibliotecas/Coordenao de Educao Ttulos para indexao Em ingls: Breaking bad news: sharing health care challenges Em espanhol: Comunicacin de malas noticias: compartiendo desafos en la atencin a la salud

PrefcioConsidero uma ousadia termos hoje a poltica nacional de humanizao como uma poltica pblica, assumida pelo governo como uma questo estratgica e proposta como o eixo estruturante do sistema na construo do SUS. Essa ousadia est ligada ao desafio de superar o desconforto ou o preconceito que o tema da humanizao, ou mesmo a palavra humanizao, provoca, suscitando reaes de discordncia, como se estivesse sendo posta em dvida a humanidade das relaes entre profissionais e pacientes. E, no entanto, gerar certos desconfortos provocativos torna-se muitas vezes necessrio para fazer avanar o sistema. E, fazer avanar o sistema, se no se quer apenas garantir o status quo, implica em mudana de posies. Nesse caso, a colocao da poltica de humanizao como um elemento estruturante do SUS provoca, certamente, uma profunda discusso nas instituies. A outra questo, central, que quando tratamos da poltica de humanizao como esse elemento estruturante estamos, de certa forma, desafiando o paradigma predominante da medicina atual, biolgica, o paradigma cientfico cartesiano, imperante desde o sculo XIX, que coloca como o objeto central da ao de sade a questo da cura e no do cuidado. Essa questo do confronto de paradigmas permeia toda a comunicao de resultados, tanto a que veiculada pela mdia como a prpria comunicao cientfica. Na rea da oncologia temos o exemplo da incorporao de medicamentos de alto custo, que consomem grande parte dos recursos disponveis, para oferecer uma sobrevida mdia dos pacientes muito baixa. Os resultados, neste caso, refletem muito mais dados estatsticos do que efeitos concretos para a qualidade de vida das pessoas. Quero ressaltar a importncia do modelo de interao multiprofissional, de abordagem complexa, que est sendo exercitado neste projeto, como uma oportunidade valiosa de enfrentar essa discusso da mudana de paradigma de forma no preconceituosa ou unilateral. O grande desafio para o futuro desse trabalho, que considero brilhantemente desenvolvido at agora, avaliar como poder continuar a ser implementado, da forma como vem sendo conduzido, produzindo articulaes e interfaces sociais, cientficas, polticas e filosficas que possam ser discutidas e enfrentadas sem os preconceitos com que normalmente essas coisas so vistas. Considero que o avano alcanado por este projeto at aqui e cumprimento a todos pelos resultados ter demonstrado que possvel tratar essa questo de forma articulada, interdisciplinar, com olhares diferenciados do ponto de vista do conhecimento. A colaborao do Centro de Simulao Realstica do Hospital Albert Einstein contribuiu de forma original para colocar os desafios dirios da comunicao de ms notcias no cenrio da capacitao profissional. Para os participantes do INCA, foi tambm uma oportunidade de trocar experincias e estreitar laos de confiana com os profissionais que enfrentam situaes semelhantes nos servios de oncologia dos hospitais federais e universitrios na cidade do Rio de Janeiro. Reafirmo que o desafio que est colocado para os prximos passos o de incorporar esses novos paradigmas, de conhecimento e prtica, como elemento estruturante das relaes nos servios. Isso

significa fortalecer, na prtica, as formas de organizao que privilegiem os vnculos dos profissionais com os pacientes e familiares e dos profissionais das equipes entre si. O que quer dizer, produzir qualidade de vida para todos os usurios do sistema: pacientes, familiares e profissionais. Estamos colhendo os frutos exitosos de um arranjo institucional promovido pelo Ministrio da Sade, que possibilitou a colaborao dos hospitais filantrpicos para o desenvolvimento institucional do SUS. Os artigos que compem este livro contm no s a histria e os fundamentos conceituais da experincia desenvolvida, como os temas trabalhados na dinmica dos grupos de trabalho e as propostas apresentadas no encontro final de intercmbio. Sua tiragem permitir a distribuio de 10 mil exemplares rede hospitalar do SUS em todo o territrio nacional, com o que esperamos expandir a experincia, compartilhar seus desafios e aperfeioar a rede de cuidados na ateno pblica sade. Luiz Antonio Santini Rodrigues da Silva Diretor-Geral do Instituto Nacional de Cncer

A sade enfrenta hoje enormes desafios dentro da vertente da qualidade e, especialmente na perspectiva do envelhecimento, questes que se inserem na qualidade de vida. Nesta relao, ficam patentes preocupaes legtimas e no excludentes de um real avano cientfico-tecnolgico e do conhecimento do papel de uma medicina humanizada. O fato que neste cenrio chamam a ateno as tecnologias diferenciadas, que muitas vezes acabam lateralizando as aes relativas humanizao, criando uma interpretao que nos leva a crer que a soluo de uma melhor qualidade de vida esteja nos sofisticados aparelhos e nos diferenciados recursos teraputicos. Entendo isto como um engano de importantes repercusses negativas. Os autores deste livro chamam ateno para questes cotidianas, mas pouco consideradas, de forma objetiva e estruturada. Partindo da importncia epidemiolgica do cncer, apoiados na seriedade de uma organizao como o INCA, descrevem conceitos e aes operacionais que buscam retratar a pesada carga que ocorre no atendimento de pacientes crnicos portadores de cncer, atentando para aspectos relativos a quem cuida deles. Ao descrever a extensa peregrinao destes pacientes, que muitas vezes nos chegam em fases avanadas de doena, nas quais as chances de resgate da vida so mnimas, aquele que se prope a cuidar passa por inmeras dificuldades no s de carter tcnico, mas, sobretudo, no mbito da relao interpessoal. Soma-se tradicional dificuldade de conhecimento instrumental a sobrecarga emocional, fruto de toda uma relao entre seres humanos que sofrem, se angustiam e que tomam para si grande parte desta incapacidade de resoluo de um problema. Este processo atinge toda uma cadeia de prestadores, dos mais elementares tcnicos aos mais diferenciados especialistas que necessitam de embasamento para aprender a lidar com a difcil arte da comunicao acerca de suas prprias limitaes. O que dizer, como dizer e o quanto se envolver, estes so alguns dos dilemas apresentados e que so lucidamente abordados e trabalhados, com aplicabilidade prtica, nas aes de capacitao desenvolvidas pelo projeto. Considerando as diretrizes propostas na Poltica Nacional de Humanizao da Ateno e da Gesto do SUS incorporada pelo INCA, de forma articulada proposta de construo de um modelo de gesto participativo e compartilhado, valorizando o trabalho em rede e a ateno aos profissionais na linha do cuidar de quem cuida, a experincia retratada neste livro de forma consistente e madura, passando sua leitura a ser um exerccio de prazer e aprendizado. O texto traz uma citao verdadeira e muito consistente: Enquanto voc se dedica clnica mdica, a morte aparece, mas como algo a ser incansavelmente combatido. Na clnica oncolgica ela nos surpreende de outro jeito: a gente tem uma sensao como que de passividade, deparar-se com a impotncia de ter que deixar a morte fazer, por assim dizer, o que quiser com o paciente. Uma experincia difcil no s para o mdico, mas para qualquer ser humano. Diante disto fica em cada pgina de texto um contedo significativo sobre comunicaes de ms notcias, sobre metodologias de capacitao em grupos de forma estruturada, consideraes especficas sobre a ateno criana e ao adolescente e at a experincia do luto em que os profissionais da rea ousam demonstrar seu afeto admitindo que este no pode ser dissociado de suas relaes como seres humanos. Nossa instituio, o Hospital Israelita Albert Einstein, participa do projeto com seu Centro de Simulao Realstica o qual utiliza a mais avanada tecnologia para exerccios prticos dentro da lgica atitudinal por meio de atividades que contam com atores profissionais que contracenam com os participantes em situaes dramticas de comunicao de ms notcias e que so assim encaradas no s pelo aspecto tcnico, mas pelas dificuldades na forma da abordagem.

Os rgos internacionais que cuidam da sade e que debatem priorizaes de aes com alto impacto tm sido enfticos na abordagem destas questes. A meu ver este livro uma referncia em termos de algo que parte de conceitos tericos, descreve uma experincia prtica e se transforma em uma baliza para aqueles que se dedicam a fazer mudanas. E, portanto, causar inovaes. Para alguns o termo humanizao pouco tem a ofertar em termos do ato de inovar, o que pode demonstrar pouco conhecimento cientfico e muita viso mercantilista. Para outros, atentos a polticas que sejam positivas no contexto da relao social, o livro chama a ateno justamente por isto, por tratar do bsico, bsico este fundamental em um mundo que se perde num consumismo desproporcional. Recomendo fortemente sua leitura. Claudio Luiz Lottenberg Presidente da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein

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ApresentaoEste livro foi escrito a muitas mos. Quando dizemos isso, queremos destacar que essas mos no se limitaram s dos autores dos artigos aqui apresentados. Na verdade, as mos dos autores foram instrumentos para a voz de todos aqueles que direta ou indiretamente participaram da constituio e desenvolvimento deste projeto: mdicos, enfermeiros, pacientes, assistentes sociais, psiclogos, psicanalistas, gestores, financiadores, incentivadores os mais diversos. De uma forma ou de outra, esta obra constituda por suas histrias, sua relao com seus pacientes, com sua equipe, com seus cuidadores, em suma, com o Projeto. Alguns esto aqui nomeados (no necessariamente identificados por razes bvias), outros so citados em uma referncia experiencial, vivencial, sem necessidade de registro nominal. Alis, os registros nominais devem ser apenas complementos dos relatos das experincias pessoais dos profissionais e dos doentes que por eles foram tratados. A implicao desses muitos retrata a abrangncia de uma experincia que foi se constituindo com uma caracterstica que marca esse percurso de modo incisivo a dimenso coletiva dessa experimentao. Todas as experincias aqui relatadas assim como as articulaes tericas delas decorrentes se passaram no campo do atendimento aos pacientes oncolgicos. No se limitaram, entretanto, a simples relatos de casos, como ser apresentado mais detalhadamente adiante. Foram a expresso daquilo que normalmente no encontra tempo e/ou lugar para ser dito. A construo e a realizao do projeto revelaram, assim, uma forte vertente instituinte. Essa vertente legitima a criao de um espao profissional, pblico, ainda que reservado, para o compartilhamento das dificuldades enfrentadas pelos profissionais nas situaes-limite que se apresentam em sua prtica cotidiana de ateno s formas graves de adoecimento. Portanto, trata-se aqui de apresentar o relato da construo de uma experincia e de como as vidas de todos aqueles que citamos acima foram afetadas por ela. A leitura dos textos que compem esta publicao evidencia com nitidez uma linha histrica que vai desde os fundamentos que determinaram a concepo do projeto, passando pelo esforo despendido para o estabelecimento de alianas com gestores e pela montagem de uma infra-estrutura adequada. Ademais, descreve o processo de apropriao do arcabouo terico que oferece sustentao ao projeto, sua execuo e s elaboraes dela decorrentes, culminando nos primeiros resultados prticos obtidos. Como se poder constatar, por meio da leitura dos artigos, assim como das produes de cada um dos oito grupos, na Parte III, essa curta, mas intensa experincia soube abrir caminho para a configurao de um campo de saberes e de prticas que h muito demandava reconhecimento. O livro est organizado em trs partes. Na Parte I - Introduo, esto os artigos dos coordenadores, observadores convidados e colaboradores. Estes apresentam o histrico e a concepo geral do Projeto e suas principais articulaes com a Poltica Nacional de Sade do Trabalhador, com a Poltica Nacional

