1 ano do pontão de convivência e cultura de paz do instituto pólis

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1 ano do Pontão de Convivência e Cultura de Paz do Instituto Pólis. Organização dos textos: Paloma Kliss

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1ANO

São Paulo 2009

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Um ano de vida do Pontão de Convivência e Cultura de Paz

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Os gregos, antigos sonhadores de mundos, diziam que a poesia era a causa de qualquer coisa que passava do não-ser ao ser e não apenas o trabalho do poeta. Neste sentido, o Pontão tem a sua poética também. Quando começamos, há um ano, já havia a presença cultural do Instituto Pólis na reflexão e no debate público, na criação de redes culturais, enfim, no fortalecimento da cidadania cultural das localidades. A Cultura de Paz acontece como um desdobramento necessário e natural do trabalho, como aquele ingrediente vital para desencadear um processo ou abrir um novo ciclo. Não há dúvida de que a cultura brasileira, mesmo com o acolhimento já cantado em verso e prosa, é marcada fortemente pela violência no cotidiano, das estruturas de poder, violência simbólica e do imaginário. A Cultura de Paz vem mostrar outras formas de resolução do conflito, novas atitudes, filosofias de vida e paradigmas de mudança. Dessa forma, o Pontão de Convivência e Cultura de Paz chegou para contribuir no fortalecimento de uma Cultura de Paz nos Pontos de Cultura, reforçando iniciativas e atitudes de paz, propondo e sistematizando tecnologias socioculturais de convivência, já presentes nas práticas dos Pontos de Cultura.

O Pontão chegou para estabelecer pontes entre redes com os fóruns locais e instituições governamentais afirmando valores, princípios, formas de resolução pacífica de conflitos. Chegou também para potencializar Pontos e construir políticas públicas de forma compartilhada.

Nesse primeiro ano começamos a desenvolver trabalhos em várias frentes: partimos para os Pontos de Cultura para ouvir os jovens em vinte locais nas várias regiões do país. Ouvimos para fortalecer práticas nos vários territórios, auscultamos culturas e poéticas locais, abrimos os braços para

a subjetividade de pessoas, para discursos da tradição e das modernas manifestações culturais; auscultamos os desafios de ser jovem, as dificuldades no conviver e no fazer cultural. Andamos juntos por trilhas, ouvimos histórias dos griôs, nos comunicamos com os surdos, partilhamos a ingenuidade das crianças em alguns Pontos, ouvimos os indígenas com atenção, compartilhamos da magia quilombola, voamos com os passos dos capoeiristas, nos emocionamos com a poesia urbana de jovens do hip hop. Participaram mais de 500 pessoas, e reunidas em rodas conversaram sobre paz, escolheram objetos como símbolos dos seus Pontos, fizeram mapas da convivência, identificaram atitudes de paz, sugeriram políticas públicas e novas formas de relação dos órgãos públicos com a cultura do lugar, a partir do empoderamento criativo. Ficamos maravilhados com a adesão aos encontros, a disposição para a conversa, a aceitação de nossos educadores, o reconhecimento de nosso trabalho. Uma inesquecível experiência de ouvir, muitas vezes o silêncio, outras a palavra agressiva, o rumor poético do lugar, a vida que se multiplica nas redes.

Participamos da Teia 2009, contribuímos para o debate e a mobilização do GT de Cultura de Paz; participamos de ações e articulações da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura e da Comissão Paulista dos Pontos de Cultura facilitando diálogos, produzindo ideias, estimulando debates com os Pontos de Cultura, como foi o caso das mudanças da Lei Rouanet, necessária para a convivência da vitalidade cultural do Brasil com as novas oportunidades de financiamento público.

Realizamos também ao longo destes 12 meses, várias sessões de diálogo na sede do Pontão e em outros Pontos de Cultura, envolvendo ponteiros e também as comunidades, em reflexões com ação e

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cidadania cultural, Cultura de Paz, educação e políticas públicas.

Através de uma pesquisa sobre convivência e Cultura de Paz identificamos uma vitalidade de paz impressionante nos Pontos de Cultura, expressa em atitudes, valores e práticas. Vislumbrando esse cenário, podemos dizer em relação aos Pontos que neles se faz Cultura de Paz.

O Pontão de Convivência e Cultura de Paz transformou a paisagem cultural do Pólis ao acolher jovens dos Pontos de Cultura, da Comissão Paulista, do próprio Ministério da Cultura, para debates, busca de informações, articulações e parcerias. A partir do Pontão enviamos publicações culturais do Pólis e de nossas redes internacionais para mais de 20 Pontos que visitamos e outros que solicitaram. Criamos um site para apresentar o resultado das auscultas nos Pontos e debates apresentados pelo Pontão, além de ampliar toda a nossa programação cultural. Através do site do Pólis multiplicamos a nossa visibilidade no país e em redes internacionais das quais o Instituto participa.

Foi uma apropriação lenta da gestão compartilhada com desafios enormes e limites gestionários do próprio edital, o rigor jurídico que muitas vezes engessa ações, frutos das leis do país ainda não preparadas para o tempo cultural, que é rápido, exigente, criativo.

Percebemos que o diálogo precisa ser ampliado, a desburocratização de procedimentos de gestão governamental, agilidade da máquina pública, enfim a operação da política pública compartilhada. A própria entidade estranhou a presença ágil e criativa do Pontão, sem entender num primeiro momento os seus alcances e dinâmicas.

A qualidade cultural, política, poética e existencial deste trabalho deve-se a participação e envolvimento dos seus técnicos, ativistas e colaboradores voluntários, como foi o caso do Grupo Consultivo do Pontão que deu muitas ideias, opiniões, sugeriu caminhos de trabalho. Avançamos na criação de uma artemetodologia das Auscultas Socioculturais - ouvir os rumores internos com arte, participação, construção de símbolos grupais, expressão dos sonhos presentes e visões de futuro, com valores e afirmação da cultura do ser e sugestão de novos caminhos, no qual continuaremos a desenvolver nos próximos anos. Participamos ativamente da articulação de Pontos para que os Pontos de Cultura se

constituam como política pública permanente, de Estado. Realizamos aproximações de redes que não se conheciam, bem como entre as redes de paz, que envolvem jovens em sua.

Certamente não estivemos sós nesse primeiro ano e devemos agradecer a muita gente: aos colegas do Instituto Pólis e a toda a equipe de cultura, à Célio Turino e à equipe da Secretaria de Cidadania Cultural, à Cecilia Garçoni e à representação regional do MinC em São Paulo, à CPPC e CNPC, ao Ipso, à Associação Palas Athena, à Rede Mundial de Artistas, à Guilherme Almeida, à Marisa Greeb, à Casa de Franciscos, a todos os colaboradores voluntários, particularmente ao Grupo Consultivo e a todos aqueles que, de uma forma ou de outra, ajudaram no trabalho desse primeiro ano.

A todos a nossa energia de paz e re-encantamento. Como Modigliani afirmava sobre o artista, acreditamos que o nosso real papel é salvar o sonho. Por isso acreditamos que a Cultura de Paz e convivência deverá ser a poética desses novos tempos de transição para um mundo mais justo e feliz.

| À seguir, cartaz de lançamento do Pontão com poema de João Cabral de Melo Neto, ilustrado por

Marcelo Bicalho |

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1. Pontão de Convivência e Cultura de Paz

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“Em um sistema de relações complexas, pequenas ações locais têm impactos globais em larga escala. Os problemas ambientais e sociais não podem ser resolvidos por programas globais, porque nós não vivemos globalmente, e ninguém investe recursos para alcançar objetivos que não estão diretamente ligados às necessidades locais...” (Agenda 21)

Este trabalho de construção de política de convivência foi e é um processo de construção de Cultura de Paz e não de metodologias e dinâmicas. Como dizia Gandhi, “A paz é o caminho”, é por aí que a Ausculta Sociocultural foi facilitadora para dar visibilidade ao caminho, indicando que ele não é uma linha reta e que há curvas tortuosas num processo de desenvolvimento de trabalho em grupo. O grupo é autor e ator da cena, como na vida. O objetivo mais amplo dessa metodologia foi disparar um movimento de populações que assumissem a responsabilidade de seus atos, socializando seus conhecimentos em rede.

A UNESCO recomenda em suas orientações a propósito da livre participação na vida cultural o aumento das oportunidades de diálogo com a população. Essa ação é considerada um indicador da realização dos direitos humanos. Atualmente a maior parte das políticas públicas são pouco capilares e parecem distantes do público. Pouco sabemos do que ocorre com as pessoas: sua vida cotidiana, seus rumores internos, suas subjetividades, desejos, incertezas e propostas de saída para a situação de crise planetária na qual nos encontramos. Para aprofundarmos nosso saber a respeito das pessoas é preciso exercitar a compreensão. Ensina Edgar Morin: “A compreensão não desculpa nem acusa: pede que se evite a condenação peremptória, irremediável, como se nós mesmos nunca tivéssemos conhecido a fraqueza nem cometido erros. Se soubermos

compreender antes de condenar, estaremos no caminho da humanização das relações humanas”*1

Não necessitamos compreender aquilo que nos é próximo, semelhante, conhecido. A compreensão é demandada diante do outro, do diferente de nós, do diverso. Portanto qualquer atitude compreensiva é em si mesma uma prática de respeito à diversidade. Uma vez que “aceitar a diversidade cultural não é um ato de tolerância para com o outro, distinto de mim ou da minha comunidade, mas o reconhecimento desse outro (pessoal e comunitário) como realidade plena, contraditória, como portador de saber, de conhecimentos e práticas por meio das quais ele é e tenta ser plenamente”.*2

Dessa forma uma prática cultural fundamentada em uma atitude de compreensão é em si mesma um exercício de aceitação da diversidade cultural. Nesse sentido o objeto do presente projeto é descobrir meios e formas possíveis para criação de uma cultura fomentadora de uma atitude de compreensão e consequentemente respeitadora da diversidade cultural. Essa cultura será por nós nomeada de: cultura de convivência.

Uma cultura de convivência dará vida aos direitos humanos nos modos de pensar e agir. Pois como encontramos em alguns “princípios para guiar o exercício das responsabilidades humanas” presentes na proposta para uma “Carta das Responsabilidades Humanas”:

a) Para responder aos desafios atuais e futuros, é tão importante unir-se na ação quanto valorizar a diversidade cultural.

b) A dignidade de cada pessoa implica que ela contribua para a liberdade e para a dignidade dos outros.

c) Uma paz durável não pode se estabelecer sem uma justiça que respeite a dignidade e os direitos humanos.

POLÍTICAS DE CONVIVÊNCIApor Daniella Greeb*

1. “Os sete saberes necessários à educa-ção do futuro”. São

Paulo:Cortez; Brasília, DF

2. COLI, Augustí Nicolau “Propostas

para uma diversidade cultural intercultural

na era da globalização” São Paulo, Instituto

Pólis, 2006. Série Ca-dernos de Proposições

para o Século XXI

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d) Para assegurar o desenvolvimento do ser humano, deve-se responder às suas aspirações imateriais tanto quanto às suas necessidades materiais.

e) Os saberes e as práticas só fazem sentido quando compartilhados e usados em prol da solidariedade, da justiça e da Cultura de Paz.

Um dos maiores desafios a serem enfrentados pela Cultura de Paz e convivência, a fim de dar vida e concretude aos direitos humanos, é enfrentar a questão da violência nos relacionamentos interpessoais. Para enfrentar esse desafio o presente projeto utilizará, de forma integrada, diversas abordagens da solução não-violenta de conflitos. Tais como: a Satyagraha de Mahatma Gandhi, o método “Transcend” do Norueguês Johan Galtung, a Comunicação Não-Violenta do Americano Marshal Rosemberg, o Princípio da Não-Violência do ativista e professor francês Jean Marie-Muller e a Cultura de Paz de David Addams.

A fim de integrar essas diferentes metodologias o projeto não pretende criar uma outra metodologia de conflitos. O que visamos é a elaboração de uma “meta-metodologia” que, na falta de melhor nome, decidimos chamar de metodologia integradora. É preciso enfatizar o fato de que tais formas existem de “per se”, todavia não há registro na história das ciências humanas e dos estudos culturais de uma utilização integrada de tais métodos.

A questão da Cultura de Paz e convivência é de fundamental importância não só como exercício a ser vivenciado para a solução não-violenta de conflitos interpessoais. Outro tópico da Cultura de Convivência é ela transformada em objetivo de políticas públicas, no qual acreditamos ser viável estabelecer uma metodologia capaz de transformar a vida comunitária de determinado grupo. Nesse sentido a cultura de convivência como principal objetivo de uma política pública concentra em si com alguns requisitos, como: respeito a diversidade, solução não-violenta

de conflitos, ausculta dos grupos envolvidos na vida comunitária, conhecimento objetivo do ambiente social, etc. O reconhecimento e a descoberta dos requisitos essenciais de uma cultura de convivência não é o resultado de uma mera elucubração teórica, mas fruto de várias experiências que foram implementadas, documentadas e receberam, por fim, uma formulação teórico-prática.

Com essas finalidades em mente: a criação de um ambiente fomentador da Cultura de Convivência, a utilização integrada de diversos métodos de solução não-violenta de conflitos e a formulação de políticas públicas de Cultura de Paz e convivência.

As atividades metodológicas principais se dividiram em três fases: a fase 1 - auscultas socioculturais - um diagnóstico junto ao público beneficiário (homens e mulheres jovens de 15 a 24 anos – apesar do caráter intergeracional de muitas Rodas de Convivência) aquilatando qual sua visão de mundo, como vê o bairro, a cidade, como a cidade o vê, o que é a família, a escola, o governo, a violência e a paz, o sonho, os valores, o futuro, a cidadania. Quem é ele/ela, como se veem, quais os espaços que frequenta, como é a relação com a família, a escola, a igreja, o trabalho e o partido. A mudança: O que está certo e o que está errado na realidade vivenciada por ele(a)s, o que mudaria e como, como vê a atuação dos grupos de mudança. As poéticas: como compararia a situação de ontem e de hoje, as metáforas e analogias, qual a imagem que faz dela, como a sintetizaria em uma frase, um desenho, uma palavra. Além da ausculta sociocultural foi realizada uma pesquisa quantitativa para analisarmos os olhares dos Pontos de Cultura em relação a Cultura de Paz.

As Auscultas Socioculturais foram concebidas a partir das ferramentas que hoje nos dão suporte, mas que ainda parecem desatualizadas frente às necessidades deste início de milênio. Todavia essas mesmas ferramentas são quase que inacessíveis para muitos grupos.

| 2008,Lançamento doPontão |

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Espaços de participação, criativos e apoiados por tecnologias de recepção e transmissão de informação, são diferenciais nesse contexto e possibilitam o encontro de lideranças, grupos e indivíduos com vistas à socialização dos chamados bens tangíveis e intangíveis que produzem e difundem a informação, o conhecimento e os saberes.

As Auscultas Socioculturais locais possibilitaram o fortalecimento de redes de cidadania, da periferia ao centro das cidades do Brasil em alguns estados: São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Distrito Federal, Bahia, Pernambuco, Pará, Rio Grande do Norte, Amazonas. A partir de metodologias participativas e ferramentas inovadoras investindo na responsabilidade cidadã que deu visibilidade às necessidades locais e respostas a partir da própria comunidade. É a possibilidade de tornar visíveis talentos e habilidades de cidadãos capazes de intervir de forma espontânea e criativa nas relações com e na cidade, tendo como foco a cultura de convivência.

A fase (2) foi um momento da implementação do projeto em consonância com as descobertas e resultados da ausculta sociocultural e da pesquisa quantitativa e a fase (3) constitui-se em um momento reflexivo no qual criou-se uma proposta de arte e metodologia para o estabelecimento de uma vida comunitária propícia ao surgimento de uma cultura de convivência. Ou seja, a fase 1 foi uma fase essencialmente de ausculta, entretanto a fase 2 de implementação e a fase 3 de formulação, onde estamos constantemente ouvindo, de todas as formas possíveis, o que os jovens homens e mulheres participantes do projeto tem a dizer. Durante todas as fases do projeto tivemos também reuniões em diversas instituições parceiras para discutirmos e irmos elaborando de forma conjunta os princípios teórico-práticos de uma Cultura de Convivência. Essa reunião de instituições parceiras ficou nomeada como Grupo de Diálogo.

A velocidade do cotidiano nas grandes metrópoles nos faz distanciar uns dos outros, perdendo a intensidade e a qualidade em nossas relações e, por fim, nossa cidadania. Compreender o local para agir localmente a partir da pergunta básica e inicial: “O que é Ser Jovem hoje?” Possibilita um movimento na população, que passa a assumir a responsabilidade de seus atos socializando seus conhecimentos em rede. Apesar da necessidade da população ser ouvida, existe dificuldade

de organizar espaços de participação cidadã local. Todavia somente aqueles que vivenciam seu cotidiano podem identificar soluções mais próximas à sua realidade.

A partir da percepção conjunta dos grupos dos Pontos de Cultura na situação em que se encontram, surgiram propostas e encaminhamentos compromissados coletivamente para o enfrentamento de dificuldades e a construção de políticas públicas para a convivência e a paz.

Uma política cultural de juventude capaz de contrapor-se de forma eficaz contra o fato da violência requer a criação de uma cultura de convivência. Essa cultura possibilitou a descoberta, por meio de um trabalho conjunto com a juventude brasileira, sua posição em face do tema da conflituosidade bem como exercitar as mais diversas abordagens de solução não-violenta de conflito seja por meio de métodos de prevenção, resolução e/ou transformação de conflitos. Ao exercitar empiricamente essas diferentes formas de solução não-violenta de conflitos contribuiremos para a criação de uma Cultura de Paz e convivência. Cultura essa que é a única capaz de não resolver conflitos de forma violenta, prevenindo a violência e possibilitando também a manifestação das mais diversas formas de existência e expressão artística. Acolher o diverso é o modo que a cultura faz uso para enfrentar a discriminação.

As atividades a serem realizadas na fase 1 representaram uma grande oportunidade de transformação que demanda a participação de cada um de nós na busca de oferecer aos jovens atuais e futuras gerações os valores que podem inspirá-los a esculpir um mundo baseado na justiça, solidariedade, liberdade, dignidade, harmonia e prosperidade para todos.

Isto significa trabalhar de forma ativa e não passiva, através de ações claras, em grupos, que possam ser escritas, filmadas, pesquisadas, de modo a constituir um material concreto, produtos efetivos resultantes de experimentos para a consolidação da Cultura de Paz.

Segundo a UNESCO estas ações devem contemplar oito tópicos, quais sejam:

• Respeito por todas as formas de vida: respeitar os direitos e dignidade de cada ser humano.

• Não violência: rechaçar a violência e obtenção da justiça mediante a persuasão e o entendimento.

• Compartilhar: fomentar atitudes e

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aptidões para conviver em harmonia, pondo fim à exclusão e opressão.

• Ouvir para compreender: dar a cada um a oportunidade de aprender e intercambiar conhecimentos através da livre circulação da informação.

• Preservação do planeta: assegurar que o progresso e o desenvolvimento sejam benéficos para todos e para o meio ambiente também.

• Tolerância e solidariedade: valorizar as diferenças entre as pessoas e o fato de que cada um tem algo a aportar para a comunidade.

• Igualdade entre homens e mulheres: brindar aos homens e mulheres uma condição equitativa na construção da sociedade.

• Democracia: adotar decisões fundadas na opinião própria e nas dos demais.

O Pontão de Convivência e Cultura de Paz compartilha os caminhos para uma metodologia a ser construída com diversos atores e setores sociais, via ampliação de canais de diálogos que possibilitarão a compreensão de onde os jovens estão inseridos, dos grupos socioculturais que constituem ou participam, sua atuação e relações subjetivas, seus espaços de vivência, convivência e mudança, mapeando conflitos existentes e espaços de resolução. Deste modo, o Pontão pretende possibilitar a transformação da Cultura de Paz e convivência em objeto de políticas públicas, através de:

Auscultas socioculturais: trabalhando as questões emergentes da população

jovem em relação às mudanças e aos novos desafios cotidianos, dinâmicas e condições de existência, função do cidadão jovem e dos diferentes papéis que cada um pode assumir no cuidado com a cidade e a cidadania, na busca da responsabilidade ética, nos seus relacionamentos grupais e comunitários, dentro e fora dos Pontos de Cultura. As Auscultas Socioculturais realizadas até agora permitiram um outro olhar sobre a realidade dos jovens. A ideia é continuar em processo, de novos modos, a partir dessas primeiras experiências.

Sessões de Diálogo: que são atividades abertas realizadas pelo Pontão de Convivência e Cultura de Paz, na qual temas relacionados à Cultura são sempre abordados com a participação de especialistas e pessoas com experiências significativas sobre o tema. O objetivo é dialogar, enriquecer a discussão, clarear temas e conceitos, e aproximar Pontos de Cultura. Os eixos principais dos nossos diálogos são: juventude, vivências e sensações, Cultura de Paz, formação para a convivência e intercâmbios entre Pontos, tecnologias de comunicação e políticas públicas de cultura. As sessões do Cineclube Pólis também integram os diálogos de maneira a promover a interculturalidade. Para saber mais acesse: http://cineclubepolis.wordpress.com

Grupo Consultivo do projeto: desempenha o papel de monitorar, avaliar o trabalho do Pontão, balizando conceitos, aprofundando a visão, novos saberes e a metodologia, identificando diálogos e conexões com políticas públicas. Grupo multidisciplinar e intergeracional composto por atores de diversas especialidades relacionadas à cultura

e educação.

Intercâmbio e articulação: a partir das Auscultas e dos Diálogos realizados foram identificadas dinâmicas nas várias regiões, cartografia que serve de base para a construção de encontros regionais e nacional, com o objetivo de contribuir para a formulação de políticas públicas de Cultura de Paz e Convivência.

Uma das questões mais importantes é compreender a complexidade do cenário onde os jovens vivem e o desafio muito concreto de: ser jovem. Isto possibilitará atuar de forma criativa,

| Jovens de Belem - PA |

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flexível e distante dos diversos jargões que povoam o mundo político e o mercado. As Auscultas socioculturais permitirão um outro olhar da realidade dos jovens.

A metodologia empregada foi participativa o que favorece a visibilidade das relações subjetivas nos diversos grupos e contribui para o exercício pleno da cidadania, o cuidado com a pólis.

As auscultas socioculturais aconteceram de modo coletivo e participativo, buscando a emancipação do grupo nas soluções de suas dificuldades e indicando as necessidades de complementação para outros setores de diversas competências na comunidade. Onde existe um grupo há conflitos, nosso trabalho é pesquisar esses conflitos. A vivência de situações propicia aos participantes o clareamento das funções e seus posicionamentos, suas articulações e rearticulações num processo de construção de redes para uma melhor qualidade e produtividade do coletivo em questão. Isto ocorre numa vivência dramática onde o grupo coletivamente constrói a situação em foco na qual os conflitos estão contidos e quais as suas relações com o contexto mais global. Os grupos foram formados a partir de inserções locais, com a participação de jovens de idades diferenciadas, homens e mulheres, empregados e desempregados, artistas, agentes socioculturais da comunidade, negros e brancos, sempre visando um equilíbrio entre os diversos. Durante as atividades foram usadas técnicas de vivência e animação visando, desde o início, a criação de uma cultura de convivência que possibilite uma relação rica entre os diferentes participantes. As Auscultas foram momentos fundamentais para a construção de diretrizes e políticas de convivência para a juventude. A partir das Auscultas locais, num segundo momento de formulação será realizado um encontro de caráter nacional com o objetivo de dar os passos iniciais para a formulação de políticas públicas de cultura de convivência pela juventude e não para a juventude.

Para a construção de um banco de dados das AUSCULTAS locais foi realizada uma pesquisa quali-quantitativa. Os resultados levantados foram sistematizados e deverão gerar indicadores sociais para as políticas públicas para os jovens. Considerando-se o modo como o grupo trabalha a própria produção e os vínculos e não vínculos desvelados na construção, procuram-se quais os indicadores que estão gerando os conflitos e onde se situa

o problema e encontram a solução.

O PONTÃO DE CONVIVÊNCIA E CULTURA DE PAZ é mais uma experiência enriquecedora e a prova de que as metodologias participativas, como a Ausculta Sociocultural, estão preocupadas com o GRUPO, as PESSOAS e não aplicar dinâmicas de maneira mecânica, como muitos agem, sem auscultar a DINÂMICA que já está presente no GRUPO.*

Todo o trabalho seguirá sendo documentado com pesquisas quali-quantitativas, publicações, vídeos, programas na internet e outros desdobramentos.

| Daniela Nogueira Greeb é assistente

social, sociopsicodra-matista, especialista

em gestão de projetos e diretora Instituto de

Políticas Relacionais www.relacionais.org.br|

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ATUAÇÃO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS E NOS MOVIMENTOS CULTURAIS

O Pontão de Convivência e Cultura de Paz está atuando e produzindo propostas para políticas públicas em diálogo e aproximação com outros atores sociais, participando de vários diálogos, debates e encontros relacionados à Cultura e ao Desenvolvimento Sociocultural.

Fomos escolhidos, durante o II Fórum Nacional dos Pontos de Cultura/TEIA, realizado de 9 a 16 de novembro de 2008 em Brasília, para integrar na Comissão Nacional dos Pontos de Cultura. Estamos atuando fortemente nas ações de ambas as comissões além da constante participação em todas as reuniões e na troca constante de e-mails e telefonemas. Participamos do planejamento estratégico da comissão Paulista dos Pontos de Cultura, onde além de fortalecer a própria comissão, reagrupando e gerando uma melhor convivência, articulamos e integramos os Pontos de Cultura do estado de São Paulo. Somos uns dos encarregados na comissão de manter a relação entre o Estado e o Movimento; atuamos fortemente na elaboração e divulgação da carta manifesto por uma Lei de Cultura Viva, dentre uma série de outras atividades.

Na TEIA 2008, participamos do Grupo de Trabalho de Cultura de Paz que, por meio dos debates, levantou propostas como: a criação de uma rede de Cultura de Paz nos Pontos de Cultura; a necessidade de formar educadores de Cultura de Paz nas escolas, também surgiu a ideia de organizar uma mobilização nacional em 21 de setembro de 2009, Dia Mundial da Cultura de Paz. Para marcar o início dos nossos trabalhos na CNPC durante a própria TEIA escrevemos uma carta ao ministro da Cultura, Juca Ferreira. Outras ações na TEIA, com a proposta de articular os Pontos de Cultura em torno da temática Cultura de Paz foram palestras, debates e o lançamento da campanha ‘Conte sua História de Paz’ com o Museu da Pessoa, organização dos conteúdos do GT de Cultura de Paz e criação do grupo GT de Paz, além das intervenções do tema Cultura de Paz na TEIA.

A articulação também se dá pela integração com outras redes: participamos da Rede de

Cultura de Paz do Estado de São Paulo que se encontra no “café da paz”, na UMAPAZ, e participamos de outras redes, como: UNE, redes de solidariedade de Santa Catarina, Articulação Latino Americana de Cultura e Política (ALALC); Rede de Sustentabilidade e Cultura de Paz, Rede Mundial de Artistas, Secretaria de Justiça do estado de SP, SESC Itaquera e Santo Amaro, rede São Paulo contra a Violência, Jovens da Cidade Tiradentes, Centro Cultural da Espanha, Movimento Somos Cultura, SATED.

O Pontão teve também uma intensa participação no Fórum Social Mundial 2009 em palestras, mesas e propostas de debate sobre políticas públicas e a experiência dos Pontos de Cultura, contato também com a parceria com a ALACP (Articulação Latino-Americana de Cultura e Política). O Pontão Temático de Convivência e Cultura de Paz também marcou presença na 6ª Bienal de Arte, Ciência e Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE), que teve como tema Raízes do Brasil: Formação e Sentido do Povo Brasileiro, que aconteceu entre os dias 20 e 25 de janeiro de 2009 em Salvador. Este encontro reuniu cerca de 15 mil jovens estudantes de todo o Brasil e da América Latina (em paralelo aconteceu a 1ª Trienal Latino-americana de Estudantes da Oclae). A Bienal reuniu também Pontos de Cultura de todo o Brasil, membros da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura e do Ministério da Cultura também estiveram presentes, o que trouxe a possibilidade da Bienal se constituir em mais um espaço de encontro, integração e articulação. Participamos do debate em torno do Financiamento da Cultura: as mudanças na Lei Rouanet.

De 14 a 16 de dezembro a cidade de Salvador, capital da Bahia, foi o cenário para a realização da II Cúpula Social do Mercosul, e da Cúpula dos Povos, que reuniu movimentos e entidades da sociedade civil e também representantes dos governos que integram o polo (Argentina, Paraguai, Uruguai e Brasil), além de outros países da região: Bolívia, Peru e Venezuela. O Pontão de Convivência e Cultura de Paz do Instituto Pólis esteve participando deste encontro. Durante os dias da Cúpula realizamos uma conversa informal com o ministro da cultura, Juca Ferreira, que recebeu um documento onde foram apresentadas algumas propostas da Comissão para fortalecer sua autonomia. Com este encontro, vários segmentos da sociedade latino-americana presentes acabaram conhecendo, por nosso intermédio, a política do programa Cultura Viva

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e as ações e propostas dos Pontos de Cultura.

Participamos também da reunião do REJ (Reunião Especializada de Juventude do MERCOSUL), das resoluções deste grupo, destacamos a proposta de elaboração de uma carta dos direitos dos jovens do MERCOSUL, em prol do fortalecimento dos movimentos jovens.

Ter a oportunidade de vivenciar na prática os valores imbuídos na palavra solidariedade: é isso o que puderam fazer representantes da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura. Eles estiveram em Santa Catarina para contribuir para que o Natal das famílias atingidas pela pior enchente enfrentada no estado, fosse mais alegre e solidária, e nós do Pontão de Convivência e Cultura de Paz fortalecemos esta construção na CNPC e organizando esta ida à Santa Catarina. A Comissão foi formada por Veridiana Negrini e Martha Lemos, do Pontão Temático de Convivência e Cultura de Paz do Instituto Pólis; José Roberto Severino, do Ponto de Cultura Memória e Identidade; Darlene Barboza e Natan Roberto de Ávila, representantes do Ponto de Cultura Vivenciando a Cultura, de Londrina (PR); e Marcelo Bragança, representante no conselho de mestres da ação griô, Ponto de Cultura Tá na Rua, do Rio de Janeiro (RJ). A Comissão chegou em Itajaí em 23 de dezembro para participar do Natal encantado. A ceia comunitária foi marcada pelo compartilhar de experiências de vida, fazeres culturais e artísticos. Ficamos uma semana em Santa Catarina - Itajaí e Blumenau. Durante estes dias, a comissão promoveu intervenções artísticas, atividades lúdicas com crianças, organização dos donativos, limpeza dos alojamentos, rodas de conversa, e a demolição e reconstrução da casa de Dona Ana.

Participamos também do debate sobre o Plano Nacional de Cultura, fortalecendo o papel do programa cultura viva, dos Pontos de Cultura no novo PNC. Recentemente participamos do Fórum Nacional de Tecnologia Social, onde trocamos muitas experiências de TS, coordenamos a discussão do grupo de Cidades Sustentáveis; e logo depois participamos da Conferência Internacional de Tecnologia Social.

Fomos convidados pela FUNARTE de São Paulo para integrar um grupo que está pensando as novas formas de ocupação do espaço desta entidade em São Paulo, assim temos participado de diversas reuniões em torno do tema.

Participação do evento Cultura de Paz e

Pedagogia da Convivência: realizamos com 32 redes nacionais e internacionais, participamos de duas mesas, coorganizamos o evento. Está no nosso site. Foi o primeiro evento internacional do Pontão. Aqui apontamos os grandes desafios para a criação de uma Cultura de Paz e convivência, a interculturalidade e a necessidade de passarmos dos valores ao fortalecimento das potências locais e das políticas públicas.

Participamos como palestrantes na Celebração do dia da Terra feito pela UMAPAZ e Rede Internacional de Paz e Sustentabilidade apontando alguns desafios da Cultura de Paz hoje: dialogar com a sustentabilidade, aproximar-se do território, particularmente de jovens mais vulneráveis, potencializar protagonismos e autonomias locais, implementar métodos de auscultas e de resolução de conflitos, enfrentar a discriminação de gênero e raça.

Também nos aproximamos de redes de paz nacionais como Comitê Paulista para a Década da Paz, Unipaz, Rede Agentes da Paz, Palas Athena, Umapaz, etc e decidimos participar de um encontro mensal com estas redes e organizações para pensarmos formas de enfrentamento dos desafios colocados para a Cultura de Paz hoje. A partir de junho haverá uma reunião mensal. A ideia é criar um fórum que potencialize trocas de experiências e políticas públicas.

O Coordenador do Pontão, Hamilton Faria recebeu o certificado de Agente da Paz, concedido da UNESCO, Unipaz, Palas Athena, no encontro formação Agentes da Paz, 50 horas teóricas e 59 práticas. O Pontão também participou com intervenções de Cultura de Paz nos cursos promovidos pelo Pontão CBC, no auditório cedido gratuitamente pelo Instituto Pólis.

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DIÁLOGOS E POLÊMICAS

Durante o processo de realização da pesquisa Cultura de Paz – Pontos de Vista, uma resposta dada por um Ponto de Cultura após o envio do questionário serviu como importante elemento de reflexão, revelando-se um rico material de análise e debate. Pensamos que as palavras escritas na resposta a seguir apontam para problematizações interessantes sobre o conceito de Cultura de Paz e de convivência. Por isso, resolvemos disponibilizar aqui a resposta na íntegra, com o intuito de, ao mesmo tempo, ilustrar a análise qualitativa disponível no segundo capítulo desta publicação e apontar para os desafios que se apresentam ao conceito de Cultura de Paz e de convivência.

Crescer e Conviver

Recebemos a mensagem solicitando nossa cooperação na pesquisa desse Instituto Pólis respondendo o extenso questionário, do qual constam informações sobre atividades e seus detalhamentos, número de beneficiários e linguagens com as quais trabalha (onde sequer está relacionada à linguagem na qual temos centralidade pedagógica e metodológica) que foram respondidas a tantas outras pesquisas realizadas pelo MinC e por organizações parceiras dele no desenvolvimento do programa Cultura Viva, que percebemos que não tiveram seus resultados apropriados pela atual pesquisa a exemplo de outros em que nos vemos diante da necessidade de dar resposta as mesmas perguntas antes feitas e respondidas.

Queremos aqui expressar esta primeira crítica, pois temos uma instituição com muitos projetos, sendo o Ponto de Cultura uma das ações, que opera com limitações de recursos financeiros e consequentemente com uma equipe pequena, ou seja, não podemos aplicar tempo (sinceramente) para responder tantas coisas outras vezes respondidas, sobretudo, agora nestes tempos de crise econômica que afeta frontalmente o nosso orçamento e nos obriga a identificar novos meios de sustentabilidade, entre os quais, a prospecção de novas parcerias que demandam a formatação de projetos e propostas, muitas vezes menos extensos que o questionário que nos submetem neste momento.

Temos um amplo fluxo de atividades que dialogam com o escopo da atual pesquisa informada sempre em nossos relatórios encaminhados ao MinC que já servem de uma base de análise e estudo por parte do Instituto Pólis. O questionário aponta para uma discussão de “Cultura de Paz”, que atualmente tem múltiplas conceituações, e algumas das quais que o CRESCER E VIVER não pactua dos pressupostos, entre eles as que apontam para o desenvolvimento de “tecnologias sociais” focadas na formação de “mediadores de conflitos” e/ou “agentes de paz” em contextos de risco. Por exemplo, a propensa solução para os conflitos urbanos hoje tão latentes nos grandes centros urbanos, como o caso do Rio de Janeiro, que desconsideram uma discussão mais aprofundada das dinâmicas geradoras das violências e da estética do medo, como mostra um estudo dos problemas estruturais da formação dos territórios onde estas violências se manifestam.

Por esta razão queremos conhecer o objetivo real desta pesquisa quando aponta para ações voltadas as construções de políticas públicas focadas na construção de uma Cultura de Paz. Não que sejamos contra o debate, pelo contrário, estamos a favor de discutir a paz, por exemplo, em nosso território, primeiramente tratando de discutir o nível de letalidade da Política Militar do Estado do Rio de Janeiro com efeitos e impactos na mortalidade de jovens pobres, pretos ou quase pretos que habitam as comunidades populares e favelas de nossa cidade e característica do território onde atuamos. Este é o debate hoje que escolhemos como central da discussão da paz, já que fora o fato de convivermos com a violência policial que bate na porta da comunidade onde atuamos todos os dias, em especial nos dias em que o “arrego” do tráfico não chega para a polícia com manifestações visíveis e perceptíveis a quem frequenta o nosso espaço de atividades, Lona de Circo, todos os dias e, vejam, estamos a menos de 200 metros da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e ao lado de dois importantes órgãos estaduais a Fundação da Infância e da Adolescência - FIA e uma delegacia especializada no “atendimento” a crianças vítimas de violência que a única intervenção que vimos fazer foi de maneira truculenta nos ameaçar com

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o confisco de uma caixa de som, porque a delegada estava incomodada com a música escolhida pelos jovens para realizar um ensaio de um número circense.

Falamos também de um lugar de uma instituição que em janeiro deste ano teve um dos seus profissionais alvejado por uma bala perdida, na verdade mal direcionada, pois partiu da arma de dois policiais que perseguiam um bandido e, agora ao estarmos acompanhando o caso descobrimos o inusitado o projétil que alvejou a cabeça deste nosso profissional interrompendo sua vida sumiu no percurso entre o instituto médico legal e o Instituto Carlos Éboli que deveria apurar via exame de balística de que arma partiu o tiro.

Então é isso amigos(as), já faz tempo que temos provocado organizações como a Unesco para este debate, mas não rola... o papo é ajudar a organizar passeata que serve de set de novela de tv e/ou pendurar bandeira branca nos apartamentos da Zona Sul do Rio de Janeiro e/ou o papo é a nova moda de projetos com jovens em comunidades populares do Rio de janeiro, formar mediadores de conflitos, promotores da paz, programas e projetos com investimentos do Pronasci e de diversos órgãos públicos estaduais. Deste papo estamos fora. Queremos discutir direitos humanos de verdade e segurança pública como dimensão importante da cidadania, como fizemos quando a Polícia do Rio de Janeiro invadiu o Jongo da Serrinha, um Ponto de Cultura, com a desculpa de uma operação policial e metralhou tudo, acabou com equipamentos e estabeleceu na organização a cultura do medo.

Sabem qual foi a manifestação da Unesco? Nenhuma!!! Sabem qual foi a manifestação do Governador Sérgio Cabral? Nenhuma!!! Sabem qual foi as organizações que ganham cada vez mais espaço midiático de uma “paz que não queremos seguir admitindo”, que é esta pautada pela grande mídia? Nenhuma!!!

Para deixarmos como exemplo de que não somos uma organização antidicussão da paz de verdade, a nossa criação do ano de 2008, em que um espetáculo de circo atualizou a obra do Profeta Gentileza chamado UNIVERSO GENTILEZA, não para trabalhar o mote “gentileza-gera-gentileza” como dinâmica geradora de Cultura de Paz, mas como ética paradigmática das relações econômicas, sociais e de poder. A cultura que queremos construir, a paz para o mundo como um lugar habitável às diferenças e gerador de oportunidades, como consequência de uma garantia dos direitos sociais, discuti-la de outra maneira em nossa concepção e por um “bode na sala”.

Pelas razões aqui dispostas, nos dispomos a receber maiores informações sobre os conceitos de Cultura de Paz com os quais o Pólis trabalha, para então encontrarmos nossa forma de cooperar nesta ação.

Este é um relato de um Ponto de Cultura que não aguenta mais o debate raso de algumas questões sociais, em particular, que vê no Rio de Janeiro se firmando a visão vazia, ingênua ou mesmo oportunista de discutir paz para aplacar o medo que hoje assombra as classes dominantes e largos setores da classe média carioca, que a despeito da violência seguem consumindo drogas e cega ante as injustiças, pegando um exemplo que dialoga com o nosso fazer, ao passarem de carro pelo semáforo e verem um menino pobre, preto ou quase preto fazendo malabares veem as bolas, mas não veem que por trás delas tem um menino, vítima da sua indiferença.

Desculpem, mas é o que por enquanto temos a dizer sobre a pesquisa.

Justiça que a paz vem!!!

JUNIOR PERIM (Coordenador Executivo)

Na sequência compartilhamos a resposta da Equipe do Pontão com a intenção de contribuir para a continuidade do debate.

Carta – resposta Pontão de Convivência e Cultura de Paz

Antes de mais nada, queremos agradecer com a linguagem do coração, o cuidado que vocês tiveram ao responder a nossa carta. Sem dúvida quase uma intromissão em seus importantes afazeres, invadimos o precioso tempo de vocês com mais perguntas. Sabemos que hoje as entidades de pesquisa, acadêmicas ou não, entram em nossas casas sem pedir licença, roubam-nos ideias e

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ideais e não retornam suas análises, utilizando-se de nosso saber sem trazer resultados palpáveis para nosso conhecimento e qualidade de vida.

