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1 COLISEU BEZERRA, José Filho (UEM) INTRODUÇÃO Exceto a destruição deixada pela invasão dos nômades ao Império romano na Baixa Idade Média, nunca na história da humanidade se viu tamanha regressão de valores, do gosto, de costumes e da espiritualidade como a que se configura na atual e nebulosa transição de virada de século. A destruição de vidas, de monumentos e de patrimônios históricos se intensificaram. A arte e a cultura foram coisificadas de forma grosseira em atendimento ao apelo do capital. A progressão continuada das torturas, da corrupção, da avareza, assim como a promoção do fútil e do inútil banalizaram as relações sociais pautadas nos valores morais. A busca exasperada da satisfação dos próprios interesses tem produzido cada vez mais indivíduos alienados e ausentes da própria realidade. A paralisia e a inércia do poder ante a morte, a violência, a estupidez, e a barbárie, muitas vezes julgadas e sentenciadas por uma justiça privilegiadora de classes, anima cada um a praticá-la à própria vontade. Diante da realidade caótica por que atravessa o mundo contemporâneo, outra realidade ainda mais desalentadora dá mostras cada vez mais evidentes: a naturalização dessas formas de violência. A violência sanguinolenta, a violência à moral aos valores e às virtudes tem ganhado roteiro, patrocínio e horário nobre para sua exibição. Um novo coliseu? Talvez. Porém com maior capacidade e poder de massificação, em que os espetáculos diários tem público certo e Ibop garantido. Transformar essa realidade? Uma utopia desejada. Entretanto, a postura alienada e conformista ante ao caos instalado, tem se nos mostrado mais convidativa e confortável. Contudo, o que parecia ser o prenúncio irreversível do final dos tempos para os povos greco-romanos, que vivenciaram a mais crudelíssima das realidades que marcou a iconografia medieval, renasceu e se reconfigurou, a partir da ação transformadora do Império carolíngeo. Discursos redundantes que apenas exploram o caos pelo caos, receitas mirabolantes dadas à toque de caixa em épocas eleitorais, teses, dissertações e escritos, engavetados ou a espera de títulos e de horários, sem jamais terem tidos proveitos práticos, provaram a

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COLISEU

BEZERRA, José Filho (UEM)

INTRODUÇÃO

Exceto a destruição deixada pela invasão dos nômades ao Império romano na Baixa

Idade Média, nunca na história da humanidade se viu tamanha regressão de valores, do gosto,

de costumes e da espiritualidade como a que se configura na atual e nebulosa transição de

virada de século. A destruição de vidas, de monumentos e de patrimônios históricos se

intensificaram. A arte e a cultura foram coisificadas de forma grosseira em atendimento ao

apelo do capital. A progressão continuada das torturas, da corrupção, da avareza, assim como

a promoção do fútil e do inútil banalizaram as relações sociais pautadas nos valores morais. A

busca exasperada da satisfação dos próprios interesses tem produzido cada vez mais

indivíduos alienados e ausentes da própria realidade. A paralisia e a inércia do poder ante a

morte, a violência, a estupidez, e a barbárie, muitas vezes julgadas e sentenciadas por uma

justiça privilegiadora de classes, anima cada um a praticá-la à própria vontade.

Diante da realidade caótica por que atravessa o mundo contemporâneo, outra realidade

ainda mais desalentadora dá mostras cada vez mais evidentes: a naturalização dessas formas

de violência. A violência sanguinolenta, a violência à moral aos valores e às virtudes tem

ganhado roteiro, patrocínio e horário nobre para sua exibição. Um novo coliseu? Talvez.

Porém com maior capacidade e poder de massificação, em que os espetáculos diários tem

público certo e Ibop garantido. Transformar essa realidade? Uma utopia desejada. Entretanto,

a postura alienada e conformista ante ao caos instalado, tem se nos mostrado mais convidativa

e confortável.

Contudo, o que parecia ser o prenúncio irreversível do final dos tempos para os povos

greco-romanos, que vivenciaram a mais crudelíssima das realidades que marcou a iconografia

medieval, renasceu e se reconfigurou, a partir da ação transformadora do Império carolíngeo.

