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Revista SOPHIE, 02 – Recife – Novembro – 2011 - ISSN 2236-7500 68
“TODOS OS CONTRASTES ESTÃO NO HOMEM”: MACHADO, O
ALIENISTA E REPRESENTAÇÕES DA SOCIEDADEOITOCENTISTA
Jeffrey Aislan de Souza Silva*Luanna Maria Ventura dos Santos Oliveira**
Resumo
Este artigo busca discutir algumas perspectivas da obra de Machado de Assis, tendo
como norteamento o Conto O Alienista e as representações que ocorrem sobre asociedade contemporânea a Machado no final do Império.
Palavras-Chaves: Machado de Assis – O Alienista – Sociedade Imperial.
Pode-se dizer sem muitas reservas que Joaquim Maria Machado de Assis foi um
homem que estava à frente de seu tempo. Machado inaugurou uma época na Literatura
Brasileira. Alem de ser o fundador da Academia Brasileira de Letras e ser considerado o
grande nome da nossa literatura, ele inaugurou estilo, fomentou perspectivas e análises
da sociedade a qual foi contemporâneo. Instituiu as bases do Realismo literário no
Brasil na segunda metade do século XIX.
Os objetivos deste artigo são relacionar obra e autor e entender aspectos da
sociedade da segunda metade do século XIX, relacionando a vida e a crítica machadiana
em sua literatura; tentando ver a sociedade em sua ótica, em sua satirização, buscando
mostrar as representações que ocorrem em seu discurso literário, nas análises e formas
de apreensões que o autor nos legou. Tomaremos aqui como referencial o conto 1 O
*Cursando Graduação em História na Universidade Federal Rural de Pernambuco.** Cursando Graduação em História na Universidade Federal Rural de Pernambuco.Artigo orientado pela professora Élcia de Torres Bandeira, da UFRPE/DEHIST/ GEHISC. Orientadora da
pesquisa.1 Situamos aqui O Alienista como “conto” na perspectiva de Luiz Antonio Aguiar, ao afirmar que é umconto grande, que talvez seja considerado como uma pequena novela, que segundo ele seria uma
categoria intermediaria entre o conto e o romance, apesar de não ser muito usado no Brasil. Para maisdetalhes ver: AGUIAR, Luiz Antonio. Almanaque Machado de Assis: vida, obra, curiosidades e
bruxarias literárias. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008, p. 86.
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Alienista na tentava de entender e interpretar a crítica satírica que Machado produziu em
relação à sociedade imperial trazendo à tona os aspectos relacionados à loucura.
No primeiro momento, focaremos de forma breve Machado de Assis, em análise
biográfica, situando-o na sociedade em que ele está inserido; sua vida, sua carreira,
desenvolvimento literário, aceitação de suas obras, crítica social. No segundo momento
deste trabalho, trataremos de relacionar história e literatura. A questão aqui é colocar
em xeque o conto O Alienista e relacioná-lo com a sociedade no qual ele se insere,
buscando entender as representações que são feitas por Machado em relação à sociedade
imperial. Neste momento, nos muniremos de referenciais teóricos para ajudar na
compreensão destas relações conceituais, como Foucault, Chartier, Sevcenko e outros.
No terceiro momento, proporemos algumas considerações finais, sem o mínimo
objetivo de esgotar as questões levantadas, apenas para chegarmos ao fechamento dos
textos com algumas ideias construídas a cerca do que foi levantado no artigo.
Machado de Assis: O Homem
Nascido em casa modesta, no Morro do Livramento em 21 de junho de 1839,
Machado de Assis, foi um homem simples, mas audacioso. Alguém que soube deixar
sua marca na cultura brasileira. Podemos dizer com orgulho que um dos grandes nomes
da nossa literatura foi basicamente um autodidata. Filho do pintor Francisco José de
Assis e da lavadeira Maria Leopoldina Machado de Assis os primeiros anos de vida de
Machado ainda são um mistério para todos os pesquisadores que se debruçam em
estudá-lo. Portanto pouca coisa se sabe.
