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    o problemada motivaomoral em kanthlio jos dos santos souza

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    O PROBLEMA DAMOTIVAO MORAL

    EM KANT

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    HLIO JOS DOS SANTOSSOUZA

    O PROBLEMA DAMOTIVAO

    MORAL EM KANT

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    Editora afiliada:

    2009 Editora UNESP

    Cultura Acadmica

    Praa da S, 10801001-900 So Paulo SPTel.: (0xx11) 3242-7171Fax: (0xx11) [email protected]

    CIP Brasil. Catalogao na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    S716pSouza, Hlio Jos dos Santos

    O problema da motivao moral em Kant / Hlio Jos dos Santose Souza. - So Paulo : Cultura Acadmica, 2009.

    Inclui bibliografiaISBN 978-85-7983-016-7

    1. Kant, Immanuel, 1724-1804. 2. tica. 3. Razo. I. Ttulo.09-6209. CDD: 170

    CDU: 17

    Este livro publicado pelo Programa de Publicaes Digitais daPr-Reitoria de Ps-Graduao da Universidade Estadual PaulistaJlio de Mesquita Filho (UNESP)

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    Agradeo a minha famlia, quesempre me incentivou.

    De forma especial, agradeo Adriana, pelo apoio nos momentos

    difceis.

    Aos amigos, sobretudo ao Rogrio, peloauxlio.

    Ao professor Ricardo Monteagudo,meu orientador.

    Capes, por financiar parte desta pesquisa.

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    SUMRIO

    Prefcio 9Introduo 13

    1 A vontade diante de uma encruzilhada172 Os princpios da razo prtica 433 Dos motivos determinantes da vontade814 Interesse da razo e liberdade 109

    Consideraes finais 131Referncias bibliogrficas 139

    Bibliografia suplementar 140

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    PREFCIO

    Por que os homens so livres? No que consiste a liber-dade humana? Como possvel a ao moral? Como umcorpo submetido a leis naturais pode ser livre? Para respon-der perguntas simples como estas e outras no to simples que Hlio Jos dos Santos Souza se debrua sobre a obrade Kant, especialmente aFundamentao da metafsica doscostumes. Como bem observa o autor, pretende-se anali-sar os conceitos de boa vontade, dever, lei, imperativo, res-peito, interesse e liberdade. Qualquer criana precisa teruma breve noo destas palavras importantes para se cons-tituir como homem de bem, como cidado consciente. Aoprojet-los no sistema kantiano, encontramos uma formu-lao mais elevada, resultado de sculos de reflexo filos-fica, que nos ajudam a pensar a nossa realidade.

    O problema complexo: trata-se de saber se a morali-dade e a tica so expresses de um princpio racional in-condicionado igualmente presente nas leis imutveis danatureza. Nesse caso, haveria continuidade entre a natu-reza e a moralidade, o direito natural exprimiria deveresque se impem vontade de cada um, a liberdade seriauma iluso da conscincia que no reconhece todas as cau-

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    sas naturais que a condicionam. Esse o resultado da fi-

    losofia moderna de Espinosa e Hobbes, que Kant preten-de superar. A soluo uma inverso do problema: a liber-dade e o conhecimento da natureza so condicionados nohomem pela razo. Nesse caso, como a liberdade pode serdeduzida a partir da sensibilidade? Parece que a cada re-formulao novos problemas aparecem e os conceitosmultiplicam-se.

    O que leva o homem a agir moralmente? Se identifica-mos o dever ser e o dever, naturalizamos o transcendentale a resposta kantiana repetiria a filosofia moderna de cujasaporias a crtica pretende escapar. Se por outro lado recor-remos divindade, voltamos s dificuldades que foramrespondidas pela filosofia moderna. Vejamos um exemplo:dipo descobre que uma maldio o conduzir ao parri-cdio, para evitar esta desgraa foge de sua casa e de sua ci-dade. Ao fugir, encontra em uma encruzilhada um homemque o desrespeita e o desafia, ento mata este homem semsaber que este seu verdadeiro pai. O conflito moral ge-rado pela maldio conduz uma iniciativa que desencadeiaa prpria maldio, pois dipo no sabia que era filho ado-tivo. Ora, a lei que impede o parricdio foi ou no foi res-peitada? A motivao moral da fuga foi uma deciso indi-vidual de dipo ou uma imposio divina? Comocaracterizar a boa vontade neste caso? Havia um impera-tivo moral que foi seguido, mas o que deveria ter sido evi-tado foi, ao contrrio, provocado pela boa vontade de agirmoralmente. Por outro lado, a reao intempestiva dedipo ao ser desafiado passional e no segue as prescri-es da reta razo. A natureza humana cindida e temduas fontes de determinao; retornamos encruzilhadade dipo: calar-se ou resistir ao desafio moral do parric-dio? Calar-se ou resistir ameaa de algum? O princpioformal racional no basta para lidar com o problema: da a razo prtica pura, tambm analisada nesta pesquisa.

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    O que mais interessante neste livro que uma ques-

    to tcnica kantiana transformada em uma questoapaixonante. No apenas a descrio da coisa em si moraloriunda da racionalidade e sua manifestao por meio deimperativos categricos que se impem pela reflexo, maso que motiva o homem a agir moralmente. O medo da pu-nio, a universalidade da razo, o desejo de felicidade, oequilbrio psicolgico, os benefcios materiais etc. no soem si suficientes para compreender a riqueza e diversida-de da experincia humana. A questo como possvel nostornarmos homens melhores apesar de sermos homens.Hlio Jos apresenta ainda a discusso destes problemaspor alguns dos grandes intrpretes da obra de Kant, o queenriquece filosoficamente a anlise e as alternativas perti-nentes.

    Este um daqueles trabalhos aparentemente acadmi-cos que podem estabelecer a vocao filosfica de seus lei-tores: a reflexo sobre o que est em jogo por si s umprazeroso exerccio do filosofar.

    Ricardo Monteagudo

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    INTRODUO

    A Fundamentao da metafsica dos costumestem porfinalidade encontrar o princpio supremo da moralidadeque reside, segundo Kant, j no bom senso natural. A in-vestigao procede, ao menos nas duas primeiras sees daFundamentao, de modo analtico, e aponta a razo prti-ca pura como o fundamento de uma boa vontade. Segun-do Kant, somente a razo suficientemente capaz de for-necer, totalmentea priori, o princpio incondicionado damoralidade vlido para a vontade de todo ente racional.

    Surge, porm, um problema: por que que devemos nossubmeter lei moral? O que capaz de motivar o homema agir conforme o imperativo categrico e, portanto, moral-mente? O presente trabalho pretende examinar, a partir dosapontamentos realizados por Kant, como pode o ente racio-nal agir motivado pela lei, motivao esta necessria paraque a moral se estabelea.

    Para tanto, pretende-se analisar os conceitos de boavontade, dever, lei, imperativo, respeito, interesse e liber-dade. Todos estes conceitos constituem a espinha dorsal daargumentao kantiana no texto daFundamentao. Ogrande problema que Kant nem sempre esclarece com

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    preciso cuidado o significado destes conceitos e a ligao

    sistemtica em que ele os utiliza. Pretendemos tornar al-guns pontos menos obscuros, pois sem compreender estesconceitos, consequentemente, a filosofia moral de Kanttambm permanecer incompreendida.

    Optamos pela diviso do trabalho em quatro captulos.O primeiro captulo analisa o conceito de boa vontade epretende mostrar que sua formao depende de que a ra-zo prtica pura determine a vontade de modo totalmentea priori. Mas o homem, por sua vez, encontra uma enormedificuldade em agir conforme as prescries da razo emfuno da ambivalncia de sua prpria natureza, que constituda tambm de sensibilidade. Por isso, na conscin-cia de si, o homem se v como um ente cindido entre duaspartes heterogneas, uma natureza sensvel e outra racio-nal, deixando, desse modo, a vontade diante de duas fon-tes distintas de determinao e, por assim dizer, em umaencruzilhada.

    No segundo captulo, traaremos a distino entre oprincpio formal racional e o princpio material sensvelpara verificar se a razo prtica pura suficientemente ca-paz de determinar objetivamente a vontade de todo enteracional.

    No terceiro, nossa investigao trata de perguntar pelofundamento da escolha, ou seja, pelo motivo determinanteda vontade, no sentido de procurar desvendar o que podemotivar o homem a agir moralmente em face das inclina-es sensveis. Este captulo pretende, portanto, primeira-mente explicar por que o homem carece de um motivo paraagir moralmente, mesmo tendo o conhecimento de quesomente uma vontade boa determinada pelo imperativocategrico que pode promover boas aes, e apontar, emseguida, os possveis elementos motivacionais do homemna escolha do princpio puro como fonte de determinaoda vontade.

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    O quarto e ltimo captulo pretende mostrar que a lei

    moral interessa ao homem porque ela um produto de suarazo, isto , efeito de sua liberdade enquanto um ente domundo inteligvel.

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    1A VONTADE DIANTE DE UMA

    ENCRUZILHADA

    Na Fundamentao, Kant assume a proposio que dizser a boa vontade o nico bem incondicionado como regrade ajuizamento moral, justificando que se trata de um dadoproveniente da conscincia moral que o homem comumtem do dever e, por isso, possui validade objetiva. O pre-sente captulo pretende mostrar, porm, que a formao deuma boa vontade depende de que a razo prtica pura de-termine a vontade de modo totalmentea priori, visto quesem este pressuposto, a noo de boa vontade est fadadaa ser apenas uma quimera. Mas o homem, por sua vez, en-contra uma enorme dificuldade em agir conforme as pres-cries da razo em funo da ambivalncia de sua prprianatureza, que constituda tambm de sensibilidade. Porisso, na conscincia de si o homem se v como um ente cin-dido entre duas partes heterogneas, uma natureza sens-vel e outra racional, deixando, desse modo, a vontade diantede duas fontes distintas de determinao e, por assim dizer,em uma encruzilhada. Por conta da ambivalncia de suanatureza, o homem ter, portanto, de decidir entre doisprincpios distintos, ou seja, caber a ele escolher se deter-mina sua vontade exclusivamente conforme o princpio

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    racional ou se se deixa seduzir por completo pelas solicita-

    es do desejo sensvel e determina a vontade segundo oprincpio egosta.

