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COLISEU
BEZERRA, José Filho (UEM)
INTRODUÇÃO
Exceto a destruição deixada pela invasão dos nômades ao Império romano na Baixa
Idade Média, nunca na história da humanidade se viu tamanha regressão de valores, do gosto,
de costumes e da espiritualidade como a que se configura na atual e nebulosa transição de
virada de século. A destruição de vidas, de monumentos e de patrimônios históricos se
intensificaram. A arte e a cultura foram coisificadas de forma grosseira em atendimento ao
apelo do capital. A progressão continuada das torturas, da corrupção, da avareza, assim como
a promoção do fútil e do inútil banalizaram as relações sociais pautadas nos valores morais. A
busca exasperada da satisfação dos próprios interesses tem produzido cada vez mais
indivíduos alienados e ausentes da própria realidade. A paralisia e a inércia do poder ante a
morte, a violência, a estupidez, e a barbárie, muitas vezes julgadas e sentenciadas por uma
justiça privilegiadora de classes, anima cada um a praticá-la à própria vontade.
Diante da realidade caótica por que atravessa o mundo contemporâneo, outra realidade
ainda mais desalentadora dá mostras cada vez mais evidentes: a naturalização dessas formas
de violência. A violência sanguinolenta, a violência à moral aos valores e às virtudes tem
ganhado roteiro, patrocínio e horário nobre para sua exibição. Um novo coliseu? Talvez.
Porém com maior capacidade e poder de massificação, em que os espetáculos diários tem
público certo e Ibop garantido. Transformar essa realidade? Uma utopia desejada. Entretanto,
a postura alienada e conformista ante ao caos instalado, tem se nos mostrado mais convidativa
e confortável.
Contudo, o que parecia ser o prenúncio irreversível do final dos tempos para os povos
greco-romanos, que vivenciaram a mais crudelíssima das realidades que marcou a iconografia
medieval, renasceu e se reconfigurou, a partir da ação transformadora do Império carolíngeo.
Discursos redundantes que apenas exploram o caos pelo caos, receitas mirabolantes
dadas à toque de caixa em épocas eleitorais, teses, dissertações e escritos, engavetados ou a
espera de títulos e de horários, sem jamais terem tidos proveitos práticos, provaram a
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ineficácia para a cura das calamidades que atemorizam nosso novíssimo século. Nem mesmo
a oratória bem pontuada, das frases de efeito (que nunca fazem efeito) tem conseguido mudar
essa realidade. Ao contrário,só parecem fazer alargar o abismo pessimista do caos. Nesse viés,
a única ponte possível que pode fornecer condições práticas para transpor a abissal regressão
por que passa a contemporaneidade chama-se educação.
Como no Império de Carlos Magno, esse meio pode fazer ressurgir da apatia alienante
e do ceticismo cada vez mais acurado dos indivíduos mentes reflexivas e conhecedoras dos
fenômenos provocadores do caos, tão necessárias e imprescindíveis para um renascimento e a
recomposição da ordem desestruturada. Uma das vertentes par tal intento pode estar na busca
do passado e nos Clássicos antigos a autoridade corretiva e eficaz para o enfrentamento e o
entendimento dessa realidade. Compilando Políbios: “a educação e o exercício mais sadios
para uma vida estão no estudo da história, e que o mais seguro e a realidade o único método
de entender as vicissitudes da sorte é recordar as calamidades alheias”. (Políbios, História.
1985).
Nesse sentido, este estudo, enveredando-se, ora pelas trilhas dos autores
contemporâneos, ora bebendo da sábia fonte do grego Lucrécio, busca estabelecer relações e
co-relações entre passado e presente, não apenas para decifrar e rediscutir o óbvio, mas para
compreender na sua lógica a natureza dos fatos e dos fenômenos que empurram a humanidade
para o mergulho no abismo, e que ela própria não consegue compreender.
