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A Virgem dos Lírios Barbara Cartland Olhando para o quadro de mais de trezentos anos, o marquês de Fane foi tocado por intensa emoção. A Virgem dos Lírios retratada na belíssima pintura fixava nele seus doces e celestiais olhos azuis. O marquês nunca tinha visto olhar tão belo e profundo em rosto de expressão tão divina! Acostumado com a beleza agressiva, sensual, sofisticada e falsa das damas da corte, Fane ficou deslumbrado e ciente de que só poderia amar uma mulher igual a essa na vida. Mas era um amor de sonho, um amor impossível! Três séculos o separavam da Virgem dos Lírios! 1

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BARBARA CARTLAND

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A Virgem dos Lírios

Barbara Cartland

Olhando para o quadro de mais de trezentos anos, o marquês de Fane foi tocado por intensa emoção. A Virgem dos Lírios retratada na belíssima pintura fixava nele seus doces e celestiais olhos azuis. O marquês nunca tinha visto olhar tão belo e profundo

em rosto de expressão tão divina! Acostumado com a beleza agressiva, sensual, sofisticada e falsa das damas da corte, Fane ficou deslumbrado e ciente de que só

poderia amar uma mulher igual a essa na vida. Mas era um amor de sonho, um amor impossível! Três séculos o separavam da Virgem dos Lírios!

Coleção Barbara Cartland nº 32

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Título original: “WHO CAN DENY LOVE?”Copyright: © CARTLAND PROMOTIONS 1979

Tradução: AYDANO ARRUDACopyright para a língua portuguesa: 1981

EDITORA EDIBOLSO LTDA. — São PauloUma empresa do GRUPO ABRIL

Composto na LINOART e impresso nas oficinas daABRIL S.A. CULTURAL E INDUSTRIAL

CAPÍTULO I

1802

O marquês de Fane dirigia seus magníficos cavalos pela St. James's Street, consciente de que a maioria das pessoas o observava com olhos invejosos.

Não era apenas por causa de seus cavalos que o marquês despertava inveja, ciúme e outras emoções violentas no coração das pessoas, mas, principalmente porque era o campeão em tudo o que fazia. Por isso, não era de surpreender que fosse uma figura controvertida, encarada ora como um herói, ora como um bandido, principalmente entre aqueles que circulavam à volta do príncipe de Gales.

O marquês conquistara o respeito do mundo das competições, mas desagradara também àqueles que eram seus concorrentes na criação de cavalos. Tinha tanta certeza de vencer, que deixava sempre para ultrapassar os demais apenas na reta de chegada.

Em outros tipos de competição, especialmente no que se referia ao belo sexo, inevitavelmente o marquês conquistava as mais lindas mulheres, sob o nariz de amigos e inimigos.

Tinha a fama de haver dilacerado mais corações do que qualquer galanteador do último século.

Suas conquistas às vezes aborreciam até mesmo ao príncipe de Gales.

— Não posso compreender o que elas vêem em você, Fane — dissera o príncipe, desgostoso, ainda uma semana antes.

Isso acontecera depois de saber que uma dançarina, que chamava sua atenção no palco de Covent Garden, já estava sob a proteção do marquês.

Sua Alteza Real não esperava explicação para sua

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observação, pois ela era clara demais.O marquês não só era bonito, mas extraordinariamente rico.

Além disso, possuía casas contendo tesouros que sua família acumulara desde o reinado da rainha Elizabeth.

O fato de ser também arrogante e cínico e declarar abertamente que nunca havia amado, representava um desafio irresistível para as mulheres.

— Ainda não nasceu uma mulher que não deseje reformar um libertino — dissera na noite anterior um dos membros mais idosos do White's —, mas no que se refere a Fane, elas estariam tentando apagar um incêndio na floresta com um balde de água!

Esta observação fora provocada pela notícia de que lady Isabel Chatley deixara Londres, segundo diziam os jornais, devido a “uma indisposição que a obrigara a mudar de clima”.

Todos sabiam muito bem que nenhuma outra espécie de clima poderia curar a decepção amorosa que ela sofrerá nas mãos do marquês de Fane. Este se aborrecera dela quando a corte voltara a Londres, no começo de abril.

No fim do mês, todos estavam a par dos sentimentos dela e da indiferença dele, tendo ouvido suas contínuas queixas e afirmações de que preferia estar morta a sofrer aquela humilhação.

O fato de lady Isabel ter desistido da conquista e se retirado para o campo fora um alívio para aqueles que se aborreciam com suas lamúrias. Ao mesmo tempo, todos concordaram em que o marquês havia se comportado mal, como de hábito.

Antes de se envolver nessa aventura, ele deveria ter desconfiado que lady Isabel era daquela espécie de mulher “grudenta”.

— O fato de ela ser infernalmente bonita não serve de desculpa — dissera outro membro do clube. — Todas as mulheres de Fane são bonitas. Acontece simplesmente que ele é tão insensível aos sentimentos alheios que não tem a menor idéia das dolorosas conseqüências de seu interesse, sempre passageiro.

Todos os que gastavam suas noites em orgias tinham sempre a impressão de que o marquês aproveitara muito mais a vida do que eles. O que era uma constatação pelo menos irritante para os fidalgos de sua geração.

O marquês, com uma perícia tão notável quanto a que demonstrava em tudo o que realizava, fez seus cavalos virarem no fim da St. James's Street, em direção a Carlton House.

Na realidade, estava achando que era um aborrecimento o príncipe tê-lo chamado quando pretendia voltar para sua casa em Berkeley Square, a fim de se aprontar para um jantar com lady Abbott.

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Ela chamara a atenção do marquês na noite anterior, em Devonshire House com um vestido tão transparente que, ao entrar na sala, sua primeira impressão fora de que estava completamente nua.

Já havia se encontrado com lady Abbott em ocasiões anteriores, mas até esse dia nunca notara que seu corpo fosse tão atraente. Decidiu então que ela merecia mais do que um olhar cobiçoso.

E não havia dúvida de que a dama em questão estava também muito interessada nele.

Seus cabelos pretos e seus olhos verdes oblíquos, lembravam uma pantera. E, enquanto conversavam no jardim, descobriu que ela era capaz de flertar provocadoramente e com a sofisticação que ele sempre achara interessante.

Como o príncipe, o marquês preferia mulheres experientes, bem versadas na arte do amor.

Embora mães ansiosas escondessem suas filhas quando ele se aproximava, como se as contaminasse apenas com o olhar, as mocinhas podiam ficar tranqüilas diante dele, pois o marquês nem sequer tomava conhecimento da existência delas.

Quando seus parentes ousavam lhe sugerir que era tempo de se casar e ter um herdeiro, ele os repelia rudemente.

Ao mesmo tempo, pensava, se viesse a se casar, teria de ser com uma viúva que compreendesse o mundo social em que ele se movimentava e, principalmente, que compreendesse sua necessidade de se divertir e se entreter constantemente.

Não havia coisa que o marquês mais temesse do que o tédio. E tomava o cuidado de raramente se envolver com uma companhia ou em uma situação na qual pudesse se aborrecer mesmo por alguns minutos.

Quando disputava uma corrida, participava de competições ou caçava, envolvia-se profundamente. Igualmente se divertia quando a perseguição a alguma caça atraente era difícil ou prolongada.

No tocante às mulheres, o mal era que elas caíam muito facilmente em seus braços, antes mesmo que os estendesse.

Embora esperasse passar a noite com lady Abbott, tinha a desagradável impressão de que aquela noite terminaria como todas as outras, quando a mulher que desejava se entregava depressa demais.

Parou em frente ao belo pórtico corintiano, introduzido em Carlton House por Henry Holland.

A casa estava ainda longe de estar concluída, mas já era festejada por aqueles que apoiavam o príncipe, como um triunfante

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sucesso. E apontada como um dispendioso fracasso, por aqueles que não gostavam dele.

Outros diziam abertamente que sua opulência era vulgar.Era sabido que as dívidas do príncipe subiam a meio milhão

de libras, grande parte das quais havia sido investida na reconstrução e decoração do suntuoso palácio, no qual, dizia-se, “não existir lugar que não fosse recoberto de riquezas”.

O marquês achava que o príncipe tinha notável bom gosto. E embora Sua Alteza Real gastasse muito dinheiro que não possuía, ele tinha certeza de que a posteridade justificaria seus gastos.

Tendo mentalidade e educação cosmopolitas, o príncipe mandava seus amigos e agentes à França, para comprar móveis e objetos de arte.

Havia adquirido quadros, relógios, espelhos, bronzes, porcelanas de Sèvres e tapeçarias; só agora, finalmente, esses objetos encontravam um lugar digno deles.

Enquanto subia a escada sem pressa, o marquês sabia que, com a ajuda das galerias e dos vendedores de Londres, o príncipe acumulara a mais completa coleção de obras de arte já reunida por um inglês, quanto mais por um futuro monarca.

De fato, o marquês ajudara a descobrir e melhorar sua coleção com pinturas de Pater Greuze, le Nain e Claude, que o príncipe dispusera em seus salões com requinte e bom gosto.

O extraordinário era que, entre os homens dos quais o príncipe se cercava, a maioria muito inteligente, poucos entendiam de arte como o marquês, certamente porque este, em suas próprias mansões, herdara pinturas e tesouros tão valiosos quanto os que o príncipe estava acumulando.

Naquela noite, porém, o príncipe não estava interessado na decoração de sua sala, mas em um quadro que se encontrava no chão, encostado a um dos sofás, e que contemplava quando o marquês foi anunciado.

Ergueu os olhos, entusiasmado, dizendo:— Finalmente você está aqui, Virgílio! Como demorou para

chegar!— Perdoe-me, sir — desculpou-se o marquês. — Eu não

estava em casa quando seu recado chegou, mas assim que o recebi obedeci à sua ordem.

— Bem, você está aqui e é o que importa. Venha ver uma coisa rara!

O marquês atravessou a sala com uma expressão de ligeiro tédio porque, pelo tom autoritário do bilhete do príncipe, esperava encontrar algo mais interessante e urgente do que outra pintura.

Sentia-se lisonjeado com a importância que o príncipe dava à

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sua opinião. Ao mesmo tempo, lamentava não ter vindo preparado para ir em seguida ao encontro com lady Abbott.

O quadro era grande e, como observou, estava em perfeito estado.

Após ter olhado para ele por um momento, o marquês disse, arrastando vagarosamente as palavras:

— Parece ser um Van Dyke.— Isso é o que afirmam. Olhe mais de perto. Está notando

alguma coisa?O tom de excitação na voz do príncipe fez com que o

marquês se concentrasse mais no quadro.Viu que as roupas usadas pela Madona, nas cores vermelho e

azul-escuro, tinham muito do estilo de Van Dyke e as mãos belamente desenhadas, mostravam inconfundivelmente a marca do artista. O menino, rosado e gordo, era brilhantemente executado. Olhou para o rosto da Madona e, então, surgiu de repente em seus olhos uma expressão de surpresa.

O príncipe, que o observava, sorriu, encantado.— Você notou? Eu sabia que ia notar. Impressionou-me no

momento em que vi o quadro.— Sem dúvida, é muito semelhante — murmurou o marquês,

sem poder acreditar no que via.— Não existe a menor dúvida — disse o príncipe. — Olhe

você mesmo.Tirou de trás do sofá outro quadro que lá estava escondido e

colocou-o ao lado do Van Dyke. Era também uma pintura da Madona, que, no ano anterior, ele e o marquês haviam pensado ser uma descoberta excepcional.

Pinturas de Stefan Lochner podiam ser encontradas no continente, mas não se sabia da existência de nenhuma delas na Inglaterra. Contudo, o príncipe conseguira comprar uma das suas belas e gentis Madonas, uma figura delicada e sonhadora, cujos contornos pareciam quase confundir-se com seu ambiente.

Custara caro, pois os quadros de Stefan Lochner eram muito raros, e o comerciante que o comprara para o príncipe pouca coisa pudera contar-lhe a respeito de sua história, exceto que viera de uma coleção particular.

O príncipe ficara extasiado diante do quadro, referindo-se a ele constantemente com uma espécie de lirismo.

Mas o marquês compreendia por que a Madona de Lochner o comovera tanto, pois ele próprio sentia a mesma coisa em relação à pintura. Certamente não era tão sentimental quanto o príncipe, mas a pintura provocava uma emoção que lhe dava a impressão de estar ouvindo uma velha balada de amor medieval.

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De tato, achava o quadro irresistível, tanto que raramente visitava Carlton House, o que fazia várias vezes por semana, sem entrar na sala de música para olhar a pintura que se chamava A Virgem dos Lírios.

O título estava escrito, em letras pequenas, mas elegantes, nas costas da moldura e, embora achassem que devia ter sido acrescentado muito mais tarde, o nome permanecera na mente do marquês.

Agora, ali estava o mesmo rosto, desta vez retratado por Van Dyke.

A composição das cores, naturalmente, era muito diferente e a pintura de Van Dyke não era tão etérea ou delicada. Mas não havia dúvida de que, vistos lado a lado, os rostos das duas Madonas eram iguais.

Os mesmos olhos grandes, o mesmo nariz pequeno e reto, os lábios perfeitamente curvos, a mesma expressão de arrebatamento, quase de êxtase, como se um pouco da glória do céu estivesse em seu rosto.

— É extraordinário! — exclamou o marquês finalmente.— Foi exatamente o que eu pensei, mas como poderia ter

acontecido isso, a menos que Van Dyke tenha copiado Lochner?— Isso é muito improvável! Por tudo quanto sabemos a seu

respeito, ele era orgulhoso demais para copiar outro artista e sempre usava modelos para suas pinturas.

— E teria sido impossível que ele usasse o mesmo modelo que Lochner — comentou o príncipe. E como se soubesse exatamente o que o marquês estava pensando, disse: — Geralmente, admite-se a morte de Lochner entre 1451 e 1460. Van Dyke nasceu em 1599 e morreu em Londres em 1641.

— Então pode ter copiado o quadro de Lochner quando estava no estrangeiro.

— É possível que sim — concordou o príncipe —, mas é muito estranho, pois nenhuma outra pintura de sua autoria retrata um rosto parecido com este. Nem os rostos pintados por ele têm uma marca espiritual tão forte.

— É verdade — concordou o marquês. — Espero que seja autêntico.

— Isaacs, que o adquiriu para mim, assegurou-me que é um dos melhores Van Dykes que encontrou.

O marquês pensou por um momento, depois disse:— Foi Isaacs quem lhe comprou o Lochner.— Sim, é claro — respondeu o príncipe. — Eu me lembrei

disso.— Eu estava pensando se, de fato, não fomos enganados.

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— Se fomos, o pintor é um gênio. Olhe as dobras daquele manto… a textura da pele da criança. Seguem exatamente a tradição de Van Dvke

O marquês olhava, porém, para o Lochner, percebendo que havia outras semelhanças além do rosto, que um crítico menos experiente não teria notado. O manto da Virgem dos Lírios era muito diferente daquele da Madona de Van Dyke, mas sendo muito entendido em artes plásticas, achou que havia certas pinceladas idênticas nos dois quadros e mais alguma coisa, que não foi capaz de definir.

Estudou os dois trabalhos por algum tempo e percebeu que sua intuição, em que sempre confiara, lhe dizia haver algo de suspeito nas duas pinturas.

Sabia que o príncipe estava esperando suas palavras e, finalmente, com um suspiro, observou:

— Estranho, muito estranho. No momento, não sou capaz de encontrar uma explicação. Já sei o que vou fazer, sir. Vou tentar descobrir mais alguma coisa sobre o lugar onde Isaacs obteve essas duas pinturas.

— É uma boa idéia!— Já havia comprado muita coisa dele antes?— Só o Lochner — respondeu o príncipe. — Ele me trouxe

dois ou três retratos, que não eram importantes, por isso nem tive a preocupação de mostrá-los a você. Depois, como sabe, nós dois ficamos encantados pelo Lochner. — Sua Alteza Real fez uma pausa, antes de prosseguir: — Paguei por ele mais do que deveria, mas acho que valeu a pena,

— Eu também — concordou o marquês. Havia um sorriso ironia em seus lábios, enquanto se lembrava de que fora ele quem pagara o quadro.

— Agora, deixe-me lembrar — pediu o príncipe, levando a mão à cabeça. — No ano passado, Isaacs trouxe-me um El Greco, tão estragado que não era interessante, e um Van Dyke bastante insignificante, que também recusei.

— Lembro-me desse. Mais alguma coisa?— Não. Creio que foi só, até que me procurou hoje como esse

Van Dyke.— Sem dúvida, é um quadro belíssimo. Sua semelhança com

o Lochner deve ficar em segredo, até eu haver descoberto tudo quanto puder a esse respeito.

— Deixarei tudo em suas mãos, Virgílio — concordou o príncipe. — Confio plenamente em sua competência.

O marquês aceitou esse elogio como um direito e não questionou o bom senso do príncipe.

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— Vou começar a trabalhar imediatamente, na tentativa de descobrir onde Isaacs conseguiu esses dois quadros. Agora penso que nos descuidamos um pouco, ao permitir que ele fosse tão vago em relação ao Lochner.

— Tem razão! É claro que tem razão — concordou o príncipe. — Estávamos tão encantados com ele, que ficamos ansiosos por adquiri-lo a qualquer preço, sem nenhuma investigação.

— Passou-me pela cabeça que poderia ter sido roubado.— Pela minha também — exclamou o príncipe.— Agora, se me desculpa, sir… — começou o marquês, logo

interrompido pelo príncipe.— Não vá embora, Virgílio! Fique para jantar comigo. Desejo

continuar trocando idéias com você sobre pinturas e outras coisas.Estava evidentemente ansioso, pois tinha muitas vezes

dificuldade em convencer o marquês a aceitar seus convites. E gostava mais da sua companhia do que a de qualquer outro amigo.

— Nada me agradaria tanto, sir, se eu tivesse sabido mais cedo. Mas compreenderá que seria extremamente indelicado de minha parte cancelar um compromisso na última hora.

O príncipe sorriu.— Sou capaz de adivinhar que vai jantar com alguma bela

feiticeira.— Seus olhos brilhavam quando sacudiu o dedo em direção

ao marquês.— Tenha cuidado, Virgílio! Sabe tão bem quanto eu que sua

reputação é tão má, ou pior do que a minha e que não podemos nos dar ao luxo de aumentar nossa lista de crimes.

O marquês fez um gesto com as mãos, e disse:— Se devo ser condenado, que seja pelo menos por um

motivo justo. O príncipe jogou a cabeça para trás e riu.— Essa é boa, Virgílio, e muito tranqüilizadora. Também

penso desse modo e, assim, caminharemos juntos para o patíbulo. Esperemos pelo menos que a experiência seja compensadora.

— Embora seja decepcionante na maioria das vezes — respondeu o marquês, malicioso.

— Meu caro Virgílio, você não deve cair no cinismo!— Certamente não, no que se refere a pinturas e a cavalos —

respondeu o marquês, prontamente.— Só com mulheres? — perguntou o príncipe, acrescentando:

— Não perca a esperança. Talvez um dia encontremos a Virgem dos Lírios e ela seja tão adorável quanto Lochner a retratou.

— Tenho a impressão de que isso seria impossível. Mesmo assim não custa esperar!

Novamente o príncipe riu e o marquês, depois de se

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despedir, desceu as escadas.Quando subia a St. Jame's Street, em direção à sua casa,

surpreendeu-se lamentando não ter aceitado o convite do príncipe para jantar em Carlton House. A conversa seria interessante como sempre, a comida e o vinho excelentes. Mas não eram essas as razões. E sim porque, de repente, os verdes olhos de lady Abbott não lhe pareciam tão atraentes quanto no dia anterior.

Intrometendo-se na expressão do rosto de lady Abbott estava a delicadeza da Virgem dos Lírios.

Os olhos da Virgem, sonhadores e melancólicos, olhavam para o mundo com um encantamento que era parte dela própria e parecia emanar da graça de sua figura, que segurava um buquê de lírios nos braços. Seus cabelos eram loiros e puxados para trás, por baixo da coroa convencional, não de pedras preciosas, mas de flores. E havia nos cantos do quadro pequenos anjos com asas pontudas voltadas para ela.

Era um rosto que o marquês não conseguia apagar de sua memória. Havia naqueles olhos uma expressão que ele nunca vira em qualquer outra pintura, e em nenhuma mulher de carne e osso.

Se pelo menos eu a conhecesse! pensou, de modo sonhador.Depois, quando virou seus cavalos de Piccadilly para

Berkeley Square, disse a si mesmo que estava sendo ridículo, com essa obsessão por uma pintura.

Lady Abbott seria sem dúvida tão interesante quanto ele imaginava. E se ela oferecesse alguma resistência a seus avanços, a noite não seria perdida.

Desejava ardentemente que essa conquista certa não fosse muito fácil, nem muito rápida.

Cyrilla abriu a maltratada porta e carregou cuidadosamente sua cesta para dentro da casa, descansando-a no chão antes de fechar o trinco.

Apanhando-a de novo, caminhou pelo estreito corredor e entrou em uma pequena cozinha nos fundos.

Uma mulher de cabelos grisalhos, que mexia numa panela sobre o fogão, voltou-se para dizer:

— Não houve sinal do médico.— Ele prometeu que viria — disse Cyrilla, com voz ansiosa. —

mas talvez desconfie de que não temos dinheiro para pagá-lo.— Não duvido — respondeu Hannah. — Comprou tudo

quanto lhe pedi?— Sim, Hannah, e gastei nosso último vintém. Não nos resta

nada, a menos que o sr. Isaacs traga hoje o dinheiro do quadro.— Ele já devia estar aqui — disse Hannah abruptamente. —

Não confio naquele homem, essa é a verdade!

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— Ele foi o único comerciante que se mostrou bondoso desde que papai ficou doente. Mas eu estava pensando, Hannah, que teremos de vender alguma coisa logo, senão morreremos de fome!

— O que poderemos vender, se agora não resta mais um único quadro na casa? — perguntou Hannah rispidamente.

Cyrilla não respondeu. Tirou a capa, sentindo-se profundamente cansada e sabendo que era por falta de alimentação.

Tudo quanto ganhavam era gasto na compra de remédios para seu pai. Enquanto isso, ela e Hannah viviam de hortaliças e um ovo de vez em quando, pois não restava dinheiro algum para comprar mais nada.

Fazia três dias que ela levara a Solomon Isaacs o Van Dyke que Frans Wyntack havia pintado antes de ficar doente.

Assustada por sua própria ousadia, Cyrilla dera as últimas pinceladas necessárias no quadro, depois o envelhecera por um processo que Frans Wyntack aprendera.

Na ocasião em que sua mãe caíra doente e precisara de assistência médica, Frans Wyntack reconhecera que não conseguia vender seus próprios quadros e comunicara amargamente a Cyrilla:

— Se não compram meus quadros, eu lhes darei uma lição que nunca esquecerão.

— Que quer dizer com isso, papai?— Quero dizer que, quando estava aprendendo a pintar em

Colônia, há muitos anos, aprendi como falsificar pinturas. — Cyrilla fitara-o com os olhos arregalados, enquanto ele prosseguia: — Conheci um homem que era meio louco. Sentava-se na galeria, pintando o dia todo. Vendo-o com freqüência, comecei a me interessar pelo que estava fazendo.

— Estava copiando os quadros pendurados nas paredes da galeria? — perguntara Cyrilla.

— Sim — concordara Frans Wyntack —, mas como tanta habilidade e perfeição, que às vezes, erguendo o quadro, dizia: “Se visse este com uma moldura, você o distinguiria do original?”

— Eram tão bons assim?Cyrilla não acreditava realmente no que Frans Wyntack lhe

contava, porque sabia que ele desprezava as falsificações e os comerciantes que “retocavam”' uma pintura para conseguir vendê-la melhor.

— Que aconteceu com ele, papai?Frans Wyntack parará de falar, com seus pensamentos

obviamente voltados para um passado muito distante.— O artista? — perguntara. — Oh, às vezes conseguia vender

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um de seus quadros a alguém que desejava uma cópia realmente boa. Mas acho que morreu de fome, como tantos de nossa profissão.

— Mas eu não compreendo, porque que está falando sobre isso. agora?

— Estou lhe falando porque, antes que eu partisse de Colônia, ele me ensinou o segredo de pintar um quadro exatamente no mesmo estilo que o artista famoso. Isso significa: submeter a tela a tratamento, usar certas espécies de tinta e depois de terminada a pintura, envelhecê-la de maneira a tornar impossível a qualquer entendido descobrir que não foi pintada na época. — Sob o olhar surpreendido de Cyrilla, prosseguira: — É isso que pretendo fazer e, por causa da maneira como fui tratado pelo mundo da arte, porei o dinheiro no bolso sem a menor culpa na consciência.

