07-o retorno de sherlock holmes

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Sherlock Holmes em: A casa vazia Por Sir Arthur Conan Doyle

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  • Sherlock Holmes

    em:

    A casa vazia Por Sir Arthur Conan Doyle

    PDF por ZOHAR ([email protected])

    CPTurbo.org

  • O assassinato do honorvel Ronald Adair, ocorrido na primavera de 1894, em estranhas e inexplicveis circunstncias, despertou o interesse de toda a cidade de Londres, deixando consternados os meios elegantes. O pblico conhece os pormenores que vieram luz nas investigaes policiais, mas muita coisa ficou oculta naquela poca, pois as acusaes eram to graves e evidentes que era pouco aconselhvel divulgar todos os fatos. Somente agora, quase dez anos mais tarde, que me permitido apresentar os elos que faltaram e que completam a extraordinria cadeia. O crime em si era interessante, mas esse interesse nada significava para mim, comparado com a sua inconcebvel seqncia, que me causou o maior choque e a maior surpresa de toda a minha vida aventurosa. Mesmo agora, aps to longo intervalo, vibro ao pensar nisso e me sinto de novo invadido por uma torrente de alegria, espanto e incredulidade. Ao pblico que se interessou pelas informaes que de vez em quando eu dava a respeito dos pensamentos e aes daquele homem extraordinrio, quero dizer que no deve me censurar por no ter compartilhado tudo com ele. Teria sido esse o meu primeiro dever, se no houvesse expressa proibio, formulada pelos lbios daquele homem proibio que foi levantada no dia 3 do ms passado. fcil imaginar que a minha intimidade com Sherlock Holmes me fizesse tomar grande interesse pelo crime em geral e que, aps o desaparecimento do meu amigo, eu nunca deixasse de ler com cuidado os vrios problemas levados a pblico. Mais de uma vez, para meu gozo pessoal, tentei empregar os mtodos de Holmes e solucionar tais problemas, embora sem resultado. Nenhum me atraiu tanto como a tragdia de Ronald Adair. Ao ler no inqurito os depoimentos que levaram ao veredicto: "assassinato cometido por pessoa ou pessoas desconhecidas", compreendi mais do que nunca que perda fora para a sociedade a morte de Sherlock Holmes. Havia, no estranho caso, pontos que certamente o teriam atrado e o trabalho da polcia teria sido auxiliado, ou mais provavelmente, antecipado, pela experiente observao e a inteligncia desperta do maior criminalista da Europa. Nesse dia, enquanto fazia as minhas visitas, pensei demoradamente no caso, no encontrando explicao adequada. Embora corra o risco de contar uma histria pela segunda vez, vou recapitular os fatos que se tornaram do domnio pblico no final do inqurito. O honorvel Ronald Adair era o segundo filho do conde de Maynooth, na ocasio governador de uma das colnias australianas. A me de Adair viera da Austrlia para ser operada de catarata. Ela e seus filhos Ronald e Hilda moravam no nmero 427 da Park Lane. Os dois jovens freqentavam a melhor sociedade; ao que constava, no tinham inimigos, nem vcios. Ele estivera noivo da srta. Edith Woodiey, de Carstairs, mas o noivado fora desfeito meses antes, de comum acordo, e no havia motivo para se supor que existisse ressentimento. Quanto ao resto, o rapaz freqentara um crculo estreito e convencional, pois tinha hbitos moderados e temperamento calmo. Apesar disso, a morte apresentou-se a esse jovem aristocrata de maneira estranha e inesperada, entre as dez e as onze e vinte, na noite de 30 de maro de 1894.

  • Ronald Adair era aficionado pelas cartas e jogava com freqncia, mas no de maneira que pudesse prejudic-lo. Era scio dos clubes Baldwin, Cavendish e Bagatelle. Ficou provado que no dia da sua morte jogara whist no Bagatelle, depois do jantar. Tambm jogara ali tarde. Soube-se, pelo depoimento do sr. Murray, de Sir John Harday e do coronel Moran, que o jogo fora whist e que houvera certo equilbrio na sorte. Adair perdera mais ou menos cinco libras. Possuidor de enorme fortuna, esse prejuzo em nada poderia afet-lo. Tinha jogado todos os dias, num ou noutro clube, mas era cauteloso e em geral saa com lucro. Ficou provado que, como parceiro do coronel Moran, chegara a ganhar quatrocentas e vinte libras numa sesso, algumas semanas antes, de Godfrey Milner e Lorde Balmoral. Esses fatos eram recentes, pelo que se soube no inqurito. Na noite do crime, ele voltou do clube exatamente s dez horas. Sua me e sua irm tinham ido visitar uns parentes. A criada declarou que o ouvira entrar na sala da frente, no segundo andar. Ela acendera o fogo nessa sala, e, devido fumaa, abrira a janela. No fora ouvido o menor rudo at as onze e vinte, hora a que voltaram a dona da casa e sua filha. Desejando dizer boa-noite ao filho, Lady Maynooth tentara entrar no seu quarto. Estava fechado por dentro, e no houve resposta quando bateram e chamaram. Pediram socorro, e a porta foi arrombada. O infeliz rapaz estava cado perto da mesa. Fora horrivelmente mutilado por uma bala explosiva, mas no se encontrou arma alguma no aposento. Na mesa estavam duas notas de dez libras, assim como dezessete libras e dez xelins em moedas de prata e de ouro, dispostas em pequenas pilhas. Havia tambm algarismos numa folha de papel, com os nomes de alguns amigos do clube, donde se deduziu que estivera, antes de morrer, tentando verificar seus lucros ou prejuzos no jogo. Um exame minucioso do caso tornou-o ainda mais complexo. Em primeiro lugar, no havia razo para o rapaz ter fechado a porta por dentro. Havia a possibilidade de ela ter sido fechada pelo assassino, que poderia ter fugido pela janela. Mas era uma queda de sete metros, e embaixo havia um canteiro de aafroes em pleno florescimento. Nem as flores nem a terra pareciam ter sido pisadas, e no havia marcas na estreita faixa de relva que separava a casa da rua. A julgar pelas aparncias, fora o prprio rapaz que fechara a porta. Mas como fora ele morto? Ningum poderia ter galgado aquela janela sem deixar vestgios. Mesmo supondo-se que algum tivesse feito pontaria pela janela, era necessrio que se tratasse de um timo atirador para causar tal ferimento. Alm disso, a Park Lane muito freqentada, e havia um estacionamento de carros a cem metros da casa. Ningum ouvira o tiro. E, no entanto, l estava o morto, bem como a bala, achatada como todas as balas de ponta macia, provocando um ferimento que devia ter causado morte instantnea. Eram essas as circunstncias do mistrio da Park Lane, complicadas pela total ausncia de motivo, j que, como dissemos, o jovem Adair no parecia ter inimigos e no houvera tentativa de roubo de dinheiro, ou de objetos de valor. Durante o dia todo, pensei nesses fatos, procurando encontrar uma teoria que os explicasse, ou descobrir a linha de menor resistncia, que, na opinio

  • do meu pobre amigo Holmes, era o ponto de partida de qualquer investigao. Confesso que fiz poucos progressos. tarde, caminhei pelo parque, e, s seis horas, vi-me na extremidade da Park Lane que d para a Oxford Street. Um grupo de curiosos na calada, todos olhando para uma determinada janela, indicou-me a casa que eu havia ido ver. Um homem alto e magro, de culos escuros, que desconfiei fosse um policial paisana, expunha uma teoria de sua autoria s pessoas que se agrupavam para ouvi-lo. Cheguei o mais perto possvel, mas as observaes me pareceram absurdas, de modo que me afastei, aborrecido. Ao faz-lo, esbarrei num homem velho e disforme, que estava atrs de mim, e derrubei vrios livros que ele levava. Lembro-me de que, ao ergu-los, notei o ttulo de um deles, The origin of tree worship, e ocorreu-me que o sujeito devia ser um pobre biblifilo, que, por profisso ou mania, colecionava volumes obscuros. Procurei

    desculpar-me, mas era evidente que aqueles livros, que eu tivera a infelicidade de derrubar, eram preciosos aos olhos do dono. Ele se virou com um rosnar de desprezo, e a corcunda e as suas brancas desapareceram no meio da multido. Minhas observaes sobre o nmero 427 da Park Lane no me ajudaram a elucidar o problema que me interessava. A casa era separada da rua por um muro baixo, com grade, no tendo o conjunto mais do que um metro e meio de altura. Seria portanto muito fcil a qualquer pessoa entrar no jardim. Mas a janela era inacessvel, uma vez que no havia condutor de gua ou qualquer outra coisa que pudesse ajudar o mais gil dos homens a galg-la. Cada vez mais perplexo, voltei para Kensington. No havia ainda cinco minutos que entrara no meu escritrio, quando a criada veio me avisar que algum queria me ver. Notei, com surpresa, que era o estranho colecionador de livros, de rosto enrugado sob os cabelos brancos, carregando os preciosos volumes, no mnimo doze, sob o brao direito. Est admirado de me ver aqui, senhor? perguntou ele com um grasnar estranho. Respondi que realmente estava. Pois bem, mas que eu tenho conscincia, e, ao v-lo entrar nesta casa, quando vinha atrs do senhor, disse a mim mesmo que ia entrar e dizer-lhe que, se me mostrei um tanto brusco, foi sem querer e que lhe estou grato por ter apanhado os meus livros. Est dando muita importncia ao incidente disse eu. Posso perguntar como soube quem eu era? Pois bem, senhor, se acha que estou tomando excessiva liberdade, dir-lhe-ei que sou seu vizinho; minha livrariazinha fica na esquina da Church Street,

  • onde terei muito prazer em v-lo, pode ficar certo. Talvez o senhor tambm seja colecionador, e tenho aqui Pssaros britnicos, Catulo e A Guerra Santa

    cada um deles uma pechincha! Com cinco volumes o senhor poderia preencher aquele espao, na segunda prateleira. D um ar de desordem, no verdade, senhor? Virei a cabea e olhei para a estante atrs de mim. Quando tornei a me virar, Sherlock Holmes me encarava sorrindo, do outro lado da escrivaninha. Ergui-me de um salto, olhei-o durante alguns segundos, completamente atnito, e parece que desmaiei pela primeira e ltima vez na minha vida. No h dvida de que uma nuvem cinzenta danou diante dos meus olhos, e, quando recuperei os sentidos, vi que meu colarinho fora desabotoado e senti na boca um gosto de conhaque. Holmes estava inclinado sobre a minha cadeira, de frasco na mo. Caro Watson, peo-lhe mil perdes disse a to conhecida voz. No imaginei que ficasse to abalado.