Nas indas e vindas pelos escritos de ontem e de hoje, numa tentativa de explicitar a
fenomenalização da violência e da barbárie, e que tem se tornado um verdadeiro “panis et
circencis” no seio da social contemporâneo, “coliseu”, mais do que uma exposição de fatos,
causas e conseqüências, é um convite a uma reflexão pedagógica que vê, no estudo dos
Clássicos antigos, porém sempre novos e atuais, uma das possibilidades para amenizar os
efeitos negativos que a regressão progressiva e continuada tem imposto à humanidade.
COLISEU: UMA PLATÉIA PARA O ESPETÁCULO DA BARBÁRIE
Da arquitetura dos anfiteatros Greco-romanos, onde os Antigos se reuniam para se
deleitarem diante do espetáculo da violência proporcionado pelos gladiadores, apenas as
ruínas do colossal Coliseu rememoram à humanidade o sangue, a morte e a virtude de que foi
palco suas arenas.
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As séculos avançaram. Entretanto, nem mesmo os ideais iluministas propagados no
Século XVII, mostrando o sentido da razão que desmistificaram os mitos e as crenças
cultuados na era medieval, fizeram com que homens superassem a falsa concepção de que a
violência e o mal são condições inatas à natureza humana, como pensavam os povos
medievais que apreciavam a morte e o sangue deitado pelas lutas como rotinas naturais a seus
costumes. Lafaye, (apud Garrafoni 2005, p.29) in Glatiator (1896), já constatava essa
realidade ao afirmar: “Hoje não vemos mais combates de gladiadores senão que seu
resultado sangrento, e isso é o bastante para que eles nos pareçam abomináveis”.
Todavia, o comportamento primitivo, que parecia ser condição apenas da natureza
daquele homem, se perpetuou e se naturalizou pelo “civilizado” homem da sociedade da era
da ciência e da tecnologia que, desmistificado da crença dos mitos e da existência dos deuses
não têm sabido fazer uso das luzes que os livrariam das trevas e que continuam a ofuscar-lhe
as trilhas da razão.
Relacionando o contexto da sociedade contemporânea e “Glória e sangue nos
anfiteatros romanos”, comunguemos do olhar histórico de Garrafoni (2005), sobre a polis
romana para entendermos a aceitação da cultura da violência que continua sendo reproduzida
e naturalizada pelos homens em tempos e contextos históricos distintos.
Entre os grandes acontecimentos da vida política e da sociedade romana do período
medieval, os combates sangrentos dos gladiadores e a morte dos infelizes que eram atirados
para serem destroçados pelas feras nas arenas eram práticas que faziam parte das tradições
daquele povo. De acordo com a historiadora, essas práticas de violência se davam, entre
outras razões, como uma estratagema política da elite para promover momentos de diversão à
plebe e assim desviar-lhes a atenção para os assuntos da polis. Naquele tempo, Séc.I dc, os
espetáculos de lutas e massacres nas arenas exerciam fascínio e tinham importância para a
cultura dos romanos. De acordo com Garrafoni (2005, p.30), milhares de homens, mulheres,
crianças e idosos das mais diferentes etnias, condições sociais e status jurídico subiam as
mesmas escadas e se acomodavam em seus lugares onde esperavam ansiosos os combates e
execuções de criminosos. Aproveitavam ainda daquele ambiente hostil para os jogos de
seduções e os flertes que se davam insensíveis às atrocidades a que assistiam, enfim o mesmo
palco em que presenciava o sangue também era utilizado para a satisfação das
individualidades.
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Levantamentos históricos realizados e publicados na década de 1960 por Grant (apud
Garrafoni 2005), evidenciam que naqueles embates era visível a crueldade do domínio
romano a que as camadas populares eram submetidas e que, em consequencia disso, eram
oprimidos e frequentemente oferecidas às arenas. Emerge dessa brutalidade o cristianismo.
Este vem como um caminho possível para elevar as consciências dos indivíduos a se oporem
e questionarem os combates sangrentos. Tais costumes estavam intrínsecos no dia a dia
daquelas comunidades, provando que aquelas populações se mostravam familiarizadas com as
barbáries, assistindo de olhos atentos das suas arquibancadas cada movimento e o banho de
sangue nas areias das arenas, tendo a morte como distração. O estóico Sêneca, ao denunciar
essas paixões mundanas, já mostrava seu inconformismo perante àquelas barbáries que só
levavam o homem à destruição, muito embora caísse em contradição ao admitir uma certa
importância pedagógica como sendo aquelas práticas atos de bravura que preparavam o
homem a morte e que por isso eram exemplos que, se usados para esse fim, deveriam ser
seguidos.