Discursos redundantes que apenas exploram o caos pelo caos, receitas mirabolantes

dadas à toque de caixa em épocas eleitorais, teses, dissertações e escritos, engavetados ou a

espera de títulos e de horários, sem jamais terem tidos proveitos práticos, provaram a

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ineficácia para a cura das calamidades que atemorizam nosso novíssimo século. Nem mesmo

a oratória bem pontuada, das frases de efeito (que nunca fazem efeito) tem conseguido mudar

essa realidade. Ao contrário,só parecem fazer alargar o abismo pessimista do caos. Nesse viés,

a única ponte possível que pode fornecer condições práticas para transpor a abissal regressão

por que passa a contemporaneidade chama-se educação.

Como no Império de Carlos Magno, esse meio pode fazer ressurgir da apatia alienante

e do ceticismo cada vez mais acurado dos indivíduos mentes reflexivas e conhecedoras dos

fenômenos provocadores do caos, tão necessárias e imprescindíveis para um renascimento e a

recomposição da ordem desestruturada. Uma das vertentes par tal intento pode estar na busca

do passado e nos Clássicos antigos a autoridade corretiva e eficaz para o enfrentamento e o

entendimento dessa realidade. Compilando Políbios: “a educação e o exercício mais sadios

para uma vida estão no estudo da história, e que o mais seguro e a realidade o único método

de entender as vicissitudes da sorte é recordar as calamidades alheias”. (Políbios, História.

1985).

Nesse sentido, este estudo, enveredando-se, ora pelas trilhas dos autores

contemporâneos, ora bebendo da sábia fonte do grego Lucrécio, busca estabelecer relações e

co-relações entre passado e presente, não apenas para decifrar e rediscutir o óbvio, mas para

compreender na sua lógica a natureza dos fatos e dos fenômenos que empurram a humanidade

para o mergulho no abismo, e que ela própria não consegue compreender.

Nas indas e vindas pelos escritos de ontem e de hoje, numa tentativa de explicitar a

fenomenalização da violência e da barbárie, e que tem se tornado um verdadeiro “panis et

circencis” no seio da social contemporâneo, “coliseu”, mais do que uma exposição de fatos,

causas e conseqüências, é um convite a uma reflexão pedagógica que vê, no estudo dos

Clássicos antigos, porém sempre novos e atuais, uma das possibilidades para amenizar os

efeitos negativos que a regressão progressiva e continuada tem imposto à humanidade.

COLISEU: UMA PLATÉIA PARA O ESPETÁCULO DA BARBÁRIE

Da arquitetura dos anfiteatros Greco-romanos, onde os Antigos se reuniam para se

deleitarem diante do espetáculo da violência proporcionado pelos gladiadores, apenas as

ruínas do colossal Coliseu rememoram à humanidade o sangue, a morte e a virtude de que foi

palco suas arenas.

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As séculos avançaram. Entretanto, nem mesmo os ideais iluministas propagados no

Século XVII, mostrando o sentido da razão que desmistificaram os mitos e as crenças

cultuados na era medieval, fizeram com que homens superassem a falsa concepção de que a

violência e o mal são condições inatas à natureza humana, como pensavam os povos

medievais que apreciavam a morte e o sangue deitado pelas lutas como rotinas naturais a seus

costumes. Lafaye, (apud Garrafoni 2005, p.29) in Glatiator (1896), já constatava essa

realidade ao afirmar: “Hoje não vemos mais combates de gladiadores senão que seu

resultado sangrento, e isso é o bastante para que eles nos pareçam abomináveis”.

Todavia, o comportamento primitivo, que parecia ser condição apenas da natureza

daquele homem, se perpetuou e se naturalizou pelo “civilizado” homem da sociedade da era

da ciência e da tecnologia que, desmistificado da crença dos mitos e da existência dos deuses

não têm sabido fazer uso das luzes que os livrariam das trevas e que continuam a ofuscar-lhe

as trilhas da razão.

Relacionando o contexto da sociedade contemporânea e “Glória e sangue nos

anfiteatros romanos”, comunguemos do olhar histórico de Garrafoni (2005), sobre a polis

romana para entendermos a aceitação da cultura da violência que continua sendo reproduzida

e naturalizada pelos homens em tempos e contextos históricos distintos.