    Agarrei-o pelo brao. Holmes! exclamei. voc mesmo? Ser possvel que esteja vivo? verdade que conseguiu sair daquele pavoroso abismo? Espere um momento! disse ele. Tem certeza de que est em estado de discutir os fatos? Causei-lhe um choque srio com a minha apario desnecessariamente dramtica. Estou bem, mas, francamente, Holmes, mal posso acreditar nos meus olhos. Deus do cu, pensar que voc, voc, dentre todos os homens, est aqui no meu escritrio! Agarrei-o de novo pela manga e senti-lhe o brao fino e nervoso. Bom, em todo caso, no esprito. Caro amigo, estou radiante por rev-Io. Sente-se e conte-me como saiu vivo do horrvel precipcio. Ele se sentou diante de mim e acendeu um cigarro, com aquele seu jeito despreocupado. Vestia o mesmo terno velho do vendedor de livros, mas as outras caractersticas daquele indivduo estavam em cima da mesa, juntamente com a cabeleira branca e a pilha de livros. Holmes parecia mais magro e mais astuto do que antigamente, mas havia no rosto aquilino uma palidez que indicava no ter levado vida sadia ultimamente. Estou satisfeito por poder me esticar novamente, Watson disse ele. No brincadeira, para um homem alto, ter de diminuir sua estatura trinta centmetros durante horas a fio. Agora, caro a migo, quanto s explicaes: se

  • quiser me dar a sua cooperao, temos uma noite dura e perigosa nossa frente. Talvez seja melhor eu lhe relatar os fatos depois desse trabalho terminado. Estou curiosssimo. Prefiro ouvi-lo agora. Vai me acompanhar hoje noite? Quando quiser e aonde quiser. Como antigamente, ento. Temos tempo para um jantarzinho, antes de partir. Pois bem, quanto ao

    abismo... no tive dificuldade em sair dele pela simples razo de nunca ter estado l. Nunca ter estado l? verdade, Watson, a pura verdade. O bilhete que lhe escrevi foi sincero. No duvidei que tivesse chegado ao fim da minha carreira, quando vi o vulto sinistro do falecido professor Moriarty, de p, na estreita vereda que o levava para junto de mim. Li nos seus olhos cinzentos uma resoluo inexorvel. Troquei com ele algumas palavras e obtive a sua amvel permisso para lhe escrever, Watson, o bilhete que voc mais tarde recebeu. Deixei-o juntamente com minha cigarreira e minha bengala e segui pela vereda, com Moriarty no meu encalo. Quando cheguei ao fim, ambos paramos. Ele no sacou arma alguma, mas correu para mim e rodeou-me com os seus longos braos. Sabia que para ele no havia esperana e queria se vingar. Lutamos beira do precipcio. Mas conheo um pouco de baritsu, um tipo de luta japonesa que mais de uma vez tem me valido. Consegui me libertar. Com um grito horrvel, ele esperneou durante alguns segundos, como se procurasse agarrar o ar com ambas as mos, mas, por mais que se esforasse, no recuperou o equilbrio e caiu no precipcio. Vi-o durante muito tempo. Depois bateu numa rocha e desapareceu na gua. Ouvi com espanto essa explicao, que Holmes me deu enquanto fumava. Mas, e as marcas! exclamei. Vi, com os meus prprios olhos, pegadas de duas pessoas indo e nenhuma de regresso. Vou lhe contar. No momento em que o professor desapareceu, ocorreu-me que eu tinha tido uma sorte extraordinria. Sabia que Moriarty no era o nico que jurara me matar. Havia pelo menos mais trs cujo desejo de vingana se acentuaria com a morte do chefe. Eram todos homens perigosssimos. Um deles acabaria por me apanhar. Por outro lado, se o mundo inteiro estivesse convencido de que eu morrera, aqueles homens ficariam vontade, e, cedo ou tarde, eu teria oportunidade de destru-los. Seria, ento, hora de anunciar que eu ainda pertencia ao mundo dos vivos. A mente raciocina com tal rapidez, que tudo isso me ocorreu antes mesmo de o professor Moriarty ter chegado ao fundo das quedas de Reichenbach.

  • "Levantei-me e examinei o rochedo atrs de mim. Na sua pitoresca descrio do incidente, que li meses mais tarde, voc assegura que a rocha era escarpada. No bem verdade. Havia alguns pontos de apoio para os ps e a ligeira indicao de uma salincia. O rochedo era to alto que parecia impossvel galg-lo todo, mas seria tambm impossvel voltar pela vereda sem deixar sinais. Eu poderia, claro, virar os sapatos, como j tenho feito noutras ocasies, mas a impresso de trs grupos de pegadas na mesma direo certamente despertaria suspeitas. Em suma, era prefervel arriscar-me a subir. No foi agradvel, Watson. A catarata rugia a meus ps. No sou pessoa imaginosa, mas garanto-lhe que tinha a impresso de ouvir a voz de Moriarty gritando do fundo do abismo. Um erro teria sido fatal. Mais de uma vez, quando um tufo de relva me ficou nas mos, ou o p me escorregou nas fendas midas da rocha, pensei que chegara ao fim. Mas continuei o esforo da subida e finalmente alcancei uma plataforma de alguns metros de profundidade, coberta por relva mida, onde pude descansar sem ser visto, com todo o conforto. Estava estendido ali quando voc, caro Watson, e todos os seus acompanhantes investigaram minha morte da maneira mais amiga e eficiente que se poderia imaginar. "Finalmente, depois de terem chegado s inevitveis e completamente errneas concluses, voc voltou para o hotel, e eu me vi de novo s. Pensei que tivesse chegado ao fim das minhas aventuras, mas uma ocorrncia extraordinria me provou que ainda me esperavam surpresas. Uma pedra enorme, vinda de cima, passou por mim e foi cair no precipcio. Pensei por um momento que fosse acidente, mas, segundos depois, olhando para cima, vi a cabea de um homem contra o cu sombrio, e outra pedra bateu na prpria salincia onde eu me achava, bem perto da minha cabea. No havia dvida quanto inteno. Moriarty no estava s. Um cmplice e aquele olhar de relance me provou o quanto ele era perigoso ficara de atalaia enquanto o professor me atacava. De longe, sem que eu o visse, presenciara a morte do amigo e a minha fuga. Esperava ento, e, dirigindo-se ao cume do rochedo, procurava vencer onde o chefe fora derrotado. "No levei muito tempo para tirar minhas concluses, Watson. Vi novamente o rosto sinistro l em cima e percebi que viria outra pedra. Comecei a descer para a vereda. No creio que o tivesse conseguido a sangue-frio. Era cem vezes mais difcil descer do que subir. Mas no tive tempo para pensar nas dificuldades, pois outra pedra passou por mim quando me dependurei, agarrando-me com as duas mos beira da salincia. A meio caminho, escorreguei, mas, com a ajuda de Deus, consegui chegar vereda, ensangentado e rasgado. Tratei de fugir. Caminhei dezesseis quilmetros pelas montanhas, no escuro, e uma semana mais tarde estava em Florena, certo de que ningum no mundo poderia saber qual fora o meu fim. "Tive apenas um confidente: meu irmo Mycroft. Devo-lhe mil desculpas, caro Watson, mas era absolutamente necessrio que me considerassem morto, e tenho a certeza de que voc no descreveria a minha morte de maneira to convincente se nela no acreditasse. Muitas vezes, nos ltimos trs anos, peguei na pena para lhe escrever, mas temia sempre que a sua

  • afeio por mim o levasse a qualquer ato indiscreto que trasse o meu segredo. Por esse motivo, afastei-me de voc hoje, quando derrubou meus livros, pois no momento eu corria perigo, e qualquer sinal de emoo de sua parte poderia chamar a ateno para a minha pessoa e provocar as mais desastrosas conseqncias. Quanto a Mycroft, tive de confiar nele para obter o dinheiro de que necessitava. O curso dos acontecimentos, em Londres, no foi o que eu esperava, pois o julgamento do bando de Moriarty deixou em liberdade dois dos seus mais perigosos membros e meus maiores inimigos. Viajei durante dois anos pelo Tibete, diverti-me visitando Lassa e passando uns dias com o dalai-lama. Voc deve ter ouvido falar das notveis exploraes de um noruegus chamado Sigerson, mas aposto que nunca lhe ocorreu que estava tendo notcias deste seu amigo. Passei depois pela Prsia, dei uma olhada em Meca, fiz uma visita interessante ao califa de Cartum, e comuniquei os resultados ao Ministrio do Exterior. Ao voltar para a Frana, empreguei alguns meses na busca de derivados do alcatro, num laboratrio de Montpeilier, no sul da Frana. Tendo concludo satisfatoriamente o meu trabalho e sabendo que somente um dos meus inimigos ficara em Londres, dispus-me a voltar, mas resolvi me apressar, ao ouvir as notcias deste extraordinrio mistrio da Park Lane, que me atraiu no s pelos seus prprios mritos como ainda porque pareceu me oferecer algumas peculiares oportunidades pessoais. Vim imediatamente para Londres, apresentei-me em pessoa na Baker Street, provoquei histeria na sra. Hudson e verifiquei que Mycroft conservara meus aposentos e meus papis exatamente como eu os deixara. E foi assim, caro Watson, que hoje, s duas horas, vi-me sentado na minha poltrona, no meu antigo quarto, desejando apenas poder ver o meu velho amigo Watson na outra cadeira, que ele tantas vezes ocupara." Foi essa a extraordinria histria que ouvi naquela noite de abril narrativa que teria sido inacreditvel se no fosse confirmada pela presena do homem alto e magro que eu pensara nunca mais tornar a ver. Ele soubera do meu desgosto e manifestou sua solidariedade, mais pela atitude de que por palavras. O trabalho um antdoto para a tristeza, caro Watson disse ele. Tenho para ns dois, hoje noite, um trabalho que, se for realizado com xito, por si s justificaria a vida de um homem neste planeta. Supliquei-lhe que me contasse mais alguma coisa. Voc ficar sabendo o suficiente ainda antes do amanhecer continuou Holmes. Temos trs anos do passado para discutir. Que isto baste at as nove e meia, hora em que daremos incio notvel aventura da casa vazia. Pareceu-me realmente que voltara ao tempo antigo, quando, quela hora, vi-me sentado num carro ao lado dele, com um revlver no bolso e o entusiasmo da aventura no corao. Holmes estava frio, severo e silencioso. Quando a luz dos lampies brilhava no seu rosto austero, eu notava que tinha as sobrancelhas contradas e os lbios cerrados. No sabia que fera selvagem amos perseguir na floresta do crime, mas, pela atitude do meu mestre, percebi que era um caso grave e o sorriso sardnico, que de vez em quando surgia

  • em seu rosto de asceta, augurava mal para o seu inimigo. Pensei que nos dirigssemos para a Baker Street, mas Holmes parou na esquina da Cavendish Square. Vi-o, ao descer, olhar cautelosamente de um lado para o outro; a cada esquina, dali por diante, tomou o mesmo cuidado, para ter certeza de que no estvamos sendo seguidos. No h dvida de que nosso itinerrio era singular. Holmes tinha um extraordinrio conhecimento dos atalhos de Londres, e eu o via agora enveredar com segurana por uma rede de terrenos e estrebarias de cuja existncia eu jamais suspeitara. Finalmente entramos numa rua ladeada por casas velhas e sombrias, que nos levou Manchester Street e depois Blandford Street. Ali, enfiou-se rapidamente por uma viela estreita, passou por um porto de madeira e entrou num quintal deserto, abrindo a porta traseira de uma casa. Entramos, e ele fechou a porta.

    Estava escuro como breu, e era evidente que nos achvamos numa casa vazia. Nossos passos faziam ranger o soalho nu, e minha mo tocou uma parede onde o papel caa em tiras. Os dedos frios de Holmes se fecharam sobre o meu pulso, e ele me conduziu por um longo corredor, at que vi vagamente a luz dbia que se filtrava pela bandeira da porta. Holmes virou subitamente para a direita, nos encontramos num aposento vazio, grande e quadrado, com sombras profundas nos cantos, mas vagamente iluminado no centro pela luz da rua. No havia lmpada perto, e a vidraa estava coberta de p, de modo que mal nos vamos. Meu amigo me ps a mo no ombro e os lbios perto do meu ouvido. Sabe onde estamos? murmurou. No h dvida de que ali a Baker Street respondi, olhando atravs da janela. Exatamente. Estamos na Camden House, que fica defronte da minha casa. Mas por que estamos aqui?