A História tradicional nos revela a Roma medieval como um Estado de tradições
voltadas à guerra. Sob o prisma dessa abordagem, a realização desses eventos e a violência
por eles espetacularizada eram tidos como naturais, uma vez que os dogmas instituídos por
padrões éticos e culturais, sem levar em conta as relações intersubjetivas e interpessoais de
comportamento, acabavam por naturalizar de forma hegemônica a barbárie contida nas
arenas. Justificava-se ainda toda aquela violência contra os infratores que iam contra as leis
dos Imperadores como sendo uma das formas necessárias à garantia da soberania política do
Estado romano, pois uma vez que atirados às arenas para serem punidos com o mais alto rigor
aquelas atrocidades serviam de exemplos aos que assistiam, garantindo com isso a
manutenção da ordem social. Sendo assim, aqueles valores negativos, que para aqueles povos
estavam dentro dos seus padrões éticos, eram despertados e aceitos como naturais.
Entretanto, aquelas práticas arbitrárias que se davam nas arenas não eram aceitas de
forma unânime pelos componentes daquela sociedade. Historiadores recentes como Wistrand
(1992), (apud Garrafoni, 2005), aponta que apesar da enorme violência e do espetáculo teatral
de sangue ser questionado por alguns, não havia mecanismos de oposição à violência
praticada nas arenas. Dentre os fatores que contribuíam para essa inércia, supostamente
levantados por ele, estariam a fama social dos gladiadores que venciam os combates, o puro
prazer da platéia e também porque os espetáculos eram oferecidos gratuita e constantemente
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pelos imperadores e pelos grupos dominantes.. PLAS, (1995), também levantou hipóteses ao
afirmar que por mais que houvesse gastos públicos para tais eventos, isso era compensado
pelo gesto simbólico de conter as insatisfações vindas da plebe, transformando-se o medo em
diversão. Em suas palavras afirmou: “a arena tinha uma função específica dentro da
sociedade, a de acomodar a violência dentro da ordem social por meio da execução”.
(PLASS, 1995, apud Garrafoni, p.56).
Lançando-se um olhar panorâmico sobre aquela realidade do homem medievo da
Roma antiga, a possibilidade de se nos deixar iludir a uma aceitação de conformidade às
atitudes daqueles homens como sendo naturais e próprias a seu tempo seriam muitas. É o que
nos revela o sábio Lucrécio, ao discutir a natureza humana. O filósofo grego apontava para a
necessidade da humanidade buscar as luzes para sair das trevas que ofuscavam os sentidos e o
espírito. Segundo ele, era preciso que os indivíduos se mantivessem atentos para os
fenômenos inconscientes que os enganavam e ao comportamento irracional que os deixavam
ser facilmente enganados pelas falsas verdades.
Discutindo a natureza da alma, Lucrécio, ao refletir sob à luz da razão, dizia que os
indivíduos tendem a aceitar com naturalidade a crença de que o comportamento da alma é
algo inato. Por isso, não se dão conta dos fenômenos que os iludem, atribuindo à natureza as
atitudes negativas da humanidade.
Nos diferentes contextos históricos em que a História abordou a discussão sobre o
espetáculo da morte nas arenas, lançou olhares diferenciados sobre a figura dos gladiadores
romanos, ora tidos como heróis, ora tidos como assassinos impiedosos. Trazer novamente
esse tema para o Século XXI e pô-lo no centro das discussões incorreria no risco de mais uma
vez cair na mera discussão redundante ou apenas incorporar os olhares de outros historiadores
que a História conceituou. Sendo assim, se faz em tempo uma nova rediscussão dessa
temática, desde que, de acordo com Bloch, 2001), se compreenda o presente pelo passado e o
passado pelo presente. Dessa forma, as atitudes e posturas daqueles homens, muitas vezes
abordadas pela história como parte de uma cultura por eles considerada natural, devem ser
resgatadas para dialogar com os homens do nosso tempo, isto é, como história problema e
com isso trazer à reflexão as questão da violência que vem tomando as mesmas dimensões de
espetáculo pela nossa sociedade, tida como “civilizada”.