“Uma das histórias que correm sobre Machado é que, graças à biblioteca damadrinha, ele teve a oportunidade de ler, desde cedo, grandes obras daLiteratura Universal. Mas, como tantas outras coisas que se repetem sobreele, trata-se de uma lenda, já que D. Maria José [de Mendonça Barros]morreu de sarampo quando o menino tinha seis anos de idade e dificilmente
poderia, ainda mais com a precariedade de sua instrução, já ter sedesenvolvido como um leitor habilitado a esse tipo de obra”. 2
2 AGUIAR, Op. cit., p. 29.
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A partir dessa citação podemos ter uma ideia de como a vida de Machado está
imersa em lendas e mitos históricos e literários. Ainda sobre sua alfabetização, a
algumas versões biográficas a serem discutidas. Sabe-se que seu pai e sua mãe sabiam
escrever e talvez a mãe, ou o padre da igreja de Lampadosa, perto do Morro do
Livramento, o tenham alfabetizado. 3
Contudo, segundo Francisco Barbosa Maria Inês, segunda esposa de seu pai,
teria sido sua mestra de primeiras letras. 4 Em relação, a saber, se Machado frequentou
ou não escolas em sua época de menino, ainda há posições conflitantes. Segundo Aguiar
“Machado não teve praticamente educação formal”, 5 entretanto Barbosa afirma que
“é certo que Machado de Assis frequentou escolas públicas”.6 Foi um moleque como
outro, criança, feio, de pés no chão, espiando, se aventurando. 7
Começou a trabalhar cedo “era vivo e inteligente”, vendendo doces, mas seu
primeiro emprego foi numa papelaria. 8 Conta-se, se não for lenda, que aos 17 anos
Machado levou uma reclamação do chefe da gráfica da Tipografia Nacional, por estar
matando o trabalho para estar lendo. O chefe da gráfica exigia a sua demissão. O entãodiretor da Tipografia Manuel Antônio de Almeida [autor de Memórias de um sargento
de milícias] interessa-se por esse funcionário franzino, tímido e gago. E que inclusive já
vinha publicando poemas e era frequentador de locais de reuniões da mocidade literária
da corte. Faziam parte desse grupo Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Joaquim
Manuel de Macedo entre outros. Simpatizando com o rapaz e levando em consideração
a qualidade de seus poemas, Maneco de Almeida não o demite, promove-o e lhe dá um
aumento. 9
No auge da sociedade imperial e devido às modificações que ocorriam em
relação à antiga ordem colonial, tanto no campo econômico-social, como no relacionado
à vida privada, as relações entre o campo e a cidade se tornam cada vez mais
3 AGUIAR, Op. cit., p. 30.4 BARBOSA, Francisco de Assis. Machado de Assis em Miniatura: um perfil biográfico. Brasília, DF:Batel, 2008, p. 19.5 AGUIAR, Op. cit., p. 31.6 BARBOSA, Op. cit., p. 19.7
AGUIAR, Op. cit., p. 32.8 BARBOSA, Op. cit., pp. 21-23.9 AGUIAR, Op. cit., pp. 34-35.
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insipientes. Pautado em valores e condições de vida europeias a cidade surge neste
período tomando o valor que o campo possuía na sociedade colonial. 10 Contudo essa
nova ordem social que emerge no século XIX é basicamente composta dos filhos e
netos dos antigos senhores de engenho e donos de grandes latifúndios da sociedade
colonial. Surge daí os bacharéis, os doutores, comendadores que passam a viver nas
cidades em seus sobrados. A cidade se opõe ao campo, os profissionais liberais que
começam a emergir no século XIX se opõem aos senhores de engenho.
Machado não se encaixa nessa ordem de elite do Brasil oitocentista. Filho de um
pintor e de uma lavadeira, mulato, sem nenhuma posse, aprendeu cedo que tudo que
precisava, tudo que queria, teria que ser conquistado com o seu próprio suor, trabalho e
dedicação. E assim foi.
“Sem recursos que lhe permitissem conquistar o título de bacharel em SãoPaulo ou no Recife, ou o diploma de doutor em medicina no Rio ou naBahia – os únicos centros universitários do país, aquela época – tratou deaprender sozinho, frequentando as raras bibliotecas públicas da Corte,especialmente a do Gabinete Português de Leitura”. 11
Aprendeu sozinho francês e o inglês, tornando-se um grande leitor de romances
britânicos. Também era leitor do filósofo Arthur Schopenhauer. Em 1864, com 25 anos
de idade, publica seu primeiro livro de poemas: Crisálidas, reunindo poemas publicados
em jornais e algumas traduções. 12 Conhece Carolina Augusta Xavier de Novais em
1866, é nomeado ajudante no Diário Oficial . Casa-se com ela em 12 de novembro de
1869.