    A boa vontade

    A investigao empreendida por Kant naFundamenta-o da metafsica dos costumesem busca do princpio supre-mo da moralidade toma como ponto de partida a seguinteproposio: Neste mundo, e at tambm fora dele, nada possvel pensar que possa ser considerado como bom semlimitao a no ser uma s coisa: umaboa vontade (Kant,2005, p.21, grifo do autor).

    Disso, porm, que a boa vontade seja o nico bem quepossamos considerar como irrestrito, no se pode concluirque no haja outros bens. O prprio Kant elenca um n-mero de coisas que, sem dvida, podem ser tomadas porboas e que so at mesmo desejveis. Por exemplo: osdonsnaturais, divididos entre os talentos do esprito como dis-cernimento, capacidade de julgar; asqualidades do tempe-ramento, como coragem e deciso; alm dosdons da fortu-na, como poder, riqueza e felicidade. Todas essas coisas sobens estimveis, todavia, Kant (2005, p.25-6) adverte:Esta vontade no ser na verdade o nico bem nem o bemtotal, mas ter de ser contudo o bem supremo e a condiode tudo o mais, mesmo de toda a aspirao de felicidade.

    Vale notar que Kant poderia soar paradoxal por ora ad-mitir, como na proposio, que a boa vontade constitua onico bem sem limitao, e depois afirmar em outra pas-sagem que ela no seja o bem total. Que a boa vontade noconstitua o nico bem fica claro a partir dos exemplos ci-tados acima de coisas que podem ser consideradas comoboas, ainda que no tenha ficado evidente de que modoestas coisas possam representar um bem.

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    A diferena entre a boa vontade e as outras coisas resi-

    de no fato de que a primeira constitui um bem irrestrito e,portanto, incondicionado, ao passo que as demais so es-tritamente dependentes do princpio de uma boa vontadecomo condio indispensvel da bondade atribuda a elas.Os dons naturaispodem ser bons desde que a vontade quehaja de fazer uso deles seja boa, pois do contrrio, se, porexemplo, deles faz uso uma m vontade, consequentemen-te, eles podem se tornar maus.

    Portanto, trata-se de bens cujo valor atribudo relativo,isto , eles obtm valor moral quando faz uso deles uma boavontade, ao passo que o valor de uma boa vontade incon-dicionado. Desse modo, fica estabelecido que somente avontade pode ser considerada boa ou m, e nesse sentido,todos os efeitos decorridos dela, como por exemplo as aes,recebem juzo de valor relativamente ao princpio determi-nante da vontade, pois apenas os princpios podem ser con-siderados bons ou maus. Notar-se- que neste ponto que atica formal kantiana comea a distinguir-se das ticas ante-riores consideradas materiais, ou ticas de contedo.

    Contudo, cabe a pergunta: o que torna uma boa vonta-de um bem incondicionado? No primeiro momento, Kantdeixa entrever que uma vontade boa aquela que, indepen-dentemente das consequncias de seus efeitos, ou seja, con-siderada em si mesma, permanece envolvida com a bonda-de, o que destina vontade o carter de um bemincondicionado.

    A boa vontade no boa por aquilo que promove ou rea-liza, pela aptido para alcanar qualquer finalidade propos-ta, mas to-somente pelo querer, isto , em si mesma, e, con-siderada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito maisalto do que tudo o que por seu intermdio possa ser alcana-do em proveito de qualquer inclinao, ou mesmo, se se qui-ser, da soma de todas as inclinaes. (Kant, 2005, p.23)

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    Kant, desse modo, assume o conceito de boa vontade

    como regra para o julgamento moral que, segundo ele, pro-vm da ideia que o homem comum tem do dever e das leismorais, e que reside j no bom senso natural, carecendo,pois, mais de um exame para determinar as condies desua possibilidade e, deste modo, apontar o princpio noqual deva repousar este conceito, do que propriamente serensinado ao homem comum.1 Considerada desse modo, aboa vontade constitui-se como o princpio formal de todaa moralidade.

    Se, como afirma Kant, o conceito de boa vontade resideverdadeiramente no bom senso natural, ento, todo ho-mem, desde o mais simples ao mais culto, carregaria con-sigo, portanto, a regra para julgar o valor de suas aes. Emediante esta regra, a razo humana no campo moral po-deria ser levada a um alto grau de justeza e desenvolvimen-to, pois mesmo o homem comum encontraria nela a regra,oriunda de sua prpria conscincia, para avaliar se sua aopode ser considerada moralmente boa. Com efeito, se aexistncia do absolutamente bom est restringida a umanica coisa, a saber, a uma boa vontade, todas as coisas res-tantes, para que possam ser consideradas boas, dependeri-am, como condio indispensvel, de que tenham sido pro-duzidas por uma boa vontade. No caso do agir humano, porexemplo, a realizao de uma boa ao estaria indissoluvel-mente dependente de uma boa vontade como condionecessria de sua realizao, ou seja, se a vontade no forboa, dela tambm seria impossvel decorrer uma boa ao.

    Isto um dado importante porque significa que, paraKant, no preciso ser culto para se ter uma conscinciamoral formada para se poder agir moralmente. O homemmenos culto capaz de julgar moralmente bem, mesmo queno seja capaz de justificar teoricamente os princpios que

    1 Cf. Kant, 2005, p.26.

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    r mostrar a partir do princpio fundante de uma boa von-

    tade sua aplicabilidade no julgamento moral dos costumeshumanos.Mas, por conta de Kant admitir o conceito de boa vonta-

    de como um dado extrado da moral do senso comum, semoferecer uma explicao prvia sobre o modo pelo qual esteconceito se constitui como regra de conduta, o ponto de par-tida da investigao kantiana acaba se tornando vulnervela crticas. Poder-se-ia perguntar sobre sua plausibilidade junto ao homem de entendimento vulgar. Seria a noo deboa vontade reconhecida to facilmente pela conscinciahumana como sendo ela o nico bem sem limitao? A afir-mao da qual parte Kant faz realmente sentido, ou seja, ohomem comum pode por si mesmo compreender, sem umaexplicao ulterior, que a boa vontade se constitui como re-gra vlida para o ajuizamento moral e, desse modo, a partirdela decidir sobre o que fazer ou deixar de fazer?

    Paton argumenta que palavras comobom sem limitaoou comoboa vontademerecem ser explicadas para que secompreenda a proposio admitida por Kant e, assim, soeplausvel aos ouvidos do homem comum. Sem esta explica-o, Kant estaria tomando como ponto de partida um prin-cpio que, por conta de sua intrnseca complexidade, seconstituiria insatisfatrio como regra moral ao entendimen-to vulgar. Por isso Paton (1971, p.34, traduo nossa) diz:

    Isso deve ser admitido, embora declare ser um juzo mo-ral comum, no o tipo de afirmao que um homem co-mum normalmente aceita [...]. Contudo, a questo levan-tada a da moral interior comum; e sem maiores anlises, aafirmao muito vaga para ser considerada um princpiomoral satisfatrio.2

    2 This, it must be confessed, although it profess to be an ordinarymoral judgement, is not the kind of utterance in which the ordinary

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    Na Fundamentao, Kant deixa de explicitar o modo

    pelo qual ele extraiu o conceito de boa vontade, ou seja, deque modo este conceito surge como um dado da moral dosenso comum e, por isso, a questo acerca da origem destaafirmao da qual a investigao kantiana parte fica semresposta.

    Aparentemente, a noo de boa vontade como regramoral seria um dado constatado por Kant a partir de obser-vaes nas quais se percebe a concordncia do entendimen-to do homem comum com esta ideia no julgamento sobreo valor das aes humanas. Com efeito, se a noo de boavontade como regra prtica no parece to certa e evidenteao homem comum como parece ser para Kant, vale notarque, quando julgamos uma ao de modo moral, a von-tade determinadora da ao o que ns estamos julgando emltima instncia. Ao contrrio do que ocorre, por exemplo,quando julgamos uma ao sob a perspectiva do Direito.

    Comumente ouvimos expresses do gnero: o sujeitoagiu de m vontade ou faltou boa vontade do sujeito ao rea-lizar determinada ao. Mesmo que o efeito da ao tenhaatingido o objetivo previamente pretendido, fica claro quese o motivo determinante da vontade no tiver sido sim-plesmente o bem incondicionado, isto , se a ao no tiversido decorrida de uma boa vontade, ela estar desprovidade contedo moral, pois a inteno da ao que est sen-do julgada nestes casos. Como afirma Ricardo Terra (2004,p.15), no campo do Direito, as aes so julgadas de outromodo: No plano jurdico no se permanece no mbito dainteno, e apenas a exterioridade das aes considerada.

    good man habitually indulges [...]. Nevertheless the question raisedis one for ordinary moral insight; and without further analysis thestatement is too vague to be regarded as a satisfactory moralprinciple.

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    Se Kant, por um lado, deixa de explicitar o modo pelo

    qual a noo de boa vontade se constitui como regra damoral do senso comum, por outro, podemos encontrar emdeterminada passagem daFundamentaoa explicao doque se deve entender porbom sem limitaosob a perspec-tiva da filosofia prtica:

    Praticamentebom porm aquilo que determina a vonta-de por meio de representaes da razo, por conseguinte nopor causas subjectivas, mas objectivamente, quer dizer porprincpios que so vlidos para todo o ser racional como tal.Distingue-se doagradvel, pois que este s influi na vontadepor meio da sensao em virtude de causas puramentesubjectivas que valem apenas para a sensibilidade deste ou

    daquele, e no como princpio da razo que vlido para to-dos. (Kant, 2005, p.48, grifo do autor).

    Com esta passagem, Kant parece clarificar um dos pon-tos que para Paton estava obscuro na proposio, a saber,o sentido do termobom sem limitao. J para desobscurecero sentido do conceito deboa vontade, primeiramente pre-cisamos esclarecer certa ambiguidade que envolve o termovontade.