— Mas papai… isso seria enganar os outros! Além disso, falsificação é crime!

— Só se a gente é apanhada! — respondera Frans Wyntack, tranqüilamente.

Embora Cyrilla tentasse argumentar. Frans Wyntack fora procurar sir George Beaumont, jurando que pintaria um quadro tão parecido com o original que ninguém perceberia a diferença.

Cyrilla sabia que sir George Beaumont, que estivera uma vez em sua casa visitando seu pai, era um famoso patrono das artes. Não existindo na Inglaterra galerias de pintura públicas, como no estrangeiro, sir George permitia que artistas examinassem sua coleção e até mesmo copiassem as pinturas estrangeiras que possuía.

Frans Wyntack fazia esboços e anotações sobre um quadro de que gostava, depois copiava seu estilo em casa. Em seguida, vendia-o a um comerciante e voltava à casa de sir George para escolher outro.

Quando os quadros ficavam prontos, Cyrilla sempre olhava espantada para eles.

— São brilhantes, papai! Realmente brilhantes! Mas tenho certeza de que isso está errado.

Todavia, não pôde deixar de sentir-se entusiasmada, quando, na semana seguinte, Frans Wyntack lhe deu o dinheiro suficiente, não só para pagar as contas que deviam, mas também para comprar tudo de que precisavam para sua mãe, pelo menos por uma semana.

— Preciso descobrir outro comprador e isso é difícil — confidenciara Frans Wyntack.

— Que tem de errado com aquele que já comprou seus

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quadros? — perguntara Cyrilla.— É muito perigoso continuar procurando-o. Ele me conhece.

Já esteve aqui e sabe muito bem que não possuo nada de valor.— Então, por que comprou os seus quadros? Seu pai rira.— Ele pensa que são roubados… por isso está disposto a não

fazer perguntas.— Oh, papai… como pôde permitir que alguém pensasse que

é ladrão?— Estou disposto a deixar que pensem de mim muitas outras

coisas, desde que me paguem o suficiente. Infelizmente, o crime não compensou neste caso. Precisei aceitar importância menor do que a que pretendia.

Dissera isso com raiva e Cyrilla observara:— Pelo menos deu para comprar tudo de que precisávamos

para mamãe e pagar a conta do médico.— O doutor esteve aqui hoje?Cyrilla respondera afirmativamente, com um movimento de

cabeça.— Que disse ele?— Que mamãe precisa de repouso e boa alimentação.

Receitou outros remédios pois os que tomou até agora não adiantaram nada.

Frans Wyntack cerrara os lábios e, depois que ele saíra, Cyrilla ouvira-o subir a escada correndo em direção ao quarto de sua mãe.

Havia ficado escutando até ouvir a porta do quarto fechar-se, depois dissera consigo mesma:

Mamãe nunca deverá saber o que papai está fazendo. Ela ficaria chocada … horrorizada pela idéia de ele pintar falsificações deliberadamente, para enganar aqueles que as compram. Isso é errado, muito errado… mas não vejo o que mais ele poderia fazer.

Por mais que se esforçassem, sua mãe continuava cada vez pior. Cada dia parecia mais magra e mais fraca. Seus olhos só se iluminavam, dando a impressão de que se sentia feliz, quando Frans Wyntack entrava no quarto. Então, a cor voltava a seu rosto e, por alguns momentos, ela parecia tão jovem e adorável quanto sua filha.

Contudo, ninguém poderia fazer nada para salvá-la. Ela parecia estar escapando deles e uma manhã, quando Frans Wyntack acordou, encontrou-a morta a seu lado.

Para Cyrilla, foi como se todo o mundo tivesse desmoronado. Sua vida, sua felicidade, tudo quanto significava um lar estava centralizado em sua mãe.

Sem a mãe, ela se sentia como um barco à deriva, à mercê

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das ondas, não tendo a menor idéia da direção a seguir.Se estava quase prostrada de dor, o mesmo acontecia com

Frans Wyntack.Dia após dia, ele se sentava no estúdio, fitando uma tela na

qual pintava às vezes pequenos retratos do rosto da mãe de Cyrilla, depois os apagava, como se não fossem suficientemente bons para retratar a mulher que havia amado.

— Você precisa fazer com que ele volte a pintar — dissera firmemente Hannah. — Não temos dinheiro e, se não está com fome, srta. Cyrilla, eu estou!

Cyrilla entendeu que havia bom senso no que Hannah dizia.Calma, porém decididamente, dissera a Frans Wyntack que

ele precisava pintar, pois não havia mais nada que pudessem vender.

A princípio, seu pai recusara-se a continuar com as falsificações que vendera por causa da mãe de Cyrilla, e voltara a pintar seus próprios quadros.

Estes, porém, só rendiam alguns xelins cada um. De fato, o preço alcançado geralmente mal dava para pagar a tela em que eram pintados e eles ficavam na loja de algum comerciante de arte, empoeirados e ignorados.

Tristemente, Cyrilla vendera as poucas coisinhas de algum valor que sua mãe possuía — um xale pintado, uma estola de renda, um abrigo de pele — e quando isso tudo já havia acabado, entrara no estúdio para dizer a seu pai:

— Um de nós precisa ganhar dinheiro. Talvez eu pudesse arranjar um emprego para esfregar assoalhos. Não tenho talento suficiente para mais do que isso.

O pai olhara-a como se a visse pela primeira vez.Ela era muito parecida com a mãe, quando Frans Wyntack a

conhecera e pensara ser ela a criatura mais bela que já imaginara em seus sonhos mais fantásticos.

Infelicidade e fome haviam afinado o rosto de Cyrilla. Seu queixo parecia muito pontudo e seus olhos muito grandes.

Havia sido de manhã cedo que Cyrilla falara com ele, antes de tomarem o desjejum. Ela ainda não penteara os cabelos, que caíam sobre seus ombros como uma nuvem brilhante, da cor dourada da aurora. Estranhamente, havia neles uma tonalidade prateada, como se um pouco do luar tivesse ficado ali por engano.

Frans Wvntack fitara-a de um modo, que a fez imaginar o que estaria ele pensando. Depois, dissera:

— Eu comecei uma pintura… uma falsificação de Lochner… quando sua mãe estava doente, mas não pude terminá-la. Só Deus sabe se eu seria capaz de captar o espírito dela, mas vou tentar.

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— De que está falando, papai?— Você quer dinheiro, então precisa ganhá-lo — dissera ele,

quase rispidamente. — Embrulhe-se naquela seda e sente-se ali no trono.

— Está me pedindo que seja seu… modelo? — perguntara desnecessariamente Cyrilla.

Frans Wvntack não se dera ao trabalho de responder. Estava armando seu cavalete, procurando a tela inacabada que desejava e arrumando Cyrilla de modo que a luz da janela caísse sobre seus cabelos. Depois começara a trabalhar.

As madonas etéreas com as quais Stefan Lochner se tornara famoso lembravam-lhe sua amada. Por isso, desejava pintar quase um retrato, dela, não só porque seria fácil de vender, mas porque desejava retratar aquela perfeição.

Havia pintado três outros quadros enquanto ainda estava ocupado com aquele para o qual Cyrilla servia de modelo.

Os três, que ele descrevia como “ganha-pão”, foram copiados, como outros anteriores, das pinturas da coleção de sir George Beaumont e vendidos para o mesmo homem que pensava serem os quadros roubados.

Continuara o trabalho na pintura de Lochner durante meses. Finalmente, quando terminara, fizera Cyrilla ficar ao lado do quadro e dissera:

— Agora, olhe! Critiquei Use seu instinto. Existe aí alguma coisa errada?

— É absolutamente perfeito, papai! Eu gostaria de ter realmente essa aparência.

— Você tem essa aparência — afirmara ele, com segurança. Contudo, não estou interessado nela, mas em minha pintura.

— É genial! O senhor sabe que é maravilhoso! Por que não pinta um quadro como esse, em lugar de fazer uma cópia, e não o assina com seu próprio nome para se tornar famoso?

Tinha havido um momento de silêncio entre eles. Depois Frans Wyntack dissera:

— Quer que lhe diga a verdade?— Diga-me.— Artistas como Lochner e todos os outros que nós

admiramos têm certa inspiração, algo que torna suas obras geniais. E os outros pintores, por melhores que sejam, são incapazes de fazer isso. O compositor de músicas é um gênio. Um pintor precisa ter o mesmo gênio. Se não tiver, a pintura não “adquire vida”, e é esse o meu mal.

— Mas, papai, o senhor é tão inspirado! Este quadro é lindo. Eu gostaria de guardá-lo e olhá-lo todos os dias.

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Frans Wyntack rira.— Você não precisa senão olhar-se no espelho, minha

querida. Mas este vai nos trazer muito dinheiro.— Como? — perguntara Cyrilla.— Vou falar com um novo comerciante, um homem chamado

Solomon Isaacs. Soube que está ansioso para conseguir quadros que possa mostrar ao príncipe de Gales.

— Não vai dizer a ele que é uma falsificação?— Não, é claro que não. Vou dizer que é um quadro que

herdei, que está com minha família há anos e que agora preciso vendê-lo.

Sorrira, como se estivesse caçoando de si próprio, e dissera a Cyrilla:

— Procure minha melhor roupa, aquela com a qual sua mãe dizia que eu parecia um cavalheiro. Espero que não tenha sido inteiramente comida pelas traças.

— Não, é claro que não, papai — respondera Cyrilla, indignada. — Hannah cuidou dela.

Vestido como um cavalheiro, embora ligeiramente antiquado, Frans Wyntack deixara a casa com-a pintura de “Lochner”. Enquanto isso, Cyrilla, embora ainda achasse aquilo condenável, rezava para que ele obtivesse êxito.

Hannah estava reclamando muito de não ter dinheiro para comprar comida. E como a comida era mais necessária para seu pai do que para elas, Cyrilla muitas vezes ficava com o estômago vazio e fraca a tal ponto que não tinha ânimo para nada.

Quando ouvira seu pai bater à porta, por um momento não conseguira levantar-se para ir abri-la. Estava com um medo terrível de que ele tivesse fracassado e estivesse voltando com o quadro ainda embaixo do braço.

Em lugar disso, ele entrara na casa com um grito de alegria. Tomara-a nos braços e dera uma viravolta com ela, como fazia quando era criança.

— Nós vencemos! Nós vencemos, Cyrilla!— Vendeu o quadro? — perguntara Cyrilla, sem fôlego e um

pouco estonteada.— Sim, desde que o príncipe o queira. E o comerciante está

absolutamente certo de que ele o comprará. Ele quer um Lochner em sua coleção e Isaacs está muito impressionado.

— Eu quero o dinheiro já! — dissera rispidamente Hannah da porta da cozinha.

— Bem, você terá de esperar, mulher — respondera Frans Wyntack. — Ou então comprar fiado.

— O senhor sabe que não farei isso. Se o quadro não for pago

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nas próximas vinte e quatro horas, nós todos estaremos enterrados. Escute o que eu digo.

Voltara para a cozinha e batera a porta.Cyrilla e seu pai haviam se entreolhado, depois riram

baixinho como dois conspiradores.— Está tudo bem — explicara ele. — Para dizer a verdade,

Isaacs ficou tão impressionado com o Lochner que me deu algumas libras por conta.

— Oh, papai! Por que não disse antes? O senhor aborreceu Hannah desnecessariamente.

— Eu ia comprar um pouco de comida como surpresa, mas não pude resistir à tentação de voltar para casa e contar-lhe o que aconteceu.

Cyrilla sorrira.Era bem próprio dele comportar-se de maneira tão infantil.

Em certo sentido, ela podia compreender, pois ele vivia em um mundo de fantasia e era isso que levara sua mãe a amá-lo.

A mãe amava-o tanto a ponto de sentir prazer em fazer por ele sacrifícios que nenhuma outra mulher teria feito.

Mas Cyrilla afastara esse pensamento da cabeça e dissera, em tom prático:

— Dê-me o dinheiro, papai. Eu vou comprar comida. Sei exatamente o que Hannah deseja para um bom jantar.

Frans Wyntack havia ficado muito contente em deixá-la fazer o que sugerira.

Enquanto ela se dirigira para as lojas que ficavam logo depois da esquina da miserável rua em que viviam, ele se encaminhara para o estúdio e começara a pintar o que acreditava que seria a sua obra-prima.

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CAPÍTULO II

— Realmente, milorde, nada mais posso lhe dizer — falou Solomon Isaacs, estendendo as mãos em um gesto expressivo.

O marquês, com sua figura imponente, olhou severamente para o marchand.

— Você me disse — falou ele — que o proprietário do Van Dyke quer permanecer no anonimato e isso eu posso entender. Ao mesmo tempo, deve compreender que não posso aconselhar Sua Alteza Real a comprar um quadro que não tenha uma história digna de confiança. — Fez uma pausa e acrescentou, em tom muito sério: — Pode ter sido roubado ou mesmo ser uma falsificação.

O comerciante soltou uma exclamação que era quase um grito de protesto.

— Eu tenho minha reputação a preservar, milorde, e posso lhe assegurar que, depois de vender obras de arte durante anos a verdadeiros conhecedores, sou capaz de perceber uma falsificação a quilômetros de distância.

O marquês não ficou impressionado com esse protesto.Sabia que Isaacs, embora tivesse boa reputação no mercado,

não era um dos mais importantes comerciantes de Londres. Ao mesmo tempo, tinha conhecimento de que o judeu era considerado esperto, inteligente e entendido no que se referia a pinturas.

— Você tem algum outro quadro dessa mesma fonte?Houve apenas uma ligeira pausa, antes que Solomon

respondesse:— Não, milorde, esse é o único.Afirmou isso em tom convincente, mas o marquês sabia que

não falava a verdade.Procurando ganhar tempo, olhou em volta da loja, que ficava

em uma travessa da Bond Street.Pendurados nas paredes, havia diversos quadros que não

tinham o menor interesse para o marquês, pois sabia que eles não atrairiam nem um rápido olhar do príncipe de Gales.

Havia também diversas telas no chão, empilhadas ao lado das paredes, e ainda uma coleção de molduras.

Caminhou até a pilha de telas mais próxima.— Mostre-me essa — ordenou.Isaacs apressou-se em obedecer, virando as telas para a luz

que vinha da porta e de uma janela necessitada de limpeza. Depois, lançou-se à conversa habitual dos vendedores de quadros:

— O colorido deste é extraordinário… olhe para a textura… 18

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as pinceladas… a luz nos olhos do modelo.O marquês já ouvira tudo aquilo tantas vezes que nem

prestou atenção ao que estava sendo dito. Simplesmente decidiu que a maioria dos quadros era sem valor ou sobre temas que nunca apreciara e não os compraria por mais bem pintados que fossem.

A primeira pilha de telas acabou e ele passou a examinar outra.

Aconteceu a mesma coisa. Isaacs às vezes segurava um quadro por tanto tempo, enquanto o elogiava, que o marquês precisava fazer um gesto de recusa para que ele mostrasse outro.

Finalmente, quando a vontade do comerciante se esgotou, o marquês insistiu:

— Voltemos agora à minha pergunta inicial. Que mais sabe a respeito do Van Dyke?

— Que posso dizer? — perguntou Solomon, em tom quase desesperado. — Já disse a Vossa Senhoria tudo quanto sei a respeito.

— Então descubra mais. Sua Alteza Real não aceitará o quadro enquanto não estiver melhor informado.

O marquês falou rispidamnte e dirigiu-se para a porta. Então, como esperava. Isaacs seguiu-o. suplicando-lhe:

— Vou fazer todo o possível, milorde, mas não posso fazer o impossível. Vou tentar, prometo-lhe que vou tentar!

— Não demore muito — disse o marquês.Ia retirar-se, mas a voz de Isaacs mais uma vez o impediu de

sair.— Há uma coisa, milorde, mas eu não gostaria de mencioná-

la.— Que é?— O vendedor está desesperado por receber o dinheiro. De

fato, ela me perguntou …— Ela?:A exclamação do marquês foi como um tiro de pistola.

Enquanto falava, viu, pela expressão do judeu, que este percebeu ter cometido um lapso.

Houve um momento de silêncio.— Você disse “ela”! — observou o marquês, vagarosamente.

— Está me dizendo que o quadro pertence a uma dama?— Ela procurou-me ontem — admitiu Isaacs. — Disse que seu

pai, dono do quadro, está muito doente e que precisam do dinheiro para que ele possa ter assistência médica adequada.

O marquês teve a impressão de que as palavras eram arrancadas do homem, mas ignorava que Isaacs estava embaraçado porque, não apenas não desejava revelar a fonte de

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onde obtivera o quadro, mas também porque achava que o marquês não ficaria bem impressionado com o endereço da dama.

Mal vestida, ela chegara a pé e sozinha, o que revelara a Isaacs, antes mesmo que ela falasse, que não estava exagerando ao dizer que precisavam do dinheiro.

Sendo um comerciante esperto, percebera que a dama poderia ser forçada a aceitar pelo quadro menos do que pedia e assim ele obteria um lucro maior.

Tinha a incômoda impressão de que o marquês, por quem sentia o maior respeito como homem de negócios, seria capaz de atrapalhar a transação, se descobrisse de onde vinha o quadro.

De fato, seus temores concretizaram-se logo, quando o marquês disse:

— Penso, Isaacs, que eu gostaria de me encontrar com essa dama e conversar a respeito do quadro que está vendendo. Ela certamente seria capaz de me dizer mais do que você.

— Acho que isso seria impossível, milorde — disse Isaacs, rapidamente demais para convencer o marquês.

— Por quê? — perguntou ele, embora já conhecesse a resposta.

— Não sei o endereço dela, milorde.— Então, como pretende pagá-la?— Ela ficou de vir aqui. amanhã.— A que horas?— Não me disse, milorde. O marquês pensou.— “Acha que, se lhe pedisse o endereço, ela lhe daria? —

perguntou finalmente.— Duvido, milorde. Tenho a impressão de que é como me

disse o cavalheiro que me trouxe o outro quadro…— Que outro quadro?lsaacs estava ficando confuso. Disse consigo mesmo que isso

geralmente não lhe acontecia; mas o marquês dominava-o e ele estava também ansioso demais por fazer o negócio. Isso era sempre um erro.

Todos os comerciantes sabiam muito bem que o dinheiro que recebiam das compras do príncipe de Gales era geralmente pago por um dos amigos dele.

No caso das pinturas, o marquês de Fane obsequiara Sua Alteza Real numerosas vezes. O dinheiro que lsaacs obtivera da venda do Lochner fora entregue por um lacaio com a libre do marquês e o recibo estava em nome dele.

— Parece que me disse há pouco — falou o marquês vagarosamente — que este era o único quadro que lhe veio dessa

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fonte.— Foi um engano — admitiu Solomon. — Lembro-me agora

que o cavalheiro que me trouxe o quadro de que Vossa Senhoria gostou e que Sua Alteza comprou, deu-me o mesmo endereço que essa dama. Eu não havia percebido isto antes.

O marquês sabia muito bem que era mentira, mas deixou passar.

— Qual era o nome dele?— Eu dei minha palavra de que não revelaria isso, milorde, e

seria falta de ética de minha parte fazê-lo.— Então qual era o endereço dele?— Tenho meus princípios, milorde. Eu não gostaria que

minha reputação fosse prejudicada. Como digo muitas vezes… minha palavra é minha garantia.

O marquês parecia aborrecido, quando disse:— Sua história está ficando cada vez mais confusa. O quadro

de Stefan Lochner que vendeu a Sua Alteza Real há seis meses atrás veio segundo você, de uma coleção particular e você sabia muito pouca coisa a seu respeito.

— É isso mesmo, milorde.— Agora, esse quadro a respeito do qual você se mostra

extremamente misterioso parece ter vindo da mesma fonte.— Eu me confundi, milorde, porque desta vez fiz negócio com

uma jovem dama e antes foi com um cavalheiro.— Ela disse que era seu pai?— Sim, sim, milorde. Foi o que ela disse.— Ele está doente?— Sim, milorde.— Ela está desesperada por dinheiro?— Está, milorde.Havia um brilho de triunfo nos olhos do marquês, embora

lsaacs não o notasse.Tinha a desagradável impressão de que se comportara como

um tolo. Como já havia pensado antes, era muito difícil negociar com o marquês.

— Tenho uma sugestão a lhe fazer — disse vagarosamente o marquês. — Comprarei este quadro pelo preço que está pedindo, que, sei tão bem quanto você, é uma importância um tanto exagerada, mas só com uma condição… que me dê o endereço onde o dinheiro será levado. Não há necessidade do nome, de modo que não precisará romper sua palavra, que parece significar tanto para você.

Havia um tom de sarcasmo na voz do marquês, de que lsaacs não gostou.

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O comerciante hesitava, porque tinha medo, não de ofender o vendedor do quadro, mas do que o marquês pudesse descobrir.

O homem que lhe vendera o Lochner parecia um cavalheiro, embora estivesse um pouco fora de moda e fosse obviamente de origem estrangeira. Mas viera receber o dinheiro e só depois de pagar-lhe é que lsaacs pensara que talvez fosse vantajoso descobrir se ele tinha outros quadros para oferecer. Afinal de contas, agradar o príncipe de Gales era a ambição de todos os comerciantes do país.

Embora não tivesse demonstrado, lsaacs ficara contentíssimo quando a moça lhe trouxera o Van Dyke.

Como parecia pobre e insignificante, não lhe prestara atenção a princípio, quando entrara na loja, um pouco hesitante, carregando uma tela.

Estava certo de que ela nada tinha de importante a lhe oferecer e sempre achava boa tática obrigar as pessoas que o procuravam a esperar até se sentirem nervosas e ansiosas.

Quando perguntara à mocinha, um tanto agressivamente, o que desejava, ficara surpreendido pelo tom suave e melodioso de sua voz.

Ficara ainda mais surpreendido, e muito agradavelmente, quando viu o que ela lhe oferecia.

Afora isso, não prestara particular atenção à aparência da moça. Como era um dia frio e úmido, ela vestia uma capa comprida, feita de tecido caro, mas surrada e fora de moda. Tinha um capuz que puxara sobre o rosto.

Na ocasião, só tivera olhos para o quadro. Percebera imediatamente, não só que era um Van Dyke, mas que era um exemplar particularmente belo do artista.

Era impossível não reconhecer as dobras habilmente pintadas do manto da madona, que lhe lembravam uma pintura que vira dois anos antes, quando fizera uma cansativa, mas compensadora viagem a Munique.

Naturalmente, sabia muito bem que Van Dyke pintara centenas de quadros, inclusive retratos e uma série de magníficas cenas bíblicas.

Isaacs admirava Van Dyke mais do que qualquer grande artista e sempre desejara ter uma de suas pinturas para vender.

Aquilo era uma resposta a uma de suas maiores ambições e ele mal pudera acreditar em sua sorte, quando olhara o quadro que a mulher de capa lhe trouxera.

— Onde arranjou isto?— Pertence a meu pai. Ele lhe vendeu um quadro… há pouco

tempo.

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— Que quadro?— Era de… Stefan Lochner.A moça parecia gaguejar um pouco, mas Isaacs quase soltara

um grito de alegria.O Lochner agradara tanto ao príncipe de Gales, que o

marquês de Fane o pagara sem discutir.Agora tinha outra obra-prima da mesma fonte e dizia consigo

mesmo que o príncipe não poderia deixar de ficar encantado com aquele exemplar realmente brilhante do trabalho de Van Dyke.

Achara, porém, que seria um erro mostrar à vendedora como estava exultante. Conseguira observar, em tom casual:

— Suponho que tem autorização de seu pai para vender este quadro?

— Sim… naturalmente.Havia um tremor na sua voz e Isaacs não Compreendia que

Cyrilla se sentia humilhada por imaginar que ele pensava que ela havia roubado o quadro.

— Nesse caso, eu fico com ele e espero encontrar um comprador em um período de tempo razoável.

— O senhor… o senhor não poderia comprá-lo imediatamente? Isaacs sacudira a cabeça.

— Raramente faço isso. Quanto está pedindo por ele?Pensava que ela talvez não fizesse idéia do valor do quadro,

mas Cyrilla pedira, ainda hesitante, uma importância razoável, embora abaixo do valor de um Van Dyke no mercado.

— Duvido que eu consiga isso.— Poderia tentar, por favor? É muito importante que meu pai

receba o dinheiro… o mais depressa possível.Dívidas de jogo, tenho certeza, pensou Isaacs.Isso, imaginava ele, explicava por que o outro quadro

precisara ser vendido.Aqueles cavalheiros eram sempre iguais, jogando fora seu

dinheiro nas mesas de pano verde e, quando tinham uma maré de azar, deixando suas famílias quase sem uma migalha para comer.