Machado ganhava pouco com sua produção literária; viver de publicação delivros não era uma coisa muito possível no Brasil imperial. Era comum para os grandes
10 Para entender algumas transformações que ocorrem na sociedade colonial ver: BANDEIRA, ÉlciaTorres. Modernização e Conflito no Brasil Pombalino. In: ANDRADE, Manuel Correia de,CAVALCANTI, Sandra Melo... et al. Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira: Brasil 1701-
1824. Brasília: CNPQ; Recife: FJN, Massangana, 2000. Para entender algumas modificações queocorrem na vida privada devido às transformações econômicas e sociais ver: FREYRE, Gilberto.Sobrados e mocambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano . Rio de Janeiro,Record, 1990.
11BARBOSA, Op. cit., p. 23.12 AGUIAR, Op. cit., pp. 36-37.
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escritores brasileiros, deste período, ter outras ocupações que proporcionassem o seu
sustento. Seus livros eram publicados e ele recebia uma parcela em dinheiro referente
aos direitos autorais, mas era muito pouco. Para complementar a renda, ele era redator
da Semana Ilustrada, e do Diário do Rio de Janeiro e colaborava com o Jornal das
Famílias. Sua situação financeira só melhora em 1873 quando ingressa no
funcionalismo publico; em 1873 é nomeado para a Secretaria de Estado do Ministério
de Agricultura, Comercio e Obras Públicas, ganhado um salário de 4:000$000 anuais.
Até o momento, nos preocupamos em mostrar a vida de Machado, inserida no
contexto histórico a qual ele está incluído: Brasil, século XIX. Um homem que nasceu
pobre, mulato, que cresceu e conseguiu graças ao seu talento se colocar na
hierarquizada sociedade na qual vivia. Conta-se que Carolina ajudou muito Machado
em sua caminhada. Ela era diferente das mulheres da época. Em Portugal se relacionava
com grandes nomes da literatura como Camilo Castelo Branco, e chegava até a ajudar
Machado nas revisões gramaticais de seus textos. Machado viveu um amor tranquilo ao
lado de Carolina, o que para muitos era um grande mistério, pois havia um grande
recolhimento em relação à vida doméstica de ambos. Vários poemas foram escritos em
homenagem a sua esposa. 13 ..............................................................................................
Machado de Assis: Sua Obra
Ao longo de sua vida Machado vai publicando seus inúmeros romances,
crônicas, contos, poemas e peças de teatro, uma obra vastíssima que causa espanto e
interesse em diversas pessoas, leigos ou estudiosos, brasileiros ou estrangeiros.Crisálidas, seu primeiro livro de poemas, foi publicado e bem aceito pela crítica aqui no
Brasil e em Portugal. Em 1869, sai seu segundo livro de versos Falenas e seu primeiro
livro de contos, Contos Fluminenses, ambos publicados pela editora Garnier, com quem
tinha um contrato.
Logo após vieram os romances Ressurreição, Helena, diversos livros de contos
e peças teatrais e no limiar do século XX, suas conhecidas obras primas: Quincas
13 AGUIAR, Op. cit., pp. 39-40.
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Borba, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. Mas como o público do
século XIX se relacionava com as obras de Machado de Assis?
Neste momento, os dois autores deste texto pedem emprestada uma forte e
interessante característica do romance machadiano: o diálogo com o autor. O que mais
nos chamou atenção quando lemos o romance Dom Casmurro foi justamente a forma
como Machado nos força a estar dentro de suas histórias. Ele se comunica conosco, nos
faz perguntas, indagações, nos faz rir e nos deixa irritados: é uma característica única de
sua literatura. Em nossa humilde opinião, caro leitor ou leitora, é isso o que o torna
magistral, dentre todas as grandes qualidades literárias que são enfocadas pelos diversos
críticos literários do mundo e inclusive renomados historiadores brasileiros (a relação
entre Machado e os historiadores brasileiros trataremos mais adiante no texto) é esse
ponto do diálogo o que mais nos chama a atenção.