As coisas não surgem do acaso. Na concepção Lucreciana, há causas para os
fenômenos e que passam desapercebidas porque a esses lhes são atribuídos às vontades
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divinas. Mas a alma humana já contém os germes das coisas e a ele, homem possuidor da
razão, cabe fazê-los ou não eclodir. Cada ser determinado tem em si possibilidade próprias
que lhe dão o entendimento para conhecer seus próprios limites. Lucrécio alerta ao homem
que este deve se orientar pelos exemplos dados pela própria natureza pois a extrapolação dos
limites naturais causa a morte. Diz ele:
[...] pelo que se passa a nossa vista, cada objeto parece limitar outro objeto: o ar limita as colinas, montes limitam o ar, e a terra o mar, e, por seu turno, o mar limita todas as terras. (LUCRÉCIO, 197?, p.93).
É preciso que se reconheça os limites naturais da natureza humana para que suas
reações contrárias não sejam assimiladas como algo natural, sem uma causa provocada.
Constantemente somos enganados pelos sentidos. Esses enganos nos deixam levar pelas
paixões que provocam o ofuscamento da razão, levando-nos a aceitação de coisas e idéias que
acabamos por não questionar porque, a nosso entender, nos parecem naturais. Quando há a
transgressão desses limites o homem se deixa levar pelo instinto irracional. Disso surgem o
preconceito, a xenofobia, a homofobia a intolerância e as atitudes de violência, às quais,
geralmente, os indivíduos as atribuem como causas naturais, esquecendo-se de que ele próprio
as gera.
Notadamente, percebe-se que o comportamento da sociedade da Roma medieval
assumia uma postura de naturalidade frente ao espetáculo proporcionado pelos gladiadores
nas arenas. Tais práticas estavam ligadas aos costumes que formavam o tecido daquela
sociedade, costumes esses que, passados às gerações vindouras iam se tornando
inquestionáveis e em razão disso naturalizados por aquele povo. Aliás, reminiscências
daquela postura vivenciada na Antiguidade Clássica greco romana como forma de controle
político e até mesmo da violência social ainda perduram como práticas naturais aos nossos
dias. Prova disso é a postura fascista do ditador iraquiano Sadam Hussain que, como forma
de punição aos opositores de suas idéias, mandava-lhes cortar uma das orelhas. Por suas
atrocidades e práticas violentas foi enforcado em pleno Século XXI, prática essa concensuada
por Organismos Internacionais como forma de garantia da paz e da reestruturação política e
social daquela sociedade.
Deixando a questão específica da naturalização da violência apresentada como forma
de diversão nos palcos dos anfiteatros greco-romanos, adentremos ao fulcro desse fenômeno
no contexto da realidade social do nosso novíssimo Século.
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O fenômeno da violência sempre esteve no contexto das discussões e das
preocupações das sociedades. Já na Antiguidade Clássica, os filósofos gregos demonstraram
suas preocupações no sentido de estabelecerem regras que valessem como barreiras éticas e
como meios de diminuição e controle de todas as formas de atitudes que conduzam o sujeito à
condição de objeto. Para tanto, o homem deveria cultivar valores positivos como o mérito, o
bem e a virtude e, dessa forma, garantir o equilíbrio racional necessário às relações
intersubjetivas e interpessoais presentes nas conflituosas relações sociais. Essa necessidade se
dá, sobretudo porque a discussão a respeito desse tema esbarra nas questões culturais, tendo
interpretações distintas, em tempos e lugares diferentes, de tal maneira que a cultura de uma
determinada sociedade sobre práticas e condutas que possam ser violentas a ela pode não
parecer para outra.