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de Humanizao e com os recursos do Centro de Simulao Realstica do Hospital Albert Einstein. Ao final, foram includas as observaes do psicanalista convidado. Na Parte II - Percurso dos Grupos, esto os artigos elaborados pelos coordenadores dos Grupos Balint-Paidia, nos quais so desenvolvidos e aprofundados os principais temas surgidos e trabalhados nos grupos. A Parte III - Produo dos Grupos, transcreve as apresentaes que foram levadas e discutidas por todos os participantes no Encontro de Concluses e Propostas realizado ao final do Projeto. No artigo de abertura da Introduo, A Comunicao de Ms Notcias: uma questo se apresenta, Liliane Penello e Priscila Magalhes, responsveis pela coordenao da Poltica Nacional de Humanizao no INCA, fazem um histrico do contexto em que a questo da comunicao de ms notcias passou a primeiro plano durante a construo do Projeto INCA de Humanizao. As autoras enfatizam, nesse processo, a diretriz central de transformao do modelo de ateno em oncologia na direo da gesto compartilhada da clnica ampliada e da ateno ao trabalhador da sade, o cuidado com o cuidador. Testemunham, tambm, a intensidade das situaes difceis enfrentadas cotidianamente pelos profissionais na comunicao com os pacientes e familiares e apontam para a extensa literatura recentemente publicada, internacionalmente, sobre o tema breaking bad news. Ressaltam especialmente o uso do Protocolo SPIKES como estratgia inicial de abordagem do tema e legitimao de sua insero institucional como laboratrio de prticas e campo de produo de conhecimentos. As autoras relatam, ainda, o desenvolvimento da parceria com o Hospital Israelita Albert Einstein a qual viabilizou a incorporao dos recursos da simulao realstica. Expem, finalmente, os fundamentos dos mtodos Balint e Paidia apropriados e desenvolvidos na realizao do projeto Ateno ao Vnculo e Qualificao da Comunicao em Situaes Difceis da Ateno Oncolgica, cuja sntese encontra-se aps esta Apresentao. Na sequncia temos Ateno ao Vnculo e Sade do Trabalhador: um bom encontro. Nesse artigo, Liliana Maria Planel Lugarinho e Selma Eschenazi do Rosario, representando a Diviso de Sade do Trabalhador do INCA, procuram abordar a questo do cuidado com os cuidadores pela tica dos servios voltados para a sade do trabalhador. Partem da constatao de que trabalhadores do setor de sade, especialmente os que atuam na rea da oncologia, so profissionais que esto envolvidos direta e constantemente com situaes difceis, sendo, ao mesmo tempo, destinatrios e porta-vozes de ms notcias. Tais profissionais, especialmente aqueles que trabalham na assistncia direta, so pessoas que lidam com um cotidiano de sofrimento e agravamento de doenas, alm do frequente contato com a morte de outrem, fatores que podem lev-los, tambm, ao adoecimento pela carga de estresse que envolve o exerccio de suas funes. O texto apresenta as razes que levaram a DISAT (Diviso de Sade do Trabalhador do INCA) a estabelecer parceria com outras vertentes institucionais desse Projeto (como a PNH e o Hospital Albert Einstein) para desenvolver esse empreendimento e cujo resultado pode ser verificado por meio deste livro. Alm disso, a partir do que foi observado nos grupos, o artigo apresenta as principais reivindicaes no que diz respeito promoo do acolhimento ao trabalhador para cuidar de sua integridade biopsicossocial para que seja possvel minimizar o sofrimento e o nmero de adoecimentos e afastamentos do trabalho. No artigo Grupos Balint-Paidia: Uma experincia da Gesto Compartilhada da Clnica Ampliada na Rede de Ateno Oncolgica, Regina Neri e Luciana Pitombo procuram abordar as8

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articulaes do projeto com a Poltica Nacional de Humanizao e alguns desdobramentos concretos dessa iniciativa que surgem em sintonia com a poltica. Alm disso, apresentam a proposta de um modelo reduzido para multiplicao das Oficinas de Comunicao de Notcias Difceis em unidades de sade que queiram disparar discusses em torno dos temas da clnica ampliada, da sade do trabalhador e da gesto do trabalho, tendo como base situaes concretas vividas no cotidiano dos servios. Carlos Lugarinho nos traz seu artigo Reflexes sobre a Observao Impossvel. Nele, o autor faz um breve relato sobre como se deu a sua aproximao com o projeto, como ocorreu sua insero, para depois realizar uma articulao entre a funo de observador com a do coordenador do grupo. Ele traa um paralelo entre a posio (lugar) assumida por ele na roda, que ele denomina oblqua, com a posio (funo) do observador. Essa obliquidade o leva a estabelecer uma forma de trabalho que oscila no grupo entre a interveno e a no interferncia. O autor ainda relata as diversas maneiras que ele encontra para abordar o tema da morte que, em suas palavras, no pode ser desvinculada da vida, apoiado pelo pensamento de Sndor Ferenczi, Edgar Morin, excertos de Susan Sontag e ilustrado pela fico de Ana Hatherly. O artigo termina indicando que o lugar de observador paradoxalmente s se consolida se estiver intimamente desligado da funo de observador, em uma ambincia constituda no balano entre o ser singular e o ser coletivo. Fechando a Parte I, temos o artigo de Cristina S. Mizi, Fabiane Carvalhais Regis e Lilian Bertozo, Capacitao dos Profissionais do INCA para o Atendimento Humanizado ao Paciente Oncolgico e Familiar no Centro de Simulao Realstica Albert Einstein. As autoras apresentam fundamentos tericos que embasam a utilizao da simulao realstica como ferramenta de aprendizado e treinamento. Fazem tambm um relato de como foram desenvolvidas as diversas simulaes, especialmente para esse projeto, e ainda incluem depoimentos das supervisoras e das atrizes que participaram daquele evento. Na abertura da Parte II, que traa o Percurso dos Grupos temos o texto Da solido profissional interdisciplinaridade: a trajetria de um grupo Balint-Paidia por Ana Perez Ayres de Mello Pacheco. Ela aborda a importncia da construo de um enfoque interdisciplinar no trabalho de uma equipe de sade. A autora nos conta como a solido diante do trabalho relatada pelas diferentes categorias profissionais participantes do grupo foi, aos poucos, sendo minimizada, a partir do compartilhamento de afetos e saberes, o que apontou para o imenso valor da conversa como instrumento de promoo de sade. O aumento da autopercepo e do autoconhecimento contriburam para uma percepo mais ampla do lugar e do valor do trabalho de cada integrante da equipe. A redistribuio de saberes e responsabilidades, ao diminuir o isolamento de cada categoria profissional, apontaram para a interdisciplinaridade como um importante dispositivo de sade, valorizando tambm o cuidado com o cuidador. Ana Perez evidencia, em seu relato, como um cuidador mais consciente de si acaba modificando tambm a sua relao com o outro, no caso, o paciente, trazendo este para um lugar de maior responsabilidade com o seu tratamento e maior implicao com a sua recuperao. Selma Eschenazi do Rosario traz o ensaio Atravessando Fronteiras: O valor da experimentao compartilhada para o ato de cuidar, em que o tema do cuidado aparece articulado com a questo da experimentao compartilhada que, para a autora, merece ser diferenciada do que se entende

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habitualmente por experincia intersubjetiva. A explanao foi desenvolvida como um exerccio livre do que foi observado em um dos grupos de trabalho feito pela tica de algum que procurou ser fiel, no aos fatos, mas ao entrelaamento dos afetos surgidos. Entrelace de experincias com fantasias que fez surgir o tom ldico do texto para que fosse composto: pela consulta s anotaes do dirio de campo; dos relatrios semanais; pelo acesso memria afetiva dos encontros e pela apropriao do relato inaugural dos trabalhos desse grupo. O artigo parte da apresentao do primeiro relato de caso clnico, causando impacto nos participantes, fato que inaugurou a intensidade das discusses grupais, que percorreu a trajetria de todos durante os encontros subsequentes. O artigo que vem na sequncia, Do tratamento ao cuidado: o relato de uma experincia de Grupo Balint-Paidia, escrito por Suely Marinho e Regina Neri foi inspirado na experincia do grupo formado por profissionais da Mastologia e de Cuidados Paliativos. Pretende fazer uma reflexo acerca de dois modelos assistenciais que estiveram presentes na discusso do grupo: a assistncia curativa, com foco mais voltado para o tratamento da doena e a assistncia paliativa, que busca garantir melhor qualidade de vida ao paciente, no momento do esgotamento dos recursos curativos. Embora heterogneas e, sob certos aspectos, excludentes, essas duas formas de teraputicas convivem na realidade de alguns servios como no INCA, no sem conflito ou dissociaes, acarretando prejuzos para todos os envolvidos no cenrio da sade. Tais conflitos atingem os pacientes e seus familiares, porque se tornam o ponto de articulao entre dois projetos teraputicos radicalmente opostos, muitas vezes obrigados a decidir sobre a transferncia de uma assistncia a outra. Atingem tambm os profissionais, compelidos a produzir um frgil equilbrio no trabalho cotidiano com o sofrimento, doena e morte, efetuando, no raro, um exerccio dirio de estratgias defensivas, que resultam muitas vezes em adoecimento. Em seguida apresentamos Transformaes afetivas em um grupo de profissionais de cuidados paliativos de Jane Gonalves Pessanha Nogueira, Luciana Pitombo e Selma Eschenazi do Rosario. Elas relatam a experincia nos encontros, no qual o espao grupal foi cuidado para que fosse vivido como ambincia afetiva adequada. Assim sendo, o artigo mostra a importncia de considerar o grupo como um espao privilegiado de troca de experincias, apresentando-o como dispositivo que favorece e aciona processos capazes de produzir mudanas. Trabalhando com o pano de fundo dos cuidados paliativos, esse relato, demonstrao de uma experincia vivida, traz para a discusso temas como: a solido do profissional de sade, o tabu e o preconceito, a importncia dos vnculos estabelecidos e a relevncia dos aspectos afetivos envolvidos nas relaes entre os profissionais de sade e entre estes e os pacientes e seus familiares. O artigo H sade na doena? A especificidade do cuidado criana e ao adolescente com cncer de Aline De Leo Malaquias dos Santos e Ana Perez Ayres de Mello Pacheco, aborda a especificidade do cuidado e da ateno criana e ao adolescente com cncer. Entre um relato e outro das experincias vividas nos grupos, as autoras vo descrevendo o processo da construo de uma singularidade presente nesse tipo de atendimento. Para elas, o paradigma do cuidado com crianas e adolescentes com cncer se organiza em torno de um trip: o paciente, sua famlia e a equipe de sade. Crianas e adolescentes demandam uma dose intensa de afeto, sensibilidade e sinceridade na comunicao das difceis notcias ao longo do tratamento. A famlia ideal no existe. Quanto equipe, o desgaste fsico e mental intenso, assim como alto o ndice de estafas fsicas e mentais10

