08 sobre a politica de assistencia social no brasil
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SOBRE A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA
SOCIAL NO BRASIL1
Potyara Amazoneida Pereira Pereira
I
Falar de assistência social não é tarefa fácil, porque vários são os
preconceitos e idéias equivocadas que ainda cercam essa matéria. Embora esse
tipo de assistência seja um fenômeno tão antigo quanto a humanidade e esteja
presente em todos os contextos socioculturais, poucas ainda são as contribuições
teóricas que ajudam a melhor precisá-Io do ponto de vista conceitual e político-
estratégico. Isso significa que a assistência social tem sido sistematicamente
negligenciada, não só como objeto de interesse científico, mas como componente
integral dos esquemas de proteção social pública que, desde os fins do século e,
mais especificamente, a partir dos anos 40 do século XX, expressam
institucionalmente a articulação (nem sempre pacífica) entre Estado e sociedade,
com vista à definição de direitos e políticas de conteúdo social.
Em decorrência desse fato, a assistência social quase nunca é vista pelo
que ela é - como fenômeno social dotado de propriedades essenciais, nexos
internos, determinações histórico-estruturais, relações de causa e efeito, vínculos
orgânicos com outros fenômenos e processos -, mas pelo que aparenta ser, pela
sua imagem distorcida pelo senso comum ou, o que é pior, pelo mau uso político
que fazem dela, por falta referências conceituais, teóricas e normativas
consistentes. Assim, a assistência social é comumente identificada como um ato
subjetivo, de motivação moral, movido espontaneamente pela boa vontade e pelo 1 Política social e democracia / Maria Inês Souza Bravo, Potyara Amazoneida Pereira Pereira (orgs) - 2. ed. – São Paulo: Cortez; Rio de Janeiro: UERJ, 2002.
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sentimento de pena, de comiseração ou, então, quando praticada pelos governos,
como providência administrativa emergencial, de pronto atendimento, voltada tão-
somente para reparar carências gritantes de pessoas que quedaram-se em estado
de pobreza extrema.
Isso explica por que a assistência social é geralmente considerada medida
pura e simples de subsistência e, por isso, tida como antítese ou avesso de
categorias teóricas que integram, definem e conferem honorabilidade aos
sistemas de proteção social modernos, tais como: política social, cidadania,
promoção social e trabalho assalariado.
Para muitos, portanto, a assistência social não é política social porque,
além de não lhe serem exigidas sistematicidade, continuidade no tempo e
previsibilidade de recursos, ela não se organiza em torno de decisões informadas
por conhecimentos científicos, mas em torno de uma anomalia social, qual seja:
uma "clientela" negligenciada que, a rigor só existe porque as políticas sociais e
econômicas (saúde, educação, previdência, habitação, trabalho, renda etc.), que
deveriam impedi-la de existir, não funcionam a contento. Sendo assim, a
assistência social não passa de uma incômoda reserva estratégica ou uma
"tapeação" política das elites no poder, que a acionam para encobrir as falhas das
demais políticas socioeconômicas.
No rastro dessa percepção, a assistência social também não é considerada
um direito de cidadania, mas um antidireito, que estigmatiza e humilha quem dele
necessita. Daí a sua incompatibilidade com o valorizado conceito de "promoção
social", presente em quase todas as propostas sociais de instituições
governamentais e não-governamentais. Não é de estranhar, destarte, o fato de, no
âmbito dessas instituições, as atividades que promovem os indivíduos não serem
consideradas de assistência social - mesmo sendo gratuitas, desmercadorizadas e
dirigidas a segmentos populacionais de baixa renda. É o caso das bolsas de
estudo, do incentivo à produção, da renda garantida, da educação básica, do
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treinamento profissional, da defesa de direitos, da capacitação para o exercício da
cidadania, do acesso à justiça, dentre outros. E a fonte norteadora dessa
diferenciação é a ideologia, que não se baseia em fatos ou em evidências
empíricas, mas em prenoções arraigadas que, apesar de abstratas, têm a força de
legitimar práticas equivocadas, as quais, por sua vez, reforçam a ideologia.
