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1 ARTE E LOUCURA: UMA RELAÇÃO HISTÓRICA NA EVOLUÇÃO DO TRATAMENTO EM SAÚDE MENTAL Layla Cangussu Soares 1 Orientadora: Roberta Guimarães Firmino 2 Resumo: O presente trabalho rememora a trajetória da loucura ao longo dos séculos e faz também um paralelo entre a mesma e a arte, como esse processo vem sendo abordado na atualidade e como as novas formas de intervenção através da arte tem contribuído para o processo da reabilitação psicossocial na visão de alguns autores. Qual a relação histórica da arte e da loucura e no que resultou esse encontro? O trabalho realizou-se por meio de pesquisa bibliográfica onde foram analisados materiais já publicados como livros, artigos e paginas da internet. Durante séculos passados, a loucura no Ocidente teve diferentes formas de ser abordada pela sociedade, em virtude de determinantes históricos de cada época. A partir daí iniciam-se os primeiros passos do encontro entre arte e loucura. É também durante o processo da Reforma Psiquiátrica que essa parceria ganha força, pois as principais mudanças na percepção e nas formas de tratamento em saúde mental surgem nessa época, contribuindo assim para as novas propostas e meios de intervenção como as oficinas terapêuticas, ou seja, as intervenções através da arte no tratamento e na reabilitação de pessoas com sofrimento mental. Nessa perspectiva pode-se dizer que é fundamental conhecer o contexto histórico da relação entre arte e loucura, para podermos reconstruir alguns conceitos e lançar um novo olhar voltado para novas possibilidades no que se refere ao tratamento mais humanizado em saúde mental. Palavras chave: Reforma psiquiátrica. Saúde mental. Arte. Oficinas terapêuticas. Reabilitação psicossocial. 1 Psicóloga graduada pela Universidade Vale do Rio Doce. Atualmente concluindo a Especialização em Saúde Mental e Intervenção Psicossocial pela UNIVALE MG. Atua no Centro de Referência da Assistência Social – CRAS da cidade de Senhora do Porto. E-mail: [email protected] 2 Terapeuta Ocupacional especialista em Saúde Mental

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ARTE E LOUCURA: UMA RELAÇÃO HISTÓRICA NA EVOLUÇÃO D O

TRATAMENTO EM SAÚDE MENTAL

Layla Cangussu Soares1

Orientadora: Roberta Guimarães Firmino2

Resumo: O presente trabalho rememora a trajetória da loucura ao longo dos séculos e faz também um paralelo entre a mesma e a arte, como esse processo vem sendo abordado na atualidade e como as novas formas de intervenção através da arte tem contribuído para o processo da reabilitação psicossocial na visão de alguns autores. Qual a relação histórica da arte e da loucura e no que resultou esse encontro? O trabalho realizou-se por meio de pesquisa bibliográfica onde foram analisados materiais já publicados como livros, artigos e paginas da internet. Durante séculos passados, a loucura no Ocidente teve diferentes formas de ser abordada pela sociedade, em virtude de determinantes históricos de cada época. A partir daí iniciam-se os primeiros passos do encontro entre arte e loucura. É também durante o processo da Reforma Psiquiátrica que essa parceria ganha força, pois as principais mudanças na percepção e nas formas de tratamento em saúde mental surgem nessa época, contribuindo assim para as novas propostas e meios de intervenção como as oficinas terapêuticas, ou seja, as intervenções através da arte no tratamento e na reabilitação de pessoas com sofrimento mental. Nessa perspectiva pode-se dizer que é fundamental conhecer o contexto histórico da relação entre arte e loucura, para podermos reconstruir alguns conceitos e lançar um novo olhar voltado para novas possibilidades no que se refere ao tratamento mais humanizado em saúde mental.

Palavras chave: Reforma psiquiátrica. Saúde mental. Arte. Oficinas terapêuticas.

Reabilitação psicossocial.