    Vontade o termo mais comum empregado por Kantpara referir-se faculdade de apetio ou faculdade de de-sejar (Begehrungsvermgens), embora se possa facilmenteencontrar em seus escritos, sob o nome de arbtrio, refern-cias a esta mesma faculdade do nimo. Ora o emprego dotermo vontade, ora o do termo arbtrio, deixa pairar a d-vida se Kant realmente no estaria tratando de dois assun-tos diferentes. No entanto, segundo Allison (1995, p.129,traduo nossa), as utilizaes de dois termos distintos sopara caracterizar as funes de uma nica faculdade:

    Kant usa os termosWilleeWillkr para caracterizar res-pectivamente as funes legislativas e executivas de uma

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    unificada faculdade de desejar, qual ele, do mesmo modo,se refere comoWille. Portanto,Wille tem um significadoamplo, no qual conota a faculdade de desejar ou a vontadecomo um todo, e um sentido restrito, em que h a conotaode uma funo dessa faculdade.3

    Kant, portanto, emprega o termoVontade, em sentidogeral, como sinnimo da faculdade de desejar e, em senti-do restritivo, como a funo legislativa desta mesma facul-dade do nimo. Quando utilizado, o termo arbtrio concer-ne funo executiva da faculdade de desejar. Em resumo,temos o seguinte quadro: a faculdade de desejar comu-mente denominadaVontade, e os termos vontade e arbtrionomeiam respectivamente duas funes distintas desta fa-culdade; a primeira promulga o princpio moral de condu-ta, ao passo que a segunda opta por executar ou no a aoconforme este princpio.

    Na Fundamentao, Kant concebe a vontade como afaculdade de se determinar a si mesmo a agirem conformi-dade com a representao de certas leis. E uma tal faculdade

    s se pode encontrar em seres racionais (2005, p.67).Como para representar leis, a razo necessria, a vontadenada mais seno do que razo prtica. No entanto, comosalienta Tugendhat (1996, p.141), Kant utiliza de modoambguo o termo vontade ao longo do texto, ora se referin-do a ele como a vontade j determinada pela razo prtica

    pura, ora como a capacidade de escolha humana (arbtrio),que pode tanto optar pelos princpios da razo, quanto pe-

    3 Kant uses the termsWilleandWillkr to characterize respectivelythe legislative and executive functions of a unified faculty of

    volition, which he likewise refers to asWille. Accordingly,Willehasboth a broad sense in which it connotes the faculty of volition or willas a whole and a narrow sense in which it connotes one function of that faculty.

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    las inclinaes da sensibilidade como motivo determinante

    da ao.Efetivamente, ele emprega naFundamentaoo termo

    vontade com uma ambigidade que ele resolveu mais tardena Metafsica dos costumes, na medida em que reserva o ter-mo vontade para esta idia da razo prtica, e isso quer di-zer para a vontade j determinada pela razo, e emprega o ter-mo arbtrio no sentido comum do querer, que pode tanto serracional quanto no.

    Valrio Rohden, assim como Tugendhat, adverte parao fato de que a distino entre vontade e arbtrio se deu tar-diamente no texto daMetafsica dos costumes, e que tanto

    naFundamentaoquanto naCrtica da razo prtica, Kantno realizou uma distino clara entre estes termos e suarelao com a razo, que tambm foi expressa de formaambgua, ora como razo emprica, ora como razo pura.Conforme Valrio Rohden (1981, p.136):

    Nestes escritos, Kant distingue meramente entre vonta-de em geral e nossa vontade; entre vontade perfeita e im-perfeita; entre vontade afetada sensivelmente e vontade porsi mesma prtica. A todas essas distines correspondemtambm dois sentidos de razo: razo emprica e razopura. Noutras passagens, Kant simplesmente toma vontadee arbtrio como sinnimos: ora fala de condies subjetivasdo arbtrio, ora de condies objetivas do arbtrio (isto davontade).

    A explicao sobre o sentido empregado por Kant aoconceito deboa vontadedecorre, portanto, daquilo que sedeve entender porbomem sentido prtico, e do modo comoele utiliza o termo vontade. Sendo assim, podemos dizerqueboa a vontade determinada de modo incondicionado,isto , por princpios da razo pura prtica, vlidos para

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    todo o ente racional. A boa vontade boa sem limitao,

    porque est fundada no princpio da razo que, por sua vez, incondicionado e contm somente a forma do querer abs-trado de toda a matria do objeto. Como afirma Paton(1971, p.34, traduo nossa): Sua bondade no est con-dicionada por sua relao a um contexto, a um fim ou a umdesejo, por isso, Ns poderamos, talvez no impropria-mente, descrev-la como uma vontade moral.4

    Notar-se-, porm, que a boa vontade depende de quea razo pura possa ser prtica, isto , que ela possa ser sufi-cientemente capaz de fornecer o princpio universal e ne-cessrio de conduta. Sem este pressuposto fundamental, aideia de uma boa vontade como bem incondicionado estfadada a ser uma quimera sem a possibilidade de um usoin concreto. Tomado por esta preocupao, Kant estabele-cer a tentativa de provar a existncia de uma razo prticapura como o principal objetivo daCrtica da razo prti-ca. Assim, diz ele no prefcio daCrtica: Ela deve mera-mente demonstrarque h uma razo prtica purae, em vistadisso, critica toda a sua faculdade prtica. Se ela o consegue,no precisa criticar a prpria faculdade prticapara ver sea razo no seexcede, com uma tal faculdade pura, numa vpresuno (Kant, 2003, p.3, grifo do autor).

    Para Kant, no entanto, o homem capaz de conceber aideia de uma razo prtica pura, mas as inclinaes se apre-sentam como forte empecilho no desenvolvimento destaideia. Neste sentido, afirma Kant: O homem, com efeito,afectado por tantas inclinaes, na verdade capaz de con-ceber a idia de uma razo pura prtica, mas no to fa-cilmente dotado da fora necessria para a tornar eficazinconcretono seu comportamento (2005, p.16).

    4 Its goodness is not conditioned by its relation to a context or to anend or to a desire, por isso, We might, perhaps not improperly,describe it as moral will.

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    Por conta de o homem possuir, alm da razo, a sensi-

    bilidade, o arbtrio fica diante de duas fontes possveis dedeterminao da vontade, pois o arbtrio humano, ao con-trrio do que ocorre com o arbtrio dos demais animais queesto fadados a agirem necessariamente mediante impul-sos da sensibilidade, livre para escolher entre uma deter-minao fundada na razo prtica pura ou fundada sim-plesmente em inclinaes.

    Um arbtrio puramenteanimal(arbitrium brutum) quan-do no pode ser determinado seno mediante impulsos sen-sveis, ou seja, patologicamente. Um arbtrio, porm, que podeser determinado independente de impulsos sensveis, e por-tanto por motivaes que s podem ser representadas pela

    razo, chama-selivre-arbtrio(arbitrium liberum). (Kant, 1980,p.391-2, B 830, grifo do autor)

    O arbtrio, portanto, exerce a funo de escolha domotivo determinante da vontade, que pode ser determina-da tanto por impulsos sensveis admitidos por meio de in-

    clinaes e desejos, quanto por princpios universais e ne-cessrios oriundos de representaes da razo prtica pura.Na primeira forma de determinao o motivo emprico,ao passo que, da segunda o motivo racional, e a vontadesomente ser boa e a ao dela decorrida somente ter con-tedo moral, quando a vontade for determinada por esta

    ltima forma, isto , por um motivo racional.Portanto, a dificuldade que o homem encontra de apli-car em seu comportamento a ideia de uma razo pura pr-tica, que fornece o princpio de uma boa vontade, pareceresidir na ambivalncia da prpria natureza humana, quese constitui de razo e sensibilidade. Por isso, o prximo

    passo desta investigao prope um exame acerca da rela-o entre razo e sensibilidade para verificar a influncia deambas na determinao da vontade.

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    A relao entre razo e sensibilidade na

    determinao da vontadeNa Fundamentao, encontramos uma explicao

    teleolgica5 da constituio do ser humano. Segundo Kant,se aceitarmos que a Natureza agiu com acerto no arranjodas coisas do mundo, no tocante a um ser organizado, cujofim a vida, temos de tomar como princpio que nele nose encontra nenhum rgo que no seja apropriado para aconsecuo deste fim. Notar-se- que, diferentemente doque ocorre com os outros animais, no homem, alm dossentidos, encontramos nele a razo. Segue-se daqui o aspec-to central da concepo kantiana de natureza humana: ohomem, dotado de sensibilidade e razo, constitui-se es-sencialmente como um ser ambivalente, estando sua natu-reza, desse modo, cindida por uma parte sensvel e outraracional.6

    Dessa oposio entre razo e sensibilidade, Kant (1992,p.32, grifo do autor) afirma que do homem emergem trsclasses de disposies originrias: 1) a disposio paraanimalidadedo homem como um servivo; 2) sua disposi-o para ahumanidadeenquanto ser vivo eracional, 3) adisposio para sua personalidade, como ser racional e, si-multaneamente,susceptvel de imputao.

    A disposio para aanimalidadeconsiste no homem oato de instituir o amor de si simplesmente mecnico, para

    5 Cf. Kant, 2005, p.24.6 Sidney Axinn acredita que Kant seja aquele que tenha se aproxima-

    do de uma definio mais exata da natureza humana por conta de afilosofia kantiana ter observado a ambivalncia entre razo e sensi-bilidade. Axinn ainda adverte para o fato dessa ambivalncia estar

    envolvida em tudo aquilo que diz respeito ao sujeito: Kant nos duma concepo mais apurada (e mais digna) da natureza humana;ns somos ambivalentes em relao a tudo e a todos, inclusive ra-zo e ao ideal da razo (Axinn, 1981, p.173, traduo nossa).

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    o qual no se exige a razo, como fonte de determinao da

    vontade. Toda ao originada por esta disposio seria cal-culada pelo homem em vista de trs objetivos: o primeirovisando conservao de si prprio, o segundo em ordem propagao da espcie por meio do impulso sexual e, porfim, em vista da instituio de uma comunidade por meiodo impulso sociedade. Dessas disposies, porm, podememergir vcios aos quais Kant denomina de bestiais, queesto classificados em vcios da gula, da luxria e da selva-gem ausncia de lei para com outros homens. Esta dispo-sio determina a vontade de modo patolgico, com vistasao bem-estar e felicidade prpria do sujeito.

    Tanto o impulso sociedade quanto o vcio de viver soba ausncia de leis foram temas abordados na Quarta Pro-posio do textoIdia de uma histria universal de um pon-to de vista cosmopolita.Nele, Kant (1986, p.13, grifo doautor) atenta para o antagonismo das disposies naturais,que est caracterizada no mbito social como ainsocivelsociabilidadedos homens.