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entre os profissionais de sade. O trabalho na oncologia peditrica evidencia, mais do que nunca, o reconhecimento das emoes como um instrumento valioso de trabalho. Elas afirmam, igualmente, que abrir-se ao afeto que transborda nesses encontros com o sofrimento e a dor, compartilhando-os em um espao de narratividade, resgata o profissional de sade da solido, permitindo-lhe elaborar melhor seus lutos e inquietaes. Na sequncia, Aline De Leo Malaquias dos Santos e Ricardo Vaz nos trazem Limite e Criatividade: Propondo consensos em torno da comunicao de notcias difceis na ateno a crianas, adolescentes e familiares. Para os autores, o artigo tem por objetivo apresentar momentos pontuais da trajetria do Grupo Balint-Paidia, constitudo por profissionais de sade da Oncologia Peditrica, encaminhados de hospitais da rede do SUS no Rio de Janeiro. O tema escolhido Limite e criatividade contextualiza as vrias experincias narradas nos encontros, apontando para os desafios da prtica clnica cotidiana desses profissionais. Entre os desafios, a comunicao de notcias difceis. Ao longo do percurso, percebemos que o limite aponta para a possibilidade de transformaes, instaurando no espao grupal um campo de experimentao e criatividade. Surge a ideia de se criar um consenso para a comunicao de notcias difceis voltada para crianas, adolescentes e familiares, a partir de uma adequao do protocolo SPIKES. Aline e Ricardo apostam na potncia que emerge da grupalidade, nos deslizamentos que produzem novos sentidos e na possibilidade da promoo de aes mais integradoras e inclusivas no campo das relaes entre profissionais e usurios em sua realidade cotidiana. J em O luto dos profissionais de sade que ousam compartilhar seus afetos, Rita de Cssia Ferreira Silvrio promove uma reflexo sobre o luto a partir das dificuldades e impactos da cascata de ms notcias vivenciada por um adolescente, Jos, em tratamento para um cncer, diante da impossibilidade curativa. O artigo tem como foco a capacidade de elaborao do luto antecipatrio e ps-bito por parte dos profissionais de sade responsveis pelos cuidados ao jovem. Evidencia que a m notcia, muitas vezes, tambm dirigida ao profissional de sade, que se v, em tempo recorde, tendo que lidar com o limite dos recursos curativos e com a comunicao daquela ao paciente e seus familiares. A discusso empreendida a partir da histria de Jos nos d uma pista de como os profissionais podem lidar com tudo isso e se manter vivos ao final. Fechando, ento, a Parte II, temos o artigo de Alcio Braz, Sendo com os que cuidam, acolhendo o cuidador. lcio nos apresenta uma discusso sobre o papel e o lugar da interdisciplinaridade na comunicao de notcias difceis no tratamento e a construo de um espao de convivncia e tambm procura amplificar o sentido do que seja uma grupalidade solidria. Prope e fornece a tessitura de uma rede de sustentao diante das ms notcias. Parte ento para uma reflexo sobre morte, espiritualidade e o que uma m notcia nesse contexto. Por fim, encontraremos, aps a sntese da Produo dos Grupos que compe a Parte III, a apresentao do Encontro de concluses e propostas, gravado em DVD, que acompanha esta publicao. Ali constam extratos da Seo de Abertura com uma sntese dos resultados do Projeto e o pronunciamento de todas as autoridades que apoiaram a iniciativa, o Diretor-Geral e o representante dos Coordenadores do INCA; o Diretor-Geral dos hospitais federais do Ministrio da Sade no Rio de Janeiro; o Coordenador Nacional da Poltica de Humanizao, o representante da Direo da

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Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein e o Ministro de Estado da Sade. Logo de incio so tambm apresentados os depoimentos de trs representantes dos participantes dos grupos, testemunhando sua viso da experincia. A Plenria Final contm as concluses dos quatro grupos que sintetizaram as principais propostas discutidas a partir da apresentao dos trabalhos finais dos grupos Balint-Paidia. Como Anexos esto o Roteiro de Discusso, a Relao de Competncias do Protocolo SPIKES, o Consenso SPIKES Jr. e a Relao dos Participantes. Enfim, se esse projeto foi um sucesso incontestvel, todos os aspectos de que falamos contriburam decisivamente, no havendo espao para nuances de valorizao ou hierarquizaes. Essa experincia, por ser nica no Brasil, at onde vai nosso conhecimento, resultou principalmente em um aprendizado para todos os que se envolveram nela. Esse aprendizado ocorreu a partir do que era vivenciado e, embora estivesse ancorado em uma metodologia, o resultado no poderia ser antecipado, uma vez que a meta era favorecer a expresso de todos os envolvidos. Assim, a partir da troca de experincias, novas experimentaes foram viabilizadas. Isso se deu com todos: tanto com os participantes do grupo quanto com os coordenadores de grupo. Os coordenadores se responsabilizaram, em duplas, por dois grupos. Essas duplas no se repetiam e esse foi um detalhe que permitiu enriquecer a experincia especfica de coordenar, pois havia tambm o propsito de que o trabalho feito em dupla pudesse funcionar como um duo musical. Ou seja, cada um se apresentava com o seu preparo terico-vivencial, porm o mais importante que fosse possvel haver uma linha harmnica entre eles. bem verdade que os instrumentos podiam desafinar, eventualmente, mas nada que pudesse comprometer o trabalho do grupo. Aps os encontros, a equipe de coordenadores reunia-se, sistematicamente, todas as semanas, para discutir e analisar os diferentes efeitos em cada grupo de trabalho. Nessas reunies tambm foi adotado o mesmo estilo de abordagem. Foi interessante constatar que no grupo de coordenadores eles tambm podiam falar mais livremente sobre aquilo que era experimentado, como eram afetados pelos acontecimentos e como haviam conduzido as reunies que coordenavam. Como o leitor j pde avaliar por meio das resenhas acima, todos os artigos, todas as produes dos grupos e todos os temas relacionados anteriormente e de que tratamos nesta publicao esto embalados em textos de rigor terico e afetividade pulsante, refletindo o que foi o prprio projeto. Apesar de tudo, este livro deixa uma lacuna aberta: um texto especfico que tratasse das reunies de coordenao, tambm afetivas, porm rigorosas, que propiciaram a todos os que delas participavam a possibilidade de se sentirem parte indissocivel do projeto. Essa falta s ser preenchida quando outro livro puder ser escrito, tratando, talvez, apenas desses encontros de coordenao. Certamente ele ter um colorido especial e, quem sabe, ajudar ainda mais profissionais a procurarem em seus colegas o apoio para lidar com as situaes difceis do dia a dia. Estamos to certos disso que, para terminarmos esta apresentao, fizemos um trailer do que poder ser essa outra publicao, traduzindo em palavras escritas alguns comentrios desses coordenadores acerca daqueles encontros s sextas-feiras.

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COMUNICAO DE NOTCIAS DIFCEIS: compartilhando desafios na ateno sade

Aprendi muito sobre a importncia do coordenador parceiro, que diferenciado de ns, nos observa e, quando necessrio, nos puxa pra fora do redemoinho do grupo, quando nos deixamos envolver em demasia ou indiscriminadamente. Mas mesmo assim, quando constatvamos, ao fazer o dirio de bordo, que muitas vezes ambos nos havamos deixado levar, ao mesmo tempo, sem muito critrio para se implicar, a troca dos relatos e de e-mails se fazia ento frutfera e esclarecedora. No encontro final, esses grupos iniciais e seus coordenadores se remixaram e se misturaram, formando novos grupos de discusso, de onde surgiu enfim a plataforma de reivindicaes definitiva, procurando contemplar o nmero mais significativo de propostas encaminhadas e discutidas. Cada proposta foi de fato fruto de um movimento que muitas vezes comeou como queixa de dor profissional que, acolhida, discutida e ampliada em sua compreenso, foi transformada em proposta concreta por uma sade mais humana. No alcanamos tudo! A continuidade tambm tem o seu ritmo prprio e espero apenas que ela amplie a valorizao do afeto, no dia a dia do trabalho em equipe, naquilo que ele tem de informao importante que muito contribui para a compreenso da realidade. A anlise institucional, como foi praticada por Ren Lourau, sempre pensou suas intervenes como um coletivo (grupo-analista) intervindo em outro(s) coletivo(s), os grupos-clientes. Ao mesmo tempo afirmava, junto com Georges Lapassade, que so os analisadores que conduzem a anlise. Essa noo, os analisadores (que vem da qumica: o reagente que decompe uma substncia e permite analisar/conhecer seus elementos), foi apropriada pela PNH em seu mtodo baseado na incluso: incluir os usurios e os trabalhadores nas rodas de construo da gesto e da ateno; incluir os efeitos analisadores dessa incluso (desestabilizao dos corporativismos, inveno de novos modos-de-fazer; ampliar horizontes e articulaes enriquecimento das prticas); incluir os efeitos de mudana dos regimes de sensibilidade que resultam dessas incluses/ampliaes. A potncia de inventar novos modos-de-fazer (neste caso, os encontros do grupo de coordenadores) algo a ser diligentemente preservada. Apesar das claras diferenas no nvel da participao direta dos membros, seja nos debates, seja nas produes, inegvel que houve um direcionamento (identificatrio?) no sentido de propostas comuns. O encontro se deu. essa rede de cuidados que vai cada vez mais funcionar como agregador das diferenas, para que eventuais divergncias pessoais no sejam tratadas como destrutivas, mas sim demonstraes de potncia que devem ser apropriadas pelo grupo. Para mim, se confirma a impresso que tivemos desde o incio, de que abrimos um campo de fala e de troca (passagem do vazio ou das intensidades silenciadas linguagem, como disse o Alcio?) nas fronteiras do institudo, que surpreendeu a todos com a potncia de suas intensidades, como se abrssemos comportas a guas h muito represadas (o que j sabamos, mas ao mesmo tempo no sabamos porque no tnhamos sido afetados pela experincia nas dimenses que ela pode alcanar). Efeitos que tambm se fizeram sentir como alertas nas instncias gestoras e responsveis pelos modos de funcionamento da macro-organizao que no comportam essas dimenses de participao nos seus modos habituais de existncia. E, no entanto, parece ser que a potncia e risco da iniciativa est em que contida no tempo dos oito encontros mas concentra energias, recolhidas tambm das foras que presidiram seu nascedouro e que ampliam seu poder de influncia e desembocam

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no encontro final e na produo do livro em que devem poder se configurar as linhas de fuga que podero dar continuidade e desdobramento experincia.

isso que estamos fazendo. Certamente este apenas um primeiro passo, porm consideramos que as questes e os desafios iniciais esto lanados.