1 Psicóloga graduada pela Universidade Vale do Rio Doce. Atualmente concluindo a Especialização em Saúde Mental e Intervenção Psicossocial pela UNIVALE MG. Atua no Centro de Referência da Assistência Social – CRAS da cidade de Senhora do Porto. E-mail: [email protected] 2 Terapeuta Ocupacional especialista em Saúde Mental

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INTRODUÇÃO

Na Idade Média a loucura era algo experimentado livremente, os loucos tinham seu

espaço e faziam parte do cenário social daquela época. A partir do século XIV diante

as mudanças no modelo econômico e conseqüentemente no modelo social, surge

uma nova concepção de homem baseado primordialmente na razão. Segundo

Foucault (2000) existiu, antes do advento dos asilos, um distanciamento entre o

louco e o não louco sendo que o louco era aquele que não possuía a razão. Ele era

tomado pelos não loucos como outro – no sentido de exceção – em meio aos outros

possuidores da razão. O advento dos asilos e depois dos hospitais psiquiátricos

estreitou esta relação. Os não loucos olhavam os loucos buscando as verdades

profundas do homem, olhavam-nos sem reconhecerem a si mesmos, sem ouvir as

mesmas vozes porém com a idéia de que algo em comum existia entre eles. Dessa

forma, o louco exercia um poder de atração e fascinação afinal carregava mais

verdades que a sua própria, carregava também a verdade dos não loucos.

Com a proliferação dos manicômios em meados do século XX e seu caráter cada

vez mais repressivo e tomado por uma política de descaso, surgem os primeiros

movimentos que deram origem a Reforma Psiquiátrica e que por sua vez, contribuiu

de forma significativa para as mudanças no cenário da loucura.

Alguns textos históricos discutem de uma forma geral a evolução no tratamento da

loucura e incluem as oficinas de arte como um recurso terapêutico muitas vezes

criticado e em outros descrito como um elemento a mais entre as terapêuticas.

Desde tempos imemoriais as manifestações artísticas são o documentário psíquico

da coletividade e simultaneamente as representações da singularidade dos

indivíduos. De acordo com alguns registros históricos, desde o século V A.C. datam-

se registros da Arte sendo usada na Grécia como um recurso terapêutico para

promoção, manutenção e recuperação da saúde. Desde aquela época a arte era

considerada como reveladora, transformadora e colaboradora na construção de

seres mais criativos e saudáveis.

As oficinas terapêuticas em seu antigo contexto tinham como objetivo ocupar o

tempo do paciente, uma espécie de manutenção do sujeito dentro do hospital.

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Atualmente o que se tem tentado alcançar de uma forma geral, é a valorização

desse sujeito e sua capacidade de criar, uma espécie de reinserção social através

da arte, de forma que ele possa projetar seus conflitos internos através da mesma e

conseqüentemente expressar sua subjetividade reinventando a vida em seu âmbito

cotidiano. Essas referidas oficinas já apareceram ao longo do processo histórico da

psiquiatria, mas tinham um objetivo diferenciado do referencial da reabilitação

psicossocial. A partir dessa idéia faz-se necessário estabelecer um paralelo da

importância e evolução da arte enquanto recurso terapêutico no campo da saúde

mental desde os tempos mais remotos até os dias de hoje.

O trabalho foi realizado através de uma pesquisa de cunho bibliográfico, o que

consiste na seleção, leitura e sistematização de fontes documentais diversas, tais

como, materiais já publicados e analisados, como livros, artigos e páginas na

internet. Sua principal proposta é discutir e mostrar as mais variadas formas de

intervenção em saúde mental e suas respectivas mudanças no decorrer dos

séculos, e como a intervenção através da arte contribuiu e ainda tem contribuído

para efetivação de tais mudanças.

A TRAJETÓRIA DA LOUCURA E ARTE

Na Antiguidade, meados da Idade Média, a loucura era algo que se gozava

livremente, os loucos faziam parte do cenário social podendo transitar

tranquilamente como qualquer outro cidadão daquela época. Por volta do século XIV

diante as mudanças no modelo econômico, o homem passa a adquirir uma nova

imagem, a do ser primordialmente racional, o que conseqüentemente refletiu na

maneira de se enxergar a loucura, agora essa se tornara um incômodo social.

Segundo Foucault (2000), nesta mesma época surge a Nau dos Loucos, uma

espécie de barco que tinha a missão de se livrar dessas pessoas, tirá-las das ruas,

uma alternativa utilizada nesse período para tirar a loucura de cena.