— Vou ver o que posso fazer — dissera ele —, mas nunca é bom ter pressa.

Cyrilla prendera a respiração. Depois dissera, sentindo-se envergonhada por precisar se humilhar:

— Não seria possível adiantar-me só um pouco de dinheiro? Meu pai precisa de remédios… e é necessário pagar o médico.

Por um momento, Isaacs sentiu-se quase automaticamente inclinado a recusar. Depois, um pouco de compaixão que não sabia possuir foi despertada pela magra figura a seu lado. Talvez porque a qualidade musical da voz dela o comovera de maneira que não

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esperava, pôs a mão no bolso.— Não sei por que estou violando minhas regras para

agradá-la — disse, desculpando-se de sua generosidade —, mas aqui estão cinco libras. Naturalmente descontarei isso, e também a minha comissão do que conseguir pelo quadro.

Enquanto falava, pôs cinco soberanos de ouro na mão enluvada de Cyrilla.

— Obrigada… muito obrigada — disse ela. — É muita bondade sua. Eu o procurarei dentro de dois dias… isto é, quarta-feira para ver se já conseguiu vender o quadro.

— Deve supor que sou mágico, se pensa que posso vendê-lo tão depressa assim! Mas venha, se quiser, e gostaria de ter o seu endereço. Se tiver mais alguma coisa da mesma espécie para vender, pode trazer ou eu mesmo irei buscar.

Falou, esforçando-se por disfarçar sua própria avidez.Um Lochner… agora aquilo!Tinha certeza de que o príncipe de Gales acharia o Van Dyke

irresistível.Ficara tanto tempo pensando no que havia acontecido que

quase se esquecera de que o marquês estava esperando.Agora, para consternação sua, percebeu que o nobre saía

pela porta da loja.— Milorde! Milorde! — gritou.— Se não está interessado em minha proposta — disse o

marquês — eu posso compreender. Mandarei alguém da casa do príncipe devolver-lhe o quadro.

— Não, milorde! Não, por favor, ouça-me! — implorou Isaacs. O marquês parou na calçada.

Seu faetonte esperava por ele, com os dois fogosos cavalos que o puxavam ansiosos por partir.

— Então? — perguntou, em tom categórico.— É… Queen Anne Terrace, 17, Islington, milorde! — Quando subia em seu faetonte, o marquês prometeu:— Você receberá o dinheiro do Van Dyke amanhã de manhã.O criado soltou os cavalos que segurava e saltou correndo

para a parte traseira do alto veículo. O marquês partiu e Isaacs, com um profundo suspiro, voltou para dentro de sua loja.

Tinha a desagradável impressão de que cometera um erro, mas que alternativa havia? Queen Anne Terrace, na parte pobre de Islington, não era a espécie de endereço onde se pudesse encontrar uma obra-prima do tipo do Lochner ou do Van Dyke.

Isaacs estava mais ou menos convencido de que havia nos quadros algo peculiar, que devia ter investigado antes de oferecê-los ao príncipe de Gales.

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Achava que o cavalheiro que dissera ser dono do Lochner era autêntico, mas a mulher parecia diferente.

Nenhuma dama de respeito iria sozinha a Bond Street. Nenhuma carregaria um quadro com suas próprias mãos.

Quando ela deixava a loja, após ele ter obtido seu endereço com alguma dificuldade, Isaacs pensou que o quadro poderia ter sido roubado de alguém no país e que o roubo poderia ter sido comunicado à polícia.

Um comerciante mais prudente e talvez mais rico teria feito investigações, mas Isaacs estava com pressa não apenas de receber mas também de agradar ao príncipe de Gales.

O primeiro quadro que lhe vendera fora um verdadeiro triunfo, mas uma venda não era suficiente, embora tivesse pelo menos assegurado sua entrada em Carlton House.

Só quando o faetonte desapareceu é que disse consigo mesmo:

— Eu deveria ter dado a Sua Senhoria um endereço falso, pois então ele seria obrigado a me procurar novamente.

Sentiu que o marquês percebera que ele estava mentindo e era irritante ser derrotado por alguém mais esperto.

— Sua Senhoria é esperto demais, essa é a verdade, resmungou ele.

E o marquês, naquele momento, estava de fato encantado com sua própria esperteza. Conseguira a informação que desejava e sabia que agora não poderia esperar; precisava iniciar a investigação pois já estava extremamente intrigado.

Como a vida tinha poucos mistérios para ele, o marquês estava alerta como um cão de caça e fez seus cavalos correrem através do movimentado tráfego que encontrou a caminho de Islington.

Aquela parte de Londres fora elegante na metade do século anterior, mas decaíra muito.

As casas estavam agora necessitadas de pintura e em seus elegantes balcões de ferro fundido havia roupas secando. Muitas bandeiras das portas estavam quebradas e tapadas com trapos.

Queen Anne Terrace continha construções de vários formatos, tamanhos e períodos, e o marquês demorou algum tempo para descobrir que o número dezessete era uma casa, no fundo da qual fora construída uma estranha estrutura que parecia ser o estúdio de um artista.

Enquanto seu criado corria para segurar os cavalos, ele soltou as rédeas e, descendo para a calçada, caminhou até uma porta. Ergueu a aldrava de bronze que, para surpresa sua, estava bem polida.

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Não houve resposta. O marquês pensou que talvez sua viagem tivesse sido inútil e não conseguisse decifrar seu enigma tão facilmente quanto imaginara.

Quando erguia a aldrava para bater novamente, a porta se abriu e uma voz perguntou:

— Esqueceu de novo sua chave, Hannah? Depois houve um momento de silêncio.Cyrilla fitava o marquês, surpreendida, pois esperava ver

Hannah diante da porta.O marquês olhava para ela com um espanto que por um

momento o deixou sem fala.Os cabelos loiros de Cyrilla mostravam sua silhueta contra a

luz do fim do corredor, que parecia uma espécie de auréola, enquanto as paredes escuras emolduravam-na e faziam-na parecer tão etérea e irreal quanto a Madona de Lochner.

Vários segundos ou várias horas poderiam ter se passado enquanto se olhavam. Depois Cyrilla recuperou a voz primeiro:

— Desculpe — pediu ela. — Pensei que fosse minha criada, que saiu para fazer compras… e penso que o senhor deve ter vindo à casa errada.

Sua voz, pensou o marquês, era exatamente o que teria esperado da Virgem dos Lírios. Quando respondeu, teve a impressão de que estava sendo quase incoerente:

— Não, não… eu pretendia vir aqui para descobri-la.— Para… descobrir-me?Não havia dúvida de que Cyrilla não compreenderia o que

estava dizendo, o que não era de surpreender.O marquês tirou da cabeça seu alto chapéu.— Posso entrar? Preciso falar com a senhorita.Os olhos de Cyrilla arregalaram-se. Depois, com um gesto

hesitante, quase involuntário, olhou para trás, como se procurasse proteção.

— Asseguro-lhe que não lhe causarei mal algum — disse o marquês, com um leve sorriso — e me retirarei no momento em que desejar. Mas seria difícil conversarmos em pé aqui na porta.

Enquanto ele falava, Cyrilla percebeu que duas pessoas que passavam estavam fitando o marquês, sem dúvida surpreendidas por verem alguém tão rico em um bairro tão pobre como aquele.

— Sim… naturalmente — disse ela, com a voz tremendo um pouco. — Por favor… entre. Meu pai está doente e receio que não possa recebê-lo.

Enquanto falava, pensou rapidamente qual poderia ser a razão da visita daquele cavalheiro e perguntou a si própria se, por sorte ele não teria visto um dos quadros de seu pai e desejado

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comprá-lo. Era algo que ela muitas vezes imaginava e seria maravilhoso se se tornasse realidade.

Seu pai pintara durante muitos anos e seus quadros estavam à venda em diversas lojas, não em uma das grandes, como aquela à qual levara o Van Dyke, mas nas lojas menores de objetos de arte, que abundavam em Islington.

Sabia que pessoas à procura de um bom negócio com obras de arte visitavam freqüentemente aquelas lojas, na esperança de descobrir um artista que pudesse se tornar famoso da noite para o dia e valorizar rapidamente o que haviam adquirido.

O marquês entrou no acanhado corredor, que seus largos ombros e sua elegância tornavam ainda mais estreito do que já era.

Cyrilla abriu uma porta do lado esquerdo e introduziu o marquês na sala de estar.

Era uma sala pequena, mas mobiliada com bom gosto, embora não tivesse nada de grande valor. As cortinas bem-feitas, embora de tecido simples, juntavam-se com as paredes e combinavam com as almofadas sobre o pequeno sofá e as duas elegantes cadeiras.

Quase que instintivamente, o marquês procurou quadros e viu que havia apenas marcas onde tinham estado pendurados.

Depois, quando seus olhos se voltaram para a moça que o fitava, pensou que estivesse sonhando, pois pensara ser impossível existir o modelo da Virgem dos Lírios.

Ela era tão bela, que mal podia acreditar que não fosse uma figura saída dos seus sonhos.

Suas feições eram delicadas, seus olhos grandes e expressivos, a tal ponto que ele achou que tivera razão em pensar que personificava uma balada de amor medieval, tocada ao som da música de uma espineta.

Ela é adorável, incrivelmente adorável! disse consigo mesmo.Depois percebeu que a olhava fixamente e que havia um leve

rubor em suas faces.— Quer sentar-se, senhor? — perguntou ela, apontando para

uma das poltronas.O marquês aceitou e Cyrilla sentou-se à sua frente.Usava um vestido de musselina muito simples, sem fitas ou

enfeites, mesmo assim, revelava as suaves curvas de seu corpo e o vestido lhe parecia extremamente apropriado.

Ela poderia ser a própria Virgem, pensou o marquês, muito jovem, inocente e intocada, antes que o anjo a visitasse.

O marquês pensou que nunca vira olhos tão expressivos e com tanta beleza espiritual, a ponto de ser difícil descrevê-los mesmo para si próprio.

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Depois, percebendo que Cyrilla estava esperando que falasse, disse:

— Eu sou o marquês de Fane. Estou aqui porque soube que a senhorita é a dona de um quadro atribuído a Van Dyke.

Esperava que ficasse surpreendida, mas não imaginava tanto rubor em seu rosto, parecendo a aurora quando desponta no horizonte.

Ao mesmo tempo, os olhos dela tinham um ar tão aflito, que deu ao marquês a impressão de estar sendo cruel com uma criança ou um animalzinho indefeso.

Os lábios da moça se moveram, mas não emitiram som algum. Depois de um momento, o marquês disse, com uma voz que seus amigos teriam achado espantosamente delicada:

— Soube seu endereço por intermédio de um comerciante, Isaacs, que levou a Sua Alteza Real, o príncipe de Gales, o quadro que a senhorita deseja vender.

Cyrilla apertou os dedos e o marquês notou que suas mãos eram lindas, do tipo das que Van Dyke gostava de pintar.

— Não deve ficar espantada ao saber que eu imediatamente reconheci que o rosto do Van Dyke era idêntico ao da Madona de Lochner, vendida por Isaacs ao príncipe há alguns meses — observou o marquês.

Cyrilla baixou os olhos, embaraçada. Seus cílios eram muito pretos, em contraste com suas faces, que haviam perdido a cor e se tornado pálidas.

— Eu… eu sinto muito — disse ela depois de um momento, com voz trêmula.

— Se a senhorita não tivesse posado para aqueles dois quadros — disse o marquês — penso que eu teria sido enganado pelo Van Dyke, da mesma maneira que Sua Alteza Real e eu o fomos pelo Lochner.

— Foi… ignorância minha — murmurou Cyrilla, com uma voz que ele mal pôde escutar.

— Sua? — perguntou o marquês. — Foi a senhorita que os pintou?

— Não, não, é claro que não! — respondeu Cyrilla rapidamente. — Foi papai… mas, por favor… não faça nada a ele. Ele está muito doente… Penso que não viverá por muito tempo.

Havia um tremor em sua voz que deixava transparecer sua aflição e o marquês respondeu, em voz baixa:

— Posso lhe assegurar que não vim aqui para prejudicá-la, mas para tentar entender como dois pintores tão diferentes e, que viveram separados por cento e cinqüenta anos, podiam ter pintado o mesmo belo rosto e aparentemente usado o mesmo modelo. —

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Notou que Cyrilla parecia embaraçada por seu galanteio e prosseguiu: — Por favor, explique. Eu não estou sendo meramente curioso. Fascina-me saber como tudo aconteceu.

Os olhos de Cyrilla ergueram-se em direção aos dele.— O senhor deve estar muito chocado. Eu sabia que era

errado… muito errado… mas não havia nada… absolutamente nada mais que papai pudesse fazer, quando mamãe estava desesperadamente doente e ele não tinha dinheiro sequer para comprar a comida dela. — O marquês nada disse e, depois de um momento, Cyrilla repetiu, em tom suplicante. — Por favor… entenda…

Havia algo de muito comovedor no tom desesperado de sua voz e o marquês respondeu:

— Eu quero entender, por isso vamos começar pelo começo. Quer me dizer primeiro seu nome?

— É Cyrilla… Wyntack.— E seu pai é pintor?— Sim. O nome dele é Frans Wyntack.— Ele não é inglês?— Não, ele é meio austríaco e meio flamengo.— Isso, naturalmente, explica sua aptidão. Não estou fazendo

um elogio de cortesia, srta. Wyntack, digo que ele pinta tão bem que é difícil acreditar que não conseguisse um bom dinheiro pelos seus quadros.

— É o que eu também pensei muitas vezes, mas infelizmente, ninguém quer os quadros que ele pinta. — O marquês parecia intrigado e ela explicou: — Penso que meu pai está à frente de seu tempo. Ele acredita que a luz deve ser retratada de certa maneira sobre o objeto que escolheu, mas aqueles que compram pinturas querem que tudo seja… convencional.

O marquês era suficientemente versado em arte para compreender o que ela tentava dizer.

— Eu gostaria de ver as pinturas de seu pai, mas por favor, explique-me por que ele pintou essas falsificações, que executou com tanta perfeição e tanto brilhantismo.

— É uma coisa que papai fez só porque mamãe estava doente. Ele aprendeu isso há muitos anos, quando estava em Colônia, e, como não tinha dinheiro, copiou um ou dois quadros da coleção de sir George Beaumont, alterando-os o suficiente para dar a impressão de que eram outras pinturas do mestre que escolhera, e… vendeu-os.

— Por muito dinheiro?— Não, por muito pouco, porque os levou às lojas aqui do

bairro.

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— Que aconteceu depois?— Mamãe piorou — disse Cyrilla, em voz baixa — e o médico

disse que só remédios especiais poderiam salvá-la… Papai estava desesperado, por isso começou a… Virgem dos Lírios. — Fez uma pausa. Depois como o marquês nada dissesse, continuou: — Ele o pintou enquanto estava fazendo o que chamava de “ganha-pão”. Guardou na memória o fundo da tela e a figura da madona, pois havia pintado um quadro de Lochner antes, com o homem que lhe ensinara a pintar falsificações, quando estava em Colônia. Mas não podia pintar o rosto sem um modelo.

— Então, a senhorita posou para ele.Ele viu a infelicidade nos olhos de Cyrilla e percebeu que

fora contra todos os seus princípios que ela participara daquela farsa.

— É um dos quadros mais belos que já vi — comentou ele. Viu a luz voltar aos olhos de Cyrilla.

— Fico muito contente em saber que pensa isso. Porque era tão belo é que cheguei a pensar que justificava o fato de papai estar… fingindo que fora pintado por Stefan Lochner.

— Não creio que Lochner, ou qualquer outro artista, pudesse ter feito melhor.

— Mamãe morreu antes que ele estivesse terminado e papai não tocou no quadro durante muito tempo. Voltou a pintar… seus próprios quadros.

— Como disse antes, eu gostaria de vê-los.— Vou mostrar-lhe um deles. Cyrilla levantou-se e o marquês pediu:— Se vai ao estúdio de seu pai, eu poderia ir junto?Ela pareceu um pouco assustada pelo pedido, depois disse:— Se é seu desejo, milorde…O marquês abriu a porta para ela, que caminhou à sua frente

e subiu um curto lance de escada.O estúdio fora construído no andar de cima. Era bastante

vasto em comparação com o resto da casa e tinha uma grande janela, que era o melhor que um artista poderia desejar.

Havia a habitual confusão de cavaletes, um trono de modelo, telas lambuzadas de tinta ou com algumas linhas de carvão de desenhista.

Em um cavalete estava um quadro que Cyrilla pusera lá, depois de tirar o Van Dyke em que Frans Wyntack estava trabalhando, antes de ficar doente.

Era como se sutilmente ela o convidasse a pintar, tão logo estivesse suficientemente bom para deixar seu quarto.

Estava praticamente acabado e, de fato, só restava um pouco

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do fundo para ser pintado.O marquês olhou-o e compreendeu exatamente por que era

invendável. Não tinha nada do que o comprador comum de obras de arte fosse capaz de entender.

No entanto, o marquês percebeu que o quadro tinha valor e que Wyntack tentara se expressar por um meio que ninguém antes havia usado.

Como modelo, escolhera algumas laranjas sobre uma mesa, ao lado de um vaso de flores.

Pintara-as com grandes manchas de tinta, captando a luz em brilhantes pinceladas, que no momento pareciam nada ter a ver com os objetos, mas que os intensificavam, quando olhadas de perto.

O marquês ficou olhando o quadro e, enquanto o fazia, percebeu que Cyrilla o fitava, esperando desesperadamente que ele compreendesse.

Sentiu também que ela tinha medo que risse dos esforços de seu pai.

— Tenho a impressão — disse ele finalmente — que seu pai está tão à frente de seu tempo que, como a senhorita disse, as pessoas não compreendem o que ele tenta expressar. No entanto, posso dizer sinceramente que considero este trabalho muito inspirado, senão genial!

Cyrilla soltou uma expressão de alegria, e depois disse:— Gostaria que papai pudesse ouvi-lo. Ninguém até hoje

disse uma coisa dessas a ele. Penso que isso talvez compensasse todas as decepções, todos os anos em que se considerou um fracassado.

— Essa é a última coisa que eu diria de seu pai, mas suponho que a senhorita sabe que todos os grandes artistas, sejam músicos, pintores ou escritores, precisam lutar para ser entendidos. Geralmente, só depois de morto o artista, seu trabalho é apreciado.

Enquanto falava, pensou que estava demonstrando muito pouco tato, ao perceber que Cyrilla sabia exatamente o que aconteceria a seu pai.

— Penso — disse ela — que, se soubesse que seria compreendido e apreciado no futuro, papai talvez se sentisse… muito feliz. Quando ele ficar bom, eu lhe contarei o que o senhor disse.

— Seu estado não permite que fale com ele agora? — perguntou o marquês.

Cyrilla sacudiu a cabeça.— Ele está inconsciente há três dias. O médico veio vê-lo hoje

de manhã e disse que nada poderia fazer…

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Falava com uma vozinha tensa, que indicou ao marquês que ela tentava controlar seus sentimentos.

— Eu gostaria de comprar este quadro — disse ele —, se me permitisse.

Esperava que Cyrilla se mostrasse contente, mas ela respondeu rapidamente:

— Não… é claro que não! — Quando ergueu seus olhos castanhos, explicou, com o rubor subindo às faces, — O senhor sabe muito bem que papai tentou… enganá-lo com o Van Dyke. Para compensar, poderia lhe dar o quadro.

— A senhorita sabe que eu não aceitaria tal generosidade nestas circunstâncias. Sejamos francos, srta. Wyntack, a senhorita precisa do dinheiro e eu gostaria de pagar-lhe porque vejo neste quadro o valor que outras pessoas não percebem.

Ela sacudiu a cabeça, indecisa, e ele prosseguiu:— Penso que orgulho é uma coisa que a senhorita deveria

dispensar no momento.— Não é exatamente orgulho — disse Cyrilla. — É porque

mamãe ficaria muito chocada por papai ter pintado… falsificações, embora estivéssemos precisando desesperadamente de dinheiro.

— Penso que sua mãe teria compreendido. Agora, como preciso discutir com o príncipe de Gales o que faremos em relação ao Van Dyke e eu sei que a senhorita precisa do dinheiro imediatamente, vou insistir em pagar-lhe quinze libras por este quadro e pretendo levá-lo comigo para casa.

— Tudo isso! — exclamou Cyrilla.O marquês teria desejado oferecer-lhe mais, mas tinha a

impressão de que ela não aceitaria. Por isso, escolhera uma importância, que sabia, pareceria considerável para ela, ao passo que para ele nada representava.

— Não gosto de discussões — disse ele — e nunca me envolvo nelas, se possível. Por isso, vai me permitir que faça o que eu desejo neste caso.

Tirou algumas notas do bolso, enquanto falava, e colocou-as sobre a mesa. Depois tirou o quadro do cavalete.

— Vou mostrar isto a Sua Alteza Real — explicou. — Será muito interessante ver qual a sua reação… se será a mesma que a minha.

— Talvez ele fique muito zangado quando souber que o Lochner é falso — disse Cyrilla, com voz fraca. — Suponha que ele decida processar papai?

— Providenciarei para que ele nada faça nesse sentido. Não se preocupe, srta. Wyntack. E, se me permitir, eu a visitarei amanhã para saber como seu pai está. Espero sinceramente que

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esteja bem melhor.— Eu também. Obrigada… obrigada por ter sido tão

generoso. Ergueu os olhos para o marquês enquanto falava e ele sentiu

um impulso quase irresistível de tomá-la nos braços e ver se ela era mesmo real.

— Como passa seus dias? — perguntou ele, de repente.Ela pareceu surpreendida diante da pergunta, mas depois de

um momento, respondeu:— Hannah, minha criada, e eu não podemos sair de casa ao

mesmo tempo. É preciso que alguém fique cuidando de papai.— E quando seu pai está bem de saúde?— Eu ainda cuido dele — respondeu ela, com um pequeno

sorriso. — Ele nunca deixaria seu estúdio se eu não o forçasse a levar-me a passear e, embora ele odeie isso, a acompanhar-me às lojas, quando temos algum dinheiro.

— Parece uma vida estranha para uma pessoa tão encantadora quanto a senhorita.

Falou sem pensar e percebeu que a assustara. Havia um ar de apreensão nos olhos dela, quando disse rapidamente:

— Acho que vou dar este dinheiro a Hannah. Ela vai ficar contente, muito contente por eu ter vendido um quadro… e poderemos comprar as coisas de que papai precisa.

Enquanto falava, Cyrilla encaminhou-se para a porta, mas o marquês dirigiu-se deliberadamente para a grande janela do estúdio. Do lado de fora ficavam os quintais de Islington, mas ele olhava sem vê-los.

Havia muita coisa que desejava dizer, mas não sabia como expressá-las. Sabia que Cyrilla queria que ele fosse embora, mas desejava ficar.

Estranhamente, sentia que, se a deixasse, talvez nunca mais voltasse a encontrá-la, e, no entanto, agora que a descobrira, não deveria ter medo do futuro.

Não sabia bem o que estava procurando, apenas sentia a mente tão confusa que não conseguia pensar com clareza.

A Virgem dos Lírios estava ali. Seu rosto, que ele olhara centenas de vezes quando o príncipe de Gales comprara o quadro, o rosto que o perseguira em sonhos e que pensava pertencer a uma mulher morta muito tempo antes, estava incrivelmente vivo! E o nome dela era Cyrilla.

Sabia, sem se voltar, que ela olhava para suas costas e se perguntava por que ele não se retirava, sentindo-se em conseqüência um pouco contrafeita.

Mas seria isso verdade?

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O marquês sabia no fundo de seu coração que conhecia Cyrilla desde o começo dos tempos. Ela sempre estivera em sua mente e em seus ideais.

Então, disse a si mesmo que estava sendo ridículo e absurdamente sentimental. Se dissesse aquilo em voz alta, ela pensaria que estava louco, e com toda razão.

Com esforço, virou-se da janela.— Preciso deixá-la, srta. Wyntack — falou, em tom

indiferente —, mas como já disse, voltarei amanhã. Há alguma coisa em que eu possa ajudá-la? Precisa de algo especial?

Era uma pergunta quase de cortesia, mas que invariavelmente provocava a mesma resposta; e as mulheres que ele já conhecia bem respondiam: “Só você!” As outras, com as quais estava iniciando uma relação, mostravam-se tímidas e diziam: “Ficarei emocionada com qualquer coisa que você me der!”

A resposta de Cyrilla foi muito diferente:— O senhor foi tão bondoso… tão generoso. Só desejaria ter

as palavras certas para lhe agradecer. Talvez, quando estiver melhor, papai possa pintar alguma coisa de que o senhor realmente goste e então nós lhe daremos o quadro como símbolo de gratidão.