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SumrioPrEFCIO.............................................. 3 APrESENTAO.......................................... 7 SNTESE DO PrOjETO..................................... 17 PArTE I INTrODUO Comunicao de ms notcias: uma questo se apresenta............ 23 Liliane Penello e Priscila Magalhes Ateno ao vnculo e sade do trabalhador: um bom encontro......... 37 Liliana Planel Lugarinho e Selma Eschenazi do Rosario Grupos Balint-Paidia: uma experincia da gesto compartilhada da clnica ampliada na Rede de Ateno Oncolgica....................... 47 Luciana Bettini Pitombo e Regina Neri Reflexes sobre a observao impossvel ........................ 55 Carlos A. Lugarinho Capacitao dos profissionais do INCA para o atendimento humanizado ao paciente oncolgico e familiar no Centro de Simulao Realstica Albert Einstein.............................................. 65 Cristina S. Mizoi, Fabiane Carvalhais Regis e Lilian Bertozo PArTE II PErCUrSO DOS GrUPOS BALINT-PAIDIA Da solido profissional interdisciplinaridade: a trajetria de um grupo Balint-Paidia.......................................... 73 Ana Perez Ayres de Mello Pacheco Atravessando fronteiras: o valor da experimentao compartilhada para o ato de cuidar........................................... 85 Selma Eschenazi do Rosario Do tratamento ao cuidado: o relato de uma experincia de Grupo BalintPaidia............................................... 97 Regina Neri e Suely Marinho Transformaes afetivas em um grupo de profissionais de cuidados paliativos . 107 Jane Gonalves Pessanha Nogueira, Luciana Bettini Pitombo e Selma Eschenazi do Rosario H sade na doena? A especificidade do cuidado criana e ao adolescente com cncer.................................. 115 Aline De Leo Malaquias dos Santos e Ana Perez Ayres de Mello Pacheco Limite e criatividade: propondo consensos em torno da comunicao de notcias difceis na ateno a crianas, adolescentes e familiares...... 123 Aline De Leo Malaquias dos Santos e Ricardo Duarte Vaz O luto dos profissionais de sade que ousam compartilhar seus afetos.. 131 Rita de Cssia Ferreira Silverio Sendo com os que cuidam, acolhendo o cuidador................. 141 lcio Braz15

PArTE III SNTESE DA PrODUO FINAL DOS GrUPOS.............. 153 rEFErNCIAS.......................................... 167 INDICAES DE LEITUrA.................................. 173 ANEXOS Anexo 1 Como comunicar situaes difceis no tratamento Roteiro baseado no Protocolo SPIKES......................... Anexo 1A Comunicao de ms notcias em oncologia no tratamento de crianas e adolescentes - Consenso SpikeS Jr .................... Anexo 2 Relao de competncias de acordo com o Protocolo SPIKES.. Anexo 3 - Relao dos participantes por grupo..................

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SOBrE OS AUTOrES..................................... 205

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Sntese do Projeto Ateno ao Vnculo e Qualificao da Comunicao em Situaes Difceis da Ateno OncolgicaO projeto teve por objeto a qualificao de profissionais de sade, especialmente mdicos, para a melhoria do acolhimento, da comunicao e do vnculo teraputico com pacientes oncolgicos, na rede hospitalar pblica da cidade do Rio de Janeiro. Visou, ao mesmo tempo, ao estabelecimento de vnculos profissionais e redes colaborativas entre trabalhadores de diversas unidades hospitalares escolhidas por sua importncia na ateno especializada para a melhoria do processo de cuidado e ateno ao sofrimento inerente ao tratamento oncolgico. Em sua justificativa, o projeto considerou as diretrizes propostas pela Poltica Nacional de Humanizao da Ateno e da Gesto do SUS incorporadas pelo INCA de maneira articulada proposta de construo de um modelo de gesto participativa e compartilhada. Esse modelo procurou valorizar o trabalho em rede e a ateno aos profissionais na linha do cuidar de quem cuida, colocando-se tambm em consonncia com a Poltica Nacional de Sade do Trabalhador e a Poltica Nacional de Educao Permanente. Outro argumento utilizado na justificativa do projeto foi o de que a Poltica Nacional de Ateno Oncolgica considera o controle do cncer como uma questo de sade pblica e tem concentrado grandes esforos na construo de polticas pblicas e aes voltadas preveno, ao diagnstico precoce e garantia do acesso aos meios de tratamento. Reconheceu-se, entretanto, que o percentual dos casos de doena avanada que chega aos servios especializados com chances reduzidas de cura ainda bastante alto. Esse dado sustenta que, mesmo que o diagnstico precoce e o desenvolvimento dos meios de tratamento venham expandindo o campo das patologias prevenveis ou curveis, o cncer ainda carrega, no imaginrio social, uma intensa carga de ameaa de morte. Finalmente, ressaltou-se que, nos casos em que a doena realmente diagnosticada em estgio avanado, a falta de preparo dos profissionais para a comunicao e o suporte emocional aos pacientes torna-se evidente, gerando silenciamentos, falsas promessas de cura ou comunicaes abruptas de prognsticos adversos com srios prejuzos relao teraputica e sofrimento de difcil assimilao, tanto para os pacientes como para os profissionais. Como recorte estratgico inicial, foi selecionada a rede hospitalar de ateno oncolgica da cidade do Rio de Janeiro, privilegiando as patologias prevalentes do cncer (de colo de tero e de mama). Essas patologias so priorizadas tambm pelas metas do programa Mais Sade e pelos Pactos pela Sade e pela Vida do Ministrio da Sade. Foram ainda includos no recorte a oncologia peditrica e os cuidados paliativos, pelos desafios que lanam ao processo de cuidado na rede SUS.

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Os objetivos propostos foram sintetizados nos seguintes alvos: Disseminar o uso de tecnologias inovadoras para o desenvolvimento de habilidades relacionais e comunicacionais que qualifiquem e humanizem a ateno e a gesto compartilhada da clnica no SUS; capacitarprofissionaisdesadeparaaescutaeomanejodesituaesdifceisnacomunicaocomos pacientes, favorecendo a assimilao criativa da metodologia dos Grupos Balint, do mtodo Paidia de cogesto da clnica e das referncias propostas no protocolo SPIKES; produzirconhecimentosfundadosnaprticaclnicaquecontribuamparaavalorizaodosvnculos teraputicos entre profissionais de sade e usurios; fomentar grupalidades que favoream o aquecimento das redes na ateno oncolgica hospitalar e domiciliar (cuidados paliativos) entre equipes profissionais do INCA e de outros servios especializados na cidade do Rio de Janeiro.

A metodologia proposta buscou responder demanda de produo de conhecimentos nessa rea configurando-se como um laboratrio de prticas cujos resultados, alm de beneficiar diretamente os profissionais envolvidos no exerccio de sua prtica clnica, podero, por meio do relato e anlise da experincia, permitir seu desdobramento e difuso nas prticas da ateno oncolgica. O projeto compreendeu as seguintes atividades: Oficinas de sensibilizao realizadas no Centro de Simulao Realstica do Hospital IsraelitaAlbert Einstein. OitogruposBalint-Paidia,comat15participantescadaum,osquaistiveramoitoencontroscentrados na apresentao e na discusso de casos clnicos atuais relativos comunicao de ms notcias. Dirios de bordo em que os participantes e coordenadores registravam suas observaes e reflexes pessoais, socializando-as a partir da deciso de cada um. Plataformadeensinoadistncia(EAD-INCA)parasuportedebibliografia,difusodetextosefrunsde discusso entre os participantes de cada grupo. Trabalhosdeconsolidaoderesultadosepropostasapresentadosnoencontrogeraldeintercmbioe definio de propostas de desdobramento, realizado no dia 12 de setembro de 2009, reunindo todos os participantes.

A coordenao dos grupos ficou a cargo de uma equipe de oito consultores, psicanalistas e profissionais de sade mental com experincia de trabalho em instituies e na coordenao de grupos com profissionais de sade. Participaram ainda dos grupos, dois consultores da PNH e um observadoranalista convidado, atuando no apoio coordenao dos grupos e orientao geral do projeto. Oprojetocontoucomaparticipao,em2009,de109profissionaisdasade,sendo54mdicos, 21enfermeiros,15psiclogos,13assistentessociais,04fisioterapeutase02nutricionistas.Desses,62 eramprofissionaisdoINCA,36dosserviosdeoncologiadehospitaisfederaisdoRiodeJaneiroe11 de Hospitais Universitrios e Institutos de Ensino tambm da rede de ateno oncolgica e de cuidados paliativos do Rio de Janeiro.

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Os hospitais participantes foram os seguintes: INCA: HospitaldeCncerISeesdeOncologiaeHematologiaPeditricas. HospitaldeCncerIIGinecologiaeOncologiaClnica. HospitaldeCncerIIIMastologiaeOncologiaClnica. HospitaldeCncerIVCuidadosPaliativos.

Hospitais Gerais Federais com servios de oncologia: HospitalGeraldoAndara. HospitalGeraldeBonsucesso. HospitalGeraldeIpanema. Hospital Geral de Jacarepagu. HospitalGeraldaLagoa. HospitaldosServidoresdoEstado. DoisrepresentantesdoDepartamentodeGestoHospitalardaSAS/MSnoRiodeJaneiro.

Hospitais e Institutos de Ensino e Pesquisa: H.U.ClementinoFragaFilhoUFRJ. InstitutodePuericulturaePediatriaMartagoGesteiraUFRJ. InstitutoFernandesFigueiraFIOCRUZ. H.U.PedroErnestoUERJ.

A formao dos grupos integrando as equipes do INCA com profissionais de outros servios de oncologia do Rio de Janeiro possibilitou um aquecimento das redes de ateno hospitalar em oncologia para alm de sua organizao formal. Os oito grupos que se formaram, cuja experincia est na base dos artigos includos neste livro por seus coordenadores, reuniram profissionais de servios especializados das reas inicialmente contempladas pelo projeto. Foram assim designados: Grupos1,2e3(G1;G2eG3)Pediatria(crianaseadolescentes). Grupos4e5(G4eG5)Ginecologia. Grupo6(G6)Mastologia. Grupo7(G7)MastologiaeCuidadosPaliativos. Grupo8(G8)CuidadosPaliativos.