Com uma nova reestruturação no quadro social simbolizada pela Revolução

Francesa , vê-se a necessidade do cuidado voltado ao louco, neste contexto surgem

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então os manicômios e o tratamento moral (técnicas violentas usadas como forma

de tratamento para loucura). Segundo Amarante(1995), ao asilo alienista era

devotada a tarefa de isolar os alienados do meio ao qual se atribuía a causalidade

da alienação para, por meio do tratamento moral restituir-lhe a Razão e, portanto, a

liberdade.

No Brasil, a situação não era diferente, os loucos eram acolhidos pelas Santas

Casas e confinados em porões sofrendo também maus tratos físicos, desnutrição e

doenças infecciosas que muitas vezes terminavam em morte.

Com o aumento excessivo de manicômios, respectivamente em caráter desumanos

em meados do século XX, surgem os primeiros movimentos que deram origem a

Reforma Psiquiátrica. A Reforma tinha por objetivo estratégias de questionamento e

elaboração de propostas para a transformação do paradigma da Psiquiatria

Clássica. Dentre as várias Reformas que ocorreram em diferentes lugares do

mundo, cabe destacar a Reforma Italiana, pois esta trouxe à luz o paradigma da

desinstitucionalização, inspirador da Luta Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica

Brasileira.

Sua trajetória (Reforma Psi) não é linear, seu entendimento por arte dos atores e das forças que o compõe não é homogêneo, sua organicidade enquanto movimento não tem sido constante. Mas é indiscutível que na década de 80 se enraizou e desde então vem se consolidando no país uma percepção do papel das práticas e das instituições psiquiátricas que se distancia das experiências levadas a efeito até os anos 70 no Brasil. É a esse processo que estamos chamando de reforma psiquiátrica no Brasil. (BEZERRA JR., 1992, s/p)

As Conferências Nacionais de Saúde Mental realizadas em 1987, 1992 e 2001

possibilitaram a delimitação dos objetivos da reforma psiquiátrica brasileira atual e a

proposição de serviços substitutivos ao modelo hospitalar. Dentre os marcos

conceituais desse processo, destacam-se o respeito à cidadania e a ênfase na

atenção integral, onde o processo saúde/doença mental é entendido dentro de uma

relação com a qualidade de vida.

Nos dias de hoje, tem sido cada vez mais premente na discussão acerca das

estratégias inclusivas de dispositivos voltados à inserção e reabilitação social.

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Evidentemente, a reforma mudou a percepção social sobre a loucura, baseando-se

na desinstitucionalização, na humanização e reintegração do individuo a sociedade.

Para Rotelli & Amarante (1992), a desinstitucionalização não deveria ser praticada

apenas no interior do hospital psiquiátrico, deveria sim repropor a necessidade de

desinstitucionalizar, isto é, reabilitar o contexto, cuja principal função reabilitadora

seria a restituição da subjetividade do indivíduo na sua relação com as instituições

sociais, ou melhor, a possibilidade de recuperação da contratualidade.

O processo de desinstitucionalização foi, e ainda continua sendo, muito inspirador para o movimento da reforma brasileira, já que esse processo produziu uma ruptura com o paradigma asilar e uma nova relação com a experiência do sofrimento psíquico. Esse processo se propõe não só ao recentramento na cidade e a reaproximação de pacientes e comunidade, mas sobretudo repensar as condições de cidadania desses indivíduos por um lado retirando-os dos asilos, mas também descontruindo o próprio asilo, problematizando com isso a psiquiatria e seu pressuposto objeto. (GALLETTI, 2001, p.12)

A idéia da desinstitucionalização retoma a discussão da reabilitação psicossocial

que para Saraceno (1999) precisaria contemplar três vértices da vida de qualquer

cidadão: casa, trabalho e lazer. Pitta (1996) considera a reabilitação psicossocial um

processo que objetiva facilitar aos indivíduos em sofrimento psíquico a

reestruturação de sua autonomia através de ações que os incluam em diversos

segmentos sociais, que fortaleça e favoreça as ações na comunidade visando a

potencialização de suas habilidades.

A idéia das oficinas de intervenção através da arte surge dentro desse contexto de

reabilitação e reinserção psicossocial. Para esclarecer os objetivos das oficinas, é de

fundamental importância explicitar que elas estão intimamente ligadas a outro

paradigma que ampara a Reforma Psiquiátrica no Brasil: a reabilitação psicossocial.