Entre os grandes acontecimentos da vida política e da sociedade romana do período

medieval, os combates sangrentos dos gladiadores e a morte dos infelizes que eram atirados

para serem destroçados pelas feras nas arenas eram práticas que faziam parte das tradições

daquele povo. De acordo com a historiadora, essas práticas de violência se davam, entre

outras razões, como uma estratagema política da elite para promover momentos de diversão à

plebe e assim desviar-lhes a atenção para os assuntos da polis. Naquele tempo, Séc.I dc, os

espetáculos de lutas e massacres nas arenas exerciam fascínio e tinham importância para a

cultura dos romanos. De acordo com Garrafoni (2005, p.30), milhares de homens, mulheres,

crianças e idosos das mais diferentes etnias, condições sociais e status jurídico subiam as

mesmas escadas e se acomodavam em seus lugares onde esperavam ansiosos os combates e

execuções de criminosos. Aproveitavam ainda daquele ambiente hostil para os jogos de

seduções e os flertes que se davam insensíveis às atrocidades a que assistiam, enfim o mesmo

palco em que presenciava o sangue também era utilizado para a satisfação das

individualidades.

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Levantamentos históricos realizados e publicados na década de 1960 por Grant (apud

Garrafoni 2005), evidenciam que naqueles embates era visível a crueldade do domínio

romano a que as camadas populares eram submetidas e que, em consequencia disso, eram

oprimidos e frequentemente oferecidas às arenas. Emerge dessa brutalidade o cristianismo.

Este vem como um caminho possível para elevar as consciências dos indivíduos a se oporem

e questionarem os combates sangrentos. Tais costumes estavam intrínsecos no dia a dia

daquelas comunidades, provando que aquelas populações se mostravam familiarizadas com as

barbáries, assistindo de olhos atentos das suas arquibancadas cada movimento e o banho de

sangue nas areias das arenas, tendo a morte como distração. O estóico Sêneca, ao denunciar

essas paixões mundanas, já mostrava seu inconformismo perante àquelas barbáries que só

levavam o homem à destruição, muito embora caísse em contradição ao admitir uma certa

importância pedagógica como sendo aquelas práticas atos de bravura que preparavam o

homem a morte e que por isso eram exemplos que, se usados para esse fim, deveriam ser

seguidos.

A História tradicional nos revela a Roma medieval como um Estado de tradições

voltadas à guerra. Sob o prisma dessa abordagem, a realização desses eventos e a violência

por eles espetacularizada eram tidos como naturais, uma vez que os dogmas instituídos por

padrões éticos e culturais, sem levar em conta as relações intersubjetivas e interpessoais de

comportamento, acabavam por naturalizar de forma hegemônica a barbárie contida nas

arenas. Justificava-se ainda toda aquela violência contra os infratores que iam contra as leis

dos Imperadores como sendo uma das formas necessárias à garantia da soberania política do

Estado romano, pois uma vez que atirados às arenas para serem punidos com o mais alto rigor

aquelas atrocidades serviam de exemplos aos que assistiam, garantindo com isso a

manutenção da ordem social. Sendo assim, aqueles valores negativos, que para aqueles povos

estavam dentro dos seus padrões éticos, eram despertados e aceitos como naturais.

Entretanto, aquelas práticas arbitrárias que se davam nas arenas não eram aceitas de

forma unânime pelos componentes daquela sociedade. Historiadores recentes como Wistrand

(1992), (apud Garrafoni, 2005), aponta que apesar da enorme violência e do espetáculo teatral

de sangue ser questionado por alguns, não havia mecanismos de oposição à violência

praticada nas arenas. Dentre os fatores que contribuíam para essa inércia, supostamente

levantados por ele, estariam a fama social dos gladiadores que venciam os combates, o puro

prazer da platéia e também porque os espetáculos eram oferecidos gratuita e constantemente

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pelos imperadores e pelos grupos dominantes.. PLAS, (1995), também levantou hipóteses ao

afirmar que por mais que houvesse gastos públicos para tais eventos, isso era compensado

pelo gesto simbólico de conter as insatisfações vindas da plebe, transformando-se o medo em

diversão. Em suas palavras afirmou: “a arena tinha uma função específica dentro da

sociedade, a de acomodar a violência dentro da ordem social por meio da execução”.

(PLASS, 1995, apud Garrafoni, p.56).