— Eu gostaria muito, especialmente se fosse um retrato seu. Cyrilla ficou imóvel por um momento e o marquês percebeu

que ela tivera uma idéia inesperada.— A senhorita tem um retrato seu? — perguntou.— Não… exatamente, mas tenho uma pintura que gostaria de

lhe mostrar.Foi até um canto do estúdio e tirou de uma gaveta duas telas

pequenas.Quando, com elas na mão, caminhou em direção ao marquês,

este teve a impressão de que ela flutuava em vez de andar, e quase esperava ver uma nuvem branca debaixo de seus pés.

Ela se aproximou e ergueu as pinturas timidamente, como se não estivesse segura da impressão que lhe causariam.

O marquês tomou a primeira das mãos dela e viu o rosto de Cyrilla pintado contra um fundo azul. Seus cabelos estavam aureolados de luz, da maneira que Frans Wyntack tornara peculiarmente sua.

Viu que era, de fato, uma impressão, não um retrato acabado, mas os olhos estavam lá, com sua estranha luz sonhadora.

— É perfeito! — exclamou o marquês. — É exatamente igual à senhorita!

Ela soltou uma pequena risada, que ele não compreendeu,

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depois entregou-lhe a outra tela.Agora ele via que esta era um esboço da Virgem dos Lírios

de Lochner. No rosto, a expressão era idêntica, e a luz vinha por trás, como na pintura acabada, sugerindo, por algumas brilhantes pinceladas, uma espécie de glória celestial que não estava em volta da Madona, mas dentro dela.

O marquês olhou de uma tela para a outra.— Ambas são notavelmente semelhantes. Ela soltou outra risadinha.— A primeira não sou eu.— Não é a senhorita?— Não, é mamãe. Como vê, sou muito parecida com ela.— Acho difícil acreditar que haja duas pessoas tão bonitas no

mundo!— Mamãe era muito mais bonita do que eu. Papai pintou isso

quando a conheceu.— Acho que a senhorita não gostaria de separar-se desta tela

— disse o marquês, com relutância —, por isso não vou oferecer-lhe coisa alguma. Aceito com o maior prazer este retrato seu.

— Agrada-me muito que tenha gostado dele e assim não me sentirei tão endividada.

Com esforço, o marquês conteve as palavras que desejava dizer e observou apenas:

— Penso que não podemos continuar repetindo agradecimentos recíprocos, mas falaremos de nossa gratidão amanhã.

— Há só uma coisa que desejo… perguntar-lhe — falou Cyrilla, em voz baixa.

— Que é?— O que vai fazer a respeito dos quadros? Eu sinto tanto

medo do que possa acontecer a papai. Seria difícil esperar até… amanhã.

— Dou-lhe minha palavra de honra de que não lhe acontecerá nada de desagradável. De fato, talvez se sinta um pouco mais feliz se eu lhe disser que comprei o Van Dyke pelo preço pedido e que não contarei a Isaacs que é uma falsificação.

— Quer dizer que… que pensa mesmo assim?— Eu sempre digo o que penso — respondeu o marquês. —

Por isso, não se preocupe mais e diga a sua criada, quando ela voltar, que vá comprar tudo quanto seu pai precisa. — Viu a excitação na fisionomia de Cyrilla e acrescentou: — Se ele não estiver melhor amanhã, eu lhe mandarei meu próprio médico. Não posso deixar que a senhorita fique preocupada dessa maneira.

Novamente ele percebeu que havia dito mais do que

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pretendia e, sem esperar pela resposta de Cyrilla, abriu a porta do estúdio e começou a descer a estreita escada.

Quando chegou à porta da frente, o marquês virou-se para tomar a mão de Cyrilla na sua.

— Permita-me dizer com toda sinceridade que estou encantado em conhecê-la, srta. Wyntack.

Ela fez uma mesura, mas não olhou para ele, que se absteve de beijar-lhe a mão.

Quando se viu do lado de fora, na calçada, virou-se a fim de despedir-se novamente, antes de subir em seu faetonte. Então viu que Cyrilla não estava, como esperava, olhando-o da porta da rua, mas lá se encontrava em seu lugar uma criada idosa, que o olhava severamente, com indisfarçável hostilidade.

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CAPÍTULO III

— Srta. Cyrilla!A voz era aflita e imediatamente Cyrilla acordou, erguendo a

cabeça do travesseiro.— Que foi, Hannah?Ela sabia a resposta antes que a criada falasse. Rapidamente,

levantou-se da cama e correu para fora do quarto.A porta do quarto de Frans Wyntack ficava ao lado e, quando

entrou por ela, Cyrilla sabia, sem que lhe precisassem dizer, que seu pai estava morto.

Hannah cruzara as mãos dele sobre o peito. Assim deitado, ele parecia, sob a luz pálida da manhã, um dos reis ou guerreiros que Cyrilla vira com tanta freqüência nas tumbas de uma igreja.

Agora morto, havia desaparecido o brilho de seus olhos e o sorriso de seus lábios, e Frans Wyntack, com suas belas feições, parecia uma figura quase clássica. Porém, era diferente da lembrança que Cyrilla guardara dele.

Seu pai sempre fora alegre e brincalhão, herança de seu sangue austríaco. Mas havia nele um lado sério que, como sua pintura, vinha de seus ancestrais flamengos.

Olhando para ele, Cyrilla pensou em como era bonito e entendeu melhor do que nunca por que sua mãe o amara com tanta paixão.

Havia alguma coisa irremediavelmente romântica em Frans Wyntack, e que o tornava diferente dos outros homens. Ele vivia em um mundo próprio, de fantasia e imaginação. Via tudo com olhos de artista e as coisas comuns pareciam não atingi-lo, por mais que Cyrilla e sua mãe tivessem de enfrentar sérios problemas de pobreza e desconforto.

Ele era como o príncipe de um conto de fadas, pensou Cyrilla.

Ajoelhou-se, então, ao lado da cama e tentou rezar. Inevitavelmente, veio à sua lembrança que seu pai e sua mãe agora estariam juntos e para eles nada mais teria importância.

Cyrilla tinha certeza de que o amor deles era eterno e eles também acreditavam que estariam juntos para sempre. Mas infelizmente, isso a deixava completamente sozinha.

Ali, ajoelhada, sabia que havia temido esse momento desde que sua mãe morrera.

A partir de então, Frans Wyntack parecia não estar vivendo realmente, mas apenas existindo. E Cyrilla, observando-o, muitas

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vezes pensava que ele só estava vivo quando pintava.Sabia que era para ele uma agonia dormir no quarto que

ocupara com sua esposa, agora que ela não estava mais lá.À noite, muito depois de ter se deitado, ela o ouvia andando

pelo estúdio e sabia que fazia isso porque não aceitava se deitar sozinho.

Papai agora está feliz, pensou Cyrilla.Depois, sabendo como ia sentir falta dele, as lágrimas

começaram a rolar por suas faces.

O marquês desceu a escada de sua casa em Berkeley Square e entrou na sala de desjejum.

O mordomo e dois lacaios esperavam para servi-lo. Ao contrário de seus contemporâneos, não tinha o hábito de beber pela manhã. Tomava apenas uma refeição, servida numa baixela de prata e acompanhada de café.

O hábito de beber, entre os janotas que seguiam o exemplo do príncipe de Gales assumira tais proporções, que a maioria deles não conseguia se levantar antes do meio-dia e só se sentiam dispostos muito mais tarde.

O marquês, porém, acordava sempre às sete horas da manhã, mesmo quando dormira tarde na noite anterior. Quando as ruas de Mayfair mal estavam despertando para o novo dia, ele passava por elas a caminho do parque, a fim de exercitar um de seus cavalos. Era uma hora em que gostava de estar sozinho, para refletir. E percebia agora que estava pensando no mesmo assunto que ocupara sua mente durante quase toda a noite.

Depois de deixar Cyrilla, dirigira-se a Carlton House e, enquanto esperava o príncipe, entrara na sala de música.

Havia sido com novo interesse que examinara o quadro da Virgem dos Lírios.

Achava que nenhum artista poderia ter retratado o adorável rosto de Cyrilla com maior precisão e delicadeza. O quadro despertava no marquês sentimentos antigos, mas que naquele instante eram tão fortes que pareciam inteiramente novos:

Como é possível existir uma criatura tão perfeita e tão bela? perguntara-se a si mesmo. Como fui afortunado em encontrar o modelo da Virgem dos Lírios, tão pura e inocente quanto parecia no quadro!

Fora então que, repentinamente, tomara a decisão de conquistar o amor de Cyrilla.

Quando deixara Queen Anne Terrace, pretendia contar ao príncipe exatamente o que havia descoberto, pois sabia que isso o interessaria muito.

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Agora, percebia que se o fizesse, o príncipe ia querer imediatamente conhecer Cyrilla. E isso era uma coisa que ele precisava evitar a todo custo.

Entre as numerosas mulheres que Virgílio conhecera e que o haviam entretido, nunca encontrara outra tão bela quanto a Madona de Lochner e não imaginara que ela pudesse existir em carne e osso.

Mas Cyrilla existia, naquela pequena e pobre casa de Islington, e ninguém sabia disso, além dele. E vai continuar assim, decidira.

Tinha dado as costas para o quadro, quando o príncipe entrara na sala.

— Boa tarde, Virgílio! — exclamara Sua Alteza Real. — Estou encantado em vê-lo! Que notícias me traz?

— Receio que nada de muito sensacional, sir. Estive com Isaacs, mas ele se mostrou muito evasivo. Não vai ser fácil arrancar dele a informação que queremos.

— Eu temia que acontecesse isso — falara o príncipe, decepcionado.

— Para tranquilizá-lo, paguei-lhe o Van Dyke.— Você fez isso? Foi muita generosidade sua, Virgílio.

Naturalmente, fico muito agradecido.— Ao mesmo tempo — prosseguira o marquês —, eu estava

pensando se não poderia me emprestar o Van Dyke, ou o Lochner, para que continue a pesquisar. Eu gostaria de mostrar o quadro a algumas pessoas. Mas penso que seria um erro revelar que Vossa Alteza está envolvida nas investigações que pretendo fazer.

— Sim, sim, naturalmente, compreendo sua atitude! — concordara o príncipe. — Leve aquele que quiser, mas não se esqueça de que o desejo de volta.

O marquês havia ficado tão contente com a concordância do príncipe que, quase sem querer, olhara encantado para o quadro de Lochner.

— Naturalmente — interviera o príncipe —, preferiria que você levasse o Van Dyke, que ainda não está pendurado.

O marquês ficara decepcionado, mas não o demonstrara.— Levarei o Van Dyke, sir — dissera ele —, e espero não

demorar muito para devolvê-lo.— Naturalmente, depois de ter resolvido o mistério a

respeito deles — acrescentara o príncipe.— É claro!— Quer jantar comigo?O príncipe havia feito a pergunta sem muita esperança de

que seu convite fosse aceito. Mas, para sua surpresa, o marquês

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respondera:— Aceito com o maior prazer, sir.O príncipe olhara para ele interrogativamente.— Você não hesitou. E embora eu possa estar errado, meu

instinto me diz, que essa noite não foi das mais emocionantes.O marquês sorrira.— Vossa Alteza é muito perspicaz,O príncipe enfiara seu braço no do amigo.— Todos nós temos nossas desilusões — dissera ele,

consolando-o.— É verdade — concordara o marquês, com um sorriso

amargo. Não se havia estendido sobre o assunto, pois, embora soubesse que agradaria ao príncipe, se o fizesse, era princípio seu nunca falar das mulheres com quem se envolvia.

O príncipe tinha razão ao pensar que a noite anterior fora um fracasso.

O marquês previra que lady Abbott o divertiria e se mostraria tão provocante quanto o vestido que usara na festa em Devonshire House.

Infelizmente, tudo o que aconteceu foi de uma vulgaridade tal que o marquês começara a se aborrecer logo depois de ter chegado à mansão de lady Abbott

Os criados esperavam por ele no hall e, quando subia a escada até o primeiro andar, acompanhado por eles, sabia que ia encontrar luzes discretas, um boudoir cheio de flores e sua anfitriã usando um penteado díáfano.

— Espero que não se importe, milorde, se jantarmos aqui esta noite — havia dito ela. — Estou um pouco cansada e preciso repousar.

O olhar que dirigira a ele, com seus olhos puxados e seus cílios negros, desmentia suas palavras. Mas era muito claro o que pretendia.

Era como a representação de uma peça, na qual ele já representara o principal papel masculino milhares de vezes, de modo que conhecia as falas com perfeição.

O próprio jantar à luz de velas, servido por criados que se movimentavam em silêncio, parecia ter o mesmo sabor de farsa. Quando ficaram sozinhos, desceu sobre eles um silêncio cheio de significação, e o marquês sentira um impulso quase irresistível de agradecer a hospitalidade de lady Abbott e retirar-se.

Se não o fez, foi porque achava que não seria capaz de suportar uma cena de suscetibilidades feridas, protestos e provavelmente até lágrimas.

Em lugar disso, desempenhara o papel que lhe cabia e

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voltara, recriminando-se por ter sido tolo a ponto de esperar algo diferente.

Evidentemente, eu tenho queda pelas coisas falsas, dissera consigo mesmo, na carruagem que o levava de volta a Berkeley Square.

Depois, seus pensamentos tinham se voltado de novo para Cyrilla e ele havia entendido que fora por causa dela, e só por causa dela, que achara a noite tão banal e as atrações de lady Abbott tão pequenas.

Deitara-se pensando naquele rosto pequeno e lindo, com seus olhos enormes e uma expressão de pureza e espiritualidade como ele nunca vira antes em qualquer mulher que conhecera.

Agora só desejava que as horas passassem depressa, para poder voltar a Islington e ver novamente Cyrilla. Mas não poderia procurá-la às sete da manhã, e seu cavalo, um belo garanhão difícil de controlar, esperava por ele em casa.

Quando o montou, cavalgou rapidamente em direção ao parque.

A frescura do ar e o ligeiro nevoeiro que ainda pairava sobre o Serpentine lembravam-lhe Cyrilla.

Ela era tão jovem quanto a manhã, tão fresca quando os narcisos, dourados arautos da primavera, crescendo sob as árvores.

De volta a Berkeley, o marquês trocou de roupa e, após tratar com seu secretário de diversos problemas referentes a suas propriedades, viu-se, finalmente livre para seguir a Islington o mais depressa possível.

Ia tão absorvido em seus pensamentos que nem reparava nos cumprimentos de seus conhecidos e nos olhares ávidos das damas. Enquanto ele passava, elas pensavam que nenhum homem poderia ser mais atraente. Porém, sabiam que essa atração era desastrosa para aquelas que a ela sucumbiam.

O marquês chegou a Queen Anne Terrace em tempo recorde e, descendo de seu faetonte, bateu vigorosamente à porta do número 17.

Não houve resposta por algum tempo e ele perguntou a si próprio se, como no dia anterior, Cyrilla não estaria sozinha, tendo sua criada saído para fazer compras.

Depois, ouviu-se o som de um trinco sendo puxado e a porta se abriu algumas polegadas. Quem apareceu foi a criada, que olhou para ele com a mesma expressão desaprovadora do dia anterior.

O marquês entendeu logo que ela era daquela espécie de criada idosa superior, que existia geralmente nas casas muito

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ilustres.— Bom dia — disse o marquês, diante do silêncio da criada.

— Desejo falar com a srta. Cyrilla Wyntack.— A srta. Cyrilla não está em casa. As palavras foram proferidas com firmeza e a criada teria

fechado a porta, se o marquês, segurando-a com a mão, não a impedisse de fazê-lo.

— Se ela saiu, eu esperarei.— A srta. Cyrilla não está recebendo visitas — disse a criada,

num tom de voz que sugeria que ele devia ter compreendido o que significava “não estar em casa”.

— Penso que ela me receberá — insistiu o marquês, confiante.

— Não, milorde.— Eu insisto.Foi preciso um pouco de força para abrir mais a porta. A

criada recuou um passo, com a mesma expressão hostil que ele vira antes em seu rosto.

O marquês esperou, cônscio de estar usando sua autoridade, como fizera antes, sem palavras.

Como se estivesse derrotada, a criada disse finalmente:— Se Vossa Senhoria esperar na sala de estar, eu direi à srta.

Cyrilla que está aqui.O marquês pôs o chapéu sobre uma cadeira e, quando a

criada lhe abriu a porta, entrou na sala de estar. Parecia muito pequena e ele notou, como não pudera fazer no dia anterior, que o tapete estava desfiado em alguns lugares e as capas das cadeiras eram cuidadosamente remendadas.

Disse consigo mesmo que não era esse o ambiente apropriado para uma jovem tão bela e tão perfeita.

Ouviu passos do lado de fora da porta; depois ela entrou.Um olhar dela bastou para mostrar ao marquês o que havia

acontecido.Percebeu que ela havia chorado e pensou que nenhuma

mulher poderia chorar e continuar sendo tão bela quanto ela. Os olhos enormes de Cyrilla ainda estavam úmidos de lágrimas e seu rosto muito pálido.

Ela é como um lírio que foi lavado pela chuva, pensou o marquês.

Por um momento, ficaram se olhando. Depois, de repente, sem que nenhum dos dois pudesse explicar, ela se viu nos braços dele, com o rosto escondido em seu ombro. Ele sentiu que todo o corpo dela estava tremendo.

— Eu sei o que aconteceu — disse o marquês, com voz

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profunda.— Papai… está morto! Ele… morreu… dormindo.As palavras foram ditas em voz muito baixa e trêmula, mas o

marquês pôde ouvi-las.— Foi um choque para a senhorita — disse ele gentilmente

—, mas precisa ser corajosa.— Estou… tentando — respondeu Cyrilla —, mas tudo parece

ter acabado, porque ele… não está mais aqui.— Penso que é isso o que todos nós sentimos quando

perdemos alguém que amamos.Cyrilla não respondeu e ele percebeu que ela estava lutando

contra as lágrimas.— Já tomou providências para os funerais?— Não… Hannah disse que procuraria um agente funerário…

mas talvez eu devesse fazer isso.— A senhorita nada fará — disse o marquês. — Deixe por

minha conta. Seu pai será enterrado da maneira que a senhorita quiser. Eu não deixarei que se preocupe com isso e se sinta ainda mais infeliz do que já está.

Cyrilla soltou um pequeno suspiro e ele entendeu que era de alívio.

— O senhor é… muito bondoso. É fraqueza de minha parte… sentir-me tão incapaz.

O marquês percebeu que Cyrilla era uma criança que ele precisava proteger, mas ao mesmo tempo estava muito consciente de que o corpo macio que tinha em seus braços era o de uma mulher.

— Vamos, sente-se — disse ele. — Eu vou dizer à sua criada que cuidarei de tudo.

— Mas nós… não devíamos incomodá-lo com isso.Ela levantou a cabeça do ombro dele e ergueu os olhos. O

marquês pensou que as lágrimas em seus olhos e suas faces tornavam-na ainda mais bonita do que quando entrara na sala.

— A senhorita não está me incomodando — respondeu. — Está simplesmente me permitindo fazer o que desejo, ajudando-a.

Por um momento ela permaneceu quieta, depois disse:— O senhor é… muito bondoso. — E afastou-se dele, para

sentar-se no sofá.Com qualquer outra mulher, o marquês teria pensado que

essa ação era deliberada, para convidá-lo a sentar-se ao lado dela mas, sabia que os pensamentos de Cyrilla estavam inteiramente voltados para seu pai falecido.

Um momento depois, sentou-se ao lado dela, não muito perto, e nem a tocou.

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— Existe aqui perto uma igreja que a senhorita freqüente? — perguntou.

— Hannah e eu vamos aos domingos à Igreja de St. Mary — respondeu ela.

— Falarei com o vigário de St. Mary e arranjarei para que seu pai seja enterrado no cemitério da igreja.

— Isso é o que eu queria — disse Cyrilla. — Mas, por favor… poderia pedir que ele seja enterrado ao lado de mamãe?

— Sua mãe está enterrada lá?— Sim.— Então estou certo de que não haverá dificuldades. Deixe

tudo por minha conta.Antes de deixar a casa, o marquês esteve com Hannah na

cozinha, e, embora tivesse a impressão de que ela estava prevenida contra ele, não lhe pareceu muito hostil quando soube que ele cuidaria dos funerais.

Contudo, perguntou:— Mas por que vai se dar a esse trabalho, milorde?— Por uma única razão: porque, como patrono das artes, eu

percebo que o sr. Wyntack era um artista extremamente talentoso — respondeu o marquês.

— É uma pena que outras pessoas não tenham pensado assim enquanto ele estava vivo — observou Hannah, causticamente.

— Penso que a senhora compreende que o sr. Wyntack não pintava a espécie de quadros que pudesse ter sucesso entre as pessoas deste bairro.

O marquês ouviu-a fungar, mas viu que ela entendia a exatidão do que ele havia dito.

Pôs algum dinheiro sobre a mesa da cozinha.— Compre para a srta. Cyrilla tudo quanto ela precisar.Hannah hesitou e, pensando que ela ia recusar, o marquês

disse rapidamente— Penso que vocês duas estão necessitadas de alimentação

e, como já disse, eu apreciava o sr. Wyntack como artista.Hannah sabia que isso era uma desculpa para poder ajudar

Cyrilla, mas, no momento, estava inclinada a aceitá-la.— Obrigada, milorde — disse, em tom não muito cordial,

embora fizesse também uma mesura.O marquês sorria quando se retirou para dirigir-se à casa

paroquial de St. Mary.O vigário estava em casa e o marquês lhe disse a razão pela

qual o procurava.— Não me lembro, milorde, de ter conhecido o sr. Wyntack

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— falou o clérigo —, mas sua filha vem à igreja com a criada todos os domingos e eu sepultei a mãe dela há dois anos.

— Posso ver o túmulo? — perguntou o marquês.— Naturalmente, milorde.O vigarário levou-o, por uma porta lateral, até o cemitério da

igreja.— O túmulo é muito simples — explicou ele. — Imagino que

não tinham recursos para coisa melhor.O marquês não respondeu. Estava lendo a inscrição no

túmulo:“Lorraine. Amada por Frans Wyntack e Cyrilla. Nascida em

1761. Falecida em 1800”.As palavras na lápide são estranhas, pensou o marquês,

provavelmente pelo fato de Wyntack ser estrangeiro. Mas o que notou particularmente foi que a mãe de Cyrilla tinha apenas trinta e nove anos ao morrer.

E era muito bonita, pensou, lembrando-se do quadro que Cyrilla lhe mostrara. Tão bonita quanto a filha! Gostaria de ter podido ver as duas juntas.

Mas, se Lorraine estava morta, Cyrilla estava viva e o marquês sabia que agora, nunca mais deveria perdê-la.

Acertou com o vigário que o enterro seria vinte e quatro horas depois. Sabia que nada podia ser mais perturbador do que se estar em uma casa com um cadáver. E como estava disposto a pagar, os agentes funerários que procurou mostraram-se dispostos a fazer tudo quanto desejasse.

O marquês tinha muito tato e também se preocupava muito com a reputação de Cyrilla, de modo que decidiu não comparecer aos funerais. Era improvável que alguém tomasse conhecimento da morte de um obscuro e desconhecido artista de Islington, mas nunca se poderia ter certeza disso.

Por isso, providenciou o féretro e uma carruagem para Cyrilla e Hannah, mandou uma profusão de flores caras, mas permaneceu afastado até tudo haver terminado.

Frans Wyntack foi sepultado com um opulência que nunca conhecera em vida e seu túmulo foi coberto de flores que lhe davam uma beleza que certamente ele apreciaria.

Quando voltavam para Queen Anne Terrace, Cyrilla disse a Hannah:

— Eu não podia acreditar, quando assistia à cerimônia, que era papai que estavam enterrando. Sentia que ele… já nos deixara e estava feliz com mamãe.

Hannah não respondeu, mas enxugou uma lágrima no canto do olho.

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— Lembra-se de que, quando mamãe estava viva — prosseguiu Cyrilla —, ela sempre parecia saber quando ele estava chegando, mesmo antes que se abrisse a porta. Levantava-se e ia para o hall, depois corria em direção a ele, gritando: “Frans, oh, Frans, senti tanta falta sua. Você se cuidou?”

A voz de Cyrilla embargou-se e ela acrescentou, como se falasse consigo mesma:

— Talvez mamãe… pense que não cuidamos dele direito.— Fizemos o melhor que pudemos, srta. Cyrilla — afirmou

Hannah gravemente.— Você foi maravilhosa, mas ele não precisaria ter apanhado

o resfriado que o fez tossir durante todo o mês passado. Deveríamos ter feito com que ele vestisse o capote, antes de sair para ver os comerciantes.