Esta é apresentada por Rauter (2000) como a grande empreitada da Reforma, que

tem a finalidade explícita de recuperar o louco como cidadão por meio de ações que

passam fundamentalmente pela inserção do paciente psiquiátrico no trabalho e/ou

em atividades artísticas, artesanais, ou em dar-lhe acesso aos meios de

comunicação etc. De acordo com a autora, a oficina terapêutica seria um dispositivo

privilegiado para se atingir tal objetivo.

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Para Galletti (2001), o dispositivo a que chamamos oficina é geralmente convocado

quando se fala em "novas" propostas terapêuticas. Seu uso tem sido freqüente e

quase corriqueiro na clínica "psi" para designar um amplo espectro de experiências

terapêuticas e extra-terapêuticas, de diferentes formatos e composições. Quase

sempre amparado na crítica à psiquiatria tradicional e, portanto respaldado pelas

concepções da reforma psiquiátrica, o universo das oficinas não se define por um

modelo homogêneo de intervenção e nem tampouco pela existência de um único

regime de produção, ao contrário, é composto de naturezas diversas, numa

multiplicidade de formas, processos, linguagens.

Wahba (2005) atesta que um dos determinantes culturais fundamentais para a

durabilidade de nossa espécie encontra-se na criatividade e na arte. Tal afirmativa é

corroborada pelos primeiros desenhos do homem primitivo nas cavernas, datados

de 30 mil anos atrás. Sem dúvida, o homem veio garantindo sua sobrevivência

através dos tempos, no simples ato de eternizar, através da arte, o seu

conhecimento.

Freud (1996) concebe a arte como uma forma de reconciliar os dois princípios de

funcionamento mental: o princípio do prazer e o princípio da realidade. O pai da

psicanálise afirma que o artista é comumente um homem que se afasta da realidade

porque não concorda em abrir mão das paixões, que responderiam ao princípio do

prazer. Estas paixões, os desejos eróticos, alcançam a satisfação instintual pela via

da fantasia. A criação artística, por meio do uso de dons especiais, transforma a

fantasia em uma verdade de um novo tipo que é valorizada pelos homens “como

reflexos preciosos da realidade”.

Segundo Andrade (2000), por meio de arte o homem pode unir o seu ‘eu’ limitado e

individual a uma existência coletiva, ao mesmo tempo em que lhe possibilita

apoderar-se das experiências alheias. Com seu caráter dionisíaco ou apolíneo,

diversão ou conscientização, a arte revela o homem no mundo. Assis (2004),

entende a arte como forma de dar vazão à loucura e acredita que a produção

artística poderia retirar o sujeito do lugar de desacreditado social que o louco

normalmente ocupa.

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Para Wanderley (2002), psiquiatra e artista plástico, a arte é um caminho que

estreita a relação entre a loucura e a saúde através da criatividade. Criatividade é

entendida por ele como o movimento contra a repetição e a estereotipia; um ato que

amplia as possibilidades do sujeito apresentando-o a uma nova modalidade de

apreensão do mundo por meio da ampliação do contato afetivo com a realidade.

De acordo com Ciornai (2003), o instante da atividade artística, como um estado

alterado de consciência, ajuda a pessoa a focalizar seu mundo interno, adentrando

um canal mais intuitivo e mágico, onde nos surpreendemos com nossas próprias

imagens e com os significados que nelas encontramos . Por relaxar as defesas do

sujeito e permiti-lo contatar, sentir, elaborar de uma outra forma que não lhe seja

ameaçadora, a arte possibilita a quem dela se utiliza exprimir sentimentos nunca

antes vivenciados, seu ser mais profundo e autêntico.