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A separao entre os grupos das reas de ginecologia e mastologia obedeceu principalmente lgica de especializao das unidades hospitalares do INCA. Outros hospitais gerais trabalham com servios integrados nessas duas reas, voltadas quase que exclusivamente para o atendimento s mulheres. Essa separao deu origem a argumentos tanto a favor da especializao como da necessidade de integrao entre esses servios. Osprofissionaisdasequipespaliativistasconcentraram-senosGrupos7e8,aindaqueotema dos cuidados paliativos e a necessidade de sua integrao ao processo de tratamento com inteno de cura tenha estado presente praticamente em todos os casos discutidos nos grupos.

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PArTE I INTrODUO

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Comunicao de Ms Notcias: Uma Questo se ApresentaLiliane Penello e Priscila Magalhes

Enquanto voc se dedica clnica mdica, a morte aparece, mas como algo a ser incansavelmente combatido. Na clnica oncolgica, ela nos surpreende de outro jeito: a gente tem uma sensao como que de passividade, deparar-se com a impotncia de ter que deixar a morte fazer, por assim dizer, o que quiser com o paciente. uma experincia particularmente difcil para o residente, que necessitaria de um amparo maior para suportar o sentimento de sua prpria fragilidade. um sentimento que pode amenizar-se (dependendo muito da sensibilidade de cada um) com o passar do tempo, mas o mdico ser sempre afetado. Aprendemos, na tradio de ensino de nossas escolas mdicas, a valorizar a interveno, a s considerar que se est dando tratamento quando se est intervindo, o que no nos prepara para agirmos como catalisadores da angstia do paciente (e suportar a nossa), no momento de seu caminho para a morte... Nossa formao no nos ensina a parar para refletir sobre os nossos limites1.

Breve HistricoApartirde2003,aequipequeassumiuaDireoGeraldoInstitutoNacionaldeCncer(INCA) constituiu seu programa com base na viso do cncer como um problema de sade pblica segunda causa de mortalidade no Brasil e trouxe para o Instituto a proposta de construo de um modelo de gesto participativa e compartilhada. O intenso trabalho realizado para a disseminao do iderio do modelo e de suas formas de implementao, por meio de colegiados gestores e Cmaras Tcnicopolticas, colocou em discusso a indissociabilidade entre Gesto e Ateno, de modo que tambm a gesto compartilhada da clnica, com estratgias e dispositivos especficos, entrasse em pauta. A construo do Projeto INCA de Humanizao acompanhou esse processo desde o incio em estreita articulao com o desenvolvimento da Poltica Nacional de Humanizao (PNH), cujas formulaes so ancoradas na lgica de rede e na corresponsabilidade entre gestores, trabalhadores e usurios nos processos de produo de sade. Dessa forma, o trabalho desenvolvido no INCA junto ao Humaniza SUS incorporou estratgias e dispositivos capazes de promover mudanas qualitativas na produo de sade, chegando a ser considerado a alma da gesto participativa e compartilhada no Instituto, por oferecer princpios e valores ticos, estticos e polticos que potencializam a construo do SUS que d certo.2

1 Depoimentos de profissionais de sade envolvidos com seus pacientes a respeito das possibilidades de manejo da comunicao de ms notcias em sua prtica diria, no incio da construo deste projeto. 2 Ver a esse respeito o Documentobase e demais publicaes sobre as diretrizes e os dispositivos da PNH acessveis na Biblioteca Virtual da Sade: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/humanizacao/pub_destaques.php

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Nosegundosemestrede2004,jestavaconstitudoeatuante,nessalgica,umGrupodeTrabalho de Humanizao (GTH) junto Direo geral do INCA, o qual, aps visita s diversas unidades hospitalares, havia definido como recorte estratgico inicial, a transformao das triagens em recepes integradas. Esse grupo props transformar a lgica da excluso, presente na prpria concepo da triagem em processos e dispositivos de incluso, valorizando o acolhimento com responsabilizao e vnculo, desde a porta de entrada e durante todo o percurso do tratamento, sem deixar de exercer, por outro lado, um papel pr-ativo na construo da rede de ateno oncolgica no Rio de Janeiro. Em articulao com os Grupos de Trabalho de Humanizao atuantes nos hospitais federais do Rio de Janeiro, o INCA havia tambm sediado o 1 Seminrio do HumanizaRio no qual foram traadas estratgias coletivas para a implementao das diretrizes da clnica ampliada, interdisciplinar e participativa nas demais unidades federais. No mbito do INCA, estava em desenvolvimento um Ciclo de Debates sobre o SUS com palestras e mesas redondas mensais acerca das diretrizes e das linhas estratgicas do Sistema nico de Sade, com o objetivo de sensibilizar o pblico interno, fortalecer a integrao do INCA no SUS e promover a troca de experincias com outras instituies pblicas. Neste momento, a partir da contratao de dois consultores para o Projeto de Humanizao do INCA pelo acordo de cooperao tcnica entre o Ministrio da Sade e o Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento/PNUD, desencadeou-se o trabalho concreto de interveno para a transformao do modelo de ateno. Foi eleito pelo GTH, o Hospital de Cncer II, como campo inicial de interveno j que, por motivos relacionados sua histria, a unidade surgia como aquela que buscava reconhecimento de seu amadurecimento e abertura para a aceitao das propostas de construo da Recepo Integrada.O primeiro relatrio dessa consultoria enunciava o propsito de que a recepo integrada pudesse, desde o incio, acolher o sofrimento e se propusesse a tratar a doena com a cooperao daquele que a suporta, assim como de seus parentes e amigos. Preconizava, ainda, do ponto de vista da equipe multiprofissional, a superao dos especialismos (sem desconsiderar os requisitos de qualidade do cuidado especializado) a fim de incluir a singularidade do vnculo que cada paciente e seus acompanhantes estabelecem com os profissionais da equipe. Enfatizava a importncia dessas relaes, singulares, para que se revelassem os recursos subjetivos de cada um, as formas como encaram, lidam ou reagem ao diagnstico, tratamento e prognstico da doena, assim como o impacto recproco entre a doena e sua vida familiar, social e profissional. Reconhecia, por outro lado, a necessidade de construir os ambientes e os processos de trabalho valorizando o cuidado com o cuidador e buscando tratar as relaes, tanto dos profissionais com os usurios, como dos membros das equipes entre si e com os supervisores e as instncias gestoras, considerando que, na ateno ao cncer, sempre se lida com situaes de grande tenso e forte impacto afetivo. (BARRETO;MAGALHES,2004)

O propsito de cuidar de quem cuida foi tambm enfatizado nos documentos do novo modelo de gesto e nas diretrizes estratgicas para o INCA, neste perodo. Um exemplo de atuao concreta nesse sentido foram as intervenes conjuntas feitas pelo Grupo de Trabalho de Humanizao, a Diviso de Sade do Trabalhador e a Ouvidoria Geral do INCA para estudar casos especficos de adoecimento de trabalhadores administrativos ligados a condies de trabalho, assim como um grupo de escuta com toda a equipe de enfermagem do Centro Cirrgico de uma das unidades hospitalares,

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abalada por acontecimentos sucessivos de morte e adoecimento por cncer de colegas de trabalho. No trabalho realizado no Hospital de Cncer II, foi feito um diagnstico preliminar com base na observao participante dos consultores, das condies ambientais, dos fluxos e dos processos iniciais de recepo dos pacientes e de definio dos projetos teraputicos. Os resultados desse diagnstico foram intensamente discutidos com as equipes, em diversas instncias. Constatava-se, j nesse momento, o problema crucial do nmero expressivo de pacientes que chegam primeira consulta da recepo em estgios avanados de doena e sem possibilidades de cura com os recursos de tratamento oncolgico atualmente disponveis. Essa era ento, e continua sendo, a situao mais dramtica para os profissionais na porta de entrada: ter que transmitir ao paciente e/ou aos familiares (com os quais no houve sequer a oportunidade de estabelecer um relacionamento prvio) a m notcia de que no haveria tratamento especializado a oferecer o que veta a matrcula no INCA e ter que fazer o encaminhamento para cuidados paliativos na rede geral de sade, sabendo-se que, na verdade, h poucos recursos efetivos para os cuidados paliativos na rede pblica. O desdobramento desse trabalho, que passou por pesquisas estruturadas junto aos usurios sobre a qualidade do atendimento e junto aos profissionais sobre as condies de integrao da equipe3, propiciou uma mudana de abordagem. Por meio de entrevistas com mdicos cirurgies e oncologistas clnicos voltou-se para a intimidade da relao mdico-paciente em seus momentos mais cruciais: aqueles em que ambos devem enfrentar a gravidade da doena e os limites do tratamento. Dando maior nfase, inicialmente, aos momentos da passagem do tratamento com intenes de cura, realizado no INCA, aos cuidados paliativos e sua comunicao aos pacientes e familiares , tomou-se conhecimento de muitas outras situaes de difcil comunicao. Dentre elas destacam-se as recidivas da doena ps-tratamento; os efeitos de cirurgias mutiladoras e incapacitantes (para o trabalho, para a vida de relaes, para a sexualidade, para a autonomia na vida diria);4 a toxidade e muitas vezes ineficcia dos tratamentos quimioterpicos e os efeitos adversos da radioterapia; alm da ruptura dos vnculos de confiana com os profissionais de referncia nos difceis momentos de encaminhamento unidade de cuidados paliativos do INCA, o HC IV.5 A pesquisa possibilitou a compreenso da ocorrncia de suicdios recentes de residentes de medicina e enfermeiros em que o desencadeante maior era atribudo ao impacto emocional quotidiano da prtica oncolgica. O representante dos residentes mdicos junto Diretoria Executiva exps a sobrecarga emocional a que os residentes estavam expostos, especialmente os do 1 ano, por serem sistematicamente encarregados de transmitir ms notcias aos familiares, mais frequentemente comunicaes de bito, sem preparo anterior ou suporte de seus preceptores. Mobilizados pelo desafio da questo, os participantes do GTH procuraram pesquisar a bibliografia existente sobre e assunto e surpreenderam-se com a extensa literatura recentemente publicada, internacionalmente, em livros e peridicos, sobre o tema: breaking bad news.