— Ele não ouvia a gente!— Só mamãe — lembrou Cyrilla.— Não adiantaria censurar-se, srta. Cyrilla — observou

Hannah. — Fizemos o possível e, doente como estava nestas últimas semanas, ele não gostaria de viver assim. Mexia-se e virava-se a noite inteira, muitas vezes falando com sua mãe, como se ela estivesse lá.

— Talvez… estivesse — murmurou Cyrilla. Chegaram à casa.É extraordinário como a casa parece apenas uma concha

vazia e por isso, eu nada tenho a fazer, pensou Cyrilla.Subiu até o estúdio para olhar as telas de Frans Wyntack,

apanhando aquela que estava quase concluída e tentando compreender o que ele desejara retratar com suas estranhas manchas de luz.

O marquês compreendeu, falou consigo mesma.Como se o fato de pensar nele o tivesse feito aparecer, ouviu

naquele momento sua voz no corredor e depois seus passos na escada.

Sentiu o coração pular e, quando ele entrou na sala, demonstrou a alegria em seus olhos.

Ele parecia muito grande e firme. Devido à sua presença, a casa não parecia mais vazia e Cyrilla não se sentia mais perdida e sozinha.

— Hannah contou-me que tudo correu bem — disse ele.— Foi uma cerimônia muito bonita e as flores estavam lindas!

Obrigada! Muito obrigada; — respondeu Cyrilla.— Fico contente que tenha gostado das flores.— Foram… para papai — disse ela, com leve tom de censura

na voz.— Se acreditarmos na Igreja — respondeu o marquês —,

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existem muitas flores onde ele está agora, por isso as flores que são oferecidas nos funerais destinam-se, como sempre achei, para os que ficaram aqui.

— Para quem quer que fossem… foi muita… bondade. O marquês olhou em volta do estúdio.— Há alguma coisa que queira mostrar-me? — perguntou.— O senhor comprou o único quadro que papai havia quase

terminado e aquele era o melhor. Não creio que existam outros que valham sequer alguns xelins.

— Vamos ser francos um com o outro — disse vagarosamente o marquês. — Comece contando-me como pretende viver.

Ele viu pela expressão de Cyrilla que essa era a pergunta que ela temia e que devia estar fazendo a si própria desde o momento em que seu pai morrera.

Houve silêncio e, enquanto esperava a resposta, o marquês pensou que a luz vinda da janela fazia com que os cabelos dourados dela dessem a impressão de uma auréola.

— A senhorita é muito bonita! — acrescentou ele, em voz baixa. —Deve compreender que não é seguro viver sozinha, sem um homem para protegê-la.

— Eu tenho… Hannah.— Não pode passar o resto de sua vida sozinha com uma

criada — ponderou o marquês. — E, por mais sensata que ela seja, não posso acreditar que sua prosa seja particularmente interessante.

Um sorriso tirou a mordacidade de suas palavras e, quase sem querer Cyrilla também sorriu.

— Hannah se preocupa comigo. Está sempre me dizendo o que não devo fazer, mas é difícil conversar com ela por muito tempo.

— Foi isso que pensei. Conheço bem as Hannahs deste mundo. São muito valiosas, mas como disse, não são particularmente inspiradoras.

— Então, com quem poderei conversar, agora que papai está… morto?

— Era sobre isso que eu queria lhe falar — respondeu o marquês. E como ela o olhasse com expressão interrogativa, acrescentou: — Não quero atemorizá-la e parece que nos conhecemos há muito pouco tempo, mas isso não é verdade. A senhorita está em minha mente e em meu coração há um ano, desde que vi pela primeira vez a Virgem dos Lírios.

Surgiu nos olhos dela uma expressão de espanto e, em seguida, um ar de abandono que fez o marquês dar um passo à frente e tomá-la nos braços.

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Cyrilla não resistiu e o marquês percebeu que ela achava tão inevitável quanto ele que estivessem juntos.

Com ela era diferente de qualquer outra mulher que já conhecera, Virgílio foi muito delicado. Sentia uma espécie de veneração que não podia explicar, por sua beleza e pelas vibrações despertadas antes pela pintura e depois pela própria Cyrilla.

Segurou-a em seus braços, até que, como se fosse um movimento de poesia ou música, segurou seu queixo e ergueu o rosto dela até o seu.

Por um longo momento, olhou-a, antes que seus lábios se encontrassem.

Tudo o que acontecia tinha um toque de sonho, de irrealidade, e também uma magia inconfundível. Sentiu um pequeno tremor passar pelo corpo dela, enquanto desfrutava a doçura de seus lábios.

Ela não sabia que existia um homem assim e, a princípio, não compreendeu os estranhos sentimentos que o marquês lhe despertava e que a dominavam mesmo quando ele não estava presente.

Agora, quando os lábios dele tocaram os dela, entendeu que tudo quanto pedira em suas preces tinha sido atendido, como se a bênção de Deus estivesse naquele beijo como uma luz divina que às vezes a envolvia quando estava rezando.

Os braços do marquês a apertavam, mas seus lábios eram delicados e ternos. Cyrilla sentiu que ele não tomava apenas seu coração, mas também sua alma.

Isto é amor, pensou, amor tão perfeito… tão maravilhoso, que é o que mamãe conheceu e que eu temia nunca encontrar.

Mas acontecera, estava ali e ele era o homem que ela amava, de tal modo que isso enchia o mundo todo.

O marquês ergueu a cabeça.— Minha querida! Você me pertence! Estive procurando-a

em minha vida toda e, agora que a encontrei, não posso perdê-la.— Eu… o… amo! — murmurou Cyrilla, com um fio de voz.— Como eu a amo! Como eu a amo, minha querida!Enquanto falava, sentiu que as palavras eram verdadeiras e

que nunca antes as proferira porque seriam uma mentira. Mas o que sentia naquele momento era amor, o amor que nunca conhecera.

O marquês compreendeu que sem ter percebido isso, ele era um idealista à procura de perfeição no amor, como a havia procurado na arte e em tudo o mais que fazia. E agora, com incrível sorte, encontrara-a e Cyrilla era sua.

Como se compreendesse o que ele estava pensando, Cyrilla

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disse:— Como posso entender… isto? Nunca pensei… nunca

sonhei, quando o vi diante da porta, que isto fosse acontecer.— E que pensa você que sinto? Eu olhava para seu rosto no

quadro pendurado na sala de música, em Carlton House, e pensava com desespero que você havia morrido há séculos! Mas você é real, minha querida! Está aqui, perto de mim, e nada poderia ser mais maravilhoso!

Cyrilla soltou uma exclamação:— E se papai nunca tivesse… pintado aquele quadro falso?

Se você nunca o tivesse visto? Você… nunca teria vindo me procurar.

— Era o destino nos encontrarmos, e agora tudo quanto temos a fazer, minha querida, é agradecer aos deuses que nos reuniram e fazer tudo para nunca nos separarmos.

— Isso… é o que eu desejo — sussurrou Cyrilla. Fez uma pequena pausa, depois acrescentou: — Não será errado, tendo papai morrido há tão pouco tempo… eu me sentir… tão maravilhosamente… tão arrebatadoramente feliz?

— Nada do que você possa fazer é errado — respondeu ele. — E eu também estou feliz como nunca esperei ser.

Sentaram-se em um velho sofá, que estava encostado em uma parede do estúdio.

O marquês abraçou Cyrilla e disse:— Você sabe muito pouca coisa a meu respeito, querida, e eu

preciso contar-lhe que tenho uma reputação bastante discutível no que se refere a mulheres. Mas isso era só porque eu estava sempre à sua procura, mas sendo desiludido uma vez após outra.

— Isso não importa. Mamãe dizia que, quando a gente ama… o mundo inteiro fica diferente, da noite para o dia. A gente não se interessa pelo passado, só pelo futuro.

— Sua mãe estava certa. Por isso, vamos esquecer meu passado e nos preocuparmos só com nosso futuro, quando poderemos estar juntos.

— O destino deve… ter mandado você, exatamente quando eu mais precisava. Quando mamãe morreu, pensei que nada mais seria igual e que eu seria sempre infeliz. Mas sabia que era necessária a papai e tentei ser feliz por causa dele. Mas agora…

— Agora?— Agora, quando eu pensava estar completamente sozinha…

a não ser por Hannah… e quando tudo era amedrontador, você apareceu! Como poderei agradecer a Deus o bastante, por… tê-lo mandado para mim?

— Nós agradeceremos juntos — disse o marquês, sorrindo. —

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E agora, querida, vamos planejar o futuro, pois não tenho o menor desejo de que você continue aqui. — Olhou para ela, depois prosseguiu: — Eu estava pensando ontem que este não é o meio apropriado para você e desejo muito dar-lhe um ambiente melhor.

— O ambiente importa? — perguntou Cyrilla. — Penso que, onde quer que estivesse, você seria você mesmo… tão forte e dinâmico que todos o notariam.

— Você me lisonjeia. Minha força nada é em comparação com a beleza que a torna tão extraordinária. Você percebe como é bonita?

— Eu sempre me comparei a mamãe — respondeu Cyrilla, muito séria —, e ela era tão bonita que eu me sinto… muito inferior em relação a ela.

— Não precisa se sentir inferior — interrompeu o marquês.— Mas eu quero que você me admire. — Essa é uma palavra fraca para expressar o que sinto por

você. Desejo dar-lhe diamantes que enquadrem sua beleza, pedras preciosas para seu pescoço, que refletirão as estrelas que brilham em seus olhos.

— Eu gostaria de todas essas coisas, mas só se você quiser que eu as tenha.

— Eu lhe daria o sol e a lua, se fosse possível! Sou um homem muito rico e você terá tudo quanto já desejou, desde que continue a me amar.

— Eu nunca deixarei de amá-lo, se nós… realmente pertencermos um ao outro… e você também me amar.

— Nada mais posso expressar pelas palavras — respondeu o marquês. Então abraçou-a enquanto falava e beijou-a de novo, possessivamente, com mais paixão, até que, como se estivesse acanhada, ela desviou o rosto e escondeu-o no ombro dele. — Eu não queria assustá-la — disse o marquês, como que censurando-se —, mas minha querida, você não é apenas divina e etérea, é também humana. — Apertou-a mais, dizendo: — Não vou levá-la daqui esta noite porque ainda não tenho um lugar pronto para você. Mas amanhã descobrirei uma casa de que você gostará, se possível com um jardim. O verão está chegando e já posso vê-la sentada no meio das flores, embaixo das árvores. Estaremos sozinhos lá e ninguém invadirá o mundo de sonhos que será só nosso, quando estivermos juntos.

— Onde fica essa casa? Ela é sua?— Não, no momento — respondeu o marquês. — A casa da

minha família, que fica em Berkeley Square, onde moro quando estou em Londres, e minha casa ancestral, em Fane Park, no Hertfordshire, são muito bonitas e desejo mostrar-lhe todos os seus

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tesouros, especialmente as pinturas. Mas quero lhe dar uma casa especial, onde eu terei você inteiramente para mim, em um ambiente que será seu e meu, onde nem mesmo meus familiares poderão entrar.

— Parece… maravilhoso, da maneira como você diz, mas…— O que a preocupa?— Eu penso que não estou compreendendo bem a respeito

dessa casa.— Será sua. Eu a darei a você e a escritura será em seu

nome. Aconteça o que acontecer no futuro, você terá um lugar onde viver e dinheiro suficiente para gozar de conforto. — Apertou-a de novo contra seu corpo. — Você é minha, pequena Virgem dos Lírios, e eu cuidarei de você e a protegerei, livrando-a de toda preocupação pelo resto de sua vida. Isso eu juro, minha querida, e nós seremos mais felizes do que quaisquer outras duas pessoas que já tenham vivido desde o começo dos tempos.

Quando terminou de falar, começou a beijá-la e foi impossível pare ela dizer qualquer coisa.

Beijou-a até o estúdio parecer girar em volta dos dois. Em seguida, com um esforço sobre-humano, levantou-se.

— Agora, vou deixá-la, minha querida — disse — Quero que você descanse, porque passou por muita coisa nestes últimos dias.

Cyrilla deixou escapar um pequeno som e, pensando que ela ia pedir-lhe para ficar, o marquês falou rapidamente:

— Se eu não for agora, nada estará pronto amanhã. Tenho muita coisa para planejar e o que pretendo não será fácil, mas as dificuldades estarão lá só para que eu as vença. — Sorriu, enquanto acrescentava: — Tive dificuldade para encontrá-la e para entrar na casa, quando primeiro você e, depois Hannah, tentaram impedir-me. Agora, sinto que sou invencível, porque você me ama e eu a amo.

Levantou-a, beijou-a de novo, depois saiu do estúdio e ela ouviu seus passos descendo a escada.

Um momento depois, ouviu a porta fechar-se atrás dele.Foi então que soltou um pequeno grito, que parecia sair do

fundo de seu ser.

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CAPÍTULO IV

Cyrilla ficou olhando para a porta, como se achasse que o marquês ia voltar ou que ela deveria correr atrás dele.

Depois, com um soluço infinitamente triste, cobriu o rosto com as mãos.

Estava chorando desesperadamente quando Hannah entrou no estúdio.

— Eu estava imaginando isso… — disse Hannah. Depois olhou para Cyrilla e andou em sua direção, perguntando: — Que foi? Que foi que a perturbou?

— Oh, Hannah! Hannah! Como foi que eu… não percebi? Como se precisasse ter alguém para protegê-la, Cyrilla virou-

se para a criada e encostou o rosto em seu peito.A essa altura, chorava desesperadamente e Hannah

perguntou de novo:— Que foi? Por que está nervosa? Você foi tão corajosa no

enterro.— Não é… por causa de papai.— Então, que fez Sua Senhoria? ,Havia agora um tom áspero na voz de Hannah. Segurava

Cyrilla nos braços, como fazia quando ela era criança. Sua expressão era severa e ao mesmo tempo protetora.

— Que lhe disse Sua Senhoria? Conte-me — insistiu Hannah.— Eu pensei que… ele… me amasse.— Ele dava essa impressão!— Eu acreditei… nele. Acreditei que me amava… como eu o

amo. — A voz era quase inaudível, mas Hannah sabia muito bem do que ela estava falando. Antes que pudesse responder, Cyrilla prosseguiu: — Como poderia eu sofrer como mamãe sofreu? Como poderia eu viver aquilo tudo de novo? Não seria capaz de suportar, Hannah… nem mesmo com ele. Eu o amo… eu o amo de todo o coração!

— Aquilo não era amor, srta. Cyrilla, como sabe bem. Não poderia ser amor o sentimento de um cavalheiro que a viu três ou quatro vezes, no máximo. Agora, pare de chorar e escute-me.

Hannah falava, não como falaria uma criada, mas como uma ama. E foi considerando-a assim que Cyrilla fez força para obedecê-la.

Hannah fê-la recuar uns dois passos é sentar-se numa poltrona. Depois, em pé à sua frente, com os braços cruzados, disse:

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— Eu lhe disse, quando sua mãe morreu, que devia ir para o lugar que é seu, mas você não quis ouvir-me.

— Como… poderia eu? Você sabe em que estado se encontrava papai. Eu tinha de ficar com ele. Tinha de ficar. Era o que mamãe teria desejado.

— Bem, agora ele não está mais aqui — disse Hannah —, e eu não aceitarei mais desculpas. Desejava dizer-lhe isto logo depois do enterro, mas Sua Senhoria chegou aqui antes que eu tivesse tido oportunidade.

A simples menção do marquês fez correrem de novo as lágrimas de Cyrilla, que disse em voz quase inaudível:

— Eu… o amo, Hannah… mas não posso fazer… o que ele… pediu.

— Acho que não deve mesmo! — concordou Hannah, indignada. — Ele me enganou, como a enganou, com sua bondade em relação ao enterro do patrão, suas flores e seu dinheiro.

Cyrilla ergueu a cabeça.— Hannah! Você não aceitou… dinheiro dele? Aceitou?— Só algumas libras, srta. Cyrilla, para comprar comida, e

isso é coisa que poderá ser paga facilmente, assim que você fizer o que é certo e direito.

— É… certo e… direito? — perguntou Cyrilla. — Suponha… suponha…

— Não há o que supor! — replicou Hannah rispidamente. — Vou levá-la para Holm House imediatamente. Por isso, pare de chorar e vista sua capa.

— Ime… imediatamente? — gaguejou Cyrilla.— De que adianta esperar? De fato, era isso que eu pretendia

fazer, logo que a senhorita se refizesse.Cyrilla soltou um profundo suspiro.— Não sei… o que dizer, Hannah… e não sei… o que fazer.— Bem, eu faço! E é por isso, srta. Cyrilla, que não teremos

mais discussão. Eu preciso fazer o que é direito e, se não quiser ir comigo, irei sozinha

Cyrilla olhou para ela, com expressão assustada.— Você não vai… me deixar… sozinha. Eu não posso ficar

aqui, no caso de…Ambas sabiam que ela tinha medo de que o marquês

voltasse. Se voltasse, pensava Cyrilla, não seria capaz de recusar-lhe coisa alguma.

Como se compreendesse o que ela sentia, Hannah estendeu a mão e fez Cyrilla levantar-se.

— Vamos. Não há tempo a perder.— Como… você… pode ter certeza? — tentou dizer Cyrilla,

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mas Hannah já havia saído do estúdio e descia pelo estreito corredor em direção a seu quarto.

Voltou um momento depois, com a capa de Cyrilla, que colocou sobre os ombros dela.

— Talvez eu devesse usar… um chapéu — sugeriu Cyrilla, com voz distante.

— Não há necessidade. Você vai assim mesmo, já está ficando frio, agora que o sol começa a baixar.

Depois de prender a capa embaixo do queixo de Cyrilla, começou a descer a escada.

— Nossas roupas… não devemos levá-las?— Teremos muito tempo para mandar buscá-las, se for

preciso. Hannah saiu da cozinha, tirou seu chapéu e seu chalé de um

cabide na porta e vestiu-os.— Espere, Hannah! Preciso de tempo… para pensar! Não

devemos fazer… coisa alguma… de que possamos nos arrepender.— A única coisa de que nos arrependeremos é se ficarmos

aqui. Como disse antes, a senhorita vai para onde deve ir e, por mais que falemos, isso é o certo e é o que se deve fazer.

Saiu para a calçada enquanto falava, e esperou Cyrilla.Vagarosamente, tendo na mão o lenço molhado de lágrimas,

Cyrilla seguiu-a, depois de fechar a porta. Hannah virou a chave na fechadura e guardou-a no bolso do vestido.

Parada na calçada, observou os carros que passavam. Não demorou muito para aparecer uma carruagem de aluguel, com um velho cocheiro dirigindo um cansado cavalo, indiferente e sem fazer muito esforço para procurar passageiros.

Hannah lhe fez sinal e alguns segundos se passaram antes que ele percebesse. Depois, ele fez o cavalo parar.

— Vamos, srta. Cyrilla — ordenou Hannah seriamente. Mergulhada em seus pensamentos, Cyrilla mal tomava conhecimento do que estava acontecendo. Hannah ajudou-a a entrar na carruagem, mas antes de segui-la, disse ao cocheiro:

— Holm House, em Park Lane.Por um momento, o cocheiro pareceu surpreendido, como se

não esperasse um endereço tão importante. Depois, pela primeira vez, levou a mão à aba do chapéu e disse:

— Pois não, minha senhora.Hannah sentou-se ao lado de Cyrilla e durante algum tempo

rodaram em silêncio. Depois, ela disse em voz baixa:— A senhorita precisa mostrar-se amável e lembrar-se de que

não temos outro lugar para onde ir.Cyrilla não respondeu.

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Estava se lembrando de que haveria uma casa à sua espera, se a tivesse aceitado… uma casa com um jardim, onde poderia sentar-se entre flores e árvores, e ficar sozinha com o marquês.

Fechou os olhos e sentiu novamente os lábios dele sobre os seus, quando ele a levara para o paraíso, e pensou que ninguém poderia perder tal maravilha e tal êxtase e continuar viva.

Os beijos dele eram tudo quanto ela sonhava que um beijo deveria ser, e ainda muito mais. Assim como o amor dele era tão emocionante, que realizava todos os seus sonhos e tudo o que imaginara sobre este sentimento.

No entanto, compreendia que aquilo que ele lhe oferecera não era o amor que desejava, e que esperava, mas algo de que fugia com horror.

Devia ter soltado um pequeno suspiro de dor, pois Hannah observou, compreensivamente:

— É duro, srta. Cyrilla. Eu sei disso. Não pense que eu não sofri todos os anos em que estive com sua mãe, vendo-a tornar-se cada vez mais fraca e mais abatida por falta de alimentação, sabendo que ela jogara fora tudo quanto tornava a vida confortável e decente.

— Ela nunca se arrependeu…— Pode ser! E eu não estou dizendo que ela tenha se

arrependido de qualquer coisa por si própria, mas se arrependeu pela senhorita. Muitas vezes me disse: “Esta vida não é apropriada para Cyrilla, Hannah”.

— Eu estava muito feliz com mamãe… e papai — disse Cyrilla, quase em tom de desafio, como se não pudesse tolerar que Hannah criticasse de qualquer maneira o comportamento de sua mãe.

— Sua mãe sabia tão bem quanto eu, que a senhorita deveria ter crianças com quem brincar, festas para ir e pôneis para montar.

— Nada disso era importante, porque eu estava com mamãe. Hannah abriu a boca para falar, depois fechou-a de novo, e

Cyrilla percebeu que ela fazia força para não dizer que sua mãe às vezes mal tomava conhecimento de sua existência.

Desde o começo, soubera que Frans Wyntack era o mundo todo para sua mãe. Tudo quanto ela desejava era ele, e tudo o mais e todos os outros, mesmo sua filha, tinham pouca importância.

Cyrilla não sentia ciúmes, só se sentia abandonada. Era então que saía furtivamente da sala de estar e se sentava na cozinha com Hannah, conversando com ela, vendo-a cozinhar e sentindo que ao menos ali ela era importante.

Sabia que sem Hannah sua vida teria sido muito triste.

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Era Hannah quem a levava para passear, que lhe dava bons livros para ler e, quando tinham um pouco de dinheiro, a levava a concertos. E, em uma ocasião inesquecível, ao teatro, para assistir a uma peça de Shakespeare.

Fora Hannah também que, quando puderam pagar, insistira em que Cyrilla tivesse professores de inglês e francês, além de outras matérias que não conseguia ensinar.

As aulas eram periódicas, mas ao mesmo tempo, como Cyrilla era muito atenta e muito ávida por aprender, vários dos professores lhe davam aulas mesmo quando não eram pagos.

Foi devido inteiramente a Hannah, que sua educação não foi negligenciada, como poderia ter sido.

Agora, apreensivamente, Cyrilla pensava em sua ignorância sobre a vida, exceto aquela que conhecera nos limites da pequena casa em Islington.

Havia sempre sua mãe para conversar quando Frans Wyntack estava ocupado pintando e não queria ninguém no estúdio. Ou quando ele saía para vender suas pinturas.

Sua mãe era tão instruída, que Cyrilla muitas vezes achava que ela poderia ensinar-lhe mais em uma hora do que uma dúzia de professores em um mês.

Sabia falar francês e italiano perfeitamente. Tocava piano e cantava trechos de óperas.

Havia lido livros sobre quase todos os assuntos, e era capaz de dar explicações sobre quadros e arte ainda melhor do que Frans Wyntack.

No entanto, Cyrilla sabia que havia grandes falhas em sua educação e, pela primeira vez desde que se apaixonara pelo marquês, pensou que talvez ele pudesse, com o tempo, achá-la maçante.

Que conhecia ela da vida? E embora ele tivesse dito: “Faremos tudo para nunca nos separarmos”… como poderia acreditar?

Hannah tem razão, pensou com desespero.No entanto, sentiu que as lágrimas subiam a seus olhos e que

era impossível contê-las, impossível falar.Rodaram em silêncio até que as ruas miseráveis deram lugar

a outras mais largas e elegantes. Chegaram a Mayfair e desceram por Park Lane.

Foi então que Cyrilla disse:— Tenho certeza de que estamos cometendo… um erro,

Hannah. Vamos voltar. Se o marquês vier, nós não o deixaremos entrar. Você e eu nos arranjaremos sozinhas.

— E a senhorita pensa que poderá impedir que Sua Senhoria

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entre? — perguntou Hannah.Aquelas palavras foram como um balde de água fria jogado

em seu rosto. Sabia que seria impossível a qualquer uma delas manter o marquês fora da casa e fora de sua vida.

Desesperada, pensou que talvez estivesse sendo tola em lutar contra o homem que amava e abrir mão do paraíso que encontrara em seus braços.