A arte é uma expressão do ser humano e, como tal, uma forma de comunicação e de linguagem simbólica, é um produto da intuição e da observação, do inconsciente e do consciente, da emoção e do conhecimento, do talento e da técnica, da criatividade. Acolher e utilizar as modalidades de expressões artísticas dentro de um processo psicoterápico vem enriquecer a possibilidade de um conhecimento profundo e, conseqüentemente, uma maior compreensão da pessoa a ser auxiliada. (CARVALHO, 2000, p. 11)

A relação entre os campos da arte e da saúde mental começou a se estabelecer no

Brasil através dos trabalhos de Osório César, psiquiatra e crítico de arte, na década

de 1920 no Hospital Juqueri (SP) e de Nise da Silveira, psiquiatra e estudiosa de

Jung, na década de 1940 no Rio de Janeiro. Os trabalhos precursionados por Nise

da Silveira e Osório César destacam-se no que concerne a utilização de recursos

artísticos como possibilidade de uma proposta terapêutica ampla, voltada

primordialmente para a reabilitação psicossocial dos indivíduos em sofrimento

psíquico. Nise mudou tanto o cenário cultural quanto psiquiátrico da época ao

desenvolver um trabalho que prezava a valorização do portador de sofrimento

mental como ser humano capaz de criar e de expressar-se, discordando assim da

psiquiatria da época, voltou-se para novas formas de tratamento o que desencadeou

numa terapêutica ocupacional. A árdua luta de Nise para a humanização do serviço

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psiquiátrico mudou o contexto de saúde mental, baseado em suas idéias a arte,

cultura e loucura ganharam novas significações e tornaram-se referências para as

práticas atuais. Seu trabalho introduziu a questão da expressão e dos significados

simbólicos na compreensão das atividades, onde antes só havia ocupação e

pedagogia moral.

A arte se converte em um elemento facilitador ao acesso do universo imaginário e simbólico, permitindo o desenvolvimento de potencialidades latentes ou rituais, bem como o conhecimento de si mesmo. Ao trabalhar com materiais plásticos o indivíduo tem a possibilidade de criar uma nova forma a partir de uma forma original. Materiais como argila, lápis, tinta, papel, etc, realizam por um lado a execução prática de uma idéia (fantasia, sentimento, conflito, etc.) como exercitam a inteligência ao dar uma nova configuração a um modo particular de ser (URRUTIGARAY, 2004, p.28).

Segundo Bezerra e Oliveira (2002), a atividade artística como recurso terapêutico

possibilita a promoção de recreação, desenvolvimento das habilidades motores e

visuo-espaciais, melhora na auto-estima e obtenção de material passível de

interpretação, seu emprego no campo da saúde mental permite a expressão através

de uma linguagem não verbal, a socialização através de atividades realizadas em

grupo, a materialidade a psicose, pois a expressão de uma idéia delirante confere

assim um caráter simbólico trazendo-os para o terreno objetivo e por último a

reelaboração de aspectos conflitantes da personalidade uma vez que expressa na

produção permite ao usuário reexperimentar suas vivências e reorganizar-se

emocionalmente.

O Ministério da Saúde define e apresenta os objetivos das oficinas terapêuticas

como: (...) atividades grupais de socialização, expressão e inserção social através

da Portaria 189 de 19/11/1991).

As oficinas, o trabalho e a arte possam funcionar como catalisadores da construção de territórios existenciais (inserir ou reinserir socialmente os “usuários”, torná-los cidadãos...), ou de “mundos” nos quais os usuários possam reconquistar ou conquistar seu cotidiano ... de cresse que está se falando não de adaptação à ordem estabelecida, mas de fazer com que trabalho e arte se reconectem com o primado da criação, ou com o desejo ou com o plano de produção da vida (RAUTER, 2000, p.271).

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Rauter (2000) afirma que as novas práticas de reabilitação psicossocial propõe: agir,

isto é, inserir socialmente indivíduos segregados e ociosos, e de recuperá-los

enquanto cidadãos, através de ações que passam fundamentalmente pela inserção

do paciente psiquiátrico no trabalho e/ou em atividades artísticas, artesanais, ou em

dar-lhes acesso aos meios de comunicação entre outros. Mas isto não é totalmente

novo como nos lembra Resende (2000) apud Valladares et al. (2003) ao colocar que

não é uma simples coincidência, o trabalho no campo, o artesanato e o trabalho

artístico serem até hoje propostas como técnicas de tratamento e ressocialização

dos doentes mentais. Estas atividades apresentam em comum a capacidade de

acomodar largas variações individuais e de respeitar o tempo e o ritmo psíquico de

cada trabalhador. A experiência do trabalho das oficinas torna-se positiva quando

uma de suas funções é também o de intervir no campo da cidadania. Assim,

atuando no âmbito social, contribui como possibilidade de transformação da

realidade atual no que diz respeito ao tratamento psiquiátrico.