No que se refere ao trabalho assalariado, o confronto ideológico com a
assistência social é mais destacado, principalmente pelos defensores do primado
do mercado no processo de satisfação de necessidades. Nessa confrontação, a
idéia dominante é a de que, se houvesse emprego para todos, a assistência
social não seria necessária. Mas, como o mercado é imperfeito, ela é tolerável
desde que não fira a ética do trabalho e não reforce a propensão do pobre ao
parasitismo. Assim, a assistência social torna-se alvo de mais duas incoerentes
prenoções: a) embora seja, por natureza, desmercadorizável, é avaliada pelo
critério da mercadorização; e b) embora substitua a falta de trabalho, que é tido
como nobre, ela é encarada como um recurso ignóbil. Impera, novamente aqui, a
força da ideologia ou da visão acrítica do significado não só da assistência social,
mas do próprio trabalho e das suas implicações sociais. Recorrendo a Galbraith
(1992:21), é válido lembrar que, modernamente, não há maior ilusão, ou mesmo
fraude, do que utilizar indistintamente o termo trabalho para referirmos-nos ao que,
para alguns, é desinteressante, doloroso, degradante e mal pago e, para outros, é
agradável, socialmente gratificante e economicamente compensador. As
evidências têm mostrado em toda parte que, dependendo do trabalho, ele também
pode ser ignóbil e funcionar como "armadilha da pobreza", tanto que muitos
trabalhadores são demandantes da assistência social.
II
Diante dessa percepção dominante, não é de admirar a forte resistência
oferecida, no Brasil, contra esforços recentes, amparados pela Constituição
Federal de 1988, de transformar a assistência social em área valorizada de
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política pública. É que essa mudança constitui, de fato, uma verdadeira revolução
no campo da proteção social brasileira, exigindo não só a alteração de
paradigmas, concepções, legislação e diretrizes operacionais, mas o rompimento
com a antiga cultura conservadora que se baseava em arraigados mecanismos
viciosos de atenção à pobreza como: paternalismo, clientelismo, fisiologismo,
dentre outros.
Por isso, falar de assistência social como política, e não como ação guiada
pela improvisação, pela intuição e pelo sentimentalismo (por mais bem-
intencionados que sejam), é falar de um processo complexo que, embora não
descarte o sentimento (de cooperação, de solidariedade e até de indignação
diante das iniqüidades sociais), é ao mesmo tempo racional ético e cívico.
Racional, porque toda política de intervenção na realidade, assumida pelos
poderes públicos, com o aval e controle da Sociedade, deve resultar de um
conjunto articulado e discernido de decisões coletivas que, por sua vez, se baseia
em indicadores científicos. Isso significa que a racionalidade dessa espécie de
política está no fato de ela ser informada por estudos, pesquisas, diagnósticos e
estar sujeita a permanente avaliação, especialmente no que se refere aos seus
resultados e impactos. Nesse sentido, a política a que estamos nos referindo tem
uma conotação particular. Não se trata de "jogada de mestres" ou de "manobras
geniais" de velhas "raposas", tão valorizadas pelo senso comum, e nem mesmo
de procedimentos habituais da vida pública, como: filiação em partidos,
articulações, candidaturas, militâncias, eleições, voto. Trata-se, mais exatamente,
de um processo (geralmente conflituoso) de escolha e tomada de decisões
coletivas, com vista à construção de planos de ação voltados para a satisfação
sistemática, continuada e previsível de necessidades sociais. Ou melhor, trata-se
de um processo que implica não só gestão e aplicação de programas, serviços e
recursos mas, tendo como principal compromisso a melhor satisfação possível de
necessidade sociais.