Segundo Hélio Seixas Guimarães:
“O diálogo com quem lê é, de fato uma obsessão machadiana, e atravessa
praticamente toda a sua obra, da crônica ao teatro, do conto ao romance.Mas é principalmente nos romances que o leitor ocupa um lugar central edramático. [...] Estes não só serão contrariados em suas expectativas, como
já acontecia nos romances anteriores, mas frequentemente chamados de
obtusos, teimosos, afoitos, sensaborões, caluniadores e etc”. 14
Machado costumava chamar a atenção para os problemas de leitura e circulação
de seus livros em relação ao povo brasileiro. Como se sabe a taxa de analfabetismo era
enorme. Atribuindo isso também a alguns que se interessavam somente por literatura
estrangeira. Segundo o autor “tudo indica que, além de mal compreendido, Machado
também foi pouco lido”. Pouco se sabe da recepção da obra de Machado nos diversos
grupos da sociedade, sem ser os grupos de letrados ao qual ele mesmo fazia parte. 15
Podemos ver, a partir das questões levantadas acima, como são grandes as
lacunas sobre o entendimento da obra machadiana em seu tempo. Contudo não
14
GUIMARÃES, Hélio Seixas. Tem Alguém Aí? Dossiê Machado de Assis. Revista da Biblioteca Nacional . Ano 3, Nº. 36, 2008, pp. 16-17.15 GUIMARÃES, Op. cit., pp. 17-18.
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podemos deixar de propor as nossas análises. A partir de agora, iremos tratar de nosso
tema principal: a relação entre Machado, seu conto O Alienista e a sociedade imperial.
Contextualizando Saberes
Como buscar uma relação entre um conto (fictício) e a realidade social? Como
entender as representações que ocorrem entre história e literatura? Será que ambas se
completam, ou se repelem? Será que de um conto podemos tirar os aspectos de
produção social sem levar em consideração o lugar social do autor? Chartier nos legou o
seguinte questionamento:
“É possível distinguir entre a realidade social e suas representações estéticase, portanto, considerar o estudo das primeiras como o domínio próprio doshistoriadores e reservar a análise das segundas aos que interpretam formas eficções? Seguramente, há quinze ou vinte anos, semelhante divisão detarefas teria sido aceita sem reservas. Mas hoje em dia há diversas razões
para duvidar de tal distinção”.16
Não podemos mais nos preocupar em analisar as obras literárias somente tendo
como objeto de estudo o contexto social em que ela foi lançada à sociedade. O autor faz parte de um lugar social e escreve deste lugar. A forma como ele busca representar a
sociedade em suas obras merece ser bem avaliada, sem esquecer que a recepção e a
forma como a sociedade se vê representada na visão do autor é muito importante para
podermos entender as duas faces da moeda. Mais uma vez segundo Chartier:
“Efetivamente, não se pode mais pensar as hierarquias ou as divisões sociaisfora dos processos culturais que as constroem. É a razão pela qual o conceitode representação [grifo nosso] é um precioso apoio para que se possam
apontar e articular (sem dúvida, melhor do que o permitia a noção clássicade mentalidade) as diversas relações que os indivíduos ou os grupos mantêmcom o mundo social: em primeiro lugar, as operações de classificação edesignação, mediante as quais um poder, um grupo ou um indivíduo
percebe, se representa e representa o mundo social; em continuação, as práticas e os signos que levam a reconhecer uma identidade social, a exibir uma maneira própria de ser no mundo, a significar simbolicamente um
16 CHARTIER, Roger. A construção estética da realidade – vagabundos e pícaros na idade moderna.Tempo, Rio de Janeiro, nº. 17, 2004, p. 33.
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status, uma categoria, uma condição; e, por último, as formasinstitucionalizadas pelas quais alguns “representantes” (indivíduossingulares ou instâncias coletivas) encarnam, de maneira visível e durável – “presentificam” – a coerência de uma comunidade”. 17
É neste ponto de vista levantado por Chartier que pretendemos ver O Alienista e
relacioná-lo com a sociedade oitocentista: tentando entender as visões cientificas e
políticas que cercavam o período vigente estudado e como Machado de Assis buscou
relacionar isso em sua crítica satírica à sociedade.