Osresultadosdaspesquisasconstamdodocumento:BARRETO;MAGALHES,2005. Nas palavras de um cirurgio ginecolgico: H cirurgias muito extensas, como a exenterao plvica, que vo transformar a pessoa em um novo ser, um ser atpico, sem nus, sem uretra, assexuado, com um buraco no perneo coberto apenas, quando se consegue, com um pedao de pele. 5 Antegradasentrevistasesuaanliseestoregistradasnodocumento:BARRETO;MAGALHES,2005.3 4

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A Questo em Anlise e as Formas de IntervenoSabe-se que estar presente, acompanhar, dar suporte e tambm compartilhar e aprender com cada um dos pacientes exige uma disponibilidade que no vem sem um preparo, o qual, geralmente, no oferecido pela formao profissional nem encontra espaos institucionais de compartilhamento e elaborao. Ao contrrio, o enfrentamento de tais situaes uma tarefa solitria e no compartilhada com outros profissionais. Vivenciar cotidianamente essas situaes, altamente intensificadas quando se trata de crianas, adolescentes ou adultos jovens, constatar doena avanada em mulheres grvidas ou prescrever tratamentos esterilizantes ou gravemente incapacitantes, inclusive vida sexual, ter que anunciar aos pais a morte iminente de seus filhos dentre tantas outras ms notcias, caracterizam situaes-limite nas quais o sofrimento pode se tornar intolervel, gerando nveis crescentes de adoecimento dos profissionais. Grande parte desses efeitos advm do isolamento dos profissionais em suas competncias e responsabilidades individuais. Enquanto vigora o tratamento curativo, a intimidade da consulta mdica se v o mais das vezes subsumida s exigncias dos protocolos prescritos para cada conduta e, de modo geral, fala-se muito pouco dos limites e das falhas possveis dos tratamentos propostos. Por sua vez, os diferentes profissionais da equipe assumem e conduzem aes sem que haja, necessariamente, uma responsabilidade compartilhada entre eles e o profissional que conduz o tratamento mdico6. Assim, quando a doena progride e o profissional especialmente o mdico no encontra mais amparo nos recursos tecnolgicos, a falta de preparo dos profissionais para a comunicao e para o suporte emocional aos pacientes torna-se evidente, gerando silenciamentos, falsas promessas de cura ou comunicaes abruptas de prognsticos adversos com srios prejuzos relao teraputica. Uma verdadeira aproximao entre a experincia do profissional e a do paciente e de seus familiares pode ser concebida especialmente nos momentos de esgotamento dos recursos de cura. Nesses momentos, presentes desde o incio em casos graves, como os profissionais podem encontrar suporte dentro de sua prpria equipe? Como lidar com as rivalidades e favorecer laos solidrios, considerando que os limites chegam para todos? Ou ainda, quem se aproximar ou se afastar do paciente e de sua doena dentro da sua famlia e de sua rede de relaes? Quem, dentro das relaes teraputicas, se tornar mais ou menos importante para ele ou para ela? Questes que dependero, em grande medida, da qualidade das parcerias que possam ser estabelecidas desde o incio do tratamento e que ultrapassam, necessariamente, a segurana da competncia tcnica. Esta, se por um lado fundamental, poder, ao ver esgotados seus recursos, deparar-se com a qualidade da relao humana que a foi possvel estabelecer e certamente com os ganhos ou prejuzos envolvendo todos os implicados.

6 Tais aes compreendem: 1) a interveno das demais categorias profissionais para o tratamento de questes provenientes da perda ou do agravamento das condies sociais de autossustentao pessoal ou familiar e para o acesso aos benefcios da seguridade social; 2) o acompanhamento psicoterpico, da terapia ocupacional ou da fisioterapia para a mobilizao de recursos psquicos e fsicos que possibilitem acontinuidadedavidasobnovascondiese,ainda,3)oscuidadoseasorientaesdaenfermagem.

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Foi, portanto, o encontro com essas questes e angstias suscitadas pela comunicao de ms notcias que possibilitou ao GTH a porta de entrada para a aceitao, em primeiro lugar pelos mdicos, da necessidade de maior valorizao e capacitao para a comunicao com os pacientes e familiares em situaes difceis do tratamento. Para que fosse possvel abrir um espao de legitimidade para o tratamento dessas questes dentro do espao de trabalho e como parte da funo profissional, foi importante partir da pesquisa da literatura mdica especializada sobre a temtica da comunicao de ms notcias. A extensa produo encontrada demonstrava o que j vnhamos constatando: que, nos limites da medicina biotecnolgica, voltava a entrar em cena a importncia das relaes de confiana e das parcerias estabelecidas com os pacientes e familiares. Buscou-se, a seguir, reunir subsdios para o enriquecimento dessas questes que envolvem a interao ou a dissociao entre o curar e o cuidar, assim como a falta ou insuficincia das polticas institucionais voltadas para a ateno e o cuidado sade dos profissionais. A ressonncia de sua importncia na prtica clnica testemunhada pela abertura encontrada por parte daqueles que prestaram seus depoimentos e que representaram apenas uma pequena amostra do interesse que poderia despertar a oferta de espaos de liberdade e acolhimento para as questes candentes oriundas da experincia clnica de cada um e que poderiam encontrar maior amplitude e aprofundamento associando-se abertura de dispositivos grupais de discusso e pesquisa.

Estratgia Inicial: o Uso do Protocolo SpikesDentre a bibliografia pesquisada, especial destaque foi dado ao protocolo elaborado por um renomado grupo de oncologistas americanos e canadenses ligados ao MD Anderson Cancer Center, da Universidade do Texas, USA e ao Sunnybrook Regional Cancer Center de Toronto, CA (BAILE et al., 2000). A reconhecida credibilidade dos autores e de suas instituies, consideradas centros de referncia internacional na formao de oncologistas, reforou, entre os mdicos do INCA, o reconhecimento de uma demanda de capacitao j admitida na prtica. Combasenesseprotocolo,foramorganizadaspeloGTH,emfinsde2005,asprimeirasOficinas de Trabalho sobre a Comunicao em Situaes Difceis do Tratamento. As oficinas reuniram 90 mdicos das diferentes especialidades oncolgicas do Instituto em um Centro de Convenes, tendo sido precedidas por intensa atividade de leituras preparatrias e construo de depoimentos. O protocolo SPIKES foi utilizado basicamente como um roteiro para a discusso7 dos casos, apresentados como depoimentos, a partir dos quais foram construdas cenas dramatizadas da relao com pacientes e familiares nas situaes de comunicao de diagnsticos com prognstico adverso, cirurgias mutiladoras e esgotamento de recursos de cura. O diretor geral, o coordenador geral de assistncia e a coordenadora do grupo de trabalho de humanizao, todos do INCA, presentes nesse encontro, enfatizaram sua importncia considerando-o

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Ver Anexo 1 PROTOCOLO SPIKES roteiro para discusso, ao final do livro.

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um marco de virada paradigmtica na cultura institucional. Eles enfatizaram a necessidade de mudana no modelo de ateno e apontaram para uma tomada de posio que incorpora a poltica nacional de humanizao como eixo estratgico da reorganizao institucional do INCA como parte integrante do SUS. A coordenadora do grupo de trabalho de humanizao voltou a ressaltar que um trao distintivo da poltica de humanizao a nfase que imprime nas relaes, nos vnculos que podem ser produtores de sade, em uma perspectiva que inclui, nessa poltica, o cuidado do cuidador. Aps esse primeiro evento e a partir das propostas construdas coletivamente pelos participantes do Curso de Formao de Apoiadores da PNH, realizado em 2006, com a contribuio macia dos consultores nacionais da Poltica de Humanizao, seguiram-se, sobre o tema da comunicao de ms notcias e da integrao dos cuidados paliativos, as seguintes iniciativas: EncontrosmultiprofissionaisnoHospitaldeCncerII,abertosaresidenteseespecializandos-2006e 2007. Oficina Interdisciplinar de Integrao da Seo de Cirurgia de Cabea e Pescoo com a Unidade de CuidadosPaliativoseparticipaodeprofissionaisdaCirurgiaPlsticaeRadioterapia-2007.

Sobre cada um desses eventos, foram produzidos relatrios, sistematizando as questes levantadas e apresentando resultados de avaliao baseados em questionrios respondidos antes e aps o evento. Essas avaliaes foram unnimes ao salientarem a validade da iniciativa e seu enriquecimento pela participao da equipe multiprofissional, recomendando sua continuidade, porm de maneira mais extensiva e sistemtica, nos moldes da educao permanente. O tema da comunicao de notcias difceis foi tambm, paralelamente, objeto de pesquisa dadissertaodemestradodeLilianePenello(MENDESPENELLO,2007),primeiracoordenadora do GTH no INCA. O eixo central desse trabalho foi exatamente a discusso acerca da qualidade do vnculo como suporte da comunicao estabelecida entre profissionais, gestores e usurios, assim como espao potencial de produo de sade e catalisador de inovaes tecnolgicas de cunho relacional. As tecnologias relacionais so levadas em conta em seu dilogo e na produo de articulaes singulares com as demais tecnologias de ponta incorporadas em equipamentos e medicamentos com finalidade diagnstica e teraputica na ateno ao paciente com cncer. Assim, ir alm das proposies do modelo biomdico-tecnolgico tradicional conduziu o estudo que utilizou o Protocolo SPIKES em seu desenho metodolgico, obtendo informaes preciosas dos profissionais de sade. Estas, associadas s entrevistas com tais profissionais, alm das realizadas com gestores e usurios e acrescidas das ricas discusses de casos clnico-institucionais (ncleo da implantao da Clnica Ampliada no Hospital de Cncer II) e do farto material de suporte disponibilizado pela PNH, foram validadas na pesquisa com a oferta de intervenes concretas no dia a dia da Ateno em Cncer no Instituto. Estas ofertas e seus resultados esto disponveis para avaliao e apropriao por todos os participantes da Rede Oncolgica do Rio de Janeiro e dos demais componentes do SUS. Vrias dessas sugestes de desdobramento para um SUS humanizado, atento s relaes e ao cuidado para com e entre seus principais atores, encontram-se contempladas no presente Projeto.

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COMUNICAO DE NOTCIAS DIFCEIS: compartilhando desafios na ateno sade

A Parceria com o Hospital Israelita Albert EinsteinEm 2009, foi aprovado, pelo Ministrio da Sade, um projeto apresentado pelo INCA ao Hospital Israelita Albert Einstein, para ser executado com recursos de renncia fiscal do governo s contribuies sociais dos hospitais filantrpicos com selo de excelncia, para sua aplicao em projetos voltados para o desenvolvimento institucional do SUS.8 Esse projeto, intitulado, inicialmente, Ateno ao vnculo e desenvolvimento de habilidades para a comunicao em situaes difceis do tratamento na ateno oncolgica, com base na experincia de Grupos Balint e uso do protocolo SPIKES, foi realizado de abril a setembro de 2009, com intensa fase anterior de negociaes e atividades preparatrias. Seus principais resultados e contribuies constituem o contedo desta publicao.