Contudo, mesmo enquanto pensava nele, via sua mãe, magra e emaciada, com os olhos baços, exceto quando Frans Wyntack estava presente; e não poderia aceitar que isso acontecesse com ela própria.

Ademais, em circunstâncias iguais, era pouco provável que o marquês permanecesse com ela.

— Chegamos!A voz de Hannah interrompeu seus pensamentos e Cyrilla

apertou as mãos, num esforço para se controlar.— Deixe tudo por minha conta — disse Hannah rispidamente.

— Lembre-se de que não há alternativa. Isto é o que você tem de fazer e o que sua mãe desejaria pedir-lhe, se pudesse.

O cocheiro, obviamente impressionado pela bela casa onde levara suas passageiras, desceu e abriu a porta para elas.

Cyrilla, porém, lançou-lhe apenas um olhar superficial, antes de seguir Hannah, que, tendo pago o cocheiro, subia os degraus em direção à porta.

Antes que pudesse levar a mão à aldrava, a porta abriu-se e um lacaio, usando uma peruca empoada e uma libre azul-escura e amarela, com botões prateados, apareceu.

— Sua Alteza está em casa? — perguntou Hannah.— Tem uma entrevista marcada, minha senhora?— Queremos ver Sua Alteza — insistiu Hannah firmemente.— Sua Alteza não recebe ninguém que não esteja esperando

— anunciou o lacaio.— O sr. Burton está? — perguntou Hannah.O lacaio pareceu surpreendido pela pergunta e olhou para

trás. Enquanto fazia isso, Hannah entrou no hall.— Vá chamar o sr. Burton, por favor.O lacaio, que era jovem e um tanto inexperiente, ficou

indeciso, quando Cyrilla entrou vagarosamente no hall atrás de Hannah.

Era um aposento grande e escuro, e a luz da tarde entrava por duas janelas de vidro colorido. Cyrilla sentiu um calafrio e percebeu que estava nervosa.

No outro extremo do hall, embaixo da escada, um velho mordomo de cabelos brancos e aparência um tanto pontificai,

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caminhou em direção a elas. Ia perguntar o que estava acontecendo, quando olhou para Hannah e mostrou uma expressão de incredulidade no rosto.

— Boa tarde, sr. Burton — disse Hannah.— Srta. Hannah! Eu não esperava vê-la — exclamou o

mordomo.— Sua Alteza está em casa, não está?Hannah não esperou resposta. Simplesmente virou-se para

Cyrilla e começou a desamarrar sua capa no pescoço.— Está quente aqui, a senhorita não precisará disto.Cyrilla sentia-se como se fosse apenas um bebê nas mãos da

ama e não protestou quando a capa foi tirada e dada ao lacaio, que, tendo fechado a porta da frente, estava parado, ouvindo.

Não havia dúvida de que a aparência de Cyrilla surpreendera o mordomo. Olhou para ela por um longo momento, sem falar. Depois, disse a Hannah, com uma voz que era pouco mais que um sussurro:

— Você a trouxe de volta para Sua Alteza?Hannah respondeu afirmativamente, balançando a cabeça.Os olhos dos dois criados se encontraram e foi como se uma

mensagem de compreensão tivesse passado entre eles, sem necessidade de palavras.

O mordomo virou-se e começou a atravessar o hall. Cyrilla não o teria seguido, se Hannah não tivesse tomado seu braço e a puxado para frente.

Automaticamente, seguiu o velho mordomo até ele abrir uma porta e anunciar, erguendo um pouco a voz:

— Uma senhora deseja ver Sua Alteza.Como se fosse algo que se lembrava de ter feito no passado,

Cyrilla passou pelo mordomo. Depois, quando ouviu a porta fechar-se às suas costas, soube que estava sozinha e que Hannah não a acompanhara.

Do outro lado de uma sala um tanto escura, com paredes forradas de livros, estava um homem sentado em uma poltrona, em frante à lareira.

Por um momento, ele não se moveu, depois virou-se e Cyrilla viu-o repentinamente ficar rígido, como que petrificado.

— Lorraine!Cyrilla mal conseguiu ouvir o nome, mas seu coração

compreendeu.Avançou, sentindo o coração bater descompassadamente.

Seus lábios estavam secos e suas mãos tremiam.Aproximou-se do homem sentado na poltrona, que a

observava, como se fosse incapaz de tirar os olhos dela. Depois, ele

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disse com voz rude:— Você deve ser Cyrilla.— Sim… papai.— Pensei que fosse sua mãe.— Mamãe está morta.— Morta?!As palavras foram pouco mais que um arquejo e Cyrilla

percebeu que a notícia fora um choque para ele.— Quando morreu?— Há dois anos.— De quê?— Ela foi ficando cada vez mais fraca… cada vez mais fraca…

por falta de comida.Se pretendia impressionar o homem sentado na poltrona,

certamente o conseguiu.— Que está me dizendo?— Nós não tínhamos… dinheiro… suficiente para comer

convenientemente.Uma expressão que ela pensou ser de dor apareceu nos olhos

do duque, que disse, um momento depois:— Foi por isso que voltou agora para casa?— Sim, papai.— Por que não veio depois que sua mãe morreu?— Se tivesse voltado, Frans teria se matado… e eu penso que

ela desejaria que eu cuidasse dele.— Que aconteceu a Frans?— Morreu ontem… por isso Hannah me trouxe para o senhor.— Hannah ainda está com você?— Sim… papai. Está lá fora, no hall.— E você realmente pensa que eu a aceitarei de volta, depois

da vida que levou com sua mãe e… aquele homem?A voz do duque tornou-se repentinamente ríspida. Deu a

Cyrilla a impressão do estalar de um chicote e ela perdeu seu autocontrole.

Soltou um grito abafado e correu a lançar-se aos joelhos do homem sentado na poltrona.

— Deixe-me ficar, papai. Por favor… deixe-me ficar com o senhor — implorou ela, atropelando as palavras. — Eu não tenho dinheiro e nem para onde ir a menos que faça o que sei ser errado e que não posso aceitar, embora eu… eu o ame…

Como as palavras trouxessem à sua mente novamente a angústia de perder o marquês, ela rompeu em lágrimas.

Curvou a cabeça, descansou-a sobre os joelhos do duque e chorou desesperadamente, como faria uma criança que tivesse

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perdido a segurança e tudo quanto significava amor e conforto em sua vida.

Depois, sentiu a mão do duque em sua cabeça, afagando seus cabelos, o que era estranhamente confortador.

— Quem é esse homem?Ouviu a voz como se viesse de muito longe e, quando

procurava o lenço que pusera na cintura ao entrar na casa, o duque tirou um fino lenço de linho do bolso e colocou-o em suas mãos.

Era macio e cheirava a lavanda. Cyrilla apertou-o contra os olhos, tentando conter as lágrimas.

— Quer me dizer o que a deixou tão nervosa? — perguntou o duque, em um tom de voz muito diferente daquele que usara antes.

— Eu acreditei que ele dizia a verdade… quando disse que me amava — começou Cyrilla.

Havia um tom de humildade em sua voz, que o duque não deixou de perceber.

— Está dizendo — prosseguiu ele, no mesmo tom delicado — que esse homem não lhe ofereceu casamento.

— Não…— Não é surpreendente, considerando as circunstâncias.O duque conteve-se para não falar mais, mas Cyrilla sabia

muito bem o que ele quase dissera.— Ele… nada sabia a respeito de mamãe — respondeu ela

depressa. — Ninguém sabia… e havia poucas pessoas que pudessem saber, pois nós não tínhamos amigos.

— Essa foi a escolha de sua mãe — falou o duque, agora com a voz novamente rude —, mas estamos falando de você. Quem era esse homem? E se você não tinha amigos, como é que o conheceu?

— Ele foi à nossa casa por causa de um quadro.— E o nome dele?— É o marquês de… Fane.Cyrilla sentiu o duque enrijecer-se. Depois de um momento,

ele disse:— Fane? Fane? Que tem Fane a ver com você? Aquele

libertino… aquele sedutor de mulheres! Ele é da espécie de homem com quem eu nunca permitiria que minha filha se casasse.

— Eu… eu o amo, papai… não posso evitar… é uma coisa que aconteceu.

— É uma coisa que não deveria ter acontecido! Em nenhuma circunstância… e não se engane quanto a isto, Cyrilla. Eu não permitirei que ele ponha os pés em qualquer casa que me pertença.

Houve um momento de silêncio. Depois Cyrilla perguntou:

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— Isso significa, papai… que eu posso… ficar aqui? — O duque não respondeu e ela acrescentou pateticamente: — É… a única maneira de poder evitá-lo… Por favor, papai, deixe-me ficar!

— Se ficar aqui — respondeu o duque, depois de um momento — não será porque está se escondendo do marquês de Fane, mas porque é minha filha. Tenho pensado muitas vezes, Cyrilla, que errei ao deixar sua mãe levá-la consigo.

— Ela lhe deixou Edmund. Como… como está ele?— Ele agora está viajando por toda a Europa, mas durante

todos esses anos eu senti falta de minha filha.— Oh, papai! É verdade?— É verdade.Cyrilla ergueu os olhos para o duque e pensou que havia nos

olhos dele uma expressão de inexprimível dor. Após um momento, murmurou:

— O senhor sentiu falta de mamãe… também.O duque mexeu-se desconfortavelmente em sua poltrona.— Sua mãe deixou-me e eu não quero falar sobre isso.— Compreendo, papai, mas embora ela fosse feliz… muito

feliz com… Frans Wyntack, penso que sentia falta do senhor e de Edmund… mais do que admitia.

— Não quero falar mais nisso — disse o duque rispidamente. — Quero que me fale sobre você.

Cyrilla mostrou um pequeno sorriso, mas havia ainda lágrimas em suas faces, como o brilho do sol depois da chuva.

— Não há nada a contar. Vivíamos em uma casa muito pequena em Islington, de que Hannah nunca gostou, e foi bom até mamãe ficar doente. Depois disso… tudo foi realmente muito… muito miserável.

O duque olhou-a por um momento, depois se levantou e ficou em pé diante da lareira, enquanto Cyrilla se sentava sobre os calcanhares, olhando-o.

— Maldito homem! Arruinou minha vida e a sua!— Não… realmente não, papai — tentou dizer Cyrilla. Ao

mesmo tempo, compreendia o que seu pai estava sentindo.Quando sua mãe morrera, ela dissera a Hannah, chorando:— É assim que papai deve ter se sentido… quando mamãe o

abandonou. Ele deve ter sido desesperadamente infeliz, sabendo que ela nunca mais voltaria.

Reparava agora que o duque parecia muito mais velho do que quando o vira pela última vez. Apenas oito anos haviam se passado desde então. Mesmo assim, seus cabelos estavam agora completamente brancos e havia rugas profundas em seu rosto.

Ele deve estar com sessenta anos, pensou Cyrilla, mas

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parece mais velho. Ela sabia que o último vestígio da mocidade dele devia ter se desvanecido quando a mulher o deixara por Frans Wyntack.

Compreendendo agora o quanto ele havia sofrido, e desejando confortá-lo, disse:

— Se eu puder ficar com… o senhor, papai, talvez possamos ser felizes… juntos. Eu senti muita falta sua… como o senhor sentiu de mim.

O duque mostrou um sorriso que tirou a severidade de sua expressão.

— Sinto-me feliz em tê-la comigo, Cyrilla; contudo, você talvez ache difícil viver aqui, pois eu me fixei muito em meus hábitos e não gosto de mudá-los.

— Eu procurarei não pedir mudança alguma — prometeu Cyrilla. — Agora sei que Hannah tinha razão e que meu lugar é com… o senhor.

— Agrada-me que pense assim. Você se tornou muito bonita nestes últimos anos. De fato, parece-se muito com sua…

Interrompeu-se, como se não suportasse dizer mais do que isso. Cyrilla levantou-se e aproximou-se dele.

— É difícil não falar em… mamãe. Desde que o vi tenho um sentimento… um sentimento muito forte… de que ela desejaria nos ver juntos… exatamente como Hannah está certa de que esse seria o desejo dela.

— É melhor eu falar com Hannah — disse o duque. — Parece-me ter sido a única pessoa que demonstrou bom senso em todo este lamentável caso.

Cyrilla mostrou um pequeno sorriso.— Hannah é sempre sensata e, quando estou com ela, tenho

a impressão de que não cresci. Ela ainda pensa que eu deveria estar brincando em meu quarto de brinquedos.

Um fraco sorriso contorceu os lábios do duque.Hannah fora criada de sua esposa desde que ele se casara

com ela e a única coisa que o tranqüilizara em relação à sua filha, em todos aqueles anos, era saber que Hannah cuidava dela, como havia sempre cuidado de Lorraine.

O duque não era um homem violento. Em toda a sua vida, fora muito contindo e incapaz de expressar seus sentimentos íntimos. Todavia, quando sua esposa fugira com um artista obscuro e desconhecido, odiara aquele homem com uma violência brutal.

Outros homens teriam desafiado Frans Wyntack para um duelo e, depois de vencê-lo, teriam obrigado a esposa a voltar para casa.

Mas o duque tinha aguda consciência de sua posição e do

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escândalo que esse fato provocaria.Estava pensando não só em si, mas também em seu filho,

quando decidiu que a melhor coisa a fazer era ignorar o que acontecera e sequer admitir que sua esposa o abandonara por outro homem.

Durante muito tempo, respondera a todas as perguntas sobre a duquesa, dizendo que ela estava no estrangeiro com amigos.

Quando a guerra com a França tornou isso impossível, passou a dizer que ela estava na Irlanda, porque gostava das caçadas de lá.

Como o duque era uma pessoa intransigente, ninguém se mostrava disposto a contestar tal declaração, embora, ao mesmo tempo, houvesse entre seus parentes e amigos muita especulação sobre o que acontecera.

Ninguém conhecia a verdade, apesar de que numerosas pessoas dissessem que, como a duquesa era muitos anos mais nova do que seu marido quando se casaram, não seria surpreendente se tivesse entregado seu coração a um homem mais jovem. Mas, pouco a pouco, as pessoas foram deixando de especular sobre o seu desaparecimento e o de sua filha.

Quando as mulheres mais idosas da família Holmbury tinham coragem suficiente para perguntar diretamente ao duque até quando a duquesa pretendia ficar fora e fugir de suas responsabilidades, não recebiam resposta. Percebiam apenas que haviam entrado em choque com seu ilustre parente, coisa que não deveria se repetir.

O duque estendeu a mão em direção ao cordão da campainha.

— Vou falar com Hannah. Imagino que a primeira coisa que você precisa são algumas roupas novas.

— É verdade, papai — concordou Cyrilla —, mas por favor, não deixe que eu seja vista em lugar algum… em Londres.

— Se está com medo de encontrar-se com o marquês de Fane, posso tranquilizá-la dizendo que os círculos que eu freqüento não receberiam aquele tratante, embora seus cavalos vençam sempre as melhores corridas. — Havia uma expressão de ansiedade na fisionomia de Cyrilla e, depois de um momento, o duque acrescentou: — Voltaremos para o campo. Minha presença na corte não é realmente necessária e existe sempre muita gente para ocupar meu lugar.

— Eu não quero atrapalhar seus planos, papai.— Certamente não atrapalhará. Eu não gosto de Londres,

jamais gostei. Tão logo você esteja vestida de acordo com sua posição, como minha filha, iremos para o castelo. Penso que lá

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você vai se reencontrar com sua infância.— Espero que sim! Espero que nada tenha mudado. Não

seria capaz de dizer-lhe quantas vezes sonhei que estava cavalgando meu pônei no parque, subindo à torre para olhar das ameias a paisagem, e dando de comer aos peixes dourados no lago.

O duque sorriu e abraçou Cyrilla.— Está tudo do mesmo jeito — disse ele —, e nós olharemos

tudo juntos.— Eu gostarei muito, papai.A porta abriu-se e Burton apareceu. Quando viu pai e filha

juntos, seus velhos olhos pareceram sorrir.— Traga Hannah para falar comigo, Burton — ordenou o

duque.— Pois não, milorde, e permita-me dizer que é um verdadeiro

prazer ter lady Cyrilla novamente conosco.O duque não respondeu e Cyrilla soltou um som baixinho,

que não era muito diferente de um soluço.— Eu me havia esquecido de que era “lady” Cyrilla! Oh…

papai… papai…Conteve-se para não dizer nada mais, pois, impulsivamente,

quase dissera que talvez o marquês lhe tivesse proposto casamento, se conhecesse sua verdadeira identidade.

Pensou que aquela era uma idéia que não devia cultivar, mas apesar disso, persistiu nela o tempo todo em que o duque conversava com Hannah.

Cyrilla foi levada para um dos melhores dormitórios, no andar de cima, enquanto um lacaio era enviado com urgência a Bond Street, a fim de dar instruções aos costureiros de quem sua mãe comprara vestidos no passado, para que comparecessem à Holm House na manhã seguinte, logo cedo.

Cyrilla olhou em volta e pensou que se havia esquecido de como podia ser confortável e atraente um quarto nas casas de seu pai.

Raramente vinha a Londres quando criança e, por isso, lembrava-se pouco de Holm House, mas achava improvável que se sentisse decepcionada quando visse a casa.

A governanta, vestida de seda preta, e Hannah falavam sobre as coisas de que ela precisava.

— Não é preciso mandar buscar nada esta noite no lugar onde moravam, srta. Hannah — dizia a governanta. — Poderei achar para Sua Senhoria uma camisola e amanhã será fácil comprar tudo quanto ela precisa.

— Tenho certeza de que será um prazer, sra. Kingdom — respondeu Hannah.

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Quando a governanta deixou o quarto, Cyrilla disse:— Quando você voltar à nossa casa, farei uma lista do que

desejo que me traga.— Lá não existe nada que possa precisar no futuro, milady —

disse Hannah, decidida.— Deve haver algumas coisas. Talvez um quadro…— Esqueça aqueles quadros — replicou Hannah. — Eles não

trouxeram senão complicações e miséria. Por mim, faria uma fogueira com aquilo tudo.

— Hannah! — exclamou Cyrilla. — Eu não tinha a menor idéia de que você se sentisse assim!

— Que vantagem havia em falar nisso, quando já tínhamos complicações suficientes? — retorquiu Hannah. — Mas foram quadros que introduziriam aquele homem na vida de sua mãe, quadros que não eram vendidos e que quase nos mataram de fome. Quadros que levaram o marquês a bater em nossa porta!

— E um retrato meu — disse Cyrilla, em voz muito baixa. — Eu não lhe contei, Hannah, mas Frans Wyntack pintou-me em duas… falsificações, que o comerciante levou ao príncipe de Gales. Naturalmente, era óbvio que ele achasse estranho dois artistas que viveram separados por cento e cinqüenta anos, terem pintado o mesmo modelo.

— Essa é a espécie de estupidez que tinha de acontecer! — disse Hannah. — Bem, agora está tudo acabado e a senhorita simplesmente deve esquecer tudo isso. Aqueles anos foram uma provação para mim, posso garantir-lhe, pensando em tudo que estava faltando a sua mãe e à senhorita.

— Você foi muito boa conosco e, agora que sei como odiava aquilo, eu sinto muito, Hannah. Por sua causa, estou contente em ver tudo acabado.

— Sim, está acabado, milady. Nada de voltar ao passado, nada de remorsos e nada de suspirar pelo marquês. A senhorita sabe tão bem quanto eu que Sua Alteza não admitiria isso.

— Papai disse algumas coisas muito desagradáveis… a respeito dele — disse Cyrilla, quase como se falasse consigo mesma.

— E com toda razão — afirmou Hannah.— Você não me disse que não gostava dele, quando chegou

lá em casa — observou Cyrilla.— Pensei que pretendia ajudar-nos. A única coisa que posso

dizer-lhe, milady, é que a senhorita escapou por sorte, por muita sorte!

Enquanto Hannah se ocupava em preparar-lhe um banho e mandar passar o vestido com que ela chegara, pois não tinha outro

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para o jantar, Cyrilla permanecia ao lado da janela, olhando para os telhados cinzentos.

A noite caía e o céu também estava cinzento. De repente, Cyrilla sentiu um intenso desejo de ouvir a voz do marquês falando-lhe do jardim onde se sentariam juntos e da casinha onde ficariam sozinhos.

Depois, disse a si mesma que, como observara Hannah, tinha que deixar tudo aquilo para trás.

Amava-o, mas o que ele lhe pedira era impossível. Sabia muito bem que era uma vida na qual seria colocada no ostracismo pela sociedade, uma vida na qual tudo seria sacrificado pelo amor de um homem.

Olhando para trás, podia se lembrar de como fora quando sua mãe fugira de casa e de como ela tinha medo de sair e ser vista por alguém que a reconhecesse.

— Ninguém neste lugar espera ver a duquesa de Holmburv — dizia Frans Wyntack.

— Nunca se pode ter certeza.— Eu tenho certeza! E que pensa que eu sinto, minha

querida, quando sei que fiz você envergonhar-se de sua própria existência.

— Eu nunca terei vergonha de você — respondera a duquesa. — Eu só tenho medo de que meu marido procure se vingar de você, se souber onde estamos.

— Esse é um risco que eu assumi quando lhe perguntei se nosso amor valia mais do que posição, riqueza e todas as outras coisas que ele poderia lhe dar.

— Sim, mas suponha que ele o ferisse ou mesmo que o matasse? Então minha vida estaria acabada.

Ela não percebera que Cyrilla estava ouvindo e vendo, enquanto Frans Wyntack a abraçava e puxava para mais perto de si.

Depois, quando começava a beijá-la apaixonadamente, Cyrilla saíra e correra para a cozinha, onde Hannah lhe falava de coisas comuns, com sua voz sadia e sensata.

Precisavam sempre ser furtivas e cuidadosas. Quando Cyrilla a levava à igreja, sua mãe usava um espesso véu sobre o rosto.

— As pessoas acharão estranho que a senhora esconda o rosto dessa maneira, mamãe — dizia ela.

— Talvez pensem que sou tão feia que receio ser olhada por alguém — respondia sua mãe, sorrindo —, ou que tenho pele muito ruim.

— Mas a senhora é bonita, mamãe, e qualquer pessoa tem prazer em olhar para coisas adoráveis.

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Sua mãe não respondia e Cyrilla sabia bem que as pessoas as olhavam com curiosidade, quando se sentavam no pequeno e obscuro banco no fundo da igreja e saíam furtivamente assim que o ofício terminava.

Era Hannah quem fazia compras com Cyrilla.— Onde entregaremos as mercadorias, minha senhora? —

perguntavam os lojistas.— Eu mesma as levarei — respondia Hannah, com firmeza.

Cyrilla sabia que estranhavam isso e que seu prestígio caía porque não exigiam os serviços comuns que todos usavam.

Não havia uma, mas milhares de pequenas alfinetadas, que as tornavam agudamente conscientes de que eram párias.

Se alguém batia à porta pedindo dinheiro para obras de caridade ou mesmo, como acontecera uma ou duas vezes, para visitá-las porque eram novas no bairro, sua mãe corria para o andar de cima e escondia-se em seu quarto, enquanto Hannah dizia firmemente que nem a sra. nem a srta. Wyntack estavam em casa.

De vez em quando, após terem morado lá mais ou menos um ano, Frans Wyntack levava para casa alguns amigos artistas.

Foi então que Cyrilla, já mais velha, sentiu algo que a chocou e humilhou. Aqueles homens, porque sabiam ou desconfiavam que Frans Wyntack não era casado com sua mãe, dirigiam-se a ela com uma familiaridade que seu pai não teria tolerado por um segundo sequer.

Não eram rudes, pois certamente nunca tinham visto alguém tão bonito; era simplesmente algo na maneira de falarem e no tom de suas vozes, e, principalmente, na expressão de seus olhos, que Cyrilla detestava.

Era a falta da cortesia e certamente a falta do respeito com que sua mãe fora tratada enquanto vivia no castelo como duquesa de Holmbury.

A atitude das pessoas diante de uma duquesa era muito diferente da atitude delas diante de uma mulher que vivia na casa de um artista e tinha uma filha que não era dele.

Nunca, nunca, nunca eu me porei na mesma posição, dizia ela consigo mesma, quando um desses pequenos incidentes a feriam. Um dia, serei casada e respeitada.

E embora fosse capaz de compreender que o amor de sua mãe por Frans Wyntack era dominador e compulsivo, e, em certo sentido, irresistível, para Cyrilla era uma emoção que rejeitava e que, se sentisse, reprimiria para se comportar convencionalmente.

Às vezes, sentia tanta falta de seu irmão, que tinha vontade de voltar e ir à casa de seu pai para vê-lo.

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— Edmund faz dezessete anos hoje — dissera sua mãe, quando Cyrilla estava com quinze anos. — Eu gostaria de vê-lo e desejar-lhe muitos anos de felicidade!