Outra importante contribuição que utilizaremos nesta análise é a que nos legou
Michel Foucault. Foucault teve seu primeiro trabalho relacionado com a História da
loucura na idade clássica e possui importantes trabalhos relacionados ao surgimento e
desenvolvimento de várias instituições como a prisão, escola, asilo, hospital e as formas
como essas instituições vão se relacionar com a sociedade na modernidade.
Tentaremos fazer as devidas relações, sem claro, esquecer que O Alienista é uma
obra de ficção “e como tal dever tratada”. 18 Sevcenko nos mostra que o autor tem
certa liberdade de criação que são fornecidas ou sugeridas pela sociedade, e é dela queeles falam, contudo não deixa de ser uma produção artística que visa a agradar e a
comover . 19 Vemos o autor como produtor, vivendo em uma realidade na qual ele não
pode se separar (pelo menos não totalmente), então essa realidade se torna objeto de
ficção; o interessante para o historiador é saber analisar ambos.
Loucura, Ciência e Sociedade.
Originalmente publicado entre 1881 e 1882, O Alienista faz parte da coletânea
Papéis Avulsos, editada em 1882. Podemos perceber neste famoso conto farsas e criticas
satíricas ao mundo cientifico e revolucionário da segunda metade do século XIX. “Em
O Alienista talvez seja legítimo descobrir um tratamento inédito e quase profético da
questão da loucura, já que as ligações entre poder, ciência e loucura só virão a ser
17 CHARTIER, Op. cit., pp. 33-34.18 GOMES, Roberto. O Alienista: loucura, poder e ciência. Tempo Social ; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,5(1-2): 145-160, 1993, p. 148.
19 Sevcenko, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na primeira república.São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 29.
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debatidas explicitamente na década de 1960”. 20 Nesta obra Machado dá um pontapé
inicial para coisas que serão muito discutidas no século seguinte.
Simão Bacamarte era um homem de ciência, homem que possuía conhecimento,
buscava provas através de constatações cientificas, dizia: “A ciência, disse ele a Sua
Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo”. 21 Casou-se com uma
mulher feia, somente porque acreditava que era poderia lhe dar bons filhos, coisa que
acabou não acontecendo. Com isso acabou se dedicando ainda mais ao estudo. Podemos
analisar que essa questão fortemente científica de Simão Bacamarte já pode ser
interpretada como uma crítica às ideias cientificistas da época.
O espaço temporal onde se passa o conto é situado no final do século XVIII.
Conhecido como o Século das Luzes, período em que ocorreram enormes
desenvolvimentos científico-filosóficos na Europa. O Iluminismo desbancava na
França, os resquícios do Renascimento ainda estava presente no final do século, a
Revolução Industrial na Inglaterra tomava seus grandes ares e a Revolução Francesa
estremecera as ordenações do Ancién Regime, o conhecimento tomava forma de ciência,se desenvolviam a química, física, antropologia e outros saberes.
Uma nova ordem social surgia na transição do século XVIII para o século XIX.
Não é de se estranhar que Machado tenha escolhido este período em especial para
representar em romance um homem que munido de todos os conceitos científicos, que
estavam se desenvolvendo neste período, trouxesse a loucura para a cidade de Itaguaí. A
loucura, segundo Foucault “delírio [...] , vontade perturbada, paixão pervertida”. 22 Só
passa a existir na cidade com o discurso de Simão Bacamarte, antes disso todos viviammuito bem sem ao menos desconfiar de sua existência em Itaguaí. É ele que vê a
necessidade de cuidar dos doentes mentais, com o saber médico propõe e institui esse
poder na sua cidade. Segundo Foucault:
“O poder médico encontra suas garantias e justificações nos privilégios doconhecimento. O médico é competente, o médico conhece as doenças e os
20 GOMES, Op. cit., p. 147.21
ASSIS, Machado. O Alienista. Porto Alegre: L&PM, 2007, p. 09.22 FOUCAULT, Michel. A casa dos Loucos. In: Microfísica do Poder . Rio de Janeiro: Edições Graal,1979, p. 121.