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Ético, porque o combate às iniqüidades sociais, mais do que um ato de
eficácia administrativa, constitui uma responsabilidade moral que nenhum governo
sério deve abdicar. Contra o egoísmo imoral de se tirar proveito ou fazer vista
grossa, da fome, da miséria, da ignorância e da morte prematura de milhares de
pessoas devastadas pela pobreza extrema, está se generalizando, tanto no Brasil
como no exterior, o sentimento de que é moralmente condenável não se fazer "de
tudo" diante dessas calamidades sociais. Daí a atual rejeição ao velho provérbio
chinês - tão difundido e aceito no Brasil - que condena o ato de dar o peixe ao
pobre, em vez de dar-lhe a vara de pesca ou ensiná-lo a pescar, porque tal ditado
cria uma alternativa improcedente ao confrontar duas necessidades que, na
verdade, são complementares: dar o peixe e a condição de pescar (Bruto da
Costa, 1998). Assim, o velho adágio abstrai, inconseqüentemente, o fato de que
para que alguém possa fazer ou aprender alguma coisa é preciso, antes, ter as
condições básicas (físicas e de autonomia) para assim proceder, condições estas
que, na falta de recursos pessoais, devem ser garantidas e/ou providas pelo
Estado (Doyal & Gough, 1991). Portanto, contrariando o popular provérbio chinês,
na ausência de condições básicas deve-se dar, sim, o peixe, a vara de pesca e o
ensinamento de como pescar, para que qualquer pessoa possa ter condições
suficientes para viver e exercitar a sua capacidade de participação social. E é esse
entendimento que deverá eleger a justiça social como a principal referência da
política brasileira de assistência social.
A política de assistência social é também processo cívico, porque deve ter
vinculação inequívoca com os direitos de cidadania social, visando concretizá-Ios.
Concretizar direitos sociais significa prestar à população, como dever do Estado,
um conjunto de benefícios e serviços que lhe é devido, em resposta às suas
necessidades sociais. Sendo assim, o direito a ser concretizado pela política de
assistência social afigura-se, ao mesmo tempo, como um dever de prestação por
parte do Estado e um direito de crédito por parte da população àquilo que lhe é
essencial para garantir a sua qualidade de vida e a sua participação cidadã (Pisón,
1998).
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O caráter de prestação e de crédito dos direitos sociais os diferencia dos
direitos civis e políticos que, por se regerem pelo princípio da liberdade, colocam-
se, inclusive, contra o Estado, para impedir que este interfira nas esferas
individuais protegidas. É por isso que estes direitos são comumente chamados de
direitos de liberdade negativa (de herança kantiana), porque negam a intervenção
do Estado nos assuntos privados. Já os direitos sociais, por se regerem pelo
princípio da igualdade e da justiça social, pressupõem uma postura ativa e positiva
do Estado, que consiste em prover e fazer o que for devido ao cidadão que, como
tal, se converte em credor e titular legítimo desse atendimento.
É com base nesse referencial racional, ético e cívico que, desde 1988, com
a promulgação da Constituição Federal, diz-se que a assistência social no Brasil
constitui uma política publica, um direito de cidadania e um componente da
seguridade social.
Mas, o que isso realmente significa? O que vem a ser exatamente a
assistência social assim reconceituada? É importante qualificar esses conceitos,
pois é só a partir dessa qualificação que poderemos melhor compreender o
significado e o alcance da atual Política Nacional de Assistência Social (PNAS),
aprovada pela Resolução n. 207-CNAS, 16.12.1998.
III
Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que a assistência social de que
falam a Constituição Federal de 1988, a Lei Orgânica da Assistência Social
(LOAS) - que regulamenta os artigos 203 e 204 da referida Constituição - e, mais
recentemente, a PNAS é uma política social pertencente ao gênero política
pública. É, portanto, uma política social pública, como o são a saúde, a
previdência, a educação etc. Mas, o que vem a ser uma política pública?
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Comecemos pelo que ela não é. Política pública não é sinônimo de política
estatal. A palavra "pública", que acompanha a palavra "política", não tem uma
identificação exclusiva com o Estado, mas sim com o que em latim se expressa
como res publica, isto é, coisa de todos, e, por isso, algo que compromete,
simultaneamente, o Estado e a sociedade. É, em outras palavras, ação pública, na
qual, além do Estado, a sociedade se faz presente, ganhando representatividade,
poder de decisão e condições de exercer o controle sobre a sua própria
reprodução e sobre os atos e decisões do governo e do mercado. É o que
preferimos chamar de controle democrático exercido pelo cidadão comum, porque
é um controle coletivo, que emana da base da sociedade, em prol da ampliação
da democracia e da cidadania,
Quando se fala em res publica ou república, está se falando, também, de
uma forma de organização política que se pauta pelo interesse comum, da
comunidade, da soberania popular e não da soberania dos que governam. Numa
República, os governantes não são os soberanos; são, como diz Rousseau,
funcionários do povo, estando, por isso, a serviço deste. É essa soberania que dá
ao povo a faculdade de manifestar a sua vontade como vontade geral - que deve
ser respeitada e incorporada nas leis -, assim como a legitimidade do controle
democrático por ele exercido.