Enveredando o foco desta discussão para o nosso tempo, se percebe, por meio das
práticas e dos costumes desta sociedade, um comportamento análogo àquele vivenciado pelas
platéias que se posicionavam atentas ao entorno das arenas para os massacres e que parecem
ter se configurado e se perpetuado no interior da nossa sociedade. Contrariando a ordem
natural da lógica da existência humana, a “sociedade do espetáculo”, como assim poderíamos
denominar, aderiu ou vem aderindo como forma de entretenimento a violência cotidiana que é
dissipada pelos meios midiáticos, em especial a televisão. Manifestada na sua forma física,
moral ou emotiva, essa violência espetacularizada e, muitas vezes teatralizada, e aceita pelas
massas como forma de preencher o vazio cultural e afetivo que o mundo cibernético e virtual
tem subtraído lhes roubado.
Diante da realidade posta, os valores humanos acabam se deteriorando face à
supremacia do capital. As lacunas deixadas pelo esvaziamento de sentimentos e a própria
falta de perspectivas de um modelo de sociedade padronizada pelos valores e comportamentos
ditados pela mídia acabam alienando os indivíduos. Consequentemente, seu modus viventis
acaba se desconfigurando da lógica racional. As trivialidades, o sádico e a barbárie acabam se
tornando como se verdadeiras válvulas de escape para o arrefecimento das tensões que o
preço da modernidade impõe. As necessidades de preenchimento das lacunas existenciais
acabam se transformando em negócios lucrativos e rentáveis, e pior, de forma explícita e
natural. Disso se apropria a televisão que a partir da violência real, tira proveito e a distribui
na forma de espetáculo gratuito à grande massa, garantindo com isso seus altos índices de
audiência. Isso se dá preferencialmente nos “horários nobres”, uma vez que o retorno do
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investimento nas suas produções é certo, pois tem público e apreciadores que dão o retorno
consumista dos seus anunciantes para esse gênero de programação, o que nos remete ao
contexto medieval, onde os espetáculos nas arenas eram patrocinados pelos impérios e para
um público cativo que apreciava as atrocidades apresentadas.
Aproveitando-se desse nicho facilitado pela ausência de reflexão de uma sociedade
cujos níveis de naturalização e banalização da violência parecem aumentar numa progressão
aritmética, há uma proliferação desse tipo de programação, que parece também crescer nessa
mesma proporção. Entre esses tantos, há os programas policiais que sobrevivem da exposição
e oferecem, ao vivo e a cores, o sangue derramado das violências para ser degustado,
preferencialmente na hora do almoço ou do jantar pelos assíduos telespectadores. Há ainda os
que nos parecem inofensivos. Apresentados nos os horários vespertinos, funcionam como
verdadeiras lavagens cerebrais, dramatizando e emitindo juízo de valor para questões raciais,
conjugais, passionais, emotivas, enfim, programas de auditório muito bem produzidos, e que
por não extrapolarem o nível da subliminaridade, ou seja, o que não passa do limear da
consciência, banalizam as baixarias onde as lágrimas e humilhações são a garantia de
audiência. Há ainda os do tipo “causos da vida real” que, teatralizados, se mesclam aos
programas “culturais” das tardes e noites de domingo, funcionando como exemplos de
heroísmo e de superação, oferecendo as tragédias, os dramas e o infortúnio de indivíduos
vitimados por acidentes, Não esquecendo das batalhas nos estádios de futebol (réplicas
arquitetônicas dos coliseus medievais) onde gangues rivais transformam seus gramados,
arquibancadas e arredores em verdadeiras arenas para a prática de mortes e extermínios de
torcedores, reforçando com suas barbáries o instinto irracional, animalesco e medieval da
sociedade contemporânea.
Superproduções televisivas mostram em tempo real, aos míopes da realidade, o
verdadeiro sentido non sense das relações humanas. Neste caso, referindo-se de modo
particular ao Big Brother e mais recentemente em A Fazenda, ambos pelo seu potencial
destruidor (de valores éticos e morais) e eficácia ideológica que se assemelha aos resultados
que se objetivava nas arenas medievais, isto é, o consenso e a participação das massas para a
escolha de um herói. Lá, os interesses do Império, aqui os interesses midiáticos pela
imposição de padrões que induzem a aceitação de posturas anti-naturais que levam ao
aviltamento da condição humana, reduzindo os indivíduos a se comportarem como coisa
usada e manipulada dos outros.