Já havíamos nos comprometido a desenvolver a pesquisa no Plano de Trabalho do Pontão. E julgamos que o caminho foi acertado, apesar dos dissabores, pois do contrário, não receberíamos missiva dessa qualidade e tão útil para nossas reflexões sobre Cultura de Paz. Se tivéssemos acesso aos relatórios que enviaram ao MinC, talvez tivéssemos poupado vocês de mais essa demanda.

Agora pensamos que podemos nos debruçar um pouco mais sobre alguns pressupostos que não pactuam, entre eles as tecnologias sociais de mediação de conflito e agentes de paz. Concordamos que a denominação “tecnologias sociais” talvez não seja a mais apropriada para falar de formas de resolução de conflitos.

A palavra tecnologia não incorpora toda a riqueza das práticas sociais e vem carregada de uma dureza cheia de cálculos e instrumentos, engenhos que muitas vezes se opõem aos processos de desenvolvimento humano. Mas cremos também que possa ser apropriada de forma diferente e mesmo ressignificada. O educador Tião Rocha, do Vale do Jequitinhonha, nos fala de TIC e TAC, ou seja, combinar as tecnologias de informação e comunicação com as tecnologias de aprendizagem e convivência. Mas não tenha dúvida de que no interior dessas tecnologias estamos precipuamente preocupados em acrescentar humanidades, compreender as pessoas e coletivos na sua mais pura vitalidade humana.

É nesse sentido de aperfeiçoamento de nossa humanidade e estimulo às práticas cidadãs que apontamos para a centralidade hoje de uma Cultura de Paz, sem a qual a humanidade não encontrará soluções para seus conflitos bélicos ou do cotidiano. A violência não é só direta, mas cultural e estrutural. Queremos dizer que Cultura de Paz não é negação do conflito, a aceitação subserviente do outro, a resignação sem resistência, a dominação legitimada; do contrário, ela mostra atores, revela protagonismos e autonomias locais, narrativas ancestrais e modernas, escolhas sempre centradas numa ética da vida. Mas não podemos negar que, mesmo o conflito estando explicito, a forma de reagir à violência não é com violência, mas com outras formas não violentas ativas: os diálogos, as alianças, as pressões, as conversações, os convencimentos, as manifestações, a resistência, as proposições, etc.

Dessa forma faz todo o sentido desenvolver metodologias de mediação de conflitos e preparar atores para praticar Cultura de Paz. Acumulamos metodologias de confronto, mas o que sabemos da resolução pacífica de conflitos, o que sabemos de mediações entre oponentes para chegar à paz? É importante que se diga que se a guerra nasce no coração e na mente das pessoas, é também nelas que se precisa desarmar. E desarmar não significa entregar-se ao “inimigo”, mas também não ver inimigos em cada esquina e preparar pessoas para o ódio, como se ele fosse a motivação daqueles que vencem a luta e a história. Preparar sim agentes de paz, pois a violência, como diz Gandhi, é o caminho dos fracos e não dos fortes. Não queremos com isso desconhecer as verdadeiras causas da violência ou nos negar ao debate e nos omitir frente a padrões de exclusão que tão bem conhecemos. Temos muitos estudos sobre territórios que identificam vulnerabilidades e reconhecem onde a violência se manifesta.

Não temos dúvidas, portanto, de que a paz é o caminho que deve ser trilhado por movimentos sociais e culturais fortes e legítimos e estamos num momento em que os valores de paz devem urgentemente transformar-se em políticas públicas transversais. Aliás, todas as políticas desses pais deverão dialogar com a Cultura de Paz, pois conforme revela o Manifesto 2000 da UNESCO por uma Cultura de Paz e Não Violência, a Cultura de Paz se propõe a defender a vida, rejeitar a violência, fortalecer a diversidade e a democracia, reconhecer a igualdade de gênero, ouvir para compreender e reinventar a solidariedade. E isso não é mera retórica, existem comunidades, redes e pessoas que já praticam a Cultura de Paz em sua vida e nos percursos de mudança.

Vocês apontam com lucidez a importância de se debater sobre a letalidade da Polícia Militar no Rio de Janeiro. Ela foi cultural e psicologicamente preparada para a guerra. Mas não devemos nos restringir a debater a sua letalidade, mas também desenvolvermos programas de educação do policial para a cidadania. Acender uma vela, não só blasfemar contra a escuridão. Em muitos lugares do Brasil existem programas de Cultura de Paz que reeducam o policial para o exercício de suas funções. Lamento dizer que debater a letalidade da policia militar, sem combinar com

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outros programas educativos e também o preparo das pessoas para as atitudes de paz, não pode ser eleito com exclusividade como central na construção da paz; desta forma estará incompleto. Vocês têm razão quando denunciam a atuação da Polícia Militar e a omissão de órgãos estaduais ligados à infância que deveriam proteger as crianças da violência, mas também devemos ampliar nossas alianças com organizações que se solidarizam na luta contra a violência urbana.

Temos convivido com bairros em nossa cidade, com jovens vítimas do preconceito e da violência cotidiana e sabemos o quanto é difícil reconhecer o caminho da Cultura de Paz, quando todas as situações são obstáculos e provocam a violência. Nesse sentido é com a admiração que compartilhamos o sentimento de indignação que vocês sentem. Não é fácil falar em paz, pregar a paz, propor outros paradigmas nesses cenários de violência e vulnerabilidade. Podemos simplesmente cair no caminho da banalização da paz achando que se resolve apenas por sentimentos de acolhimento, mãos que se tornam aves, lenços brancos e abraços. Mas também não podemos negar essas manifestações e atitudes, desde que façam parte de um movimento maior e mais profundo e não apaguem o verdadeiro gênese dos conflitos sociais.

Concordamos também inteiramente com a necessidade do envolvimento da UNESCO neste debate e seu posicionamento cada vez mais efetivo contra a violência e pela construção da paz: direitos humanos e segurança cidadã também devem ser temas caros para uma Cultura de Paz. E também não concordamos que simplesmente discordemos da paz apresentada na mídia sem criar mídias pela paz. Hoje muitos jornalistas já se comprometem com essa causa em todo o país.

A paz de verdade não é apenas feita de denúncias ou posicionamentos públicos contra a violência, mas passa também pelas atitudes, valores, ações, pensamentos individuais, sociais, ecológicas e militares. O profeta gentileza sabia de tudo isso de sobra para nos ensinar - que gentileza gera gentileza - para construção de uma nova ética do conviver, base de um lugar habitável onde todos tenhamos o prazer de viver e, viver em paz e não só de gerar “relações econômicas, sociais e de poder”. A história é mestra em mostrar que nada ou quase nada muda na economia, sociedade e poder sem mudanças profundas na cultura e nos modos de vida individuais e coletivos. E então a Cultura de Paz pode inaugurar um novo paradigma de mudanças pela paz e não pela guerra, construída com metáforas pacíficas e não bélicas.

Hoje vemos muitos confrontos, estratégias e táticas, tiros, alvos, avanços e recuos e coisas similares para denominarmos os caminhos dos movimentos sociais. O momento atual visa mudar e construir protagonistas que olhem o mundo de outra forma e não através do círculo vicioso da violência. Vocês devem convir conosco que as forças em luta pela mudança de paradigmas societários muitas vezes em nada diferem em relação à questão da violência. Portanto, existe uma vasta memória e bibliografia para fundamentar a nossa opinião.

Esta é a nossa visão que pode orientar caminhos para um debate não raso da Cultura de Paz, sem ingenuidade, sem querer aplacar “o medo que assombra as classes dominantes”, mas dialogando com saberes e fazeres que possam humanizar a humanidade e não enfrentar a violência com violência, como tem sido muitas vezes estimulada pelos agentes sociais de mudança.

Estamos frente a uma crise de civilização que clama por caminhos verdadeiros e um dos mais importantes é aprender a conviver e olhar a diferença como fator de enriquecimento e não de risco para a sobrevivência. Para uma maior compreensão do nosso trabalho sugerimos uma visita nossa quando formos ao Rio e acesso ao site do Instituto Pólis e do Pontão.

Os romanos defendiam uma paz armada, a “pax romana”, ao contrário dos gregos que já haviam descoberto que a paz vem junto com a justiça e a equidade. Portanto, apenas pela justiça a paz não acontecerá.

É o que temos a dizer e agradecemos de coração a paciência de vocês em responder a nossa pesquisa com conteúdos verdadeiros, embora tenhamos algumas opiniões diferentes sobre a mesma realidade. Já dizia Machado de Assis que a realidade é uma só, mas a retina é diferente.

Atenciosamente,

Equipe do Pontão de Convivência e Cultura de Paz

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2. Pesquisa cultura de Paz:Pontos de Vista

“C a d a vez m a is tem o s a o po rt unid a d e d e fa la r s o bre a g ente. M uit a s pes s oa s d iz em que querem no s o uvir, o u pelo m e-no s fi ng em . O ut ro d ia eu m es m o a bo rd ei o pes s oa l d o Ibo pe, poxa e les exis tem m es m o ! E a i? Pa ra quê es s a pes quis a ? E u perg unto. S o m o s ins t rum ento s d e es t ud o ? A t é que po nto is s o m e benefi -c ia rá ? E s s e co nhec im ento g era d o va i p ra o nd e? T á a í, o que é C ult ura d e Pa z ? A c ho que vivem o s num a c ult ura d e p a z o u d e g uerra . C ult ura d e Pa z , es s e no m e nã o m e ent ra na ca beç a , s oa es quis ito. N ã o co rre o ris co d e ba na liz a r?” Tim, Ponto de Cultura CEDECA

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Os Pontos de Cultura, como ação prioritária do programa Cultura Viva do Ministério da Cultura, apresentam propostas de ações inovadoras e abrangentes, na medida em que contemplam diferentes formas de atuação e uma enorme diversidade de práticas culturais. Neste sentido, realizar uma pesquisa sobre os Pontos de Cultura de todo o Brasil, sobre quaisquer que forem os aspectos é uma tarefa difícil. Pois, como conseguir alcançar os 824 Pontos de Cultura espalhados por todo o território nacional?1 E mais, como conseguir contemplar as particularidades locais dos Pontos de Cultura, respeitando a diversidade sociocultural existente? Estas foram algumas das questões que permearam a principal preocupação deste trabalho que buscou entender um pouco mais as práticas e as representações dos Pontos de Cultura, principalmente com relação ao modo como estes lidam com a Cultura de Paz e de convivência, sob o prisma de que a Paz pressupõe igualdade de direitos e justiça social antes de qualquer outro quesito.

Se realizar uma avaliação desta natureza apresenta-se como uma tarefa complexa, a mesma torna-se ainda mais densa quando se quer analisar a percepção que os atores sociais que atuam nos Pontos de Cultura têm sobre uma noção importante, mas extremamente complexa e controversa existente na Cultura de Paz e de convivência. Se a noção de paz por si só já é altamente polissêmica, quando tratamos do conceito de Cultura de Paz e de convivência os desafios aumentam. Por estes motivos, tomamos o caminho de realizar uma pesquisa de caráter quantitativo e qualitativo que seguiram duas vertentes. A primeira relacionada às práticas, que ora foram aplicadas presencialmente, ora aplicadas à distancia (questionários respondidos por e-mail). A segunda vertente, relacionada aos discursos dos Pontos de Cultura, foram extraídos dos planos de trabalho do site Mapas

da Rede (IPSO), e resultaram em uma análise do discurso relacionado às práticas de Cultura de Paz e convivência e em uma avaliação sobre as tecnologias socioculturais utilizadas nas atividades promovidas pelos mesmos. E finalmente, uma avaliação comparativa entre as práticas e os discursos de Cultura de Paz e convivência nos Pontos de cultura.

Insumos teóricos e conceituais para elaboração da pesquisa

A pesquisa inicialmente se lançou de um arcabouço de conceitos e práticas de Cultura de Paz e convivência, conceituações do Programa Cultura Viva, Direitos Humanos e como estes discursos e práticas podem promover uma discussão de acesso aos direitos e inclusão social no espectro da promoção de uma cidadania que leve em conta a diversidade e o diálogo entre as comunidades nas regiões mais remotas do Brasil, de uma forma mais equilibrada e abrangente nas políticas de promoção das expressões culturais e afirmação da identidade cultural brasileira.

Neste sentido, se faz necessário contextualizar a Cultura de Paz e convivência em planos mais concretos, nos quais a educação para a paz e convivência são pontos nevrálgicos na concepção da construção da cidadania e das trocas culturais e de modos de vida.

A educação pela paz e convivência surgem em um contexto do “Reencantamento pelo Mundo”, que busca em sua essência a democratização do acesso aos direitos básicos do ser humano e suas garantias sociais, para que o cidadão possa exercer seus direitos de expressão cultural, educação, saúde, alimentação, moradia, segurança e trabalho. Estes direitos básicos neste processo de “Reencantamento” são acompanhados da liberdade, do ato criativo, do poder de

INTRODUÇÃO

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sonhar, da autonomia, do empoderamento, do protagonismo, da pluralidade e diversidade, do respeito às diferenças, da solidariedade e do cooperativismo.

Elementos que partem de um campo subjetivo, mas que aliados aos direitos humanos e sociais, transformam uma cultura hegemônica em uma cultura da diversidade, onde seus protagonistas exercem o direito de se expressar na essência de suas ancestralidades, na re-significação de suas expressões culturais e nos diálogos entre modos de vida e suas distintas territorialidades.

Os direitos são os pontos cruciais, mas a cultura para a paz e convivência são os instrumentos para se conquistar os direitos e a autonomia do cidadão. O diálogo (que não nega o conflito), as mediações de conflito e a busca de uma convivência harmônica são as grandes estratégias para a efetivação da participação popular nas instâncias da sociedade civil, do poder público e nas reivindicações de políticas públicas.

A escolha de relacionar outras bases teóricas às bases conceituais da Cultura de Paz e convivência deu-se pelo fato deste tema ser alvo muitas vezes de desprestígio, pois muitas experiências de educação para a paz e convivência só abordam questões universalistas, que tratam de linhas e conceitos muito gerais, a exemplo, o Manifesto pela Paz de 2000 (ONU). Portanto, a discussão para uma Cultura de Paz e convivência acaba sendo incutida somente de fundamentações subjetivas, que ficam fragilizadas quando não são relacionadas às práticas. Estas experiências de cunho somente teórico acarretam em preconceito por parte da sociedade, criando muitas vezes polêmicas sobre o tema. Tais polêmicas estão relacionadas à aplicabilidade da paz, uma vez em que vivemos em um contexto de guerra civil, que a cultura armamentista alimenta o conflito em favor do capital e em detrimento dos direitos sociais.

Neste sentido, trabalhar a importância da Cultura de Paz e convivência atreladas a outras bases teóricas, se faz fundamental, pois é primordial que este tema seja tratado na esfera concreta de suas ações.

Finalmente, estas bases conceituais relacionadas só vêm ao encontro para demonstrar que é possível discutir o tema de um ponto de vista prático e que a Cultura de Paz e convivência é muito mais praticada do que se imagina. Os Pontos de Cultura são

exemplo disso, tanto nos discursos como nas suas práticas exercitadas, muitas vezes isso não é identificado ou nomeado pelos seus interlocutores, mas estão lá, no dia a dia de cada Ponto de Cultura.

A intenção de concatenar estas discussões e conceber um instrumental (questionário), que possibilite abrir novas reflexões e possibilitar a apropriação do tema de forma mais concreta, foi de trazer à tona uma nova forma de olhar e falar sobre a Cultura de Paz e convivência.

METODOLOGIA

Para elaboração da presente pesquisa nos norteamos por dois caminhos. O caminho do discurso e o caminho da prática, trabalhando com insumos produzidos das bases conceituais e teóricas que orientaram todo o processo de elaboração de instrumentais e posteriormente a análise destes dados. Tanto os instrumentais de avaliação da prática, quanto do discurso, se dividem em análises quantitativas e qualitativas.

Critérios para elaboração do questionário

A prática dos Pontos de Cultura foi analisada através de instrumental2 desenvolvido pela equipe que resultou em um questionário enviado aos 824 Pontos de Cultura existentes até a presente data, conforme dados do Ministério da Cultura. Outro recurso utilizado para análise das práticas foram as aplicações presenciais de questões relacionadas à Cultura de Paz e convivência em 20 Pontos de Cultura de São Paulo – SP e na cidade de Diadema – SP. Outro instrumental utilizado para as análises foram as auscultas realizadas em 20 Pontos de Cultura do Brasil (escutas qualificadas nas localidades), metodologia em desenvolvimento pelo grupo do Pontão Convivência e Cultura e Paz do Instituto Pólis.

O instrumental mais importante na avaliação das práticas foi o questionário, pois ele foi o norteador de toda a linha de análise posterior. O objetivo da pesquisa foi de trabalhar a temática de uma forma mais concreta e próxima da realidade dos Pontos de Cultura. Portanto, dividimos o instrumental em três blocos, assim poderíamos trabalhar a Cultura de Paz e de convivência sem necessariamente falarmos sobre o tema e sim identificar no dia a dia dos Pontos as práticas referentes à temática.

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No primeiro bloco do instrumental fizemos a caracterização dos Pontos de Cultura: identificação do ponto, identificação do entrevistado, áreas prioritárias de atuação, público atendido, atividades desenvolvidas (contemplando faixa etária, número de vagas e frequência das atividades), as relações entre o ponto e seus usuários e a localidade, atividades de formação dos agentes culturais, atividades relacionadas à economia da cultura e formas de gestão administrativa dos Pontos. Este primeiro bloco teve como objetivo identificar através das questões relacionadas acima, como estes trabalham suas atividades, quais atividades são promovidas e que tenham referência com as práticas pesquisadas, se o Ponto tem alguma interlocução com os usuários e as comunidades e se existem preocupações relacionadas à geração de renda através da cultura. Enfim, uma breve caracterização dos Pontos traria uma série de insumos para entendermos como estes se articulam no território e como estabelecem relações de convivência entre seus interlocutores e entre si.

No segundo bloco relacionamos as práticas cotidianas dos Pontos, os insumos teóricos e conceituais convencionados para a pesquisa e a diversidade tipológica e de públicos dos Pontos de Cultura. O objetivo deste bloco foi identificar práticas de Cultura de Paz e convivência, e como os Pontos lidam com as questões referentes à exclusão social e violência, afirmação de identidade cultural, participação da comunidade na programação e funcionamento do ponto, como o ponto lida com os conflitos e discriminação no seu dia a dia e a relação do ponto com o meio ambiente e o protagonismo juvenil. Estas questões foram direcionadas ao dia a dia de cada Ponto de Cultura, com o objetivo de detectar estas temáticas na rotina e como elas são tratadas pelos Pontos e as comunidades. Este segundo bloco identificou se os Pontos de Cultura tratam ou não tais questões e de que forma, levando em consideração que tudo o que foi perguntado estava diretamente ligado à Cultura de Paz e convivência, sem falar claramente sobre a temática especificamente no questionário, pois a ideia era identificar outras práticas de paz e convivência, fora do contexto dos universalismos.

O terceiro bloco foi responsável pelo que chamamos de “formação” e aproximação do tema com os Pontos de Cultura, sem perder de vista outras contribuições que os Pontos

poderiam trazer, além dos que explanamos no bloco. Pela primeira vez falamos sobre a Cultura de Paz e convivência no questionário, pois até então, só havíamos relacionado a temática às práticas cotidianas dos Pontos, mas não tínhamos relacionado os temas com as perguntas. Neste bloco foram apresentados textos referentes à Cultura de Paz e convivência acompanhados de questões relacionadas aos mesmos. As questões que foram formuladas acompanhando os textos tiveram a preocupação de relacionar o texto com práticas e personagens locais dos Pontos de Cultura.

Finalmente, depois da devolução do questionário pelos Pontos foi possível avaliarmos os Pontos que promovem práticas de paz e convivência sem nomear ou atribuir suas atividades a tal temática. Outra leitura importante, é que os Pontos praticam a temática, mas não têm isso convencionado como Cultura de Paz e convivência, ou têm outras práticas e que poderiam ser acrescentadas a estas convenções. E a grande devolutiva aos pesquisados seria mostrar que o tema, por vezes por eles combatido, está muito mais presente e praticado do que se imagina.

Outro instrumental utilizado para a avaliação das práticas foram as auscultas promovidas nas localidades dos Pontos presencialmente com a coordenação da equipe do Pontão de Convivência e Cultura de Paz do Instituto Pólis. A partir das auscultas foram realizadas avaliações de ordem qualitativa, nas esferas das representações simbólicas da paz e convivência para os Pontos de Cultura.

Outra estratégia utilizada pela pesquisa foi a realização de entrevistas presenciais sobre as representações e percepções a respeito do conceito de Cultura de Paz e convivência com 20 Pontos de Cultura da Grande São Paulo. Com destaque para os Pontos de Cultura da zona sul de São Paulo e do município de Diadema, onde se concentraram tais pesquisas presenciais. Em Diadema foram pesquisados todos os Pontos de Cultura do município.

Critérios para recorte da amostragem dos Pontos de Cultura

O discurso foi analisado através dos planos de trabalho dos Pontos de Cultura, que foram enviados ao Ministério da Cultura na ocasião da aprovação da seleção pública e extraídos dos Mapas da Rede (IPSO), que gerou um recorte de amostragem de 240 Pontos de Cultura, dos 824 distribuídos em todo território nacional.

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Estes 240 Pontos de Cultura foram selecionados com base em dois critérios principais: diversidade de território e diversidade de atuação sociocultural. Ou seja, buscaram-se Pontos de Cultura de todos os estados brasileiros e que contemplassem práticas e atividades culturais diversas, do teatro ao hip hop, passando por ações voltadas à cultura digital e à preservação do patrimônio e da memória local. Com base em amostragem selecionada e a partir destes dois critérios, tentou-se nesta pesquisa contemplar o maior número possível de atividades culturais, de modo a garantir um quadro diversificado para a análise, e garantir uma maior abrangência territorial.

Após a seleção de 240 Pontos de Cultura que abrangessem a maior quantidade de tipologias e atividades culturais e, ao mesmo tempo, a maior distribuição pelo território nacional, o trabalho consistiu em converter os dados cadastrais dos Pontos de Cultura em uma planilha3 que apontasse para os dispositivos e/ou tecnologias socioculturais que os Pontos utilizam em seu cotidiano e como estes Pontos relatam contribuir para a reflexão e prática da Cultura de Paz e de convivência, ainda que de forma indireta e aparentemente inconsciente.

Os Pontos de Cultura e as tecnologias socioculturais

A amostra de 240 Pontos de Cultura coletada do site Mapas da Rede (IPSO) apresentou um dado importante: a diversidade de tecnologias socioculturais utilizadas pelos Pontos de Cultura. A maioria dos grupos não se restringe a propor apenas uma atividade sociocultural, mas um conjunto de atividades socioculturais que visa ampliar o acesso à produção e à fruição cultural, bem como garantir a inclusão social de grupos em situação de alta vulnerabilidade social. Outra observação relevante a ser feita sobre estes 240 Pontos de Cultura levantados é a de que todos apresentam em suas propostas descrições de atividades e em seus objetivos elementos que convergem para as reflexões realizadas pelo Programa Cultura Viva. Além disso, todos os Pontos de Cultura, ainda que indiretamente, apontam para atividades que corroboram uma prática que leve a uma Cultura de Paz e de convivência ou que busque propiciar elementos que criem condições para a efetivação de uma Cultura de Paz e de convivência.

Apesar de toda a diversidade de propostas

e de objetivos de ação que apontam, direta ou indiretamente, em direção a uma ideia de Cultura de Paz e de convivência, o termo Cultura de Paz aparece efetivamente na descrição de apenas sete Pontos de Cultura. Entretanto, todos os grupos culturais levantados apresentam, em seus objetivos e proposta de trabalho, elementos que convergem para a promoção da paz e da convivência. Elaborou-se, assim, uma lista com 31 propostas diferentes de contribuição para a Cultura de Paz, a partir da descrição de suas atividades e de seus objetivos. Estas 31 propostas apareceram distribuídas entre os 240 Pontos de Cultura levantados.

Como contribui para a Cultura de Paz e convivência? (Atuação e Objetivos)

1. Inclusão Social;

2. Integração;

3. Intercâmbio;

4. Promoção de diálogo intercultural;

5. Protagonismo Juvenil;

6. Diversidade Cultural;

7. Preservação do Meio Ambiente;

8. Valorização de patrimônio cultural e ambiental local;

9. Incentivo às novas gerações pela transmissão de conhecimentos, práticas e formas de expressão tradicionais;

10. Combate à violência;

11. Defesa dos direitos humanos;

12. Garantia da autossustentabilidade;

13. Fortalecimento da identidade cultural local;

14. Valorização das expressões locais;

15. Elevação da autoestima;

16. Acesso aos meios de fruição, produção e formação cultural;

17. Assegurar valores e princípios fundamentais de cunho socioeducacional como a cooperação, o respeito, a participação, a consciência individual e de grupo;

18. Estímulo a cidadania;

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19. Combate à discriminação e a preconceito;

20. Promoção da produção coletiva e do trabalho cooperativo;

21. Geração de formas alternativas de sustentabilidade para grupos em situação de vulnerabilidade social;

22. Empoderamento;

23. Empreendedorismo social;

24. Promover a justiça social e a equidade;

25. Capacitação para a formação de agentes de transformação social;

26. Desenvolver a percepção crítica;

27. Registro e Valorização da memória e história local;

28. Propiciar a convivência;

29. Promoção do diálogo;

30. Democratização do acesso à cultura, à informação e às novas tecnologias;

31. Interlocução entre diferentes gerações.

Os Pontos de Cultura e a Cultura de Paz e convivência

Apresentamos agora alguns dos resultados obtidos a partir da tabulação e análise dos dados dos questionários enviados aos Pontos de Cultura. Um primeiro destaque deve ser dado ao número de grupos que afirmam lidar com a violência e a exclusão social. Dos questionários respondidos, 60% dos Pontos de Cultura disseram possuir atividades para lidar com a exclusão social e a violência.

Tabela 1 – Sobre o trabalho com exclusão e violência

Possui atividades para lidar com a exclusão e a violência?

Sim 60%

Não 40%

Ao serem perguntados sobre o que efetivamente conheciam da temática da Cultura de Paz, 75% dos Pontos de Cultura afirmaram

já ter ouvido falar sobre o tema. Outros 22,5% disseram não ter ouvido falar sobre a Cultura de Paz e 2,5% não responderam a esta questão.

Tabela 2 – Sobre o conhecimento do tema da Cultura de Paz

Já ouviu falar sobre o tema da Cultura de Paz?

Sim 75%

Não 22,5%

Não respondeu 2,5%Já com relação à realização de atividades de

promoção da paz, 67,5% dos Pontos de Cultura afirmaram já ter realizado alguma ação deste tipo. Os outros 32,5% disseram não realizar atividades de promoção da paz.

Tabela 3 – Sobre a realização de atividades de promoção da paz

Já realizou atividades de promoção da paz?

Sim 67,5%

Não 32,5%Apesar de 40% dos Pontos de Cultura não

realizarem atividades para lidar com a violência e a exclusão social e 32% não realizarem ou participarem de atividades de promoção da paz, 97,5% dos Pontos de Cultura afirmaram ter interesse em receber materiais relativos à temática da Cultura de Paz. Ninguém afirmou não querer receber materiais sobre a Cultura de Paz e apenas 2,5% não respondeu a esta questão. Este dado revela que mesmo os Pontos de Cultura que apresentam relativo desconhecimento ou certa desconfiança com relação à discussão sobre a Cultura de Paz, têm interesse em aprofundar-se sobre o assunto. Dessa maneira, muitos dos Pontos de Cultura apresentam-se como disponíveis para participar ou promover atividades que confluam para uma Cultura de Paz e de convivência, desde que esta Cultura de Paz e de convivência convirja para as dinâmicas e práticas de promoção da cultura já realizadas pelo Ponto.

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Tabela 4 – Sobre o interesse em receber materiais relativos à Cultura de Paz

Gostaria de receber materiais relacionado ao tema da Cultura de Paz?

Sim 97,5%

Não 0

Não respondeu 2,5%

Os Pontos de Cultura também foram questionados sobre se trabalhavam com o conflito e a violência no seu dia a dia, e em caso afirmativo, como trabalhavam com esta questão. Destes 10% disseram não realizar nenhum tipo de atividade para lidar com o conflito e a violência em seu dia a dia e outros 10% disseram não ter conflitos em seu cotidiano no ponto de cultura. Um número muito pequeno, 2,5%, não respondeu a esta questão. A maioria dos Pontos, 77,5%, no entanto, afirmou ter alguma atividade para lidar com o conflito e a violência em seu dia a dia. Destes, 27,5% disseram lidar com o conflito e a violência em seu cotidiano por meio de diálogos, outros 7,5% por meio da promoção da paz. Já 30% dos Pontos de Cultura afirmaram trabalhar tanto com diálogos quanto com promoção da paz. A promoção da paz e o estimulo à convivência entre os diferentes foi a resposta de 2,5% dos Pontos de Cultura. Por fim, 10% dos Pontos de Cultura afirmaram trabalhar com estas questões de outras formas.

Tabela 5 – Sobre o trabalho com o conflito e a violência

Como trabalha com o conflito e a violência no dia a dia?

Diálogos 27,5%

Diálogos e Promoção da Paz 30,0%Não há conflitos 10,0%Não trabalha 10,0%

Promoção da Paz 7,5%

Estimulo à convivência entre os diferentes

2,5%

Outras formas 10,0%

Não respondeu 2,5%

Dos grupos que responderam que trabalham com o conflito e a violência em seu dia a dia de outras formas que não as apresentadas como opção, tivemos diferentes respostas. Um grupo respondeu que trabalha com o conflito e a violência de modo indireto, enquanto outro relatou que o trabalho com o conflito e a violência realizava-se pelo próprio trabalho de promoção de acesso à cultura. Já os outros dois grupos associaram o trabalho com o conflito e a violência com a particularidade de suas práticas culturais:

Há poucos conflitos violentos e utilizamos o Teatro Foro como estratégia para discutir situações de opressão.

Por se tratar de uma aldeia indígena, há outros mecanismos para trabalhar os conflitos como o Opy e o conselho dos anciãos.

Na questão sobre o que os Pontos de Cultura já ouviram falar sobre o tema da Cultura de Paz, 37,5% dos Pontos responderam sobre onde ouviram falar desta temática. Destes, destacaram-se os que afirmaram ter estabelecido contato com a noção de Cultura de Paz por meio do Pontão de Convivência e Cultura de Paz do Instituto Pólis, 27%, e os que tiveram maior contato com esta discussão através dos encontros da Teia, também 27%, conforme na tabela que segue abaixo. Este dado revela a importância que os encontros, fóruns e atividades de discussão e promoção da Cultura de Paz têm para a divulgação e realização efetiva de uma Cultura de Paz e de convivência. Do mesmo modo, instituições voltadas especificamente para a reflexão e promoção da Cultura de Paz mostram-se de grande importância para a consolidação da reflexão e da prática da Cultura de Paz e de convivência no cotidiano dos Pontos de Cultura e na relação destes com a comunidade em que se inserem.

Tabela 6 – Contato com a discussão de Cultura de Paz

Como teve contato com a discussão sobre o tema da Cultura de Paz e de Convivência

Pontão de Convivência e Cultura do Pólis

27%

Encontros da Teia 27%

I n f o r m a ç õ e s circuladas por web e cartazes

6,5%

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27Informações em livros, jornais, revistas e meios de comunicação em geral

20%

Palestras 6,5%

Ações promovidas por ONGs e orgãos públicos

6,5%

Marcha mundial pela não-violência

6,5%

Do total de Pontos de Cultura entrevistados, apenas 22,5% relataram nunca ter realizado nenhuma atividade direta que visasse o combate à violência e à exclusão social, nem nunca ter realizado ou participado de ações para a promoção da paz. Este dado revela, que, ainda que de maneira indireta, muitos Pontos de Cultura, 77,5%, está ou já esteve envolvido com a temática da Cultura de Paz, seja na prática ou no discurso da entidade.

Tabela 7 – Sobre as atividades de combate à violência ou de promoção da paz

Já realizou atividade para o combate à violência e à exclusão social, organizou ou participou de atividades voltadas para a promoção da paz

Sim 77,5%

Não 22,5%

Em relação aos Pontos de Cultura que afirmaram ter ouvido falar do tema da Cultura de Paz ou já ter tido contato com a discussão - 75% do total de Pontos entrevistados, conforme tabela 1. Podemos observar que 83% afirmam ter atividades para lidar com a violência em seu cotidiano e/ou já realizaram ou participaram de atividades de promoção da paz, como apresenta na tabela que se segue. Estes dados revelam que o contato com a discussão sobre Cultura de Paz e o maior conhecimento sobre este conceito mobiliza os agentes socioculturais a se envolverem mais em atividades de combate à violência e/ou de promoção da paz.

Tabela 8 - Afirma realizar atividades para o combate à violência em seu cotidiano e/ou para a promoção da paz

Possui atividades para lidar com a violência e/ou já realizou ações de promoção da paz

Sim 83%

Não 17%

Quando questionados sobre o que ouviram falar sobre o tema de Cultura de Paz, 27,5% deles responderam apenas onde ou como ouviram falar sobre o tema ou tomaram contato com a discussão. Outros 40% não responderam a esta questão ou disseram não saber. Contudo, 22,5% dos Pontos de Cultura apresentaram o que já tinham ouvido falar sobre o tema e/ou apresentaram problematizações sobre a noção de paz que conhecem.

Tabela 9 – Sobre o que ouviram falar a respeito do tema da Cultura de Paz

O que já ouviram falar sobre Cultura de Paz?

Contaram apenas onde ouviram falar sobre Cultura de Paz

27,5%

Relataram o que já ouviram falar sobre Cultura de Paz

22,5%

Não responderam ou disseram não saber

40%

As definições de paz e convivência apresentadas pelos Pontos de Cultura

O questionário apresentou também um conjunto de questões qualitativas que buscavam tentar entender as percepções que os Pontos de Cultura concebem sobre as noções de paz e convivência. Outra intenção destas questões abertas foi tentar apreender as particularidades da relação de cada ponto de cultura com as questões de paz e convivência. Tentou-se também buscar novas concepções e contribuições para a reflexão sobre as potencialidades da Cultura de Paz e de convivência.

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O que já conheciam sobre o conceito de Cultura de Paz

Dos Pontos que relataram efetivamente o que já conheciam ou já tinham ouvido falar sobre a temática da Cultura de Paz, as respostas apresentadas foram estas:

Que é uma ação específica de mobilização e reflexão de um ponto de cultura.

§ O ponto tem por sua filosofia a convivência e compartilhamento cultural por meio das artes visuais.

§ A existência de um grupo dedicado a não-violência.

§ Como possibilidade de temáticas em programas de rádio (o ponto de cultura trabalha com rádio comunitária em assentamento do MST).

§ Utilizando algo muito parecido com esta brilhante afirmativa de Gandhi, mostramos o meio em que vivem, onde estão ensaiando nos diferentes eventos e como vivem as crianças de outros povos.

§ Acreditamos que o debate seja sobre diversidade cultural versus a falta de bens e serviços públicos. É necessário problematizar: Cultura de Paz para quem?

§ Respeito ao ser humano e ao meio ambiente, respeito às diferenças culturais e sociais. Lutas pacíficas em prol de um objetivo maior, compartilhar ideias, práticas e ações de não-violência.

§ Direitos iguais, liberdade, diálogos e respeito.

§ Ações que visam buscar a harmonia dentro das diferenças.

Atividades que promoveram ou promovem pela pazEm relação aos Pontos de Cultura que afirmaram organizar e/ou incentivar atividades para lidar com a violência e a exclusão social, as atividades apresentadas foram as que o próprio grupo organiza ou elementos que derivam das atividades particulares de cada ponto de cultura. Ou seja, há um reconhecimento de que suas atividades trazem elementos que contribuam para a promoção de uma Cultura de Paz e de convivência. As atividades descritas foram as seguintes:

§ O próprio movimento Hip Hop vive em debate sobre isso.

§ Formação comunitária através de palestras.

§ Oficinas de Cidadania, debates e palestras.

§ Teatro Foro - Espaço de brincar - Grupos musicais - Grupos de Teatro - Filmes e discussões.

§ Atividades desenvolvidas junto à escola da educação de base pública no local e entorno por considerar que a violência escolar é reflexo da exclusão social e participação junto aos órgãos de ação inclusiva.

§ As atividades de formação desenvolvidas com a equipe de professores que inclui vivências, leituras e discussões, embora estejamos ainda no início deste processo.

§ Seminários, formação, atendimento, acompanhamento individual e em grupo.

§ Em se tratando de minorias étnicas, a exclusão social se dá principalmente pela discriminação cultural que se expressa em preconceitos e estereótipos reproduzidos diariamente pela sociedade das mais diversas formas: na mídia, nas escolas, no cotidiano das pessoas, etc.

§ São realizados alguns momentos de reflexões com os participantes das atividades do ponto de cultura sobre realidade de exclusão e também sobre a violência que já se faz presente em nosso meio. Outras atividades são as caminhadas e palestras feitas em parceria com escolas, igrejas e psf local.

§ Lida com processos comunicativos que fazem uma leitura crítica da mídia tratando desses temas.

§ As próprias atividades do grupo.

§ Diálogos, palestras e programação cultural que tratem da exclusão social, violência, drogas, qualidade de vida, direitos humanos e Cultura de Paz.

§ Cursos e seminários.

§ Produtos culturais utilizados na formação dos educadores do Pontão abordam temas como a exclusão, trabalho, violência, falta de acesso à informação, entre outros.

§ Sala de leitura e pesquisa da cidadania e da paz

§ Rodas de conversa e mediações de conflitos, planejamentos pedagógicos com atividades que promovam a reflexão e valores baseados nos direitos humanos.

§ Formação de valores e práticas profissionais, elevação da auto-estima,

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profissionalização dos jovens promovendo assim uma reestruturação na vida de cada um deles, e consequentemente de suas famílias.

§ Palestras, debates, reuniões e trocas entre o Ponto e a comunidade.

§ Espaço da brinquedoteca é aberto a todos que queiram participar e dispõem de brinquedos e jogos multiculturais.

§ Debates e atividades que promovam a integração.

§ Na Ação Griô, ações sempre pautadas na memória e ancestralidade e no combate à violência e à exclusão social.

§ Capacitação dos atores surdos, buscando assegurar sua participação na sociedade e na comunidade artística. Ampliando a comunicação entre os "ouvintes" e os surdos, trabalhando a inserção destes.

§ Geração de emprego e renda.

Comodefinemapazeaconvivênciaemseucotidiano

Foi pedido também aos Pontos de Cultura que definissem a paz e a convivência em seu cotidiano. Neste quesito, a noção de respeito ao outro e de respeito às diferenças e à diversidade apareceram como elementos importantes que os grupos remeteram ao conceito de paz e convivência em seu cotidiano. As definições apresentadas foram estas:

§ Respeito ao próximo e ensino às crianças. O amor e a união.

§ 90% das mortes no meu bairro acabaram por causa do crime organizado implantou uma lei, mas as drogas aumentaram. Perde-se por um lado e se ganha por outro.

§ Respeito às diferenças para viver de forma democrática e solidária.

§ O respeito às diferenças (etnia, religião e cultura), onde todos podem existir e ser respeitado.

§ Como o respeito aos diversos trabalhos voltados à formação estética.

§ A paz é fundamental para a convivência em comunidade.

§ Nós não definimos, nós a praticamos, nossas reflexões não foram publicizadas, até porque essa questão não há um consenso que julgamos contribuir com esta questão.

§ Defesa dos direitos humanos com base

na valorização da cultura e da necessidade de criar e expressar, firmando a identidade e garantindo a auto-estima, tendo como ponta de lança para a conscientização da igualdade de todos diante dos outros, do mundo e da vida, as atividades lúdicas estimuladas e realizadas hoje, pelo ponto de cultura.

§ A paz é um elemento simbólico que está ligado ao sentimento de generosidade e tranquilidade das pessoas. Fazer uso dessas condições no cotidiano proporciona uma convivência fraterna e, portanto, um mundo melhor para a humanidade.

§ Buscamos incluir a noção de paz e a reflexão sobre o respeito ao outro em todas as ações, principalmente porque sabemos que esta construção requer um processo contínuo e longo.

§ É necessário para o desenvolvimento das atividades e fortalecimento do ponto e das pessoas que frequentam.

§ As pessoas envolvidas no trabalho praticam a "cultura da paz". Esse é um princípio que norteia a conduta de todos, o que não significa que não haja conflitos e diferenças. Consideramos que o importante em nosso cotidiano é o respeito às diferenças.