Por outro lado, a palavra política, que compõe o conceito composto "política
pública", tem, como já mencionado, uma conotação específica. Refere-se a
planos, estratégias ou medidas de ação coletiva, formulados e executados com
vista ao atendimento de legítimas demandas e necessidades sociais.
Política pública significa, portanto, ação coletiva que tem por função
concretizar direitos sociais demandados pela sociedade e - previstos nas leis. Ou,
em outros termos, os direitos declarados e garantidos nas leis só têm
aplicabilidade por meio de políticas públicas correspondentes, as quais, por sua
vez, operacionalizam-se mediante programas, projetos e serviços. Por
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conseguinte, não tem sentido falar de desarticulação entre direito e política se nos
guiarmos por essa perspectiva.
É, pois, por meio das políticas públicas que são formulados, desenvolvidos
e postos em prática programas de distribuição de bens e serviços, regulados e
providos pelo Estado, com a participação e o controle da sociedade. Porém, a
relação da sociedade com o Estado na operacionalização dessa política nem
sempre é de reciprocidade, aliança e parceria, como parece indicar o discurso
corrente, mas, principalmente, de competição e conflito, que devem ser
trabalhados em prol do aperfeiçoamento da política e do interesse publico.
Outra qualificação necessária é a da assistência social como direito. Mas,
também aqui, cabem indagações: com que direitos a assistência social se
identifica? Que direitos, na condição de política pública, ela concretiza?
Como vimos, os direitos com os quais a assistência social se identifica são
os direitos sociais e não os individuais - civis e políticos -, embora ela tenha no seu
horizonte o fortalecimento desses últimos direitos. É como diz Plant (1998): sem
direitos sociais (ligados ao princípio da igualdade) os direitos individuais (civis e
políticos, ligados ao princípio da liberdade negativa) tornar-se-ão abstratos. A
assistência social se identifica com os direitos sociais porque são esses direitos
que têm como perspectiva a eqüidade, a justiça social e exigem atitudes positivas,
ativas ou intervencionistas do Estado para, de par com a sociedade, transformar
esses valores em realidade. Daí porque, no campo da assistência social, a
decisiva participação do Estado, seja como regulador, seja como provedor ou
garantia de direitos é considerada fundamental. A tendência dominante, da qual
compartilha a PNAS, é a de dar pouca ênfase à provisão social como
responsabilidade estatal, em troca da ênfase na contribuição da sociedade, o que
gera polêmica porque – conforme está implícito na LOAS - só o Estado pode
garantir direitos, bem como a gratuidade de benefícios e serviços que constitui
uma característica básica da política de assistência social.
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No contexto da cidadania, os direitos sociais são os mais dinâmicos e,
conseqüentemente, os que mais têm se multiplicado e se especializado (Bobbio,
1992). É possível identificar, nos últimos vinte anos, o aparecimento de novos
sujeitos ou titulares de direitos, cujas garantias legais se especificaram guiadas
pelo critério das diferenças ou das particularidades concretas que distinguem
esses sujeitos entre si: idosos, crianças, mulheres, portadores de deficiências,
gerações futuras. Esta não é a tendência das garantias dos direitos individuais,
pois estes concebem o cidadão como sujeito genérico e abstrato.
Como direito social, a assistência social não deve estar voltada apenas
para a satisfação de necessidades biológicas ou naturais. O ser humano, por mais
brutalizado que seja, é um ser social e, como tal, é dotado de dimensões
emocionais, cognitivas e de capacidade de aprendizagem, que devem ser
consideradas pelas políticas públicas (Marx, 1977; Heller, 1998). Isso explica por
que a política de assistência social, além de dever se preocupar com a provisão
de bens materiais ("dar o peixe"), tem que contribuir para a efetiva concretização
do direito do ser humano á autonomia, à informação, à convivência familiar e
comunitária saudável, ao desenvolvimento intelectual, às oportunidades de
participação e ao usufruto do progresso ("dar as condições para pescar").