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Nos bastidores dos já mencionados reality shows, a arena que servirá de palco à
barbárie moral é preparada simultaneamente ao estardalhaço provocado pelas exaustivas
chamadas e pelas vinhetas que conclamam as massas ao espetáculo. Suas chamadas
utilizando-se de chavões a elas bem familiares (milhões, carros, fama, competição, paredão,
eliminação), por si só, isso já se constitui numa banalização do próprio conteúdo e do objetivo
do evento, isto é, ganhar com a derrota do outro. Câmeras estrategicamente posicionadas não
deixarão escapar uma única lágrima e nem os conchavos dos que ali se degladiarão, levando à
comoção e ao delírio a multidão ansiosa por sangue (mesmo que simbólico) dos derrotados.
Sujeitos confinados e bem alimentados em “jaulas” dotadas de conforto e mordomias, agindo
como se verdadeiras bestas humanas num jogo de trapaças, frieza calculada e falsas emoções,
deformam, inconscientemente ou conscientemente as mais variadas formas de violência, ali,
consubstanciada na forma de valores negativos em que o bem, o mérito e a virtude acabam se
corrompendo pela esperteza e astúcia dos que jogam sujo. Simultaneamente, uma platéia, de
olhares atentos e crítica à trama, porém alienada aos acontecimentos do seu próprio mundo
real, se deliciam e absorvem a espetacularização da essência humana por intermédio do
discurso da mídia dominante que canaliza a agressividade e as opressões daqueles
protagonistas que ela própria treina a se degladiarem pelos milhões, e que acabam se
naturalizando também na vida real.
E porque isso acontece? No nosso tempo, o gosto e assiduidade por programas
violentos apresentados em forma de espetáculo pelas mídias são uma aceitação da violência e
uma tendência crescente das massas que tendem a considerá-la natural. De acordo com
Belloni (2004), essa realidade negativa é um reflexo da impunidade que se encontra
“oficializada”, podendo ser observada até mesmo no enredo dos desenhos infantis, onde os
personagens sempre saem impunes, mesmo onde haja violência, brigas, explosões de bombas.
No período medieval isso também era manifestado nas arenas, uma vez que os que matavam
nas lutas eram tidos como heróis, ou seja, representantes da virtude e da moral.
Outra possibilidade desencadeadora desse comportamento anormal seria as frustrações
individuais potencializadas pelo mundo do consumo que acaba pregando, mesmo que de
forma subliminar, a ascensão social, prestígio e aceitação através da destruição do outro por
meio da competição, sendo se programas uma das possibilidades para os quais os indivíduos
recorreriam no sentido de extravasar suas frustrações interpessoais e responder às situações
que lhe são impostas de forma opressora. Sendo assim, a queda ou até mesmo a morte acaba
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se transformando em prazer, uma vez que repetidas diariamente transforma-se em hábito que
pouco comove e que tampouco faz refletir. Com uma fórmula de garantir o ritmo do
espetáculo, esses programas são montados e produzidos de forma a mesclar o humor, as
tragédias e as notícias positivas aos apelos de consumo, enfim um verdadeiro “panis et
circensis”.
Nesse sentido, é notório perceber que as estruturas simbólicas da aceitação e da
naturalização das diversas formas de violência são socialmente produzidas e reproduzidas. No
Medievo pelo espetáculo das arenas. No nosso tempo, pela espetacularização das barbáries,
do terrorismo e da violência, exaustivamente difundidas pelas mídias.