§ Para nós que fazemos o ponto de cultura Vento Forte, a paz é uma busca permanente de uma vida solidária, comprometida com o outro. E a convivência é estar junto de forma harmoniosa, evitando qualquer tipo de conflito que atrapalhe a vivência da paz.

§ Não há definições, há troca de ideias a partir da realidade do assentamento.

§ A paz é o bem estar dele mesmo e com o ambiente, é o equilíbrio entre o indivíduo e a vida no planeta.

§ Conviver no cotidiano é respeitar direitos e deveres dos seus e do próximo, incentivar qualidades, responsabilidades e perseguir sonhos para tentar realizá-los.

§ Diálogo, acesso à arte e aos bens culturais.

§ Paz significa aceitar que a essência do capitalismo é a violência, pois se assenta na exploração da força de trabalho dos trabalhadores e na apropriação da natureza como matéria prima.

§ Acredito que todos nossos trabalhos têm sido fundamentados pela prática da paz.

§ Convivendo e respeitando as

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diferenças, as relações de confiança são cultivadas cotidianamente, permitindo trocas e apostando uns nos outros.

§ Vivência em harmonia com as pessoas e com o meio em que vivemos.

§ Respeito às diferenças culturais, sociais, ambientais, tendo a solidariedade e tolerância para promoção da paz.

§ Reflexo da construção de um novo acordo de comunidade. Interdependência humana e as possibilidades de vida em conjunto.

§ Nós não definimos a paz, ela é ampla e justa.

§ Trocas e saberes culturais, diálogos, respeito, aceitação das pessoas, de suas opiniões e escolhas.

§ Reforçando a coletividade, o trabalho colaborativo e o respeito às diferenças.

§ Respeito mútuo e a comunicação como ferramenta de mudança social.

§ Harmonia entre os povos, respeito e direitos iguais.

§ Atendimento a comunidade infantil propicia interação e convivência com a diversidade. A formação de brincantes colabora com a divulgação da cultura lúdica nas comunidades.

§ Algo difícil de se colocar em prática pela sociedade em geral.

§ Não possuímos nenhuma reflexão sobre o assunto.

§ Há conflitos internos que são resolvidos por meio de diálogos. Quando há necessidade a coordenadoria nacional é convidada a mediar o conflito.

§ Boa, os alunos convivem cada dia melhor.

§ Atividades desenvolvidas transcorrem em clima de amizade e solidariedade. Através de reflexão, estimulamos esses valores em nossos encontros.

§ A paz é o caminho para a humanidade se afirmar e precisamos promovê-la no cotidiano através da convivência.

§ Paz e Convivência estão vinculadas à comunicação, ao direito e à prática de usar a linguagem dos sinais como a primeira língua dos surdos. Criar inserção dos surdos através da arte.

§ Realizando atividades culturais.

O que representa a ideia de paz para os Pontos de Cultura

Outra questão importante dizia respeito ao que a ideia de paz representava para os grupos. Para estas questões, as respostas foram as seguintes:

§ A união (mãos dadas) de todo povo.

§ Poder trabalhar com o seu objeto, respeitando as diferenças do público, oferecendo conhecimento e recebendo todos os interessados em aprender junto às oficinas oferecidas.

§ Opy (Casa de Reza).

§ Para a minha vida é ter Jesus.

§ Jesus Cristo e Diálogo.

§ Oxalá, o orixá que representa a paz na humanidade e a sabedoria.

§ A certeza de que o conflito é permanente.

§ Generosidade.

§ Necessidade vital de sobrevivência e convivência.

§ A possibilidade de funcionamento.

§ As palestras que os pesquisadores indígenas fazem nas escolas de Macapá apresentando aspectos significativos de sua cultura com textos, imagens e muita paciência para responder perguntas que traduzem a visão estereotipada que os não índios têm deles.

§ Uma corrente com todos os seus elos unidos, onde cada elo tem importância igual para o todo da corrente.

§ Não-violência e respeito entre as pessoas da comunidade.

§ O sorriso inocente de uma criança.

§ Primeiro a melhoria de suas vidas e a maior integração com o meio em que vivem. A experiência que vivem os árabes tem contribuído muito, como por exemplo: a contribuição dos árabes para a ciência, educação e cultura permitiu a criação de uma biblioteca com mais de 3200 livros.

§ Conviver com respeito, responsabilidade, bom humor, companheirismo a fim de viver com o antigo/tradicional e a contemporaneidade.

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§ Possibilidade de diálogo, reflexão sobre as ações. O companheirismo e cooperativismo nas ações e o trabalho comunitário em coletivo, proporcionando grandes resultados no desenvolvimento da comunidade.

§ Tudo o que está escrito na frase abaixo (Pontão de Convivência e Cultura de Paz) é a essência da paz, mas no sistema capitalista isto é impossível. Devemos mostrar que para conquistar isto temos que construir uma sociedade que não se baseia no lucro, no valor de troca, mas numa sociedade baseada no valor de uso. Esta é a perspectiva que adotamos no ponto. Por isso ele é um centro de formação para a paz, pois mostramos quais são as raízes das guerras, da miséria, da violência, da corrupção.

§ Ter paz em nosso ponto de cultura representa ter as ações e atividades do mesmo preservadas da violência e filosoficamente praticando o ensino de uma vida sem violência alguma.

§ Conviver com as pessoas, ter a possibilidade do encontro e reencontros, permitir trocas de saberes e experiência. Ser sensível às possíveis ressonâncias e sintonias. Refletir diante das dificuldades, acolher e enfrentar.

§ Valorização da vida, respeito mútuo, respeito à natureza.

§ Aperto de mãos antes de nossas reuniões e encontros.

§ A harmonia das cores e alternância destas no céu.

§ "Sentar na calma, beber na fonte" - expressão Taoista. Saber esperar com paciência e respeito pelo tempo próprio.

§ O diálogo, o entendimento do outro como parceiro na construção de uma convivência de respeito pelos valores humanos e valorização da vida.

§ Coletividade e respeito.

§ Acreditar que o futuro depende de nossa vida atual, que hoje fazemos parte de um momento na escala evolutiva humana e nossa contribuição é importante.

§ Harmonia entre os povos - direitos, acessibilidade e conhecimento para todos.

§ Crianças e jovens tenham espaço para brincadeiras e interação com o próximo.

§ Amor ao próximo.

§ Convivência, harmoniosa entre toda a diversidade cultural existente e o respeito dos artistas cuqueinos e comunidade.

§ Acesso ao conhecimento e com isso ampliar valores humanistas. Acesso à arte para ampliar valores espirituais e filosóficos. Respeito à diversidade, estímulo ao diálogo e reflexão.

§ O direito de expressão da população surda, interagindo significativamente na sociedade.

§ Considerando que nosso trabalho ocorre em uma área de guerra do tráfico de drogas, o trabalho pode ser uma simbologia de paz e repercussão aos jovens.

§ A não-violência.

§ Conhecimento da cultura dos outros.

Quais outros significados os Pontos deCulturaacrescentariamàreflexãoeàpráticado conceito de Cultura de Paz

Por último, foi pedido aos grupos que dissessem quais outros significados ou práticas poderiam ser acrescidos ao conceito de Cultura de Paz e convivência. A intenção desta questão foi justamente apreender novas possibilidades para a reflexão e prática do conceito Cultura de Paz e de convivência. Novamente, a ideia de respeito às diferenças e de valorização da diversidade apareceu como um componente forte da reflexão dos Pontos de Cultura sobre o conceito de Cultura de Paz e de convivência.

§ Amor, confiança, integridade, respeito, honestidade e coerência.

§ Respeito à diversidade cultural, respeito e aceitação das diferenças.

§ Educação por meio de ações efetivas e direcionadas à necessidade da comunidade atendida pelo ponto de cultura, ou qualquer instituição interessada e facilitar as relações humanas e sociais. Práticas: compreender a história, a cultura da região, trabalhar respeitando as diferenças, não impor soluções conforme as próprias expectativas.

§ A partir da nossa realidade, divulgar nossa cultura e nossa existência. Tem uma frase de um ancião xavante que norteia nosso trabalho: "ninguém respeita aquilo que não conhece”. Precisamos mostrar quem somos, a força de nossa cultura, só assim vão respeitar nosso direito porque vão entender e admirar o que temos.§ O diálogo permanente com a

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pluralidade.§ A desigualdade é a grande vilã da

história, pois promove o preconceito, a prepotência e a intolerância. E a Cultura de Paz necessita passar enfaticamente pela cultura da criança; enquanto houver infância descalça pelas ruas é difícil falar de paz e respeito pelo ser humano.§ Respeito pela diferença e tolerância

religiosa.§ Igualdade na diferença.§ Respeito à diversidade cultural que

deveria ser ensinado às crianças desde a pré-escola.§ A partilha dos saberes entre os que

participam direta e indiretamente das ações do ponto de cultura.§ Direito à expressão e à comunicação.§ No momento em que o grupo percebeu

que poderia contribuir com a sociedade no sentido de trabalhar os aspectos de inclusão social frente às grandes diferenças constatadas, houve um comprometimento deste em participar da promoção da cultura da paz através das atividades oferecidas. Com as oficinas há condições de diminuir as diferenças, promover o diálogo, elevando a autoestima para uma melhor convivência.§ A milenar música árabe sempre

contribui para uma Cultura de Paz para toda a humanidade, citamos dois exemplos clássicos e conhecidos universalmente: 1- a forte presença da música árabe para a integração européia iniciada na Andaluzia; 2- o projeto de Said e Barenbaun. Portanto, através da música encontramos elementos significativos para atuar nas demais áreas culturais. O ensaio público que a orquestra brasileira de percussão árabe realizou no dia 21 de abril deste ano. Entre outras atividades musicais promovidas.§ A valorização da educação é

fundamental, melhores condições de saúde e oportunidades - tudo igual para todos.§ O Diálogo para compreender todas as

questões de convivência de paz.§ Lutar contra o sistema capitalista e

mostrar que outro mundo é possível, mas ele pressupõe o fim do capitalismo.§ Ter paz em nosso ponto de cultura

representa ter as ações e atividades do mesmo preservadas da violência e filosoficamente praticando o ensino de uma vida sem violência alguma.§ Confiar no outro, apostar na vida

apesar das dificuldades, apostar nos processos de médio e longo prazo, sem se deixar intimidar pelo imediatismo e individualismo que nos assola cotidianamente.§ Respeito às diferenças e à dignidade

de cada ser.§ Maior responsabilidade na preservação

do meio ambiente.§ Valorização da juventude brasileira,

apostando na sua capacidade de promover mudanças.§ A paz e a violência estão no espírito

dos homens e lá devemos buscar a compreensão e conhecimento. Levantar a bandeira da paz também ajuda.§ Cooperação, acolhimento, escuta,

responsabilidade e compromisso com a educação escolar e saberes comunitários.§ Educar para mudar.§ Igualdade social e o respeito entre os

povos, suas tradições e posições políticas.§ Valorização da cultura da infância.§ Governo unido para o bem da

sociedade.§ Convivência em harmonia, respeito à

memória, à diversidade e acolhimento.§ Respeito às diferenças, reverência aos

antepassados, tolerância à religiosidade de matriz africana.§ Respeito à diversidade e às diferenças.§ Esse discurso poderia ser descolado

do discurso das grandes mídias a respeito da realidade das comunidades de baixa renda.

Odiscursoeapráticasobreapaz:desafiospara uma Cultura de Paz e de convivência

Para compreender um pouco mais a relação que os Pontos de Cultura estabelecem com a temática da Cultura de Paz e de convivência, levou-se em consideração as particularidades e as idiossincrasias da diversidade de dinâmicas e espaços culturais analisados. Neste sentido, a fim de captar esta diversidade sem incorrer em visões deveras generalizantes, a pesquisa adotou como critério valer-se de diferentes instrumentos e fontes de pesquisa: o questionário com questões abertas e fechadas, entrevistas abertas presenciais feita com Pontos de Cultura da Região Metropolitana de São Paulo e de leitura analítica das auscultas realizadas pelo Pontão de Convivência e Cultura de Paz do Instituto Pólis. Todos estes instrumentos e fontes de pesquisa serviram de embasamento para uma análise de caráter

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qualitativo sobre como Pontos de Cultura relacionam-se com a reflexão e a prática da Cultura de Paz e de convivência.

Nesta análise qualitativa, destacou-se justamente a dimensão do discurso e a prática da Cultura de Paz. A intenção aqui, portanto, é discorrer sobre como o discurso, a reflexão e a prática de Cultura de Paz e de convivência relacionam-se de múltiplas formas no cotidiano e na fala dos Pontos de Cultura. Do mesmo modo, tentar-se-á perceber como os elementos de universalidade e de particularidade relacionam-se na construção da percepção e do discurso sobre a Cultura de Paz.

Uma primeira observação já pode ser destacada com relação aos Pontos de Cultura com a temática da Cultura de Paz e de convivência. Os Pontos de Cultura que têm maior contato com a discussão, por meio das atividades do Pontão de Convivência e Cultura de Paz do Instituto Pólis ou de encontros específicos como a TEIA, tendem a desenvolver um discurso mais consistente sobre esta questão.

Por outro lado, de uma maneira geral, todos os Pontos de Cultura que já tem um discurso sobre a Cultura de Paz, articulado ou não, tendem a associar a prática de Cultura de Paz e de convivência às próprias atividades específicas por eles desenvolvidas. Neste sentido, muitos dos Pontos de Cultura afirmam já realizar trabalhos que tentam promover a paz e a convivência em seu cotidiano. Este dado é bastante relevante, pois demonstra que os Pontos de Cultura reconhecem em suas atividades elementos que remetem a uma Cultura de Paz e de convivência.

Entretanto, ao associar a Cultura de Paz e de convivência às suas atividades específicas, o ponto de cultura pode também se fechar à adoção de novas atitudes que convirjam pra uma Cultura de Paz e de convivência. Portanto, pode ser feito um trabalho mais focado com estes grupos, no sentido de sensibilizá-los para a reflexão e para diferentes possibilidades e potencialidades de atitudes e ações que busquem promover uma Cultura de Paz e de convivência dentro dos Pontos de Cultura e na comunidade onde estes se inserem.

Há, no entanto, uma parte dos Pontos de Cultura que demonstram certa desconfiança com relação ao tema da Cultura de Paz e de convivência. Esta desconfiança revelou-se ser em grande parte decorrência de três fatores:

1. Desconhecimento da discussão sobre

a temática que vem sendo feita no Programa Cultura Viva e no Pontão de Convivência e Cultura de Paz do Instituto Pólis.

2. Associação da discussão sobre Cultura de Paz e de convivência a uma fala sobre a paz presente na mídia e em movimentos contra a violência de caráter mais midiático (marchas e passeatas pela paz, por exemplo). Alguns dos Pontos de Cultura tendem a associar este tipo de ação como uma busca de paz que não visa superar as desigualdades sociais e a exclusão de determinada classe social, mas apenas proteger as classes mais abastadas das consequências da profunda desigualdade social brasileira e da situação de exclusão social em que se encontra grande parte da população.

3. Percepção, por parte de alguns Pontos de Cultura de que a discussão sobre a Cultura de Paz e de convivência eliminaria o conflito. E, ao mesmo tempo, a concepção de alguns Pontos de Cultura de que a paz só pode ser alcançada por uma ruptura de caráter revolucionário.

Contudo, mesmo os Pontos de Cultura que demonstraram certa desconfiança com relação à discussão sobre Cultura de Paz, apresentam em suas práticas e atividades culturais específicas de ações e/ou reflexões que coadunam com uma proposta de Cultura de Paz e de convivência. De maneira geral, estas apontam principalmente para o respeito às diferenças e à valorização da diversidade. A diversidade e a diferença, aliás, aparecem como elementos importantes para todos os Pontos de Cultura. O que coloca uma questão para a reflexão sobre Cultura de Paz e de convivência, que é pensar como esta Cultura de Paz e de convivência pode articular um conceito universal com as diversidades de práticas particulares que as entidades e grupos culturais realizam. O desafio maior parece ser em como a discussão e a prática sobre Cultura de Paz e de convivência podem orientar as ações e reflexões dos Pontos e, ao mesmo tempo, como as atividades específicas dos Pontos de Cultura podem ajudar a iluminar novas potencialidades para a discussão e prática da Cultura de Paz e de convivência.

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3. Manguezal por Célio Turino*

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Uma árvore. Olhe rapidamente para ela, faça um desenho. Volte alguns dias depois. Observe melhor, desenhe novamente: os galhos, os ramos, as folhas, os tons de cores, as folhas secas, os pequenos animais, as teias de aranha, galhos pendurados em outros galhos. Olhe à volta, por diversos ângulos. Desenhe os detalhes. Mesmo sabendo que nunca captará a totalidade, tente, exercite.

Em Kioto, no Japão, há um jardim Zen, todo com areia, pedregulhos e pedras brancas. Em volta dele, uma arquibancada. São 14 grandes pedras. Por mais que as pessoas tentem observar, por mais que mudem de lugar e ponto de vista, nunca enxergam as 14 pedras juntas. Quando avistam uma nova pedra, outra se esconde por trás dela. Pode-se passar o dia inteiro mudando de lugar na arquibancada e as 14 pedras nunca se mostrarão ao mesmo tempo. Mesmo assim, as pessoas se exercitam.

Tendo desenhado a mesma árvore sob duas impressões diferentes, uma rápida e genérica, outra demorada e detalhista, tente observá-la novamente. Agora não é necessário desenhar, converse com ela. Coloque-se no lugar da árvore; fale na primeira e na segunda pessoa, fale sobre ela. Crie um diálogo. Uma frase. Um verso. Um poema.

“Armada de espinhos recolhe forças para acolher.”

Foi assim que conversei com uma palmácea cheia de espinhos. É com este método que observo a rede dos Pontos de Cultura. Uma primeira impressão a partir de respostas fornecidas nos editais de seleção. Depois, um olhar mais detalhado, uma visita ao Ponto, conversas. Colocar-me no lugar do Ponto, seus sonhos e dificuldades, suas metas, o público que precisa atender. Depois, a síntese. Um pequeno sinal a condensar a essência. E a descoberta de que, na essência, todos são iguais.

Para quem se preocupa com método, este é o Método Científico de Goethe, a Observação Goethianísca. Para quem se preocupa com poesia, este é o exercício do Haikai, um gracejo em busca da harmonia e da realização densa. Um Ponto de Cultura. Pontos são conjuntos de uma rede. Elementos que podem ser vistos isolados, como ponto de um conjunto que se subdivide em outros pontos. Esses mesmos elementos isolados, quando somados, multiplicados ou potencializados podem formar novos conjuntos. Conjuntos que formam um sistema. E quando o sistema pulsa, forma-se um Sistema Vivo. Este é o conceito de rede que exercitamos com os Pontos de Cultura. Primeiro um olhar geral, depois a busca das singularidades (a singularidade que se pode encontrar na multidão). As mil formas se aproximando de uma só: a potência humana, a capacidade de transformar, de agir. Esta é a essência da rede Cultura Viva.

Pontos são muitos, infinitos. Redes são muitas, infinitas. E se cruzam.

Pensados como conjuntos entrelaçados, um influencia ou outro. Pois o ‘Todo está na parte e a parte está no todo’. O papel da gestão do programa Cultura Viva é aproximar estes Pontos, des-escondê-los, conectá-los em rede, auxiliá-los na descoberta de sua essência, quebrar hierarquias, construir novas legitimidades, urdir a rede.

Ao exemplo.

“Arco e flecha são instrumentos de defesa, de caça. Hoje em dia, um computador com acesso

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à internet também pode ser utilizado pelos índios como instrumento de defesa e de caça. Nós, índios, já estamos usando o computador como ferramenta de buscar soluções... escrever projetos ou cartas que nos auxiliam para encontrar melhorias na saúde, educação, sustentabilidade e tudo que se refere à nossa sobrevivência e desenvolvimento, servindo como um arco e flecha...

“Com a internet nós podemos estudar os ‘hábitos’ das agências, das secretarias, dos órgãos, das empresas... Onde se localizam, quais são suas missões, quais as suas formas de proceder (editais, chamadas, patrocínios, apoios, parcerias...).

Um arco e flecha pendurado na parede é decorativo, não caça nem defende. Vamos usar nossos computadores, estiquemos nossos arcos e lancemos nossas flechas digitais!” (Nhenety Kariri-Xocó)

Índios On-Line, uma rede de povos indígenas do nordeste do Brasil, tornado Ponto de Cultura, depois Pontão. O chat como uma grande maloca a reunir guerreiros indígenas. O computador como uma fogueira, em torno do qual diferentes tribos se juntam por uma ação coletiva.

Yakuy Tupinambá, uma índia que, aos 47 anos, entra na Universidade Federal da Bahia para cursar Direito. “A internet promoveu a abertura de horizontes – contrariando o pensamento de uma grande maioria interessada em nos manter amordaçados - trouxe-nos novos significados, sem que isso implique no abandono de nossas tradições...”, registra no chat.

“Nós somos um corpo só. A comunidade vive como se fosse um índio gigante”.

Com sabedoria, o velho cacique, Otávio Nidé, instrui o seu povo a fazer as atualizações do mundo contemporâneo, mas conservando o espírito ancestral, o jeito indígena de ser, a forma de se organizar, a interação com a terra, que é “...o maior de todos os projetos, pois com ela temos saúde, ervas medicinais, o alimento, a paz.” (cacique Cícero, dos Kariri-Xocó).

Índios On Line, uma rede sob diversos ângulos.

Ao aproximar pessoas e pontos, antes isolados, promove-se o desenvolvimento. Vigotski, psicanalista e educador russo, desenvolveu sua teoria ao trabalhar com educação infantil, logo após a revolução socialista. Ele percebeu que o desenvolvimento mental das crianças dava saltos no momento em que se encurtavam distâncias entre crianças com diferentes níveis de desenvolvimento. Na medida que uma criança ligeiramente mais velha ou madura aproxima-se de uma criança menor (uma criança de 7 anos brincando com uma de 5, por exemplo), acontece um processo de desenvolvimento acelerado. A este processo, ele denominou ‘Zona de Desenvolvimento Proximal’. “Ela é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas”, afirma Vigotski na formulação de seu conceito. Um desenvolvimento que é potencializado pelo entrelaçamento de conjuntos.

Percebi que este é um conceito chave para a ideia do desenvolvimento em rede. Pontos aparentemente díspares, com diferentes temáticas, linguagem, público ou território, ao entrelaçarem-se, criam Zonas de Desenvolvimento por Aproximação (prefiro o termo Desenvolvimento por Aproximação a Desenvolvimento Proximal, por estar mais adequado ao ‘jeito’ -ou jeitinho- brasileiro de ser, em que os entrelaçamentos são mais suaves, quase imperceptíveis). O ‘Desenvolvimento por Aproximação’ faz com que um Ponto de Cultura com ênfase em gênero influencie um outro, de Cultura Popular, mesmo sem que tenham um contato direto entre si. A cultura tradicional também foi inventada um dia, incorpora preconceitos, ideologias, comportamentos machistas. Ao promover a ideia da emancipação da mulher, o Ponto de Cultura em Gênero pode estar alterando comportamentos e pontos de vista em um Ponto de Cultura Popular como o Congo ou Moçambique. E o Ponto de Cultura com ênfase na tradição popular pode também influenciar um outro, de Cultura Digital, ou Hip Hop. Ao tomar contato com a Cultura Tradicional, os meninos da Cultura Digital podem perceber que, para além da tecnologia, a essência do software livre está na ‘partilha’, na generosidade intelectual, no trabalho colaborativo, características presentes nas festas e na cultura popular. O que mantém a caminhada de uma folia de Reis? A partilha. Uma família dá um prato de comida (colocado na janela para ser ‘sorrateiramente roubado’, como parte da brincadeira), outra, uma lantejoula, o serviço de confecção das vestes; em troca, os caminhantes oferecem a música, a oração pelo Menino-Jesus e os Reis Magos. E o menino do Hip Hop, morador da periferia de São Paulo, ou

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Teresina, também é influenciado ao perceber que o seu RAP urbano, grito dos excluídos das grandes cidades do mundo, não é tão diferente do repente, da embolada, do coco. Todos, Ritmo e Poesia. E surge um novo estilo, o Rap-Repente, que promove o encontro estético entre netos e avós.

O Cultura Viva funciona como um ecossistema. O Ponto de Cultura como uma micro-rede, atuando no território e articulando diferentes agentes. O Cultura Viva seria a macro-rede. E entre eles, as meso-redes, as Ações. Inicialmente foram pensadas quatro Ações: Cultura Digital, Agente Cultura Viva, Escola Viva e Griô. Com o tempo, a própria vida se encarregou de formar novas Ações: Pontinho de Cultura, Cultura e Saúde, Audiovisual, Mídia Livre, Mocambos, Cultura de Paz. Redes animadas à partir do ministério, ou surgidas no ventre da própria Rede, com os recortes mais diversos: da caatinga, dos povos da floresta, dos povos do mar, do hip hop, do teatro comunitário, do oprimido. Tudo cabe. Tudo cabe porque o Sistema é vivo.

A vanguarda da Cultura Digital se aproxima dos pensares e fazeres da Cultura Tradicional quando a festa e as sementes crioulas se encontram com o software livre. De um chá medicinal ao código fonte de um computador. A essência é a mesma. A humanidade tornou-se o que somos, o homo sapiens sapiens, quando aprendeu a domesticar sementes, plantá-las, acompanhar seu crescimento, fazer a colheita. Este conhecimento ancestral foi passado de geração em geração e é resultado da revolução agrária do final da idade da pedra, no neolítico. Quando sementes são patenteadas e geneticamente modificadas, essa essência da humanidade está ameaçada. Com os transgênicos, desaparecem as sementes livres e surgem as sementes com dono. Sementes criadas em laboratório, controladas no próprio DNA, que impede a autorreprodução destas sementes ao carregar em si o gen da sua autodestruição, o Terminator. Se nada for feito, em 50 anos, talvez toda a produção de alimentos esteja dependente dos transgênicos, extinguindo a autonomia na produção alimentar. Todo um conhecimento adquirido em mais de 10.000 anos de experiência passa a ser aprisionado em patentes controladas por menos de 10 corporações mundiais. Bilhões de pessoas a pagarem tributo diário à tão poucos. Uma nova escravidão. Uma nova humanidade ou o que venha a substituí-la. Com a tecnologia da informação ocorre a mesma coisa, o conhecimento concentrado nos códigos fechados, no software proprietário. Essa é a Cultura Digital na rede dos Pontos de Cultura, instigando os Pontos (e as pessoas) a exercitarem novas formas de trabalho, colaboração e generosidade.

Com o Agente Cultura Viva jovens exercitam novas formas de cidadania e comprometimento social. Enquanto recebem uma bolsa, capacitam-se como agentes de cultura e prestam um serviço à sua comunidade. São as redes chegando nas pessoas.

O mesmo princípio de um Sistema Vivo é buscado com a Escola Viva. Uma Escola que se recolhe em si mesma é morta, isola o conhecimento desconectando-o da realidade, se fossiliza e burocratiza o aprendizado, tornando-o ineficaz, quando muito, adestrador. Escola Viva é aproximação pura, entre Pontos, Escola e Comunidade. Uma ação de fluxo contínuo, generosa, que acolhe novos conhecimentos e conhecimentos tradicionais, que não tem medo de ouvir e de unir. Shakespeare na laje das favelas do Rio de Janeiro, as Mandalas da Casa da Arte, as aulas de filosofia com música popular brasileira, a geometria com rendas e moda. O bairro-escola. A cidade educadora e Griôs.

“Pra começo de conversa

Peço a bênção aos mais velhos

Que me dão sabedoria

Pra brincar com estes versos

E aos meus antepassados

Que deixo a seus cuidados

Como guias do universo

Sou neto de sanfoneiro

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E bisneto de rendeira

Ajunta branco, índio e negro

É a família brasileira

Este projeto foi gerado

Como um filho pegado

Pelas mãos de uma parteira

Este projeto que vos falo

Trata de uma reinvenção

Do griô que veio da África

Do Brasil e da tradição

Dos que guardam na memória

Preservando nossa história

Geração em geração

Um louvor às Mães-de-Santo

Curadores, congadeiros

Aos Índios e Artesãos

Sambadores, Sanfoneiros

Repentistas e Rendeiras

Foliões e Capoeiras

Mestres, Griôs brasileiros.

“O mestre é a raiz

E o griô a sua rama”

Já dizia o mestre Dunga

Sábio curador de fama

Tradição é uma vivência

Quando junta com a ciência

Cultura que se proclama

A rede Ação Griô

Pelo Brasil está caminhando

Da Xambá ao Tá na Rua

Numa colcha costurando

Cada mestre Griô

Que educar com seu valor

A história vai mudando

Em Roraima tem a Bruxa

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No cerrado o Invenção

No sudeste o Tamandaré

Construindo uma nação

O Escalet no Piauí

Do Caburaí ao Chuí

Garantindo uma missão

A Pedagogia Griô

Vem de um Ponto de Cultura

De Lençóis, lá na Bahia

Vida Roda se mistura

O Grãos de Luz e Griô

Criança velho professor

O criador e a criatura

Todo Ponto de Cultura

Tem sua pedagogia

Juntos numa rede

Ação Griô que se recria

Programa Cultura Viva

Um Brasil que se cultiva

Colhendo sabedoria

Me despeço convidando

Com alegria e encanto

Todos mestres e griôs

Que protegem estes Pontos

No Brasil são diversos

Tecendo com tantos versos

Os griôs de todo canto.”

Este cordel do Velho Griô, Márcio Caíres e Lilian Pacheco, condensa a Ação Griô; uma Ação ritualizada e poética, que sedimenta os Pontos. Certa vez, na casa dos dois, trocávamos impressões sobre qual a melhor imagem para rede. Eu falava do Cipoal, das ranhuras, do entrelaçamento. Lílian lembrou do mangue, do barro, berço das primeiras vidas. Um quase água, um quase terra, um emaranhado de vida brotando a todo instante. Um manguezal, uma rede.

Há diversas geometrias de Rede. No século XX prevaleceram as redes verticais (rede de TV, supermercado), com centralização de comando e hierarquização de informações. Com o advento da Internet, fala-se de redes horizontalizadas, em que a informação é distribuída por diversos Pontos e não há núcleo decisório. Porém, esta horizontalização é ilusória; há que levar em conta os mecanismos de busca, a capacidade de processar informações e o domínio de cada um sobre códigos e linguagens. Em uma geometria plana, talvez o melhor desenho fosse o da transversalidade, uma rede ao mesmo tempo vertical, diagonal e horizontal. Mas se formos além,

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e pensarmos em um Sistema Vivo, um modelo mais orgânico, feito um manguezal.

Para compor a rede Cultura Viva buscamos diversos modos. Primeiramente estabelecendo um diálogo direto, sem intermediação, com as entidades proponentes e gestoras dos Pontos de Cultura. Esta relação trouxe ganho de confiança para as partes, aproximando os Pontos da Administração Pública. Em um segundo momento, os encontros presenciais, entre Pontos e entre estes e o Ministério. Houve os Encontros de Conhecimentos Livres organizados pela Cultura Digital, as Oficinas de Gestão Compartilhada, sob acompanhamento do Instituto Paulo Freire e as reuniões diretamente convocadas pelo governo. Com isso os Pontos foram se percebendo enquanto movimento e se fortaleceram na relação com o Ministério. Fizemos o oposto do “Dividir para governar”, unimos. Unimos pessoas, instituições e governo em um único movimento. Movimento que precisava ir além das questões de gestão. Surge a Teia.

A Teia é o encontro nacional dos Pontos de Cultura. Ela é uma mistura de encantamento, reflexão e organização. O encantamento se dá pela explosão dos Pontos, pela pulsação de sua criatividade, pelo estranhamento, pela descoberta de pontos em comum, pelas apresentações artísticas e tudo mais que atue no campo do simbólico, do maravilhamento. A reflexão ocorre pela realização de seminários, debates e também pela partilha do sensível, por formas não tradicionais de apreensão do conhecimento. A cada novo tema era escolhido um tema transversal, Cultura e Economia Solidária em 2006, Cultura e Educação em 2007 e Cultura e Direitos Humanos em 2009. Em meio a isto a organização do Fórum de Pontos de Cultura e grupos temáticos. Essa mistura de gente, coisas e ideias faz aflorar a percepção de que os Pontos podem ir além, pois “da junção de muitos pontos se faz uma linha, que forma desenhos e ideias”, como disse Gilberto Gil. Passada a realização de 3 Teias (São Paulo, Belo Horizonte e Brasília) percebo que os Pontos começam a se reconhecer enquanto Movimento.

Neste processo de uma política pública construtivista, grupos culturais se percebem participantes de ‘algo maior’, algo que vai além do simples repasse de recursos para manutenção de atividades locais. Com suas ferramentas, objetivas e sensíveis, se colocam em ação para repensar legislação, formas de expressão e organização social. Tudo isso é rede. Uma rede pulsante, tecida a cada movimento, como uma infinita Teia de aranha.

Se o Ponto de Cultura é a sedimentação da rede no território, o Pontão de Cultura é o nó que sustenta a rede. Pontões são articuladores, capacitadores e difusores na rede, integram ações e atuam na esfera temática ou territorial. Tanto podem abarcar uma linguagem artística (Pontão do Teatro do Oprimido, do Audiovisual), público (Juventude, Povos da Floresta), área de interesse (Cultura Digital, Arte e Reforma Agrária, Cultura de Paz), gestão ou território. O primeiro Pontão nasceu quase que em paralelo aos Pontos, foi o ‘Navegar Amazônia’, um barco/estúdio a percorrer a foz do rio Amazonas. Depois vieram os Pontões ‘Ação Griô’, ‘Invenção Brasileira’, ‘Vídeo nas Aldeias’, ‘Caravana Arco Íris pela Paz’ e ‘Mapa da Rede’, este, fazendo a gestão e sistematização das informações sobre os Pontos e o Cultura Viva. Em 2007, a rede de Pontões foi estendida à partir de um edital próprio. Com os Pontões criamos outra forma de gestão e acompanhamento, a gestão intra-rede; uma forma de buscar os mecanismos de gestão na própria rede, sem agentes externos, contando com a capacidade e competências dos próprios integrantes da rede. Uma competência antes desprezada.

Lima Barreto, crítico sagaz e irônico sobre os hábitos culturais brasileiros no início do século XX, tem um conto de grande atualidade que nos auxilia a entender esse processo de legitimação de conhecimentos e subordinação cultural, ‘O homem que sabia javanês’. É a história de um homem muito inteligente e que tinha chegado há pouco ao Rio de Janeiro, a capital do Brasil na época. ‘Viva fugindo de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro’. Foi quando ele viu um anúncio no Jornal do Commercio: “Precisa-se de um professor de língua javanesa”. Como necessitava de dinheiro e imaginou que não haveria concorrentes, pôs-se a estudar aquela língua estranha. Descobriu que javanês é a língua falada em Java, a grande ilha do vulcão Krakatoa, no arquipélago de Sonda; os caracteres são derivados do alfabeto hindu e o tronco lingüístico é o malaio-polinésio. Copiou o alfabeto, estudou a pronúncia, decorou algumas frases e estava pronto para se candidatar à vaga. O contratante era Manuel Feliciano Soares Albernaz, o Barão de Jacuecanga, neto do conselheiro Albernaz, assistente direto do imperador Pedro I. O barão, entre suas muitas heranças, ganhara um livro escrito em javanês, que antes fora de seu pai e antes deste, de seu avô. Um talismã de família que evitaria desgraças

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e traria felicidades, mas que estava em um idioma incompreensível. Castelo, ‘o homem que sabia javanês’, assumiu as aulas com segurança; mais uns dias na biblioteca e conhecia parte da literatura da ilha com as gloriosas histórias do príncipe Kulanga. Meses se passaram com suas aulas de palavras e estórias inventadas. Sua fama ganhou a capital e até teve que recusar turmas ansiosas em estudar a novidade. Assombrado com o conhecimento que não conseguia atingir, o Barão, agradecido, abriu-lhe portas. “Vejam só, um homem que sabe javanês – que portento!”, disse um alto funcionário do ministério das relações exteriores. Todos o olhavam com um misto de inveja e admiração, como não havia quem pudesse contestá-lo, ele seguiu na carreira de diplomata. Um Cônsul a representar o Brasil em Congressos de Linguística e que assinou até artigos sobre a literatura javanesa. “Como, se tu nada sabias?”, perguntou-lhe o amigo Castro. “Muito simplesmente – respondeu – primeiramente descrevi a ilha de Java...depois citei a não mais poder”. Ele sabia que ninguém tinha conhecimentos para contradizê-lo.

Observe. Repare atentamente. Entre os que mandam, há muita gente que diz que sabe javanês. Entre os que obedecem, os que se resignam, os que se calam e se submetem, os que transferem responsabilidades, há muito mais gente a dizer: “lá vai o homem que sabe javanês!”. Falar em rede social é falar em democracia e democracia não é um valor absoluto, ela é relativizada por distinções de poder econômico, cognitivo, de relações sociais, de domínio de informações. São estas distinções que asseguram mais ou menos poder na rede. A construção de redes mais equilibradas pressupõe quebra de hierarquias e novas legitimidades. Do contrário, todos sairão a dizer: “É um assombro! Tão moço! Se eu soubesse isso, ah! Onde estava!”.

A busca de um ambiente propício à gestação de uma nova vida democrática está na subversão da própria rede. Ir além da rede tal qual conhecemos. Mude o ponto de vista. Olhe por cima, de lado, por baixo. Penetre.

Certa vez, um discípulo do grande mestre do haikai, Bashô, vendo uma libélula, fez um haikai irreverente:

Despindo das asas

A libélula vermelha

Fica uma pimenta.

O mestre desaprovou o seu discípulo solenemente. Para além da estética de um poema, é preciso assumir uma postura de vida, que pode ser de requintada crueldade, como quando se arrancam asas de uma libélula, ou de generosa fantasia, como quando se agrega asas a uma pimenta. Bashô mudou o ângulo do poema de seu discípulo, Kikatu, e o haikai ficou assim:

Se agregarmos asas

A uma pimenta vermelha,

Surge uma libélula.

O ambiente para uma nova ordem é a rede. Não tenha medo, atire-se em uma rede orgânica. Sinta o cheiro do mangue, entre nele; da água e terra se faz barro, do barro se faz vida. Mude o ângulo, com poesia, uma pimenta com asas torna-se libélula.

*Célio Turino é historiador e atualmente exerce o cargo de Secretário de Programas e Projetos do Ministério da Cultura.

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4. Para quê escutar?

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ESCUTATÓRIA*

Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória.Todo mundo quer aprender a falar, ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória, mas acho que ninguém vai se matricular.

Escutar é complicado e sutil. Diz Alberto Caeiro que “não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma”.

Filosofia é um monte de ideias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia.

Parafraseio o Alberto Caeiro:”Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma”.

Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor.

Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos... Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos estimulado pela revolução de 64.

Contou-me de sua experiência com os índios: reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio.(Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, [...]. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as ideias estranhas.). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio.

Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que ele julgava essenciais. São-me estranhos. É preciso tempo para entender o que o outro falou.

Se eu falar logo a seguir, são duas as possibilidades. Primeira: “Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado”.

Segunda: “Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou”. Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada.

O longo silêncio quer dizer: “Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou”. E assim vai a reunião.

Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos.

E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir.

Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras.

A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar.

Para mim, Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também.

Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto. *Escutatória.Texto de Rubem Alves, escritor, filósofo e pensador

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44 Segundo a definição do dicionário,

auscultar quer dizer ouvir, identificar, diagnosticar os

ruídos, procurar saber, investigar. A ausculta propõe métodos para conhecer as relações

subjetivas de um grupo, suas vivências, visões e desafios com o objetivo de fortalecer suas ações

e intervenções.

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Compartilhar saberes, reconhecendo que toda construção é coletiva e corresponsável, articular outros Pontos, ampliar parcerias, potencializar ações em rede. A arte-metodologia das auscultas se transforma nas ações conforme o contato com os grupos com os quais busca interação nas rodas de com-vivência. Pode ser apresentada como um processo experimental e em constante coconstrução, estimulando movimentos de ação-reflexão-ação. Em contato.

O Pontão de Convivência e Cultura de Paz se propõe a auscultar jovens, onde cada encontro é único, convivendo com a diversidade e com linguagens artísticas muito singulares, através da arte, ouvindo os jovens como um todo, captando não somente os discursos, mas também emoções, expressões corporais, desejos, sonhos e aspirações contidas no grupo, aprendendo com eles a arte de viver no chão e dispondo a eles o já recebido por nós.

Trata-se da realização de experiências participativas e coletivas que buscam identificar os principais desafios de grupos jovens dos Pontos de Cultura, mapeando conflitos existentes, bem como formas e espaços de resolução propostos. O principal objetivo das auscultas é identificar os desafios da população jovem que movimenta os Pontos de Cultura e descobrir o que apontam como prioridades para auxiliar a elaboração

e efetivação das políticas públicas de Convivência e Cultura de Paz.