    Porque temos uma tima vista do pitoresco edifcio. Peco-lhe que se aproxime da janela, caro Watson, tomando todas as precaues para no ser visto. Olhe depois para nossos antigos aposentos ponto de partida de tantas aventuras. Veremos se trs anos de ausncia anularam ou no o meu dom de surpreend-lo. Avancei cautelosamente e olhei para a conhecida janela. Quando meus olhos caram sobre ela, mal pude conter uma exclamao de espanto. A cortina estava descida e uma luz forte brilhava no aposento. A silhueta de um homem sentado numa cadeira se desenhava fortemente no quadrado luminoso da janela. No se podia deixar de reconhecer o equilbrio da cabea, a fora dos ombros quadrados, a agudez dos traos. O rosto estava meio virado, e o efeito era o de uma daquelas silhuetas negras que nossos avs gostavam de

  • emoldurar. Era uma perfeita reproduo de Holmes. To admirado fiquei, que estendi a mo para ter certeza de que meu amigo estava ao meu lado. Ele ria silenciosamente. Ento? perguntou. Deus do cu, maravilhoso! exclamei. Espero que nem a idade, nem o hbito faam com que desaparea o meu dom de infinita variedade disse ele. Reconheci na sua voz o orgulho e o prazer que sente o artista com a prpria criao. Parece-se bastante comigo, no verdade? Poderia jurar que voc. O mrito da execuo pertence a M. Oscar Meunier, de Grenoble, que levou alguns dias fazendo o molde. um busto de cera. O resto arranjei eu mesmo durante minha visita Baker Street, hoje tarde. Mas por qu? Caro Watson, tenho as mais fortes razes para desejar que certas pessoas pensem que estou l, quando na realidade me encontro noutro lugar. Acha que a sua residncia est sendo vigiada? Tenho certeza de que est sendo vigiada. Por quem? Pelos meus antigos inimigos da encantadora sociedade cujo chefe repousa nas quedas de Rcichenbach. Lembre-se de que eles, e somente eles, sabiam que eu estava vivo. Devem ter calculado que, cedo ou tarde, eu voltaria para casa. Observaram-na constantemente, e hoje de manh viram-me chegar. Como sabe disso? Porque reconheci a sentinela, quando olhei de relance pela janela. Era um sujeito mais ou menos inofensivo, chamado Parker, extraordin ;rio tocador de gaita, magarefe de profisso. Pouca importncia lhe dou, mas dou muita pessoa que est por trs dele, o amigo ntimo de Moriarty, aquele que atirou as pedras do alto do rochedo, o mais perigoso e mais astuto criminoso de Londres. ele o homem que anda atrs de mim hoje noite, Watson, o homem que nem de .longe desconfia que estamos atrs dele. Os planos de meu amigo iam sendo revelados pouco a pouco. Daquele nosso cmodo retiro, os observadores estavam sendo observados e os perseguidores, perseguidos. A sombra angulosa l adiante valia como isca, e

  • ns ramos os caadores. Ficamos em silncio, juntos, no escuro, observando os vultos apressados que passavam e repassavam diante de ns. Holmes estava imvel e silencioso, mas eu sentia que estava alerta, que os seus olhos se fixavam atentamente nos homens que passavam. Era uma noite feia e tempestuosa e o vento assobiava na rua. Muitas pessoas iam de um lado para outro, quase todas com capotes e echarpes. Uma ou duas vezes tive a impresso de ter visto a mesma pessoa, e notei particularmente dois homens que pareciam se abrigar do vento no vo de uma porta, a pequena distncia. Procurei chamar para eles a ateno do meu companheiro, mas Holmes soltou uma exclamao de impacincia e continuou olhando para a rua. Mais de uma vez moveu nervosamente os ps, batendo rapidamente com os dedos na parede. Evidentemente comeava a ficar inquieto, e seus planos pareciam no sair a contento. Finalmente, quando era quase

    meia-noite e a rua ia gradualmente ficando deserta, ele comeou a passear pelo quarto, parecendo muito agitado. Eu ia fazer uma observao, quando ergui os olhos para a janela iluminada e de novo senti a mesma surpresa de h pouco. Agarrei o brao de Holmes e apontei para cima. A sombra se moveu! exclamei. Na realidade no era o perfil e sim as costas que vamos agora. Trs anos no tinham amenizado o gnio de Holmes, nem lhe tinham dado mais pacincia para com pessoas de inteligncia menos viva que a dele. Claro que se moveu replicou. Julgava-me por acaso um desastrado, Watson, a ponto de colocar ali um boneco e esperar iludir um dos homens mais perspicazes da Europa? H duas horas que estamos neste quarto, e a sra. Hudson mudou a posio do manequim oito vezes, uma a cada quinze minutos. Ela mexe nele pela frente, de modo que sua sombra nunca vista. Ah! ... Aqui, Holmes teve uma exclamao excitada. luz dbia, vi sua cabea se inclinar para a frente e ficar em atitude de rgida ateno. Aqueles dois homens ainda poderiam estar no vo da porta, mas agora eu no os via. Estava tudo escuro e silencioso, a no ser no quadrado iluminado nossa frente, com a silhueta negra ao centro. Ouvi de novo o som sibilante e fino que em Holmes significava excitao reprimida. Um momento depois, ele me puxou para o canto mais escuro do quarto, e senti sobre os meus lbios a mo que pedia silncio. Os dedos que me seguravam tremiam. Nunca vira meu amigo to emocionado, embora a rua continuasse deserta e silenciosa nossa frente. Mas logo percebi o que os seus sentidos mais aguados j haviam pressentido. A meus ouvidos chegou um som baixo, furtivo, vindo no da direo da Baker Street, mas da parte de trs da prpria casa onde nos abrigvamos. Uma porta abriu-se e depois fechou-se. Minutos depois, passos no corredor passos que queriam ser silenciosos, mas que ressoavam asperamente na casa vazia. Holmes se agachou contra a parede e eu fiz o mesmo, com a mo na coronha do revlver. Procurando perscrutar a

  • escurido, distingui o contorno de um homem, um vulto um pouco mais escuro do que o negrume da porta. Ele ficou parado por um instante; depois, adiantou-se, agachado, ameaador. Estava a trs passos de ns, e eu me preparava para receber o ataque quando percebi que ele no fazia a menor ideia da nossa presena. Passou rente a ns, foi at a janela de mansinho e ergueu ligeiramente a vidraa. Ao se ajoelhar para ficar ao nvel dessa pequena abertura, a luz da rua, livre agora do vidro embaciado, iluminou-lhe o rosto. O homem parecia fora de si de excitao. Seus olhos brilhavam como estrelas e suas feies estavam convulsas. Era um homem idoso, de nariz fino e proeminente, testa alta, com grandes entradas, e enorme bigode grisalho. Usava um chapu alto, colocado atrs; a camisa, de peito duro, brilhava por entre o sobretudo desabotoado. O rosto era esqulido e moreno, com rugas

    profundas. Trazia na mo um objeto que parecia uma bengala, mas, quando o colocou no cho, ouviu-se um rudo metlico. Do bolso do sobretudo, tirou um objeto volumoso e empenhou-se numa tarefa que terminou com um dique forte, seco, como se uma mola ou um trinco tivessem sido acionados. Ainda ajoelhado, inclinou-se para a frente e atirou todo o seu peso como que sobre uma alavanca, ouvindo-se um rudo longo, triturante e rotativo, que acabou de novo num forte estalido. Endireitou-se ento, e vi que o que tinha na mo era uma espcie de espingarda, com uma coronha curiosamente deformada. Abriu a culatra, colocou nela qualquer coisa e engatilhou a arma. Depois, agachando-se, descansou a ponta do cano no peitoril da janela aberta. Vi o longo bigode cair sobre a coronha e os olhos brilharem, quando ele espreitou pela mira. Ouvi um suspiro de satisfao quando encostou o cano no ombro e viu aquele estranho alvo, a silhueta negra no quadrado amarelo, bem ntida na linha de tiro. Por um momento ficou rgido, imvel. Depois, seu aedo comprimiu o gatilho. Ouviu-se um silvo alto, estranho, e um rudo de vidro partido. Nesse

    momento, Holmes pulou como um tigre sobre o homem, derrubando-o de bruos, no cho. O miservel ergueu-se imediatamente e, com fora convulsa, agarrou Holmes pelo pescoo, mas eu bati em sua cabea com a coronha do meu revlver e ele caiu de novo no cho. Atirei-me sobre ele e, enquanto o segurava, meu amigo fez soar um apito estridente. Ouvimos um rudo de ps sobre a calada, e dois policiais fardados, com um detetive paisana, passaram pela porta de entrada e irromperam no quarto. voc, Lestrade? perguntou Holmes. Sim, sr. Holmes, eu prprio me encarreguei do caso. um prazer v-lo de novo em Londres. Creio que voc precisa de um auxiliozinho extra-oficial. Trs assassinatos sem soluo num ano, Lestrade... muita coisa! Mas voc solucionou o

  • mistrio de Molesey com um pouco mais de habilidade do que de costume... isto , voc o solucionou com bastante habilidade. Tnhamos nos erguido todos, o prisioneiro respirando ofegante, com um avantajado policial de cada lado. Alguns curiosos tinham se reunido na rua. Holmes foi at a janela e fechou-a. Lestrade apareceu com duas velas, e os policiais pegaram as suas lanternas. Finalmente pude ver bem o prisioneiro. O rosto que nos encarava era extraordinariamente viril e sinistro. Testa de filsofo sobre uma boca sensual, o homem devia ter tido capacidade para o bem e para o mal. Mas ningum poderia olhar para seus cruis olhos azuis, de plpebras cnicas e cadas, ou para o nariz agressivo, ou para a fronte ameaadora, sem neles notar os mais ntidos sinais de um carter perigoso. No olhou para nenhum de ns. Tinha os olhos fixos em Holmes, com uma expresso de dio e de espanto ao mesmo tempo. Demnio! murmurou vrias vezes. Demnio de uma habilidade infernal! Ah, coronel! exclamou Holmes, arrumando o colarinho. "Termina a jornada com o encontro dos namorados", conforme se dizia na pea antiga. No creio que tenha tido o prazer de v-lo desde que me obsequiou com sua ateno nas quedas de Reichenbach, quando eu me ocultava na salincia da rocha. O coronel continuava a olh-lo, como que em transe. Demnio de uma habilidade infernal! Era s o que sabia dizer. Ainda no o apresentei disse Holmes. Este cavalheiro, senhores, o coronel Sebastian Moran, do exrcito de Sua Majestade e o melhor caador do imprio oriental. Creio que no me engano, coronel, ao afirmar que o nmero de tigres que abateu ainda no foi igualado, no? O feroz velho nada dizia, continuando a fulminar o meu companheiro com o olhar. Com os olhos selvagens e o bigode eriado, ele prprio parecia um tigre. Admiro-me que to simples estratagema tenha iludido um shikari to sabido observou Holmes. Devia ser seu conhecido. Ser que nunca ps um boneco sob uma rvore, ficando em cima dela com a espingarda, esperando que a isca atrasse o tigre? Esta casa vazia a minha rvore e o coronel, o meu tigre. Naturalmente o senhor tinha outras armas de reserva, caso viessem vrios tigres, ou na hiptese pouco provvel de errar a pontaria. Estes aqui continuou Holmes, com um gesto circular so as minhas outras armas. O paralelo perfeito.

  • O coronel Moran pulou com um rosnar de clera, mas os dois policiais o puxaram de novo para trs. A fria em seu rosto era terrvel. Confesso que tive uma pequena surpresa continuou Holmes. No pensei que o senhor se servisse desta casa vazia e desta cmoda janela da frente. Pensei que agisse da rua, onde Lestrade e seus companheiros o esperavam. A no ser por isso, tudo ocorreu conforme eu supusera.