A promoção de atividades que utilizem recursos artísticos nos serviços de saúde

mental está em consonância com as diretrizes propostas pela Lei do SUS,

8080/1990, na qual se enfatiza o caráter multifacetário da saúde, que inclui bem

estar físico, psíquico e social. Em consonância com a Lei Paulo Delgado,

10.216/2001, que enfatiza a utilização de meios de tratamento alternativos e menos

invasivos e, sobretudo, que não desvinculem os sujeitos de seu meio familiar e

social, buscando assim romper com a lógica manicomial, centrada no tratamento

meramente medicamentoso, e buscando a promoção da reinserção social.

Considerações finais

As oficinas terapêuticas são atividades de encontro de vidas entre pessoas em

sofrimento psíquico, promovendo o exercício da cidadania a expressão de liberdade

e convivência dos diferentes através preferencialmente da inclusão pela arte.

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De acordo com Campos (2006), as oficinas terapêuticas podem ser pensadas como

lugar de co-produção do ser humano, no sentido de fazer junto. O autor salienta a

importância de se trabalhar não com parte do sujeito, mas com sua visão global,

levando em conta fatores sociais, culturais, orgânicos, subjetivos. Essa maneira de

pensar remete à ressignificação de saúde mental. Criar o novo, analisando o velho

padrão, construir a partir de mudanças dos tempos e valores. Valorizar este sujeito é

aumentar a capacidade de tomar conta de si, envolvendo-o com sua própria saúde,

com a possibilidade de relações.

As mudanças ocorridas na forma de se pensar a saúde mental e as novas propostas

e meios de intervenção decorrentes principalmente do processo chamado de

reforma psiquiátrica possibilitaram uma nova proposta de inclusão, e que a

reabilitação através da arte pode e tem surtido bons efeitos no que diz respeito ao

processo de reabilitação do portador de sofrimento mental em seu contexto familiar

e social, permitindo que ele expresse seus sentimentos, emoções e vivências

singulares aos doentes mentais.

Apesar de vivermos um momento fértil nas possibilidades de mudanças, devido a

alguns avanços já conquistados, é preciso entender que esse processo não pode

ser pensado como simples modificações de estruturas físicas. É preciso, antes de

tudo, que se execute uma reelaboração de concepções, de dispositivos e das

formas encontradas para que se possa relacionar com a loucura. Caso contrário,

estar-se-á apenas repetindo as relações manicomiais em outros espaços. Pensando

as contribuições do entrelaçamento do campo da arte com o da Saúde Mental, no

que concerne principalmente a possibilidade de efetivar a proposta da reabilitação

psicossocial e propor novos olhares sobre a loucura. Nessa perspectiva, é

importante conhecer o processo de construção histórica da loucura e da arte para

que se possa desnaturalizar conceitos e ser e ter a capacidade de reconstruí-los sob

uma ótica mais comprometida com os interesses daqueles a quem se presta

assistência.

ART AND MADNESS: A HISTORIC RELATIONSHIP IN THE DEV ELOPMENT OF

TREATMENT IN MENTAL HEALTH

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Abstract: This work recall the trajectory of madness over the centuries and is also a parallel between the same and art, as this process has been approached nowadays and as the new forms of intervention through art has contributed to the process of psychosocial rehabilitation in the vision of some authors. Which the historic relationship of art and madness and the result that this meeting? The work conducted-bibliographic research where were analyzed materials already published as books, articles and pages of the internet. For centuries, madness in the West had different forms to be addressed by society, by virtue of determinants historical each epoch. From this starting-if the first steps of the encounter between art and madness. It is also during the process of Psychiatric Reform that the partnership gaining strength, because the main changes in perception and forms of treatment in mental health arise at that time, thus contributing to the new proposals and means of intervention as the workshops therapeutic, or, to interventions via the art in the treatment and rehabilitation of people with mental suffering. In this perspective may-say that it is essential to understand the historical context of the relationship between art and madness, so that we can rebuild some concepts and to launch a new look again for new possibilities as regards the treatment more humanized in mental health.

Keywords: psychiatric reform. Mental Health. Art. Therapeutic workshops.

Psychosocial Rehabilitation.

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