Como observamos a ausculta não é só um método, é também um momento de encontro e aprendizagem entre os membros do grupo. Uma vez que a arte-metodologia propõe a ampliação de espaços de diálogo e estímulo à criação de rodas, onde os temas sejam debatidos entre os próprios jovens. Tem o intuito de mapear e criar possibilidades de ações político-culturais nos Pontos de Cultura.

As auscultas pretendem estimular a percepção de como trabalhar em grupo a partir da temática da Convivência e da Paz acolhendo as diferentes visões que têm uns dos outros, conflitos, formas de convivência e de resolução. Fortalecendo a convivência com as diferenças, abrindo espaços para Políticas Públicas de Convivência e Cultura de Paz.

| Jovens de Lençois - BA |

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PÚBLICO-ALVO

No processo de realização das Rodas de Convivência foram 500 pessoas auscultadas em 20 Pontos de Cultura.

A princípio a equipe de oficineiros(as) do Pontão pensou ouvir essencialmente a população jovem, contudo foram surpreendido pelo caráter intergeracional dos participantes das Rodas de Convivência e Cultura de Paz. O público atingido de maneira indireta pelas atividades foi de aproximadamente 3.000 pessoas, número que tende a crescer conforme a continuidade do trabalho que vêm sendo desenvolvido.

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As populações jovens querem ser ouvidas e há dificuldade de organizar espaços de diálogo, onde seja possível compartilhar saberes, de estabelecer participação cidadã. Somente aqueles que vivenciam seu cotidiano podem identificar e apresentar soluções mais próximas à sua realidade, portanto as Auscultas são ferramentas pedagógicas a serviço da possibilidade de tornar visíveis talentos e habilidades de jovens cidadãs e cidadãos. Jovens capazes de intervir de forma espontâneo-criativa nas relações com e nos territórios a partir de um enfoque metodológico centrado em atividades grupais e participativas, visando recriar as representações sobre si, o outro e a comunidade, explorando as potencialidades, talentos, competências individuais e coletivas para aprimorar e fortalecer a atuação de jovens nos Pontos de Cultura.

Com o objetivo de ouvir parte da população jovem que movimenta as atividades nos Pontos de Cultura, a equipe do Pontão de Convivência e Cultura de Paz selecionou vinte Pontos em cinco regiões do país. A realização das Auscultas Socioculturais se deu através de Rodas de Convivência, onde os grupos dos Pontos puderam expressar, a partir de suas experiências e linguagens, o que sentem e pensam em relação ao tema proposto como mote, sempre vinculando o debate e as reflexões que surgiram a temas de relevância social.

Para a escolha dos Pontos auscultados foram estabelecidos alguns critérios. A distribuição geográfica, a diversidade cultural e o público jovem foram os critérios que prevaleceram. No que diz respeito à diversidade, buscamos atingir comunidades indígenas, afro-brasileiras, movimento hip-hop, juventudes engajadas em produções com novas mídias e tecnologias, culturas populares, estudantes universitários, público de CEDECAS, comunidades ribeirinhas,

coletivos teatrais, comunidade de surdos. Também foram ouvidos participantes dos Pontos da Rede das Prefeituras de dois municípios da região sudeste (Diadema e Guarulhos em São Paulo).

Alguns Pontos já eram conhecidos por membros da equipe, outros foram indicados pelo MinC e por outros parceiros. Em alguns casos, os próprios Pontos pediram para serem auscultados. Consideramos todos os Pontos escolhidos como potenciais multiplicadores das ações de Cultura de Paz e Convivência.

Estar em Roda é a condição básica para o exercício da pedagogia da circularidade, roda que faz girar vozes e conteúdos que não se organizam de modo burocrático ou linear. Os conteúdos dialogam, se entrecruzam, se interconectam quase que de maneira orgânica, se por um lado a diversidade se presentifica o tempo todo, por outro e ao mesmo tempo se evidenciam pontos de contato. Como o Pontão se dispõe a ser um polo articulador entre os Pontos, articular outros Pontos de Cultura de maneira a fortalecer e promover a criação de políticas de Cultura de Paz e Convivência, de modo a favorecer intercâmbios e compartilhar conhecimentos em redes. Trata-se também de evidenciar e valorizar a diversidade de uma perspectiva através da qual seja possível fortalecer conexões Ponto a Ponto.

Nestas experiências, estivemos em diferentes espaços onde as artes locais fluem e se interconectam, sempre procurando identificar: ‘que ações de afirmação da paz desenvolvemos?´; ‘Que arte, ou artes, temos aqui?’. Uma arte que se faz na ambientação e no contexto apresentado, diversa, plural, criadora, e que se comunica. As práticas e poéticas desveladas no decorrer das Rodas de Convivência aconteceram de forma natural. Os jovens, ao conversarem entre si sobre possibilidades e limites de intervenções

RODAS DE CONVIVÊNCIA E CULTURA DE PAZARTEMETODOLOGIA EM CONSTRUÇÃO

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socioculturais, já desenvolvem propostas de Cultura de Paz que promovem encontros significativos e despertam consciências.

A partir de nossas vivências nas auscultas, percebemos que quando o grupo é convidado ao inédito, sua resposta se dá conforme o acolhimento e identificação com o tema proposto. Os avanços e desafios da artemetodologia se completam numa perspectiva que envolve: adaptação do roteiro construído para cada Roda; flexibilidade em lidar com as características de convivência no grupo; escuta qualificada e ampliada no que diz respeito à dinâmica grupal como processo revelador dos espaços de convivência conquistados e ações de paz desenvolvidas nos Pontos de Cultura.

Aprendizado comum, caminho percorrido para compreensão das relações vividas e estabelecidas. O imediatamente visível em grupos heterogêneos, vindos de diversas realidades sociais, afirmando posturas de vida apoiadas nas bases das ações culturais que desenvolvem. Este cenário favorece a percepção do espaço das relações intersubjetivas e microssociais, que se dão a conhecer, na medida que a aproximação entre grupo, participante e oficineiros(as), se estabelece diante da proposta temática.

As Rodas propiciaram a construção de espaços acolhedores e de liberdade para que os jovens revelassem como gostam de ser reconhecidos e respeitados, quebrando barreiras. Assim, os planos da reflexão metodológica, teórica e vivencial, completaram os pressupostos que norteiam a prática da Roda de Convivência e Cultura de Paz. Permitindo o aparecimento de questões como: raça e etnia, desigualdade social, perda dos recursos ambientais, o desafio da sustentabilidade dos projetos nos quais estão envolvidos, o desenvolvimento e cidadania cultural e outros temas relacionados.

Em outras palavras, as Rodas de Convivência favoreceram ambientes de reconhecimento das diversas possibilidades de atuação cidadã nos papéis que os jovens assumem para com a cultura local, no cuidado da cidade, na responsabilidade ética comunitária, num clima descontraído que legitima o saber coletivo para

construção de uma Cultura de Paz e Convivência.

Rodas das diversidades, das juventudes, das identidades, da ancestralidade, rodas que estimulam a curiosidade e interesse por criar modos e estilos de vida mais saudáveis. Encontros com movimentos e linguagens artísticas. Rodas que promovem espaços para o encontro, onde os membros de um grupo sentem-se confortáveis para se abrir a novas oportunidades, recriando e criando. Roda que roda e não começa nem termina, flui. Um círculo.

A articulação das auscultas socioculturais através das Rodas de Convivência foi feita com a intenção de propiciar um ambiente seguro e solidário para que as ideias, sonhos, desejos e utopias encontrassem um caminho de expressão, favorecendo a criação de vínculos necessários para o empoderamento dos grupos. Os jovens encontraram-se com outros atores sociais percebendo que a potência está neles mesmos, na coletividade e que juntos resgatam histórias e ganham força. Percebem que as atitudes de paz estão por todos os lados e que direcionar o olhar, o querer e o realizar para possíveis diretrizes de políticas de cultura, arte, educação e cidadania, podem ultrapassar fronteiras, ampliando as condições para efetivar direitos.

|JovemgrafiteiroCEDECAInterlagos,SãoPaulo|

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“Cada um foi falando um pouquinho das coisas que vivenciou e a gente foi aprendendo um com o outro, adquirindo mais bagagem. Eu já tinha pensado em Cultura de Paz, mas eu não sabia que tinha esse nome” Fernanda, do Pontão de Cultura da UFMG

Roda dos encontros, anseios, ideias, símbolos, conflitos e conexões. Diversos atores sociais conceituaram, brincaram, partilharam e denunciaram os conflitos urgentes em seu cotidiano e na relação dos Pontos de Cultura e políticas de execução em convênios, editais e parcerias. As histórias apresentadas e vivenciadas deram o tom das Rodas – corações disponíveis ao diálogo, percepção e ação – reflexão dos fazeres e saberes locais e globais.

Equações que envolvem configurações políticas, econômicas, culturais, desafiam diversos setores e atores sociais a assumirem papéis ativos e corresponsáveis nos processos de mudança que possibilitam a coconstrução de alternativas e soluções.

A diversidade existe, precisa ser reconhecida e valorizada ao invés de mascarada e excluída. As questões da cidadania trazem a ideia de participação e solidariedade. Constituem práticas através das quais as pessoas se apropriam da sua potência e passam a interferir em suas realidades. Política

não é apenas política partidária. A esfera pública inclui a governamental e a transcende, a visão global afeta a local e vice e versa. Daí a importância de transitar por contextos que envolvem o funcionamento e gestão compartilhada de equipamentos e políticas culturais nas esferas micro e macropolítica. A proposta é oferecer aos leitores perspectivas através das quais seja possível apontar ações, práticas e experimentações cujo aprimoramento representariam avanços em termos de implementação e efetivação de políticas culturais na perspectiva da construção de uma Cultura de Paz e Convivência. Trata-se também de levantar alcances e desafios do projeto político cultural dos Pontos de Cultura; destacando reflexões relevantes para a construção de políticas públicas compatíveis com as necessidades e desejos das juventudes brasileiras.

| Jovem guarani na aldeia Tekoa Pyau, São Paulo |

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A primeira ausculta que fizemos e fazemos constantemente é sempre com o nosso eu, a segunda é entre a equipe, e a terceira é com outros Pontos de Cultura, com articuladores locais das Rodas de Convivência e Cultura de Paz.

Para a realização das Rodas o primeiro contato se deu por telefone. Procurávamos falar com a pessoa responsável que na maioria das vezes era o coordenador(a) do Ponto de Cultura. Houveram casos em que já conhecíamos alguns membros dos Pontos de Cultura, principalmente nas últimas Rodas, depois da participação na TEIA e no ingresso na Comissão Nacional de Pontos de Cultura. Durante a primeira conversa, contamos resumidamente quem éramos, explicávamos a proposta do Pontão, seus objetivos e falávamos sobre como poderia ser organizada a Roda de Convivência. Nesses contatos foi possível conhecer um pouco como são as atividades dos Pontos de Cultura, alguns problemas e dificuldades que eles encontram em relação ao MinC. Algumas vezes houve estranhamento com o tema Cultura de Paz, porém ao falarmos sobre a proposta das Rodas, o estranhamento diminuía e se transformava em curiosidade e em abertura para parcerias.

Algumas vezes fizemos reuniões presencias para planejar estes encontros, o que ajudou a realização das Rodas, mas em algumas situações, devido a distância, fizemos conversas por telefone, acompanhadas de várias trocas de e-mail. Entre as comunicações virtuais encaminhamos um questionário para o articulador local, através do qual buscávamos conhecer melhor o Ponto e suas atividades. O questionário teve um papel fundamental para a realização das Rodas. Também enviamos textos sobre Cultura de Paz aos articuladores locais.

Na maioria das Rodas o próprio coordenador do projeto se colocava como o articulador da Roda, o que causou interferências no processo à medida que parte dos atores que se propuseram a desempenhar este papel, acumulavam uma série de funções além do compromisso de articulação da Roda. No entanto, muitas

vezes também pelo fato do articulador local ser o próprio coordenador do Ponto, criou-se um vinculo maior com o Pontão. Com os articuladores locais, por termos desenvolvido uma maior aproximação, houve mais qualidade de interação e surgiram novas propostas, parcerias, e ideias que foram e estão sendo construídas conjuntamente.

Nesse sentido a incerteza de como seria a Roda, e de como poderíamos realizá-la com Pontos tão diferentes e com riquezas tão diversas instigou a equipe a cada novo contato. O desafio constante de estabelecer e recriar relações com os Pontos foi construindo e fortalecendo esta teia multicor, ao longo do primeiro ano de atividade do Pontão.

ARTICULADORES LOCAIS

| Samir, articulador da Roda nos Argonautas Ambientalistas |

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A seguir apresentamos algumas possibilidades para a realização e desenvolvimento da Roda de Convivência a partir da prática exercida. Vale ressaltar que o método (artemetodologia) está em constante atualização e mudança, conforme a demanda e realidade grupal em cada Ponto de Cultura auscultado.

O GRUPO:

O Grupo é o lugar do conflito, nesse sentido é o lugar onde as pessoas podem se posicionar, discutir, criar novas soluções, criar redes de sustentação e, portanto, exercitar a cidadania, assumindo responsabilidade frente ao coletivo. Ou seja, o grupo é também lugar da convergência e do entendimento, da superação das diferenças ou da explicitação das diferenças e do conviver com as diferenças.

“O que está em questão é a maneira de viver daqui em diante sobre este planeta, no contexto da aceleração das mutações técnico-científicas e do considerável crescimento demográfico. Em função do impacto da revolução informática, as forças produtivas já estão tornando disponível uma quantidade cada vez maior do tempo da atividade humana potencial. Mas com que finalidade? A do desemprego, a da marginalidade opressiva, a da solidão, a da angústia, a da neurose? Ou então liberar este tempo para investi-lo na produção de cultura, de processos de criação, de pesquisa, de re-invenção do meio ambiente, do enriquecimento dos modos de vida e da sensibilidade?” Félix Guattari no livro As Três Ecologias*

O ‘Para quê’ estamos “aqui” ?

§ Auscultar dentro de um ambiente de possibilidades, diferentes formas e meios de comunicação. Cada Roda de Convivência e Cultura de Paz envolve as diversas formas de expressões culturais dos Pontos de Cultura.

§ Criação Coletiva a partir da temática Convivência e Cultura de Paz que envolve tanto o grupo participante da Roda quanto os educadores(as) do Pontão.

§ Reconhecer linguagens e formas de expressão variadas e de acordo com as

linguagens artísticas presentes no próprio grupo.

§ Cartografar “ações de convivência e paz” já realizadas pelos Pontos, mesmo que não utilizem no seu cotidiano o termo Cultura de Paz.

§ Identificar junto aos Pontos, propostas de Políticas Públicas na área de Cultura e com foco específico em Convivência e Cultura de Paz.

§ Após a experiência de realização da Roda, disponibilizamos registros audiovisual e fotográficos, além de produzir um relatório devolutivo aos Pontos de Cultura auscultados.

COMO.... Você tem o ponto de partida e não tem o ponto de chegada...

Nas Rodas o ponto de partida é o próprio grupo participante, a chegada é sempre construída durante o encontro. Cada encontro se faz de forma criativa e com construção coletiva. No início de cada Roda de Convivência realizamos a apresentação dos participantes e dos educadores(as). É um 'convite ao encontro': aproximação com o tema, com a proposta da ausculta e entre o grupo. Primeiro movimento para o reconhecimento grupal e as possibilidades de comunicação. Portanto, é o modo de “caminhar” em cada grupo; cada encontro se dá de forma imprevisível; abre-se todos os possíveis, a experiência propiciando o inusitado.

DINâMICA:

E como acompanhar essa dinâmica? Pergunta recorrente. Ela já está no grupo!

§ ESPAÇO FÍSICO:

§ Já determinado por outrem.

§ Qual a configuração que está dada?

§ É adequado para o grupo?

§ Todos os participantes podem se ver?

§ Des–envolvimento. Os oficineiros(as), ao mesmo tempo em que se envolvem com a dinâmica presente no grupo, se “des-envolvem” para possibilitar o “olhar de fora”

MOVIMENTO DAS RODAS DE CONVIVÊNCIADESENVOLVIMENTO DAS ATIVIDADES “IN LOCO”

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em relação a determinada dinâmica. É a postura flexível, aberta a envolver-se e des-envolver-se que permite o olhar crítico e o des-velar de posturas adotadas pelo grupo de maneira até então inconsciente.

§ A viagem e o guarda roupa: adequação

§ O coordenador tem como desejo a sua invisibilidade...

AQUECIMENTO

§ É perceber o grupo COMO está chegando

§ Quais os temas que consideram relevantes?

§ Como se organizam no local?

§ Quem está na frente da coordenação?

§ Quais as linhas que estão sendo tramadas na invisibilidade?

AQUECIMENTO ou desaquecimento ESPECÍFICO

É foco:

§ “Para quê” estão reunidos? Não porquê...

§ Como aproveitar os temas de interesse do grupo com o foco do trabalho a ser realizado.

§ Qualquer jogo ou técnica de aquecimento deve estar diretamente relacionado ao objetivo do encontro.

CONVERSAS, CENAS, MÚSICA, ARTE, POESIA – Qual o objeto simbólico da convivência e da paz?

§ O que é individual passa a ser do coletivo

§ Conflito entre forças ressentidas e ativas, gerado pelo grupo

§ A multiplicidade e as diferenças da arte e da cultura local

§ Funções e diferentes papéis que desempenham no grupo na busca de soluções

COMPARTILHAMENTO/ APRECIAÇÃO DO ENCONTRO

Reconhecimento do outro em mim, falando a partir de si mesmo e não sobre o outro. É um modo de fazer “o tribunal fugir”. Não há julgamento, há PONTOS de vista diferentes.

Não importa "O QUE" está acontecendo, importa "COMO" está acontecendo o desenvolvimento da ausculta , é o olhar de fora e o olhar de dentro!

Os tópicos acima não constituem um roteiro rígido e imutável. Consideramos de extrema importância criar um clima de acolhimento e receptividade para que possa vir à tona o conteúdo trazido por cada grupo com o mínimo possível de interferência da equipe de oficineiros(as). Nesse sentido, os oficineiros(as) que dirigem a realização das Rodas de Convivência, não “fazem a dinâmica” e sim, acompanham as dinâmicas e movimentos dos próprios grupos, respeitando as singularidades de cada um deles.

| Jovens em Guarulhos - SP |

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ADESÃO DOS JOVENS NA RODA DE CONVIVÊNCIA

Observamos que os espaços compartilhados devido a carência de diálogos significativos e possibilidade de escuta é algo que envolve os jovens. No início da roda, alguns dos participantes se apresentam tímidos, conforme a proposta é apresentada e vivenciada se entregam à experiência. Outro fator é a identificação com a dinâmica vivencial, com o tema da convivência que introduz a Cultura de Paz, fortalecida pelos objetivos, o ambiente, as relações intergrupais que se estabelecem. Nesse sentido é possível afirmar que a Roda de Convivência valoriza:

§ Sentimentos, ações, opiniões, saberes e fazeres

§ Inclusão e motivação para a participação;

§ Percepção da criação coletiva no encontro;

§ Sensibiliza para o diálogo com formas e costumes diferentes presentes no grupo;

§ Favorece a empatia entre grupo e educadores;

§ Incentiva a presença da arte e cultura local

INSTRUMENTOS UTILIZADOS NAS RODAS

CADERNO CRIATIVO

O Caderno Criativo foi um instrumento colocado à disposição dos Pontos de Cultura auscultados. Enquanto rolava a roda de conversa o caderno circulava de mão em mão, onde a expressão artística revelou ideias, conceitos, preconceitos, olhares e percepções sobre convivência e Cultura de Paz. O caderno permaneceu nas roda durante os encontros,

disponível para intervenções.

MANIFESTO 2000 DA UNESCO

Em algumas Rodas utilizamos o manifesto 2000 como aquecimento, realizando jogos grupais onde levantamos diferentes percepções relacionadas à Cultura de Paz. As leituras foram feitas por participantes da Roda que se revezavam e no decorrer do encontro fazíamos linkś entre a vivência do grupo e reflexões a partir da temática da convivência e da Cultura de Paz com a leitura da dinâmica do Manifesto 2000.

Respeitar a vida e a diversidade, rejeitar a violência, ouvir o outro para compreendê-lo, preservar o planeta, redescobrir a solidariedade, buscar equilíbrio nas relações de gênero e étnicas, fortalecer a democracia e os direitos humanos. Tudo isso faz parte da Cultura de Paz e Convivência. É importante ressaltar que a Cultura de Paz não significa a ausência de conflitos, mas sim a busca por solucioná-los através do diálogo, do entendimento e do respeito à diferença. A Cultura de Paz é a alma do reencantamento do mundo, sem ela não haverá mudanças substanciais, equilíbrio planetário e mundos poeticamente habitáveis.

MAPA DA CONVIVÊNCIA

Outro recurso utilizado diante da proposta da ausculta pelos jovens e demais participantes, foi a elaboração de ‘Mapas da Convivência’. A proposta é um modo de contribuir para que o grupo possa cartografar os aspectos favoráveis e os que precisavam ser melhor desenvolvidos ou modificados na comunidade e nos Pontos

| Caderno criativo|

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de Cultura, o que acontece também a partir de espaços de convivência. De forma criativa, dialogamos sobre Cultura de Paz a partir da convivência - o que pensam, quais as dúvidas, quais anseios, conflitos, ideias, práticas, e atitudes de paz que realizam em suas atividades e programações nos Pontos de Cultura. Esse momento inaugura a reflexão sobre indicações e sugestões de políticas públicas de cultura de convivência e paz dos próprios participantes diante da realidade vivida e observada nos espaços públicos, nos Pontos de Cultura, nas dinâmicas artísticas e culturais e em relação ao Programa Cultura Viva do MinC. Em outro capítulo falaremos mais a respeito do conteúdo e de algumas indicações de propostas que surgiram no processo de elaboração de Mapas da Convivência.

OBJETO-SÍMBOLO

Em diversas Rodas, pedimos a cada um dos participantes que escolhessem um objeto pessoal pensando em todo o trabalho de criação até o momento, a partir do tema da convivência e Cultura de Paz. O grupo foi estimulado a escolher, primeiro num processo individual, um objeto que representasse nosso encontro. Após a escolha individual, se organizavam para que apenas um objeto fosse escolhido para representar o grupo e ficar no centro da roda.

Nas primeiras Rodas, a proposta de construção de um objeto-símbolo ocupou um papel de destaque, tomando grande parte do tempo das vivências nos Pontos. A escolha do objeto-símbolo serviu para que a própria equipe de auscultadores pudesse “quebrar o gelo” e estabelecer uma relação com os grupos auscultados. Conforme o processo de auscultas foi ficando mais intenso e a equipe de educadores mais afinada, outros recursos foram ganhando mais espaço e a o objeto-símbolo passou a fazer parte da roda de maneira espontânea. A riqueza está na construção coletiva do objeto. Em outro trecho do texto daremos alguns exemplos de objetos escolhidos durante as Rodas, o mesmo acontecerá com algumas referências de paz que destacamos.

REFERÊNCIAS, HISTÓRIAS E ATITUDES DE PAZ

No decorrer das Rodas, os participantes foram estimulados a trazer exemplos de referências

de líderes de paz e não-violência. Citaram desde figuras históricas como Gandhi, Luther King, entre outros, até exemplos de pessoas e personagens das próprias comunidades. O processo de realização das Rodas também foi permeado, de maneira oras espontânea, oras estimulado pela equipe de oficineiros(as), pela contação de histórias e relatos cotidianos de atitudes de paz.

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No intuito de conhecer, aproximar e compreender essas dinâmicas surge a possibilidade de um novo olhar a partir das realidades das juventudes. Adaptamos a arte-metodologia, pois avaliamos que a flexibilidade para com os conteúdos e dinâmicas da Roda ficam, a cada experiência, melhor estabelecidos e vivenciados:

A Roda, a princípio, é espaço de estranheza e indagação. Durante o encontro, torna-se envolvimento e exposição, ao fim, é proposição e identificação, clareza de que o ponto da paz em cada ponto é universal, mas também singular. O termo Cultura de Paz não seduz num primeiro momento, contudo, revela-se como eixo articulador de todas as ações que os Pontos de Cultura desenvolvem e valorizam. O que implica a antítese da violência e a perspectiva criativa do conflito. A relação entre comunidade, políticas públicas sociais e atores sociais. As Rodas aconteceram permeadas, totalmente, pela urgência da efetivação dos três conceitos preconizados e sugeridos no Programa Cultura Viva (MinC) para os Pontos de Cultura: autonomia, empoderamento e sustentabilidade.

Vale lembrar a perspectiva freiriana sobre o diálogo: “Escutar é obviamente algo que vai mais além da possibilidade auditiva de cada um. Escutar, no sentido aqui discutida, significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro”*. Foi com essas diferenças e diversidades que as Rodas se construíram.

Através do enfoque socioafetivo, busca-se ampliar a compreensão dos saberes e fazeres numa perspectiva de desenvolvimento de atitudes e valores que fomentam a participação, o trabalho em equipe e a cooperação (solidariedade).

O processo proporcionou o reconhecimento e despertar da consciência da equipe para a urgência e necessidade de efetivação da rede de desenvolvimento e cidadania cultural entre os estados brasileiros e as cidades locais, isso foi abordado nas Rodas. Anunciada desde sempre, a partir dos encontros nos Pontos de Cultura auscultados, a necessidade de um diálogo amplo com a cultura regional em interface

estadual/ nacional deflagrando, portanto, o que o Programa Cultura Viva defende: a diversidade, a pluralidade, a multiculturalidade e a transformação pela arte cidadã.

Fica o desafio de refletir quais são os passos necessários para que todos os grupos culturais possam ter visibilidade e maior reconhecimento num diálogo ampliado com as políticas públicas socioculturais-educacionais e outras formas de constituir espaços legítimos de criação e construção de novos saberes e fazeres.

Nos próximos capítulos vamos abordar conteúdos que surgiram nos grupos que compuseram as Rodas. Detalhes mais específicos sobre cada Ponto auscultado estão disponíveis no site do Pontão de Convivência e Cultura de Paz do Instituto Pólis: www.convivenciaepaz.org.br

IMPRESSÕES SUBJETIVAS DA EQUIPE DE OFICINEIROS(AS)

| Reunião de equipe no Instituto Pólis|

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Gustavo, do Ponto de Cultura Arte no Dique

“O que é Cultura? Ouvir ópera? Ler livros grossos? Não! É o que a gente vive, fala, come”

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CULTURA DE PAZ... a c e it a r o o u t ro c o m o e le é ... s e p o r n o lu g a r d o o u t ro ... C u lt u ra d e Pa z é p o s s íve l, m a s é u m p ro c e s s o e m fo rm a ç ã o ... o s ilê n c io é a p a z ? ... p a z q u e p o s s ib ilit a v ive r c o m a s d ive rs id a d e s ... a p a z é u m s e n t im e n t o d e b u s c a ? ... u m s e n -t im e n t o c o n t a g ia n t e ? ... a p a z é u m p ro c e s s o d e c o n s t ru ç ã o ? c o m e ç a e m t i, m a s n ã o t e rm in a e m t i... p a z é a ig u a ld a d e ra c ia l, ig u a ld a d e d e g ê n e ro ? a g e n t e n ã o p o d e p e n s a r q u e a p a z é s ó u m a c o is a ‘le g a lz in h a ’, ‘fra g ilz in h a ’... p a z q u e n ã o é fe it a s ó c o m a t o s n ã o v io le n t o s ... a p a z é u m e q u ilíb r io e n t re a s c o is a s ... h á c o n fl it o n a p a z ... p a z é a rt e ... p a z n o m e io d a ru a ...p a z é fa la r d a s n o s s a s fra g ilid a d e s h u m a n a s ... o d e s e s p e ro p e d e p a z ... p a z p ra t o d a s p e r ife r ia s ... n ã o s ã o s ó p a la v ra s q u e v ã o t ra z e r a p a z ... p a z q u e ve m d e d e n t ro ... a t it u d e s d e p a z já a c o n t e c e m ... a p a z s o m o s n ó s ... a p a z s e p ro p a g a n o re s p e it o e s a b e d o ria e s e m -p re n a vo n t a d e d e s a b e r e c o n h e c e r m a is ... a q u e la p a z n ã o c o -m o d is t a , q u e t e n s io n a , q u e p ro vo c a , q u e re fl e t e ... a c o n s t ru ç ã o d a p a z é u m p ro c e s s o d if íc il e c o n t ín u o ... a p a z é u m a p a la v ra in ve n t a d a p e lo s p o e t a s ? ... a p a z e s t á lig a d a a a ç õ e s d e u t iliz a -ç ã o d o e s p a ç o p ú b lic o ... p e rs e g u ir a p a z ... u m a p a z c o n c re t a ... c o m o c o n c ilia r a p a z c o m a n e c e s s id a d e d e s o b re v iv ê n c ia ? ... p a z n ã o t e m a ve r a p e n a s c o m “o c a ra b o n z in h o ”... fa la n d o d e p a z , d e s e rm o s irm ã o s , d a re la ç ã o a fe t iva n a h u m a n id a d e in t e ira ... d e ix a r d e m e n t ira s e e n t e n d e r q u e n ã o é s ó s e n t a r a b u n d a n a c a d e ira e fa la r s o b re p a z ... p a z é q u e b ra r o p re c o n c e it o ... c o m o é q u e a g e n t e va i c o n fro n t a r a v io lê n c ia ? ... s e a p ro p ria r d e t e c -n o lo g ia s , d e fe rra m e n t a s s o c ia is d e c o m u n ic a ç ã o e d o c o n c e it o d e C u lt u ra d e Pa z ... re d e s c o b rir a p a z p a re c e u m a c o is a t ã o b a n a l... q u e a p a z n ã o s e ja s ó u m s o n h o m a s re a lid a d e ... a p a z é t a m b é m s a b e r t ra b a lh a r o c o n fl it o , e n fre n t a r n u m a p e rs p e c -t iva d a n ã o v io lê n c ia a t iva ... p a z q u e é u m a p a la v ra q u e fi c o u e n -jo a d a ? ... c u lt iva r p a z é o c h a m a d o ... é u t ó p ic o fa la rm o s d e p a z ?

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5. Jovens BrasisCONVIVÊNCIA &

CULTURA DE PAZ

“Vem o s o m und o co m o o fi m d o m und o, t ra ns fo rm a ç õ es s ã o po s s íveis , tem o s que p a ra r co m es s a m a s t urba ç ã o id eo ló g ica , a revo luç ã o es t á no o lha r, na co m unica ç ã o e res peito m út uo” Juliano, jovem do movimento Humanista em roda no Ponto de Cultura CEDECA

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Transitar pelo país favorece a visão panorâmica de demandas específicas que se apresentam conforme as mudanças de território e características locais. Em cada região dos Brasis a fora, podemos perceber a diversidade entre sotaques, ritmos, linguagens artísticas, manifestações culturais populares, condições e estilos de vida. Maneiras de produção de realidades sociais variando em meio a diferenças de contextos. Riquezas e desigualdades extremas convivendo em cenários muito peculiares. Jovens nas grandes metrópoles entre centros e periferias, jovens indígenas, jovens portadores de deficiências físicas, jovens surdos, jovens mudos, jovens afro-descendentes, jovens no campo, jovens nos litorais, jovens nas comunidades ribeirinhas, jovens artistas, jovens ativistas, jovens envolvidos em movimentos sociais,movimentos estudantis, jovens envolvidos em coletivos culturais e que, com todas as suas diferenças não desejam ser rotulados nem tão pouco cerceados pela produção de esteriótipos.

A proposta do Pontão foi ouvir jovens que movimentam os Pontos de Cultura, por isso construímos um texto permeado por falas que surgiram no movimento das Rodas de Convivência. No processo de formulação de propostas de políticas públicas foram destacadas problemáticas diretamente relacionadas à dificuldade de efetivação e de garantia de direitos. O envolvimento da população jovem na resolução de conflitos gerados constantemente por questões vinculadas à defesa, exercício e garantia de seus direitos, não apenas o direito à cultura, mas outros direitos básicos, inclui de maneira inevitável o contato com uma série de problemas que enfrentamos na gestão de nossas cidades.

Para pensarmos em estratégias capazes de potencializar e viabilizar a proliferação

de iniciativas e processos de transformação colocados em prática por jovens empreendedores sociais e culturais, é preciso considerarmos a diversidade de olhares e vivências. Ao invés de adotarmos uma visão restrita e pensarmos em uma “juventude” homogênea e uniforme, convém constatarmos a coexistência de “juventudes”, assim mesmo, no plural. “Queremos uma paz que remeta a uma revolução, a uma mudança. A paz que eu penso não é a das saídas fáceis, fachadas de lutar contra criminosos, traficantes, etc. Não é essa paz. É uma paz de conquistas de fato, de uma boa qualidade de vida, ter acesso à saúde, à educação, à cultura. Uma paz que possibilita viver com as diversidades”, afirma Márcia do Ponto de Cultura Tainã.

Os movimentos de Cultura de Paz, além da trajetória marcada por ações e posturas não-violentas de personagens históricos, têm por fontes inspiradoras documentos como o Manifesto 2000 por uma Cultura de Paz e Não-violência, projetado por ganhadores do prêmio Nobel da Paz, e outros documentos internacionais (Haia, Declaração Universal dos Direitos Humanos, documentos da Unesco, Carta das Responsabilidades Humanas, Carta das Responsabilidade dos Artistas)

A Cultura de Paz possui valores que pretendem humanizar a humanidade, onde o SER é maior do que o TER. A Unesco define oito áreas de atuação da Cultura da Paz: educação, economia, desenvolvimento sustentável, direitos humanos, equidade de gêneros, democracia, solidariedade e comunicação participativa.

No que se refere ao universo dos direitos, lembramos um “velho” marco legal que permitiu o desenvolvimento de ações no sentido de fortalecer atitudes de paz. A Declaração Universal dos Direitos Humanos defende que todos os seres humanos podem invocar os

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direitos e as liberdades: “sem distinção de alguma de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação”.

Lia Diskin, educadora e filósofa da fundação Palas Athena, esteve presente em uma das Sessões de Diálogo promovidas pelo Pontão na cidade de São Paulo, ela compreende a Cultura de Paz como: “um projeto polivalente e inclusivo que trabalha no local aquilo que provoca impacto transformador no global, pois as redes de conhecimento e de ação estão permanentemente abertas para disponibilizar, partilhar e avaliar experiências concretas em qualquer parte do mundo”.

Diskin traçou um histórico sobre a trajetória, conceitos e ações da Cultura de Paz, propostos pela Unesco, destacou alguns focos para refletir e agir em sua construção, tais como a legitimação do conflito; a redefinição de valores; a democratização dos processos e conteúdos; o desenvolvimento da capacidade crítica; as novas tecnologias de convivência; o comprometimento com os direitos humanos e a sustentabilidade social e ambiental. Abordou a violência como a ausência e/ou violação aos direitos. Os eixos principais dos nossos diálogos são: juventude, vivências e sensações, Cultura de Paz, formação para a convivência e intercâmbios entre Pontos, tecnologias de comunicação e políticas públicas de cultura. Para ter acesso a informações sobre as Sessões de Diálogos realizadas pelo Pontão entre 2008 e 2009, acesse nosso site: www.convivenciaepaz.org.br

No período de 2003 a 2008, na cena pública cultural brasileira houve uma série de processos referentes à formulação de políticas públicas de valorização da cultura da diversidade de expressões culturais. A elaboração do Plano Nacional de Cultura é um

exemplo de aprimoramento do debate público, envolvendo atores sociais no planejamento e implementação de políticas públicas de longo prazo para a proteção e promoção da diversidade cultural. Há debates internacionais em relação à diversidade cultural e o Brasil teve e tem um papel importante sobre o enfoque das Políticas Públicas de Cultura. Informações sobre políticas públicas pela diversidade, balanços de ciclos de debates, propostas e cadernos de diretrizes estão disponíveis no site do Ministério da Cultura.

A construção da cidadania cultural requer engajamento e organização como forma de dar sentido e acesso aos bens culturais. No Brasil, a Constituição Federal, no Artigo 215, defende que: ”O Estado garantirá a todos o pleno exercício de direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional”. Os direitos culturais são aqueles direitos que o indivíduo tem em relação à cultura da sociedade da qual faz parte, que vão desde o direito à produção cultural, passando pelo direito de acesso à cultura e o direito à memória histórica. Esse conjunto de direitos integra a concepção de Cidadania Cultural. O que não exclui interpretações subjetivas do que é cultura, do que é paz, do que é e/ou o que pode ser a convivência, etc.

| Sessões de Diálogo, à esquerda, Lia

Diskin, à direita, Vera Salles, Hamilton

Faria e Egberto Penido|

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O desenvolvimento da Cidadania Cultural para o empoderamento local e a sustentabilidade, a ideia de cultura como direito, são citados como prioridades por jovens nos caminhos pela afirmação de direitos humanos e culturais. “Na minha terra, em Dom Basílio - município brasileiro do estado da Bahia, localizado aos pés da Serra do rio de contas a 32 km de Rio de Contas, cidade histórica baiana – cultura é associada muito ao plantio, né? Aí fala assim: ‘ah minha cultura, eu tenho a cultura do alho...’ na minha terra compreendemos a Cultura de Paz nesse sentido de alimentação, de semear, é isso, é plantar e colher. A cultura no sentido desde semear até colher”, diz Márcio do Ponto Coco de Umbigada, nos trazendo a dimensão da cultura como uma construção cotidiana.

Os Pontos de Cultura visitados pela nossa equipe de oficineiros(as) realizam projetos que têm por objetivos desenvolver ações culturais, artísticas e educativas visando o fortalecimento das identidades culturais locais. Alguns deles são as únicas referências culturais em regiões onde se pode perceber todos os tipos de desrespeito a direitos resultantes da falta de políticas sociais que assegurem a sobrevivência e a qualidade de vida de crianças e jovens. O Fortalecimento do conhecimento tradicional, o envolvimento das novas gerações no fazer cultural, a divulgação do conhecimento e tradições, a criação de redes de intercâmbios, ações de inclusão social, cultural e digital de jovens e de populações em situação de vulnerabilidade social mas não apenas, a garantia de participação e empoderamento das comunidades locais a partir da construção e consolidação de suas identidades e expressões culturais são desafios constantes no dia a dia dos Pontos.

Muitos Pontos desenvolvem projetos de democratização da informação, memória, ancestralidade e participação. Em grande parte, atuam com foco na defesa dos direitos de crianças e adolescentes em situação de exclusão social, em conflito com a lei, moradores de rua e estudantes da rede pública de ensino. Todos os Pontos trabalham para encontrar respostas coletivas criando espaços

de debates e encontros, envolvendo diversos atores sociais e público intergeracional.

Através de atividades e oficinas que envolvem diversas linguagens, os Pontos integram grupos culturais, ativistas, militantes, organizações e coletivos para criar condições de democratização de saberes populares e acadêmicos. Buscam se apropriar de distintas formas de manifestação artística, incentivar novos artistas, promover eventos culturais, disponibilizando seus espaços para reuniões que fomentam discussões relativas a Políticas Públicas de Cultura, etc. Também é notável a preocupação de alguns Pontos em atuar em projetos onde todos os envolvidos possam compreender seu papel social, político e cultural com o intuito de propiciar acesso aos meios de fruição, formação e produção cultural.

Como a efetivação de direitos dos jovens é uma preocupação bastante presente no dia a dia dos Pontos de Cultura, cabe um breve panorama relacionado a conquistas recentes que afetam a sociedade de modo geral, e mais especificamente no que diz respeito à população jovem. Com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, a Doutrina da Situação Irregular prevista pelo antigo Código de Menores foi substituída pela Doutrina da Proteção Integral, afirmando crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. Acompanhando a mudança de foco, passam a ser cidadãos com prioridade na elaboração de políticas públicas capazes de fortalecer sistemas e redes de garantia, proteção e promoção de direitos para o efetivo atendimento de suas necessidades. Sobrevivência, desenvolvimento e integridade são questões ligadas fortemente a ações e estratégias de advocacia, pedagogia e mobilização social. Como já foi dito, vale ressaltar que existem diferenças entre o que é legal e o que é considerado legítimo. Legal é o que determina a Lei e legítimo é como as coisas acontecem no nas micro-relações cotidianas.

“Na nossa convivência há preconceitos. Na nossa comunidade há uma porção deles, principalmente com o jovem, porque as pessoas acham que os jovens não têm ‘alguns direitos’, mas tem”, afirma Robson do Ponto

DIVERSIDADE, DIREITOS E DESEJOS

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de Cultura Alecrim Dourado. O Estatuto foi e é importante, contudo não é a única ferramenta à disposição. O Plano Nacional da Juventude propõe diretrizes de políticas públicas voltadas aos jovens e complementa o ECA a medida em que amplia o segmento chamado de juventude para a faixa etária de 15 a 29 anos e estabelece metas a serem alcançadas no prazo de dez anos nas áreas de educação, saúde, geração de trabalho e renda, inclusão social e tecnológica, cidadania e organização juvenil.