    O coronel Moran voltou-se para o detetive oficial. O senhor pode ou no ter motivos para me prender disse ele. Mas, pelo menos, no h razo para que eu me submeta s ironias desta criatura. Se que estou nas mos da lei, que tudo se faa legalmente. Pois bem, razovel concordou Lestrade. Tem alguma coisa a acrescentar, sr. Holmes, antes de nos retirarmos? Holmes apanhara do cho a poderosa espingarda de ar comprimido e examinava-lhe o mecanismo. Arma nica e admirvel disse ele. Silenciosa e muito poderosa. Conheci Von Herder, o mecnico alemo, cego, que a construiu por ordem do falecido professor Moriarty. H anos que sei da sua existncia, embora jamais tenha tido oportunidade de manej-la. Chamo sua ateno para ela, Lestrade, assim como para suas balas. Pode ficar certo de que cuidaremos disso, sr. Holmes disse Lestrade, dirigindo-se com os outros para a porta. Mais alguma coisa? Queria lhe perguntar apenas qual vai ser a acusao. A acusao? Mas, naturalmente, tentativa de morte contra o sr. Sherlock Holmes respondeu o detetive. Nada disso, Lestrade. No quero figurar no caso. A voc, e somente a voc, pertence a glria da extraordinria priso que efetuou. Sim, Lestrade, dou-lhe os parabns! Com a sua habitual mistura de audcia e sagacidade, apanhou-o. Apanhei-o! Apanhei quem, sr. Holmes? O homem que toda a polcia em vo procurou: o coronel Sebastian Moran, que matou o honorvel Ronald Adair, servindo-se de uma espingarda de presso, usando bala explosiva, que varou a janela da frente, no segundo andar do nmero 427 da Park Lane, no dia 30 do ms passado. essa a acusao, Lestrade. E agora, Watson, se estiver disposto a suportar a corrente de ar devido janela quebrada do meu escritrio, creio que meia hora de

  • prosa, fumando um charuto, vai diverti-lo. Nossos antigos aposentos no tinham sido modificados, graas superviso de Mycroft e aos cuidados da sra. Hudson. Quando entrei, verdade que vi uma ordem fora do comum, mas as velhas marcas estavam nos seus antigos lugares. A mancha de cido, na mesa. Numa estante, uma fileira de formidveis cadernos de apontamentos e livros de referncias que muitos cidados teriam tido prazer em queimar. Os diagramas, a caixa do violino, a prateleira dos cachimbos, at a mesma bolsa persa de tabaco feriram o meu olhar, quando examinei a sala. Havia dois ocupantes: a sra. Hudson, toda sorridente, e o estranho boneco que tivera parte to importante nos acontecimentos da noite. Era um modelo em cera colorida, rplica perfeita do meu amigo. Estava numa mesinha, vestido com um velho roupo de Holmes, arranjado com tal arte que da rua a iluso fora completa. Espero que tenha tomado todas as precaues, sra. Hudson disse Holmes. Fui de joelhos, exatamente como o senhor me recomendou. timo. Deu muito bem conta do recado. Viu onde entrou a bala? Sim, senhor. Receio que tenha estragado o seu belo busto, pois perfurou a cabea, indo bater na parede. Apanhei-a no tapete. Aqui est! Holmes mostrou-me a bala. Bala de ponta mole, como v, Watson. Idia genial... pois quem iria pensar que sara de uma espingarda de ar comprimido? Muito bem, sra. Hudson, fico-lhe muito grato. E agora, Watson, quero v-lo na sua antiga poltrona mais uma vez, pois h vrios pontos que desejaria discutir com voc. Ele despira o casaco velho, voltando a ser o Holmes de outros tempos, metido no roupo cinzento que tirara do boneco. O velho shikari continua de nervos slidos e os olhos no perderam a agudeza disse ele, rindo, enquanto examinava a testa da efgie. Continuou: Bem no meio da nuca. Ele era o melhor atirador da ndia, e creio que h poucos que se igualem a ele em Londres. Conhecia-o de nome? No, no o conhecia.

  • Bom, bom, assim a fama! Mas, se bem me lembro, voc tambm desconhecia o professor Moriarty, uma das maiores cabeas do sculo. Faa o favor de me dar meu ndice de biografias, a nessa prateleira. Virou as pginas preguiosamente, recostado na poltrona e tirando baforadas do charuto. Minha coleo, no M, extraordinria disse ele. Moriarty sozinho bastaria para tornar essa letra ilustre, e aqui temos Morgan, o envenenador; e Merridew, de triste memria; e Mathews, que me quebrou o canino esquerdo na sala de espera de Charing Cross; e, finalmente, nosso amigo de hoje

    noite. Entregou-me o livro, e eu li: "Moran, Sebastian, coronel. Desempregado. Pertenceu ao l. Bengalore Pioneers. Nascido em Londres, em 1840. Filho de Sir Augustus Moran, C. B., antigo ministro britnico na Prsia. Educado em Eton e Oxford. Serviu na Campanha de Jowaki, na Campanha do Afeganisto, em Charasiab (despachos), em Sherpur e em Cabul. Autor de Jogo pesado no Himalaia ocidental, 1881; Trs meses na selva, 1884. Endereo: Conduit Street. Clubes: Anglo-Indiano, Tankerville e Bagatelle". Na margem estava escrito, com a letra clara de Holmes: "Em segundo lugar, entre os homens mais perigosos de Londres". Extraordinrio observei, devolvendo-lhe o livro. Carreira de um honrado militar. verdade respondeu Holmes. At certo ponto, portou-se bem. Sempre teve nervos de ao, e, na ndia, ainda contam como se arrastou por um escoadouro, atrs de um tigre perigoso. H rvores, Watson, que crescem normalmente at certo ponto e, depois, apresentam uma anomalia. O mesmo acontece com as criaturas. Tenho uma teoria pela qual o indivduo representa, no seu desenvolvimento, toda a procisso de antepassados, e a inclinao para o bem ou para o mal significa qualquer forte influncia que vem da sua linhagem. Dessa forma, essa pessoa se torna o resumo da histria da famlia. de fato interessante. Bom, no garanto nada. Seja qual for a causa, o coronel Moran comeou a agir mal. Embora no se metesse em nenhum escndalo, tornou-se indesejvel na ndia. Aposentou-se e veio para Londres, onde tambm adquiriu mau nome. Foi ento procurado pelo professor Moriarty, tornando-se seu ajudante-de-ordens. Moriarty dava-lhe bastante dinheiro e servia-se dele apenas num ou noutro trabalho de responsabilidade, que no confiaria a um criminoso vulgar. Talvez voc se lembre da morte da sra. Stewart, de Lauder, em 1887. No? Pois bem, tenho certeza de que Moran estava metido nisso, mas nada ficou

  • provado. Ele agiu com tanta esperteza que, mesmo quando o bando foi preso, nada se provou contra ele. Lembra-se daquela ocasio em que fui visit-lo, Watson, e em que fechei as venezianas, com medo de espingardas de ar comprimido? Com certeza achou que eu tinha excesso de imaginao. Pois eu sabia exatamente o que estava fazendo, j que tinha conhecimento da existncia dessa arma extraordinria e tambm de que um dos maiores atiradores do mundo estaria atrs dela. Quando estivemos na Sua, ele nos seguiu, com Moriarty, e no h dvida de que foi Moran quem me fez passar aquele mau quarto de hora nas quedas de Reichenbach. "Deve calcular como li com ateno os jornais, durante a minha estada na Frana, na esperana de uma oportunidade de apanh-lo. Enquanto ele estivesse livre, em Londres, minha vida no valeria grande coisa. Noite e dia a sua sombra estaria atrs de mim, e, cedo ou tarde, teria a sua oportunidade. Que poderia eu fazer? No podia mat-lo sem provocao, pois nesse caso eu que me veria no tribunal. No adiantava apelar para a polcia. Ela s age quando h forte suspeita. Sendo assim, eu nada poderia fazer. Mas continuava a acompanhar as notcias de crimes, sabendo que cedo ou tarde o apanharia. Veio ento a morte de Ronald Adair. Finalmente tinha a minha oportunidade! Sabendo o que sabia, poderia duvidar de que o culpado fosse o coronel Moran? Ele jogara com o rapaz; seguira-o, ao sair do clube; alvejara-o pela janela aberta. No havia dvida. As balas bastaro para lev-lo forca. Vim para Londres imediatamente. Fui visto, ao entrar em casa, pela sentinela, que daria parte da minha presena ao coronel, disso eu tinha certeza. Ele no deixaria de ligar a minha sbita volta ao seu crime e ficaria grandemente alarmado. Fiquei certo de que ele procuraria me eliminar imediatamente, e que traria sua perigosa arma. Preparei-lhe um bom alvo, na janela, e, avisando a polcia da provvel necessidade de interferncia (a propsito, Watson, voc notou a presena dos dois detetives com grande perspiccia), vim para o que considerei um bom posto de observao, nem de longe suspeitando de que tambm ele escolheria esse local. Meu caro Watson, precisa de mais explicaes?" Preciso respondi. Voc no explicou o motivo que Moran tinha para assassinar Ronald Adair. Ah, caro Watson, chegamos agora ao reino das conjecturas, onde a mente mais lgica pode falhar. Cada qual poder formar a sua hiptese, de acordo com as provas, e a sua poder ser to correta como a minha. Voc tem uma opinio formada, ento? Creio que no difcil explicar os fatos. Ficou provado, no inqurito, que Adair e Moran ganharam grande quantia no jogo. Agora, com certeza Moran trapaceou, como sei que vrias vezes tem feito. Creio que, no dia do crime, Adair descobriu que o outro andava roubando no jogo. Provavelmente falou com ele em particular e ameaou denunci-lo, a no ser que pedisse demisso do clube e prometesse no jogar mais. Seria improvvel que uma pessoa to jovem como Adair provocasse imediatamente um escndalo expondo um homem muito conhecido e muito mais velho do que ele. Certamente agiu como

  • imaginei. A expulso de um clube significaria a runa para Moran, que vivia de jogo desonesto. Portanto, matou Adair, que na ocasio tentava calcular quanto deveria devolver, j que no queria lucrar com a desonestidade do parceiro. Ele fechou a porta, para que a me e a irm no o surpreendessem e quisessem saber o que significavam aqueles nomes e algarismos. Acha vivel a teoria? No duvido de que seja essa a verdade. No julgamento ser esclarecido. Entretanto, o coronel Moran no mais nos importunar, a famosa espingarda de Von Herder ir embelezar o Museu da Scotland Yard e Sherlock Holmes est de novo livre, para dedicar seu tempo ao exame dos interessantes problemazinhos que a vida complexa de Londres to freqentemente apresenta.

  • Sherlock Holmes

    em:

    O construtor de Norwood

    Por Sir Arthur Conan Doyle

    PDF por ZOHAR ([email protected])

    CPTurbo.org

  • Sob o ponto de vista do perito criminal, Londres tornou-se singularmente sem interesse, desde a morte do professor Moriarty observou Sherlock Holmes. Duvido que encontre muitos cidados respeitveis que concordem com voc repliquei. Bom, bom, no devo ser egosta disse ele com um sorriso, levantando-se da mesa aps o caf da manha. Indubitavelmente, a comunidade lucrou e ningum perdeu, a no ser o pobre perito em assuntos criminais, que se v sem ocupao. Com aquele homem em campo, o jornal da manh oferecia inmeras possibilidades. O mais leve indcio, o menor rasto, bastavam geralmente para me dizer que o crebro maligno l estava... assim como o leve estremecer da teia nos faz lembrar a aranha que espreita no centro. Pequenos roubos, assaltos monstruosos, ultrajes propositados, tudo isso, para o homem que tinha a chave, podia ser reunido num todo. Para o estudioso do alto mundo do crime, nenhuma capital da Europa oferecia as vantagens de Londres, naquele tempo. Mas agora... Holmes encolheu os ombros maliciosamente, criticando um estado de coisas que ele prprio ajudara a criar. J havia algum tempo que Holmes voltara, e, a seu pedido, eu vendera o meu consultrio mdico e voltara a residir com ele na Baker Street. Um jovem mdico chamado Verner fora o comprador, dando-me, sem regatear, o preo mais alto que eu ousara pedir fato que s mais tarde foi explicado, quando eu soube que Verner era parente afastado de Holmes e que fora o meu amigo quem lhe emprestara o dinheiro. Aqueles meses de parceria no tinham sido to montonos como Holmes dizia, pois, ao rever as minhas notas, encontro nessa poca o caso dos documentos do ex-presidente Murillo e tambm o caso dramtico do navio holands Friesland, onde ambos quase perdemos a vida. A natureza fria e orgulhosa de Holmes era, no entanto, avessa a qualquer coisa que se assemelhasse a publicidade, e ele me fez jurar que no diria uma palavra

  • sobre a sua pessoa, seus mtodos e sucessos proibio que, como j expliquei, somente agora foi levantada. Holmes estava reclinado na sua poltrona, aps a irnica queixa, e abria o jornal de maneira despreocupada, quando nos sobressaltou um tremendo toque de campainha, seguido de sons ocos, como se algum batesse com o punho na porta.