Lançando-se um olhar panorâmico sobre aquela realidade do homem medievo da

Roma antiga, a possibilidade de se nos deixar iludir a uma aceitação de conformidade às

atitudes daqueles homens como sendo naturais e próprias a seu tempo seriam muitas. É o que

nos revela o sábio Lucrécio, ao discutir a natureza humana. O filósofo grego apontava para a

necessidade da humanidade buscar as luzes para sair das trevas que ofuscavam os sentidos e o

espírito. Segundo ele, era preciso que os indivíduos se mantivessem atentos para os

fenômenos inconscientes que os enganavam e ao comportamento irracional que os deixavam

ser facilmente enganados pelas falsas verdades.

Discutindo a natureza da alma, Lucrécio, ao refletir sob à luz da razão, dizia que os

indivíduos tendem a aceitar com naturalidade a crença de que o comportamento da alma é

algo inato. Por isso, não se dão conta dos fenômenos que os iludem, atribuindo à natureza as

atitudes negativas da humanidade.

Nos diferentes contextos históricos em que a História abordou a discussão sobre o

espetáculo da morte nas arenas, lançou olhares diferenciados sobre a figura dos gladiadores

romanos, ora tidos como heróis, ora tidos como assassinos impiedosos. Trazer novamente

esse tema para o Século XXI e pô-lo no centro das discussões incorreria no risco de mais uma

vez cair na mera discussão redundante ou apenas incorporar os olhares de outros historiadores

que a História conceituou. Sendo assim, se faz em tempo uma nova rediscussão dessa

temática, desde que, de acordo com Bloch, 2001), se compreenda o presente pelo passado e o

passado pelo presente. Dessa forma, as atitudes e posturas daqueles homens, muitas vezes

abordadas pela história como parte de uma cultura por eles considerada natural, devem ser

resgatadas para dialogar com os homens do nosso tempo, isto é, como história problema e

com isso trazer à reflexão as questão da violência que vem tomando as mesmas dimensões de

espetáculo pela nossa sociedade, tida como “civilizada”.

As coisas não surgem do acaso. Na concepção Lucreciana, há causas para os

fenômenos e que passam desapercebidas porque a esses lhes são atribuídos às vontades

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divinas. Mas a alma humana já contém os germes das coisas e a ele, homem possuidor da

razão, cabe fazê-los ou não eclodir. Cada ser determinado tem em si possibilidade próprias

que lhe dão o entendimento para conhecer seus próprios limites. Lucrécio alerta ao homem

que este deve se orientar pelos exemplos dados pela própria natureza pois a extrapolação dos

limites naturais causa a morte. Diz ele:

[...] pelo que se passa a nossa vista, cada objeto parece limitar outro objeto: o ar limita as colinas, montes limitam o ar, e a terra o mar, e, por seu turno, o mar limita todas as terras. (LUCRÉCIO, 197?, p.93).

É preciso que se reconheça os limites naturais da natureza humana para que suas

reações contrárias não sejam assimiladas como algo natural, sem uma causa provocada.

Constantemente somos enganados pelos sentidos. Esses enganos nos deixam levar pelas

paixões que provocam o ofuscamento da razão, levando-nos a aceitação de coisas e idéias que

acabamos por não questionar porque, a nosso entender, nos parecem naturais. Quando há a

transgressão desses limites o homem se deixa levar pelo instinto irracional. Disso surgem o

preconceito, a xenofobia, a homofobia a intolerância e as atitudes de violência, às quais,

geralmente, os indivíduos as atribuem como causas naturais, esquecendo-se de que ele próprio

as gera.

Notadamente, percebe-se que o comportamento da sociedade da Roma medieval

assumia uma postura de naturalidade frente ao espetáculo proporcionado pelos gladiadores

nas arenas. Tais práticas estavam ligadas aos costumes que formavam o tecido daquela

sociedade, costumes esses que, passados às gerações vindouras iam se tornando

inquestionáveis e em razão disso naturalizados por aquele povo. Aliás, reminiscências

daquela postura vivenciada na Antiguidade Clássica greco romana como forma de controle

político e até mesmo da violência social ainda perduram como práticas naturais aos nossos

dias. Prova disso é a postura fascista do ditador iraquiano Sadam Hussain que, como forma

de punição aos opositores de suas idéias, mandava-lhes cortar uma das orelhas. Por suas

atrocidades e práticas violentas foi enforcado em pleno Século XXI, prática essa concensuada

por Organismos Internacionais como forma de garantia da paz e da reestruturação política e

social daquela sociedade.

Deixando a questão específica da naturalização da violência apresentada como forma

de diversão nos palcos dos anfiteatros greco-romanos, adentremos ao fulcro desse fenômeno

no contexto da realidade social do nosso novíssimo Século.