    Eu entendo aqui por antagonismo ainsocivel sociabilidadedos homens, ou seja, a tendncia dos mesmos a entrar em so-ciedade que est ligada a uma oposio geral que ameaa cons-tantemente dissolver essa sociedade. Esta disposio eviden-te na natureza humana. O homem tem uma inclinao paraassociar-seporque se sente mais como homem num tal esta-

    do, pelo desenvolvimento de suas disposies naturais. Masele tambm tem uma forte tendncia aseparar-se(isolar-se),porque encontra em si ao mesmo tempo uma qualidadeinsocivel que o leva a querer conduzir tudo simplesmente emseu proveito, esperando oposio de todos os lados, do mes-mo modo que sabe que est inclinado a, de sua parte, fazeroposio aos outros.

    A disposio para a humanidade refere-se ao amor de siposto como fundamento da vontade, cujo efeito da ao

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    visa obter para o homem um valor maior na opinio dos

    outros. Trata-se de um desejo injusto do homem de adqui-rir para si uma certa superioridade sobre os demais. Dessaespcie de disposio resulta os vcios da cultura tambmdenominados vcios diablicos, que se refletem, por exem-plo, na inveja, na ingratido e na alegria malvada. Contudo,a vontade ao ser determinada pela disposio para a huma-nidade, tende a utilizar a razo como meio para se atingirum fim determinado: a autoestima. Neste ponto, tanto adisposio para a animalidade quanto a disposio para ahumanidade tm em comum uma caracterstica: elas deter-minam a vontade com vistas a satisfazer uma inclinao.

    Por fim, encontramos no homem a disposio para apersonalidade que nada mais seno a susceptibilidade dareverncia pela lei moralcomo de um mbil, por si mesmosuficiente do arbtrio (Kant, 1992, p.33, grifo do autor).Esta disposio ao determinar a vontade coloca como seufundamento a mera reverncia pela lei, cujo fim a ser atin-gido no outro seno a prpria moralidade, por isso elapode ser denominada a verdadeira disposio moral dohomem.

    Na Crtica da faculdade do juzo, no entanto, Kant fazreferncia ao carter contraditrio das disposies naturais.Essa contradio de disposies intrnseca ao homem oimpede de atingir a felicidade. Na verdade, a felicidade aideia de um estado de pleno gozo ao qual o homem quer seadequar tornando esta ideia objetiva sob condiesempricas. Mas, isto se torna impossvel porque as contra-dies nele existentes dificultam o alcance de um estado deplena satisfao, caracterizando assim a ideia de felicidadecomo um conceito muito vacilante.

    Mas mais ainda, o carter contraditrio dasdisposiesnaturaisnele [no homem] condu-lo ainda a uma tal misria,isto , a tormentos que ele mesmo inventa e a outros produ-

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    zidos pela sua prpria espcie, mediante a opresso do dom-nio, a barbrie da guerra etc. e ele mesmo, enquanto pode,trabalha na destruio da sua prpria espcie, de tal modoque, mesmo com a mais benfazeja natureza fora de ns, noseria atingido o fim daquela, num sistema seu na terra, no casode tal fim ser colocado como felicidade da nossa espcie.(Kant, 1995, p.271, grifo do autor).

    Entretanto, todos os tormentos produzidos pela esp-cie humana, seja mediante a opresso do domnio, seja pelabarbrie da guerra, entre outros, so necessrios para o de-senvolvimento das disposies naturais intrnsecas ao ho-mem, porque se por um lado todos estes tormentos se ori-ginam na contradio dessas disposies, por outro se estes

    tormentos no surgissem, seria um sinal de que no houveum desenvolvimento dessas mesmas disposies.

    Esta oposio o que leva a espcie humana a superarsua tendncia preguia, pois, sem esta tenso entre oshomens engendrada pela cobia ou nsia de dominao,todas as excelentes disposies naturais da humanidade

    permaneceriam sem desenvolvimento num sono eterno(Kant, 1986, p.14). Ficaria, desse modo, prejudicada a ideiade progresso por meio da Aufklrung, que significa, a gros-so modo, a fundao de um modo de pensar que podetransformar, com o tempo, as toscas disposies naturaispara o discernimento moral em princpios prticos deter-

    minados e assim finalmente transformar um acordo extor-quido patologicamentepara a sociedade em um todomoral(idem, p.13-4).

    O prprio homem sob uma perspectiva de ordem espe-culativa, na medida em que objeto de conhecimento parasi mesmo, inevitavelmente, por intermdio da apercepo,

    toma conscincia imediata de seu estado, no qual tem deconsiderar-se por um lado fenmeno, por outronoumenon.Desse modo, afirma Kant (1980, p.277, B 574-5):

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    Exclusivamente o homem, que de outra maneira conhe-ce toda a natureza somente atravs dos sentidos, se conhece asi mesmo tambm mediante a uma pura apercepo, e isto emaes e determinaes internas que de modo algum pode con-tar como impresses dos sentidos; para si mesmo, ele certa-mente , de uma parte, fenmeno, mas de outra, ou seja, noque se refere a certas faculdades, um objeto puramente inte-ligvel porque a sua ao de modo algum pode ser computa-

    da na receptividade da sensibilidade. Denominamos estasfaculdades de entendimento e razo.

    Se um dos pressupostos fundamentais daCrtica darazo puraque reitera a necessidade de tomarmos qualquerobjeto de conhecimento sob uma dupla significao7 esti-

    ver correto, teremos, ento, de distinguir entre as represen-taes que nos so dadas de fora e nas quais somos passi-vos, e as que ns produzimos unicamente de ns mesmose nas quais demonstramos nossa atividade. Dessa distin-o, os objetos tm de ser considerados na mesma relaosob duas perspectivas: ora como fenmenos, quando repre-

    sentados como entes dos sentidos, ora comonoumenaquan-do representados como entes inteligveis.Visto que o entendimento s pode fazer um uso

    emprico das categorias, todo conhecimento est restritoquilo que pode ser objeto de uma experincia possvel porintermdio do que nos dado exteriormente pela sensibi-

    lidade, ou seja, a meros fenmenos. Como s podemos terintuio daquilo que afeta nossa sensibilidade, fica barradonosso acesso s coisas como so em si mesmas. Mas por detrs daquilo que nos dado tem de existir algo como causado efeito perceptvel; por isso, temos ao menos de poderpensar nas coisas como so em si mesmas, mesmo sem po-der conhec-las, isto , temos pelo menos de poder pensar

    7 Cf. Kant, 1980, p.16.

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    em um objeto transcendental como o fundamento dos fe-

    nmenos, mesmo que nada saibamos sobre o que ele sejaem si mesmo. Como Kant (1980, p.16, B xxvi-xxvii, grifodo autor) afirma: ser sempre preciso ressalvar que, se nopodemosconhecer esses mesmos objetos como coisas em simesmas, temos pelo menos que poder pens-los. Do con-trrio, seguir-se-ia a proposio absurda de haver fenme-no sem que houvesse algo aparecendo.

    No entanto, Lebrun (2001, p.61, grifo do autor) adver-te: eu tenho, certamente, o direito, e mesmo o dever, depensaralguma coisafora do sensvel, mas com a condiode no tomar jamais essaalguma coisacomo um ultraobjeto(Gegenstand). Tal alectio purissima, a mais conforme Erkenntnisstheorie daCrtica.

    Por esta razo, o conceito denoumenon, isto , de umacoisa que no pode ser apreendida como objeto dos senti-dos, no de modo algum contraditrio, mas necessriopara conter a pretenso natural do entendimento de conhe-cer as coisas como so em si mesmas.

    Tal conceito , alm disso, necessrio para no estender aintuio sensvel at as coisas em si mesmas e, portanto, pararestringir a validez objetiva do conhecimento sensvel (pois asdemais coisas, que a intuio sensvel no alcana, so deno-minadas noumena, para com isso indicar que aqueles conhe-cimentos no podem estender a sua regio a tudo o que o en-tendimento pensa). (Kant, 1980, p.160, B 310)

    O conceito que o homem faz de si prprio formadoempiricamente a partir do modo como sua conscincia afetada pela receptividade da sensibilidade. No entanto, preciso ainda admitir a existncia de algo que esteja na basedo fenmeno, a saber, umnoumenon. Neste caso, temos dedistinguir entre um carter emprico e outro inteligvel dohomem, cuja consequncia a inevitvel admisso de um

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    Eu emprico correspondente ao conceito que o homem faz

    de si mesmo a partir dos efeitos perceptveis pela sensibili-dade, e um Eu puro tal como o homem seja constitudo emsi, ao qual no temos acesso por intuio, e que constitui ofundamento do conceito emprico.

    Pois, visto ele no se criar a si mesmo, por assim dizer, e

    no ter de si um conceitoa priorimas sim um conceito rece-bido empiricamente, natural que ele s possa tambm tomarconhecimento de si pelo seu sentido ntimo e consequente-mente s pelo fenmeno da sua natureza e pelo modo como asua conscincia afectada, enquanto que tem de admitirnecessariamente, para alm desta constituio do seu prpriosujeito composta de meros fenmenos, uma outra coisa ain-da que lhe esteja na base, a saber o seu Eu tal como ele sejaconstitudo em si. (Kant, 2005, p.100).

    Disso se segue que a constituio do Eu emprico refe-re-se parte sensvel do sujeito e a tudo aquilo que envol-ve a sensibilidade do mesmo, ao passo que o Eu puro serefere a sua parte inteligvel, isto , sua parte racional. Orao homem encontra realmente em si mesmo uma faculdadepela qual se distingue de todas as outras coisas, e at de simesmo, na medida em que ele afectado por objectos; essafaculdade arazo (Vernunft) (idem, p.101).

    Portanto, se o conhecimento est limitado a meros fe-nmenos, o homem, ao tomar conscincia de si, somenteter acesso quilo que diz respeito aos efeitos perceptveisde suas aes, isto , ao Eu emprico, restando, desse modo,uma parte nele incognoscvel, a saber, o Eu puro,imperscrutvel pelo entendimento, pois se trata do homemconsiderado em sua parte numnica. Desse modo, adverteKant: Nem a si mesmo e conforme o conhecimento quede si prprio tem por sentido ntimo pode o homem preten-der conhecer-se tal como ele em si (idem, p.100).