    Dali a pouco esta foi aberta e ouvimos um rudo de passos na escada. Logo depois irrompeu na sala um rapaz plido, com expresso de desespero no rosto e cabelos em desalinho. Olhou-nos de um para o outro e, ante nosso ar interrogador, achou que devia desculpar-se de sua entrada pouco cerimoniosa. Perdoe-me, sr. Holmes disse ele. o senhor no deve me censurar. Estou quase louco. Sr. Holmes, sou o infeliz John Hector McFarlane. Falou como se isso bastasse

    para explicar a sua visita e a sua atitude, mas pude ver pelo rosto do meu amigo que o nome significava to pouco para ele como para mim. Aceite um cigarro, Sr. McFarlane disse Holmes, oferecendo-lhe a cigarreira. Tenho certeza de que, com esses sintomas, meu amigo dr. Watson vai lhe receitar um sedativo. A temperatura tem estado muito quente, nos ltimos dias. Agora, se estiver mais calmo, gostaria que se sentasse naquela cadeira e nos contasse lentamente quem o senhor e o que deseja. Disse o seu nome como se eu devesse conhec-lo, mas garanto-lhe que, alm de notar que solteiro, advogado, franco-maom e asmtico, nada sei a seu respeito. Habituado como estava aos mtodos de meu amigo, no me foi difcil acompanhar seu raciocnio e observar, no visitante, o descuido no traje, o monte de documentos legais, o amuleto e a respirao ofegante que tinham provocado tais dedues. Nosso cliente, no entanto, pareceu atnito. Sim, sou tudo isso, Sr. Holmes, e principalmente sou o homem mais infeliz de Londres. Pelo amor de Deus, no me abandone, Sr. Holmes! Se vierem me prender, antes de eu acabar a minha histria, faa com que me dem tempo, para que possa lhe contar toda a verdade. Eu irei feliz para a priso, se souber que o senhor fica trabalhando para mim, aqui fora. Para a priso? disse Holmes. Isso realmente encant... muito

  • interessante. De que espera ser acusado? Do assassinato do Sr. Jonas Oldacre, de Lower Norwood. O rosto expressivo de meu amigo mostrou um interesse no destitudo de satisfao. Meu Deus! Justamente hoje, no caf, eu dizia ao meu amigo Dr. Watson que os casos sensacionais tinham desaparecido dos jornais. Nosso visitante estendeu a mo trmula e pegou o Daily Telegraph que ainda estava sobre os joelhos de Holmes. Se j tivesse lido o jornal, senhor, saberia por que motivo vim procur-lo. Parece-me que meu nome e minha desgraa andam na boca de todo mundo. O rapaz abriu o jornal na pgina central e continuou: Aqui est, e, se me d licena, vou ler alto. Oua isto aqui, sr. Holmes. Eis os cabealhos: "Caso misterioso em Lower Norwood. Desaparecimento de um conhecido construtor. Suspeita-se de assassinato e incndio propositado". Tenho certeza de que a pista os conduzir minha pessoa, Sr. Holmes. Fui seguido desde a estao, e tenho certeza de que esperam apenas pelo mandado de priso para me levar. Isso vai matar minha me, vai matar minha me! O rapaz comprimia as mos, desesperado, balanando-se na cadeira para a frente e para trs. Olhei com interesse para aquele homem, acusado de um crime de morte. Tinha cabelos claros e era bonito mas dava m impresso, com amedrontados olhos azuis, rosto barbeado e boca fraca e sensvel. Parecia ter mais ou menos vinte e sete anos; suas roupas e maneiras eram as de um cavalheiro. Do bolso do sobretudo leve, tirou um mao de documentos que indicavam sua profisso. Temos de aproveitar o tempo de que dispomos disse Holmes. Watson, quer ter a bondade de pegar o jornal e ler a notcia que nos interessa? Sob os sensacionais cabealhos que nosso cliente lera, vinha a seguinte narrativa: "A noite passada, ou hoje de madrugada, ocorreu em Lower Norwood um incidente que, ao que parece, indica um crime muito grave. O Sr. Jonas Oldacre solteiro, tem cinqenta e dois anos de idade e mora em Deep Dene House, do lado Sydenham da rua daquele nome. Tem a reputao de ser homem excntrico, misterioso e reservado. Parece estar, h alguns anos, afastado da profisso que, ao que tudo indica, lhe trouxe grande fortuna. Mas ainda existe um depsito de madeira no quintal, e ontem, mais ou menos meia-noite, foi dado o alarme de que ali comeara um incndio. Os bombeiros apareceram, mas a madeira seca ardia furiosamente e foi impossvel deter o fogo, enquanto aquela determinada pilha no ardeu toda. At aqui, parece um incidente sem importncia, mas h indcios de que se trata de crime. Causou surpresa a ausncia do dono da casa no local do incndio, e verificou-se, em seguida, que desaparecera de casa. O exame do quarto indicou que ele no dormira ali. O cofre estava aberto. Havia grande nmero de documentos

  • espalhados pelo cho. Finalmente, havia sinais de luta e manchas de sangue; numa bengala de carvalho ali encontrada, tambm se viam manchas de sangue. Parece que o Sr. Oldacre recebera um visitante no quarto, noite, e a bengala foi identificada como pertencendo a um jovem advogado de Londres, John Hector McFarlane, scio de Graham & McFarlane, com escritrios nos Gresham Buildings, E. C., 426. A polcia acredita ter provas que fornecem um convincente motivo para o crime, e no se pode duvidar de que o desenvolvimento do caso seja algo de sensacional. LTIMA HORA: Acabamos de saber que o sr. John Hector McFarlane foi detido sob a acusao de ter assassinado o sr. Jonas Odacre. pelo menos certo que j existe um mandado de priso. Foram descobertos novos e sinistros indcios, na investigao do crime de Norwood. Alm dos sinais de luta no quarto do infeliz construtor, sabe-se agora que as portas-janelas do seu quarto (que fica no andar trreo) foram encontradas abertas, e h, no batente, marcas que indicam que algum objeto pesado foi por ali arrastado. Finalmente, encontraram-se restos humanos queimados, no meio das cinzas do incndio. A polcia julga que foi cometido um crime sensacional, que a vtima foi brutalmente atacada no seu prprio quarto, os documentos do cofre, remexidos e o corpo, arrastado at a pilha de madeira, qual atearam fogo para encobrir o crime. O caso foi entregue ao experiente inspetor Lestrade, da Scotland Yard, que est seguindo a pista com a energia e a sagacidade habituais." Sherlock Holmes ouviu a estranha narrativa de olhos fechados e dedos entrelaados. O caso tem, indubitavelmente, pontos interessantes observou ele com voz lnguida. Posso perguntar-lhe em primeiro lugar, Sr, McFarlane, como que se encontra ainda em liberdade, uma vez que h indcios que justificam a sua priso? Moro em Torrington Lodge, Blackheath, com meus pais, sr. Holmes. Mas a noite passada, tendo de tratar de negcios at tarde com o Sr. Oldacre, fiquei num hotel, em Norwood, e vim para o escritrio diretamente de l. No sabia de nada at entrar no escritrio, onde li a extraordinria notcia de que o senhor acaba de ter conhecimento. Percebi imediatamente como era horrvel a minha situao e vim correndo pedir-lhe que se encarregue do caso. Tenho certeza de que teria sido preso no escritrio, ou em minha casa. Um homem me seguiu desde a estao, no duvido... Deus do cu, que isso? Ouviu-se um toque de campainha, seguido pelo ressoar de passos pesados na escada. Momentos depois nosso velho amigo Lestrade apareceu porta. Por cima dos seus ombros, distingui o vulto de um ou dois policiais fardados. Sr. John Hector McFarlane disse Lestrade. Nosso infeliz cliente ergueu-se, lvido. Considere-se preso, sob a acusao de ter assassinado o Sr. Jonas Oldacre, de Lower Norwood.

  • McFarlane voltou-se para ns com um gesto de desespero e caiu de novo na poltrona, como que aniquilado. Um momento, Lestrade disse Holmes. Meia hora a mais ou a menos no lhe far diferena. Este cavalheiro ia contar-me a sua verso do extraordinrio caso, e talvez isso nos ajude a decifr-lo. Creio que no haver dificuldade em decifr-lo replicou Lestrade, com ar sombrio. Mesmo assim, se me d licena, gostaria de ouvir o que ele tem a dizer. Est bem. difcil para mim recusar-lhe qualquer coisa, Sr. Holmes, pois o senhor ajudou a polcia uma ou duas vezes, no passado, e devemos-lhe alguns favores, na Scotland Yard disse Lestrade. No entanto, tenho de ficar ao lado do preso, e sou obrigado a preveni-lo de que qualquer coisa que ele disser poder ser usada contra ele no processo. No me importa disse o rapaz. Peo apenas que me ouam e acreditem que estou dizendo a pura verdade. Lestrade olhou para o relgio. Dou-lhe meia hora disse ele. Em primeiro lugar, tenho de explicar que no conhecia o Sr. Oldacre declarou o rapaz. Conhecia-o de nome, pois meus pais tinham tido relaes com ele, mas depois afastaram-se. Fiquei, portanto, muito admirado quando ontem, s trs horas da tarde, ele apareceu no meu escritrio, na City. Mais admirado ainda fiquei quando me contou o fim de sua visita. Trazia na mo vrias folhas de papel cobertas de rabiscos. Colocou-as sobre a mesa, dizendo: " Aqui est meu testamento. Quero que o ponha em termos legais, Sr. McFarlane. Esperarei aqui sentado, enquanto o senhor estiver trabalhando. "Comecei a copi-lo", continuou McFarlane. "Os senhores podem imaginar meu espanto quando vi que, com pequenas reservas, ele me legava todos os seus bens. Era um homem estranho, baixo, de ar astuto, com pestanas quase brancas. Quando ergui os olhos, vi que me fitava com uma expresso divertida nos olhos cinzentos. Eu mal podia acreditar no que lia no rascunho do testamento, mas ele me explicou que era solteiro, no tinha parentes vivos, conhecera meus pais na mocidade e ouvira dizer que eu era um rapaz honesto e que, acima de tudo, tinha certeza de que o dinheiro no poderia estar em melhores mos. Balbuciei os meus agradecimentos. O testamento foi devidamente terminado e assinado, tendo o meu auxiliar assinado tambm, como testemunha. Aqui est ele, neste papel azul, e aqui est o rascunho. O Sr. Jonas Oldacre me informou depois que havia muitos documentos contratos de aluguel, certificados de propriedade, hipotecas e outras coisas que eu precisaria ver. Acrescentou que no ficaria tranqilo enquanto no