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O fenômeno da violência sempre esteve no contexto das discussões e das

preocupações das sociedades. Já na Antiguidade Clássica, os filósofos gregos demonstraram

suas preocupações no sentido de estabelecerem regras que valessem como barreiras éticas e

como meios de diminuição e controle de todas as formas de atitudes que conduzam o sujeito à

condição de objeto. Para tanto, o homem deveria cultivar valores positivos como o mérito, o

bem e a virtude e, dessa forma, garantir o equilíbrio racional necessário às relações

intersubjetivas e interpessoais presentes nas conflituosas relações sociais. Essa necessidade se

dá, sobretudo porque a discussão a respeito desse tema esbarra nas questões culturais, tendo

interpretações distintas, em tempos e lugares diferentes, de tal maneira que a cultura de uma

determinada sociedade sobre práticas e condutas que possam ser violentas a ela pode não

parecer para outra.

Enveredando o foco desta discussão para o nosso tempo, se percebe, por meio das

práticas e dos costumes desta sociedade, um comportamento análogo àquele vivenciado pelas

platéias que se posicionavam atentas ao entorno das arenas para os massacres e que parecem

ter se configurado e se perpetuado no interior da nossa sociedade. Contrariando a ordem

natural da lógica da existência humana, a “sociedade do espetáculo”, como assim poderíamos

denominar, aderiu ou vem aderindo como forma de entretenimento a violência cotidiana que é

dissipada pelos meios midiáticos, em especial a televisão. Manifestada na sua forma física,

moral ou emotiva, essa violência espetacularizada e, muitas vezes teatralizada, e aceita pelas

massas como forma de preencher o vazio cultural e afetivo que o mundo cibernético e virtual

tem subtraído lhes roubado.

Diante da realidade posta, os valores humanos acabam se deteriorando face à

supremacia do capital. As lacunas deixadas pelo esvaziamento de sentimentos e a própria

falta de perspectivas de um modelo de sociedade padronizada pelos valores e comportamentos

ditados pela mídia acabam alienando os indivíduos. Consequentemente, seu modus viventis

acaba se desconfigurando da lógica racional. As trivialidades, o sádico e a barbárie acabam se

tornando como se verdadeiras válvulas de escape para o arrefecimento das tensões que o

preço da modernidade impõe. As necessidades de preenchimento das lacunas existenciais

acabam se transformando em negócios lucrativos e rentáveis, e pior, de forma explícita e

natural. Disso se apropria a televisão que a partir da violência real, tira proveito e a distribui

na forma de espetáculo gratuito à grande massa, garantindo com isso seus altos índices de

audiência. Isso se dá preferencialmente nos “horários nobres”, uma vez que o retorno do

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investimento nas suas produções é certo, pois tem público e apreciadores que dão o retorno

consumista dos seus anunciantes para esse gênero de programação, o que nos remete ao

contexto medieval, onde os espetáculos nas arenas eram patrocinados pelos impérios e para

um público cativo que apreciava as atrocidades apresentadas.

Aproveitando-se desse nicho facilitado pela ausência de reflexão de uma sociedade

cujos níveis de naturalização e banalização da violência parecem aumentar numa progressão

aritmética, há uma proliferação desse tipo de programação, que parece também crescer nessa

mesma proporção. Entre esses tantos, há os programas policiais que sobrevivem da exposição

e oferecem, ao vivo e a cores, o sangue derramado das violências para ser degustado,

preferencialmente na hora do almoço ou do jantar pelos assíduos telespectadores. Há ainda os

que nos parecem inofensivos. Apresentados nos os horários vespertinos, funcionam como

verdadeiras lavagens cerebrais, dramatizando e emitindo juízo de valor para questões raciais,

conjugais, passionais, emotivas, enfim, programas de auditório muito bem produzidos, e que

por não extrapolarem o nível da subliminaridade, ou seja, o que não passa do limear da

consciência, banalizam as baixarias onde as lágrimas e humilhações são a garantia de

audiência. Há ainda os do tipo “causos da vida real” que, teatralizados, se mesclam aos

programas “culturais” das tardes e noites de domingo, funcionando como exemplos de

heroísmo e de superação, oferecendo as tragédias, os dramas e o infortúnio de indivíduos

vitimados por acidentes, Não esquecendo das batalhas nos estádios de futebol (réplicas

arquitetônicas dos coliseus medievais) onde gangues rivais transformam seus gramados,

arquibancadas e arredores em verdadeiras arenas para a prática de mortes e extermínios de

torcedores, reforçando com suas barbáries o instinto irracional, animalesco e medieval da

sociedade contemporânea.