A Sensibilizao por Meio da Simulao RealsticaA equipe do Hospital Albert Einstein responsvel pela gerncia dos projetos comunitrios no Instituto Israelita de Responsabilidade Social demonstrou, desde o incio das negociaes, grande interesse pelo projeto e fez a oferta de realizar as Oficinas de Sensibilizao que estavam previstas como primeira atividade, reunindo todos os participantes em seu Centro de Simulao Realstica, inaugurado recentemente em So Paulo.9 Nessas oficinas, os participantes passaram por quatro cenrios de simulao realstica em que, a cada vez, um dos profissionais contracenava com atores em situaes previamente construdas, retiradas da realidade cotidiana da comunicao de notcias difceis nos servios de oncologia peditrica, ginecologia, mastologia e cuidados paliativos. Aps cada simulao, desenvolvia-se uma discusso (debriefing), com base em uma definio de competncias, ampliadas a partir do protocolo SPIKES.10 Nas Oficinas, os participantes foram divididos em dois grupos sendo que, na parte da manh, enquanto metade da turma participava da simulao realstica, a outra parte assistia a um painel de exposio e debates conduzido por Gustavo Tenrio Cunha sobre a Gesto Compartilhada da Clnica Ampliada, na perspectiva do mtodo Balint-Paidia. Na parte da tarde, os grupos se revezaram nessas duas atividades. A participao nos cenrios da simulao realstica causou grande mobilizao e teve efeitos de forte impacto emocional, ainda que os ndices de reao de satisfao, medidos por instrumentos de avaliaoespecficos,tenhamsidopositivosesuperioresa95%deaprovao. A avaliao geral das Oficinas, includos os comentrios nas folhas de avaliao dos painis de exposio e debates, e a anlise da Coordenao do INCA, assim como as avaliaes posteriores dos participantes na continuidade dos grupos de trabalho, conduziram s seguintes consideraes:

PortariaGM3276de28/12/2007,publicadanoDOUde31/12/2007HospitaisdeexcelnciaaserviodoSUS. Essa experincia relatada do ponto de vista da equipe tcnica do Centro de Simulao Realstica e dos atores participantes dos cenrios descrita no Artigo de Cristina S. Mizoi, Fabiane Carvalhais Regis e Lilian Bertozo, Capacitao dos Profissionais do INCA para o Atendimento Humanizado ao Paciente Oncolgico e Familiar no Centro de Simulao Realstica Albert Einstein, includo neste livro. 10 Ver Anexo 2 ao final do livro.8 9

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Aparticipaonoscenrioscausougrandemobilizaodeafetosequestesinerentesprticaclnica, tratando-se de situaes-limite de sofrimento tanto para os pacientes como para os profissionais. Os participantes requeriam um tempo maior para externarem seus sentimentos e elaborarem a experincia. A passagem para uma exposio de maior densidade terica, ainda que fundada em casos clnicos, no perodo da tarde, ressentiu-se da falta desse espao de elaborao. Nasemanaseguinte,apstersidofeitaessaavaliaojuntoaoexpositor,iniciou-seopaineldatarde com a abertura de um tempo para comentrios sobre a experincia da manh, o que possibilitou melhor aproveitamento da exposio e dos debates subsequentes. Demodogeral,aavaliaoposterior,nosgruposdetrabalho,indicouqueoprograma,apesardeexcelente, foi muito pesado e recomendou que fosse realizado em dois dias, sendo um dia todo para os cenrios, com a possibilidade de dois cenrios de manh e dois a tarde, e um tempo maior para o debriefing. Alm disso, acrescentou-se que o tema da Gesto Compartilhada da Clnica Ampliada poderia ser abordado em Seminrio no Rio de Janeiro.

A Experincia Balint-Paidia e sua Articulao com o Tema da Comunicao de Ms NotciasO cerne da metodologia do projeto de Ateno ao Vnculo e Qualificao da Comunicao em Situaes Difceis do Tratamento Oncolgico inspira-se na experincia dos Grupos Balint11 adaptada ao contexto hospitalar e focada na comunicao de ms notcias. A essa fonte, agregou-se, em seguida, o mtodo Paidia, graas ao conhecimento da experincia j realizada com equipes da ateno bsica em Campinas, SP. Os Grupos Balint-Paidia12 articulam o enfoque dos Grupos Balint ao mtodo Paidia13 desenvolvido por Gasto Wagner de Sousa Campos para a cogesto de coletivos e a gesto compartilhada da clnica ampliada e seus dispositivos: as equipes interprofissionais de referncia; os projetos teraputicos singulares e o apoio matricial, que foram amplamente incorporados Poltica Nacional de Humanizao da Ateno e Gesto do SUS. No entanto, o foco colocado na transmisso de ms notcias deu a essa experincia um carter muito particular: a convico de adentrarmos a um territrio tabu, uma regio de silncio, plena de intensas vivncias, acumuladas na vida cotidiana do hospital, na relao com os pacientes e seus familiares,

11 A proposta de Michael Balint, mdico e psicanalista hngaro naturalizado ingls, foi construda para a formao de mdicos generalistas com base em Seminrios de discusso a respeito de problemas psicolgicos na prtica mdica. Nesses seminrios, os grupos funcionam como uma equipe de pesquisa sobre as relaes mdico-paciente, tendo como ponto de partida os relatos de caso sobre as dificuldades enfrentadas pelos participantes em sua prtica clnica. So normalmente coordenados por um psicanalista e no tm prazo de durao predeterminado. Neles, o psicanalista atua sem assumir a funo de terapeuta e sem recorrer a interpretaes, mas como facilitador, lder da equipe de pesquisa. 12 As principais fontes de referncia para os Grupos Balint-Paidia so: - a tese de doutoramento de Gustavo Tenrio Cunha, Grupos Balint-Paidia: uma contribuio para a cogesto e a clnica ampliada na Ateno Bsica, defendida e aprovada na concluso do Curso de ps-graduao em Sade Coletiva do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade Estadual de Campinas, SP, UNICAMP, fevereiro de 2009, indito, cpia mimeo; - o artigo desse mesmo autor, em coautoria com Deivisson Vianna Dantas, Uma contribuio para a cogesto da clnica: Grupos BalintPaidia, publicado in:CAMPOS, G.W. S. e GUERRERO, A.V.P. (org) Manual de Prticas de Ateno Bsica sade ampliada e compartilhada, S.Paulo,Hucitec,2008. 13 Para maior conhecimento do Mtodo Paideia, consultar obra de CAMPOS, G.W.S. Um Mtodo para Anlise e Cogesto de Coletivos a constituiodosujeito,aproduodevalordeusoeademocracianasinstituies:omtododaroda,SoPaulo,Hucitec,2edio,2005e SadePaidia,SoPaulo,Hucitec,3edio,2007

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mas das quais muito pouco se fala nos espaos de discusso e intercmbio profissional institudos. So vivncias mantidas no mbito privado, que qui povoem os pesadelos ou as noites insones dos profissionais, mas que raramente so compartilhadas em espaos institucionais, restringindo-se, via de regra, a confidncias com amigos mais prximos ou alguns desabafos no cafezinho. A esse respeito levantamos, nas reunies semanais do grupo de coordenadores, as aproximaes possveis entre essas vivncias silenciadas e aquelas analisadas por Walter Benjamin em seu ensaio Experincia e Pobreza(BENJAMIN,1987).Aofalarsobreaexperinciatraumticadaguerraeseus processos massivos de destruio e morte, Benjamin assinala que os combatentes voltaram silenciosos dos camposdebatalhanaguerrade1914,maispobresdeexperinciacomunicvel.Eatribuiessapobreza prpria experincia social que considera radicalmente desmoralizada pela guerra, pela inflao econmica, pela fome ou pela fraqueza moral dos governantes. Resta, ento, face ao excesso de estmulos que atinge os indivduos, a vivncia privada (Erlebnis) que o autor vai aproximar da vivncia traumtica analisada porFreudemAlmdoprincpiodoprazer(FREUD,1976).Essasvivnciaspermaneceroisoladase no incorporadas memria individual e coletiva, a menos que possam ser narradas e compartilhadas, desencadeando processos de elaborao e de integrao a espaos sociais, onde podero se abrir para novas possibilidades de sentido. A narrao, que uma das formas mais antigas de comunicao, diz Benjamin,no tem a pretenso de transmitir um acontecimento, pura e simplesmente (como a informao o faz); mas integr-lo vida do narrador, para pass-lo aos ouvintes como experincia. Nela ficam impressas as marcas do narrador como os vestgios dasmosdooleironovasodeargila.(BENJAMIN,1987,p.107)

As contribuies de Benjamin para a anlise das mudanas provocadas na natureza da experincia humana remontam, por outro lado, ao surgimento do capitalismo industrial e seus processos de produo em massa e de domnio da tecnologia sobre a vida social. O carter da experincia socialmente compartilhada e transmitida entre as geraes, caracterstica das sociedades precapitalistas e principalmente artesanais, foi substitudo pela experincia inspita, ofuscante da poca da industrializao em grande escala.(BENJAMIN,1989,p.105) A reconstruo possvel da experincia (Erfahung) em nossos tempos faz apelo, ento, no reconstituio nostlgica de antigas comunidades, mas abertura de espaos e formas sociais de comunicao onde a conversa falada ou escrita possa narrar o que se passa e acontece a cada um no encontro com as dores do mundo. Em nosso caso, sabemos que, no campo da sade, a cultura cientfica renega sua contraface: a doena, o envelhecimento e a morte. As ideologias dominantes na sade criam extensas zonas de silenciamento sobre os limites dos tratamentos, seus efeitos adversos, a fragilidade da vida e a vulnerabilidade dos profissionais. Desafiados em suas competncias e isolados em suas responsabilidades individuais, os profissionais vivem esses limites com conotaes de fracasso e impotncia pessoal mantidos, o mais das vezes, no mbito privado de cada um. A interdio comunicao social desses assuntos, que silenciosamente se instala, faz lembrar as ameaas contidas nas narrativas ancestrais dos reis ou generais que condenavam morte os