Dizer que uma coisa é natural ou por sua própria natureza significa dizer que essa
coisa existe necessariamente e que não pode deixar de existir e nem pode ser diferente do que
é. Entretanto, esquece-se de que o natural é o que não depende de uma intervenção ou de uma
decisão dos seres humanos. Nesse perspectiva, desde a Antiguidade clássica o conceito de
educação dos gregos em educar os corpos e o espírito dos membros da sociedade, em especial
das crianças, já se constituía numa das preocupações e discussões dos seus filósofos, que viam
no estabelecimento de regras e condutas éticas e morais a forma de diminuição e de controle
de todas as formas de violência. Para eles, o conceito de natureza, segundo a análise feita por
Chaui (2004), reside na disposição inata e espontânea de sua índole, seu temperamento e seu
caráter, devendo a educação refiná-las, aperfeiçoando-as como qualidades naturais, em
oposição ao que deixa de ser natural quando adquirida por costume ou pela relação com as
circunstâncias da vida, no caso, a violência mostrada repetidamente.
Vivemos numa sociedade pragmática, onde tudo tem que ser prático e rápido.
Todavia, isso tem levado o homem do nosso tempo a uma regressão da espiritualidade, dos
valores, o que tem levado a uma ilusão coletiva e a buscar desesperadamente a satisfação dos
próprios interesses. Consequentemente isso o induz à corrupção, a avareza, a mortes, a
crimes, a destruição dos sentimentos, enfim a uma naturalização e banalização da selvageria e
da impunidade numa escala dimensional só comparáveis a invasão dos bárbaros ao Império
romano na era medieval.
Diante desse novo contexto social, a busca por soluções educacionais que amenizem
os desarranjos sociais que se instalaram sob a permissão da irracionalidade humana tem sido
uma necessidade. Nessa perspectiva, o conhecimento dos documentos do passado como
forma compreender suas relações com os fenômenos do presente é de fundamental
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importância. Mesmo os autores clássicos não tendo a verdade absoluta para os fatos que
afligem nosso tempo, são possuidores da autoridade daquilo que escreveram em seu tempo, se
constituindo como fonte para seus intérpretes em outros tempos e situações, pois tratam de
problemas universais que acometem a condição humana e que se manifestam em todos os
tempos. Ao escrever para os homens do seu tempo Lucrécio se mostra atual, pois sua
proposta, quando interpretada por autores contemporâneos contribui no campo da educação,
sobretudo quando se busca respostas para as barbáries que afetam nosso tempo, as quais
tendemos a naturalizá-las como inerentes aos diferentes contextos e situações históricas.
Muito se tem escrito a respeito de fatos e fenômenos que deturpam as relações sociais.
Entretanto, isso tem se dado de maneira isolada ou, muitas vezes, sem contudo investigar-lhes
o cerne filosófico das suas origens. Sendo assim, a proposta deste estudo vem de encontro a
revalorização dos históricos medievais, pois nestes se encontram os exemplos das virtudes
humanas que foram buscados na vida dos Santos e nos ensinamentos dos seus filósofos,
informações incondicionais das boas maneiras de viver ou de pensar.
A filosofia lucreciana ao buscar o entendimento da natureza das coisas com elementos
da própria natureza, assim como as relações feitas por Garrafoni sobre os gladiadores naquela
época e que ainda persistem nos nossos dias podem criar caminhos e possibilidades aos
educadores. Assim, é possível dar-lhes uma visão ampliada e estes aos seus alunos de como
se dão e se naturalizam os fatos e os fenômenos que conduzem à determinadas práticas, em
especial a barbárie e o declínio dos valores na sociedade contemporânea.
Dessa forma, é possível uma aproximação esclarecedora e objetiva da escola na
formação de agentes reflexivos que saibam perceber e compreender que os fenômenos que
desencadeiam as barbáries e a espetacularização das mais variadas formas de violência não
têm uma natureza em si. Essa natureza é produzida pela própria condição humana e que,
portanto, cabe a ele próprio, homem, os meios de controlá-la.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como aparece neste estudo, o homem não nasce predestinado a praticar a violência e a
barbárie. O meio e, obviamente, com sua auto-permissão, é o que o tornará possuidor de uma
índole e de uma natureza má. Praticar atos de violência e crueldade tendo como pano de fundo
a cultura e os costumes locais para legitimar essas atrocidades, como as praticadas no tempo
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medieval, são posturas incoerentes, uma vez que o uso de práticas violentas em nome da paz
torna-se uma aberração que contraria as próprias leis da natureza.