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doentes, detém um saber científico que é do mesmo tipo que o do químicoou do biólogo; eis o que permite a sua intervenção e a sua decisão”. 23
É munido desse saber que lhe é instituído que Bacamarte propõe a construção da
Casa Verde. Ele se preocupava com a cura e tratava a todos com muito carinho.
Contudo logo coisas um tanto estranhas começam a acontecer. Bacamarte começa a
levar para o internamento na Casa Verde várias pessoas da cidade que ninguém imagina
que sejam loucas e isto começa a gerar certo temor na cidade.
Bacamarte se preocupa bastante em entender e classificar a loucura, por isso
quando não está no hospital, se preocupa bastante em classificar as pessoas. Criando
categorias e enquadrando a população investigava se seriam, por exemplo: furiosos e
mansos; queria saber sobre sua vida, suas famílias, costumes, profissões, cada dia
descobria uma coisa nova. 24 Para o nosso alienista a loucura era um imenso continente,
que com a ajuda da ciência ele estava começando a desvendar. Ao descobrir que a
loucura estava em todos os lugares o alienista decide começar seu trabalho pesado de
cura, já que muitos não tinham a mínima consciência de sua loucura. “Existem
alienados cujo delírio é quase imperceptível”. 25
Começa a levar para a Casa Verde o Costa por causa de seu desapego aos seus
bens materiais, sua prima por contar histórias, Mateus pela grande admiração que
possuía por sua casa e Martin Brito por ter elogiado sua esposa, pois sabia que ela não
era nada bonita. Neste ponto chegamos a um impasse. Como diferenciar loucura de
razão, como saber se desejos imperfeitos ou não já evoluíram para o caso de insanidade.
Nos exemplos citados acima, desapego às coisas materiais, mentira, soberba, bajulação não são levados em consideração por sua intensidade e logo são tratados
como insanidades e levados ao hospital para serem curados. Levando até sua mulher
para a Casa Verde, por causa de sua indecisão entre os vestidos e colares, o alienista
mostra que não se importa com a repercussão do acontecimento ou com demonstrações
de sentimento; munido do saber científico que ele diz construir, subordina tudo a esse
sacrossanto saber.
23
FOUCAULT, Op. cit., pp. 122-123.24 ASSIS, Op. cit., p. 13.25 ESQUIROL apud FOUCAULT, Op. cit., p. 121.
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Podemos ver nesta abordagem uma interessante crítica feita por Machado ao
cientificismo de sua época. “Machado busca ridicularizar a arrogância das ideias”. 26
Surgem, na segunda metade do século XIX, várias teorias pautadas em conhecimentos
científicos (ou não) para explicar a natureza, as doenças, revolucionar a tecnologia. É a
época da explosão das teorias do evolucionismo de Charles Darwin, que procura
explicar a origem e evolução das espécies. Começa a corrida pelo novo colonialismo na
África e a partir deste novo evento se desenvolvem várias teorias sobre a evolução,
desenvolvimento e distinção da espécie humana, tratando algumas raças nas categorias
de inferior e superior, como o darwinismo social do filósofo inglês Spencer.
Machado vivia essa sociedade, não estava isolado, não é de se espantar que com
toda sua inteligência, esse aspecto fortemente apegado ao cientificismo de seus
contemporâneos não fosse passar despercebido, sem nenhuma crítica ou satirização.
“É O Alienista, cujos lances farsescos, mirabolantes, também podem ser lidos como o lado patético, desolador, solitário, da comédia humana, da vã(ou louca) tentativa de lidar com o mundo racionalizando-o,compreendendo-o. [...] O humor, sozinho, é um pobre intérprete deMachado, um ingênuo interprete, que nos cega, às vezes, que não deixa
mergulhar a fundo em seus enredos no espírito de seus personagens”. 27
Ao final, em sua tentativa de resolver o problema, munido de toda a sua
cientificidade o nosso alienista, ao chegar à conclusão que a corrupção toma todas as
formas em sua cidade, que o barbeiro, que incita a revolução se rende aos encantos
corrosivos, que os vereadores seguem este mesmo caminho e se sentia fora deste meio
passa a defender a tese de que o único em Itaguaí portador de patologia é ele mesmo por
ser o único racional. Portanto decide se isolar na Casa Verde e analisar os meandros dasua própria mente privilegiada face às vulnerabilidades da sociedade que o cerca.