Os Pontos auscultados estão engajados no fortalecimento e integração entre grupos culturais, organizações e coletivos culturais. Percebem que as atitudes de paz estão por todos os lados e que direcionar o olhar para possíveis diretrizes de políticas de cultura, arte, educação e cidadania são a paz no caminho, abrindo fronteiras e ampliando condições para efetivar direitos.

As adversidades presentes no dia a dia dos jovens são extremamente sérias e exigem estratégias a curto, médio e longo prazo. “A paz que estamos nos referindo aqui é uma paz grande que não está só fora, no convívio. Está dentro e fora ao mesmo tempo. O ser humano antes de se tornar um ser que pensa, que quer a paz, é um animal que precisa disputar sua sobrevivência. Como conciliar a paz com a necessidade de sobrevivência?”, pergunta Thomas do Ponto de Cultura Tá na Rua e CUCA da UNE.

Ter condições de sobrevivência garantidas é pré-requisito para se ter paz. Com todas as dificuldades, é possível adotarmos uma perspectiva propositiva quando voltamos nossa atenção para o potencial dos jovens como sujeitos de t r a n s f o r m a ç õ e s sociais. A organização em grupos, a p a r t i c i p a ç ã o em projetos, o engajamento em

questões culturais e sociais, o ativismo a-partidário, podem gerar nos jovens a consciência de seus direitos e o despertar de reflexões que modificam sua atuação em distintas esferas. Desejamos destacar o surgimento e articulação de políticas de grupo movimentadas a partir da participação ativa dos jovens. ”A palavra é diversidade! Estar aberto para possibilidades”, dizem jovens do Ponto de Cultura Pombas Urbanas, durante a Roda. Juventudes que querem conquistar direitos básicos à sobrevivência e ao desenvolvimento, que têm capacidade de mapear e perceber suas próprias necessidades, destacar suas prioridades e criar em parceria com outros atores sociais, soluções que podem ser multiplicadas, respeitando as singularidades.

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“É uma roda, a grande conquista de nosso grupo aqui, foi a questão do respeito, da brincadeira, da aprendizagem, de conhecer novas pessoas. E o desafio é conciliar isso com o tempo que você tem, com o espaço que você tem, no momento que você está. Aqui em baixo tem uma roda que está mostrando o nosso modo de estar sempre em roda, de várias formas. Tem o Márcio Griô, tem Dona Rosa (mestre da comunidade do Remanso), tem Luci com o pilão da comunidade, no trabalho, da união, da força, tem os índios, a representação de todo nosso povo, diversas etnias”, conta Maiza do Ponto de Cultura Grãos de Luz e Griô.

A intolerância e a dificuldade de lidar com diferenças foram identificadas pelos grupos auscultados como desafios para a construção de uma Cultura de Paz. ”Temos que desapegar de toda uma humanidade que é pautada na submissão do outro, na inferioridade, na desigualdade e na injustiça”, afirma Lillian Pacheco, coordenadora pedagógica do Ponto de Cultura Grãos de Luz e Griô.

A construção da Cultura de Paz se mistura com os desafios de um cenário global complexo: “eu acho que a gente está numa guerra, né? É importante a gente entender que está numa guerra. A Terceira Guerra Mundial está acontecendo. Penso que a gente nasceu numa época de guerras mundiais mesmo. Globalização, liberalismo, capitalismo. Tudo isso pra mim é um estado de guerra e aí trabalhar pela paz, trabalhar pela roda que é isso que a gente trabalha, é um desafio muito grande. É como ilhas dentro do deserto, aquela coisa que você encontra aqui e ali, mas tem uma força imensa. São sementes, mas o estado é de guerra mesmo”, conclui Lillian.

Diante dos paradoxos e conflitos do mundo contemporâneo, nem todos são otimistas: “É utópico falarmos de paz. Não é algo realizável. Talvez seja algo mais íntimo. A paz pode nascer em cada um. Mas temos que pensar enquanto possa ser concretizada. É uma palavra inventada pelos poetas”, provoca Thomas, participante da roda no Tá na Rua/ CUCA UNE.

No entanto, a percepção da paz como

processo também vêm à tona: “é necessário ter o equilíbrio. Mas o homem não é equilibrado, é um animal. É louco pensar que o homem também quer guerra. A construção da paz é um processo difícil e contínuo”, sente Giovani também do Ponto Tá na Rua.

Para Iasmim, jovem participante da Roda no Cedeca Interlagos SP, “uma das maneiras de se fazer paz e escutar o coração da humanidade é silenciar”. Não se trata de calar diante das dificuldades, não falamos aqui de um silêncio omisso, mas de um silêncio que permite que o outro seja ouvido, reconhecido e respeitado.

O silêncio, esta linguagem poderosa é por excelência uma linguagem de ausculta. Quando as águas se acalmam é possível ver a redondez da lua sem qualquer deformação. Auscultamos a nós e ao outro não apenas no mundo da experiência verbal, mas no silêncio que nos permite distinguir todos os outros. O silêncio para perceber os vários ruídos da cidade, os carros, os latidos dos cães, os pássaros. Assim, com o silêncio distinguimos e podemos compreender todos os nossos rumores internos e os rumores do outro, da comunidade, da sociedade, da natureza do cosmos.

Não há meditação sem silêncio, logo não há conexão com o ser interior e com as forças da criação sem o silêncio. A cultura ocidental conhece pouco este caminho. Precisamos trazê-lo para nossas experiências pessoais, relacionais, pedagógicas e culturais para que sejamos enriquecidos pela comunicação silenciosa. O silêncio fala. “Acho muito importante antes da gente parar pra falar, a gente ouvir, porque a gente aprende mais ouvindo que falando”, afirma Mana Josy, membro do grupo Conexão Feminina, na Roda em Belém do Pará no Ponto de Cultura Argonautas Ambientalistas.

Estar em Roda favorece o encontro entre as pessoas, faz com que se percebam parte de um coletivo: “precisamos entender que o problema meu é o do outro também, vamos nos ouvir mais e ficar mais próximos”, diz Mana Josy. Na tentativa de mapear aspectos da convivência, aparecem os sentimentos e percepções subjetivas sobre a forma de ser e estar em sociedade e no desenvolvimento dos trabalhos em grupo: “a convivência, querendo

EM RODA...SINGULARIDADES NO PLURAL

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ou não, elegerá o conflito. Para dizer às claras, quem aqui na sua casa, com seu namorado ou colegas, com sua família nunca foi pra porrada? Os conflitos são diversos, por isso não acho que seja tranquilo conviver”, pensa Luan, jovem do Argonautas Ambientalistas.

Nos Pontos de Cultura auscultados, os jovens enfrentam o tempo todo com a necessidade de lidar com a diversidade para o desenvolvimento de projetos e processos criativos: “os Pontos de Diadema têm o registro da construção coletiva através de grupos de estudo e conselhos visando o consenso. Há briga porque não estamos acostumados a esse modelo, mas insistimos. Sai faísca sai é claro que saí, por isso falo a paz não é só conquistada linda e placidamente”, conta Sérgio da Rede de Pontos de Cultura de Diadema.

Mais uma vez, vale destacar que a Cultura de Paz não significa a ausência de conflitos, mas sim a busca por solucioná-los através do diálogo, do entendimento e do respeito à diferença. “Esses momentos que trazem conflitos são momentos também de possibilidades de atitudes de paz, porque a gente tá indo contra o marasmo”, acredita Lucilene do Ponto de Cultura OCA – Carapicuíba SP e representante da Comissão Paulista dos Pontos de Cultura.

O conflito não precisa ser encarado como algo negativo, mas como elemento capaz de abrir novas possibilidades, tanto de convivência quanto de criação e de construção de conhecimento: “o conflito também gera aprendizado, desenvolvimento. Você só consegue se desenvolver se você dialoga.

Você precisa dialogar, entrar em conflito às vezes para poder avançar”, defende Zehma, articulador local da roda de Belém do Pará.

Há diferenciações entre conflito e divergência. Muitas vezes utilizamos a palavra conflito quando se trata apenas de divergências. Em uma sociedade que aspira a democratizar tanto suas instituições quanto as próprias relações interpessoais, o conflito como manifestação natural de diversidade de interesses em um dado momento sobre determinada questão é absolutamente legítimo e necessário à manutenção dos direitos humanos e ao princípio da liberdade de expressão e escolha. “Conflito, divergências, isso faz parte. Cultura de Paz é entender que não devo ser agressivo de forma alguma com o outro. O conflito abre precedente para coisas positivas, acredito que este embote é necessário. O grupo dominante que existe hoje e se apropriou da cultura é um grupo muito pequeno. Qual o direito que estes caras tem? Eu entendo que Cultura de Paz é você aceitar o outro, como o outro é. Se por no lugar do outro. Se isso acontece sem derramar sangue vai chegar a um nível de evolução espiritual supremo, daí eu entendo que Cultura de Paz é possível, mas é um processo em formação”, fala Banto do Ponto de Cultura Tãina no centro da Roda.

| Palavras visíveis, Rio de Janeiro|

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Nas Rodas de Convivência e Cultura de Paz os grupos foram estimulados a pensar nos Pontos negativos e positivos em suas respectivas comunidades. A qualidade de convivência passa por atitudes muito simples: “aqui estamos exercitando essa questão da gente olhar quem tá do lado da gente, o próximo, o respeito pela pessoa não importa quem seja. Se você chega pra uma pessoa e fala um bom dia com um sorriso, tenho certeza que vai receber um sorriso e não ser um inferno a convivência. As pessoas só ficam olhando o seu umbigo e por isso estamos dispersos. A gente precisa começar a olhar para o vizinho, saber escutar o outro, saber ter carinho. Todo mundo gosta de um abraço, um sorriso, um carinho, não gosta? Então a gente tem que exercitar isso, a gente tem que se doar para que a gente possa receber”, compartilha Wagner da Rede de Pontos de Cultura da Prefeitura de Guarulhos.

As linguagens e expressões artísticas, por si sós, abrem possibilidades para novos modos das pessoas se relacionarem: “a Cultura de Paz são atitudes pequenas, nada grandioso. Eu descobri a dança que está me proporcionando momentos maravilhosos. O respeito na dança, do limite de meu parceiro, meu companheiro que estiver lá comigo. Dançar e interpretar junto é muito bom, tá ligado?”, pergunta em tom de convite, Robson do Ponto de Cultura Alecrim Dourado.

A Arte e seu poder de transformar as relações foi destacado em todas as rodas: “a filosofia ligada a capoeira, trata da relação com o outro. Tradição, cultura, experiência. Relação de cooperação. O mundo é feito de tensões. Tem que batalhar, ir a luta”, pensa Deise da turma da capoeira no Ponto de Cultura na Quebrada. Renan, do mesmo Ponto compartilha: “faço teatro desde gurizinho, nele a gente trabalha conflitos, conceitos, revolução, transformação pela arte. A educação é uma linha e constrói as possíveis tentativas pra uma Cultura de Paz. Uma educação mais ampla que abrange, mas que não se restringe somente à escola”. Arte que se faz no dia a dia, em diversos espaços, através do reconhecimento e valorização da cultura local e nos processos de formação e afirmação de identidades.

Na própria produção dos grupos, os jovens e outros atores sociais que participam de modo ativo da produção dos Pontos de Cultura, referem-se a preconceitos, à discriminação, a violências, à sexualidade, ao direito de expressão e fazem outros questionamentos: “como é que podemos trabalhar a Cultura de Paz em um ambiente de violência? Comunidade unida, insistindo. Porque quem tem que insistir é a própria comunidade. A união da comunidade é que vai fazer derrubar essa violência. Hoje acho que o coco tem trazido coisas muito boas para a comunidade. Traz coisas boas para a escola, valoriza os artistas como Aurinha e outros Griôs que estão esquecidos. E que venham outros artistas pra cá não só do coco porque o coco está aberto para todos. A proposta do coco é abrir. Qualquer pessoa que chega aqui vai ser bem recebida. Acho que é a união que vai fazer que a Cultura de Paz aconteça”, sonha Verônica do Ponto de Cultura Coco de Umbigada.

Nas auscultas com diversos grupos espalhados pelo Brasil, foi possível conhecer algumas propostas de ações, ainda sem o aprofundamento pleno, mas que podem se tornar o embrião de futuras práticas. As questões emergentes na busca por mudanças e desafios novos no cotidiano demonstram a habilidade de propor iniciativas e exercer a cidadania com foco em produções artístico-culturais. “Eu acho que a Cultura de Paz é você se permitir. Se permitir acertar e errar e se corrigir, de ter ouvido tudo aqui e participado e ter compartilhado com o próximo. De ter ensinado e ter aprendido bastante, a paz se propaga assim no respeito, na sabedoria e sempre na vontade de saber e conhecer mais, né?”, pergunta André da Rede de Pontos de Cultura de Guarulhos, também em tom de convite.

Respeitar a vida e a diversidade, rejeitar a violência, ouvir o outro para compreendê-lo, preservar o planeta, redescobrir a solidariedade, buscar equilíbrio nas relações de gênero e étnicas, fortalecer a democracia e os direitos humanos. “Solidariedade como uma oposição a questão da banalização da violência, eu acho que cuidar do outro é importante e temos que voltar ao tempo dessa prática de

COM-VIVER COM ARTEPOSTURAS E ATITUDES

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cuidar do outro, é fundamental para a gente ter um ambiente de paz” , destaca Guilherme Ponto de Cultura da UFMG.

A compreensão de onde os jovens estão inseridos e quais são suas propostas, sua situação e relações subjetivas, seus espaços de convivência, puderam ser vislumbrados apesar das limitações: “coletividade pra fazer um contra-ponto com a desagregação, porque coletividade é muito o que o CCNM prega, que as pessoas juntas, unidas, elas convivem, elas produzem e geram conhecimento. E puxando um gancho também com a colaboração, que as pessoas através dessa coletividade, elas acabam colaborando umas com as outras”, articula Fábio também do Pontão da UFMG.

Os espaços de resolução de conflitos ainda

precisam ser construídos e, neste aspecto, a rede de Pontos de Cultura pode ser um dos articuladores diante de algumas das demandas apresentadas: “é cultivar com o outro e se abrir numa comunidade, num lugar. Você não viver somente pra você, né?”, provoca Luciana do Ponto Grãos de Luz e Griô.

Compartilhares, diálogos, socialização, compreensão, coerência, tolerância, desobediência, sem justiça não há liberdade, diferenças, participação, problemas, união, relacionamento, comunhão, comunidade, acordos, ceder, igualdade, fraternidade, responsabilidade, são palavras que surgem na Roda a partir

da proposta de constituírem um mapa da convivência. Paciência e tolerância com os limites do outro são ingredientes importantes para a construção de novas relações de aprendizado. “Tem que ter muita tolerância, porque às vezes a pessoa não se percebe como indivíduo dentro do grupo, isso faz toda diferença, tipo de pessoa que não respeita a opinião do outro porque parte do indivíduo essa questão de se conhecer, de se ver como pessoa para viver em grupo”, pensa Flávia do Ponto de Cultura Atitude Jovem.

O conceito de corresponsabilidade e a necessidade de construção de respostas coletivas fizeram-se bastante presentes: “conviver é isso, se não aprender a conviver então é cultura de guerra. Eu acho que conviver é muito difícil, envolve educação, respeito, amor. Convivência é achar o meio comum”, contribui Marcos do Pontão de Cultura da UFMG.

A paz é construída no coletivo, exige percepção do outro e relações que sejam pautadas na cooperação e numa nova ética a ser construída: “é a atitude para compreensão do que estou fazendo e como posso contribuir com o outro, outros!”, acredita Bico (Rodrigo) do Ponto de Cultura Alecrim Dourado.

Samir, do Ponto Argonautas Ambientalistas da Amazônia, traduz a importância das microconexões e dos encontros entre as pessoas para realizar a utopia de uma sociedade mais pacífica: “pra mim a paz é essa ciranda, o que você pode passar no abraço. Ela começa em ti, mas não termina em ti. Ela é um processo no qual tu se insere, no momento em que tu nasce, em que tu passa a resgatar seus valores, quando você começa

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a entender quais são os seus valores. A gente conecta num olhar, numa ação e isso fica, depois dessa roda, cada um vai levar um pouco de cada um, porque os olhos se entrelaçaram. Então a paz, ela está simbolizada por essa conexão, por essa harmonia, por essa Cultura de Paz que começa e não termina, sacou?”.

As Rodas foram c o n s t a n t e m e n t e perpassadas por linguagens e expressões artísticas e pelo que os jovens envolvidos com Pontos de Cultura apontam como principais desafios e problemáticas do cotidiano. Optamos por compor um texto polifônico, intercalado pelas vozes dos jovens, que foram os principais atores nesse processo, apesar do caráter intergeracional de grande parte das Rodas. Jovens que falam de Brasis e juventudes dispostas a ampliar suas possibilidades. A seguir destacamos demandas consideradas prioritárias, tendo como eixo a temática da Cultura de Paz e Convivência.

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“Quando meu pai morreu eu tinha 7 anos e aí minha mãe foi trabalhar lá no lago sul. Ela dormia lá e só ia pra casa no sábado, então quer dizer, só mantinha contato com a gente pelo telefone e tinha uma tia minha que não tinha condição de cuidar de quatro moleques. Então que dizer, eu cresci vendo drogas, vendo armas, prostituição. Eu moro num dos bairros mais perigosos. Eu cresci vendo tudo isso e escapei no meio fio. As injustiças, tá tudo lá. A própria sociedade fecha os olhos pra isso. Mas e amanhã? E Hoje? E aí? Como é que vai ficar? Tem que ter uma forma”

Beto – MC Sobreviventes de Rua – Roda no Atitude Jovem DF

Os jovens que habitam as grandes metrópoles não constituem um grupo homogêneo, contudo existem demandas em comum apesar das diferenças que variam de modo inevitável conforme o contexto. Altos índices de homicídios, medo, vulnerabilidade. A diversidade entre as juventudes que vivem nas metrópoles, para além dos embates que estabelecem dicotomias centro e periferia, um dos aspectos a ser debatido é o fato da violência ocupar lugar privilegiado no ranking de preocupações entre os jovens brasileiros, sobretudo os jovens urbanos.

Segundo a pesquisa Juventude Brasileira e Democracia: participação, esferas e políticas públicas, realizada pelo Ibase e pelo Pólis, jovens das áreas pesquisadas (sete regiões metropolitanas – Belém, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Distrito Federal) apontaram a violência como a principal preocupação. De acordo com a pesquisa, trabalho e desemprego aparecem em segundo e terceiro lugar entre o universo de jovens entrevistados. Temas de relevância social ligados as Juventudes Urbanas também são expostos na Pesquisa Jovens na Metrópole – etnografias de circuitos de lazer, encontro e sociabilidade, publicada pela Editora Terceiro Nome.

Além da preocupação com a violência e com o trabalho, há direitos fundamentais cuja não efetivação interfere no cotidiano dos jovens urbanos. Os problemas vão desde a moradia até direitos necessários para assegurar o direito

ao desenvolvimento integral e tudo o que esse direito inclui em termos de infraestrutura. Em relação à moradia, uma questão importante e pouco comentada nas mídias é que nossa Constituição Federal, de 1988, apesar de garantir esse direito ao longo do texto legal, passou a incorporá-lo explicitamente com a Emenda Constitucional N26, do ano 2000, que deu nova redação ao Art.6o: são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. O próprio ECA também apresenta essa defasagem, abrigo e residência são usados apenas nos casos onde a criança e/ou o adolescente estão sujeitos a situações de abandono, adoção e/ou destituição do pátrio poder. Em caráter de curiosidade, vale citar que a palavra “lar” e a palavra “paz” nem sequer são citadas ao longo do texto legal.

A Constituição, independente de falhas e melhoramentos que ainda precisam ser conquistados, estabelece como objetivos do país: promover o bem estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (Art3*IV). A todos nós brasileiros, é garantida a inviolabilidade do direito à vida e à liberdade (Art5). Tanto a Constituição Federal como o ECA, garantem o direito à educação, à cultura, visando o pleno desenvolvimento, educação para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho.

Outra questão que faz parte do cotidiano de jovens urbanos é a dificuldade de afirmação e exercício do direito a ir e vir. O passe livre é um modo de garantir o direito à educação e ao acesso à cultura, daí sua grande importância. O reconhecimento do direto ao passe livre é uma das reivindicações comuns a muitos grupos de jovens, que vêm na possibilidade de trânsito a ampliação das suas possibilidades de desenvolvimento e acesso. Dúvidas em relação às perspectivas de futuro, escassez de espaços de convivência, abuso de drogas, são temas recorrentes: “não há espaço para os jovens, a praça de Ponta Negra foi invadida pelas drogas, falta muito incentivo e espaço”, denúncia e evidência a demanda, Estrela do Ponto de Cultura Pau e Lata.

E HOJE?JUVENTUDES URBANAS EM PONTOS DE CULTURA CAOS, CRIATIVIDADE E MUITAS PERGUNTAS...

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Se por um lado os jovens constituem populações expostas ao consumo e abuso de drogas lícitas e ilícitas, por outro são as principais vítimas de violência policial. “Somos vistos como marginais. Precisaria fazer uma revolução. Por exemplo, outro dia estávamos chegando de noite, vindo do curso, perto de casa e o guarda noturno ficou nos seguindo. Tivemos que mudar de caminho”, reclama Glaucon da Rede de Pontos de Cultura de Diadema. Dados divulgados em Relatórios de Direitos Humanos no Brasil revelam que a maioria da média de 50 mil brasileiros assassinados por ano é constituída por jovens negros moradores das áreas pobres dos centros urbanos. Para mais informações visite o sítio da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos: www.social.org.br

As dicotomias “nós” versus “eles”, “cultura de guerra”, “cultura de paz”, ainda aparecem de modo constante nas falas dos jovens auscultados: “a violência é uma coisa problemática, eu sou a favor da paz, violência gera violência. A cultura de guerra entra em nós, não neles, daí fica nisso, aí eles criam uma Cultura de Paz que favorecem eles a explorarem a gente, ferrar a gente,coloca a polícia para nos policiar. Daí usa a política, a religião, a educação, o sistema de saúde, para manter a gente aqui sem brigar com o poder vigente. Os donos do mundo. Eles colocam a semente da violência em nós. A molecada da praça que usa crack é o exército deles. Polícia não é meu amigo, não gosto de polícia e nunca vou gostar”, ela é instrumento de quem está lá em cima”, desabafa jovem do Ponto de Cultura Alecrim Dourado, que reafirma a necessidade de instrumentos capazes de contribuir para a afirmação de direitos: “Não dá para ser pacífico sem uma proteção, com alguma coisa que ajude a contribuir a Cultura de Paz. Políticas Públicas são tudo para fortalecer a gente”.

A população jovem das periferias dos Brasis, em sua maioria negra, pobre, sem acesso a

educação de boa qualidade, com nenhuma ou poucas perspectivas de desfrutar de condições dignas de desenvolvimento, ainda é a parcela mais vulnerável a violações de direitos. “Uma proposta de Cultura de Paz é a igualdade racial e igualdade de gênero porque a gente sofre muito na pele sendo preto, sendo pobre, sendo da periferia e isso é uma grande luta!”, diz Mana Josy que participa do movimento Hip-Hop.

O desconforto é geral. Seja pela ausência de condições básicas à sobrevivência digna, seja pelo medo que levanta muro, tranca a porta, blinda o carro, liga o alarme e se fecha do lado de dentro das cercas elétricas. Centro, periferia, margens, valores e territórios. Os impactos de ações, lideranças, movimentos sociais e culturais e os novos rumos que a nossa configuração de realidade vai adquirir são responsabilidade de todos. Transformam-se com a nossa atitude e intervenção além de envolver questões polêmicas sobre estilos de vida inviáveis, preconceitos, visibilidade, convivência com a diversidade, economia solidária, resolução harmônica de conflitos, etc.

Sempre bom lembrar Paulo Freire, sobretudo quando os jovens ouvidos abordam, de maneira direta ou indireta a luta de classes: “como distorção do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscar recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem opressores, nem se tornam de fato opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos - libertar-se a si e aos opressores”*.

No que se refere à violência e a políticas de segurança pública, alguns jovens voltam a apontar a falta de espaços de lazer, a dificuldade de acesso à cultura e a descrença em representantes que não representam os interesses das juventudes. “Falta de

| Canto Jovem, Natal, RN |

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segurança pública, que quem tem direito tem segurança, né? A gente que não tem se lasca. Falta de um espaço cultural, acabaram de reconstruir uma pracinha lá na vila e quando começou era um agito só, era legal que a galera ia jogar vôlei e tal, só que agora tá começando a virar ponto de drogas. Falta de valorização da nossa cultura. Em Vila de Ponta Negra que é uma comunidade cheia de riqueza e cultura, nesse tempo todinho há quase seis anos que eu sou de Pau e Lata, talvez eu poderia ser outra coisa, né? Ai, que eu não sou coisa, né, nesses quase seis anos que tô aqui já vi muitos amigos serem presos, roubando, matando, seja lá o que for”, denuncia jovem cujo nome não convêm identificar.

A Cultura não deve ter a responsabilidade de salvar as pessoas da marginalidade ou ter sua agenda pautada em políticas de cunho assistencialista. No entanto, é inegável que as linguagens artísticas se tornam presentes como elementos estratégicos para transformar a postura de jovens em relação à sua atuação dentro da comunidade: “na humildade a gente tá aí na batalha, a gente tenta levar prá vocês um som que busca a atitude de mudar prá tentar desenvolver essa Cultura de Paz. Nessa roda, fazer esse movimento, acho interessante começar a desenvolver isso nas ruas onde a gente mora. O menos um e menos um dá mais um, levar essa ideia. E aí a gente vai somando, vai somando e daqui a pouco a gente já tá forte pra tentar pelo menos diminuir essa violência que vem nos perturbando”, acredita Beto do Ponto de Cultura Atitude Jovem. O contato com o potencial criativo através das atividades desenvolvidas nos Pontos de Cultura contribui com o aprimoramento da capacidade de analisar configurações sociais de maneira crítica e reflexiva, o que acaba por levantar a curiosidade de populações jovens em relação a mecanismos de controle social.

“Falamos no negro, mas tem a questão da

criança, da mulher, do jovem, da diversidade sexual, tudo isso sobre preconceito. Todos problemas têm essas mesmas cores por trás” afirma Robson do Grupo de Jovens da Redinha que participou da Roda no Ponto Pau e Lata. Apesar de muitos progressos conquistados pela militância dos participantes do Movimento Negro, do Movimento GLBT, do Movimento de Mulheres e de outras minorias, não podemos dizer que o Brasil é um país onde o preconceito não existe. Existe, é crime, se revela em situações cotidianas, é um comportamento que pode ser extremamente sutil e violento e pode ser trabalhado através de atitudes não-violentas que estimulem a reflexão sobre padrões destrutivos de comportamento, existem várias experiências nesse sentido.

“Vejo o preconceito de quem faz teatro é gay. Há um preconceito de estilos, de curtir um tipo de música ou de moda. Outro dia um grupo de emos foi espancado. Perguntei para minha vó se eu fosse lésbica, ela não mais me consideraria como neta. Ela disse que não, que continuaria sendo sua neta, mas me trataria de forma diferente”, Natielly da Rede de Pontos de Cultura de Diadema. Jovens gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros, jovens usuários de drogas, jovens vivendo com HIV, jovens em situação de rua são mais suscetíveis às políticas de extermínio condenadas pela legislação, negadas nos discursos politicamente corretos, mas colocados em prática no cotidiano violento de nossas metrópoles. Jovens que desejam ter suas singularidades reconhecidas e respeitadas, mas que não desejam serem rotulados e encaixados em esteriótipos.

Para que se mantenha o respeito e para que a convivência com a diversidade seja real, precisamos ficar ligados aos nossos posicionamentos diários frente a falas e atitudes preconceituosas que acabam por favorecer ideologias apodrecidas que alimentam políticas de exclusão e de extermínio das diferenças.

As Rodas de Convivência foram realizadas com

| Rede de Pontos deGuarulhos |

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a participação direta dos jovens e outros atores sociais nos 20 Pontos de Cultura Auscultados. “Temos aí, aproximação e cuidado, cuidado com o outro, expressão, cultura, saber falar e colocar pra os outros a importância da cultura. Respeito com o limite dos outros, saber que às vezes você ensina uma coisa pra uma pessoa, mas ela não consegue chegar aquilo que você quer que ela chegue, é o limite da pessoa. E aprender com as diferenças e ter compromisso com o lugar onde você trabalha, com essa família mesmo, a família em vários locais. Ter a segurança, como a gente tem a segurança de se colocar aqui nessa roda, ter a segurança em todos os outros locais também, porque aqui a gente se lança, se joga e nos outros lugares, por não haver essa construção e facilidade e as pessoas não conseguem se colocar nos lugares, não conseguem segurança e vínculos de amizade. É a comunicação e união. Às vezes, a pessoa tem medo por não saber se colocar na roda. Cada um tem seu ponto de vista e existe várias ideias, né? Você lança ideias e acha que a sua é a mais importante, mas tem que ouvir os outros e respeitar as outras opiniões. Aproximação dentro da roda, a convivência, como conviver com toda essa diversidade?”, pergunta Aline do Ponto de Cultura Grãos de Luz e Griôs”.

Durante as Rodas, ficou evidente que muitas vezes os jovens sentem-se sobrecarregados como se a responsabilidade de um ideal de protagonismo venham especificamente dessa camada da população, o que gera incômodo: “a questão do jovem. Já tem muita coisa em cima dele, como o preconceito. A sociedade por si já taxa o jovem como vagabundo, delinquente, como tudo e acho que estamos aqui hoje pra provar ao contrário. Que não é porque tem um monte de jovem junto que vai ter baderna, não estamos aqui pra aprender e pra passar isso, somos a diferença e temos que aproveitar isso”, pensa Robson do Ponto de Cultura Pau e Lata.

Os jovens ouvidos pelos oficieiros(as) do

Pontão demonstram a percepção de que as alternativas para a resolução de questões que afetam os jovens de maneira mais intensa são de responsabilidade de toda a sociedade. Ou seja, são problemas coletivos que ultrapassam uma determinada faixa etária e englobam cidadãos de todas as idades.

| PontãoUFMG, BeloHorizonte - MG |

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“...Todos os dias à tarde, Euá saia pra buscar lenha e ia juntando na estrada e no retorno da mata, ela vinha pegando os cestinhos de lenha...

Enquanto caminhava ia sempre cantando pra filha, isso era um ritual tão forte, tão importante que um certo dia ela saiu pra procurar a lenha ... começou a andar, andar, só que como ela não tava encontrando, foi se afastando mais e ficando cada vez mais distante da aldeia. Euá cantando, empolgada, com a filha no colo, nem estava se dando conta que a noite tava chegando. Num determinado trecho do percurso a filha de Euá começou a chorar, chorar muito e Euá sem conseguir entender porque que a menina chorava tanto... Então Eua começou a se dar conta de que tinha perdido o horário e que precisa voltar pra casa. Mas aí viu que não sabia mais como voltar, pois já estava escuro e ela já não reconhecia mais a estrada. Ela foi andando ali no escuro, com a filhinha chorando e de repente, ela não viu mais nada. Ali com a filha no colo ela começou procurando naquele completo escuro, um lugar onde pudesse se encostar. E foi percebendo que havia uma grande árvore. Euá foi e encostou nessa árvore, que era tão grande mas tão grande que parecia ter um espaço aberto pra que ela pudesse entrar. Ela entrou ali e ficou sentada e no desespero em ver a agonia da filha, Euá começou a tocar o próprio corpo, ela foi se tocando, se tocando. Começou alisando a própria barriga e dali tirou um pouco de água. Euá ficou completamente encantada com esse poder de tirar água de dentro de si. Ela ia dando água pra filha e tirando mais água, até que a menina foi acalmando e ficando quieta, até ficar completamente em silêncio. Euá encostada na árvore, continuou se tocando, alisando a própria barriga, e ia saindo mais água de dentro de Euá. De repente, diante dela se formou um grande rio, ela pegou a filhinha e entrou naquela água e deixou que o rio a levasse pra o lugar onde ele achasse que ela devia ir. Aquelas águas que saiam de dentro dela a levaram de volta a sua aldeia. Quando Euá chegou no espaço, as outras famílias que moravam ali perto, se juntaram todas, sentaram e cantaram com Euá a cantiga que ela cantava o tempo todo pra ninar sua filhinha... Euá, Euá, Majô, Euá, Euá...”

Lenda contata a todas as crianças, jovens e adultos presentes na Roda realizada na comunidade do Remanso, por Eniele do Grãos de Luz e Griô*.

| Legenda Marilda? |

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Ao som da Zabumba de Robertinho, do pandeiro do Senhor Domingos e da sanfona de Mestre Aurino, segue o cortejo da Trilha do Quilombo, enfeitado com jogos de versos e cantigas e pela presença de jovens do Grãos de Luz e Griô. Canto, dança e contação de histórias. Os mestres são reconhecidos como tais pela própria comunidade, são contadores de histórias e levam consigo a tradição oral por onde passam. “Eu antes nem pensava que nem existia esses coisa, antes a gente era tudo igual, depois que veio isso e a gente é visto assim porque a comunidade que reconhece, é tudo na comunidade e cada um tem um valor”, conta Mestre Aurino, em tom modesto.

Diariamente o cortejo segue a caminho da escola municipal em Remanso (POA) e é um dos exemplos de atividades realizadas por Pontos de Cultura que, além de trabalhar com a ancestralidade, cultura local, oral e tradições populares, favorece a convivência intergeracional entre atores sociais. Depois da trilha e da Roda, Delvan, jovem articulador levou os oficineiros(as) do Pontão para conhecerem sua avó, uma anciã de 76 anos, muito querida pela comunidade e famosa por suas habilidades como curandeira e benzedeira.

No quintal, a textura do algodão retirado do pé. Maracujina (maracujá), feijão de corda, galinhas e os cachorros soltos, livres, um clima tranquilo, comunidade ativa e produzindo mesmo em meio a escassez da roça. Capim nagô, amesca, pichuri, manjericão, eucalipto, pinhão roxo, erva doce, pau de ferro, canela, poejo, alecrim, pedra de arapuá, arruda, cravo, vassourinha, umburana, nanuscada, hortas, quintais e muitas ervas medicinais, algumas delas fervendo para o composto que espanta tudo que é mau pra saúde.

Enquanto o xarope vai se fazendo, com ar de quem está preparando uma poção mágica, Dona Judite, conta um cadinho de sua história: “aprendi com minha mãe, eu era muito curiosa e ficava assuntando o que é que ela fazia. E depois que ela morreu, minha memória mesmo foi arrumando as outras coisas, os remédios ela que fazia pra gente. Eu tô com 75 anos eu nunca fiz um exame,

a não ser esses dias que me saiu uns caroço no peito e fiz, né? Mas não era nada. Nunca fiz uma consulta e mãe sempre curou a gente com ervas. E ela ainda era viva quando tive metade dos meus menino. Esse dali ainda alembra dela – refere-se a Delvan, seu neto – Então eu via ela fazendo, e tudo eu aprendia, eu ficava sentada vendo... ‘Porque é que você num vai brincar, só fica na cozinha...’ – e aí eu aprendi. Fazia e dava certo, eu continuei fazendo pra os neto, pras outras mulher, ensino minhas nora, isso aqui é bom, isso num é”.

O neto, ao ouvir Dona Judite interrompe curioso: “Ei vó, minha bisa aprendeu com a mãe dela foi?”. Dona Judite, dando uma aula sobre a ancestralidade de Delvan, responde: “Mãe num aprendeu com mãe não, mãe aprendeu com a nora dela. Mãe não foi criada com mãe não. Quando a mãe dela morreu acho que ela tinha sete anos. Eu num conheci a mãe de minha mãe, conheci o pai. A mãe não era índia, quem era índia é da parte do velho (mãe do avô de Delvan), que o povo dele tudo era índio, a avó dele foi pegada no mato. Na família dele tem muito sangue de caboclo. Porque da parte de meu avô por parte de mãe era tudo índio, da parte de meu avô por parte de pai era tudo índio também. Aí misturou tudinho, tâmo aqui tudo misturado. Uns saiu mais escuro, uns mais claro. A gente tinha parente que ninguém diz que era parente da gente, tudo assim agora que nem vocês, tudo claro”.

Aproveitando que o avô de Delvan foi citado, lembramos uma das lendas que ele mais gostava de contar, a lenda do Nêgo D’Água, protetor do rio que se enfurece ao perceber a degradação da natureza pelos homens. Por isso, ao perceber o desrespeito, Nêgo D´Água fica irritado a ponto de atacar pessoas e matá-las. O mito recupera a relação com o meio ambiente e a responsabilidade de cada um na relação com as forças naturais. Delvan faz questão de dizer que sua identificação e resgate das origens e ancestralidade se deram num momento em que questionou quem ele era. O rapaz contou aos oficineiros do Pontão de Convivência e Cultura de Paz do Instituto Pólis que na adolescência tornou-se evangélico e abandonou a vivência da cultura quilombola. Quando seu avô faleceu

ANCESTRALIDADE E CONVIVÊNCIA INTERGERACIONAL NOS PONTOS DE CULTURA AUSCULTADOS

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percebeu a importância de resgatar suas raízes, através de um sonho onde Negô D’Água aparecia e, para surpresa do rapaz, revelava que era seu avô. Foi daí que: “aos dezessete anos eu me assumi quilombola, assumi a minha descendência”, afirma orgulhoso.

Em relação à ancestralidade e à convivência intergeracional destacamos a proposta do Grãos de Luz que é semear educação e tradição oral fortalecedora da identidade das crianças, adolescentes e jovens brasileiros. Reinventar a integração entre o velho e o novo num presente pleno de ancestralidade e identidade na educação para a celebração da vida. O projeto Grãos de Luz e Griô educam crianças, adolescentes e jovens em oficinas de identidade, arte, artesanato e economia solidária, tendo como tema gerador tradição oral e cidadania.

As pesquisas e vivências das oficinas elaboram saberes e produzem materiais didáticos para a caminhada dos griôs de grupos culturais da Chapada Diamantina. Os griôs e as oficinas mobilizam escolas, comunidades, educadores municipais e crianças e adolescentes para a elaboração e vivência de projetos pedagógicos que integram identidade, ciência, arte e tradição oral no currículo de educação municipal.

Os líderes de todas as idades envolvidos participam do registro e sistematização de conteúdos e práticas educativas para legalização do currículo por meio dos conselhos municipais. Os jovens se organizam em grupos cooperativos de cultura e economia solidária. E todos se encontram na Roda da Vida e das idades, compartilhando afetos, saberes e produções solidárias, em parceria com diversas entidades dos três setores sociais (poder público, poder privado e sociedade civil), nacionais e internacionais.

O Grãos de Luz e Griô investe na construção de uma rede local entre empreendedores, poder público, conselhos municipais, a comunidade escolar e os grupos culturais, propondo e construindo soluções para problemas relacionados ao patrimônio simbólico e a autoestima da população de baixa renda, principalmente de tradição oral. A valorização da cultura e a integração das idades são estratégias fundamentais para a reconstrução do fio da história e fortalecimento da identidade das crianças, adolescentes e jovens para interromper o ciclo intergeracional de pobreza.

Em outra Roda de Convivência, Banto do Ponto de Cultura Tainã se apresenta cantando: “ao som dos batuques dos tambores africanos emocionado me tornou preto bato na luta incessante da ancestralidade africana, revolucional. Oxalá me acompanha, sou eu!”.

Quase todos os Pontos auscultados trabalham com foco em atividades que estimulam a construção da identidade a partir do resgate da ancestralidade. Valorizar características individuais para a construção de espaços coletivos. “A questão da identidade é central. O que te faz agredir alguém? É quando você não vê o outro como parte de você também, né? Você não se reconhece e não reconhece o outro, isso que te faz agredir ao outro, te faz desrespeitar o outro, a questão da guerra. Quando você sabe quem você é e se vê também no outro aí a gente tá falando de paz, de sermos irmãos, da relação afetiva na humanidade inteira”, acredita Luciana do Ponto Grãos de Luz e Griô.

Discriminação religiosa, racial entram na lista de atitudes que interferem de modo negativo na convivência: “quando fazia dança afro. Muitos não entendem, falta respeito. Sinto uma discriminação religiosa. Falam que isso é coisa de terreiro, que é de outro planeta. Na escola falavam que era macumba. E na verdade é uma manifestação cultural. Falta sensibilidade”, sente Mayra do Museu de Arte Popular (MAP em Diadema).

Bruno do Terreiro de Iemanjá ilustra a vivência do preconceito contando um episódio de seu cotidiano: ”sinto incômodo com o olhar dos outros. Outro dia fui comprar um balaio para um ato religioso. O senhor me disse que vendia apenas se fosse para colocar pão. Tive que responder com ignorância: - Mas meu senhor, eu estou pagando! Ele insistiu que só venderia o balaio se fosse para colocar pão e não para outras coisas. Isso é preconceito. Sinto intolerância ao que é diferente”.