Além disso, como direito social por excelência, a assistência social tem que
ser desmercadorizada. Isso significa que o seu destinatário deve usufruir dos
benefícios que lhe são devidos como uma questão de direito e não de cálculo
contratual, atuarial ou contábil. É preciso ter em mente que a assistência social é a
única política pública eminentemente social e, por isso, ela se descaracterizará se
fizer qualquer concessão às exigências utilitaristas do mercado (Esping-
Andersen, 1991). "A mera presença da previdência e da assistência [diz Esping-
Andersen] não gera necessariamente uma desmercadorização significativa se não
emancipar substancialmente os indivíduos da dependência do mercado" (p. 102).
Afinal, a assistência existe para atender às necessidades sociais, colocando-se
como um contraponto à lógica da rentabilidade econômica. Portanto, não faz
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sentido tal política cobrar dos credores de uma considerável dívida social qualquer
tipo de contrapartida. Por isso, além de ela ser gratuita e não contributiva, nos
termos da LOAS, não deve funcionar como mercadoria ou valor de troca mercantil.
E toda instituição de assistência social deve ser, por natureza e definição, sem fins
lucrativos, a par de ter finalidade pública. Na verdade, as entidades de assistência
social, antes de se autodenominarem não-govemamentais, deveriam denominar-
se não-mercantis (Wolfe, 1991).
A assistência social também é componente da seguridade social porque
integra e define um veio da seguridade, que é a sua dimensão distributiva, por
oposição à dimensão contributiva definida pela previdência social. Além disso, ela
deve agir não só no sentido de livrar os seus destinatários dos infortúnios do
presente, mas também das incertezas do amanhã, protegendo-os
preventivamente das adversidades causadas por enfermidades, velhice,
abandono, desemprego, desagregação familiar etc. É nesse sentido que ela deve
funcionar como uma rede de proteção impeditiva da pobreza extrema.
Trata-se, assim, a política de assistência social, de medida ativa e positiva
que, além de procurar corrigir injustiças, visa prevenir situações de vulnerabilidade
e riscos sociais que representam ameaças, perdas e danos a vários segmentos
sociais.
IV
Com base no exposto, pode-se definir a, política de assistência social como
a política de seguridade social que visa, de forma gratuita e desmercadorizada,
contribuir para a melhoria das condições de vida e de cidadania da população
pobre mediante três procedimentos básicos:
a) provimento público de benefícios e serviços básicos como direito de
todos;
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b) inclusão no circuito de bens, serviços e direitos de segmentos sociais
situados à margem desses frutos do progresso;
c) manutenção da inclusão supra citada e estímulo ao acesso a
patamares mais elevados de vida e de cidadania, mediante o
desenvolvimento de ações integradas no âmbito das políticas públicas.
Isso significa que a política de assistência social brasileira, além de dever
constituir a rede de proteção já mencionada, deve funcionar como uma espécie de
alavanca para incluir no circuito dos bens, serviços e direitos existentes na
sociedade grupos sociais injustamente impedidos dessa participação. Sendo
assim, ela não estaria voltada exclusivamente para a pobreza absoluta, mas,
também, para a pobreza relativa ou para a desigualdade social, que,
contemporaneamente, vem aumentando o fosso entre ricos e pobres e sendo
identificada com o processo de exclusão social. Ademais, ela não estaria
desgarrada das demais políticas socioeconômicas e muito menos agiria para
desmantelá-Ias ou substituí-Ias, como quer a ideologia liberal com a sua proposta
de focalização na pobreza extrema. Ao contrário, ela funcionaria para fortalecer as
condições de eficácia das demais políticas sociais e econômicas, tendo em vista o
combate integrado à pobreza e à reprodução desta entre as novas gerações.