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    Notar-se-, porm, que a classificao dos objetos em

    geral entre fenmeno, referindo-se ao modo como as coi-sas nos so dadas, enoumena, referindo-se ao modo comoelas so em si mesmas, assunto discutido pormenoriza-damente na primeiraCrtica. Entretanto, os efeitos des-sa investigao especulativa so imprescindveis para aelaborao da tica kantiana e, por conseguinte, para atin-gir o objetivo principal daFundamentao, a saber, o deencontrar o princpio supremo da moralidade. Mais ain-da, demonstra certo enlace entre a filosofia terica e pr-tica de Kant e apresenta um modo de proceder coerentedo sistema crtico, embora os objetos de investigao se- jam diferentes.

    Desse modo, da distino entre fenmeno enoumenonsucede ainda outra espcie de diviso importante. Comoafirma Kant: Daqui tem de resultar a distino, emboragrosseira, entre ummundo sensvele ummundo inteligvel,o primeiro dos quais pode variar muito segundo a diferen-a de sensibilidade dos diversos espectadores, enquanto osegundo, que lhe serve de base, permanece sempre idnti-co (idem, p.100, grifo do autor).

    O mundo sensvel pode tambm ser denominado mun-do dos fenmenos, no qual nos so dados os objetos queafetam nossa sensibilidade, os nicos que podem ser conhe-cidos por nosso entendimento. E por estar sujeito suces-so temporal, tudo no mundo sensvel mutvel, pois osobjetos sensveis padecem com o devir. Cada membro domundo sensvel pode observ-lo distintamente, porquesegundo a subjetividade, os objetos no afetam todos ossujeitos necessariamente de um mesmo modo. Com rela-o ao sentimento de prazer e desprazer, por exemplo, podeocorrer que um dado objeto, ou determinada ao, ao afe-tar a sensibilidade de um sujeito o envolva em um enormeprazer, ao passo que este mesmo fenmeno ou ao pode aum outro causar imenso desprazer. Assim, o mundo dos

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    sentidos pode variar segundo o modo como os objetos afe-

    tam a sensibilidade de cada espectador.Entretanto, para alm do dado tem de existir algo quelhe d sustentao, caso contrrio, teramos de considerarum efeito sem uma causa determinada, o que seria um ab-surdo segundo a filosofia transcendental. Se onoumenonconstitui aquilo que est na base do fenmeno, e se por esteconceito Kant define, de modo negativo, como uma coisaenquanto no objeto de nossa intuio sensvel,8 ento, eleno pode pertencer ao mundo dos sentidos, tendo de estarligado a outra ordem. Conclui-se que no h incoerncia empensarmos em um mundo dosnoumenaou das coisas em simesmas, o qual Kant denomina de mundo inteligvel.

    Por inteligvel, Kant (1980, p.274, B 566) define aquiloque num objeto dos sentidos no propriamente fenme-no. Desse modo, o mundo inteligvel nada mais , porm,do que aquilo que fundamenta o mundo dos sentidos. Elepermanece idntico a si mesmo, porque, por um lado, osnoumenaenquanto entes do pensamento, ou seja, comocoisas pensadas em si mesmas pela razo, esto fora da or-dem temporal e so, por conseguinte, imutveis. Por outro,a razo universal e no possui variaes no modo como ela constituda em cada sujeito. Neste sentido, o mundo in-teligvel diz respeito a tudo aquilo em que est envolvida arazo, com suas leis e princpios.

    Considerado sob este duplo ponto de vista, ora sob aperspectiva de sua natureza sensvel, ora sob a perspectivade sua natureza racional, o homem mostra-se pertencer, aomesmo tempo, como fenmeno, ao mundo dos sentidos, ecomonoumenon, ao mundo inteligvel. Fica demonstrado,desse modo, a existncia de um carter emprico e outrointeligvel no homem. Como afirma Allison (1995, p.32):

    8 Cf. Kant, 1980, p.158.

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    Sob este ponto de vista, o carter inteligvel a causa

    noumnica e o carter emprico seu efeito fenomnico.9

    Sendo assim, o carter inteligvel constituir-se-ia como acausa transcendental do carter emprico.

    Neste sentido, o mundo sensvel pode ser consideradoo todo dos seres sensveis como fenmenos, ao passo que omundo inteligvel, o todo dos seres racionais como coisasem si mesmas. Do mundo sensvel, podemos formar umconceito emprico por intermdio da intuio na medida emque nossa sensibilidade afetada; j do mundo inteligvel,temos apenas uma representao por meio do pensamen-to, pois ultrapassaramos o limite estabelecido ao conheci-mento humano se quisssemos perscrut-lo pela intuio,visto que toda intuio sempre se refere a fenmenos e nun-ca s coisas como so em si mesmas.

    Ao introduzir-se assim pelo pensamentonum mundo in-teligvel, a razo prtica no ultrapassa em nada os seus limi-tes; mas ultrapass-los-ia se quisesseentrar nesse mundo porintuio, porsentimento[...]. O conceito de um mundo inteli-

    gvel portanto apenas umponto de vistaque a razo se vforada a tomar fora dos fenmenos para se pensar a si mesmacomo prtica, o que no seria possvel se as influncias da sen-sibilidade fossem determinantes para o homem, o que porm necessrio na medida em que se lhe no deve negar a cons-cincia de si mesmo como inteligncia, por conseguinte comocausa racional e actuante pela razo, isto livremente eficien-te. (Kant, 2005, p.110, grifo do autor).

    Mas mundos distintos so regulados por princpios dis-tintos, e na medida em que o homem , ao mesmo tempo,membro participante tanto do mundo sensvel quanto do

    9 On this view, the intelligible character to the noumenal cause andthe empirical character its phenomenal effect.

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    mundo inteligvel, a vontade dele parece estar sujeita a dois

    tipos de legislao. Do sujeito considerado membro domundo sensvel emana, de seu Eu emprico, o princpioegosta, formado a partir do modo como a subjetividade decada espectador afetada pelos fenmenos do mundo e,portanto, vlido apenas para a vontade particular de cadasujeito.

    Ao mesmo tempo, enquanto membro do mundo inteli-gvel, ter de levar em conta que de seu Eu puro emergeum princpio formal que, por estar fundado na razo, temde valer para a vontade de todo ente racional. A razo de-monstra, desse modo, sua atividade ao fornecer ao homemum princpio oriundo de suas prprias foras, diferente-mente da sensibilidade que demonstra sua passividade aonecessitar do mundo emprico na formao de um princ-pio prtico.

    Por tudo isto que um ser racional deve considerar-se asi mesmo,como inteligncia(portanto no pelo lado das suasforas inferiores), no como pertencendo ao mundo sensvel,

    mas como pertencendo ao mundo inteligvel; tem por conse-guinte dois pontos de vista dos quais pode considerar-se a simesmo e reconhecer leis do uso das suas foras, e portanto detodas as suas aces; o primeiro, enquanto pertencente aomundo sensvel, sob leis naturais (heteronomia); osegundo,como pertencente ao mundo inteligvel, sob leis que, indepen-dentes da natureza, no so empricas, mas fundadas somentena razo (Kant, 2005, p.102, grifo do autor).

    Portanto, na conscincia de si o homem se v como umser que ao mesmo tempo racional e sensvel, ou seja,como um ente cindido entre duas partes heterogneas. Porconseguinte, a vontade humana est diante de duas fontesdistintas de determinao, ela est colocada entre o seuprincpioa priori, que formal, e o seu mbila posteriori,que material, por assim dizer numa encruzilhada (idem,

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    o princpio egosta, quanto por um elemento puro produ-

    zido pela razo, isto , pelo princpio formal. Todavia, se natica kantiana o comportamento humano carece de umprincpio de conduta vlido para todo ente, do qual depen-de tambm a produo de uma boa vontade, a investigaoter de proceder no exame dos princpios prticos que ema-nam da razo, tanto os que se originam totalmentea priori,quanto aqueles fundados na sensibilidade, e tornar claro omodo como eles se relacionam no processo de determina-o da vontade, para, ento, descobrir qual destes princ-pios possa valer universalmente e seja capaz de formar umaboa vontade.

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    2OS PRINCPIOS DA RAZO PRTICA

    Por conta da necessidade de observarmos o homem sobum duplo ponto de vista, ora em sua parte emprica comofenmeno, ora em sua parte pura comonoumenon, encon-tramos nele de um lado a sensibilidade, e de outro a razo.Da primeira emergem as inclinaes, ao passo que da se-gunda, em oposio s inclinaes, o dever. Da razo e dodever brota ainda a lei moral, que se ope firmemente aodesejo de felicidade do homem estritamente fundado nasensibilidade. Diante deste quadro, faz-se necessrio tra-ar a distino entre o princpio formal racional do princ-pio material sensvel para verificar se a razo prtica pura suficientemente capaz de determinar objetivamente avontade de todo ente racional. Esta a tarefa que preten-demos desempenhar neste captulo.

    Dever, inclinao e felicidade

    Para Kant, a razo prtica pura apresenta-se como onico e exclusivo fundamento para a moral, nenhum outro suficientemente capaz de impor, totalmentea priori,

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    vontade humana uma lei vlida objetivamente conduta de

    todo ente racional. Mas, como Hffe (1986, p.159, tradu-o nossa) adverte, este tipo de concepo sobre o funda-mento da tica distingue-se absolutamente de qualquerinvestigao moral empreendida anteriormente:

    Antes de Kant se buscou a origem da tica na ordem danatureza ou da comunidade humana, na aspirao felicida-de, na vontade de Deus ou no sentimento moral. Kant preten-de mostrar que no cabe explicar desse modo o carter obje-tivo que a moralidade reclama para si. Como no campoterico, no campo prtico s possvel a objetividade por in-termdio do sujeito.1

    Segundo Kant, a necessidade de que a razo seja o fun-damento de uma boa vontade incide sobre uma explicaoteleolgica da constituio do homem pela Natureza. Paracompreender o argumento kantiano, teremos de conside-rar que a Natureza agiu com acerto nas reparties e talen-tos de um ser organizado constitudo com vistas a realizar

    certo fim que a vida. E tambm aceitar como princpioque neste ser no se encontra nenhum rgo que no sejaapropriado para a consecuo deste fim. Podemos conjetu-rar a partir disso que se o homem fosse dotado pela Natu-reza apenas de sensibilidade, a vida destinar-se-ia satis-fao plena do conjunto de suas inclinaes, isto , do gozo

    e da felicidade. No entanto, pelo fato de o homem possuir,alm da sensibilidade, a razo, e considerando que a Natu-reza tenha agido com acerto na repartio das faculdades,

    1 Antes de Kant se busc el origen de la tica en el orden de lanaturaleza o de la comunidad humana, en la aspiracin a la felicidad,

    en la voluntad de Dios o en el sentido moral. Kant intenta mostrarque no cabe explicar de ese modo el carcter objetivo que lamoralidad reclama para s. Como en el campo terico, en el campoprctico slo es posible la objetividad por intermedio del sujeto.