Se colocar no lugar do outro, saber o que o outro vive, detectar quais os modos possíveis de contribuir para que haja diálogo. Conviver e respeitar as diferenças. Recuperar o saber tradicional, sistematizar conhecimento e torná-lo acessível às crianças e a todas as gerações. Na ação Griô, os mestres estão em relação direta com as crianças, professores e outras pessoas da comunidade.

No artigo que encerra esta publicação, falaremos mais a partir do tema resgate de identidade e ancestralidade garantido nas

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leis, a partir da perspectiva de construção de políticas públicas de cultura: “aí entra a espiritualidade, transformação radical, revolução, evolução, conscientização, uma política orgânica e humanitária. As religiões africanas sempre enxergaram o outro como parte de si, apesar do conflito – sempre colocou o outro dentro – somos parte de um todo, compomos uma teia”, completa Banto do Ponto de Cultura Tainã.

As boas relações entre os membros de distintas comunidades torna possível a ampliação de espaços de encontro onde conhecimentos possam ser compartilhados. “Precisamos conhecer nossas origens e a dos outros. Buscar um conhecimento recíproco. Conhecer nossa origem e o que herdamos”, Nathalia da Rede de Pontos de Cultura de Diadema .

A convivência intergeracional, muitas vezes relacionada ao desenvolvimento de projetos que estimulam o contato com a ancestralidade e a preservação do vínculo com raízes culturais e históricas foi um elemento que enriqueceu boa parte dos grupos que participaram das Rodas. O ambiente heterogêneo e múltiplo propiciou um reconhecimento grupal que favoreceu o intercâmbio de experiências, vivências e conhecimentos disponibilizados na Roda de Convivência.

“Muito bem, tô chegando aqui nessa roda, tô vendo aqui que vocês já começaram a contar as história... tá certo, pra quem não me conhece vou me apresentar, sou avó dessa menina aqui - aponta pra Luciana – trazendo ela aqui pra Chapada pra conhecer as coisa que meu avô já me contava, é. Meu avô nascido ali em Santa Rita de Cássia, na pracinha um pouquinho ali subindo em Barreiras. Eu pequena fui pra Brasília, lá criei família, criei essa menina aqui também. Mas agora eu tô voltando pras minhas terra, é. E é um prazer poder tá aqui nessa roda pra contar história, poder conhecer aqui esse grupo, todo mundo gente boa, pois muito bem. Acontece que falar de guerra é falar de paz. Me lembro logo de meu povo, povo que veio lá da África, eita povo guerreiro. Me lembro de um menino chamado Zumbi. Zumbi dos Palmares como ficou conhecido, né? Todo mundo conhece Zumbi? Pois então, eu não conheci não mas ouvi

falar, ouvi falar demais. Ele guerreou pra poder viver em paz. Imagine só o povo todo sendo maltratado, sendo escravizado. Um homem desse teve de lutar e de guerrear. Pra ter paz tem que ter guerra, tem de ter luta todo dia”, diz Luciana do Ponto de Cultura Grãos de Luz e Griô.

”temos os griôs, eles não são livros, mas o conhecimento está neles. O tambor também transmite conhecimentos, algumas comunidades se reúnem em volta dele e contam causas, o tambor também é conhecimento, é ancestralidade”, afirma Vanessa do Ponto de Cultura Tainã.

História dos Mundos “Onubilá havia se cansado de viver no mundo paralelo, o deus da luz, Obatalá vivia muito triste, pois só era Onubila e Obatala. Obatala tem uma ideia, pensou em criar um monte de bonequinho de lama. Onubila diz que daria o poder a Obatala de criar a família gie, aí Obatalá pega e diz ‘tá bom’ e criar da lama montes de bonecos. Aí, o que acontece, Onubilá quando dorme, Obatalá pega e dá o ofó pra cada boneco e pra se mexer dá um sopro de vida pra cada boneco. Quando Onubila acorda de manhã cedo tá aquela falação e fica abismado com aquilo, sem entender o que tinha acontecido ali. Ele pega e castiga Obatalá e diz ‘você vai pra terra’, aí é onde entra Exú, o orixá que gosta da festa, do fuá, da multiplicação. Ele

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pega e dá um sexo pra cada boneco e o mundo paralelo não aguentava mais aquilo. Aí é que vem as águas, Iemanjá e rompe os mundos, o mundo parecia que ia acabar. Pelo castigo de Onubilá, ter de ficar na terra, todos os povos, os africanos, escolheram um dia em gratidão a Obatalá por ter dado a vida a eles. E é sexta feira, por isso nos vestimos de branco”, conta Bruno da Rede de Pontos de Cultura da Prefeitura de Diadema.

| O Ponto de Cultura Coco de Umbigada, Olinda-PE, resgatou a Sambada de Coco, troca dos saberes da matriz afri-cana com o público presente, por meio de brincadeiras que estimulam o canto e a dança |

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Os Guaranis são o povo originário de uma terra que depois veio a se chamar São Paulo. Ocupam toda a faixa litorânea sul do Brasil há milhares de anos. Conhecem cada curva de rio, cada planta e animal, cada trilha pela mata. Educam seus filhos dentro da tradição, passada de geração a geração, desde que Nhanderu criou o mundo e todas as coisas. Conforme informações recebidas por Inimá e Tupã na visita a aldeia Pyau, o guaranis permanecem fiéis a suas tradições e costumes. A primeira aldeia fundada em 1966 na região fica em frente a Tekoa Pyau, do outro lado da avenida e chama-se tekoa Ytu. Fundada por senhora Jandira prima de sr. José Fernandes, pajé atual na aldeia Pyau. Este chegou e recebeu uma revelação de Nhanderu de que aquele espaço era solo sagrado e deveria fixar residência ali. O pajé começou a realizar rituais de cura em pessoas doentes que o procuravam, estas vinham com suas famílias que acabavam fixando-se ali. Atualmente há 320 pessoas na aldeia. O pajé Sr. José é muito respeitado nas aldeias e o líder espiritual que os guia. Os guaranis são um povo migrante e é comum o intercâmbio entre aldeias. Tupã registra: “Nhanderu mostrou que aqui (Pyau) é um portuário e devemos ficar aqui, esse é o lugar indicado para ser ocupado, nós não podemos abandoná-lo, nosso dever é manter e preservar essa aldeia”.

Acreditam que há vida após a morte, uma outra vida melhor. É a religião de Deus, o único Deus, Nahnderu, o criador. A Casa de Reza – Opy é o lugar sagrado, onde realizam rituais, rezam, dançam, projetam os filmes e hospedam famílias de outras aldeias, há instrumentos e fazem música ali.

O local é um morro com muita terra vermelha, as casas são todas feitas com retalhos de madeira e o chão é batido em terra. O banheiro é coletivo e precário, sempre entope e vaza, não há manutenção há anos. Duas hortas bem cuidadas estão distribuídas na aldeia e foi um projeto de Furnas, para compensar a rede elétrica que invadiu a aldeia. O lixo é espalhado pela aldeia e há muitos dejetos espalhados. Os computadores do CECI – Centro de Estudos da Cultura Indígena estão queimados devido à instabilidade da rede elétrica com diversos picos elétricos diários. Algumas

casas têm televisão e aparelhos elétricos eletrônicos, máquinas de lavar. As crianças são alfabetizadas em português após os sete anos. Há grande dificuldade por parte dos jovens em falar o português. Os guaranis se alfabetizam para defesa. Até 12 anos são tutelados na família, após adquirem a responsabilidade e autonomia para ser e se fazer adulto. São 240 povos indígenas atualmente, com 180 línguas diferentes. Quanto à alimentação relatam que as crianças comem duas vezes ao dia e o adulto uma. A alimentação é em um espaço coletivo, preparada na própria aldeia. A cultura guarani é levada a escolas pelos próprios jovens, mas sem apoio ou fomento cultural ou educativo.

O projeto Cinema na Aldeia é uma iniciativa dos Pontos de Cultura nas aldeias guarani que adquiriram um acervo de 42 filmes indígenas e há projeções em todas as aldeias regularmente. O artesanato mostrado compreende cestaria, bijuterias, pintura em tecido, miniaturas de animais em madeira. Dizem que há vários tipos de projetos nas aldeias, contudo, a continuidade com qualidade e sustentabilidade são o problema maior.

Quanto aos sonhos dos jovens guaranis, Inimá Krenak coordenadora do Ponto Krukutu relata: “Bom, no discurso o que mais se fala é de uma terra onde haja mata, rios, lagos, onde possam exercer seu modo guarani de ser plenamente, fica a questão: essa terra é aqui neste plano terrestre ou não, pois na cultura guarani, tudo isto nos espera do outro lado – na terra sem males. Mas sinto (eu Inimá) que esta nova geração sente-se perdida porque o modo de viver antigamente já não é possível, e como aliar então o seu modo de ser, sua religião, sua tradição, a vida que levamos hoje, este é o grande desafio.”

Na Roda de Convivência pudemos conhecer o significado dos nomes guaranis das pessoas que estavam presentes: pequeno rezador, jovem, senhora da casa, grande rezador, o laborioso, tupã, sol - muitas cores e músicas, verdadeira, pequenos deuses, céu, jogador, mar pequeno, passarinho, gentil, espírito de onça, trovão.

Tupã relata que o nome é extremamente valioso para o guarani, pois você tem que desvendar quem você é através do nome que

GUARANIS NOS PONTOS DE CULTURASOBRE RUÍDOS, SILÊNCIOS E CACHIMBOS

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recebe. É uma marca de identidade e herança pra vida. Quando levantamos informações sobre a vida em comunidade e sentimento comunitário de viver em grupo, foi possível mapear a importância dada pelo grupo em relação à exposição e reconhecimento do povo guarani diante da sociedade. Também surgiram preocupações com o futuro das aldeias na vida cotidiana, na formação dos jovens e na preservação de suas crenças e valores; busca por respeito, reciprocidade e reconhecimento. A pergunta lançada após essa reflexão conjunta foi: O que tudo isso tem a ver com a paz?! Eis algumas ideias:

§ Referência de paz para o guarani é definida por sentimento de paz, como sente e expressa.

§ Ter qualidade de vida num espaço comum e próprio (território de direito e não cedido) para o guarani é ter paz.

§ Sentem e vivem a paz no desenvolvimento do trabalho de cada um, da liderança especificamente, os resultados esperados concretizados trazem o sentimento de paz.

§ São pacificadores em suas próprias palavras, desde sempre, um povo que não faz guerra, esse é o modo de ser e existir.

§ A prática comunitária de consulta mútua, pedido de conselhos aos líderes como que num conselho de consulta tranquiliza e apazigua a aldeia.

§ Efetivamente ter respeito apazigua.

§ O desenvolvimento da consciência eleitoral e a prática democrática cidadã visando eleger candidatos comprometidos com as causas indígenas, indicação mútua.

§ A relação com o dinheiro à base de aquisição para repartir com os outros e não a relação capitalista, mercantilista e econômica. Ainda preservam a relação de torças e usufruto comunitário do que é produzido e conquistado.

§ A preservação do sentimento de comunidade (comum unidade).

§ Costumes solidários e educativos.

§ A noção de ser um só, manter a característica de povo.

Quando questionamos sobre quais os modos de continuidade, o grupo considerava possível após a experiência da Roda de Convivência, entrar em relação com o Pontão de Convivência e Cultura de Paz do Pólis para fortalecer seu intercâmbio dentro da Rede de Pontos. O grupo conversa, entre si, essa foi a dinâmica durante todo encontro. Entre si falando em guarani e sintetizando para nós o que julgavam necessário. Tupã resume a resposta comentando que esperam que o trabalho iniciado através do Ponto de Cultura nas aldeias Krukutu e Pyau não termine, tenha continuidade de alguma maneira, para que possam transmitir sua cultura e modo de vida às pessoas. Querem produzir um vídeo editado para divulgação. Querem ter maior contato com outros Pontos de Cultura.

Durante nossa passagem pelo Ponto de Cultura Krukutu, observamos o trânsito do cachimbo (petygwá) entre o grupo, compartilhado entre os jovens, principalmente com as meninas. O objeto simbólico esteve presente o tempo todo, ocuparam-se de tragar e soltar a fumaça, era lúdico, divertiram-se com a ação. "O mais interessante é que apesar de muitas formas e muitos nomes a finalidade do cachimbo é a mesma em todas as culturas, transmutar energias e as levar até o Grande Mistério. É o cachimbo que condensa as palavras de quem “pita” com ele, ou melhor, transforma as palavras em algo visível e depois disso estas palavras são levadas aos quatro cantos do mundo e ao Grande Mistério, mas também auxilia em muitos outros movimentos de cura" *1

Na hora de finalizar o encontro, a dúvida: como?! Até que decidimos terminar com uma história de paz das aldeias. O grupo se voltou para discutir falando sempre em guarani, riam muito, resolveram criar uma narrativa cujo título é: ‘O velhinho, o macaco e a fortuna do rei’.

“Um velhinho queria se casar com a filha do rei para enriquecer e ser importante, pediu ao macaco que o ajudasse nessa tarefa. O macaco disse que o ajudaria, mas que o velho se lembrasse dele após o casamento. Mas isso não aconteceu, aí o macaco lembrou o velho que apenas lembrasse dele na hora da morte, que fosse enterrado com dignidade. Mas isso também não aconteceu e o macaco morreu à míngua”.| 1- Informação

obtidas no site:www.tatankaishca.com.br |

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O impacto percebido e sentido pelos oficineiros(as) frente a resistência na participação/comunicação revelam a sociodinâmica presente entre os membros grupo do Ponto auscultado e os oficineiros(as). Sociodinâmica concreta, de diversidade étnico-cultural e estabelecimento de contato/ aproximação com um modo de ser e viver que nos desperta, afeta e paralisa em nossos métodos e intenções. Isso nos leva a questão quem ausculta quem?! A todo momento somos auscultados, desafiados, impactados. Lidamos com a realidade de um grupo singular e extremamente específico na forma de ser, lidar com o outro, partilhar saberes e vontades, comunicar, ouvir e calar. Nos percebemos atônitos e incomodados, a estratégia foi reformulada, os saberes destituídos, a desconstrução se fez. Assim foi possível restabelecer a difícil tarefa de auscultar, tentar, acolher todos os ruídos e agir dentro do possível, conforme a realidade dada. A partir da articulação com as lideranças guaranis, seguimos. O desejo não foi explicitado e a voz esperada não aconteceu. As verbalizações de ambas as partes eram confusas, inteligíveis, atropeladas. O silêncio, a aparente incompreensão, os gestos e olhares falavam tudo. Revelaram uma desconfiança, um pedido: ‘Queremos ser conhecidos para sermos respeitados!’

Diante do limite de relação e ação, ouvir e acolher, fortalecer e potencializar?! Perguntas que rondam as nossas mentes e corações. A condução das auscultas envolve esforço, comprometimento e adaptações. Preparação do campo de atuação, ambientação do grupo e contexto.

A experiência com os índios guaranis foi intensa e densa, reveladora da dificuldade em estabelecer o diálogo intercultural de maneira a propiciar iniciativas para as políticas culturais. A mediação do trabalho com o grupo e o tema Cultura de Paz e convivência se estabeleceu na articulação ético-política-estética definida por Félix Guatarri a partir dos três registros ecológicos do meio ambiente contemplado no discurso dos jovens guaranis pela preocupação com a escassez dos recursos hídricos e florestais disponíveis, o das relações sociais marcadas pelo sentimento de comunidade restrita e o registro da subjetividade humana a partir dos valores do grupo e suas ações a partir desses valores, a convivência e o sentimento de paz que os tornam um povo diferenciado, apaziguador, que não reage e nem reclama frente à injustiça

e desigualdades sociais. Não que sejam passivos, mas não confrontam. Expressam seus valores na arte-cultura desenvolvida e obtém recursos financeiros a partir das apresentações artísticas realizadas em diversos locais públicos e outros. A construção de políticas públicas de convivência e paz neste contexto é um desafio e uma tarefa a ser coconstruída nas aldeias.

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Cultura de Paz é atitude, valores, estilos de vida, sentimentos, políticas que visam: rejeitar a violência para uma convivência pacífica entre diferentes; possibilidade de diálogo na diversidade; reconhecimento da dignidade e da vida - respeitar a vida; ouvir para compreender: diversidade cultural, religiosa, étnica; preservar o planeta: através de conselhos de responsabilidade e equilíbrio com a natureza; redescobrir a solidariedade: desenvolvimento da comunidade, participação e respeito aos princípios democráticos; fortalecer o trabalho em rede; dar visibilidade às ações de paz; integrar políticas públicas. Nas Rodas de Convivência a equipe de oficineiros(as) estimulou os grupos a levantar reflexões. Participamos na mobilização para o enfrentamento da exploração sexual através das rodas de conversa, do teatro juvenil, atitudes e histórias de paz. A seguir destacamos algumas falas para ilustrar um pouco do que foi vivenciado:

“Cada um no seu campo de batalha que é uma batalha cruel às vezes, mas profundamente relevante, e ao mesmo tempo é uma batalha de grande regozijo, de grande prazer pelos frutos que eles colhem, enfim pelo encantamento do trabalho. E isso não tá só em mim com a Oficina de Yoga no Programa de Audiotório, com outras milhares de ações que a gente tem, mas tá lá com o Maragato, com a TV de Brinquedo, quando ele fala lá com o Gibi Eletrônico. Tá ali no Jackson quando ele consegue renunciar ao cargo de funcionário público, que bem ou mal é um cargo, pra fazer o que a gente faz aqui e gosta, curte e vive assim. São exemplos, olha o Renan, a galera dele de teatro. O cara dá cursos desde gurizinho fazendo umas histórias maneiras, de discussão, de reflexão. É uma escala diferente, cada um dos que estão aqui, cada professor da escola que tem essa afinidade, que consegue trazer algo diferente, que consegue aturar a gente, daí que não é tão simples. Cada agente financiador que consegue aturar os conceitos, as discussões, os formatos que são muito difíceis e nem sempre a gente consegue estar nesse enquadramento. Então quando a gente consegue ver gente que não são agentes como nós, mas que de alguma

forma nos apóiam, aí também isso é um exemplo de paz. Daquela paz não comodista, que tenciona, que provoca, que reflete”, Marcos do Ponto de Cultura na Quebrada.

“Eu acho também que a gente tendo atitudes de paz, já é muita coisa, eu acho que tratar o outro como ele gostaria de ser tratado, buscar o teu sorriso no sorriso do outro é uma coisa que já ajuda mesmo se tu não pode fazer muito, já é muito. Eu acho que grandes agentes de paz são essas crianças que tão aqui ouvindo, falando, participando, tão aqui em vez de estar sei lá fazendo qualquer outra coisa. Isso já é muita coisa”, Aline também do Ponto na Quebrada.

“Uma coisa que a gente acredita muito que é educar pelo exemplo. A postura da gente, onde a gente vive, isso contribui. Pra ter no que se espelhar. A maioria dos caras que tem passagem pelo rap, pelo Hip Hop , teve contato com o crime, com violência, ou com droga com todo esse tipo de coisa. E a gente que consegue se esquivar e consegue manter a linha de frente, pra os moleques que tão crescendo, ter você como exemplo, como DJ, raper ou b-boy, isso já é uma grande ajuda. Porque tudo que num presta tá aí. Na comunidade o que a gente vê é essa violência absurda que a gente tá vivendo. As pessoas que ainda sobrevivem dentro da periferia, pra mim já são um grande exemplo de paz. A própria pessoa, a própria conduta” diz Luis, DJ da DF-Zulu, em Roda no Ponto de Cultura Atitude Jovem.

“Revolucionários como Martin Luther King, Gandhi e outros, que “fizeram história e os mais jovens precisam conhecer”, Beto do Ponto Atitude Jovem.

“Referências de paz são meus Pais, que pra mim, sinceramente, são dois guerreiros. Porque aturar eu, minha irmã e meu irmão haja saco. E como está hoje em dia, muitas famílias não têm condições e eles fazem tudo pela gente”, Karem do Ponto de Cultura Arte no Dique.

“Eu mesmo sou uma referência de paz porque lá onde moro (Vila São José) a gente tá sempre se juntando ao pessoal pra uma atividade. Articulo as crianças do meu bairro para as festas comemorativas, eventos de

REFERÊNCIAS DE PAZ

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arte. Eu posso me considerar, e o pessoal, um exemplo de Paz!” Rafael do Ponto de Cultura Arte no Dique.

“Todos nós aqui somos referências de paz! Aqui vejo pessoas com atitude de paz! Uns mais agitados e outros de paz, diferente das pessoas que eu vivo que são de briga e agitadas demais” , Bruno do Ponto de Cultura Arte no Dique.

“Eu sou uma referência de paz. Eu era funcionário público, não sou mais (risos). Hoje dou aulas de grafite, acredito e gostaria que muitos acreditassem como eu, que nós somos capazes, pela atitude, de transformar o mundo. Tento fazer do meu jeito. Tentar plantar uma semente pra tentar fazer com que a coisa mude” Jackson do Ponto de Cultura Pau e Lata.

| João Signorelli interpreta Gandhi, em Sessão de Diálogo do Pontão |

| Diferentes pontos de vista sobre paz registrados no caderno criativo durante as Rodas |

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Destacamos o episódio contado por Robertinho, mestre da Zabumba da Comunidade do Remanso por este ser um exemplo de resolução pacífica e coletiva de conflito, de aplicação do que chamamos de justiça restaurativa. A justiça restaurativa constitui mais um instrumento de busca de soluções com a intenção de ultrapassar as práticas meramente punitivas, com foco na reparação de danos causados a alguém e/ou a alguma comunidade. A ideia é resolver problemas de forma colaborativa, favorecendo com que os danos sejam reparados e que o transgressor tenha a oportunidade de demonstrar mudanças de atitude e comportamento. Os processos de conciliação geralmente são realizados em mesas-redondas, círculos e/ou conferências onde as partes interessadas podem expressar seus sentimentos e pensamentos em relação ao ocorrido, criando condições para que consigam estabelecer um consenso, sempre com o intuito de contemplar as necessidades de todos os envolvidos e afirmar o papel vital da participação da comunidade.

“Sempre gostei muito de apreciar o pessoal mais velho cantando, brincando, sambando. Meu pai sempre me carregava pra festa e eu ficava lá sempre caladinho. Fui crescendo, crescendo e fui aprendendo algumas coisas. Crescendo e aprendendo o estilo do pessoal. Cresci e me transformei em homem. Quando eu estava com 18 anos meu pai faleceu e fui embora pras Minas Gerais trabalhar no garimpo.

Quando eu retornei de lá pra cá em 1987, tinha um velho aqui que se chamava Jason. Ele gostava muito de tomar uma e eu também. Aprendi a beber cachaça com meu paim, com ele me ensinando os limites. Naquele tempo o pessoal tinha muito respeito ao outro e se alguém fazia coisa errada era chamado e reunia todo mundo pra chamar atenção. Aí eu cheguei, né? Todo empolgado, cheio de dinheiro no bolso e chamei uma galera dos amigos e comecei a farrear. Daí esse velho, o Jason, tinha trazido um peixe grande assim do rio, e eu com uma vontade de comer aquele peixe. Mais de ano sem voltar pra comunidade! Perguntei a ele: ‘Jason você me vende essa traíra?’

Ele falou – ‘Não vendo não’. ‘Então me dê um pedaço.’ Ele não quis dar. ‘Tá bom então quando você sair vou roubar a tua traíra’, eu disse pra ele. E fiz na malandragem... peguei o peixe do Jason, chamei um amigo e como a casa num tinha enchimento, era só de taipas falei pra ele ficar de olho que eu ia puxar o peixe. Abri a casa e ia pegar o peixe. Se vier alguém você assobia, eu disse. Mas antes dele assobiar a filha do véio, que já tava de olho em mim, porque ela viu eu falando que queria comprar o peixe, mas o velho não queria me vender. Aí nisso, quando eu ia entrando, a mulher vinha, e percebeu que eu ia comer o peixe. Daí ela pegou e me escorraçou da casa.

Depois quando ela saiu, eu ‘vápt’, peguei o peixe. Levei pra casa de um colega chamado Pachérro (risadas), mas aí eu não sabia o que ia acontecer depois. A filha do velho falou com o fundador da comunidade. Nesse tempo era Manézinho, presidente da associação. Em poucos minutos tocaram a uma reunião. Reuniram o pessoal todinho e foram me chamar. Quando o fiscal veio me chamar pra reunião eu falei que tava com dor de ouvido e ele falou: ‘você vai com dor de ouvido assim mesmo’ e eu: ‘não vou não!’.Quando fui pra reunião - depois de muita insistência – todo mundo tava me esperando. Se eu não fosse eles amanheceriam o dia lá.

Quando cheguei, o que foi de pai, mãe e sobrinho, tio, todo mundo da comunidade! Formou aquele grupo de gente e aí agora cacete na minha cabeça, cacete na minha cabeça... (risadas) – mas brincaram comigo até de madrugada! Quer dizer isso pra mim foi uma lição né? Porque a comunidade reunia pra chamar atenção de quem errasse. E se ele não atendesse era transportado da comunidade pra fora. Qualquer pessoa era colocada pra fora. E por isso eu agradeço aos meus antepassados. Saber viver e saber um pouco mais do estilo deles.

Meus filhos hoje se quiserem fazer alguma coisa de errado tem que fazer fora de mim, porque junto de mim não faz. E mesmo se eu saber de alguma coisa eu tenho que chamar

COMUNIDADE E RECONCILIAÇÃOJUSTIÇA RESTAURATIVA

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a atenção. E todas essas crianças aqui na minha cara. Mas não é porque eu sou feio ou sou ruim não! É que acompanhei o passado do meu povo, dos meus avós e meus tios, certo?”

Robertinho conta essa história para as crianças da escola da comunidade do Remanso, com graça, ginga e consciência, afirma que a vida em comunidade e o conselho dos mais velhos traz sabedoria*.

| Ponto de Cultura Na Quebrada, comunidade de Remanso, Porto Alegre - RS |

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6. Tecnologias Sociais de Convivência?

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Consideramos aqui tecnologia sociocultural todo produto, técnica, método ou ação transformadora para potencializar a criação, comunicação, a formação, a participação da coletividade e a decisão sobre fazeres culturais, que busquem lidar com necessidades socioculturais, apropriações culturais criativas e o impacto sobre as comunidades e territórios. As tecnologias socioculturais podem nascer em vários meios ou segmentos: nas ruas, nas comunidades, nos meios acadêmicos e científicos, a partir de saberes eruditos e/ou populares, desde que sirvam para a preservação e a defesa do patrimônio material e imaterial de uma dada comunidade. É uma grande inovação para o desenvolvimento, onde considerando a participação coletiva no processo de organização, desenvolvimento e implementação, procuram-se soluções para os mais diversos problemas sociais e a disseminação de conhecimentos. As tecnologias são multiplicáveis, o que proporciona o desenvolvimento social em escala. Geralmente a simplicidade e a criatividade coletiva a partir de elementos da diversidade e dos saberes locais são elementos formadores das tecnologias sociais. Desta forma, são sempre tecnologias de aprendizagem e convivência.

As pesquisas sobre a paz revelam as múltiplas faces da violência, mas também apontam para a construção coletiva de novos modos de nos relacionarmos e estabelecermos diálogos. Nas Rodas de Convivência, os grupos, mesmo auscultados em Pontos diferentes do país destacaram demandas e desafios comuns que encontram para exercer todas as potencialidades que vislumbram através de suas ações culturais, artísticas e educativas nos Pontos de Cultura, dentre eles destacamos: participação, empoderamento, sustentabilidade, empoderamento criativo dos espaços públicos e equipamentos culturais, o direito à comunicação e o desejo de

fortalecimento de redes através de intercâmbios entre juventudes e, naturalmente, com outros atores sociais.

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Roda no Ponto de Cultura Atitude Jovem, Ceilândia, Distrito Federal. Eis que uma polêmica surge no grupo:

Antônio: Eu nasci aqui então eu falo isso com propriedade mesmo. Passar pelo centro da Ceilândia e ver a caixa d’água pintada de verde, que é a cor do governador daqui. A caixa d’água não é dele. A Ceilândia não é dele. Não foram os parentes dele que fizeram a caixa d’água. Então todo governo que chegar vai pintar. De verde, de amarelo, de rosa. Aqui é tipo o curral eleitoral desses caras.

Flaviana: Mas olha só! O que me revolta não é nem ele ter pintado de verde. O que me revolta é a falta de identidade com a cidade. O governador que pinta da cor que quer e ninguém faz nada. É isso que me deixa mais preocupada. O fato dele ter pintado de verde tudo bem, ele é o governador, ele pinta. Mas e a comunidade? E a cara da comunidade? Se ela deixa e fica calada é porque ela não se identifica com isso. Isso seria questão de trabalhar. De onde vem a Cultura de Paz? Como é que vou me identificar com a minha cidade? Se eu não me identifico com minha cidade então eu vou quebrar os orelhões, vou estragar as praças, não tô nem aí, não é meu.

Antônio: Não é porque ele é o governador que ele faz o que quer. Ele tem que ter consciência também. Onde fica a Ceilândia? É uma cidade importante! Não é ele chegar aqui e pintar a caixa d´água de verde, e sair por aí pintando tudo da cor dele. A sociedade, às vezes fica apática, votaram nele, né? É mais uma coisa que tá aí e continua assim.

Flávia: Todo mundo sabe o porquê da caixa d´água?

SILÊNCIO

Flávia: É a mesma caixa d´água que tem por exemplo na Paraíba, é igualzinha, só que acontece que a caixa d´água é o símbolo do ceilandês. Por que essa caixa d´água? É da época quando o pessoal que veio pra cá, carregava lata d´água na cabeça. Caminhão pipa é o símbolo da sobrevivência.

Sérgio: É um símbolo muito forte pras pessoas daqui, pra os moradores.

Flávia: Também é uma questão de se

movimentar. Atitude, envolvimento. Porque às vezes a gente diz ‘não faço nada’, acha que tem que ser megalomaníaco. ‘Ah eu num tô alí, não tô fazendo piquete em frente à administração, não coloquei vários pneus e queimei achando que ia ter uma pintura nova alí na caixa d´água’. Só a atitude de querer saber mais ou desenvolver acho massa. Isso já é uma atitude para a Cultura de Paz.

Nessa cena, onde jovens cidadãos se apresentam e participam, relatam e fazem acontecer em generosidade, poética e indicações de políticas de convivência aconteceu na Roda realizada no Ponto Atitude Jovem. Temos um país e um planeta em comum. A humanidade atingiu um ponto onde, apesar de todos os “progressos” e avanços das ciências e da tecnologia, tornou-se necessário pensarmos em novas estratégias de estímulo a participação, tornou-se necessário e urgente inventarmos novos modos de viver, sentir e organizarmos nossas sociedades. A cultura da omissão precisa ser rompida para que possamos dar lugar a cultura da participação, se quisermos viver num mundo sustentável onde todos tenhamos condições de desenvolver nossas potências e habilidades.

Pesquisas recentes promovidas por institutos especializados na produção de material a respeito dos dramas que afetam as juventudes brasileiras apontam a descrença na democracia representativa por parte considerável dos adolescentes e jovens. A ideia de participação está relacionada à possibilidade de constituição de um capital político que permita a uma sociedade evoluir no manejo de seus instrumentos democráticos, bem como propiciar que os diversos interesses conflitantes sejam trazidos à tona para que sejam debatidos em arena pública, o que aponta a necessidade de pesquisas sobre participação como processo, modos de socialização e exercício da cidadania.

Os pesquisadores Daniel Cara e Maitê Gauto, em artigo publicado como parte integrante da Pesquisa Juventudes: outros olhares sobre a diversidade, destacam que uma das marcas atuais no campo dos debates sobre políticas e juventude é o deslocamento de políticas para juventudes, ou seja, políticas que surgem a

PARTICIPAÇÃO E CULTURA AUTONOMIA E SUSTENTABILIDADE

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partir do Estado para a perspectiva de políticas de ou com juventudes, que seriam políticas específicas para grupos jovens e políticas que sejam decididas e formatadas com a participação dos jovens.

Em seu artigo, Daniel e Maitê citam Oliveira, Silva e Rodrigues, autores que enfatizam a importância dos jovens como produtores de cultura, reconhecendo ambiências sociais, políticas, econômicas e culturais que limitam tal potencialidade. Abordar a relação entre cultura e juventude exige perceber como os(as) jovens vivem essas juventudes: as vulnerabilidades e potencialidades contidas em suas condições de vida e a pluralidade de expressões culturais que emergem da experiência dos grupos juvenis espalhados por todo o país. Mas também é necessário observar os impedimentos reais e as possibilidades de promover a cidadania cultural, para que a fruição e a produção cultural deixem de ser privilégios de poucas pessoas. Dessa forma, a juventude deve ser reconhecida e valorizada mais do que como consumidora de bens culturais, mas também como produtora de cultura.

“Participação é processo e como tal pede envolvimento em cobrança social. Pede também investimentos em conhecer a maquinaria político-partidária, político- institucional. Quem sabe o que é um PPA, como se contingencia verbas, o que é uma LDO, como se distribui o orçamento, quanto do PIB se emprega em direitos sociais? Quanto representam as verbas para as políticas sociais no orçamento da União? Cobra-se participação do jovem, mas há muito pouco investimento em formação de um capital cultural que permita aos jovens acompanharem a parafernália do fazer política institucional formal e como mais eficientemente acompanhar o processo político”, concluem os autores. A conclusão

encontra eco no conteúdo expresso por jovens nas Rodas de Convivência.

Em dissertação de mestrado com o tema Cultura e Juventude – a formação dos jovens nos Pontos de Cultura, Luana Viluts destaca a necessidade de reforma dos mecanismos públicos de financiamento à cultura e a dificuldade de articulação intergovernamental. Toca na importância de desenvolvimento de ações com diversos atores sociais, múltiplas linguagens e propostas metodológicas e aponta a urgência de investimento em processos de conscientização das formas de organização do mundo social que oferecem elementos para que os jovens possam interferir no mundo público. A elite influência nas políticas públicas, e ela que muda, como romper com isso? Temos que tentar outras possibilidades”, diz Vanessa do Ponto de Cultura Tainã.

A resposta à pergunta de Vanessa só pode se dar no coletivo, mas isso não significa que a população jovem não esteja engajada na constituição de modos menos burocráticos de intervenção e participação na tomada de decisões que implicam na efetivação de políticas públicas. “A questão da burocracia, né? Os processos para que os recursos saiam são muito lentos e muito trabalhosos. A gente tem aqui muita força, muita vontade e muito trabalho. Estamos buscando e também tentando ajudá-los a fazer o trabalho deles, a gente tá aqui lutando e trabalhando”, conta Eneile do Ponto de Cultura Grão de Luz e Griô. A dificuldade que os Pontos de Cultura encontram para administrar os entraves burocráticos necessários para continuarem existindo foram destacados em todos os Pontos auscultados como um dos maiores desafios para a conquista da autonomia e sustentabilidade.

Os problemas vão desde dúvidas na hora de preencher e organizar informações para concorrerem a editais, passam pela ausência de experiência e assessoria adequada à prestação de contas e são refletidos na relação com representantes do poder público que fazem a ponte entre os Pontos e o Ministério da Cultura. Lillian, do projeto Griôs dá um exemplo que ilustra bem esse contexto. “Uma vez que um jovem do Grãos foi pela primeira vez numa reunião pública, foi com outras meninas representar o Grãos de Luz e Griô. Não só a gente como educador e coordenador, mas os jovens para conhecerem e se apropriarem. Eles voltaram embasbacados, com a boca | Mapa da convivência |

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aberta e deram um relato da reunião. Elas descreveram exatamente o que eles não sabiam fazer, e disseram: ‘eles não fizeram pauta, não sabiam fazer uma roda redonda, um não via o outro, cada um que falava começavam a gritar, uma polêmica horrível, não chegaram a lugar nenhum’. E é uma coisa que a gente não quer fazer, a gente quer fazer construção de política pública, mas chega um momento que se você não substituir certos papéis... infelizmente, porque o Programa Cultura Viva é lindo só que a gente tem que ficar se relacionando com esse tipo de coisa o tempo todo. Tem gente lá que tá segurando a peteca que é tipo herói da resistência. Mas a cultura que tem interna de trabalho é essa, é uma cultura nada de paz, de muita luta partidária, incompetência, falta de horário e um monte de coisas”.

A falta de organização adequada e a burocracia são obstáculos para a construção de uma relação mais ágil e próxima com o poder público, afetando o fazer cotidiano de modo negativo. “A gente vai lá, desenvolve um trabalho, despeja um turbilhão de coisas, troca, constrói juntos, então assim levanta, constrói junto lá e vem embora e fica um mês fora. Porque não tem uma pessoa lá que seja o estimulador e que dê continuidade, porque as pessoas que deveriam fazer isso acabam sendo atropeladas pelo turbilhão de coisas do cotidiano da instituição e acabam não desenvolvendo o que de fato tinham se comprometido a fazer. Por isso, porque eles têm outras coisas que consomem o tempo deles. Aí quando a gente chega lá acaba perdendo o tempo, retornando algo que foi iniciado no último encontro, pra daí desenvolver de fato a atividade que a gente foi planejada a fazer. Tudo que a gente planeja aqui tem que replanejar lá”, reclama Denisia do Pontão de Cultura da UFMG.

Mais uma vez, lembramos que no Brasil, temos o Estatuto da Criança e do Adolescente que não deixa muito claro o direito à participação, embora o texto legal cite de maneira explícita o direito de organização e participação em entidades estudantis (Art 53). No texto legal não existe um capítulo específico dedicado à essa questão. Contudo, podemos destacar o direito à liberdade e o direito à expressão como direitos que caminham lado a lado para a afirmação de projetos onde passa a ser possível a constituição de redes, a realização de atividades que intensificam as possibilidades de encontro, de reflexão, da criação de

pontos de identificação coletiva e da união de forças em torno de objetivos comuns. Pablo do Ponto de Cultura Atitude Jovem, utiliza o break como mote para fazer uma provocação em relação à participação: “E aí? Você já foi viciado? Você já usou drogas?’ E o cara nunca fez isso. O break não é só resgate de coisa ruim, na verdade, é uma expressão cultural que tem que ser mostrada. A preparação de um dançarino é a mesma que de um atleta. Não tem pra onde fugir e não tem incentivo algum. E é isso aqui tem que mudar, tem que ser desde nós aqui que praticamos até o alto escalão dentro do Planalto”.

O ECA foi um passo importante e dele nasceram outras estratégias e propostas que se encontram em curso e que se colocam constantemente como desafio a todos os cidadãos e setores sociais, o Plano Nacional de Juventude é um deles. Nos últimos anos, houve conquistas significativas provocadas especialmente pela mobilização de grupos de jovens, dentre elas a Secretaria Nacional de Juventude e Conselho Nacional de Juventude, ambos favorecem articulações em âmbito nacional, estadual e municipal além de contar com representação juvenil com representação de jovens.A proposta central do Plano é oferecer às juventudes brasileiras marcos legais que possam definir direitos e consolidar a temática das Juventudes que ainda prescinde de textos legais e de acolhimento no texto constitucional. O processo de construção do Plano Nacional de Juventude, assim como o Plano Nacional de Cultura, se deu de modo participativo e envolveu a realização de trinta e três audiências públicas e em encontros regionais que contaram com cerca de 5.200 participantes, dentre eles especialistas, gestores públicos, representantes da sociedade civil e jovens.

O Plano tem por principais objetivos: incorporar integralmente os jovens ao desenvolvimento do país, por meio de uma política nacional de juventude voltada aos aspectos humanos, sociais, culturais, educacionais, econômicos, desportivos, religiosos e familiares; tornar as políticas públicas de juventude responsabilidade do Estado e não de governos, efetivando-as em todos os níveis institucionais; articular os diversos atores da sociedade.

Governo, organizações não-governamentais, jovens e legisladores para construir políticas públicas integrais de juventude; construir espaços de diálogo e convivência plural,

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tolerantes e equitativos, entre diferentes representações juvenis; criar políticas universalistas, que tratem do jovem como pessoa e membro da coletividade, com todas as singularidades que se entrelaçam; partir dos códigos juvenis para a formulação de políticas púbicas; garantir os direitos da juventude considerando gênero, raça e etnia nas mais diversas áreas: educação, ciência e tecnologia, cultura, desporto, lazer, participação política, trabalho e renda, saúde, meio ambiente, terra, agricultura familiar, entre outras, levando-se em conta a transversalidade dessas políticas de maneira articulada; apontar diretrizes e metas para que o jovem possa ser o ator principal em todas as etapas de elaboração as ações setoriais e intersetoriais. Procure informar-se e participe.