  • estivesse tudo resolvido, e pediu-me que fosse at sua casa, em Norwood, naquela noite, e que levasse o testamento para que dssemos combinar tudo. " Lembre-se, rapaz, nem uma palavra a seus pais at estar tudo terminado. Quero que seja uma surpresa para eles. Insistiu nesse ponto e me fez prometer que nada contaria. "O senhor deve calcular, Sr. Holmes, que eu no estava em condies de lhe recusar fosse o que fosse. Era o meu benfeitor, e meu desejo era satisfazer-lhe as vontades. Mandei, portanto, um telegrama para casa, dizendo que tinha de tratar de um negcio importante e que era impossvel saber at que horas ficaria ocupado. O Sr. Oldacre disse que gostaria que eu ceasse com ele s nove, pois talvez no conseguisse chegar a casa antes disso. Tive certa dificuldade em descobrir a casa, e eram quase nove e meia quando l cheguei. Encontrei-o..." Um momento! exclamou Holmes. Quem abriu a porta? Uma mulher de meia-idade, suponho que sua governanta. E foi ela, suponho, que levou o seu nome ao dono da casa... Exatamente respondeu McFarlane. Pode continuar. McFarlane enxugou a testa e continuou a narrativa: A mulher me introduziu numa sala onde estava preparada uma ceia ligeira. Mais tarde, Oldacre me levou para o quarto de dormir, onde havia um pesado cofre. Abriu-o e dali tirou um mao de documentos que examinamos juntos. Acabamos entre as onze e a meia-noite. Ele disse que no devamos incomodar a governanta. Fez-me passar pela porta-janela, que ficara aberta o tempo todo. A cortina estava baixada? No tenho certeza, mas creio que estava at o meio. Sim, lembro-me agora de que ele a ergueu para abrir a porta. No consegui encontrar minha bengala, mas ele disse: "No tem importncia, rapaz; vamos nos ver bastante, agora, e guardarei sua bengala at voc vir busc-la". Deixei-o ali, com o cofre aberto e os papis em pacotes sobre a mesa. Era to tarde que no pude voltar para Blackheath, de modo que passei a noite no Anerley Arms e no soube de mais nada, at ler a horrvel notcia no jornal, hoje de manh. Deseja saber mais alguma coisa, sr. Holmes? perguntou Lestrade, que erguera as sobrancelhas uma ou duas vezes durante a extraordinria narrativa. No, at ter ido a Blackheath.

  • Quer dizer a Norwood corrigiu Lestrade. Oh, sim, era com certeza o que eu queria dizer respondeu Holmes, com um sorriso enigmtico. Lestrade aprendera por experincia prpria que aquele crebro brilhante podia ver claramente em lugares onde ele nada enxergava. Notei que olhava com curiosidade para o meu amigo. Creio que gostaria de trocar uma palavrinha com o senhor, Sr. Holmes disse ele. Agora, Sr. McFarlane, dois dos meus guardas esto porta e uma carruagem de quatro rodas o espera na rua. O infeliz rapaz ergueu-se e, com um ltimo olhar suplicante para o nosso lado, saiu da sala. Os policiais levaram-no para o carro, mas Lestrade ficou. Holmes apanhara as pginas que formavam o rascunho do testamento e examinava-as com ateno. H alguns pontos interessantes neste documento, no verdade, Lestrade? O detetive examinou os papis, com ar perplexo. S consigo ler as primeiras linhas, as que esto no meio da segunda pgina e uma ou duas no fim. Essas so claras, mas as linhas intermedirias esto em letra ruim, havendo lugares onde no se pode ler coisa alguma. Que diz a isto? perguntou Holmes. Que diz o senhor a isto? Que foi escrito num trem observou Holmes. Os trechos legveis representam as estaes; os mal-escritos, o trem em movimento; e os ilegveis, os entroncamentos. Um perito veria logo que isso foi escrito num trem de subrbio, j que somente nas imediaes de uma grande cidade pode haver tal nmero de agulhas. Supondo-se que o homem tenha levado toda a viagem para fazer o rascunho do testamento, o trem devia ser expresso, parando uma vez apenas entre Norwood e a Ponte de Londres. Lestrade comeou a rir. O senhor forte demais para mim, quando comea com as suas teorias, Sr. Holmes disse ele. Que tem isso a ver com o caso?

  • Pois bem, corrobora a histria do rapaz, deixando-nos supor que o testamento foi feito por Jonas Oldacre na sua viagem, ontem. Curioso que um homem redija to importante documento de maneira to casual, no? D a impresso de que ele achava que no iria ter grande valor prtico. Assim faria quem redigisse um testamento que no pretendesse levar a efeito. Pois bem, ele redigiu simultaneamente sua sentena de morte observou Lestrade. Oh, acha que sim? O senhor no acha? Bem, possvel, mas o caso ainda no est claro para mim. No est claro? Ora, se isso no estiver claro, o que poderia estar? Temos um rapaz que fica sabendo de repente que, se um determinado velho morrer, ficar rico. Que que faz, ento? No diz nada a ningum, mas arranja um pretexto para ir ver o cliente, noite; espera at que a outra nica pessoa que se encontra em casa v para a cama e, depois, na solido do quarto do homem, mata-o, queima-lhe o corpo na pilha de madeira do quintal e vai para um hotel. As manchas de sangue no quarto e na bengala so muito leves. E provvel que ele no tenha visto o sangue e que achasse que, queimado o corpo, no ficariam vestgios do mtodo por que fora morto o homem... vestgios que, por qualquer razo, o incriminariam. No est claro? No me parece muito claro, no, meu caro Lestrade observou Holmes. Voc pode acrescentar a imaginao s outras grandes qualidades. Mas, se se colocasse por um momento no lugar do rapaz, teria escolhido justamente a noite do testamento para cometer o crime? No lhe pareceria perigosa a relao entre os dois incidentes? Ainda mais, teria escolhido uma ocasio em que era conhecida sua presena na casa, visto a criada t-lo mandado entrar? E, finalmente, depois do enorme trabalho para esconder o corpo, deixaria a bengala como prova de que cometera o crime? Confesso, meu caro Lestrade, que tudo isso improvvel. Quando bengala, Sr. Holmes, o senhor sabe, tanto como eu, que muitas vezes um criminoso fica excitado e faz coisas que no faria uma pessoa a sangue-frio. Com certeza teve medo de voltar ao quarto. Apresente outra teoria que se adapte aos fatos. Poderia perfeitamente apresentar uma dzia disse Holmes, Aqui est uma, por exemplo, bem possvel e mesmo provvel. Pode ficar com ela de presente. O velho mostra documentos de evidente interesse. Um vagabundo que passa no momento v tudo pela janela, cuja cortina est erguida at o meio. Sai o advogado; entra o vagabundo! Agarra a bengala que ali encontra, mata Oldacre e parte, aps ter queimado o corpo. Por que iria um vagabundo queimar o corpo?

  • E por que o faria McFarlane? Para esconder os vestgios. Provavelmente o vagabundo quereria que no se soubesse que houvera crime. E por que no levaria nada? Porque eram documentos que ele no poderia negociar. Lestrade sacudiu a cabea, embora me parecesse que no estava to seguro de si como antes. Muito bem, Sr. Sherlock Holmes, o senhor pode procurar o seu vagabundo, e, enquanto o procura, ns ficaremos com o nosso homem. O futuro dir quem tem razo. Note apenas este ponto, Sr. Holmes: at agora, no nos consta que tenha sido roubado documento algum, e o prisioneiro o nico homem do mundo que no tinha motivo para roub-los, pois, sendo herdeiro, logo entraria na posse de tudo. Holmes pareceu impressionado com a observao. No nego que h muita coisa a favor da sua teoria declarou ele. Quero apenas dizer que h outras, tambm admissveis. Como muito bem observou, o futuro o dir. Passe bem! Creio que, durante o dia, irei at Norwood, para ver como vai o seu caso. Depois que o detetive partiu, meu amigo levantou-se e preparou-se para o trabalho do dia, com o ar vivo do homem que tem sua frente uma tarefa a seu gosto. Enquanto escovava o casaco, disse: O primeiro passo que vou dar, Watson, ser na direo de Blackheath, como j disse. Por que no Norwood? Porque temos neste caso um incidente singular, ao lado de outro incidente singular. A polcia est cometendo o erro de concentrar sua ateno no segundo, porque parece ser esse o incidente criminoso. Mas, na minha opinio, o meio lgico de nos aproximarmos do caso procurar

  • esclarecer o primeiro incidente o estranho testamento, feito to repentinamente, e a escolha inesperada do herdeiro. Pode ser que isso me auxilie a perceber o que se seguiu. No, caro amigo, no creio que voc possa me ajudar. No h indicao de perigo, pois do contrrio no iria sem voc. Creio que, quando de novo nos encontrarmos, noite, poderei lhe dizer que consegui fazer alguma coisa por aquele infeliz rapaz que se colocou sob a minha proteo. Era tarde quando meu amigo voltou; pelo seu rosto ansioso e abatido vi que suas esperanas no se tinham realizado. Durante uma hora tocou violino, procurando acalmar os nervos. Finalmente, ps de lado o instrumento e contou-me pormenorizadamente os seus contratempos. Vai tudo mal, Watson, o pior possvel. Fiz cara alegre diante de Lestrade, mas creio que, pela primeira vez, ele est na pista certa e ns na errada. O instinto me puxa para um lado e os fatos, para outro, e receio que o jri britnico ainda no tenha atingido aquele grau superior de inteligncia que faria com que dessem preferncia s minhas teorias contra os fatos de Lestrade. Foi a Blackheath? Sim, Watson, fui e no tardei em descobrir que o falecido Oldacre era um requintado patife. O pai de McFarlane estava fora, procura do filho. A me, mulherzinha baixa, inquieta, de olhos azuis, estava trmula de medo e indignao. Nem de longe admitiu a possibilidade de ser o filho o culpado, mas tambm no mostrou surpresa, nem pena, em relao morte de Oldacre. Pelo contrrio, falou dele com tal amargura, que, inconscientemente, refora a opinio da polcia pois, se o filho a ouviu exprimir-se daquela maneira, ficou predisposto ao dio e violncia. "Ele mais parecia um gorila maldoso e astuto do que um ser humano", disse ela. "E sempre foi assim, desde jovem." " A senhora o conheceu nesse tempo? perguntei. " Sim, conheci-o muito bem. Para ser exata, foi meu pretendente. Graas a Deus tive o bom senso de recus-lo e de casar com um homem melhor, embora mais pobre. Estive noiva dele, Sr. Holmes, mas, quando soube que soltara um gato num avirio, fiquei to horrorizada com a sua crueldade que no quis mais saber dele. A me de McFarlane remexeu numa gaveta e tirou dali uma fotografia que fora vergonhosamente deformada e mutilada a facadas. o meu retraio disse. Oldacre devolveu-o, neste estado e com a sua maldio, no dia do meu casamento.