Superproduções televisivas mostram em tempo real, aos míopes da realidade, o

verdadeiro sentido non sense das relações humanas. Neste caso, referindo-se de modo

particular ao Big Brother e mais recentemente em A Fazenda, ambos pelo seu potencial

destruidor (de valores éticos e morais) e eficácia ideológica que se assemelha aos resultados

que se objetivava nas arenas medievais, isto é, o consenso e a participação das massas para a

escolha de um herói. Lá, os interesses do Império, aqui os interesses midiáticos pela

imposição de padrões que induzem a aceitação de posturas anti-naturais que levam ao

aviltamento da condição humana, reduzindo os indivíduos a se comportarem como coisa

usada e manipulada dos outros.

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Nos bastidores dos já mencionados reality shows, a arena que servirá de palco à

barbárie moral é preparada simultaneamente ao estardalhaço provocado pelas exaustivas

chamadas e pelas vinhetas que conclamam as massas ao espetáculo. Suas chamadas

utilizando-se de chavões a elas bem familiares (milhões, carros, fama, competição, paredão,

eliminação), por si só, isso já se constitui numa banalização do próprio conteúdo e do objetivo

do evento, isto é, ganhar com a derrota do outro. Câmeras estrategicamente posicionadas não

deixarão escapar uma única lágrima e nem os conchavos dos que ali se degladiarão, levando à

comoção e ao delírio a multidão ansiosa por sangue (mesmo que simbólico) dos derrotados.

Sujeitos confinados e bem alimentados em “jaulas” dotadas de conforto e mordomias, agindo

como se verdadeiras bestas humanas num jogo de trapaças, frieza calculada e falsas emoções,

deformam, inconscientemente ou conscientemente as mais variadas formas de violência, ali,

consubstanciada na forma de valores negativos em que o bem, o mérito e a virtude acabam se

corrompendo pela esperteza e astúcia dos que jogam sujo. Simultaneamente, uma platéia, de

olhares atentos e crítica à trama, porém alienada aos acontecimentos do seu próprio mundo

real, se deliciam e absorvem a espetacularização da essência humana por intermédio do

discurso da mídia dominante que canaliza a agressividade e as opressões daqueles

protagonistas que ela própria treina a se degladiarem pelos milhões, e que acabam se

naturalizando também na vida real.

E porque isso acontece? No nosso tempo, o gosto e assiduidade por programas

violentos apresentados em forma de espetáculo pelas mídias são uma aceitação da violência e

uma tendência crescente das massas que tendem a considerá-la natural. De acordo com

Belloni (2004), essa realidade negativa é um reflexo da impunidade que se encontra

“oficializada”, podendo ser observada até mesmo no enredo dos desenhos infantis, onde os

personagens sempre saem impunes, mesmo onde haja violência, brigas, explosões de bombas.

No período medieval isso também era manifestado nas arenas, uma vez que os que matavam

nas lutas eram tidos como heróis, ou seja, representantes da virtude e da moral.

Outra possibilidade desencadeadora desse comportamento anormal seria as frustrações

individuais potencializadas pelo mundo do consumo que acaba pregando, mesmo que de

forma subliminar, a ascensão social, prestígio e aceitação através da destruição do outro por

meio da competição, sendo se programas uma das possibilidades para os quais os indivíduos

recorreriam no sentido de extravasar suas frustrações interpessoais e responder às situações

que lhe são impostas de forma opressora. Sendo assim, a queda ou até mesmo a morte acaba

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se transformando em prazer, uma vez que repetidas diariamente transforma-se em hábito que

pouco comove e que tampouco faz refletir. Com uma fórmula de garantir o ritmo do

espetáculo, esses programas são montados e produzidos de forma a mesclar o humor, as

tragédias e as notícias positivas aos apelos de consumo, enfim um verdadeiro “panis et

circensis”.

Nesse sentido, é notório perceber que as estruturas simbólicas da aceitação e da

naturalização das diversas formas de violência são socialmente produzidas e reproduzidas. No

Medievo pelo espetáculo das arenas. No nosso tempo, pela espetacularização das barbáries,

do terrorismo e da violência, exaustivamente difundidas pelas mídias.