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    podemos concluir que a vida destinou ao homem outra in-

    teno de existncia que no se resume apenas satisfaode seus desejos. Este outro modo de existncia para Kant(2005, p.25, grifo do autor) a moralidade.

    Se, no entanto, a razo nos foi dada como faculdade pr-tica, isto , como faculdade que deve exercer influncia so-

    bre avontade, ento o seu verdadeiro destino dever ser pro-duzir umavontade, no sboaqui comomeiopara outrainteno, mas umavontade boa em si mesma, para o que a ra-zo era absolutamente necessria, uma vez que a natureza deresto agiu em tudo com acerto na repartio das suas facul-dades e talentos.

    A sensibilidade, portanto, incapaz de produzir umaboa vontade compreendida como bem irrestrito ou incon-dicionado, visto que a vontade determinada por motivosempricos est sempre condicionada ao objeto desejado, eo desejo produzido pela forma como o objeto afeta a sub- jetividade de cada sujeito. A boa vontade necessita da ra-zo como condio de sua possibilidade, pois a sensibilida-de faz da vontade um mero instrumento para satisfazer osfins da inclinao e, deste modo, condiciona-a a um fimque, por sua vez, restringe a ao consecuo da felicida-de. No entanto, a boa vontade no boa por aquilo que elapromove, mas simplesmente pelo que em si mesma.

    Contudo, o princpio formal oriundo da razo no re-conhecido imediatamente como fundamento suficiente dedeterminao da vontade, pois, alm da natureza racional,o homem possui ainda uma natureza sensvel, representa-da por um conjunto de inclinaes cuja principal caracte-rstica a insaciabilidade. O carter emprico do homemrepresentado pelo desejo sensvel e a procura incessantepela satisfao das inclinaes constituem, assim, um gran-de obstculo ao desenvolvimento pleno de sua racionalida-

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    de, isto , de seu carter inteligvel e, por conseguinte, da

    moralidade. Como afirma Rohden (2003, p.xv):

    certamente verdade que o homem no apenas possuiuma razo mas tambm a . S que ele no se identifica ime-diatamente com ela, por ter tambm corpo e inclinaes, asquais possuem como caracterstica dominante sua insaciabi-lidade e constituem como tais um constante desafio ao dom-nio da razo.

    Todavia, se na tica kantiana o comportamento huma-no carece de um princpio de conduta vlido para a vonta-de de todo ente, e se este princpio racional, ento, umaao para ser realizada de modo moral exige a coero darazo frente s inclinaes sensveis. Para a produo deuma boa vontade, cujo valor absoluto e que se constituicomo condio do valor atribudo a todo o restante das coi-sas, o arbtrio tem de determinar a vontade segundo osprincpios da razo, pois a sensibilidade incapaz de for-necer a ideia de um bem incondicionado por ela estar inti-mamente relacionada quilo que diz respeito aoagradvelsegundo a experincia subjetiva de cada sujeito. E no m-bito das aes humanas, o que constitui o valor particu-lar de uma vontade absolutamente boa, valor superior atodo preo, que o princpio de aco seja livre de todas asinfluncias de motivos contingentes que s a experinciapode fornecer (Kant, 2005, p.65). Temos, portanto, dedeterminar qual seja este princpio.

    Para Kant no h outro seno o princpio do Dever,que contm em si o de boa vontade, posto que sob certaslimitaes e obstculos subjectivos, limitaes e obstcu-los esses que, muito longe de ocultarem e tornarem irreco-nhecvel a boa vontade, a fazem antes ressaltar por contras-te e brilhar com luz mais clara (idem, p.26). Se paraexplicarmos a noo de boa vontade temos de recorrer ao

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    conceito de dever, ento podemos compreender que na ti-

    ca kantiana o bem e o dever esto intimamente ligados, semos quais no se poderia formar a ideia de uma ao moral.Como afirma Paton (1971, p.45, traduo nossa):

    Kant comumente considerado o apstolo do dever, demodo que para que ns compreendamos sua doutrina emperspectivas reais, devemos nos lembrar que para ele, a bon-dade fundamental; e no h motivo para supor que ele te-nha considerado a concepo de dever separada da bondade.2

    Vale observar que, inevitavelmente, todo homem,quando diante de uma situao que exija escolha, faz parasi a pergunta: o que devo fazer para bem conduzir minhaao?3 Est subjacente pergunta a busca por uma regra deconduta capaz de fornecer ao arbtrio subsdio para que aescolha seja da melhor ao a praticar. Isso demonstra queo homem possui a noo do dever, por isso, Kant afirma sero dever um conceito popular, ao alcance do entendimentodo homem comum.

    , portanto, no prprio sujeito de modo totalmentea priori, que Kant encontrar o princpio moral, pois se apergunta acerca do que deve ser feito tem origem no ho-

    2 Kant is so commonly regarded as the apostle of duty that if we are

    to get his doctrine in true perspective we must remember that forhim goodness is fundamental; and there is no warrant for supposingthat he even entertained the conception of a duty divorced fromgoodness.

    3 Kant afirma que esta pergunta constitui umas das trs questes paraas quais est voltado todo interesse de nossa razo: Todo interessede minha razo (tanto o especulativo quanto o prtico) concentra-se nas trs seguintes perguntas: 1.Que posso saber? 2. Que devo fa-

    zer? 3. Que me permitido esperar? (Kant, 1980, p.393, B 832-3,grifo do autor). A primeira pergunta puramente especulativa, asegunda prtica, a terceira, por sua vez, concomitantemente te-rica e prtica.

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    mem, a resposta tem que dele provir, visto que o conhe-

    cimento daquilo que cada homem deve fazer, e por conse-guinte saber, tambm pertena de cada homem, mesmodo mais vulgar (Kant, 2005, p.36). E tanto para o homemmais vulgar quanto para o mais culto, a noo de boa von-tade, fundada no princpio do dever, aquela que se apre-senta como regra de conduta moral.

    Neste contexto, a vontade humana, quando diante deuma situao que exija escolha, fica diante de uma encru-zilhada, na qual tem de decidir se se determina conformeas exigncias da razo ou se se deixa conduzir pelas solici-taes da sensibilidade. Desse modo, a ao escolhida pelosujeito agente pode ocorrer como sendo boa do ponto devista moral, quando motivada por princpios da razo, oua melhor ao produzida para saciar o desejo, quando mo-tivada por estmulos sensveis.

    As nossas aes podem, portanto, ser consideradas sobum duplo ponto de vista: ou de uma vontade absolutamen-te conforme a razo ou de uma vontade afetada pelas incli-naes. No h, no entanto, nenhuma contradio, masapenas uma resistncia das inclinaes s prescries darazo.

    preciso, porm, fazer aqui uma advertncia. EmboraKant no tenha abordado de modo mais profundo no tex-to daFundamentaoa distino entre uma razo prticapura e uma razo prtica emprica, tarefa destinada se-gundaCrtica, faz-se necessrio que tenhamos claro estadistino para no incorrer no erro de pensar a existnciade uma vontade determinada imediatamente por mbilesempricos. Vale notar que toda escolha racional, pois docontrrio poderamos afirmar de modo absurdo a existn-cia de aes produzidas pelo acaso ou por determinaesexternas ao arbtrio de cada sujeito. Se assim fosse, isto ,se para as escolhas no houvesse razo suficiente, no po-deramos imputar responsabilidade moral ao sujeito agen-

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    te, pois a liberdade estaria fundada na indiferena e cada

    ao possuiria, desse modo, o mesmo valor.4

    Todavia, a razo pode tanto produzir uma vontade boapara satisfazer os fins da inclinao, isto , boa para a rea-lizao da felicidade, sendo a vontade neste caso um meroinstrumento, quanto pode produzir uma vontade boa emsi mesma. Como diz Paton (1971, p.45, traduo nossa): desejvel notar que h essas duas funes distintas da ra-zo, e que ambas almejam o bem. A primeira funo visa aum bem condicionado (isto , a felicidade), e a segunda aum bem incondicionado (isto , a boa vontade).5

    Mas, se por um lado o essencial para a moralidade de-pende de que o princpioa prioriconstitua o fundamentodeterminante da vontade, por outro, as inclinaes apresen-tam-se como um forte obstculo s prescries da razo.Como afirma Kant (2005, p.37):

    O homem sente em si mesmo um forte contrapeso con-tra todos os mandamentos do dever que a razo lhe represen-ta como to dignos de respeito: so as suas necessidades e in-clinaes, cuja total satisfao ele resume sob o nome defelicidade.

    Kant define inclinao do seguinte modo: Chama-seinclinao a dependncia em que a faculdade de desejar estem face das sensaes; a inclinao prova sempre, portan-

    to, umanecessidade (Bedrfnis) (idem, p.49, nota, grifo doautor). Esta necessidade se d pelo fato de a faculdade dedesejar estar sempre desejando algo, em funo de a insa-ciabilidade constituir-se como sua caracterstica predomi-

    4 Cf. Allison, 1995, p.136-7.

    5 it is desirable to note that there are these two distinct functions of reason, and that both aim at a good, the first function at aconditioned good (namely, happiness), and the second at anunconditioned good (namely, a good will).

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    meio da moralidade. Para Paton (1971, p.44, traduo nos-

    sa): A verdadeira funo da razo, no seu aspecto prtico,deve ser produzir uma boa vontade no como meio paraoutra coisa, como a felicidade, mas boa absolutamente emsi mesma.7 E, como afirma Kant naFundamentao, as-sim a boa vontade parece constituir a condio indispens-vel do prprio facto de sermos dignos da felicidade (Kant,2005, p.22).