Tal concepção apóia-se na premissa de que, com o reconhecimento da
política de assistência social como mecanismo de concretização de direitos
sociais, rompe-se com a visão conntratualista de proteção social - que exige
sempre contrapartidas do beneficiário - e instaura-se uma proteção incondicional
baseada no status de cidadania - que dispensa qualquer tipo de contrapartida ou
condição. Em outras palavras (como está contido no documento elaborado pelo
Grupo de Trabalho para a Reestruturação da Previdência Social, coordenado, em
1996, por Wanderley Guilherme dos Santos): o direito básico social perante o qual
todo cidadão é, em tese, titular deve ser garantido independentemente da
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capacidade do indivíduo de contribuir para o financiamento dos benefícios e
serviços que recebe.
Por outro lado, o estabelecimento de básicos sociais não deve se restringir
a um quantum monetário e nem se reger pelo critério da menor elegibilidade - que
consiste na menor provisão possível para não competir sequer com o pior salário.
Embora esse critério esteja presente na Lei Orgânica da Assistência Social
(LOAS) e, de certa forma, seja endossado pela PNAS, sugerimos o seu
alargamento ou a sua superação, pois ele é uma herança retrógrada do sistema
de proteção social do século XIX, sob influência da ideologia liberal. De fato,
nesse século, sob a hegemonia do liberalismo clássico, pregava-se a eliminação
da proteção condigna aos pobres e a instauração de uma modalidade irrisória e
estigmatizante de provisão social pública, para que esta não entrasse em conflito
com o livre desenvolvimento do mercado e com os valores comerciais de um
capitalismo concorrencial em franca expansão. Donde a ênfase, a partir de então,
na ética capitalista do trabalho que, sob o pretexto de proteger os salários,
enclausurava na pobreza quem não era assalariado ou não vendia a sua força de
trabalho aos detentores dos meios de produção.
Quanto às funções da assistência social, concebemos basicamente duas,
considerando a realidade brasileira contemporânea:
a) uma, resgatadora e concretizadora de direitos, mediante a qual
poderão ser criados esquemas de participação de significativas parcelas
da população no circuito das oportunidades, bens, serviços e direitos
existentes na sociedade;
b) outra, mantenedora dessa participação, mediante a qual poderão ser
criados esquemas preventivos contra o seu impedimento.
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Tanto uma como outra função poderão promover indivíduos e grupos e
induzir a política de assistência social a estabelecer nexos orgânicos com as
demais políticas públicas, alargando, dessa forma, as suas possibilidades de
eficácia. Por isso, não tem sentido separar - como o faz a PNAS - as funções de
promoção da assistência social das de inserção, prevenção e proteção, pois a
política pública que concretiza direitos é inerentemente promotora e otimizadora
de satisfações de necessidades. É com base nesse entendimento que também
não vemos sentido no fato de a política de assistência social ter como objetivo
primordial a provisão de mínimos sociais, pois nenhuma política pública
concretizadora de direitos visa ao mínimo de atendimento, mas ao essencial, que
deverá ser crescentemente otimizado.
Ao exercer as referidas funções, a assistência social reconceitua-se,
assumindo as seguintes características:
a) embora não seja em si mesma universal, já que tem como destinatários
segmentos sociais particulares (crianças e adolescentes carentes, idosos,
pessoas portadoras de deficiência e famílias sem condições de se auto-sustentar,
desempregados e empregados de baixa renda), ela deve realizar uma necessária
tarefa universalizadora ao incorporar e manter incorporados no circuito das
institucionalidades prevalecentes (direitos, leis, políticas) esses destinatários;
b) por ser gratuita e sem fins lucrativos, automaticamente prevê o efetivo
comprometimento do Estado e o envolvimento desinteressado da sociedade na
regulação, na provisão e no controle democrático de sua operacionalização. E é
só nesse sentido que ela funcionará como um espaço publico, onde o Estado
como a sociedade se farão presentes colocando-se a serviço de interesses
coletivos.