  • " Pois bem, pelo menos ele lhe perdoou, uma vez que deixou toda a fortuna ao seu filho observei. " Nem o meu filho nem eu queremos coisa alguma de Jonas Oldacre replicou ela, com muito brio. H um Deus no cu, sr. Holmes, e esse mesmo Deus, que puniu aquele homem mau, provar que as mos de meu filho no esto manchadas de sangue." Holmes fez uma causa e continuou: Pois bem, tentei mais uma ou duas coisas. Mas nada descobri que pudesse favorecer nossa hiptese. Desisti, finalmente, e fui para Norwood. Deep Dene House uma moradia moderna, de tijolos, no meio de um bom jardim, com um grande relvado frente. direita, ao fundo, a certa distncia da rua, fica o ptio onde se guardava madeira e onde se deu o incndio. Aqui est uma planta, feita rapidamente no meu caderno de apontamentos. A janela esquerda a do quarto de Oldacre. Pode ser vista da rua, como voc v. Foi a consolao que tive hoje. "Lestrade no estava l, mas um dos policiais fez as honras da casa. Tinham acabado de fazer uma grande descoberta. Passaram a manh remexendo nas cinzas e, ao lado 'dos restos orgnicos, descobriram vrios discos de metal. Examinei-os com cuidado, e no h dvida de que eram botes de calas. Cheguei mesmo a ver que num deles estava escrito 'Hyams', que era o alfaiate de Oldacre. Examinei depois o gramado, cuidadosamente, procura de marcas e vestgios, mas o calor tornou o cho to duro como ferro. Nada se podia ver, a no ser que algum ou alguma coisa fora arrastada atravs de uma sebe baixa, que fica ao lado da pilha de madeira. Tudo isso, naturalmente, se adapta teoria da polcia. Arrastei-me pelo gramado, com o sol de agosto nas costas. Mas me levantei uma hora depois, sem saber mais do que j sabia. "Pois bem, depois do fiasco, fui para o quarto e examinei-o tambm. As manchas de sangue eram muito leves, meras ndoas descoloridas, mas indubitavelmente recentes. A bengala fora levada, mas sei que tambm ali as manchas eram leves. No h dvida de que pertence ao rapaz. Ele confessa que sua. Vi marcas de sapatos de dois homens no tapete, e nenhum indcio de uma terceira pessoa, o que tambm um ponto favorvel teoria da polcia. Para ela, as provas iam se amontoando, ao passo que eu no progredia. "Tive somente um raio de esperana, mas, mesmo assim, no grande coisa. Examinei o contedo do cofre, embora quase tudo tivesse sido retirado e deixado sobre a mesa. Os documentos estavam num envelope lacrado e um ou dois tinham sido abertos pela polcia. No eram, ao que me pareceu, de grande valor, nem a caderneta do banco indica que o Sr. Oldacre estivesse em grande prosperidade. Mas pareceu-me que no estavam l todos os documentos. Havia referncias a certas escrituras provavelmente as mais valiosas que no consegui encontrar. Se pudssemos provar isso,

  • naturalmente faramos com que o argumento de Lestrade se voltasse contra si prprio, pois quem iria roubar um documento sabendo que depois o receberia como herana? "Finalmente, tendo tentado tudo e no conseguindo pista alguma, tentei a sorte com a governanta. Chama-se Sra. Lexington, baixa, morena, silenciosa, de olhos estranhos e furtivos. Poderia nos contar alguma coisa, se quisesse, disso tenho certeza. Mas fechada como uma ostra. Sim, ela abrira a porta a um tal Sr. McFarlane, s nove e meia. Desejaria que a sua mo tivesse secado antes disso. Fora para a cama s dez e meia. Seu quarto fica do outro lado da casa e ela nada podia ouvir do que se passava do lado de c. O Sr. McFarlane deixara o chapu no vestbulo e parece que tambm a bengala. Ela acordara com o alarme do incndio. Seu pobre, querido patro certamente fora assassinado. Se tinha inimigos? Ora, todos os homens tm inimigos, mas o Sr. Oldacre era muito reservado e s se encontrava com outras pessoas a negcios. Ela vira os botes e tinha a certeza de que pertenciam roupa que ele usara na vspera. A pilha de madeira estava muito seca, pois havia um ms que no chovia. Ardera como uma mecha, e, quando a governanta chegara ao local, nada se via alm das chamas. Ela e os bombeiros tinham sentido o cheiro de carne queimada. Nada sabia quanto aos documentos ou negcios particulares do Sr. Oldacre. "Aqui tem, caro Watson, o relatrio de um fracasso. E no entanto... no entanto... " Holmes comprimiu as mos, mostrando-se convencido. "Sei que est tudo errado. Sinto-o no meu ntimo. Alguma coisa no transpirou, e a governanta sabe o que . Havia uma espcie de sombrio desafio nos seus olhos que indicava um conhecimento culposo. Em todo caso, no adianta falar nisso, Watson; mas, a no ser que tenhamos um golpe de sorte, creio que o caso do desaparecimento de Norwood no ir figurar na crnica dos nossos xitos, que o pblico paciente cedo ou tarde ter de ler." Sem dvida a aparncia do rapaz impressionar bem o jri, no? Argumento perigoso, caro Watson. Lembra-se daquele terrvel assassino, Bert Stevens, que queria que o defendssemos em 87? Ter existido criatura mais suave? verdade. A no ser que consigamos estabelecer uma teoria diferente da apresentada pela polcia, o rapaz est perdido. No se pde encontrar uma falha no caso, de incio, e as investigaes subsequentes s serviram para refor-lo. Por falar nisso, h algo curioso nestes documentos que talvez sirva como ponto de partida de uma investigao. Examinando o livro de cheques, vi que a baixa na conta de Oldacre era devida, em grande parte, a avultados cheques emitidos para um tal Sr. Cornelius, no ltimo ano. Confesso que estou curioso por saber quem esse tal Sr. Cornelius, com quem um construtor aposentado pudesse ter tantos negcios. Ser que est metido no caso? Cornelius pode ser um corretor, mas no encontramos nenhum documento que corresponda a esses grandes pagamentos. No havendo outra pista, tenho de ir ao banco, indagar a

  • respeito do homem que levantou esse dinheiro. Mas receio que nosso caso v terminar ingloriamente com o enforcamento do nosso amigo, por diligncia de Lestrade, o que ser um triunfo para a Scotland Yard. No sei quantas horas Sherlock Holmes dormiu naquela noite, mas, quando desci para o caf da manh, encontrei-o plido e abatido, e seus olhos pareciam ainda mais brilhantes por causa dos crculos negros em volta. O tapete perto de sua poltrona estava cheio de pontas de cigarro. Vi tambm as edies dos jornais da manh. Notei um telegrama aberto, sobre a mesa. Vinha de Norwood e dizia: "Novo e importante vestgio descoberto. McFarlane indubitavelmente culpado. Aconselho-o a abandonar o caso.

    Lestrade" Parece srio disse eu. o grito de triunfo de Lestrade observou Holmes, com um sorriso amargo. Mas seria prematuro abandonar o caso. Afinal de contas, um vestgio novo faca de dois gumes e pode apontar numa direo muito diferente da que imagina Lestrade. Tome o seu caf, Watson, e vamos juntos ver o que se pode fazer. Sinto que preciso da sua companhia e do seu apoio moral. Meu amigo no toma caf, pois uma das suas peculiaridades no comer nada quando est excitado, e j o vi descuidar tanto de suas foras, que chegou a desmaiar de inanio. "No momento presente, no posso desperdiar energias com a digesto", tem-me dito, ante as minhas admoestaes mdicas. No fiquei portanto admirado, quando vi que deixava a refeio intacta. Dirigimo-nos para Norwood. Um grupo de curiosos mrbidos ainda estava em volta da Deep Dene House, que no passava de um chal suburbano, como eu previra. Lestrade recebeu-nos no jardim, com o rosto corado de satisfao, todo ele em atitude triunfante. Ento, Sr. Holmes, j provou que estamos enganados? J encontrou o seu vagabundo? perguntou. Ainda no tirei nenhuma concluso respondeu meu amigo. Mas tiramos ns a nossa, ontem, e agora ficou provado que era certa. Desta vez tem de concordar que lhe passamos frente, Sr. Holmes. Voc est sem dvida com um ar de algum a quem aconteceu algo de extraordinrio replicou Holmes. Lestrade riu alto.

  • Tanto como qualquer outro, o senhor no gosta de ser derrotado disse ele. Ningum pode esperar conseguir sempre o que quer... no verdade, Dr. Watson? Entrem por aqui, cavalheiros, que espero poder convenc-los de uma vez por todas de que foi John McFarlane quem cometeu o crime. Levou-nos pelo corredor at um vestbulo escuro. McFarlane deve ter vindo aqui buscar o chapu, depois de cometido o crime disse ele. Agora, olhem aqui. Com um gesto dramtico, acendeu um fsforo, e vimos uma mancha de sangue na parede branca. Quando ele aproximou a luz, vi que era mais do que uma mancha. Era a impresso bem ntida de um polegar. Olhe com a sua lente, Sr. Holmes. o que estou fazendo. Sabe que no existem dois polegares iguais? Ouvi falar nisso. Pois bem, quer fazer o favor de comparar esta mancha com a impresso em cera do polegar direito de McFarlane, feita por minha ordem, hoje de manh? Colocou a impresso cm cera ao lado da mancha da parede, e no foi preciso lente para vermos que eram idnticas. Tive certeza de que nosso pobre cliente estava perdido. Isso o ponto final observou Lestrade. , sim concordei. o ponto final disse Holmes. Estranhei o tom de voz e virei-me para olhar meu amigo. Sua expresso mudara por completo. Seus olhos brilhavam, e ele mal podia conter o riso. Meu Deus, meu Deus! exclamou finalmente. Ora, quem iria pensar nisso? E como so enganadoras as aparncias! Um rapaz to distinto! uma lio para no acreditarmos no nosso prprio raciocnio, no verdade, Lestrade? , sim; algumas pessoas costumam ter excessiva confiana em si, sr.

  • Holmes disse Lestrade. Sua insolncia era irritante, mas nada podamos dizer. Que providncia o rapaz ter comprimido o polegar na parede, ao tirar o chapu do cabide! Gesto muito natural, pensando bem disse Holmes. Aparentemente meu amigo estava calmo, mas notava-se que, no ntimo, estava excitado. E agora, Lestrade, quem fez essa extraordinria descoberta? Foi a governanta, Sra. Lexington, que chamou a ateno do guarda. Onde estava o guarda que passou a noite aqui? Ficou no quarto onde foi cometido o crime, para que ningum mexesse em nada. Mas por que a polcia no viu isso ontem? Pois bem, no havia razo para examinarmos especialmente este vestbulo. Alm disso, no lugar muito em evidncia, como o senhor pode ver. No, claro que no. Creio que no h dvidas de que a impresso j estava a ontem, no? Lestrade olhou para Holmes como se o julgasse louco. Confesso que tambm fiquei admirado, tanto com sua expresso risonha como com a absurda observao. No sei como pode achar que McFarlane tenha sado da priso, no meio da noite, para vir aumentar as provas de sua culpabilidade observou Lestrade. Desafio qualquer perito do mundo a dizer que esta impresso digital no dele. No h dvida de que a impresso do polegar de McFarlane. Ento, mais do que o suficiente. Sou um homem prtico, Sr. Holmes, e, quando tenho provas, tiro minhas concluses. Se quiser falar comigo, poder me encontrar na sala, escrevendo meu relatrio. Holmes recuperara a calma, embora eu ainda notasse um brilho divertido no seu olhar. Meu Deus, uma novidade desagradvel, no , Watson? disse ele. Apesar disso, h aqui pontos singulares que me fazem ter esperanas para o nosso cliente. Fico muito satisfeito por ouvir isso repliquei com muita sinceridade.