Dizer que uma coisa é natural ou por sua própria natureza significa dizer que essa

coisa existe necessariamente e que não pode deixar de existir e nem pode ser diferente do que

é. Entretanto, esquece-se de que o natural é o que não depende de uma intervenção ou de uma

decisão dos seres humanos. Nesse perspectiva, desde a Antiguidade clássica o conceito de

educação dos gregos em educar os corpos e o espírito dos membros da sociedade, em especial

das crianças, já se constituía numa das preocupações e discussões dos seus filósofos, que viam

no estabelecimento de regras e condutas éticas e morais a forma de diminuição e de controle

de todas as formas de violência. Para eles, o conceito de natureza, segundo a análise feita por

Chaui (2004), reside na disposição inata e espontânea de sua índole, seu temperamento e seu

caráter, devendo a educação refiná-las, aperfeiçoando-as como qualidades naturais, em

oposição ao que deixa de ser natural quando adquirida por costume ou pela relação com as

circunstâncias da vida, no caso, a violência mostrada repetidamente.

Vivemos numa sociedade pragmática, onde tudo tem que ser prático e rápido.

Todavia, isso tem levado o homem do nosso tempo a uma regressão da espiritualidade, dos

valores, o que tem levado a uma ilusão coletiva e a buscar desesperadamente a satisfação dos

próprios interesses. Consequentemente isso o induz à corrupção, a avareza, a mortes, a

crimes, a destruição dos sentimentos, enfim a uma naturalização e banalização da selvageria e

da impunidade numa escala dimensional só comparáveis a invasão dos bárbaros ao Império

romano na era medieval.

Diante desse novo contexto social, a busca por soluções educacionais que amenizem

os desarranjos sociais que se instalaram sob a permissão da irracionalidade humana tem sido

uma necessidade. Nessa perspectiva, o conhecimento dos documentos do passado como

forma compreender suas relações com os fenômenos do presente é de fundamental

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importância. Mesmo os autores clássicos não tendo a verdade absoluta para os fatos que

afligem nosso tempo, são possuidores da autoridade daquilo que escreveram em seu tempo, se

constituindo como fonte para seus intérpretes em outros tempos e situações, pois tratam de

problemas universais que acometem a condição humana e que se manifestam em todos os

tempos. Ao escrever para os homens do seu tempo Lucrécio se mostra atual, pois sua

proposta, quando interpretada por autores contemporâneos contribui no campo da educação,

sobretudo quando se busca respostas para as barbáries que afetam nosso tempo, as quais

tendemos a naturalizá-las como inerentes aos diferentes contextos e situações históricas.

Muito se tem escrito a respeito de fatos e fenômenos que deturpam as relações sociais.

Entretanto, isso tem se dado de maneira isolada ou, muitas vezes, sem contudo investigar-lhes

o cerne filosófico das suas origens. Sendo assim, a proposta deste estudo vem de encontro a

revalorização dos históricos medievais, pois nestes se encontram os exemplos das virtudes

humanas que foram buscados na vida dos Santos e nos ensinamentos dos seus filósofos,

informações incondicionais das boas maneiras de viver ou de pensar.

A filosofia lucreciana ao buscar o entendimento da natureza das coisas com elementos

da própria natureza, assim como as relações feitas por Garrafoni sobre os gladiadores naquela

época e que ainda persistem nos nossos dias podem criar caminhos e possibilidades aos

educadores. Assim, é possível dar-lhes uma visão ampliada e estes aos seus alunos de como

se dão e se naturalizam os fatos e os fenômenos que conduzem à determinadas práticas, em

especial a barbárie e o declínio dos valores na sociedade contemporânea.

Dessa forma, é possível uma aproximação esclarecedora e objetiva da escola na

formação de agentes reflexivos que saibam perceber e compreender que os fenômenos que

desencadeiam as barbáries e a espetacularização das mais variadas formas de violência não

têm uma natureza em si. Essa natureza é produzida pela própria condição humana e que,

portanto, cabe a ele próprio, homem, os meios de controlá-la.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como aparece neste estudo, o homem não nasce predestinado a praticar a violência e a

barbárie. O meio e, obviamente, com sua auto-permissão, é o que o tornará possuidor de uma

índole e de uma natureza má. Praticar atos de violência e crueldade tendo como pano de fundo

a cultura e os costumes locais para legitimar essas atrocidades, como as praticadas no tempo

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medieval, são posturas incoerentes, uma vez que o uso de práticas violentas em nome da paz

torna-se uma aberração que contraria as próprias leis da natureza.