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Tendo em vista essa nova concepção, a política de assistência social
deverá romper com todos os vícios ou anacronismos que, em seu nome,
vigoraram no passado e ainda se impõem erroneamente no presente, a saber:
a) predomínio do principio da incerteza na distribuição de benefícios e
serviços e, conseqüentemente, da proliferação de ações voluntaristas e
improvisadas, sem a devida regulação estatal e sem controle
democrático;
b) ausência de garantias legais e de amparo jurídico no seu
processamento;
c) desperdício de recursos e superposição de provisões;
d) focalização na pobreza extrema, com o conseqüente desamparo de
segmentos sociais que, a despeito de não serem miseráveis, são pobres
e vulneráveis à miséria; por isso, tais segmentos, se deixados à sua
própria sorte, tendem a engrossar as fileiras da indigência ou do trabalho
degradante (este é o caso do Benefício de Prestação Continuada regido
pela LOAS);
e) ausência de vínculos orgânicos entre a assistência social e as demais
políticas públicas;
f) cultivo do estigma, mediante a imposição constrangedora e punitiva do
critério da menor elegibilidade; dos testes de meios (ou comprovações
vexatórias de pobreza); e da fraudemania, de acordo com a qual todo
pobre, em vez de ser tratado como um cidadão que se habilita a fazer uso
de um direito que lhe é devido sem condições, é visto como um suspeito
de fraudar o sistema de proteção social pública. Impera, portanto, nessa
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modalidade de prática assistencial, a suspeição, em lugar da empatia, na
relação entre as Instituições de assistência social e seus destinatários.
Por fim, entendemos que existem dois tipos de destinatários da política de
assistência social, compatíveis com as suas funções:
a) o destinatário da ação resgatadora de direitos é todo cidadão que, por
razões pessoais, sociais ou de calamidade pública, encontra-se,
temporária ou permanentemente, sob o jugo de condições de vida e de
cidadania inferiores ao padrão básico julgado socialmente satisfatório.
Fazem parte deste rol de destinatários tanto o tradicional público-alvo da
assistência social - os incapacitados físicas, mental ou juridicamente -
quanto adultos física e mentalmente capazes para o trabalho mas que,
por motivos alheios à sua vontade, tornaram-se invalidados socialmente
devido à interrupção ou ao rebaixamento da sua produtividade e do seu
salário.
b) o destinatário da ação preventiva, mantenedora da participação social,
é todo cidadão que, embora usufrua do padrão básico julgado
socialmente satisfatório, apresenta vulnerabilidades e enfrenta riscos que
o impedem de permanecer, pelo seu próprio esforço, nesse patamar, ou
de superá-Io.
Quanto à família, apontada pela PNAS como o destinatário e parceiro
privilegiado do Estado, é bom esclarecer que:
• há, hoje em dia, vários tipos de família. Essa variedade tem que ser
levada em conta quando se elege o núcleo familiar como a principal
fonte prestadora de assistência social privada. A visão tradicional da
família nuclear, constituída de pai, mãe e três ou quatro filhos, tendo
o homem como o cabeça de casal, não mais corresponde à
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realidade. A principal mudança nesse padrão doméstico reside na
ampla participação das mulheres no mercado de trabalho, nas
escolas, na chefia da casa, na militância política etc., o que reduz em
muito a tradicional disponibilidade feminina para exercer a liderança
da assistência no âmbito do lar;
• O crescimento do número de famílias uniparentais (de um só genitor)
tem representado outra mudança significativa na estrutura familiar.
Os divórcios e os novos casamentos tornam complexas as redes de
parentesco e as responsabilidades domésticas. As implicações
dessa complexidade ainda precisam ser investigadas para ser
melhor enfrentadas pelas políticas sociais, notadamente pela política
de assistência social;
• dada a diversidade das estruturas familiares modernas, tem sido
difícil, mesmo nos países desenvolvidos, conceber uma política de
assistência que dê conta das diferentes necessidades apresentadas
pelo conjunto heterogêneo das famílias. Uma única estratégia
política pode afetar de diferentes maneiras famílias diversas;
• O resgate contemporâneo da família, em escala internacional, como
a principal fonte de proteção social na esfera privada, ao lado da
comunidade local, da vizinhança, dos amigos próximos, enfim, dos
grupos informais, no dizer de Johnson (1990), tem sido considerado
não só como um olhar conservador nostálgico para o passado, mas,
principalmente, como parte de um amplo plano de privatização dos
serviços de bem-estar social.