Tecendo Considerações (In) Conclusivas
Segundo Aguiar, em Machado nada é um ponto fixo, tudo é movediço, o que
torna quase impossível de se eleger uma verdade. Verdade esta que nem o próprio
Machado tinha pretensão de fincar. Nós é que procuramos desvendar suas obras, suas
26 AGUIAR, Op. cit., p. 218.27 AGUIAR, Op. cit., p. 219.
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genialidades, buscamos saber se o médico Simão Bacamarte era mesmo louco, o que fez
Brás Cubas escrever suas memórias póstumas, se Capitu traiu ou não Bento Santiago.
Desde a morte do Mestre, como o chamou Olavo Bilac, busca-se essa compreensão de
suas obras. Vamos tentando conhecer-te e saboreando teu riso. 28 Podemos chegar a
algumas análises in (conclusivas), baseados nos nossos estudos propostos até agora, e
algo novo.
Machado propõe representações críticas de sua sociedade contemporânea. Tendo
em vista o adestramento ao cientificismo que era utilizado na época, ele nos mostra de
uma forma até mesmo irônica, como isso pode ser levado aos seus extremos e ser,
porque não, prejudicial à sociedade. Machado viu a mudança da ordem social brasileira,
a transição do império para a república, uma questão muito forte na mentalidade de
muitos brasileiros, principalmente dos membros da antiga elite imperial.
Em carta endereçada a José Veríssimo ele dizia: “Quanto ao século, os médicos
que estão presentes ao nosso parto reconhecem que este é difícil, crendo uns que o que
aparece é a cabeça do XX, e outros, que são os pés do XIX. Eu sou pela cabeça, comosabe”. 29 O progresso era o lema de nossa bandeira, está fincado em nossa república. Ele
viu crescer a modernidade em nosso país, sentiu essa passagem junto com seus amigos,
como Joaquim Nabuco.
Acreditamos que Machado buscava compreender essas mudanças, tanto no
campo social como no científico que o cercavam. Seus contos e romances podem ser
interpretados como a forma que ele entendia/assimilava estas modificações e passava
para os seus leitores. Segundo alguns de seus contemporâneos, como Silvio Romero,sua obra foi entendida como um grande capítulo de negativas, faltando movimentação
de enredo e comprometimento com as questões nacionais. 30
Isso mostra a má compreensão que alguns de seus contemporâneos fizeram de
sua obra, de sua perspectiva crítica, O Alienista pode ser colocado como uma obra no
28 Trecho de um poema de Linhares Filho, publicado na seção de poesia em uma edição da Revista da
Academia Brasileira de Letras de 2008, ano do centenário da morte de Machado de Assis.29 MACHADO apud AGUIAR, Op. cit., p. 52.30 GUIMARÃES, Op. cit., p. 18.
7/16/2019 07 Machado, o Alienista -Jeffrey Aislan e Luanna Oliveira
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Revista SOPHIE, 02 – Recife – Novembro – 2011 - ISSN 2236-7500 80
qual Machado teve preocupação com as questões nacionais, preocupado com o
problema da razão, do homem, da ciência, da mudança. Não esqueçamos que ele era
leitor do filósofo Schopenhauer, portanto podemos inferir (mesmo sabendo que pode ser
um erro) que Machado possuía algumas preocupações relacionadas às vontades e
representações de si e seus contemporâneos.
O título deste trabalho é uma frase sua, retirado do livro Esaú e Jacó “Todos os
contrates estão no homem”. Com esta frase pretendemos concluir situando Machado
como o homem dos contrastes interessantes, movediços, mostrando que em uma
literatura na qual “a vida é uma ópera”, Deus é o poeta e Satanás é o maestro, o
humanismo, a crítica, a sátira e o pensamento social têm muitas formas de se
manifestar.
REFERÊNCIAS
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REVISTA DA BIBLIOTECA NACIONAL, Dossiê Machado de Assis Como Você
Nunca Viu. Ano 03, Nº. 36, Setembro 2008.