Em relação à Cultura, o Plano Nacional de Juventude apresenta como metas: a garantia da participação juvenil na elaboração de políticas públicas; garantia de recursos financeiros, nos orçamentos federais, estaduais e municipais para o fomento de projetos culturais destinados aos jovens; prioridade aos projetos culturais produzidos por jovens; trabalhar a arte como propulsora da criação social; garantia a concessão de meia entrada em eventos de natureza artístico cultural, de entretenimento e lazer, em todo o território nacional, para todos os jovens entre quinze e vinte e nove anos; promover o acesso à políticas culturais que compreendam inclusive um programa de formação de platéia e a criação de espaços públicos para a produção cultural dos jovens, criando espaços para a inclusão de todos os segmentos juvenis nesses projetos; criar espaços para a manifestação cultural e artística da juventude com estrutura para eventos, teatro, oficinas, palestras, dança, artesanato e espetáculos em geral; e destinar 3% do PIB (Produto Interno Bruto) à Cultura. Para saber mais sobre o Plano e outras informações importantes sobre Políticas Públicas de Juventude, acesse: http://www.juventude.gov.br

Voltando ao papel estratégico de envolver jovens em produções culturais, Bruno, do Ponto Pau e Lata acredita na revolução pela arte e afirma a necessidade de participação e de empoderamento como fatores capazes de contribuir para transformações sociais: “aqui foi muito incentivado o protagonismo mesmo da galera fazer, mas tudo isso tá nos bastidores do que a gente tá dizendo e fazendo aqui. Uma coisa que a gente poderia

deliberar é o aumento desse dinheiro do PIB destinado à Cultura. Uma coisa que a gente sempre deve estar pensando e construindo não é se prender a um só pensamento. Hoje estou aprendendo que a revolução pela arte é possível e essa Cultura de Paz traz muito isso, a arte é o meio, é o caminho da revolução. E já que a gente tem o apoio político do partido que teoricamente é do povo, então meu irmão é a hora da gente fazer incidência política mesmo. Quero ressaltar a importância da gente não sair dessa trilha, a gente sabe fazer, a gente faz e depois com esse apoio político a gente se organiza pra andar com as próprias pernas”.

Há centenas de grupos de jovens organizados e atuantes investindo tempo, energia e sonhos em projetos que vão na contra-mão da letargia. “Aqui a gente não é pouca coisa não, a gente com pouco dinheiro faz tanto. A gente tem que ser visto. A gente não nasce sabendo, mas também não vai morrer ignorante. Precisamos de oportunidade. Juntar tudo isso. Parcerias” provoca Rafael do Ponto de Cultura Arte no Dique.

Apresenta-se a tarefa de construirmos uma agenda comum para lidarmos com demandas já conhecidas como moradia, saúde, educação, cultura, etc, respeitando as diferenças de contexto e levando em consideração a importância o intercâmbio entre as juventudes brasileiras nos processos de participação e tomada de decisões que as afetam. “Continuidade para as coisas que começamos”, reivindica Débora do Ponto de Cultura Me Vê TV. Em relação a sustentabilidade, Leandro do mesmo Ponto conta: “tinha uma faixa na subida do morro no dia da inauguração do Maquinho, só tem sentido de existir com a participação de vocês. Existe uma tendência que não é legal da gente achar que tudo tem que cair do céu, não é assim”.

Boa parte da população não conhece os mecanismos de participação. De fato os mecanismos de participação são reduzidos. Atualmente existem três formas de intervenção direta da população. São elas: o voto, a realização de plebiscitos e ação popular. “A gente se depara com o mundo que não tá legal, nós estamos em roda para discutir o mundo que percebemos que não está legal, não tá leve, mundo tá muito triste, muito chato, muito sufocante, muito trincado, e a gente acaba tendo a opção de escolher caminhos. A minha opção foi a liderança político, tanto cultural como partidária, e

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sempre busco superar o tempo, para superar a desigualdade, realizando ações concretas”, Robson do Ponto de Cultura Tainã.

A ideia é fazer com que os canais de participação possam ser geridos pela própria população, que sejam interativos com as políticas publicas e capazes de se multiplicar espontaneamente a partir das dinâmicas e realidades locais, contribuindo de maneira significativa com experiências concretas na constituição de políticas sociais e ambientais. Jovens do Ponto de Cultura CEDECA relembram a música do Rappa, Minha Alma: “Qual a paz que eu não quero conservar pra tentar ser feliz?” É isso aí, tem muita gente pregando a paz, mas tem que estar conectado com a realidade, com a cultura local”, destacam.

A arte e a cultura local aparecem nas Rodas de Convivência como elementos essenciais para transformar a relação das pessoas com o mundo, ampliando a participação e estimulando o exercício da cidadania. A produção artística e cultural fazem com que todos possam ocupar um lugar criativo, crítico e corresponsável: “Tentam nos passar que a verdadeira cultura é a erudita, dos séculos passados. Sempre tentam excluir e desvalorizar a cultura popular. O Brasil sempre teve cultura própria produzida pelos brasileiros. Não é correto dizer que o povo não tem cultura. Todo mundo tem cultura e pode criar cultura. Não há algo pré-estabelecido como tentam nos ensinar”, diz Ivan do grupo de teatro do Ponto de Cultura Pombas Urbanas.

As linguagens artísticas são vistas pela maioria dos jovens auscultados como um dos caminhos para modificar as relações nas próprias comunidades nas quais estão inseridos: “O que era o Pombas quando chegou aqui? Tivemos que começar com a “Terra” (referindo-se a comunidade local), afofar, adubar. Tivemos que preparar a comunidade para receber o Pombas. Só depois de muito regar começamos ver os frutos. Preparar a terra, semear, regar, adubar, podar, crescer, dar frutos!”, acredita jovem durante Roda no mesmo Ponto.

Persistência é uma palavra que faz parte do vocabulário dos atores sociais engajados em projetos realizados por Pontos de Cultura. “Da mesma forma que posso fazer uma arte positiva, pacífica, posso também querer denunciar algo. Por exemplo, esse lance meio underground , essa é a nossa raiz, o diferente pode e deve ser aceito, não apenas engolido com vistas grossas. No ato de fazer, denuncia

sim, como uma forma de resistência”, afirma Eduardo do Ponto de Cultura Pombas Urbanas.

Denúncia que se transforma em ação, que resiste exercendo a criatividade, que vira potência: “quem nunca viu alguma planta brotar no cimento? Às vezes cai a semente ali numa fresta no meio do cimento, e a planta nasce, resistindo ao tempo. Temos que resistir (referindo-se aos Pontos de Cultura), vencer as barreiras. Resistir!”, encoraja Fábio, também do Pombas.

Persistência que coloca em processo ações teoricamente fadadas a serem apenas ações pontuais pela ausência de condições de garantia de continuidade e sustentabilidade. “Vinte anos se passaram. Éramos dois, hoje somos sete que somam a um Núcleo de Pesquisa sobre a Máscara Teatral, a um Ponto de Cultura desenvolvido com atores surdos, construindo ‘Palavras Visíveis’. Quem sabe exercitando a generosidade, caminhando com fé para a medida do “impossível”, colocando a arte a serviço da vida, o artista possa um dia “salvar o sonho”, compartilha a utopia Venicio, fundador do Grupo Moitará, atual Ponto de Cultura.

Arte que persiste e leva além da simples resistência, transforma relações e evidencia papéis, de modo lúdico atuando em situações que precisam ser reinventadas: “ao fazer teatro, temos como refletir sobre o que acontece em nossa comunidade. Quando a polícia para a gente na rua, podemos refletir sobre isso, podemos dialogar com isso, através da atividade teatral”, acredita Natali, da equipe do Pombas Urbanas.

O poder de provocar reflexões que as linguagens artísticas demonstram possuir também é percebido pelos jovens e nesse sentido é compreendido como uma das formas de atuação política, um bom exemplo disso é o movimento hip-hop: “cada um tem uma participação, outro elemento que a gente considera que é a militância. A consciência é uma outra vertente que é quem luta pelos movimentos sociais. Eu sou militante, sou rapper, então eu tenho uma visão diferente, cada um tem uma concepção de movimento. Eu sou rapper porque me dá liberdade de cantar e me expressar através da música. O Rap é uma música para refletir”, afirma Mana Josy do Ponto de Cultura Argonautas Ambientalistas da Amazônia.

Teatro, música, capoeira, dança, artes plásticas, artes gráficas, literatura, cinema,

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cirandas, poesia, expressões e linguagens que se interconectam e complementam: “ação e pensamento. A gente adapta e digere uma filosofia, uma maneira de vida, na construção da autonomia e identidade”, diz Evandro do Ponto de Cultura Argonautas.

A construção da identidade se dá no coletivo, em comunidade, os processos de descoberta e valorização das singularidades são potencializados a partir do contato com o outro, com as diferenças: “pra se ter convivência tem que se ter coletividade, tanto no grupo, como na comunidade. Pessoas lutando por algo em comum”, pensa Antônio do Ponto de Cultura Atitude Jovem.

O empoderamento de jovens e da comunidade em geral através da elaboração de propostas simples, pensando na dimensão local mais próxima e imediata, é detectado como uma das possibilidades de ação: “aqui a gente tem a Casa do Cantador, tem repentistas aqui. Acontece tudo muito fechado, não sei se todo mundo conhece, mas é uma cultura tão forte, tão intensa, que algumas cidades começaram a fazer isso agora aqui em DF. A cultura é uma coisa que dá muito certo. E não apenas iniciativa de organizações, mas sim, iniciativas pessoais, de associações de moradores assim, de entidades mais simples que tem a proposta de vivenciar, participar daquilo que ele tem como raiz”, propõe Sérgio do movimento Hip-Hop.

A vontade de conhecer modos de participação disponíveis pode ser um diferencial e ampliar os universos de referência e canais de diálogo: “eu tô sempre procurando ver qual é a porta que vamos entrar, o que vamos fazer hoje, o que podemos fazer pra melhorar. Estou sempre agindo desse modo. Semana passada mesmo fui pra uma reunião onde procurei saber coisas que até hoje eu ainda não tinha conhecimento”, afirma Ceci, artesã da Rede de Mulheres de Olinda.

O primeiro desafio é o rompimento com uma certa passividade: “são poucas as falas que mostram uma nova de forma de viver, de se conectar com o próximo. Devemos romper com uma legalidade formada. Estamos buscando isso. Hoje, por exemplo, o pessoal da UEE e do CUCA, fizemos uma ”manifestação” para a meia passagem do ônibus de uma forma diferente. Colocamos uma banda de Carnaval, um grupo de malabares, de circo, entramos na sala de aula. Algo de novo, alguma coisa além precisa acontecer. Buscamos uma forma

nova”, conta Daniel do Ponto de Cultura Tá na Rua e CUCA da UNE.

A atuação e a articulação política entre as Comissões de Pontos de Cultura abrem possibilidades de construção de novas maneiras de fazer política: “O que os Pontos estão fazendo, o que as comissões estão fazendo, é também se aproximar desse poder público, pois essa administração tem nos ouvido, mas até então os movimentos eram de pressão. Mesmo sem muito conseguir, agora temos conseguido ser, ao menos, ouvidos. E aí é fazer com que as pessoas tomem consciência, na própria comunidade, que elas têm que dizer o que elas querem. Por exemplo, tem vereador na minha cidade que foi cassado porque foi denunciado. Uma pessoa só não resolve, mas se for um batalhão a coisa muda”, provoca Lucilene do Ponto OCA.

Independente da escolha das formas de participação, uma coisa é certa, a transformação das atuais configurações sociais que interferem de maneira direta e indireta nas produções culturais que envolvem jovens de todas as regiões do país, só pode se dar de maneira coletiva:

“o importante é chegar e jogar o jogo, sabendo os limites de cada um. Saber construir o negócio em movimento mesmo. Vai entrando coisas boas e as ruins a gente rejeita. Em que medida a gente não pode pegar isso e dar uma implodida nesse negócio de centro de poder localizado? Por que tem que ter uma pessoa que referenda? Olha, por que não podemos falar vamos fazer junto? Não é só você, é coletivo”, afirma Aline do Ponto de Cultura Tá na Rua. Daí a importância da articulação e fortalecimentos entre os jovens dos Pontos de Cultura, assunto que trataremos mais adiante.

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“Tradicionalmente há 10 anos, todo primeiro sábado do mês, o Ponto de Cultura Coco de Umbigada realiza a Sambada de Coco do Guadalupe. É uma brincadeira popular, vem do Terreiro da Umbigada e é compartilhada com a comunidade em Olinda. Fazemos a difusão e memória do Coco. Um encontro de ‘coquistas’, é uma proposta de arte-educação que gera muita auto-estima com esta brincadeira e tem ação de continuidade. Trazemos a brincadeira como herança ancestral e também o pertencimento com a Matriz Africana e com a Jurema Sagrada. Há 7 anos o Cine-Clube Macaíba promove exibições e discussões focadas na Cultura Popular e na Matriz Africana. Temos a Ação Griô, que leva a Escolas e a Universidades a valorização e Troca de Saberes com Iyalorixás e Mestres da Cultura Popular do Coco.

Na última Sambada um policial de nome Joabe Porfírio, conhecido como Abinho, chegou completamente embriagado e perguntou pela polícia, pois havia um casal namorando no muro de sua casa. Falei pra ele que infelizmente a polícia passa, mas não fica. Neste sábado da Sambada inclusive nem passou, pois se concentrou nas ruas dos casarões da Cidade Alta no projeto Arte em toda parte. O Coco é na periferia do sítio histórico, e aí talvez não seja área de interesse, proteger os cidadãos desta cidade. Ele foi embora, em seguida voltou, dando porrada em quem encontra e atirando várias vezes a esmo, veio em minha direção me chamando de palavras de baixo calão, falando que essa macumba tem que acabar. Entrou na nossa tenda, quebrando seis microfones e agredindo todo mundo, inclusive a mim, me dando um murro na mão onde estava o microfone que eu falava.

Nesta mesma hora fui tomada de indignação e peguei o único microfone que não havia quebrado e coloquei em alto e bom som que polícia é para quem precisa de polícia, e o que estávamos presenciando era um abuso de autoridade, e que uma pessoa com aquela reação não pode em momento algum portar uma arma. Neste momento as pessoas me puxam pra dentro do Ponto para que as balas não me acerteM, pois ele estava

decidido a me acertar e acabar de fato com a brincadeira do coco. Houve muito tumulto e revolta por parte da comunidade que apóia e precisa da Sambada para comercializar seus produtos e garantir sustento no dia para suas famílias.

Na ocasião foi passado um abaixo assinado de início com 280 assinaturas entre moradores, ambulantes e ‘mestres coquistas’ para que as providências fossem tomadas e o coco tenha continuidade. Este abaixo-assinado continua circulando na comunidade. Chamamos a polícia e quando chegaram varias guarnições, o policial que, momentos antes estava atirando a esmo, se evadiu do local para não ser diligenciado. Na realidade nestes dez anos, nunca passamos por isso, até porque nesta nossa brincadeira, utilizamos a comunicação para trazer este pertencimento com a cultura popular.

O que avaliamos é que de fato tem uma polícia que em tese existe para proteger os cidadãos e uma outra que agride, mata e extermina as pessoas porque tem em seu poder de uma arma policial aliada ao sentimento de impunidade. Este policial, assim como vários de outras periferias, tem um histórico de violência na comunidade e continua portando uma arma.

Tomamos as providências cabíveis, fomos à delegacia de polícia do Varadouro em Olinda e registramos a queixa, fomos também na Ouvidoria de polícia e no Ministério Público, afinal nossa comunidade foi agredida.

Até quando nós, que fazemos as brincadeiras populares nesse país, vamos conviver com a intolerância da polícia, pois já não é mais proibido por lei fazer louvação aos Orixás ou sambar o coco. Ou será que fazer coco agora é crime?”

Ana Cláudia Vasconcelos (Coordenadora de Comunicação e Cultura do Ponto de Cultura Coco de Umbigada)

O depoimento acima ilustra o desejo, comum a muitos grupos que dão vida aos Pontos de Cultura, de exercer o direito ao uso do espaço público como um espaço de encontro e convivência, o que reflete a conexão com desejos de outros atores sociais. Ana Cláudia

EMPODERAMENTO CRIATIVOESPAÇOS PÚBLICOS E EQUIPAMENTOS CULTURAIS

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informa, esclarece, convoca a comunidade às ações e manifestações que o Ponto de Cultura, através da Sambada, imprimem na relação sociedade civil e poder público. A atitude de confrontar poderes e legitimar espaços comunitários, lúdicos e de criação coletiva mobiliza forças para o empoderamento e mobilidade territorial.

Nas discussões entre membros de movimentos culturais e sociais sobre as relações entre o espaço urbano e a construção da subjetividade, destaca-se como desafio: a formulação de estratégias de ocupação dos espaços públicos e de afirmação da cidadania tendo como objetivos específicos o desenvolvimento da reflexão crítica partindo da relação homem/mundo; possibilitando a superação da subjetividade passiva pela proposta de participação crescente, responsável e livre; construindo condições para que se realize um processo de equilíbrio da pessoa na sociedade atual pela ação transformadora no seu contexto.

Desde o primeiro Fórum Social Mundial, um conjunto de movimentos populares, organizações não governamentais, associação de profissionais, fóruns e redes nacionais e internacionais da sociedade civil comprometidas com as lutas sociais por cidades mais justas, democráticas, humanas e sustentáveis vem construindo uma carta mundial do direito à cidade que estabeleça os compromissos e medidas que devem ser assumidos por toda sociedade civil, pelos governos locais e nacionais e pelos organismos internacionais para que todas as pessoas vivam com dignidade em nossas cidades. A Carta Mundial do Direito à Cidade é um instrumento dirigido a contribuir com as lutas urbanas e com o processo de reconhecimento no sistema internacional dos direitos humanos do direito à cidade.

O direito à cidade se define como o usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios da sustentabilidade e da justiça social. Direito coletivo dos habitantes das cidades com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito a um padrão onde as condições básicas de existência e de desenvolvimento sejam garantidas.

O documento defende que todas as pessoas devem ter o direito a uma cidade sem discriminação de gênero, idade, raça, etnia e orientação política e religiosa, preservando a memória e a identidade cultural. O Direito à

Cidade é definido como o usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia e justiça social; é um direito que confere legitimidade à ação e organização, baseado em seus usos e costumes. O Direito à Cidade é interdependente a todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, concebidos integralmente e inclui os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais. Inclui também o direito à liberdade de reunião e organização, o respeito às minorias e à pluralidade ética, racial, sexual e cultural; o respeito aos imigrantes e a garantia da preservação e herança histórica e cultural.

O empoderamento criativo do espaço público, o sentimento de pertença a uma comunidade que partilha necessidades, aspirações e vocação de futuro com seus integrantes gera condições para criar, se empoderar e gerenciar todas as iniciativas que atendam o bem comum. A arte de rua aparece nas Rodas como uma estratégia de democratização à cultura: “queremos mostrar uma arte possível, você passa no ônibus e tem acesso à arte de rua, está ao alcance de todos, traz valor e comunica o que sentimos e esperamos”, pensa Tiago do grupo Ritual.

Arte como intervenção no trânsito apático pelas cidades: “a arte de rua é uma forma de comunicação, expressar emoções, sentimentos, intervenção”, diz Juliano – movimento humanista. Os jovens também percebem o potencial que a arte de rua têm para provocar reflexões além de propor uma nova relação com os espaços públicos: “a arte de rua abre espaço para movimentos de discussões culturais, interação de jovens, conviver, expressar, trocar”, afirma Cadu do Ponto de Cultura Cedeca Interlagos.

A ampliação do acesso à Cultura é uma das demandas: “abrir outras opções, outros espaços também que sejam perto de casa, que não tenha que pagar, entendeu? Porque muitos lugares o pessoal não pode ir porque ou não tem vaga ou não tem dinheiro. Outros espaços, é isso que o pessoal quer, participar, conhecer”, acrescenta Heliane do Ponto Arte no Dique.

Dados do IBGE demonstram a desigualdade de distribuição de equipamentos culturais pelos municípios brasileiros. As regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste apresentam índices acima da média nacional, seguidos pelas regiões Nordeste e Norte. A má distribuição

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dos equipamentos muitas vezes se soma à administração inadequada dos espaços disponíveis: “o jovem tem que se interessar e correr atrás, participar com a cultura e a arte. Tem espaços mas não são bem aproveitados, opções de museus, lazer e outros; na biblioteca pública os livros ficam parados, não tem oficinas, cursos. Falta divulgação. Muita gente de fora vem visitar a gente e nós nunca saímos daqui”, reclama Monique do Ponto de Cultura Me Vê na TV também chamando atenção para a questão do intercâmbio, tema que trataremos em outro subtítulo.

Através da participação, transforma-se a relação que os jovens têm tanto com a cidade quanto em relação ao fazer político: “Hoje eu percebi que a gente tem muito pouca oportunidade de indagar, questionar, mudar o que tá acontecendo, mas falta muita participação. A gente no Atitude começou sem saber o que fazer. Acho que a gente tem que ter mais participação, ocupar o que é nosso”, pensa Sérgio Luiz do Ponto de Cultura Atitude Jovem.

Participação e empoderamento criativo dos espaços públicos são temas que se confundem. Os Pontos de Cultura estimulam atitudes que favorecem a corresponsabilidade entre diversos atores sociais: “Nós do Pontão de Cultura da UFMG acreditamos que a inclusão social de grupos minoritários emerge no cenário nacional como uma demanda urgente. Neste sentido, o Centro de Convergência de Novas Mídias tem como proposta estabelecer diálogos consistentes com temas e questões pertinentes para o atual cenário brasileiro, na direção de elaborar metodologias de ação e intervenção que promovam o exercício efetivo da cidadania nas comunidades e populações vinculadas e/ou parceiras do projeto. Assim, propostas como a apropriação efetiva dos espaços públicos, a promoção de acesso às tecnologias de informação de comunicação de forma crítica e participativa e, a partir destas ações, a ‘visibilização’ de produções culturais antes ‘invisibilizadas’ no tecido social são aspectos estudados e desenvolvidos pelo Pontão na direção de promover a revalorização cultural e a inclusão cidadã de populações brasileiras silenciadas”, conta Denisia Martins, coordenadora do Pontão.

Cidade como espaço de encontro e sociabilidade. Ocupação de equipamentos culturais e empoderamento criativo dos espaços públicos, novas alternativas para democratizar

e ampliar o acesso à cultura, a necessidade de parcerias e desenvolvimento de estratégias para a conquista da sustentabilidade dos projetos colocados em curso por coletivos culturais engajados em produções culturais e a possibilidade de multiplicar trabalhos de desenvolvimento também foram temas levantados em todos os Pontos de Cultura auscultados.

Renan, participante da Roda no Ponto de Cultura da Restinga em Porto Alegre, deu um depoimento que sintetiza problemáticas que compõem esse quebra-cabeças: “O que falta mesmo são os espaços de referência. Eu faço parte de um grupo que é o ‘Ói Nóis Aqui Traveiz’, e a gente tá com oficinas espalhadas por Porto Alegre, na região metropolitana. Elas estão acontecendo em espaços da comunidade. Eu poderia vir dar uma oficina na Restinga, né? Nessa escola por exemplo, mas não funcionaria. Por que? As pessoas que estão trabalhando comigo são os cidadãos comuns, que tem seu trabalho, que tem sua atividade que dá sua sustentabilidade e que o teatro seria um outro canal para ele dialogar com o meio que está inserido. O pessoal trabalha no centro, sai do serviço sete horas, vai chegar na Restinga oito horas da noite. Aí na escola não dá para avançar um pouco mais, porque a escola é até dez horas e tem guardinha que vai bater na porta. A oficina aconteceu no Centro comunitário, que deveria ter essa função de ser aberto pra comunidade, ou seja, Centro Comunitário da Restinga. Não tem, é só com uma função assistencialista quando poderia ser um espaço de potencializar. Com o avançar do tempo esses espaços vão cada vez mais se fechando. Hoje a gente ta realizando a oficina de teatro numa associação de moradores porque pra nós é interessante referenciar ele como um espaço de cultural local. Até porque ele fica numa área de conflitos no bairro. Conflito meio mascarado entre a Restinga Nova e Restinga

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Velha. Ou seja, o pessoal da Restinga Velha não vai até a Restinga Nova e vice-versa. Há problemas pra voltar pra casa por causa de tiros e violência e as pessoas acordam cedo no dia seguinte, tudo isso. A Restinga tem quase 150 mil habitantes, não tem um cinema, não tem uma sala de espetáculos, agora depois de muita batalha a gente tem o estúdio Multi Meios que mesmo assim, ainda tá travado nesses trâmites burocráticos que o governo nos impõe. É difícil assim esse diálogo, né? Hoje em dia a gente já consegue dialogar de outra forma, buscando outras parcerias, outras formas de poder. Sustentar esses projetos que a gente pode desenvolver. Não adianta vir uma pessoa que não conhece a nossa realidade e querer discutir a nossa realidade. A gente tem que vir, trabalhar, instrumentalizar a própria comunidade, agentes culturais aqui dentro pra multiplicar isso e dar continuidade a esse tipo de trabalho. Um trabalho que é popular, ou seja, ele não é pra entrar no mercado de trabalho, inserir neste modelo de mercado de trabalho. Instrumentalizar a pessoa pra ela ser cidadã, praelapoderenxergaracomunidadedeladeuma outra forma. Poder discutir a realidade dela através dos muros, poder dizer o que ela tá pensando. Como a gente pode potencializar as próprias pessoas aqui de dentro pra poder gerir isso? A gente não pode ficarsó nos eventos, tem que ser um processo continuado. Pela dimensão que o bairro tem, e se tivesse em todas as regiões, nas regiões de Orçamento Participativo que é onde o município administra. Se tivesse espaços de referência em cada uma dessas regiões então poderia rolar um circuito, intercâmbio junto com outras pessoas que estão vivendo a mesma realidade que nós. Pessoas que não tem condições de ir ao teatro, pagar um show, se a gente for fazer uma pesquisa aqui de quantas pessoas da Restinga vão ao cinema e ao teatro e vão num show de música, não tem, ou seja, o que tem de alternativa? É ir para o bar na esquina, bater um bola. É muito pouco e tu acaba criando o quê? Acaba que

a gurizada acaba tendo acesso ao tráfico, aviolência, isso acontece e falta esses espaços de referência pra trazer novas alternativas e possibilidades pra juventude que a gente tem”.

Alexandre Santini, do Ponto de Cultura Tá na Rua, acredita que a paz está ligada a ações de empoderamento criativo do espaço público em contraposição à violência: “Queremos uma cultura realmente democrática e inclusiva. É o oposto do higienismo, do choque de ordem, para revelar uma outra possibilidade de utilização do espaço público”.

O espaço público aparece como elemento central na organização dos fenômenos sociais, a partir de onde esquemas sociais definidos são mantidos ou transformados. Este movimento desenhado pelo espaço é fundamental para a compreensão da dinâmica social e elaboração de metodologias para um empoderamento efetivo e cidadã deste que é o espaço de todos. As tecnologias de informação e comunicação, por sua vez, surgem como questão fundamental no contexto brasileiro atual, a medida em que se configuram no cenário mundial, como canais de intercâmbio dos mais relevantes.

Beth de Oxum questiona e provoca: “É necessário uma militância social em todo o planeta. Serão necessárias muitas células pequenas dos quintais desse planeta pra gente conseguir conduzir a humanidade para outro caminho. O que não é fácil, é muito difícil. Apesar de termos sofrido a violência social, temos que reverter esse processo, a gente vai no Ministério, a gente faz a ficha, ele faz o seu papel que é escutar, receber a denúncia, mas tá muito além disso. É importante a gente dizer que polícia é essa, que estado é esse, que protagonismo é esse que garante recurso, que garante equipamento, mas que criminaliza?”

Marc Augé, antropólogo, etnólogo e professor francês aponta que a sociedade tal como está configurada apresenta duas figuras de excesso: superabundância factual

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e individualização das referências. A mídia nos atordoa com uma avalanche de notícias fragmentadas e nós imersos em geografias urbanas desprovidas de pontos de identificação coletiva e de espaços de encontro. Lugar é uma ideia parcialmente materializada daqueles que o habitam, de sua relação com o território, com o outro. “Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional e nem histórico definirá um não-lugar”*, conceitua Augé. O autor caracteriza a época atual como produtora de não-lugares. O termo é utilizado por oposição à noção sociológica de lugar, aquela de cultura localizada no tempo e no espaço. Augé entende o espaço antropológico como um espaço “existencial”, lugar de uma experiência de relação com o mundo, de um ser essencialmente situado em relação ao meio.

O conceito de não-lugar serve para ilustrar uma percepção comum entre os muitos jovens auscultados de que, o espaço público, não costuma ser utilizado como um espaço de encontro: “Hoje até as praças públicas têm grades em volta”, queixa-se Roberto, participante da Roda do Ponto Atitude Jovem.

As engrenagens do cotidiano nas grandes cidades operam de modo a favorecer a indiferença, o anonimato, a omissão. Somos imersos numa série de deslocamentos sem lembrança, muitas vezes ignoramos os fragmentos históricos dos lugares por onde passamos. Espaços padronizados, shoppings, lojas de conveniência, redes de supermercados e lanchonetes, espaços fechados e de circulação restrita. Os não-lugares são tanto as instalações necessárias à circulação acelerada de pessoas e bens, quanto os próprios meios de transporte e os centros comerciais.

Com os processos de privatização do espaço público, as vias deixam de ser espaços de encontro, geralmente é preciso pagar para entrar num determinado espaço e consumir algo para desfrutar de alguma ilusão de convivência. Até a casa torna-se intervalo de tempo, suporte para se chegar a um não-lugar. Enquanto o lugar está repleto de memória/lembrança, o não-lugar está associado a ideia de velocidade/passagem, constituindo um espaço sem materialidade.

“Eu escolhi o banquinho de piano porque

o lá de fora tá grudado ao chão. O banco de uma certa forma é a civilização. Eu tenho um pé na civilização e, ao mesmo tempo, não tenho. Eu gosto dessa coisa que a gente tem lá na esquizo-análise que a natureza delira. Eu gosto muito desse outro lado que não é civilização, mas como a gente tá querendo construir essa roda, essa sinergia e tudo mais, você vê sempre as crianças, os mais velhos, as tribos africanas ao redor do banco. E uma ideia de um morador da minha rua muito interessante, as pessoas mais simples têm sempre as melhores ideias, e ele falou: ‘porque a gente não bota banco aqui na rua?’, e todo mundo achou uma boa ideia e agora tá batalhando pra gente sentar lá. O banco tem disso, você convive por minutos entre iguais”, conta Elvis, membro da Rede de Pontos de Cultura da Prefeitura de Diadema.

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“Pode-se destruir as plantas, mas se temos as sementes, elas crescem novamente. Assim é a cultura. Todos têm necessidade de cantar e dançar. A cultura não está apenas na TV. É ridículo ouvir “Teatro, a gente vê por aqui”. Como ir a uma peça que custa cinqüenta reais? Não! Podemos produzir cultura”

Natali, membro do Ponto de Cultura Pombas Urbanas

Dados dos mais diversos institutos de pesquisa apontam a televisão como principal fonte de lazer e informação dos jovens brasileiros. É inquestionável a necessidade de produções mais éticas e que destaquem temas de relevância social voltadas ao público juvenil e, por que não produzidas com a participação ativa dos próprios jovens?

A televisão permanece como a principal mediadora nas relações políticas, sociais e culturais entre os cidadãos (98% da população de 10 a 65 anos assiste a televisão). A grande mídia é acusada de persistir em abordagens superficiais, distorcidas e sensacionalistas da realidade. Ao ressaltar a violência e a economia, deixam de lado a capacidade que as comunidades possuem de superar suas dificuldades e de conviver com paz. Para os grandes meios, as comunidades menos privilegiadas estão associadas exclusivamente à violência e à criminalidade: “Diadema já teve

toque de recolher. Realmente existiu e ainda existe muita violência. Mas não é só isso. Por exemplo, é uma cidade muito acolhedora, recebe migrantes de várias regiões do país. É um lugar com muitos espaços culturais. A mídia faz questão de ressaltar a violência, mantém apenas o foco sensacionalista. É uma visão externa, uma imagem transmitida cheia a conceitos e preconceitos”, exemplifica Verônica Maria da Rede de Pontos de Cultura de Diadema.

A Constituição Federal estabelece alguns princípios que nem sempre são cumpridos pelos veículos de comunicação de massa, dentre eles: a promoção da cultura regional, o estímulo à produção independente, e regionalização da produção cultural e jornalística (Art.221). A mídia pode funcionar como um poderoso instrumento de sensibilização para aprofundar debates e melhorar a qualidade de vida à medida que promove o destaque de matérias de relevância social e a realização de programas educativos numa linguagem acessível e informativa. Mas que mídia é essa? Atualmente nove famílias detêm o controle de 85% da informação veiculada em território nacional e apóiam, numa censura velada, a perseguição e coação dos veículos comunitários.

A informação de qualidade, além de ser um direito, instrumentaliza os cidadãos de todas as idades, e serve de subsídio para que haja autonomia crítica para avaliar contextos,

interferir e promover ações que tenham ressonâncias consideráveis na gestão coletiva de nossas redes e de nossas cidades. Daí cabe a reflexão a partir de uma série de questionamentos, sobretudo a partir das provocações: que mídia temos ? Que mídia queremos? Nos interessa construí-la?

O direito à comunicação é mais do que direito à informação e à liberdade de expressão: é o direito de produzir e veicular, de possuir

DIREITO À COMUNICAÇÃO

| Ponto de Cultura Tainã, Campinas - SP |

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condições técnicas e materiais para dizer e ser ouvido, de ser protagonista de um sistema de comunicação plural. É, acima de tudo, a compreensão da comunicação como um bem público, que pertence ao conjunto da sociedade. “Precisamos de canais de comunicação que informem o que está acontecendo na comunidade. Além de lazer é preciso propostas de ações pra as pessoas”, pensa Gustavo do Ponto de Cultura Arte no Dique.

O controle social dos programas televisivos é um desafio constante, contudo existem meios legais que garantem aos cidadãos a possibilidade de controle das emissoras. Empresas que atuam no mercado de publicidade têm responsabilidade sobre a programação que apóiam por meio de suas verbas publicitárias, bem como produtores, apresentadores e comunicadores. “Desde o começo eu tô querendo falar e não consigo. A gente pode dizer não a violência e sim a paz. Hoje tem muita violência, o povo não respeita mais as leis, eu vejo muito comercial que passa na televisão, os homens maltratando as mulheres, as crianças, muitas crianças mortas. Um dia a gente podia fazer uma reunião conversando sobre isso”, propõe Natasche, criança do Ponto de Cultura Coco de Umbigada.

Atualmente a programação televisiva, salvo raras exceções inclui programas cujo conteúdo fere sistematicamente convenções internacionais assinadas pelo Brasil. Em alguns casos as formas de desrespeito incluem: discriminação racial, de gênero, apologia à tortura, linchamento e outras formas de violência. Os meios disponíveis de controle social da grande mídia, teoricamente envolvem o Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional, o Ministério da Justiça (Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Classificação) os Conselhos Tutelares, e outros órgãos e entidades ativados através de denúncias, pressões, e cobranças. Observatórios da imprensa e outros mecanismos de participação vêm sendo desenvolvidos por diversos grupos espalhados pelo Brasil. Informe-se e participe.

Existem procedimentos para que, em caso de violação de direitos, Ações Civis Públicas sejam movidas por entidades organizadas ou mesmo Ações Populares promovidas pelos cidadãos via Ministério Público. Contudo as entidades e organizações que atuam no campo da democratização da comunicação ainda

encontram dificuldade na afirmação do direito a comunicação como um direito humano. Direito Humano porque a comunicação é uma necessidade individual e também coletiva, elemento essencial para a organização da sociedade.

ONU (1948):

“Todo o homem tem direito à liberdade de opinião e expressão;

este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e

de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer

meios, independentemente de fronteiras.” (Art.19)

Necessidade individual e também coletiva, elemento essencial para a organização da sociedade, a comunicação não depende apenas dos veículos de comunicação de massa. Com a internet e as novas tecnologias, as redes de comunicação compartilhada vêm ganhando força e aprimorando a articulação e o compartilhar de saberes entre diversos atores sociais. “Novas experiências, coisas novas. Aprender e ver uma possibilidade. Mexer numa câmera, mexer em aparelho de áudio. Enxergavam isso tão longe como se fosse impossível de fazer. A gente leva, aproxima isso deles e vê que é possível fazer com uma aparelhagem que não é tão grande, nada extraordinário”, diz Fábio do Pontão da UFMG, citando como exemplo atividades desenvolvidas na comunidade.

A comunicação compartilhada é um novo conceito de comunicação, abre possibilidades de participação através da troca de conteúdos entre pessoas envolvidas com a comunicação não corporativa ou de mercado. Contrapõe-se à lógica neoliberal de gestão controlada da comunicação e estimula a solidariedade em detrimento às práticas competitivas ao abordar temas de interesse jornalístico, social, cultural ou político rejeitando o viés mercantilista utilizado pelos grandes meios. As novas mídias convidam à construção participativa da comunicação e da informação, favorecendo a autonomia de sujeitos coletivos nos processos de criação e produção. “Em dois anos de trabalho o mais importante é que a gente processou, criou oportunidades de descobertas e de que todo mundo tem opinião. Os grupos estão finalizando dois trabalhos em vídeo. Por exemplo, num deles o Luciano é um fantasma, ele é negro e a

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discussão foi se pintava ele de branco ou não, questões raciais ou étnicas, se agora é politicamente correto falar negro e não preto ou vice-versa, favela ou morro. Questões de cidadania acontecem aqui, a gente não é escola profissionalizante de audiovisual, a gente é Ponto de Cultura, essa é a riqueza. Os vídeos sempre foram pra gente um meio de expressão e mudança social. As atividades são muitas, mudam paradigmas de comunicação”, pensa Davy, coordenador do Ponto Me Vê na TV.

Práticas cidadãs para a comunicação, através das quais os grupos percebem seus próprios ruídos de comunicação e saberes velados. Apontam caminhos de articulação observando os próprios limites e os da comunidade do entorno. A comunicação compartilhada e o envolvimento em projetos culturais propicia o questionamento dos mecanismos de produção de realidade: “a gente para pra pensar se há uma diferença entre realidade e ficção, se a realidade não é uma ficção, algo inventado”, conta Andrei do Ponto de Cultura Tainã.

A comunidade é a política de continuidade. A possibilidade de se verem e serem vistos traz a possibilidade de relações mais humanas e sensíveis. Ações de comunicação compartilhada podem ser afirmadas como uma importante vertente de suporte ao processo de desenvolvimento comunitário, tanto no aspecto educativo-cultural, como no político-social. Um instrumento fundamental na comunicação de um dos Pontos Auscultados tem sido a Rádio Amnésia – 88,5 FM (Olinda PE) que

visa transmitir informações sobre a Sambada de Coco, oficinas dos Pontos de Cultura e parcerias. A rádio foi criada a partir da crença na democratização da comunicação e na riqueza dos fazeres comunitários. Atualmente a rádio tem alcance em um raio de 20 quilômetros de extensão, com projeto de ampliação alcançará mais de 150 km. Em sua programação há o Coco, reggae, músicas tradicionais e também o rock. Abordam na programação questões sobre o sincretismo religioso, a cultura de raízes africanas, a tradição oral e a ancestralidade. A rádio intensifica a visibilidade, as ações compartilhadas entre o terreiro, a escola e a comunidade.

As linguagens artísticas além de formas de expressão também são meios de comunicação: “o que fazemos é arte, é uma forma de expressão, tá ligado? Estamos passando uma mensagem”, diz Teco – Coletivo de Jovens grafiteiros Zona Sul SP. O grafite é citado como uma manifestação que, com poesia traz algo de positivo: “Nos permite discutir questões importantes como meio ambiente, passar uma mensagem de paz”, acredita Tiago, membro do Coletivo Ritual - participante do Evento RUPA/Cedeca Interlagos*.

Beto, MC do grupo Sobreviventes de Rua, participante da roda no Ponto Atitude Jovem DF, vê o RAP como uma tecnologia de convivência e de comunicação com poder de atuar de maneira prática e direta na comunidade: “O rap reúne as pessoas, não só o rap, tem vários grupos que se juntam pra falar das questões sociais, desigualdades, capitalismo, sobre

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todas as questões que afetam o país. O rap tem esse poder. E ele tem mesmo sua causa revolucionária, a questão do povo que sofre mesmo, o povo que tá na rua, jogado, nas cadeias, nos semáforos pedindo esmola. Esse rap que tem poder de criar uma lei. Dentro da periferia ele é respeitado, se falar abaixa a arma aí, neguinho abaixa. Vê se abaixa pra polícia. O rap é um meio de comunicação muito importante que temos na mão e por enquanto só quem tá usando é a gente na periferia”. Arte e comunicação andam lado a lado: “a gente se comunica através da arte, conhece pessoas novas, expande conhecimentos. E o que seria do mundo sem arte?” pergunta Tigone, membro do Coletivo Artixo, que esteve presente no evento RUPA, Rapaziada Unida pela Arte.