— Acredito que é isso que ele está desejando que a senhora faça, mamãe — respondera Cyrilla.

Havia nos olhos de sua mãe um ar distante que significava que ela estava pensando no filho, a quem Cyrilla muitas vezes pensava que sua mãe amava mais do que a ela própria.

Como desejava, mais do que se atrevia a expressar, estar com Edmund no dia de seu aniversário, ela deixara o quarto de sua mãe e descera para onde estava Hannah.

— Que estará Edmund fazendo hoje, Hannah? — perguntara.— Contando seus presentes, creio eu — respondera Hannah.

— E isso é mais do que a senhorita pode fazer em seu aniversário.— Mamãe disse que vai dar-me uma coisa muito bonita, logo

que tivermos dinheiro.— Gostaria de saber quando isso vai acontecer — replicara

Hannah, abrindo a massa de pastel de uma maneira agressiva, que indicava a Cyrilla que estava aborrecida.

— Será que Edmund vai ganhar um cavalo novo em seu aniversário? — insistira Cyrilla, continuando seus pensamentos. — Ele sempre quis cavalos mais do que qualquer outra coisa. Eu gostava de cavalgar com ele, quando me levava. Gostaria de poder cavalgar com ele hoje.

— Se desejos fossem cavalos, os mendigos cavalgariam! — dissera Hannah. — E isso é o que nós somos… mendigos! É uma coisa que nunca esperei ser, em toda a minha vida.

Afinal de contas, não era grande consolo conversar com Hannah e Cyrilla fora para a sala de estar, pensando em Edmund e imaginando vê-lo montado em um cavalo a galope no parque.

Os cabelos dele estariam esvoaçando ao vento, porque, como de hábito, teria se esquecido de pôr um chapéu. Caçoaria dela por não poder acompanhá-lo, em um pônei que era sempre menor que o cavalo dele.

Como era divertido! pensara Cyrilla, com um soluço.Depois, sentira-se envergonhada porque, como dizia a si

mesma todo dia e toda noite, era muita sorte sua ter a mãe só para si, enquanto Edmund ficara com o pai.

Sabia muito bem que era afortunada, pois Frans Wyntack sempre fora muito bom para ela, e o chamava de papai porque isso agradava a sua mãe.

— Ele agora é seu pai, querida — dissera sua mãe. — Ele fica feliz em pensar que você é sua filhinha, pois não pode ter filhos.

— Por que ele não pode ter um filho, mamãe? — perguntara

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Cyrilla.Só vários anos mais tarde compreendera que, não sendo

casados, sua mãe e Frans Wyntack não podiam pensar em trazer ao mundo filhos aos quais não poderiam dar um nome.

Essa era outra razão que fazia Cyrilla saber que nunca, em circunstância nenhuma, se poria na mesma posição que sua mãe.

Eu gostaria de ter muitos filhos, pensava, quando estava sozinha em seu quartinho à noite, e seria muito bom para mim se eu tivesse irmãs com as quais pudesse brincar.

Mas sabia, por ser muito sensível, que as pessoas que iam à sua casa tinham o cuidado de não lhe falar sobre seu pai.

De alguma maneira, sabiam que ela não era filha de Frans Wyntack e, aos poucos, tornou-se claro que pensavam que seu pai, fosse quem fosse, não a havia reconhecido. Por isso, era melhor não falar dele.

Em certo sentido, essa era a humilhação final de sua posição e da posição de sua mãe.

Como podem pensar essas coisas de mamãe? perguntava-se a si própria.

Depois, como Hannah lhe transmitira um pouco de seu bom senso, compreendeu que seria estranho se tivessem pensando coisa diferente.

Eu odeio isso! Eu odeio esta vida! dizia ela às vezes, no segredo de seu quarto.

E era essa, exatamente, a vida que o marquês lhe pedira para partilhar com ele!

— Nós estaremos juntos, minha querida — dissera ele. E isso era uma coisa que ela ouvira Frans Wyntack dizer muitas vezes.

— Que importância tem amanhã se estamos juntos hoje? — dizia Frans Wyntack. — E por que lembrar o passado? A única coisa que importa é estarmos juntos, você e eu, para sempre! — Cyrilla podia ouvi-lo repetindo essas palavras vezes e vezes, com sua voz atraente. E sua mãe concordava sempre, com os olhos brilhando, porque o amava.

Foi então que Cyrilla soube que “estar juntos” não seria o bastante para ela. Desejava também tudo o mais: segurança, propriedade, respeitabilidade e casamento!

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CAPÍTULO V

O marquês cavalgava em direção a Islington, com um sorriso nos lábios.

Experimentava o mesmo sentimento de triunfo que tinha quando vencia uma corrida ou derrotava um adversário na esgrima.

De fato, conseguira o que seu secretário lhe dissera ser impossível e estava, com razão, satisfeito consigo mesmo.

Quando voltara para Fane House, no dia anterior, a fim de falar com o sr. Ashworth, cujas funções eram iguais às de um provedor real, achava que planejar um lar para Cyrilla era a coisa mais excitante que fizera em toda a sua vida. Seria impossível, sabia disso, dar imediatamente a ela tudo quanto desejava.

Contudo, quando saíra de Islington, já pensava nos quadros com que embelezaria a casa, nos tapetes que cobririam o chão, nos móveis que dariam a ela o tipo de ambiente que a beleza de Cyrilla merecia.

Já decidira que ela seria cercada de pinturas que tornariam sua beleza ainda mais pronunciada. Decidira que um Boucher e um Botticelli, que estavam pendurados em Fane Park, seriam transferidos para a casa dela, assim que a encontrasse.

Quando dissera a seu secretário:— Quero que você compre hoje uma casa perto daqui, que

seja arquitetonicamente notável e também que tenha um jardim — Ashworth fitara-o, espantado.

— Hoje, milorde?— Hoje! — respondera o marquês, com firmeza.— Mas é impossível!— Nada é impossível! — afirmara o marquês. — Nada é

impossível, quando se trata de mim.Sorrira enquanto falava e Ashworth pensava que alguma

coisa havia evidentemente agradado seu patrão, pois nunca o vira com expressão tão feliz e tão seguro de si. Perguntara-se a si próprio o que poderia ter acontecido.

Não houvera corridas que os cavalos do marquês tivessem vencidos, como de hábito. E não havia nenhuma competição em que ele estivesse ativamente empenhado. Apesar disso, estava, sem a menor dúvida, com aparência de vencedor.

Ashworth tinha, porém, tato suficiente para não fazer perguntas pessoais.

— Vou fazer o possível, milorde, para descobrir a casa que 70

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Vossa Senhoria deseja, mas não posso ser excessivamente otimista, pois a temporada mal começou e as casas até agora desocupadas estão sendo alugadas pelo menos para os dois próximos meses.

— Procure, Ashworth! Procure! — ordenara o marquês.— Tenho aqui duas cartas para Vossa Senhoria assinar,

milorde — dissera o sr. Ashworth, como que aliviado por poder mudar de assunto. — Penso também que deveria saber que sua prima, lady Bletchley, faleceu ontem à noite.

— Mande uma coroa de flores — ordenara o marquês automaticamente, enquanto assinava as cartas que ele lhe entregara.

— Naturalmente, milorde. Os funerais serão no campo, pois lady Bletchley faleceu na casa de seu filho.

O marquês erguera a cabeça.— Não estou enganado ao pensar que lady Bletchley tinha

uma casa em Londres, perto daqui?— De fato, tinha, milorde. Em South Street, número 19, como

deve se lembrar.O marquês olhou para seu secretário e, quando os olhares

dos dois homens se encontraram, o sr. Ashworth soltou uma exclamação.

— É uma possibilidade, sem dúvida, milorde.— Penso que lady Bletchley não morou lá no ano passado.— Não sei dizer, milorde.— Lembro-me de ter ouvido que ela foi para o campo porque

estava doente e seu filho mais velho arrumou tudo para que ela ficasse na casa da família.

O sr. Ashworth permanecera em silêncio, sabendo que o marquês estava pensando em voz alta.

— Tenho certeza também que ela deixou a casa de Mayfair para seu segundo filho, um moço com propensão para o jogo. Eu o vi muitas vezes no White's. Se eu for lá agora, poderei encontrá-lo antes que parta para o campo.

— Os funerais não serão antes de depois de amanhã, milorde.— Então Charlie Bletchley certamente estará no White's —

dissera o marquês, levantando-se.Enquanto saía da sala, quase correndo em sua impaciência,

Ashworth acompanhara-o com os olhos, espantado.Que teria acontecido? Que poderia ter causado aquele

repentino surto de energia?Era algo que fizera desaparecer a maneira indiferente, às

vezes cínica, com que o marquês encarava o mundo e que o sr. Ashworth freqüentemente reprovava em um homem tão moço.

Todavia nada havia de cínico no marquês quando se dirigia

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para Islington.A casa da prima era exatamente o que ele desejava para

Cyrilla. Naturalmente, toda ela teria de ser decorada, de alto a baixo, mas lady Bletchley herdara alguns móveis muito atraentes que certamente seriam aceitáveis, até que pudesse encontrar peças melhores para substituí-los.

A casa fora construída no século anterior por Robert Adam e tinha quartos grandes e arejados, belas cornijas, excelentes lareiras e pisos de parque. As cortinas e tapetes, embora não satisfizessem as exigências do marquês, eram discretos, mas de gosto excelente.

Havia um jardim pequeno, mas atraente, bem conservado e agora cheio de tulipas, narcisos e árvores frutíferas, que começavam a florescer.

Enquanto olhara as flores e as árvores, o marquês quase podia vê-las enquadrando e enriquecendo a beleza fascinante de Cyrilla, e sentira repentino e violento desejo de estar com ela, apertá-la em seus braços e, acima de tudo, beijar seus lábios.

O marquês já beijara muitas mulheres em sua vida, mas nunca conhecera tanto encantamento como sentira ao beijar Cyrilla.

Eu a amo! dizia a si mesmo. Eu não acreditava que poderia um dia ser vencido pelo amor.

Desejava rir da intensidade, mas sabia que era impossível sentir outra coisa que não alegria por ter encontrado a perfeição no amor, assim como encontrara na arte.

Tivera a sorte de encontrar Charlie Bletchley disposto a vender a casa que herdara de sua mãe.

Como o marquês previra, as dívidas de Charlie eram astronômicas e não havia a menor probabilidade de poder pagá-las, exceto vendendo o que esperava herdar.

O marquês não ficara muito tempo no White's e, quando saíra, havia comprado a casa em South Street com tudo quanto tinha dentro. E obtivera permissão para ocupar a casa sem esperar que fosse formalmente assinada a escritura.

— Devo dizer-lhe que não perde muito tempo, primo Virgílio — dissera Charlie Bletchley. — Eu acreditava que fosse ficar com essa casa em minhas mãos vários meses, antes de encontrar um comprador, e isso significava que teria despesas obrigatórias por muito tempo.

— Evidentemente, tudo isto aconteceu por obra do destino — respondera o marquês, com ar despreocupado.

Quando se afastava do White's, ia pensando que o destino certamente estava do seu lado.

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Fora o destino que fizera Frans Wyntack oferecer sua segunda falsificação a Isaacs, que, sem dúvida sob a influência do destino, a levara ao príncipe de Gales.

Acho que precisarei contar-lhe um dia que o quadro não é o que supõe ser, pensara o marquês, mas sabia que isso era algo que não mencionaria ainda, por temer que o príncipe ficasse conhecendo Cyrilla.

Ela é minha, só minha! dissera o marquês a si mesmo.Sentia emoção ao pensar como seria excitante entrar na casa

de South Street e saber que, depois de fechada a porta, estariam sozinhos, sem que ninguém pudesse intrometer-se.

Deitara-se tarde, pois havia muitas coisas em que precisava pensar e planejar, mas levantara-se cedo, como de hábito.

Teria partido para Islington logo que voltara de seu passeio no parque, se o sr. Ashworth não o estivesse esperando.

O provedor que fora ver a casa por sua ordem, encontrara certos defeitos que precisavam ser reparados imediatamente.

Em outra ocasião, o marquês teria deixado isso inteiramente a cargo de seu secretário. Mas tratando-se de Cyrilla, tinha achado que tudo devia merecer sua atenção pessoal.

Achara também que era melhor, antes de dar as ordens, examinar pessoalmente o que precisava ser feito.

Por isso, fora com o provedor e seu secretário até a casa em South Street e, enquanto lá se encontrava, descobrira numerosos outros detalhes que precisava corrigir.

Contudo, havia subido sozinho a escada até um grande dormitório, com uma janela arcada para o jardim.

O quarto possuía uma cama com a cabeceira belamente esculpida e dourada, tendo pinturas de sereias e golfinhos. Sobre ela havia uma colcha de cetim azul-claro, que sabia ser a cor que combinava perfeitamente com os cabelos estranhamente belos de Cyrilla.

Havia ficado por um momento imaginando-a na cama, sabendo que, por ser ela muito grande, Cyrilla pareceria muito pequena e etérea, com aquela delicada aparência de sonho que o Lochner havia retratado com tanta precisão.

Eu a amo e a farei feliz, prometera o marquês a si mesmo.Ao mesmo tempo, só por um momento, sentira-se como se os

fantasmas de todas as outras mulheres com as quais fizera amor se erguessem entre ele e a pureza de Cyrilla.

Depois, como se forçasse o pensamento a afastar-se de si, caminhara até a janela para olhar o jardim.

Havia tido, então, a estranha impressão de que Cyrilla era como uma flor muito bela e delicada, enquanto crescia no chão à

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sombra das árvores, mas que nunca seria a mesma quando alguém a colhesse.

Perguntava-se a si próprio se fazer amor com Cyrilla estragaria algo que ela tivesse semelhante à flor, algo tão puro e sagrado que talvez devesse permanecer como uma aspiração espiritual, fora do alcance de todos.

Depois havia pensado que o amor dos dois não seria estragado, mas se tornaria mais intenso, mais cheio de êxtase, porque ela seria parte dele.

Eu a adoro! dissera a si mesmo. E nunca farei nada que possa prejudicá-la.

Com todos os detalhes resolvidos, já era quase meio-dia quando seguiu para Islington.

Pensou que Cyrilla poderia estar ansiosa, mas disse consigo mesmo que ela compreenderia, quando lhe dissesse que poderia partir imediatamente.

Dera instruções ao sr. Ashworth para mandar uma carruagem fechada buscar Hannah e a bagagem. Decidiu que Cyrilla viajaria com ele no faetonte, sabendo que ela apreciaria sua parelha de cavalos castanhos, sem iguais em toda Londres.

Os cavalos levaram-no rapidamente em direção a Islington, de modo que percebeu que chegaria a Queen Anne Terrace antes do que previa e levaria muito tempo para que a carruagem fechada o alcançasse.

Quando chegaram, o lacaio correu para segurar o cavalo da frente e o marquês desceu para bater com a aldrava de bronze na porta sem pintura do número 17.

Ela saberá quem está batendo, pensou ele, com um sorriso.Apurou os ouvidos, tentando escutar passos no corredor, mas

só houve silêncio. Depois de algum tempo, bateu de novo, desta vez tão alto que vários transeuntes se viraram, surpreendidos com o barulho.

Ela deve estar me esperando, pensou.Tinha certeza de que ela não estaria aborrecida ou amuada,

como poderia estar outra mulher.Mas ninguém atendeu e a testa do marquês enrugou-se.Parecia estranho que Cyrilla e Hannah tivessem saído para

fazer compras, quando sabiam muito bem que ele viria logo cedo.Bateu de novo, depois começou a andar de um lado para o

outro, diante da porta.Disse consigo mesmo que talvez não houvesse o que comer

na casa, e Cyrilla, sentindo fome e vendo que ele estava atrasado, tinha saído para as compras.

Dei a Hannah algum dinheiro, pensou. Ela deveria ter tido o

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bom senso de ir comprar algum alimento sem esperar até tão tarde.

Depois, aborreceu-o o fato de tudo estar pronto para levar Cyrilla e Hannah a South Street e elas não estarem em casa.

Todas as possibilidades acorreram à sua mente, até que, quando a carruagem parou e o lacaio desceu da boléia, ocorreu-lhe que elas talvez estivessem doentes.

Fez sinal para que o lacaio se aproximasse.— Dê a volta à casa, Henry — disse —, e veja se há alguma

janela aberta pela qual você possa entrar. Se não houver, arrombe uma, mas procure causar o menor dano possível.

— Sim, milorde — respondeu Henry.Ele não parecia muito espantado com tão estranho pedido, e

o marquês acrescentou:— Depois de entrar, abra a porta da frente para mim.— Está bem, milorde.Henry rodeou a casa correndo e, dois minutos mais tarde,

enquanto esperava, impaciente, o marquês ouviu uma batida na porta, seguida de gritos de Henry:

— Está trancada, milorde, mas abri a porta dos fundos.O marquês não respondeu. Simplesmente deu a volta à casa,

como havia feito Henry, e viu que a porta dos fundos estava aberta. Havia também uma vidraça quebrada na janela da cozinha.

— Esta porta estava fechada só com o ferrolho, milorde, mas a porta da frente foi trancada e não há chave aqui dentro.

— Compreendo — disse o marquês.Isso significa que Hannah e Cyrilla saíram pela frente e

trancaram a porta depois de passar, pensou ele.Mas por quê? Que estaria acontecendo?Entrou na sala de estar, esperando encontrar alguma

explicação para tão estranho comportamento.Depois, subiu até o estúdio, mas também nada adiantou.

Correu os olhos pelo aposento, olhando as telas acabadas e inacabadas, e o sofá onde se sentara e beijara Cyrilla. O lugar deu-lhe uma impressão de vazio.

Rapidamente, porque não tinha o menor desejo de ficar ali, atravessou o corredor e descobriu que havia três quartos, um com cama de casal, que certamente era aquele onde Frans Wyntack morrera. Não teve dúvida de que a porta seguinte era a do quarto de Cyrilla.

O quarto era muito pequeno e muito simples, mas havia detalhes que irresistivelmente lhe lembravam Cyrilla: uma saia de babados em cima da penteadeira e pequenos ornamentos baratos, que poderiam ter sido colecionados por uma criança.

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Quando abriu o guarda-roupa, sentiu uma suave fragrância de flores. Viu alguns poucos vestidos, cuidadosamente pendurados em fileira.

Um sentimento de alívio atenuou sua tensão. Ela certamente não abandonara a casa, pois suas roupas ainda estavam ali.

Depois entrou no quarto seguinte.Era o menor que o de Cyrilla, severo, quase como uma cela

de freira, o que lhe pareceu característico de Hannah.Seu instinto fez com que abrisse o guarda-roupa. Estava

vazio!O marquês prendeu a respiração e abriu as gavetas de uma

cômoda. Também estavam vazias!Não havia uma única peça de roupa, nem mesmo um par de

sapatos deixado no quarto.Permaneceu imóvel, ao mesmo tempo que surgia em seu

rosto uma expressão assustadora.

Naquela noite, após Cyrilla ter ido para a cama, Hannah pedira para ver o duque.

Ele estava sentado em sua poltrona favorita diante da lareira. Quando Burton lhe dissera que ele a receberia, Hannah entrara, caminhando vagarosamente em sua direção, e fizera uma mesura.

— Acho que preciso agradecer-lhe, Hannah, por ter-me trazido de volta lady Cyrilla. Só gostaria que você tivesse feito isso há mais tempo.

— Era o que eu queria ter feito, milorde.— Compreendo. Ao mesmo tempo, agora que ela está em

casa, quero que tudo seja esquecido, que os últimos oito anos sejam completamente apagados de nossa memória. Não se falará a respeito deles a ninguém, nem mesmo a lady Cyrilla, compreende?

— Sim, milorde.— Agradeço-lhe muito, Hannah, por ter cuidado de minha

filha. Espero que continue a dedicar-lhe a mesma devotada atenção no futuro como fez no passado.

— Farei o possível, milorde.O duque esperara, sabendo que Hannah tinha alguma coisa

para lhe dizer.— Há mais uma coisa, milorde.— Que é?— Vou voltar àquela casa amanhã bem cedo para buscar

minhas roupas. Estou contente por não precisar levar lady Cyrilla. Desejo saber o que milorde quer fazer a respeito da casa. — Como visse que o duque não estava entendendo, Hannah explicara: — Ela

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pertence agora a lady Cyrilla e eu tenho comigo a escritura.O duque pensara por um momento, depois dissera:— Queime a escritura, derrube a casa!— Derrubar a casa, milorde?— Será uma pira fúnebre muito apropriada, Hannah, e não

voltaremos a falar sobre ela.Hannah respirara fundo.— Muito bem, milorde.Fora correndo a Islington, enquanto Cyrilla estava dormindo,

e voltara depressa.Empacotara apenas suas roupas, e quando chegara ao alto

da escada havia tido um momento de hesitação em frente do estúdio. Depois entrara e tirara da gaveta, onde Cyrilla o colocara, o esboço que Frans Wyntack fizera de sua mãe.

Enquanto o segurava nas mãos e olhava a adorável fisionomia da duquesa, seus olhos enterneceram-se.

Como se tivesse medo de chorar, enfiara o quadro em uma sacola que levava e descera correndo a escada.

Quase como se uma voz interior lhe tivesse ordenado, o marquês parou exatamente no mesmo lugar onde Hannah havia tido um instante de hesitação. Entrou de novo no estúdio. Atravessou o aposento, a fim de olhar na gaveta onde se lembrava de ter visto Cyrilla guardar o esboço de retrato de sua mãe, quando lhe dera o outro retrato, dela própria.

Não estava lá!Abriu então todas as gavetas da cômoda, mas enquanto o

fazia, já sabia que não encontraria o retrato, que desaparecera, como a própria Cyrilla.

Por um momento, sentiu vontade de gritar, de bater com os punhos nas paredes, de virar e quebrar tudo no estúdio e no resto da casa.

Depois, anos de autocontrole fizeram com que descesse a escada, saísse pela porta dos fundos e se dirigisse para seu faetonte.

Entrou na carruagem e seguiu pela Terrace, embora sentisse que era quase impossível comportar-se de maneira normal e socialmente correta, sem revelar sua frustração e raiva.

Não pode ser verdade! Ela não pode realmente ter partido! Dizia isso a si mesmo repetidas vezes.

Como ainda não acreditasse, quando estava a meio caminho de Mayfair, fez seus cavalos virarem e voltarem para Islington.

Deixara a porta dos fundos fechada só com o trinco e foi fácil entrar de novo na casa. Agora, mais do que antes, sentiu o frio da casa vazia, como se o próprio espírito dela tivesse partido,

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restando só uma casa. Não conseguindo conter-se, subiu a escada e entrou no quarto de Cyrilla. Ali pelo menos havia a fragrância dela e o marquês teve a impressão de que seu fantasma estava esperando por ele.

Como pôde fazer isto comigo, querida? perguntou. Como pôde deixar-me, depois de tudo quanto dissemos um ao outro?

Depois, não sendo capaz de acreditar no que acontecia, disse a si mesmo que havia uma explicação: ela sofrera um acidente e fora levada para o hospital. Hannah estaria com ela.

Conhecendo Cyrilla, sentia que não poderia ter saído deliberadamente de sua vida, não poderia fazê-lo sofrer, como estava acontecendo. Não acreditava que ela fosse tão cruel.

Deixou a casa e desta vez chegou a Berkeley Square, com o medo crescendo dentro dele, como uma serpente que o envenenava.

Era um medo que ameaçava minar sua mente, para que não pudesse pensar com clareza.

Se Cyrilla partira, que poderia ele fazer? Onde poderia encontrá-la? Por onde poderia começar a procurar?

Quando desceu de seu faetonte e entrou em sua casa, pensou que devia haver uma explicação lógica.

— O almoço está pronto, milorde — disse-lhe o mordomo calmamente, como se ele não estivesse duas horas atrasado.

Terminando o almoço, o marquês disse consigo mesmo, que voltaria a Islington e encontraria Cyrilla à sua espera.

Ela deve ter entendido mal o que lhe disse, pensou, tentando tranqüilizar-se, mas o vazio do quarto de Hannah continuava a persegui-lo.

Mas, se as roupas de Hannah haviam desaparecido, porque não acontecera o mesmo com as de Cyrilla?

O marquês almoçara automaticamente, mas não tinha a menor idéia do que comera ou bebera.

Seu secretário pediu para vê-lo, depois de terminada a refeição, mas ele recusou, sabendo que Ashworth ia falar a respeito da casa. Não suportaria no momento falar sobre isso, devido a seu crescente temor de nunca encontrar a pessoa para quem a casa estava destinada.

Voltou a Islington e permaneceu lá, sem dar atenção ao fato de seus cavalos relincharem impacientes do lado de fora, durante mais de uma hora.