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mensageiros que traziam, dos campos de batalha, as ms notcias acerca das derrotas e mortes dos guerreiros. A expresso matar o mensageiro ainda pode traduzir a primeira reao a uma notcia que causa sentimentos de impotncia e desespero a quem a recebe. Nas experincias vividas desde a simulao realstica e, principalmente a partir dos depoimentos trazidos pelos participantes nos grupos, teve-se, por vezes, a sensao de se estar abrindo a Caixa de Pandora, deixando escapar todos os males, tudo o que deveria ser mantido guardado em segredo. Muitas das situaes difceis relatadas pelos participantes pareciam revelar at mesmo o ltimo dos males que, segundo diz uma das verses do mito, Pandora conseguiu manter guardado ao fechar novamente a caixa, assustada e arrependida de sua inconsequncia: o conhecimento antecipado, pelos humanos, da data de sua prpria morte. Este, de certa forma, constitui tambm o maior desafio colocado pelas recomendaes do protocolo SPIKES: ser honesto sem destruir as esperanas dos pacientes. Isso, no trabalho dos grupos, pode ser elaborado e ressignificado de diversas maneiras, colocando a esperana na qualidade de vida, na possibilidade de compartilhar os momentos mais difceis, na coragem testemunhada pelos pacientes, no cuidado e na delicadeza exercida perante a dor do outro e a sua prpria. A inspirao dos Grupos Balint proporcionou aos grupos um dos pilares mais seguros de sua metodologia: o funcionamento como uma equipe de pesquisa sobre as relaes profissional de sadepaciente, tendo como ponto de partida os relatos de caso sobre as dificuldades enfrentadas pelos participantes em sua prtica clnica atual. A partir do relato do caso, todo o grupo se corresponsabiliza por sua conduo, analisando possibilidades e recursos alternativos de interveno. Em seguida, o caso, agora enriquecido pelo trabalho coletivo, restitudo ao seu responsvel que volta a informar o grupo sobre os desenvolvimentos posteriores. O psicanalista se coloca nesse grupo como facilitador da equipe de pesquisa. Nas palavras de Missenard (1994,p.4).Em vez de instituir de antemo um saber prvio sobre a psicologia e sobre as relaes, que responderia s interrogaes e ao no saber dos participantes, M. Balint institui o no saber e o questionamento como base comum de funcionamento para o grupo. Ele prprio rejeita a posio de mestre. Psicanalistas e mdicos podem se encontrar em condies novas. Tm um projeto de trabalho, a respeito de um objeto investido por todos o caso clnico relatado e, na atividade comum, reconhecida a especificidade de cada um.

Essa independncia da equipe de pesquisa ressaltada pelo prprio M. Balint (1994),afirmando que,No contexto de nossos seminrios de discusso, estamos particularmente atentos em preservar a dignidade, a independncia e a responsabilidade adulta dos mdicos que deles participam, sem o que no poderiam funcionar como membros autossuficientes de uma equipe de pesquisa.

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Por essa razo, Balint estabelece uma diferena entre transferncia privada e transferncia pblica e a esclarece dizendo que as interpretaes, nos Grupos Balint, quase nunca dizem respeito s motivaes latentes do comportamento teraputico do mdico. Ao contrrio, o que interessa o aspecto de seu trabalho profissional que, por meio do relato do caso e de sua participao na discusso, torna-se pouco a pouco conhecido por todos os membros do seminrio. O autor ressalta, ainda, que mesmo no que diz respeito a esse ponto, o objetivo antes de mais nada torn-lo capaz de fazer, ele prprio, suas descobertas (BALINT,1994). Balint considera que os melhores momentos para fazer descobertas independentes so quando a maior parte dos membros do seminrio est manifestamente tocada por um relato. Esses momentos proporcionam boas ocasies a vrios membros de se tornarem conscientes de suas formas individuais de comprometimento. A diversidade das respostas evidencia, por contraste, a resposta individual de cadamdico(BALINT,1994). Nas equipes de pesquisa de M. Balint, constitudas originalmente por mdicos generalistas, um dos objetos centrais de investigao foi o que o autor chamou de conhecimento da droga mdico e de sua farmacologia, considerando que nas relaes mdico-paciente a substncia mais frequentemente receitadaoprpriomdico(BALINT,1988). O desenvolvimento dessa pesquisa centrou-se no estudo do que Balint denominou a funo apostlica do mdico. Esta significa, em primeiro lugar, que todo mdico tem uma vaga, mas quase inabalvel, ideia sobre o modo como o paciente deve se comportar quando est doente. Como consequncia, o paciente se v obrigado a aceitar a f e os mandamentos do seu mdico e a converter-se, pelo menos superficialmente, a eles ou a rejeit-los para resignar-se a suportar uma situao de regatear crnico ou, como ltimo recurso, ir a outro mdico, cuja f e cujos mandamentos sejam mais exequveis (BALINT,1988).Poroutrolado,oautorafirmaquetodo mdico cria, consciente ou inconscientemente, uma atmosfera particular devido sua forma individual de praticar a medicina e logo trata de converter os seus pacientes para que a aceitem. A existncia dessa atmosfera particular, caracterstica de cada mdico,consideradaofenmenomaisimportantedafunoapostlica.(BALINT,1988,p.203). Com o avano de suas pesquisas e experimentaes, M. Balint chega concluso de que a transmisso de tcnicas tradicionais das psicoterapias ou baseadas na entrevista psiquitrica tinha dado origem a uma nova funo apostlica na relao com os pacientes a qual tinha ainda, como agravante, o fato de permanecer como um corpo estranho na prtica mdica. Em consequncia, o autor decide organizar, junto com sua esposa, Enid Balint, uma equipe de pesquisa para buscar novas tcnicas que talvez permitissem ao mdico oferecer ajuda psicolgica a seus pacientes, sem perturbar a rotina normal de sua prtica. Por outro lado, excluram dessa investigao qualquer forma de mtodo no especfico, e, portanto, questionvel, tal como o apoio geral, a tranquilizao macia, o conselho simpticoouqualquerformadepsicanliseemgotas.(BALINT,1976,p.5). Comentando o desenvolvimento dessa pesquisa, Balint relata que, de incio, foi pedido aos mdicos que descrevessem qualquer entrevista durante a qual julgassem ter mantido um contato importante com o paciente e, desse modo, logrado alguma coisa aceitvel, desde que a entrevista no tivesseduradomaisdoquedezaquinzeminutos.(BALINT,1976,p.6).33

Esse trabalho no se deu sem dificuldades e crises importantes. Em seu artigo, escrito pouco antes de sua morte, Balint considera que a principal dificuldade foi causada pela compreenso de que seus velhos mtodos bem comprovados deviam ser abandonados ou pelo menos bastante modificados nas novas condies. Para visualizar esse importante rompimento, caracterizou o velho mtodo como sendo odograndedetetiveeonovocomoodasintoniaoudoexperimentodoflash(BALINT,1976). O autor ressalta queo papel do grande detetive est muito perto do papel do mdico tradicional na medicina centrada sobre a doena. [...] Tais funes tradicionais do ao mdico um sentimento seguro de superioridade: ele quem sabe mais, a quem o paciente procura com esperana e confiana e que pode provar pelo xito de suas habilidades diagnsticas que a confiana em seu conhecimento e habilidade superiores era justificada. [...] Na nova tcnica, o papel do (mdico) terapeuta sintonizar com opaciente,segu-lo,permitir-lhequeuseoterapeuta(BALINT,1976,p.6-8).

Essa , de fato, uma nova posio em que os mdicos e os demais profissionais de sade abrem mo de sua funo apostlica, ou seja, renunciam s suas convices de como deve se comportar um paciente quando est doente (assim como seus familiares) e se dispem a acompanhar e entrar em sintonia com a experincia singular de cada um face ao adoecimento e ao tratamento. Essa posio vem ao encontro das diretrizes que o Projeto buscou incorporar e que tambm so propugnadas pelo mtodo Paidia, que enfatiza o protagonismo e a corresponsabilizao dos usurios e dos profissionais por meio de projetos teraputicos singulares. Essas mesmas referncias norteiam a experincia dos Grupos Balint-Paidia, desenvolvida por Cunha e Dantas (2008, p.34), junto a profissionais de sade da ateno bsica. Tendo como ponto de partida a insuficincia dos mtodos de formao profissional com abordagem estritamente cognitiva sobre a relao mdico-paciente, destacada por M. Balint, os autores afirmam que a dimenso subjetiva das relaes clnicas est para alm do estrito reconhecimento intelectual. Isso significa que preciso aprender a lidar com o fluxo de afetos inerentes a essas relaes. Os Grupos Balint-Paidia buscam construir um mtodo grupal, que , ao mesmo tempo, um instrumento de trabalho gerencial e uma oferta clnica-terica aos trabalhadores que lidam com situaes de trabalho complexas que envolvem uma rede de saberes, poderes e afetos (CUNHA;DANTAS,2008,p.35). Na perspectiva Balint-Paidia ganham relevncia as diretrizes da Clnica Ampliada e seus dispositivos: projeto teraputico singular, equipe de referncia e apoio matricial. Torna-se igualmente importante a sensibilidade para lidar com a dimenso das foras e afetos presentes na relao com os pacientes, os familiares e a equipe, assim como alguma disposio para a negociao de projetos teraputicos com todos os sujeitos envolvidos. Requer-se, por fim, a possibilidade de lidar com a relativa incerteza,adisposioparatrabalharemequipeeconstruirgrupalidade(CUNHA;DANTAS,2008).

Resultados e DesdobramentoAs propostas aqui apresentadas foram incorporadas e praticadas nos espaos de interveno desse projeto, trazendo a metodologia Balint-Paidia para o campo da ateno hospitalar. Assim, mais34

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de 100 profissionais de diferentes especialidades, provenientes de servios de oncologia do INCA e outros 10 hospitais, puderam apresentar e discutir situaes difceis que estavam enfrentando na comunicao com pacientes e familiares em sua prtica diria. Nos encontros dos oito grupos BalintPaidia foi possvel, com a mediao dos coordenadores, criar um ambiente favorvel, que permitiu aos participantes compartilhar angstias e dificuldades, analisar as aes e os afetos envolvidos, assim como pensar em conjunto alternativas para lidar com as diferentes situaes. Nesse sentido, criaram-se condies que trabalharam a favor do aquecimento das redes entre equipes profissionais do INCA e de outros servios especializados da ateno oncolgica hospitalar na cidade do Rio de Janeiro, um dos principais objetivos propostos pelo Projeto. Consideramos, por outro lado, que a construo dessa experincia de curta durao, mas de grande intensidade, soube abrir caminho para a configurao de um campo de conhecimentos e de prticas que h muito demandava reconhecimento. Esperamos que as ideias, as propostas e os resultados aqui apresentados possam contagiar e promover novas iniciativas, em mbito nacional, para enriquecer e diversificar esse campo, valorizando a ateno ao vnculo, a comunicao com os usurios e o cuidado com a sade do trabalhador. A experincia ter continuidade no Rio de Janeiro em 2010 e 2011, tendo como pblico-alvo residentes, especializandos e preceptores das diversas categorias profissionais e das unidades hospitalares que compem a rede de ateno oncolgica nesta cidade, estendendo-se tambm a servios que atendem a outras doenas crnico-degenerativas. Esse programa vem trabalhando para o aprimoramento do nosso Sistema nico de Sade e para a construo compartilhada do SUS que d certo.

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Ateno ao Vnculo e Sade do Trabalhador: um Bom EncontroLiliana Planel Lugarinho e Selma Eschenazi do Rosario

O trabalho em grupos e a participao popular tm contribudo para a ruptura com os id