Por isso, cremos que qualquer política que vise reforçar o papel da família e
dos grupos informais na provisão social tem, em primeiro lugar, de levar em conta
as novas estruturas familiares e comunitárias e a sua variedade. Após isso, é
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essencial precisar, com exatidão, a ideologia que está por trás dessa política, bem
como as possibilidades e os limites reais da contribuição desses grupos, para que
eles não venham a arcar, indevidamente, com responsabilidades e garantias que
competem predominantemente ao Estado.
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Por fim, acreditamos que, com base nessas reflexões, seja possível pensar
numa política de assistência social em que:
a) o seu objeto de atenção deixe de ser uma anomalia social para ser um
fenômeno dotado de regularidade histórica e passível de explicação e
tratamento científicos;
b) o seu destinatário deixe de ser o miserável para ser uma coletividade
definida a partir dos conceitos de pobreza relativa ou desigualdade social,
em contraposição ao conceito de pobreza absoluta ou extrema. Isso
exigirá que a assistência social se organize não em torno de uma
clientela, mas de necessidades sociais determinadas por fatores
estruturais e históricos.
Uma tal assistência terá de desenvolver um constante esforço de
aproximação e de entrosamento com as demais políticas sociais e com a política
econômica, na arena política, com vista à construção de projetos articulados de
atenção às necessidades sociais. Isso, por sua vez, exigirá duas principais
providências, que constituem, na verdade, grandes desafios para a experiência
brasileira de bem-estar:
a) o enfrentamento da questão da redistribuição relativa de renda e de
riqueza, que está no cerne da política de financiamento da assistência
social e dos gastos públicos para a área. A nosso ver, para que a
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assistência social possa se afirmar como uma política social pública
voltada para as necessidades sociais, ela tem que ser redistributiva (e não
só distributiva) e contar com receitas decorrentes de políticas tributárias
progressivas e com outros recursos de origem não contributiva, que não
onerem os pequenos e médios assalariados;
b) a reorganização da assistência social numa estrutura descentralizada e
participativa, tal como preconiza a Constituição Federal brasileira, de
1988. Contudo, há que se ter o cuidado de qualificar com clareza essas
descentralização e participação, para não se cometer enganos e
retrocessos no campo da assistência social. A descentralização que se
afigura mais apropriada aos avanços sociais contidos na Constituição é
aquela que não desobrigue o Estado de suas responsabilidades sociais e
não onere a sociedade com tarefas e encargos que não lhe competem.
Tal proposta difere da descentralização inspirada num modelo pluralista
residual (Mishra, 1990) que visa, acima de tudo, à recuperação da
economia e à diminuição do gasto público na área social, ressuscitando
velhas fórmulas de auto-ajuda e da ajuda mútua, que não são
consistentes na prática e nem asseguram direitos.
Só assim teremos uma política de assistência social mais compatível com a
magnitude e a complexidade da pobreza brasileira, a qual afeta cerca de 50
milhões de pessoas (segundo dados oficiais, 30% da população do país vive com
menos de um salário mínimo). Isso mostra que o Brasil é um dos países mais
injustos do mundo, apesar de não ser propriamente pobre, já que ocupa um lugar
relevante no ranking das economias internacionais. Essa injustiça assenta-se
numa desigualdade pouco comum, se comparada com a média das desigualdades
mundiais. Se o nível de desigualdade brasileira diz um estudo do IPEA - fosse
parecido com a média da desigualdade mundial, o Brasil teria 10% de pobres, e
não os atuais 30%, e a distância entre ricos e pobres seria menos gritante do que
a existente. É que, enquanto, na média mundial, os rendimentos dos 10% mais
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ricos são cinco vezes maiores do que os dos 40% mais pobres, no Brasil essa
distância é 30 vezes maior.
Estão postos, assim, para a política de assistência social brasileira, desafios
ingentes que estão a requerer maior comprometimento do Estado e controle
democrático por parte da sociedade, para que a desigualdade social torne-se não
uma preocupação tópica e circunstancial de governos locais, mas uma prioridade
pública impostergável da vontade política nacional.
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