    Temos a seguinte equao: quanto mais o homem sedeixa conduzir pelos princpios da razo prtica pura, maisele se afasta de suas inclinaes como a principal fonte dosmotivos determinantes da vontade, tornando-se, dessemodo, cada vez mais um ente moral. Consequentemente,o desejo de felicidade d lugar ao merecimento de ser feliz.Com efeito, como adverte Paton (1971, p.57, traduo nos-sa), na tica kantiana ainda existe a possibilidade de o ho-mem ser feliz: Com relao a alguma indicao de que,sobre a viso de Kant, um homem bom deve ser sempreinfeliz, isto puramente sem sentido. Ele sempre insisteque a vida moral traz com ela sua prpria satisfao ou con-tentamento (Zufriedenheit) peculiar.8

    Para Kant (2005, p.26), agir sob as prescries da razotambm pode trazer um certo tipo de contentamento, em-bora diferente daquilo que se entende por felicidade, isto, a satisfao de todas as inclinaes. Diz ele:

    Porque a razo, que reconhece o seu supremo destino pr-tico na fundao duma boa vontade, ao alcanar esta inteno

    7 The true function of reason on its practical side must be to producea will good not as a means to something else such as happiness, butgood absolutely and in itself.

    8 As to any suggestion that on Kants view a good man must alwaysbe unhappy, this is pure nonsense. He always insists that the morallife brings with it its own peculiar satisfaction or contentment(Zufriedenheit).

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    capaz duma s satisfao conforme sua prpria ndole, isto a que pode achar ao atingir um fim que s ela (a razo) de-termina, ainda que isto possa estar ligado a muito dano cau-sado aos fins da inclinao.

    Desse modo, por conta da felicidade estabelecer-secomo um conceito indeterminado, e em funo da contin-gncia das inclinaes, o conceito do dever, que contm emsi o de boa vontade, torna-se condio fundamental paranos tornar dignos de felicidade ou de nos dar satisfaomoral.

    Na Fundamentao, Kant (2005, p.31, grifo do autor)define o dever como a necessidade de uma ao por respei-to lei. Pelo objecto, como efeito da aco em vista, possoeu sentir em verdadeinclinao, mas nunca respeito,exactamente porque simplesmente um efeito e no aactividade de uma vontade. Temos de respeitar a lei porse tratar de um produto da atividade da vontade de um enteracional.

    A vontade, na medida em que determinada pelo arb-trio, efetua no mundo sensvel trs tipos de aes: aquelasque socontrrias ao dever (imorais), aquelas que socon- formes ao dever (legais); e as que so propriamente efetuadas por dever (morais).

    As aes totalmente contrrias ao dever so facilmenteidentificveis pela ausncia de qualquer relao com a leimoral na determinao da vontade. Por exemplo: mentirconstitui-se como uma ao contrria ao dever, porque amxima que determina a vontade neste caso no pode serelevada a lei prtica universal. J as aes conformes aodever podem conter legalidade, porm, esto desprovidasde moralidade, porque elas esto de acordo com a letra dalei, mas no so impulsionadas por seu esprito. Dir Kant(2003, p.249, nota, grifo do autor) na segundaCrtica:Pode-se dizer de cada ao conforme lei, que, contudo,

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    no ocorreu por causa da lei, que ela seja moralmente boa

    apenas segundo aletra, mas no segundo oesprito(segun-do a disposio). No caso de uma ao conforme ao dever,na medida em que foi efetivada pelo arbtrio, ela pode con-ter legalidade porque em sua realizao a mxima se eleva lei, isto , a um imperativo, mesmo sendo ele hipottico.

    Exemplifiquemos:Quando a vida humana conservada por puro respeito

    vida, pode-se dizer que o princpio determinante da von-tade o estrito dever e, portanto, a ao tem contedo mo-ral; se, pelo contrrio, a vida conservada apenas por incli-nao, por egosmo, a mxima no tem contedo moral e avida conservada apenas conforme ao dever.

    Praticar a caridade um dever; todavia, se ela prati-cada tendo em vista o louvor e as honras, ento praticadano por dever, mas conforme ao dever (por egosmo e in-clinao). Mas se nenhuma inclinao estimulasse a ao,ou seja, se ela fosse praticada pelo puro dever, ento ela te-ria um autntico valor moral.

    Tendo em vista que ser justo um dever, o merceeiropode colocar o preo justo por trs razes: pode ser por sim-patia a seus clientes; pode ser para conseguir a estima de-les; ou por fim, segundo sua conscincia do estrito dever.No primeiro caso, porm, a ao conforme ao dever, maso por inclinao, pois est fundada na inclinao para asimpatia. No segundo, o merceeiro age para obter valor naopinio dos outros e, portanto, apenas por interesse egos-ta, pois a justia est sendo considerada um meio para seatingir um fim determinado. Como afirma Tugendhat(1996, p.119):

    Apenas de acordo com o dever age, p.ex., o comerciante assim o exemplo de Kant que atende sua clientela hones-tamente, mas no por causa de princpios da honestidade epor isto no por dever, seno com propsito egosta. Esta

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    a motivao do contratualista. Ele quer aparecer de formahonesta, porque isto lhe vantajoso.

    A terceira razo pode ser o estrito dever que ele tem,segundo sua disposio moral, de levar a seus clientes opreo justo. Esta ao, segundo o ponto de vista kantiano, a nica que contm valor moral positivo, pois as outras

    aes podem at merecer louvor por no contrariarem odever, mas, porque so realizadas por inclinao ou interes-se egosta, no merecem ser estimadas.

    Pois que aquilo que deve ser moralmente bom no bastaque sejaconforme lei moral, mas tem tambm que cumprir-se por amor dessa mesma lei; caso contrrio, aquela conformi-dade ser apenas muito contingente e incerta, porque o prin-cpio imoral produzira na verdade de vez em quando acesconformes a lei moral, mas vezes ainda aces contrrias a essalei. (Kant, 2005, p.16, grifo do autor)

    Assegurar cada qual sua prpria felicidade um dever,mas mesmo sem consider-lo como tal, todo homem, como j foi visto, tem por si s um forte desejo de ser feliz. E emvista da indeterminao do conceito de felicidade, neces-srio que o homem procure ser feliz por dever, sem deixar-se dominar pelas inclinaes, pois somente assim o seucomportamento tem propriamente valor moral, j que averdadeira felicidade, segundo Kant, consiste no domniodos instintos, das inclinaes naturais, no afastamento detodo o determinismo natural.

    Daqui se infere que somente as aes praticadas pordever tm contedo moral, pois somente neste caso o prin-cpio formal do querer moral e pode determinar, por con-seguinte, aes morais. Deste modo, conclui-se que a von-tade tem de ser determinada objetivamente pela lei esubjetivamente pelo puro respeito lei para ser considera-

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    da boa, sem restrio, pois o bem tem de ser praticado por

    dever e no por inclinao.

    Lei moral e mxima

    Se uma ao realizada por dever tem de eliminar a in-fluncia da inclinao e todo elemento emprico que possatornar-se objeto da vontade, e sendo o dever a necessidadede realizao de uma ao por respeito lei moral, logo Kantconclui que nada mais resta vontade que a possa deter-minar do que aleiobjectivamente, e, subjectivamente, o puro respeitopor esta lei prtica, e por conseguinte a mxi-ma que manda obedecer a essa lei, mesmo com prejuzo detodas as minhas inclinaes (Kant, 2005, p.31, grifo doautor).

    Desse modo, a vontade encontra-se, por assim dizer,diante de dois princpios de determinao, um subjetivo,outro objetivo, aos quais Kant (idem, p.58, nota, grifo doautor). denomina respectivamente em seus termos de m-xima e lei, ao mesmo tempo em que traa uma distinoentre eles:

    Mxima o princpio subjectivo da aco e tem de se dis-tinguir do princpio objectivo, quer dizer da lei prtica. Aquelacontm a regra prtica que determina a razo em conformida-

    de com as condies do sujeito (muitas vezes em conformida-de com a sua ignorncia ou as suas inclinaes), e portanto oprincpio segundo o qual o sujeitoage; a lei, porm, o princ-pio objectivo, vlido para todo o ser racional, princpio segun-do o qual eledeve agir , quer dizer um imperativo.

    A mxima, portanto, constitui-se como uma espcieparticular de princpio, que pode ser definida como o prin-cpio subjetivo de toda ao de um agente racional. O prin-cpio subjetivo emprico quando estiver estritamente re-

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    lacionado ao sentimento de prazer ou desprazer que a re-

    presentao do objeto apetecido causa no sujeito na deter-minao da vontade.Estes princpios empricos so subjetivos, porque o pra-

    zer da ao desejada diz respeito receptividade do sujei-to, isto , sensao que esta ao causa em cada um. Umaao capaz de proporcionar prazer a determinado sujeitopode, concomitantemente, causar desprazer a outro. Asmximas fundadas em inclinaes sensveis, isto ,empricas, so denominadas por Kant de mximas mate-riais, porque so dependentes de um desejado fim que aao pretende atingir, que acaba por se tornar a matria damxima.

    Mas, muito embora as mximas tenham comumentecomo fundamento a sensibilidade, disso no se pode con-cluir a impossibilidade de existirem mximas fundadas to-talmentea priorina razo, isto , que no dependam do de-sejo ou das inclinaes para se constiturem como princpiossubjetivos, as quais pudessem ser denominadas de mxi-mas formais. Como Paton (1971, p.61, traduo nossa)adverte: de toda importncia reconhecer que embora asmximas sejam comumente fundadas em inclinaes [...],pode, no obstante, ser possvel agir sob mximas que noestejam fundadas deste modo.9

    Para tanto, preciso pensar uma mxima que estejadesprovida de qualquer relao com um objeto sensvel oucom uma ao desejada. Segundo Paton, quando exclumostodo elemento emprico de uma mxima, ela pode tornar-se apenas a mxima formal de seguir a lei moral.10

    9 It is all-important to recognize that while maxims are commonlybased on inclinations [...], it may nevertheless be possible to act onmaxims which are not so based.

    10 Cf. Paton, 1971, p.72.

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    As mximas materiais so um produto da razo prtica

    trabalhando a servio das inclinaes, ao passo que umamxima formal estaria em funo do estrito dever. Portan-to, toda mxima, seja ela material, seja ela formal, deri-vada da razo, que , por excelncia, (como Kant denomi-na na primeiraCrtica) a faculdade dos princpios.11 Asensibilidade fornece apenas a matria, pois, se algumamxima se originasse estritamente dela, a ao realizadateria de ser considerada irracional, eliminando a possibili-dade de imputarmos responsabilidade ao sujeito agente.