O tambor, elemento presente em muitas manifestações artísticas, remete à ancestralidade, presente na história da humanidade desde muito antes do que a descoberta das ondas do rádio e foi citado por Silas do Ponto de Cultura Tainã, como um instrumento capaz de agregar pessoas e transmitir conhecimentos: “ele também passa essa coisa espiritual, ele próprio já foi um meio de comunicação a distancia, o tambor também traz questão tecnológica. O tambor foi a primeira Internet do mundo”.

Dos tambores ancestrais a conexão wireless. Rodas, encontros, redes. Potencias em estado virtual querendo se manifestar em plano real, construindo novas soluções e alternativas para problemas cotidianos, a comunicação não-violenta e compartilhada tem papel estratégico nesse caminho.

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LÍNGUA DE SINAIS

Em relação à comunicação, destacamos a experiência que tivemos na Roda de Convivência realizada no Ponto de Cultura Palavras Visíveis, com um grupo da comunidade de surdos no Rio de Janeiro. No início do encontro os jovens vão chegando, conversam muito entre si, de repente um deles começa a tocar violão, produz sons sem acompanhar uma melodia única. Depois Érika, integrante do grupo Moitará e coordenadora do Ponto Palavras Visiveis, nos explicam que ele diz que gosta de tocar, pois “sente uma paz interior”, mesmo sentindo os acordes apenas pela vibração sonora das cordas e não pela audição. No início tivemos a sensação que não seria fácil conseguir a comunicação com o grupo, mas depois que começou a roda, quando chegou a intérprete Lanucia, a aproximação foi facilitada, uma das experiências mais sensitivas entre as rodas, com muita interação entre grupo e facilitadores do Pontão. Hospitalidade, numa atitude recíproca de receptividade, amorosidade e sociabilidade.

Lanucia Quintanilha, tradutora da roda e autora que aborda a comunicação entre surdos e ouvintes, explica que embora reconhecida pela UNESCO em 1984, no Brasil, a comunidade surda precisou lutar muito para ter sua língua legalizada. Finalmente a Lei 10.436 de 24 de Abril de 2002, Lei da LIBRAS, foi sancionada e regulamentada, pelo Decreto 5.626 de 22 de dezembro de 2005. O Decreto prevê a inserção da língua de sinais como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior, como disciplina curricular optativa nos demais cursos de educação superior e na educação profissional. “Vemos as dificuldades que se apresentam e por outro lado quando os surdos mostram que é a questão da comunicação que é muito forte, dessa possibilidade mesmo da comunicação. Dela ser um fato marcante”, afirma Erika – Palavras Visíveis.

A reivindicação é por uma maior compreensão entre ouvintes e surdos. Existe também a preocupação com o futuro das crianças surdas, uma vez que na tradução do idioma falado para a língua de sinais muito se perde. “É difícil aprender português, sou a favor de que exista escola para surdos”, diz Wagner – comunidade de surdos e Palavras Visíveis.

Os ouvintes têm acesso facilitado às informações, os surdos ligam a televisão não conseguem absorver o que é dito, não há legendas. Nas salas de aula e nas faculdades precisam de intérpretes para conseguirem acompanhar as aulas. Os surdos apontam uma série de barreiras para o exercício do direito à comunicação e a tantos outros: “Os ouvintes e surdos vivem iguais, viajam, casam, descasam, trabalham, como os ouvintes. Não nos sentimos inferiores, só somos diferentes. Só isso, nós somos iguais e temos direitos como todas as pessoas, apenas somos diferentes pela língua, a diferença é só a nossa comunicação. Os ouvintes sabem, mas não respeitam. Isso é um preconceito. Não conseguem aceitar que a língua de sinais seja uma língua como a língua oral”, aponta Nívea – Palavras Visíveis.

Apesar dos preconceitos, das dificuldades lingüísticas e comunicativas, o teatro é um elo que liga os atores surdos à cultura da sociedade ouvinte e as dificuldades encontradas pelos surdos em sua trajetória no teatro, impulsionam esses atores ao aperfeiçoamento das suas funções, no processo de ensinar e aprender.

Solidariedade e compaixão são considerados fundamentais na geração do sentimento de corresponsabilidade, impulsionando a participação dos surdos. Compreendendo o caráter aberto e dinâmico dos projetos do Ponto de Cultura, o fazer comunicativo do Projeto Palavras Visíveis, mais que informar, toma por tarefa criar uma interação própria entre esse projeto e comunidade surda, através do compartilhamento de conhecimentos e valores. Deseja-se, assim, que sejam fortalecidos os vínculos dos atores surdos com seus movimentos e que sejam capazes de tomar iniciativas espontâneas de contribuir à causa dentro de suas especialidades e possibilidades.

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“Hoje, pra gente se unir precisa sentar todo mundo e conversar, coisas que não acontecessem” Celso Baiano em Roda realizada na Rede de Pontos de Cultura de Guarulhos

Em todas as Rodas de Convivência, os participantes expressaram o desejo de fortalecimento de suas redes e intercâmbios entre os Pontos de Cultura. Eventos como o TEIA, o Fórum Social Mundial, constituem espaços privilegiados de encontro entre atores sociais e agentes culturais, abrindo novos horizontes. Jackson Brum, do Ponto Na Quebrada – Restinga, Porto Alegre, dá um depoimento emblemático que afirma a importância do intercâmbio, bem como dos canais de diálogo e participação já existente e da invenção de novos: “Me lembro que logo que eu comecei a atividade e depois eu participei do TEIA, do encontro nacional dos Pontos de Cultura. Participei do primeiro e a fiquei assustado porque a galera estava falando de projetos gigantescos, de 100 mil, 1 milhão, verbas anuais de 2 milhões. E eu ‘caraca’ que loucura, eu faço as coisa com 400, 500 pilas no ano e fico feliz que consigo fazer um monte de atividades. A partir desses encontros maiores que comecei a perceber que as pessoas fazem as mesmas coisas que eu, comecei a me ligar que eu não entendo essas diferenças na real. Eu já fazia a quase oito anos ações públicas, eu era um agente dessas ações e comecei a me ligar disso aí e realmente potencializar o que eu fazia. Eu entrei de cabeça e comecei a botar cada vez mais gente aqui pra fazer, procurar mais gente que fazia melhor do que eu pra realmente fazer as coisas. Vejo que muitas pessoas hoje em dia são pessoas que fazem ações públicas, mas não se ligam nisso. Um exemplo prático são os Pontos de Cultura. São pra potencializar ações que já existem, de pessoas que já fazem a história, só que às vezes a gente acaba se atrapalhando horrores porque a gente não é um cara da burocracia, a gente sabe fazer. Muitas vezes perguntam o que a gente faz. Não sei o que eu faço cara, eu faço. Quero que mais gente faça pra fazer acontecer comigo, quero mais gente comigo. Eu vejo que muita gente tem essa mesma vontade e não para pra pensar.

Mas o pessoal tá começando. Isso aí só tende a somar o pensamento pra que essa nossa estrada fique cada vez mais curta, pra gente atingir nossos objetivos”.

Intercâmbio entre os Pontões e Pontos de Cultura, envolvimento no Plano Nacional de Cultura e construção de uma agenda comum são apontados como caminhos para a articulação em redes: “Eu vejo num desenho assim, a gente gritando de longe e o poder público dando tchau. Precisa de aproximação, agendamento em plenárias e sessões abertas em câmaras, participar de assembléias e isso pode ser uma iniciativa dos Pontos de Cultura também”, acredita Marcos Braga participante da Roda de Convivência no Ponto Na Quebrada.

Integração e organização são destacados como pontos chave para a ampliação de diálogos capazes de afirmar novas conquistas: “Precisamos de mais organização e que os Pontos se juntem pra conseguir realizar mais coisas juntas. Acho que é muito fácil pra prefeitura pegar uma data no fim do ano e juntar todo mundo pra mostrar ‘óh lá estão fazendo alguma coisa’ do que sentar com área por área pra ver o que essa área precisa (referência a mostra cultura de final de ano organizada pela prefeitura). O que o Ponto de Cultura de capoeira daqui também tem a ver com o Ponto de Cultura de capoeira de lá e assim fazer esse diálogo”, diz André, arte-educador do Ponto de Cultura Carlos Drummond de Andrade e do Ponto de Cultura Tarsila do Amaral, que vê o intercâmbio como uma das maneiras de atingir a sustentabilidade: ”Realmente os Pontos precisam se juntar porque são poucos os Pontos que conversam que tentam fazer coisas juntas exatamente pra não ficar dependendo dessa ordem da prefeitura. A gente deveria fazer a nossa mostra junto com os Pontos que nós temos. Se, por exemplo, juntar o povo da capoeira daqui com o de lá, vai ter uma turma enorme. Não é só da prefeitura que nós temos que viver”, completa.

Os próprios agentes que fazem a ponte entre o poder público e os Pontos de Cultura também defendem ações para fortalecer o intercâmbio, é o caso de Wagner, coordenador da Rede de Pontos de Cultura em Guarulhos: “A prefeitura tem como função realizar a gestão pública

INTERCÂMBIOSJUVENTUDES EM REDE

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dos Pontos de Cultura. Só que os Pontos tem a autonomia de empoderamento e nós deixamos vocês bem à vontade pra fazer o que desejam. Não é imposto de cima pra baixo. O poder público não tem todo esse poderio de fazer. É por isso que a gente fala realmente que quem tem que se reunir são vocês. Se organizar pra que seja uma rede de fato, pra trocar os saberes. Isso é uma troca de experiência, de conhecimento. A gente tá aí pra o que der e vier”.

A falta de comunicação entre os Pontos é tida como a grande vilã que atrapalha a articulação em âmbito local e nacional. O fato dos Pontos atuarem sem contato uns com os outros faz com que os grupos fiquem enfraquecidos na hora de lidar com representantes públicos e lideranças. Falta de informação e de oportunidades de troca de experiências, necessidade de criação de espaços que tornem viável o compartilhar de saberes: “É importante uma maior aproximação, através de conferências, reuniões, fóruns. Não só ficarmos presos a um único encontro anual. A troca entre os Pontos deve ser intensa. É necessário maior participação dos núcleos culturais e das entidades ligadas ao Programa Cultura Viva. Muitas vezes os Pontos de Cultura agem sozinhos, é bom ter mais autonomia, mas sempre observar as relações a serem construídas. Há conflitos regionais e de interesses, vaidades diversas. É preciso pensar coletivamente, em benefício dos espaços, devemos nos unir, ajudar todas as políticas, independente de ser de esquerda ou de direita”, propõe Leando do Ponto de Cultura Me Vê na TV.

Diálogo, interconexão entre linguagens, ampliação dos universos de referência como ferramentas de transformação da realidade: “quando eu faço que a arte cênica dialogue com o cinema, eu tô interconectando essas ideias. Nós só conseguimos transmitir algo a alguém porque nós compreendemos a nossa realidade e a realidade de cada pessoa só pode ser alterada com o que se conhece, a gente só muda aquilo que a gente conhece”, pensa ZehMa, do Ponto de Cultura Argonautas Ambientalistas da Amazônia.

Criação de fóruns dentro dos Pontos de Cultura, organização de fóruns com diversos temas de interesse da comunidade, utilizar o espaço dos Pontos como espaços de encontro e fortalecimento de articulações entre os cidadãos e outros atores sociais e políticos: “É provocar essa consciência o tempo todo.

Na nossa comunidade a gente tem o trâmite direto, a comunidade toda participa. Quando são chamados para questões específicas eles também vêm. A gente tem cinema todo mês pra comunidade, pois a cidade não tem cinema. Então a comunidade tem acesso e o boca a boca funciona. E a gente percebe na própria comissão, no fórum que acontece na TEIA, tem uma pressão, as pessoas tão falando a mesma língua, apesar das divergências”, compartilha Lucilene do Ponto Oca.

Envolver as juventudes nesse processo pode apontar caminhos criativos, construindo um intercâmbio que estimule a convivência, novas formas de participação e de atuação local nas esferas micro e macropolítica: “Trazer o jovem com a arte, pra conviver. É importante que haja diálogo, é bom partilhar”, propõe Flávia do Ponto de Cultura Atitude Jovem. A palavra é integração: “vocês de São Paulo, a gente daqui no Rio, eles de lá e vocês falando de outros lugares”, aposta Maíra, também do Atitude Jovem.

Os jovens dos Pontos de Cultura sabem da importância de se articularem em redes e buscam novos modos de diálogo, novas metodologias para discutirem demandas comuns: “é interessante conversar em um ambiente diferente de como o grupo costuma conversar. O pessoal aqui tem outra dinâmica de conversa, de assembléia, de plenário. Estamos investigando. Deveríamos buscar novas formas de conversar, novas metodologias para lidar com o coletivo. Trabalhar com os Pontos de Cultura é conviver com diversas formas de conversa. Como é que a gente convive com uma nova forma da gente conversar?”, pergunta Alexandre Santini do Ponto de Cultura Tá na Rua.

Além de encontros presenciais, da apropriação dos espaços públicos, a internet é uma ferramenta poderosa capaz de intensificar o contato entre atores sociais envolvidos com a produção dos Pontos de Cultura espalhados pelo país: “falar da tecnologia aplicada a comunicação, a primeira coisa que me vem como um espaço é a internet. É um espaço paralelo, não é um espaço como esse que a gente tem aqui um de frente pra o outro. E também com suas características próprias, falar de tecnologia e falar de convivência é mediar um pouco desses dois ambientes e com a internet cada vez mais presente. Não só pelas redes sociais que estão crescendo, mas porque é um espaço onde você acaba

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colocando o resultado dos trabalhos, quaisquer trabalhos pra ter visibilidade. A gente tem que discutir melhor isso, essa forma de mediação. Eu sei que estar na frente da internet pode ser um problema pra muita gente, são novos vícios que estão aparecendo, são novos desafios nesse sentido, a pessoa fica às vezes completamente na frente da televisão e perde também o convívio, esse convívio mais real mais próximo de grupo, de comunidade. Porque fica lá nas comunidades virtuais o tempo inteiro, mas acho que o desafio é um pouco usar de forma positiva essa tecnologia. Eu imagino a tecnologia como uma forma de mediar essa convivência, o espaço próximo e o espaço virtual”, acredita André do Pontão da UFMG.

Tecnologias à serviço da convivência, desempenhando um papel estratégico para a integração e o fortalecimento de redes entre juventudes engajadas em produções culturais: “a gente tem que saber mesmo a dosagem certa de usar a tecnologia mesmo até como um facilitador. Um exemplo é essa nossa ação no Rio, né? Talvez se a gente tivesse uma convivência maior, do pessoal de lá com a gente integrados assim na internet, o trabalho seria mais bacana ainda, a gente estaria colhendo mais frutos do que a gente ta colhendo hoje”, sonha Fábio, também do Pontão da UFMG.

Consolidar a rede entre os Pontos de Cultura é o grande desejo e desafio dos atores sociais envolvidos no Programa Cultura Viva. Afinal, no contexto atual, ainda se faz necessária a efetivação de políticas culturais fortes o suficiente para sobreviverem a gestões de um ou outro partido: “Vejo que um começo viável seria a consolidação desses 20 Pontos que vocês conseguiram visitar e ter esse momento de ouvir e compreender. Então se a gente consegue se formar numa rede social, numa rede institucional, quem sabe a gente consegue, cada um no seu estado, discutir isso com outros Pontos de cultura. Isso ia causar um eco bem maior que vai ser ouvido de alguma forma. Penso que se a gente começa nessas bases, dentro das nossas instituições, eu acho que nessa consolidação de rede mata muitos coelhos com uma cajadada só. Vai trazendo outras pessoas que não tão diretamente ligadas a Pontos de Cultura, mas que estão atuando em algum setor da área cultural que estão ouvindo falar disso e querem fazer parte disso também, eu acho que é um começo bem

razoável”, diz Denisia do Pontão da UFMG, que tem uma atuação intensa no que diz respeito ao direito à comunicação.

Nós do Pontão também acreditamos no intercâmbio e na articulação entre a rede de Pontos de Cultura como um dos modos de propor e implementar transformações concretas no fazer cultural do país. Por isso, no processo de realização das Rodas levantamos diversas propostas de propostas de políticas públicas na área de Cultura, tema a ser tratado no artigo a seguir.

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7. PONTOS DE CULTURA: Políticas Públicas, Cultura de Paz e

Cidadania Culturalpor Hamilton Faria*

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As propostas de políticas públicas para os Pontos de Cultura a partir das auscultas devem ser vistas sob dois ângulos diversos. Aquelas voltadas especificamente para a Cultura de Paz, direitos humanos e enfrentamento da violência, e políticas públicas mais amplas voltadas para o fortalecimento do empoderamento dos Pontos – processos participativos, trabalho em rede, comunicação, interculturalidade, intercâmbio, convivência de modo geral, etc. Pensando-se de uma forma ampla na Cultura de Paz, conforme aponta o Manifesto 2000 da UNESCO, observamos que os Pontos de Cultura estão atentos à construção da convivência intercultural pacífica a partir do seu protagonismo local. Fortalecimento da democracia, diversidade, respeito à vida, reinvenção da solidariedade, convivência pacífica, fazem parte do dia a dia dos Pontos de Cultura; embora quase 80 % já tenham participado de alguma atividade de combate à violência ou promoção da paz, não sabiam que estavam ligados à Cultura de Paz, não tematizavam de forma explícita a Cultura de Paz. Na verdade, a Cultura de Paz sempre foi confundida, principalmente entre os jovens, com passividade, cumplicidade com a impotência e não resistência, apagamento dos conflitos, não ir as raízes da opressão política e cultural, conforme o senso comum tem trabalhado o tema. Ao contrário desta visão o debate público deixa claro que a não violência, mesmo sendo um paradigma e uma filosofia do viver, é um método de resolução de conflitos pela potência das forças do diálogo, da conversação, do desarmamento dos espíritos, cultura bélica. Observa-se hoje, que mesmo coletivos transformadores utilizam métodos violentos para a resolução de conflitos – não expressamente violência direta, mas verbal, étnica ou de outra natureza, mesmo dentro de um campo de alianças e mudanças.

É necessário ir mais além do que identificar certos procedimentos como de paz, é necessário fazer Cultura de Paz, isto é: atitudes, metodologias de comunicação e políticas públicas, métodos que evitem conflitos desnecessários, confrontos que degenerem em violência e plantem novas realidades e imaginários, reconheçam o outro e passem a construir novas culturas. A não-violência ativa tem sido um método importante para o crescimento pessoal e cultural de comunidades, grupos e gerador de mudanças no plano político e social.

O mundo contemporâneo com suas desigualdades, opressão econômica e violência estrutural nos desafia a criar novos métodos de trabalho que fortaleçam a convivência entre os diferentes, respeitando potências e singularidades. Incorporar a Cultura de Paz em nossos modos de vida e nas políticas públicas, não apenas culturais, pode gerar potências que respeitem a vida necessária a uma sociedade sustentável. Nesse sentido as políticas devem abraçar de uma forma transversal a Cultura de Paz como meta do milênio - paradigmas de viver em sociedade e atitudes coletivas e individuais propulsoras de outros modos de vida.

Políticas Públicas de Cultura de Paz

Durante um ano auscultamos 20 Pontos de Cultura de todas as regiões do país, conforme mostramos em outros lugares do texto. Os Pontos auscultados, em sua maioria, ouviram falar de Cultura de Paz através de atividades do Pontão ou na Teia, ou seja, muito recentemente. No entanto, observa-se que há uma adesão forte à proposta a partir do entendimento do que é Cultura de Paz e do entendimento de sua contribuição para a convivência no território, a partir das Rodas de Convivência e Cultura de Paz.

Nessas Rodas realizadas alguns Pontos propõem ampliar o diálogo sobre Cultura de Paz nos

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Pontos e potencializar suas ações criando multiplicadores. Ampliar o debate para os “Pontos, Pontões, Comissão Nacional e Programa Cultura Viva” também é proposto. A Cultura de Paz pode ser ainda mais ampliada, tanto criando outros Pontos e Pontões com editais específicos e campos de atuação na Teia e em outros espaços, incluindo ações de capacitação com formação de agentes culturais de Cultura de Paz e linhas de atuação nas comissões estaduais e nacional de Pontos de Cultura. A experiência vivida por certos Pontos no enfrentamento da violência, como foi o caso do Ponto de Cultura Coco de Umbigada, impedido de realizar suas manifestações culturais em espaço público, e ações hostis de gangues contra Pontos de Cultura no Rio de Janeiro, reforçam a centralidade de uma ação mais ampla dos Pontos de Cultura envolvendo a Cultura de Paz.

Para ampliar a ação da Cultura de Paz os Pontos sugerem mostrar para a comunidade os ícones da paz e não violência como Gandhi, Luther King e também as lideranças comunitárias que já têm desenvolvido essas práticas e valores. A proximidade da Cultura de Paz com a arte também é citada em vários Pontos. Está claro que o binômio arte-cultura de paz pode constituir-se como elemento de um forte cenário para a promoção da paz. As auscultas apresentam propostas de cineclubes para retratar as experiências de Cultura de Paz da própria comunidade, contadores de histórias, ações culturais, encontros, seminários, oficinas, etc. O que mais se destaca na ausculta sobre este ponto são as ações nas escolas, consideradas importantes na comunidade. Desde ações dos Pontos no interior da escola, do bairro, até capacitação dos professores para atuar em direitos humanos. Principalmente incluir a educação para uma Cultura de Paz nas grades escolares nacionais; dessa forma ganharia uma condição de política pública ampla. Para implementar a Cultura de Paz como política de educação necessitaremos uma mobilização nacional, incluindo campanhas, atuação de redes de paz, atuação no legislativo e junto a Secretaria dos Direitos Humanos e no próprio Ministério da Educação, sensibilizado pelo Ministério da Cultura. De uma forma mais abrangente, Políticas Públicas Interministeriais que incluam processos participativos, conferências e Planos Nacionais, como é o caso do Plano Nacional de Cultura.

Segundo as auscultas, a aproximação com empresas privadas pode também facilitar a ampliação do trabalho de Cultura de Paz na sociedade através dos Pontos de Cultura.

Algumas propostas envolvendo a condição da mulher e do negro na sociedade, aproximando a Cultura de Paz das “classes vitimizadas” podem ser destacadas, também visando a inclusão de crianças, adolescentes e jovens, através de oficinas, encontros e pedagogias da convivência. Outras seguem na direção do desenvolvimento de valores na localidade: o diálogo inter-religioso em Diadema, a humanização da Polícia do Rio de Janeiro, etc. É importante dizer que Redes de Paz e Pontos de Cultura já atuam nestas vertentes que envolvem metodologias de não violência e diálogos interculturais visando a Cultura de Paz. É necessário criar Políticas Públicas que estimulem a convivência intercultural e a produção de valores - guias de ação e simbólicos nas diversas ações públicas.

Uma proposta que o Pontão tem enfatizado é a da participação dos Pontos de Cultura nos Conselhos Legislativos (Conpaz – Conselho Parlamentar da Cultura de Paz do Estado de S. Paulo) ou mesmo reativar ou criar Conselhos Municipais de Cultura de Paz (São Paulo, Itapecerica da Serra, São José dos Campos, Curitiba, etc). Os conselhos permitem um trabalho continuado de tomada de posições públicas, formação de agentes de Cultura de Paz e/ou de comunicação de valores com a sociedade.

É o momento da Cultura de Paz aproximar-se não apenas das redes de caráter universalista, mas das dinâmicas culturais, étnicas, territoriais, buscando traduzir um amplo espectro conceitual em metodologias de ação e comunicação, além dos valores para as mudanças necessárias. Conjugar valores e atitudes, políticas públicas e metodologias de convivência tomando como foco o território será o grande desafio das políticas públicas no momento de hoje; e certamente os Pontos de Cultura poderão ser portadores dessa ação integrada, pela sua presença – de pertencimento, legitimidade, ação intercultural e atuação em rede.

Isso pode estimular “ a criação de um modelo baseado na não violência.”

Participação e cidadania

Várias foram as propostas dos Pontos de Cultura auscultados em relação à participação e cidadania. É consenso que a participação cidadã é essencial para os Pontos de Cultura, seja no seu território ou no campo das políticas públicas mais abrangentes. A atuação em rede,

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uma das propostas mais importantes do Programa Cultura Viva, é indissociável dos processos participativos locais ou nacionais. É a participação que qualifica a democracia cultural nos diversos espaços e potencializa o seu empoderamento e o protagonismo; sem ela essa construção fica comprometida e não existem condições de irradiar a sua potência. Quando estamos falando de participação pensamos num complexo participativo que parte da escuta do território, enraíza-se na localidade, desborda-se para a ação cultural propriamente dita, potencializa a criação artístico-cultural e ramifica-se na atuação coletiva através das políticas públicas de cultura ou políticas sociais. Os Pontos têm uma ação quase sempre complexa em seu raio de ação e a sua sobrevivência depende da sua ação cultural, da sua ação participativa e da gestão em rede.

Das auscultas surgiram propostas concretas como a criação de um Conselho Comunitário de Educação e Cultura para atuação na Região Sul de São Paulo; a atuação em movimentos populares, conselhos de direitos envolvendo a comunidade para enfrentar temas como o da violência; políticas públicas que promovam a participação cidadã em aldeias indígenas ( Aldeia Guarani, S. Paulo) e políticas públicas urbanas em relação as Aldeias; apoio a conselhos comunitários dos bairros (Natal); ouvir as comunidades, mapear conflitos entre jovens para ação conjunta; potencializar espaços de referência para a cultura; fortalecimento de atores e parceiros locais para o desenvolvimento artístico; promoção de espaços para lazer e recreação nos morros ;criação de centros comunitários de cultura (Porto Alegre); criação de fóruns de cidadania e direitos humanos nos Pontos de Cultura; direito à participação e informação nos meios de comunicação nacionais (Linguagem Brasileira de Sinais – Libras); criar espaços criativos de cultura popular nas cidades; ocupar espaços públicos; participação em fóruns de direitos humanos, diversidade cultural, meio ambiente, educação e cultura, audiências públicas e conselhos de direitos humanos e conselhos de direitos municipais; as ações articuladas com parceiros, a “escutação” dos governos locais, estaduais e nacionais, sobre arte, cultura comunicação e cultura digital; a pressão sobre a administração pública para a elaboração de políticas públicas e o diálogo com governos ( gestão compartilhada) também é acentuado nas auscultas dos Pontos.

Intercâmbio e redes

Potencializar as redes é condição sine qua non para a existência dos Pontos, é na relação com o outro que se dá o “desenvolvimento por aproximação” e a interculturalidade proposta pelo Programa Cultura Viva. Além de ser uma proposta contemporânea (Boaventura de Souza Santos diz que as cidades do futuro serão Redópolis e não apenas Pólis) sem as redes não é possível a construção da proposta de gestão fundamental do Programa, a gestão compartilhada. Os Pontos reputam como vital para a troca e o enriquecimento cultural o estimulo ao intercâmbio entre Pontos da mesma região e de região diversas, regionais e interestaduais. A articulação da rede entendida para o fortalecimento do empoderamento local, mas também para a promoção de eventos, encontros, intercâmbios, trocas entre coletivos de jovens, ações de cultura e cidadania para o fortalecimento e empoderamento dos Pontos. Os Pontos de uma maneira geral propõem potencializar diálogos interculturais e trocas de experiências entre práticas sociais de diversas regiões. Isso poderá possibilitar a ampliação da ação dos Pontos de Cultura para uma intervenção ainda mais ampla na comunidade e na sociedade. A sua proposta de interculturalidade entre Pontos se viabiliza pela ação em redes. A comissão Nacional dos Pontos de Cultura e algumas comissões estaduais têm fortalecido as redes nacionais e locais, fortalecido as Teias, nacional, estadual e regional, lugar de encontro das redes. As Teias têm demonstrado ser lugar fundamental de trocas e de articulação política e cultural do Programa, mas a articulação e intercâmbio entre Pontos ainda é tímida por carência de recursos específicos para esta ação.

Comunicação

Os Pontos de Cultura são pequenas mídias que anunciam conteúdos criativos na localidade, aumentam seu raio de ação ao trabalhar em rede ou potencializar sua informação através de novas tecnologias. De um lado têm uma ação presencial frente à públicos diversos, de outros alcança segmentos da diversidade através de suas ações . A combinação das tecnologias de aprendizagem e convivência com as tecnologias de comunicação e informação ( Tião Rocha) dão um sentido vivo e peculiar aos Pontos de Cultura como pontos de comunicação com o território. Comunicação online, rádios comunitárias, blogs e sites, filmes, participação na TV povoam o universo comunicacional e combinam-se com a comunicação direta com a comunidade:

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ocupação de lugares públicos ( Papo de subida e conversa de escada levada pelo Ponto Campus Avançado no Rio de Janeiro ou atividades de teatro de rua levada pelo Instituto Pombas Urbanas, ou as auscultas socioculturais do Pontão de Convivência e Cultura de Paz) e nas manifestações locais ou da Teia. No entanto ainda existem muitos desafios para a comunicação, alguns deles apontados pela ausculta sociocultural: implementar a cultura digital em todos os Pontos de Cultura; capacitar Pontos e criar infraestrutura para a inclusão digital e potencializar o trabalho em rede; atuar de forma ampla nas rádios comunitárias; participar da mídia nacional de forma mais ampliada. Algumas dessas propostas poderão se viabilizar com a aprovação da Lei de democratização dos meios de comunicação, em trânsito no congresso nacional, no entanto políticas de comunicação que incluam os Pontos de Cultura podem ampliar a comunicação entre os Pontos e destes com a sociedade. Linhas de capacitação envolvendo processos de comunicação podem ser apoiadas amplamente pelas políticas públicas. Embora os Pontos recebam o kit digital grande parte ainda não sabe operar, o que implica em criar condições tanto de infraestrutura como de capacitação. As políticas públicas de comunicação poderão abrir espaço para uma maior presença dos Pontos de Cultura na mídia nacional.

Ocupação de lugares públicos

Os Pontos de cultura têm se caracterizado por multiplicar suas ações fora dos templos tradicionais da cultura (o Centro Cultural, a biblioteca, a casa de cultura, o museu etc). Apresentar-se publicamente interagindo com a população está presente na vida dos Pontos e Pontões. Assim temos o CEDECA com seus grafiteiros, o TÁ na Rua e Pombas Urbanas com atividades teatrais, a Caravana pela Paz, com atividades em espaços públicos e abertos difundindo valores e conhecimentos, o Coco de Umbigada, em Natal, realizando suas manifestações culturais em lugares públicos. Estas poéticas nos lugares públicos amplia o raio de ação dos Pontos e encanta a cidade, uma das características importantes do Programa Cultura Viva: o encantamento. Por outro lado desempenham papel educativo ao envolver a população em soluções de problemas concretos do dia a dia como o Teatro do Oprimido, ou mesmo denunciar situações de violência. Maria Lucia Montes aponta a importância da Arte no contexto público: “ A arte no contexto comunitário cria um outro sentido de pertencimento. .... devolver a criação artística à coletividade.... fazendo com que a coletividade coparticipe do processo de criação.” ( Revista Pólis, 33, 1999, Desenvolver-se com Arte) A arte-cultura contextualizada nestes espaços podem contribuir para processos de desenvolvimento cultural: tanto sensibilizando as pessoas para outros olhares que não a embrutecida vida cotidiana das cidades, seja para a formação de valores, ou mesmo para despertar o interesse pela arte em grandes coletivos.

Os Pontos de Cultura sugerem a ampliação dessa ocupação dos lugares públicos: o apoio do poder público para multiplicar o trabalho teatral; a abertura dos espaços públicos para o entretenimento, lazer e ações culturais; sair do espaço consagrado e ir para a cidade; os jovens do Hip Hop, Teatro, Dança irem para a rua e mostrarem o que fazem de melhor, ocupando e vitalizando os espaços; a abertura de escolas para as atividades culturais. Isso poderia sugerir linhas de políticas públicas voltadas para o fortalecimento cultural dos espaços e lugares públicos, editais, prêmios, programas e outros instrumentos de políticas urbanas que articulem cultura e educação visando transformar com arte o cotidiano da cidade, a exemplo do que já acontece com a arte pública nas metrópoles de todo o mundo.

Cultura e desenvolvimento urbano sustentável

O protagonismo dos Pontos de Cultura não está limitado à arte ou às manifestações culturais dos diversos grupos. A construção dos Pontos como sujeito envolve um complexo maior de ações e diálogos no interior do território que envolve outras participações e políticas que não as estritamente culturais. Muitos Pontos de cultura atuam em rede e trabalham um conjunto de direitos sobre a moradia, mobilidade urbana, saúde, educação, meios de comunicação, Cultura de Paz e ações contra a violência ou pela liberdade de manifestação e expressão nos lugares públicos. Alargar o raio de atuação da cultura adentrando nos valores e diálogos e intervenções mais amplas no território tem caracterizado hoje os grupos culturais nesse processo de “culturalização do país”. Muitos grupos culturais movem-se num espaço que parte da sua arte, mas também desenvolvem criticas às políticas públicas e propostas de participação mais ativa no desenvolvimento cultural entendido como modos de vida da comunidade.

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Célio Turino deixa claro em suas falas que os Pontos de Cultura não são apenas um conceito genérico de economia da cultura, cidadania cultural e a dimensão simbólica da cultura, mais precisamente as artes: é um ponto vital, onde a vida circula em todas as suas dimensões. Um ponto é uma energia em expansão na medida que exerce o seu protagonismo e enfrenta-se com as limitações impostas pela sociedade. Desta forma há uma tendência a preocupar-se com a totalidade dos fazeres culturais e dos modos de vida e, logo, entrar em interação com os poderes públicos e suas políticas para a localidade. Enquanto a realidade é vista de forma fragmentada em economia, sociedade, cultura, política, saúde, etc, o ponto recupera uma determinada totalidade da vida. Como pensar no terreiro sem pensar na alimentação ou na religiosidade destas expressões? Como pensar no Jongo como manifestação ancestral sem pensar na condição de vida dos seus integrantes, alguns deles vivendo dificuldades de reprodução da vida? Um Ponto de Cultura é uma totalidade e, desta forma a sua sustentabilidade social, ambiental e cultural estão em questão.

Os Pontos Auscultados propõem uma conversa maior com a cidade, com o entorno, como é o caso dos índios Guaranis de São Paulo que necessitam um maior conhecimento por parte da cidade a respeito de suas tradições, um respeito maior da população ao reconhecer a sua diversidade. O Ponto Argonautas, Pará, propõe que se compreenda as singularidades e as diferenças étnico-raciais dos povos que compõem o Norte do Brasil, suas dinâmicas próprias. Outras sugestões vão no sentido de integração com o SESC, através de parcerias com Pontos de Cultura que possibilitem gratuidade na matricula, abertura para realização de eventos de grupos locais, gratuidade ou preços diferenciados para os jovens dos Pontos nos equipamentos do SESC, etc. Em relação às políticas de saúde, propõe-se a criação de programas de saúde para jovens que incluam prevenção à violência, cuidados com a saúde, saúde sexual e reprodutiva, etc. O transporte público também é citado. Um dos grandes problemas para a mobilidade cultural é o deslocamento urbano. As políticas públicas necessitam sustentar atividades com vale transporte ou ticket cultura, já pensado pelo legislativo de algumas cidades, mas não implementado. Políticas de transporte que possibilitem o deslocamento destes jovens, ciclovias nas cidades, podem facilitar o acesso à cultura não apenas no Pontos, mas de forma abrangente. A presença dos Pontos nas Escolas, já desenvolvido pela Escola Viva também é apontado como caminho de integração dos Pontos com as escolas. A construção de mais espaços de lazer também é sugerida pelos Pontos. Outras ideias completam o quadro: criação de cursos profissionalizantes para jovens e adultos, projetos socioeducativos que atendam crianças de zero a cinco anos; o turismo comunitário e uma maior integração com a escola pública para a realização de um trabalho socioeducativocultural.

As diversas propostas demonstram que as demandas, além da cultura strictu senso, são grandes, o que indica uma compreensão mais larga do trabalho desenvolvido e de suas necessidades; de outro lado indica que a transversalidade da cultura e do Programa Cultura Viva ainda não é um fato. Logo, a centralidade da cultura ainda é um discurso social pouco efetivo, embora incomparavelmente maior que a dos tempos da “cultura como bom negócio” que caracterizou a gestão cultural anterior do MinC. A articulação do Programa com os governos locais para a implantação de novos Pontos, a construção do Sistema Nacional de Cultura e a implementação do Plano Nacional de Cultura poderão dar fôlego ao Programa Cultura Viva, mas ainda é pouco frente ao entendimento dos Pontos como lugares vitais que dialogam em rede, a partir da cultura, com as várias dimensões da sociedade e, portanto, com novos paradigmas de sustentabilidade.

Desafios

Não há dúvida que a continuidade do sucesso do Programa envolverá uma série de fatores:

A sua transformação em política de estado, fazendo com que os próximos governos implementem o projeto. Mas não basta, porque já se observou em outras localidades projetos que continuaram de forma burocratizada, embora reconhecidos pela gestão como políticas públicas. Os Pontos de cultura como Pontos vitais estão na razão direta da implementação de alguns princípios básicos:

§ Autonomia dos Pontos: sua ação a partir do reconhecimento de seus conceitos, práticas, prioridades, soberania de ação, identificação de necessidades, etc.

§ O empoderamento: sua ação política livre, reconhecida como legítima, respeitada, compartilhada com atores sem hierarquias de saber ou de poder, etc.

§ Protagonismo: a sua existência vital no território, a sua condição de ator na

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apropriação de políticas públicas e de mudança dos modos de vida.

§ A gestão compartilhada entre os diversos Pontos e na sua relação com o poder público.

Nesse sentido será necessária uma ação política ativa da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura e de suas Comissões Estaduais no sentido de aperfeiçoar o programa e ter uma presença propositiva que estimule, além da expressão cultural dos Pontos, execução de planos de trabalho, etc, uma ação política consistente. Linhas de apoio para gestão compartilhada devem ser pensadas pelo Programa.

Em relação ao Programa vive-se um grande desafio: a gestão ainda é lenta, burocrática, insuficiente: os funcionários do programa são poucos em relação aos Pontos, a burocracia ainda não está formada para o processo vital desencadeado pelos Pontos, a interculturalidade e a transversalidade no programa ainda é pequena; os diálogos com outros programas do MinC ainda são segmentados, como uma ilha reconhecida, mas pouco integrada nas dinâmicas do MinC. Por parte do MinC ainda há uma compreensão limitada da grandeza e das implicações da proposta, como uma política de estado. Mais, a compreensão de que trata-se de uma proposta que incorpora elementos vitais de valor civilizatório, muito além de um programa datado e localizado. Qual o seu lugar no Sistema Nacional de Cultura? Qual o seu lugar no Plano Nacional de Cultura? Ainda não fica claro em todo o processo desencadeado pelo MinC. Outros fatores de ordem operacional têm prejudicado o andamento do programa: demora na renovação, atraso nos pagamentos, demora nas repostas em mudanças dos Planos de Trabalho, sistema de prestação de contas que não leva em conta as dificuldades dos Pontos. A própria rigidez do edital não desenhado para um programa dessa natureza dificulta a eficácia do trabalho e da proposta.

Assim, mudanças necessitam serem feitas para que o programa não comprometa o seu sucesso. Os Pontos auscultados preocupam-se com a permanência do programa, o mais relevante das políticas públicas de cultura da contemporaneidade brasileira, conceitualmente o mais completo e afinado com as transições culturais do mundo contemporâneo. Estas são questões vitais para a convivência entre os Pontos e destes com o poder público.

Do ponto de vista da Cultura de Paz será necessário um trabalho mais amplo e um diálogo maior com as redes e com o território e a sua inclusão definitiva no Programa e no rol das Políticas públicas do país.

* Hamilton Faria, coordenador geral do Pontão de Convivênca e Cultura de Paz, é poeta, professor universitário e coordenador da área de cultura do Instituto Pólis

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Pontão de Convivência e Cultura de Paz - Ano 1

iInstituto Pólis

Coordenação Geral Hamilton FariaCoordenação Executiva Marilda Donatelli Assessoria da Coordenação Veridiana NegriniRelacionamentos e Gestão de Projetos Daniela GreebOficineiros Martha Lemos (coordenação), Alexandre Samoginni e Iraci OliveiraComunicação Cristiane GomesAssistente da Coordenação Wanda MartinsPesquisa Ana Paula do Val, Beatriz..., Alexandre...Texto consolidação resultados Paloma Kliss

Coordenador Cineclube Pólis Luis Eduardo TavaresAssessora Cultura Pólis Carolina Caffé

Revisão de texto Alessandra Vilhena

grupo Consultivo

Ana Paula do Val

Altair Moreira

Bob Jay

Carolina Caffe

Daniel Hylário

Elbert Pereira

Francisco Coelho

Gabriela Lotta

Guilherme de Almeida

Marcelo...

Marisa Greeb

Othon Amaral

Pedro Pontual

Vilma Barban