  • Tive medo de que ele estivesse perdido. Eu no iria to longe, caro amigo. A verdade que h uma falha muito grande nesse indcio a que Lestrade d tanta importncia. No diga, Holmes?! Qual ? Apenas isto: sei que a impresso digital no estava ali, quando examinei a parede ontem. Agora, Watson, vamos passear um pouco l fora. Com as idias muito confusas, mas muito mais esperanado, acompanhei meu amigo num passeio pelo jardim. Holmes examinou com cuidado todos os lados do prdio. Depois tornamos a entrar, e ele examinou a casa, desde o rs-do-cho at o sto. Muitos dos quartos no estavam mobiliados, mas, apesar disso, Holmes examinou-os cuidadosamente. Finalmente, no corredor de cima, para onde davam trs quartos desocupados, teve novo acesso de riso. H aspectos extraordinrios neste caso, caro Watson disse ele. Creio que chegou a hora de fazermos confidncias a Lestrade. Ele j riu nossa custa, e agora chegou nossa vez de rir custa dele, se a soluo do problema for a que imagino. Sim, creio que sei como agir. O inspetor da Scotland Yard ainda escrevia, na saleta, quando Holmes foi procur-lo. Parece-me que est escrevendo o relatrio disse Holmes. Estou, sim respondeu Lestrade. No acha um tanto prematuro? No posso deixar de crer que as provas no so suficientes. Lestrade conhecia demais meu amigo para no dar ateno s suas palavras. Largou a pena e fitou Holmes com curiosidade. Que quer dizer, Sr. Holmes? Apenas que h uma testemunha importante que o senhor ainda no viu. Pode apresent-la? Creio que posso. Ento, apresente-a. Farei o possvel. Quantos guardas h aqui? H trs, bem mo. timo respondeu Holmes. Posso perguntar se so homens grandes,

  • sadios, com vozes fortes? No tenho a menor dvida, embora no veja em que as vozes possam influir. Talvez eu possa ajud-lo a ver isso e mais duas ou trs outras coisas disse Holmes. Faa o favor de chamar os seus homens, que eu vou tentar. Cinco minutos mais tarde, havia trs policiais na sala. Vocs encontraro, no telheiro, uma grande quantidade de palha disse Holmes. Peco-lhes que me tragam duas braadas. Creio que isso me ajudar a forar o comparecimento da testemunha de que preciso. Muito obrigado. Creio que voc tem fsforos no bolso, Watson. Agora, Sr. Lestrade, peco-lhe que me acompanhe, com os outros, at o andar de cima. Como j disse, havia ali um corredor largo para onde davam trs quartos, que estavam desocupados. Holmes levou-nos at o final. Os policiais estavam sorridentes, mas no rosto de Lestrade havia espanto, expectativa e desdm ao mesmo tempo. Holmes parecia um prestidigitador prestes a exibir um truque. Quer fazer o favor de mandar um dos guardas buscar dois baldes de gua? Ponham a palha aqui no centro, longe das duas paredes. Agora, creio que estamos prontos. Lestrade estava vermelho de clera. No sei se est brincando conosco, Sr. Holmes disse ele. Se que sabe alguma coisa, pode nos contar o que , sem toda esta palhaada. Asseguro-lhe, caro Lestrade, que tenho timas razes para o que estou fazendo. Lembre-se de que troou um pouco de mim, h algumas horas, quando o vento soprava do seu lado, de modo que no pode me negar agora um pouco de pompa e cerimonial. Quer abrir a janela, Watson, e depois atear fogo palha? Obedeci. O vento que entrou pela janela aberta fez subir uma nuvem de fumaa, enquanto a palha se inflamava, crepitando. Vamos agora ver se encontramos a testemunha de que precisa, Lestrade disse Holmes. Peo que se juntem todos para gritar: "Fogo!" Agora: Um, dois, trs... Fogo! berramos em unssono. Obrigado. Mais uma vez. Fogo! Mais uma vez, cavalheiros, todos juntos.

  • Fogo! O grito deve ter ecoado por todo o bairro. Nisso aconteceu algo de extraordinrio. Abriu-se uma porta naquilo que at ento parecera uma parede slida e dali surgiu um homenzinho murcho, como um coelho que sai da toca. timo! disse Holmes, calmamente. Watson, um balde de gua em cima da palha. Basta! Lestrade, permita-me que lhe apresente a sua principal testemunha, o sr. Jonas Oldacre. O detetive olhou para o recm-chegado com expresso de espanto. O velho piscava os olhos, no corredor muito claro, olhando-nos e olhando o fogo que morria. Era um rosto odioso, astuto, mau; olhos furtivos, de um cinzento claro, com pestanas brancas. Que significa tudo isso, ento? perguntou Lestrade. Que esteve fazendo a dentro, durante todo esse tempo? Oldacre teve um riso constrangido, recuando ante o rosto colrico de Lestrade. No fiz mal nenhum. No fez mal? Fez o possvel para mandar para a forca um inocente. Se no fosse o Sr. Sherlock Holmes, no sei se no teria sido bem-sucedido no seu infernal intento. O miservel comeou a choramingar. Garanto, senhor, que no passou de brincadeira. Ah, ento foi de brincadeira, hem? Pode ficar certo de que no a achar nada engraada. Levem-no para baixo e esperem-me na saleta. Depois que os guardas se retiraram com o homem, Lestrade virou-se para Holmes.

  • No quis falar diante dos guardas, mas no me importo de dizer, na presena do Sr. Watson, que foi o feito. mais brilhante da sua carreira, embora at agora eu no tenha percebido como foi que o senhor o conseguiu. Salvou a vida de um inocente e evitou um escndalo tremendo, que teria arruinado minha reputao na polcia. Holmes sorriu e bateu no ombro de Lestrade. Em vez de ficar arruinada, caro senhor, sua reputao poder ser exaltada. Faa apenas algumas modificaes naquele relatrio, e todos vero como difcil enganar o inspetor Lestrade. E no quer que seu nome aparea? De forma nenhuma. Meu trabalho a minha recompensa. Talvez eu tambm receba parte da glria, mais tarde, quando permitir ao meu diligente bigrafo que se coloque diante das folhas de papel almao, hein, Watson? Bom, vamos agora ver onde aquele rato esteve escondido. Uma diviso de madeira estucada fora colocada no corredor, a dois metros da extremidade, com uma porta habilmente disfarada. O compartimento era iluminado por fendas sob o beiral. Havia ali algumas peas de moblia, gua e comida, assim como livros e papis. esta a vantagem do construtor disse Holmes quando samos de l. Ele pode fazer seu esconderijo sem ajuda de cmplice a" no ser, claro, daquela preciosa governanta, que voc tambm deve prender, Lestrade. Seguirei seu conselho. Mas como soube desse esconderijo, Sr. Holmes? Calculei que o homem estava escondido aqui nesta casa. Quando andei pelo corredor e vi que era dois metros mais curto que o de baixo, percebi onde ele devia estar. Achei que no teria coragem de ficar escondido ante um alarme de incndio. Poderamos, claro, ter entrado no compartimento para prend-lo, mas achei que seria divertido fazer com que ele aparecesse. Alm disso, eu lhe devia qualquer coisa, Lestrade, pela sua zombaria de hoje de manh. Pois bem, no h dvida de que estamos quites. Mas como soube que ele estava aqui nesta casa? A impresso do polegar, Lestrade. Voc disse que era o ponto final, e era

  • mesmo, mas o sentido era outro. Eu sabia que a parede no tinha aquela mancha na vspera. Dou muita importncia a pormenores, como voc deve ter observado, e examinei a parede, tendo certeza de que no havia ali mancha alguma. Sabia, portanto, que a marca fora feita durante a noite. Mas como? Muito simples. Quando aqueles pacotes foram lacrados, Oldacre fez com que McFarlane lacrasse um deles, pondo o polegar na massa mole. Deve ter sido feito to depressa, e com tal naturalidade, que o rapaz no pensou mais nisso. Com certeza foi de fato o que se deu, e nem o prprio Oldacre sabia que isso ia lhe ser til. Mais tarde, refletindo sobre o caso naquele seu cubculo, lembrou-se de que seria uma prova terrvel contra McFarlane. Nada mais fcil do que tirar o lacre do pacote, manch-lo com o sangue conseguido com uma picada de alfinete e imprimir a marca na parede, durante a noite. Se voc examinar os documentos que ele levou para o seu retiro, tenho certeza de que encontrar um com a impresso do polegar no lacre. Formidvel! exclamou Lestrade. Formidvel! Tudo claro como gua, explicado por si. Mas qual a vantagem dessa dissimulao, Sr. Holmes? Achei divertido ver como a atitude do detetive mudara de repente, parecendo agora um colegial fazendo perguntas ao professor. Bom, no creio que seja difcil explicar. O homem que nos espera l embaixo muito mau e vingativo. Sabe que foi pretendente da me de McFarlane e que ela o desprezou? No sabe?... Mas eu lhe disse que fosse primeiro a Blackheath, Lestrade, e depois a Norwood. Pois bem, esse insulto, como Oldacre o considerava, deve t-lo rodo por dentro, e toda a vida suspirou por vingana, sem nunca ver chegar sua oportunidade. Nos ltimos dois anos, os negcios no lhe correram bem especulaes infelizes, suponho. Resolveu lesar os credores e comeou a passar cheques avultados a um tal Sr. Cornelius, que no outro seno o prprio Sr. Oldacre usando nome falso. Ainda no procurei os cheques, mas garanto que foram depositados em algum banco de uma cidadezinha do interior, onde Oldacre deve ter vivido durante algum tempo, com outro nome. Ele pretendia mudar de nome definitivamente, retirar o dinheiro e fugir, comeando a vida noutro lugar. bem provvel. Achou que, dando a impresso de que fora assassinado, ningum o perseguiria e assim tambm conseguiria se vingar da antiga namorada, fazendo com que seu nico filho fosse acusado do crime. Era uma obra-prima de vilania, e ele a executou com maestria. A idia do testamento, que forneceria o mvel do crime, a visita que o rapaz lhe fez, sem que os pais soubessem disso, a bengala que Oldacre guardou, o sangue, os restos de um animal queimado e os botes encontrados na pilha de madeira, tudo muito engenhoso. Foi uma rede de onde, h algumas horas, eu prprio achava que ningum poderia escapar. Mas ele no tinha aquele supremo dom do artista, que saber parar. Quis aperfeioar o que j era perfeito, apertar mais ainda a

  • corda volta do pescoo da pobre vtima, e, com isso, estragou tudo. Vamos descer, Lestrade. Quero lhe fazer uma ou duas perguntas. O miservel Oldacre estava sentado na sala da sua prpria casa, com um policial de cada lado. Foi uma brincadeira, meu bom senhor choramingava ele sem cessar. Garanto-lhe que me escondi para ver o efeito do meu desaparecimento, e tenho certeza de que o senhor no ser injusto a ponto de imaginar que eu permitiria que acontecesse algum mal ao pobre Sr. McFarlane. Isso compete ao jri decidir disse Lestrade. De qualquer maneira, o senhor ser julgado por crime de calnia, se no for por tentativa de assassinato. E provavelmente ver seus credores impedirem a transferncia dos seus depsitos para a conta do Sr. Cornelius disse Holmes. O homenzinho se virou para o meu amigo, com olhar venenoso. Tenho que lhe agradecer muita coisa disse ele. Talvez um dia pague a minha dvida. Holmes sorriu com indulgncia. Creio que o senhor vai ter durante alguns anos todo o seu tempo ocupado replicou. Por falar nisso, que que ps no fogo, ao lado das suas calas? Um co morto, ou coelhos, ou o qu? No quer dizer? Bem, bem, acho que uns dois coelhos poderiam ser responsveis pelo sangue e pelos restos carbonizados. Se algum dia descrever este caso, Watson, pode optar por dois coelhos.

  • Arthur Conan Doyle

    Os Danarinos

  • Ttulo original: The ancing Men Publicado em The Strand Magazine, Londres, 1903 Este texto digital reproduz a traduo de The Dancing Men publicado em As Aventuras de Sherlock Holmes, Volume IV, editado pelo Crculo do Livro e com traduo de Lgia Junqueiro

  • Havia tempo que Holmes estava sentado, em silncio, debruado sobre

    um tubo de ensaio, investigando um produto malcheiroso. Assim, com a cabea cada para o peito, lembrava um pssaro estranho, magro, de plumagem cinzenta, opaca, e penacho negro.

    - Ento, Watson, no vai comprar as aes sul-africanas? - perguntou ele. Tive um sobressalto. Por mais habituado que estivesse s estranhas

    faculdades de Holmes, aquela sbita intruso nos meus ntimos pensamentos era inexplicvel.

    - Como que sabe disso? - perguntei. Ele deu uma revira