    A vontade, no entanto, sempre determinada por umamxima; deste modo nossas aes esto fundadas, inevita-velmente, em princpios subjetivos materiais ou formais.Mas se uma ao realizada por dever tem de estar despro-vida de todo elemento emprico, podemos concluir que amxima de uma ao moral tem de ser formal e no mate-rial, dado que os princpios prticos materiais so insufi-cientes para transformarem-se em leis objetivas.

    Uma aco praticada por dever tem o seu valor moral,nono propsitoque com ela se quer atingir, mas na mxima quea determina; no depende portanto da realidade do objecto daaco, mas somente do princpio do querer segundo o qual aaco, abstraindo de todos os objectos da faculdade de dese- jar, foi praticada. (Kant, 2005, p.30, grifo do autor)

    Se para ser boa a vontade tem de ser determinada pelobem incondicionado e se o praticamente bom aquilo quedetermina a vontade por meio de representaes da razo,ento, para que o conceito popular de boa vontade obtenhaautenticidade e universalidade, ele ter de repousar emprincpios da razo prtica pura, pois se a razo for incapaz

    de constituir o fundamento deste juzo, o homem ter dian-

    11 Cf. Kant, 1980, p.180.

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    te de si um preceito ou uma regra prtica, mas nunca uma

    lei moral que valha necessariamente para todo ente racional.Toda a gente tem de confessar que uma lei que tenha de

    valer moralmente, isto como fundamento duma obrigao,tem de ter em si uma necessidade absoluta. [...] por conse-guinte, o princpio da obrigao no se h-de buscar aqui nanatureza do homem ou nas circunstncias do mundo em queo homem est posto, mas sima prioriexclusivamente nosconceitos da razo pura, e que qualquer outro preceito basea-do em princpios da simples experincia, e mesmo um precei-to em certa medida universal, se ele se apoiar em princpiosempricos, num mnimo que seja, talvez apenas por um smbil, poder chamar-se na verdade uma regra prtica, mas

    nunca uma lei moral. (idem, p.15-6).

    Para determinarmos se da razo pode emergir algumprincpio prtico, a investigao tem de proceder no mbitode uma Metafsica dos Costumes, pois a lei moral, para servlida a todo ente racional em geral, deve ser deduzida doconceito universal de um ser racional, no de um conceitoemprico aduzido a partir de uma Antropologia. O princ-pio moral de que se parte para fundar uma moral no podeestar fundado em particularidades da natureza humana,porque ele deve existir por si mesmo, independente da exis-tncia do homem. Tampouco podem as regras morais se-rem fornecidas pela experincia, o que Kant (1980, p.188,grifo do autor B 375) j alertava na primeiraCrtica:

    Com efeito, relativamente natureza a experincia forne-ce-nos a regra e a fonte da verdade; porm, no que concer-ne s leis morais, a experincia (infelizmente) a mo da ilu-so; e sumamente reprovvel tirar as leis sobre o quedevo fazer daquilo que feitoou querer limitar a primeira coisapela segunda.

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    Partindo dessas premissas temos de concluir com

    Kant (2005, p.46) que todos os conceitos morais tm suasede e origem complementea priorina razo, e isto tantona razo humana mais vulgar como na especulativa emmais alta medida; que no podem ser abstrados de ne-nhum conhecimento emprico e por conseguinte pura-mente contingente.

    Desse modo, se a Metafsica da Natureza tem de deter-minara priorias leis segundo as quais tudo acontece, umaMetafsica dos Costumes ter assim de determinar a leisegundo a qual tudo deve acontecer, mas ponderando tam-bm as condies sob as quais muitas vezes no acontece oque deveria acontecer.12 um pressuposto fundamental dosistema crtico a ideia da existncia de leis tanto da nature-za, quanto da conduta humana. Como diz Kant (2005,p.47): Tudo na natureza age segundo leis; o que nos dis-tingue dos outros animais e das demais coisas do mundo que S um ser racional tem a capacidade de agirsegundoa representaodas leis, isto , segundo princpios, ou: sele tem umavontade (idem, grifo do autor).

    Nossa conduta, portanto, se distingue do comporta-mento dos animais por conta de podermos agir conformeprincpios, isto , pela nossa capacidade de podermos pon-derar sobre qual princpio devemos nos apoiar ou deixar delado na realizao de uma determinada ao.

    12 neste ponto, quando da noo comum dodever se extrai o concei-to altamente abstrato delei, que ocorre naFundamentaoa Tran-sio da filosofia moral popular para a Metafsica dos Costumes,um passo importante para encontrar o fundamento da moralidade.Como afirma Kant: Este facto de descer at aos conceitos popula-res sem dvida muito louvvel, contanto que se tenha comeadopor subir at aos princpios da razo pura e se tenha alcanado ple-

    na satisfao neste ponto; isto significaria primeiro o fundamentodadoutrina dos costumes na metafsica, para depois, uma vez ela afir-mada solidamente, a tornaracessvelpela popularidade (Kant,2005, p.43).

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    se possvel, duma propenso especial que seja prpria da ra-zo humana e no tenha que valer necessariamente para avontade de todo o ser racional, tudo isso pode na verdade darlugar para ns a uma mxima, mas no a uma lei; pode dar-nos um princpio subjectivo segundo o qual poderemos agirpor queda ou tendncia, mas no um princpio objectivo quenosmandeagir mesmo a despeito de todas as tendncias, in-clinaes e disposies naturais. (Kant, 2005, p.64, grifo do

    autor).

    Ser feliz a aspirao de todo ente racional, mas a m-xima sob a qual age o sujeito em busca da felicidade valesomente para sua vontade particular, enquanto satisfaode um conjunto de inclinaes. Se a satisfao das inclina-

    es de um determinado sujeito est na conquista da rique-za material, a mxima que ir fundamentar sua ao aseguinte: para ser feliz devo agir com vistas a me tornar rico.Desse modo, Paton (1971, p.60, grifo do autor, traduonossa) afirma:

    Princpios subjetivos so vlidos somente para o sujeito ouagente particular como princpios sob os quais ele escolhe paraagir. Contra estes, ns temos princpios objetivos; que soprincpios sob os quais qualquer agente racional poderia agirse a razo dominasse completamente seu desejo. Desse modo,princpios objetivos so vlidos para todo agente racional, eeles podem ser chamados de princpios da razo.14

    Mas, se o que traz satisfao a um sujeito pode no tra-zer para outro, segue-se daqui a impossibilidade de fazer

    14 Subjective principles are valid only for the individual subject oragent as the principles on which he chooses to act. Against these we

    must set objective principles; that is, principles on which anyrational agent would act if reason had full control over his passion.Objective principles are thus valid for every rational agent, and theymay be called principles of reason.

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    dessa mxima uma lei, dada a contingncia da qual ela pro-

    vm. Uma lei, portanto, no suficientemente capaz dedizer o que devemos fazer para sermos felizes, mas apenaso que devemos fazer para nos tornarmos dignos de felici-dade. Kant (1980, p.393, grifo do autor B 834) j haviaatentado para este fato, j na primeiraCrtica, onde ele diz:Denomino pragmtica (regra de prudncia) a lei prticaderivada da motivao da felicidade; por outro lado, intitulomoral (lei da moralidade) aquela lei, se que existe, quenada mais possui como motivao do que omerecimento deser feliz. Se assim for, ento toda ao motivada pelo de-sejo de felicidade no pode possuir valor moral algum, poisa vontade neste caso foi determinada por uma regra de pru-dncia e no pela lei moral.

    A lei , por sua vez, um produto da razo representadaa partir de meros conceitos, ou seja, sem mesclas com oemprico e, portanto, um princpio vlido objetivamente.Mas que lei esta que tem de determinar a vontade paraque esta possa ser considerada boa absolutamente? Kant adefine do seguinte modo (primeira frmula do imperativocategrico, a frmula universal): devo proceder sempre demaneira queeu possa querer tambm que a minha mximase torne uma lei universal (Kant, 2005, p.33, grifo doautor).

    No entanto, embora Kant descreva e trace as caracters-ticas necessrias de uma lei moral capaz de valer universal-mente, uma questo fica insolvel naFundamentao.15Trata-se de poder provar que essa lei possui validade para avontade humana, o que de fato ocorrer naCrtica da razo prtica,16 quando Kant mostra que a lei objetiva se impe vontade humana como um factumda razo pura prtica e,

    15 Cf. Reath, v.80, n.3, p.284-5, 1989.16 Cf. Kant, 2003, p.3.

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    desse modo, rejeita a possibilidade de um factumantropol-

    gico, que seria, por sua vez, naturalizar o transcendental.Mas poder querer que uma mxima se transforme emlei universal o critrio que permite julgar moralmente asaes humanas, e com isso, diz Kant (idem, p.62, grifo doautor), est perfeitamente de acordo o homem de entendi-mento vulgar, que tem sempre diante dos olhos este prin-cpio em seus juzos prticos. Temos que poder querer queuma mxima da nossa aco se transforme em lei univer-sal: este o cnone pelo qual a julgamos moralmente emgeral. Segundo Paton (1971, p.73, traduo nossa), este um padro de avaliao essencial para fundar a moral: Jul-gar nossas prprias aes pela mesma norma universal quens aplicamos s aes dos outros uma condio essencialda moralidade.17

    No entanto, nem sempre nossas aes esto fundadasem princpios objetivos, isto , nem sempre nossas mxi-mas so de tal modo constitudas que possam ser elevadas lei universal. Para examinar se a mxima est em confor-midade com a lei, verifiquemos se ela no entra em contra-dio com o carter de objetividade que requer a lei.

    Por exemplo, para saber se uma promessa mentirosapode ser conforme ao dever basta que o homem perguntea si mesmo: posso eu querer que a mentira tomada comomxima de minha ao se constitua como lei universal?Logo o homem reconhecer que pode ele desejar subjeti-vamente a mentira, mas no pode querer uma lei universalda mentira, pois, segundo uma tal lei, todos poderiam men-tir, no havendo nem mesmo a possibilidade de firmarqualquer tipo de contrato fundado na promessa; notar-se-ia ento que uma mxima dess