Tendemos, naturalmente, a naturalizar as barbáries como sendo fatos e fenômenos
intrínsecos a contextos e situações históricas distintas. Entretanto, o meio, legitimado pela
aceitação dessas práticas, é o que as determinam. Na Roma Antiga, governada e manipulada
pelos seus Imperadores, a necessidade da perpetuação do poder pelas castas dominantes era
conseguido por meio desse subterfúgio que se utilizava da imposição do medo e da crueldade.
Naturalmente, isso era tido como modelo de exemplo, disciplina e heroísmo pelas classes
subalternas, dando assim, o continuísmo à herança de atrocidades deixadas pelos povos
bárbaros. Todavia, essa herança parece ter se perpetuado pelos séculos, mudando apenas sua
forma de ser de se manifestar. Desencarcerado das crenças e dos mitos que o mantinham
presos na ignorância de sua irracionalidade, o homem contemporâneo não tem sabido fazer
uso dessa liberdade, condição essa que o faz cativo do comportamento primitivo de seus
antepassados.
Os atos de selvageria, que já não nos parece tão abomináveis. Dada a freqüência e a
maneira com que nos são colocados, parecem ter se naturalizados. Nos desenvolvemos
cientificamente e tecnologicamente. Entretanto, continuamos como se verdadeiros medievos
romanos. Comungamos apáticos e indiferentes do mesmo sangue, da mesma brutalidade, da
mesma violência, da mesma corrupção e também, iguais a eles, as apreciamos como uma
forma de entretenimento. Muito embora não precisemos mais ir até as arenas, somos como se
platéias aguardando em dias e horários definidos que elas cheguem a nós, ao vivo a cores e
com o mesmo clima dos espetáculos apresentados nos coliseus.
Contudo, o sentido deste estudo não se resume a mera exposição ou uma rediscussão
redundante dessa temática exaustivamente discutida pelos diversos segmentos da nossa
sociedade. Buscando na fonte lucreciana o entendimento filosófico da gênese da natureza das
coisas e, comungando da verve historiadora de Garrafoni a respeito da espetacularização da
barbárie nas arenas romanas, este trabalho não teria outra finalidade senão a de fazer tornar
explícita a importância da utilização dos Clássicos, atuais ontem e hoje, e trazê-los para o
campo das discussões e do debate dos problemas que afetam a complexidade humana.
É notório dizer que a violência não será eliminada por completo do seio social.
Entretanto, podemos amenizar seus efeitos negativos que reduzem os indivíduos à condição
de objetos. Essa possibilidade está na educação. É preciso, contudo, que saibamos abordá-la
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na escola, não apenas em cima de fatos consumados, geralmente espetacularizado
exaustivamente pelas mídias. Se faz necessário ao professor ir além do fato dado, do óbvio,
buscando, preferencialmente, no instinto universal desses Clássicos, relacioná-lo ao
entendimento de suas origens e como superá-los. De linguagem simples, porém robustos,
sadios e vigorosos, não se esgotam por princípios estabelecidos nem a regras rígidas e
permanentes, por isso são novos.
Discutir os fatos trazidos pelos jornais é necessário. Entretanto, saber relacioná-los a
outras leituras é imprescindível para que mestre e escola cumpram efetivamente seu papel que
é esclarecimento por meio da verdade reflexiva. Eis este estudo, que buscou na história
contemporânea e medieval caminhos para a discussão de um tema corrente, uma pista para
uma reflexão pedagógica para o debate dos fenômenos que nos afligem.
REFERÊNCIAS
BLOCH, Marc. Apologia da História ou a arte do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zaar, 2001. BELLONI, Maria Luiza. O que é mídia-educação. São Paulo: Autores Associados, 2005. CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2008 GARRAFONI, R.S. Gladiadores da Roma Antiga. Dos combates às paixões cotidianas. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2005. LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Estampa Edit. 1993. LUCRÉCIO. Da Natureza. São Paulo: Ediouro, 197?. XENOFONTE. Ciropedia. São Paulo: Gráfica Edit. Brasileira, 1964.