Tendemos, naturalmente, a naturalizar as barbáries como sendo fatos e fenômenos

intrínsecos a contextos e situações históricas distintas. Entretanto, o meio, legitimado pela

aceitação dessas práticas, é o que as determinam. Na Roma Antiga, governada e manipulada

pelos seus Imperadores, a necessidade da perpetuação do poder pelas castas dominantes era

conseguido por meio desse subterfúgio que se utilizava da imposição do medo e da crueldade.

Naturalmente, isso era tido como modelo de exemplo, disciplina e heroísmo pelas classes

subalternas, dando assim, o continuísmo à herança de atrocidades deixadas pelos povos

bárbaros. Todavia, essa herança parece ter se perpetuado pelos séculos, mudando apenas sua

forma de ser de se manifestar. Desencarcerado das crenças e dos mitos que o mantinham

presos na ignorância de sua irracionalidade, o homem contemporâneo não tem sabido fazer

uso dessa liberdade, condição essa que o faz cativo do comportamento primitivo de seus

antepassados.

Os atos de selvageria, que já não nos parece tão abomináveis. Dada a freqüência e a

maneira com que nos são colocados, parecem ter se naturalizados. Nos desenvolvemos

cientificamente e tecnologicamente. Entretanto, continuamos como se verdadeiros medievos

romanos. Comungamos apáticos e indiferentes do mesmo sangue, da mesma brutalidade, da

mesma violência, da mesma corrupção e também, iguais a eles, as apreciamos como uma

forma de entretenimento. Muito embora não precisemos mais ir até as arenas, somos como se

platéias aguardando em dias e horários definidos que elas cheguem a nós, ao vivo a cores e

com o mesmo clima dos espetáculos apresentados nos coliseus.

Contudo, o sentido deste estudo não se resume a mera exposição ou uma rediscussão

redundante dessa temática exaustivamente discutida pelos diversos segmentos da nossa

sociedade. Buscando na fonte lucreciana o entendimento filosófico da gênese da natureza das

coisas e, comungando da verve historiadora de Garrafoni a respeito da espetacularização da

barbárie nas arenas romanas, este trabalho não teria outra finalidade senão a de fazer tornar

explícita a importância da utilização dos Clássicos, atuais ontem e hoje, e trazê-los para o

campo das discussões e do debate dos problemas que afetam a complexidade humana.

É notório dizer que a violência não será eliminada por completo do seio social.

Entretanto, podemos amenizar seus efeitos negativos que reduzem os indivíduos à condição

de objetos. Essa possibilidade está na educação. É preciso, contudo, que saibamos abordá-la

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na escola, não apenas em cima de fatos consumados, geralmente espetacularizado

exaustivamente pelas mídias. Se faz necessário ao professor ir além do fato dado, do óbvio,

buscando, preferencialmente, no instinto universal desses Clássicos, relacioná-lo ao

entendimento de suas origens e como superá-los. De linguagem simples, porém robustos,

sadios e vigorosos, não se esgotam por princípios estabelecidos nem a regras rígidas e

permanentes, por isso são novos.

Discutir os fatos trazidos pelos jornais é necessário. Entretanto, saber relacioná-los a

outras leituras é imprescindível para que mestre e escola cumpram efetivamente seu papel que

é esclarecimento por meio da verdade reflexiva. Eis este estudo, que buscou na história

contemporânea e medieval caminhos para a discussão de um tema corrente, uma pista para

uma reflexão pedagógica para o debate dos fenômenos que nos afligem.

REFERÊNCIAS

BLOCH, Marc. Apologia da História ou a arte do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zaar, 2001. BELLONI, Maria Luiza. O que é mídia-educação. São Paulo: Autores Associados, 2005. CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2008 GARRAFONI, R.S. Gladiadores da Roma Antiga. Dos combates às paixões cotidianas. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2005. LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Estampa Edit. 1993. LUCRÉCIO. Da Natureza. São Paulo: Ediouro, 197?. XENOFONTE. Ciropedia. São Paulo: Gráfica Edit. Brasileira, 1964.