Sentou-se na pequena sala de estar, onde Cyrilla pela primeira vez correra para seus braços, à procura de conforto e proteção, depois da morte de Frans Wyntack. E pensou em tudo quanto acontecera desde o momento em que a encontrara e tudo

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quanto haviam dito entre si.Pela primeira vez, percebeu que ela se comportara

estranhamente, embora não tivesse reparado nisso no momento, quando lhe falara sobre a casa que compraria para ela e onde estariam juntos.

“Eu… penso que não… estou compreendendo bem a respeito dessa casa.”

Ouviu sua voz suave hesitando e gaguejando nas palavras.“Será sua”, havia respondido. “Eu a darei a você e a

escritura será em seu nome. Aconteça o que acontecer no futuro, você terá um lugar onde viver e dinheiro suficiente para gozar de conforto.”

Lembrou-se de como a puxara para si e acrescentara:“Você é minha, pequena Virgem dos Lírios, e eu cuidarei de

você e a protegerei, livrando-a de toda preocupação pelo resto de sua vida. Isso eu juro, minha querida, e nós seremos mais felizes do que quaisquer outras duas pessoas que já tenham vivido desde o começo dos tempos.”

Lembrou-se de que, quando acabara de falar, ela nada dissera, porque ele a beijara até que despertassem nele sentimentos diferentes de tudo quanto conhecera em toda a sua vida.

Os lábios dela levavam-no a um êxtase que seria impossível descrever com palavras. Só conseguiu se lembrar de que fora com muito esforço que conseguira afastar seus lábios dos dela e se levantar.

Dissera-lhe que precisava partir porque tinha muitas coisas a fazer, acrescentando:

“Tive dificuldade em encontrá-la e para entrar na casa, quando, primeiro você e, depois Hannah, tentaram impedir-me. Agora sinto que sou invencível, porque você me ama e eu a amo!”

Por que era impossível não fazê-lo, puxara-a para si e beijara de novo seus lábios ternos.

Nunca imaginara que os lábios de uma mulher podiam ser tão doces, tão ternos e, ainda assim, conter aquela magia irresistível.

Fora com enorme esforço que se obrigara a ir embora e descera a escada, sentindo que estava deixando para trás tudo quanto queria na vida.

Agora, olhando para o passado, percebia que ela não havia falado. Não dissera que estava contente por causa da casa. Não dera resposta alguma, nem fizera qualquer comentário sobre seus planos.

O que estava errado? O que poderia tê-la aborrecido?,

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perguntou-se o marquês.De repente, quase como se uma voz lhe falasse, ele

compreendeu: Cyrilla desejava que ele lhe oferecesse casamento.Nunca ocorrera ao marquês, sequer por um momento, que

ela poderia ser sua esposa.Isso era compreensível porque sempre aprendera que a

mulher com quem devia se casar tinha de ser de categoria inteiramente diferente daquelas que o atraíam e com as quais fazia amor.

Vagamente, pois sabia que isso era inevitável porque um dia precisaria ter um herdeiro, ele sabia que deveria se casar, mas não antes de ser obrigado a fazê-lo por estar chegando à idade madura, o que era algo ainda muito distante.

Sua esposa, imaginava ele, seria bela e sofisticada, uma mulher que enfeitaria a extremidade de sua mesa, receberia convidados com a mesma graça e eficiência de sua mãe e trataria o príncipe de Gales e qualquer outra personalidade real convidada para sua casa, com a mesma segurança que ele próprio tinha.

Como marquesa de Fane, sua esposa seria muito sociável, convidada para todos os bailes e todas as recepções da nobreza. Ela, naturalmente, o acompanharia sempre a Carlton House, onde sem dúvida, por causa da velha amizade com Sua Alteza Real, também seria a favorita do príncipe.

Como poderia ter imaginado, por um segundo que fosse, que Cyrilla, com sua esplendorosa e sobre-humana beleza, seu estranho encanto espiritual, se enquadraria nessa categoria?

Mal podia acreditar que ela esperasse isso. Mas quando pensou melhor, compreendeu que mulheres puras considerariam um pecado fazer amor sem as bênçãos da igreja.

O marquês estava tão acostumado com sua vida licenciosa, que nem por um momento considerara que, aos olhos da que chamava “mulher de bem”, ele era um perverso conquistador que pecava sob as vistas de Deus.

Isso era muito diferente de ser um libertino, de ter o que o príncipe chamava “má reputação entre o belo sexo” e de incorrer no desagrado e condenação da geração mais velha, simplesmente porque as mulheres que o amavam se comportavam de maneira emocional e exagerada, como lady Isabel Chatley.

Por essa espécie de comportamento ele esperava ser censurado, mas pensando bem, teve certeza de que não era isso o que Cyrilla sentia, porém coisa muito diferente.

Para ela, amor era sagrado! Lembrava-se de como ela dissera, com voz arrebatadora e hesitante:

“Como poderei agradecer a Deus o bastante, por… tê-lo

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mandado para mim?”Isso é o que ele fora: um cavaleiro em cintilante armadura,

guiado até ela por um poder divino, para salvá-la de sua solidão e seu medo.

Vagarosamente, o marquês explicou tudo a si próprio.Cyrilla era diferente de qualquer outra mulher que

conhecera. Era jovem e inocente, e seus ideais eram puros e não afetados por valores mundanos.

Nunca teria ocorrido a ela, quando se beijaram pela primeira vez e disseram que se amavam, que o marquês não pretendesse que se casassem, que fossem marido e mulher.

Como pude não perceber isso? perguntou ele a si próprio. Então eu poderia ter explicado tudo a ela.

Mas o que poderia ter explicado? Que ela não tinha importância social suficiente para ser sua esposa? Que o sangue dela não era azul como o seu? Que os pais dela não passariam pelo escrutínio daqueles que consideravam uma árvore genealógica mais importante do que o amor?

Poderia ter dito qualquer dessas coisas? De que outra maneira explicaria que não podia se casar com ela?

No próprio momento em que formulava a pergunta, sabia que era um absurdo.

Naturalmente, estava disposto a se casar com Cyrilla, se era isso o que ela desejava. Certamente se casaria, para não perdê-la. E se isso acontecera, a culpa fora toda sua.

Mas como poderia ter adivinhado? perguntava a si próprio, desesperado. Sentiu que seu grito ecoava pelo pequeno quarto e voltava inutilmente a seus ouvidos.

Então, outra pergunta surgiu em sua mente. Por que tinha palavras tão estranhas a inscrição no túmulo de sua mãe?

Seria possível que ela não fosse esposa de Frans Wyntack, como havia presumido naturalmente? Se sua mãe não era casada, isso talvez explicasse a relutância de Cyrilla em entrar na mesma espécie de ligação.

De fato, isso poderia ter feito com que sentisse horror diante de qualquer coisa irregular e não convencional.

Por que ela não me disse? perguntou o marquês. Se pelo menos tivesse confiado em mim!

“Lorraine. Amada por Frans Wyntack e Cyrilla”.Agora, estava certo de que Cyrilla, embora o chamasse de

“papai”, não era filha de Frans Wyntack; mas como isso poderia ajudá-lo a encontrá-la?

Mais uma vez, voltou ao quarto de Cyrilla.Volte para mim! chamou do fundo do coração e, ficou ali

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pensando que, como podia senti-la tão intensamente, ela devia ouvir o que estava dizendo.

Volte para mim! Deixe-me explicar! Deixe-me dizer-lhe que meu amor é suficientemente grande para tudo, até mesmo para o casamento!

Por um momento, duvidou que isso fosse verdade. Depois, como se uma barreira dentro dele tivesse caído, entendeu que era verdade.

Desejava Cyrilla, desejava tê-la consigo para o resto da vida. Ela era sua, era parte dele. Não poderia perdê-la, como não poderia perder um de seus membros.

Todo seu ser chamava por ela. Sentiu-se como se estivesse se afogando em um oceano de desespero e agonia, de onde só ela poderia salvá-lo. Depois, teve a terrível certeza de que realmente a havia perdido para sempre.

Quando a costureira fez uma mesura e saiu do quarto de Cyrilla, Hannah pôs sobre os ombros dela o roupão de cetim e renda que acabavam de trazer.

Cyrilla caminhou até a janela e ficou olhando as árvores do parque.

Toda vez que fazia isso, pensava no jardim que o marquês lhe descrevera. Quase podia vê-lo caminhando em sua direção entre as flores.

— A senhorita parece cansada — disse a voz de Hannah, atrás dela. Cyrilla tinha vontade de responder que se sentia infeliz, mas sabia que não adiantava dizer isso.

— Um pouco — admitiu —, mas é que não estou acostumada a provar tantas roupas de uma vez.

— Ficará linda nelas. A costureira disse, quando descia a escada: “Não há em toda a sociedade de Londres beleza que chegue aos pés de lady Cyrilla”.

— Eu não vou… entrar na sociedade — respondeu Cyrilla rapidamente, com voz assustada. — Papai me prometeu!

— Não! Nós vamos para o campo depois de amanhã — falou Hannah, em tom tranqüilizador. — Sua Alteza disse-me isso hoje. Eu quero que você conheça pessoas de sua idade e faça amigos.

— Eu me sentirei contente como estou, com papai.— Isso é tolice e a senhorita sabe! A senhorita vai ficar

preocupada só nos primeiros dias, e quando voltar para o castelo será diferente.

— Talvez.Cyrilla suspirou, ainda olhando pela janela, e um momento

depois, como se não pudesse conter sua curiosidade, Hannah

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perguntou:— Em que está pensando?— Estou pensando na… casa vazia e… no marquês.— Esqueça isso! Esqueça o marquês. Precisa tentar. É difícil,

eu sei. Mas afinal de contas, a senhorita o conheceu há muito pouco tempo.

— Penso que… o tempo não tem influência algumas sobre os sentimentos das pessoas — respondeu Cyrilla, sonhadoramente. — O amor simplesmente acontece. Ele estava lá… e teria sido exatamente a mesma coisa se fossem anos, em lugar de minutos. — Essa espécie de pensamento não vai ajudar!

— Eu estava só pensando se alguma coisa vai ajudar. Sinto-me como se tivesse perdido uma parte de mim. Alguma coisa se foi… e penso que foi meu coração.

Hannah deixou escapar um som que fez Cyrilla saber que ela estava aborrecida. Depois, como se nada mais tivesse a dizer, começou a andar pelo quarto barulhentamente, abrindo e fechando gavetas, arrastando cadeiras.

Como Cyrilla nada dissesse, falou, em tom persuasivo:— Ponha um de seus vestidos novos. Sua Alteza vai querer

que a senhorita lhe sirva o chá e gostará de vê-la com suas melhores roupas.

Cyrilla pensou que a pessoa por quem ela desejava ser vista com seus vestidos novos não era seu pai, mas não disse isso em voz alta.

Permitiu que Hannah lhe pusesse um atraente vestido, que custara muito caro e que a fazia parecer a deusa da aurora.

Hannah notou que ela nem se preocupara em olhar-se no espelho e, quando ficou pronta, desceu a escada com uma expressão que fez a velha criada prender a respiração.

Aquele homem! Por que ele entrou na vida de Cyrilla exatamente no momento errado? perguntou-se. Só mais alguns dias e ela estaria aqui, sem saber sequer que existia alguém chamado marquês de Fane. Por que, por que aconteceu isso?

Era uma queixa que seres humanos vinham fazendo desde o começo dos tempos, reclamando contra o destino, mas sabendo que nada podiam fazer.

Cyrilla pensava a mesma coisa. Teria sido muito bom estar em casa com o pai e saber que ia para o castelo. Teria sido maravilhoso saber que dentro de poucos meses veria de novo seu irmão, se…

Se! Esse era o problema! Se não tivesse conhecido o marquês. Se não o tivesse amado. Se não sentisse que todo o seu corpo chamava por ele.

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Eu o amo!Andava distraída e não escutava o que lhe diziam, porque

ouvia somente o som da voz dele. E nem percebia o que a cercava, porque na sua frente estava somente ele.

E a cada minuto ela se lembrava da maravilha dos lábios dele sobre os seus e de como a proximidade daqueles braços fizera bater seu coração.

O marquês voltou de Islington pela terceira vez, com uma carranca que fez os lacaios no hall de Fane House olharem para ele apreensivamente.

Ashworth foi mais corajoso.— Alguma coisa está errada, milorde?Por um momento o marquês hesitou. Depois, como se não

pudesse conter-se perguntou:— Como se pode encontrar alguém que desapareceu? Onde

se pode começar a procurar uma mulher em toda a cidade de Londres?

Ashworth, que era não apenas perspicaz mas também muito simpático, compreendia agora o que havia acontecido.

— Vossa Senhoria perdeu a dama para quem comprou a casa, milorde?

— Ela desapareceu, Ashworth. Eu disse a ela que iria buscá-la em sua casa, em Islington, mas quando cheguei lá, e voltei lá três vezes hoje, a casa estava vazia.

— Certamente, milorde…— Você quer dizer que deve haver uma razão, Ashworth.

Houve um desentendimento entre nós, embora eu não tivesse percebido na ocasião. Preciso encontrá-la, compreende? Preciso encontrá-la.

Havia algo de muito positivo na afirmação do marquês. Ao mesmo tempo, seu secretário teve a impressão de que era um pedido de socorro.

— Por acaso pensa, milorde — perguntou o sr. Ashworth, depois de um momento —, que houve um acidente?

— Pensei nisso, mas, por razões que não preciso explicar, estou certo de que ela não deixou a casa por acaso, mas intencionalmente.

— Nesse caso, milorde, ela está procurando se esconder de Vossa Senhoria.

— Isso é o que receio, Ashworth. Mas onde? Em nome de Deus, para onde poderia ela ter ido?

— Vossa Senhoria não tem a menor idéia de algum lugar onde ela tenha estado antes?

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— Não — respondeu o marquês. — E ela tinha muito pouco dinheiro.

Os olhos de Ashworth mostraram surpresa. Se a moça em questão não tinha dinheiro, isso significava que o marquês nada lhe dera. O que era muito diferente de seu procedimento habitual, pois ele era extremamente generoso, até exageradamente, em alguns casos.

Ashworth sentia crescer agora sua suspeita de que a dama para quem haviam comprado a casa era diferente das outras que o marquês conhecera.

Toda a atitude do marquês em relação a ela era certamente estranha e diferente de tudo o que Ashworth podia se lembrar de ter visto no passado.

Naturalmente, havia procurado casas para diversas mulheres que se colocaram sob a proteção do marquês, mas ele jamais gastara com elas tanto quanto havia pago pela casa de lady Bletchley.

Em nenhum caso de que Ashworth se lembrasse ele demonstrara tanto interesse pessoal em supervisionar os detalhes da própria casa.

Geralmente, deixava tudo por conta de seu secretário e da dama interessada, exigindo apenas, quando ia jantar lá, que fosse entregue antes um estoque do clarete e do champanhe de que gostava.

Isto é diferente, disse Ashworth consigo mesmo. Sua Senhoria certamente sofreu um duro golpe.

— Eu estava pensando se não seria conveniente empregar um agente de Bow Street — disse o marquês finalmente.

— Seria uma boa idéia, milorde.— Eu não desejaria assustá-la empregando um homem assim,

mas também não tenho a menor idéia de por onde começar a procurar.

Estendeu a mão, num gesto de desânimo, e acrescentou:— Deve haver milhares de pensões e pequenos hotéis em

Londres. Como posso procurar em todos eles? Como posso adivinhar onde duas mulheres se esconderiam, de tal maneira que eu não fosse capaz de encontrá-las?

Ashworth hesitou um momento, antes de dizer:— Não pensa, milorde, que a dama poderia mudar de idéia e

talvez mandar uma carta ou uma mensagem, para que entrasse em contato com ela e acabassem os desentendimentos?

Não podia deixar de sentir que, se fizera algo tão drástico quanto fugir dele, a mulher de quem o marquês gostava logo se arrependeria de haver sido tão impetuosa e faria todo esforço para

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voltar a seus braços.Para surpresa de Ashworth, o marquês sacudiu

negativamente a cabeça.— Não penso que ela mude de idéia — disse o marquês, em

cuja voz havia uma expressão que surpreendeu seu secretário mais do que qualquer coisa acontecida até então.

— Vou sugerir, milorde — disse ele, depois de um incômodo silêncio — que me deixe chamar um agente de Bow Street. Conheço um que é extremamente astuto e ao mesmo tempo discreto. É contratado pelas melhores pessoas e sei que tudo quanto lhe disser será absolutamente confidencial.

— Então acho que é melhor chamá-lo — concordou o marquês, como se pensasse que essa era a última esperança.

— Permita-me lembrar-lhe, milorde, que vai jantar esta noite em Carlton House — prosseguiu o sr. Ashworth. — Foi combinado há uma semana e, como não mandou cancelar o compromisso, não tomei nenhuma providência.

— Havia me esquecido — disse o marquês.Enquanto falava, sentia que não tinha o menor desejo de ir a

Carlton House e que inventaria alguma desculpa. Depois, lembrou-se de que, se fosse, poderia ver de novo o quadro de Lochner em que Cyrilla estava retratada.

Lembrou-se também de que tivera a permissão do príncipe para levar o Van Dyke.

Pretendia mandar uma carruagem buscá-lo no dia seguinte, mas encontrara Cyrilla e esquecera o quadro. Achava que não havia razão para ter uma figura pintada do que podia ver, tocar e beijar.

— Eu irei a Carlton House. — Levantou-se da cadeira, enquanto acrescentava: — Quero ver o agente de Bow Street amanhã cedo, logo depois do desjejum.

— Muito bem, milorde. Farei o possível para que ele esteja aqui.

— Só Deus sabe o que mais poderemos fazer — acrescentou o marquês, enquanto deixava a sala.

Ao subir a escada, ia pensando que sonhara poder jantar naquela noite com Cyrilla em sua casa.

Depois faria amor com ela, e seria a coisa mais perfeita e maravilhosa da sua vida.

Agora, estava de volta ao lugar de onde partira, tendo apenas um rosto pintado para olhar e a frustração de saber que tudo fora apenas um sonho, uma fantasia de sua imaginação, porque ela, de fato, estava morta há mais de trezentos anos.

Cyrilla! Cyrilla! chamou do fundo do coração.

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Quando entrou em seu quarto, viu sobre a lareira o esboço que Frans Wyntack fizera dela e que ela lhe dera como presente.

Não era tão belo quanto a primorosa pintura do Lochner, mas era Cyrilla, com seus olhos sonhadores, seus cabelos aureolados de luz e seus lábios estranhamente sedutores.

O marquês fitou-o por longo tempo, depois disse:— Ainda que leve toda a minha vida, eu a encontrarei, juro! E

aí, ninguém me impedirá de torná-la minha esposa!

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CAPÍTULO VI

O faetonte sacolejou e o marquês disse, irritado:— Estas estradas são pavorosas!— É sempre assim quando se sai das estradas principais —

respondeu o príncipe. — Seria muito pior se estivesse chovendo.O marquês olhou para o céu.— Parece haver uma clara possibilidade, sir — observou, em

tom pessimista. — Aquelas são obviamente nuvens de chuva.O príncipe não respondeu. Sabia que o amigo estava

deprimido e não fazia esforço para esconder seu aborrecimento, desde que saíram de Londres.

Sua Alteza Real quase se lamentava de ter feito o que pensara ser uma ação de samaritano, quando forçara o marquês a acompanhá-lo em sua viagem ao campo.

— Você recusou todos os convites que lhe fiz no mês passado, Virgílio — disse ele — e, pelo que soube, passou todo o seu tempo percorrendo a cavalo as ruas pobres de Londres, só Deus sabe com que propósito. — Fez uma pausa à espera da resposta do marquês, que não veio, e, então, prosseguiu: — Você emagreceu e se não tomar cuidado, perderá sua bela aparência.

O marquês de Fane estava, de fato, muito mais magro e havia em seus olhos uma expressão etérea, como se não tivesse dormido.

O príncipe sentia-se perplexo, como todos os outros amigos de Virgílio, mas agora estava decidido a chegar ao fundo do que todos descreviam como “o estranho comportamento de Fane”.

— Quero que você me leve até a propriedade de Searle, em Hampshire. Ouvi dizer que ele está vendendo todos os seus cavalos.

— Todos? — perguntou o marquês, incrédulo.O príncipe compreendeu que havia finalmente despertado a

atenção de seu amigo.— Dívidas de jogo — explicou, antes que o outro pudesse

fazer a pergunta. — Ele vendeu tudo o mais no ano passado e agora vai precisar desfazer-se dos cavalos.

O marquês achava isso inconcebível, pois os cavalos do conde de Searle eram extraordinários e com eles o nobre vencera importantes corridas, que lhe haviam rendido bons prêmios em dinheiro.

— O que estou decidido a fazer — prosseguiu o príncipe — e você também, estou certo disso, é adquirir o melhor do leilão,

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antes que superem meus lances. Searle concordou em deixar-nos olhar os cavalos primeiro.

— Sem dúvida, foi uma atitude muito sagaz da parte de Sua Alteza — observou o marquês. — Como foi possível isso?

O príncipe mostrou um leve sorriso, antes de responder:— Não vou contar-lhe todos os meus segredos, mas como

considero você o melhor entendedor de cavalos da Inglaterra, estou lhe pedindo que me leve a Hampshire amanhã.

O marquês não podia recusar, embora admitisse que a idéia de comprar alguns dos notáveis animais de Searle, no momento, atenuariam o abatimento em que cairá nas últimas semanas.

Era verdade, como dissera o príncipe, que passara seus dias percorrendo as ruas pobres de Londres, procurando ver de relance Cyrilla ou Hannah.

Onde quer que estivessem morando, teriam de sair alguma vez durante o dia e iriam às lojas mais pobres. Estava agora absolutamente certo de que as duas se encontravam desesperadamente necessitadas de dinheiro.

O agente de Bow Street que empregara, percorrera grande número de lugares diferentes, onde podiam ser comprados os alimentos essenciais, mas embora fizesse uma descrição muito fiel de Hannah, ninguém se lembrava de tê-la visto.

Sozinho noites seguidas, em Berkeley Square, o marquês às vezes pensava que ia enlouquecer com a idéia de haver perdido definitivamente Cyrilla, o que admitia ter sido fruto de sua própria inabilidade.

Como pude ser tão insensível? perguntava-se a si próprio. Por que não a compreendi melhor, por que não percebi que ela não era igual às outras mulheres?

Censurar-se, porém, não ajudava a encontrá-la e, na manhã seguinte, ele saía novamente a cavalo e inevitavelmente, porque a esperança demora para morrer, voltava pelo menos duas vezes por dia à pequena casa de Islington.

Amarrava seu cavalo e entrava pela porta dos fundos. Olhava tudo minuciosamente, a fim de ver se conseguia descobrir algum vestígio da presença delas na casa.

Certamente, pensava, Cyrilla voltaria para buscar seus vestidos.

Mas os vestidos permaneciam pendurados exatamente como estavam pela primeira vez e poderia jurar que ninguém tocara em coisa alguma do quarto dela.

Quase infalivelmente, em alguma hora do dia ou da noite, dizia a si próprio que, sem dúvida, havia sonhado aquela história toda, tentando convencer-se de que aquilo tudo não era mais que

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uma alucinação.Mas sabia que, quando tocara os lábios dela, aquele beijo

fora mais real que qualquer outro. E, se vivesse até os cem anos, nunca esqueceria o êxtase e o arrebatamento que conhecera naquele momento.

Em seu sofrimento, o marquês não tinha a menor idéia de como Ashworth e o resto da criadagem se preocupavam com ele.

Sabendo todos eles, a essa altura, que ele estava procurando a bela moça cujo retrato permanecia sobre a lareira de seu dormitório, andavam também pelas ruas, procurando descobri-la, certos de que seu patrão nunca seria feliz se ela não fosse encontrada.

Como estava decidido a ser mais prático em sua ajuda, não se limitando, como faziam no White's, a tagarelar sobre seu imprevisível comportamento, o príncipe pensara durante algum tempo em um pretexto para ficar sozinho com o marquês.

Não fora fácil, pois o marquês recusava todos os convites que o príncipe lhe fazia. Por isso, foi quase com ar de triunfo que o príncipe entrou no faetonte do marquês, que o esperava diante de Carlton House.

— O landô com nossa bagagem foi na frente — anunciou ele. — Assim, nossos criados terão tudo preparado para nós, quando chegarmos. Uma coisa eu digo em favor de Searle, ele tem uma boa adega.

— Quantos cavalos está pensando comprar, sir? — perguntou o marquês.

Enquanto o príncipe meditava sobre a pergunta, o marquês pensou um pouco cinicamente que, na realidade, a resposta deveria ser: “Quantos você estiver disposto a me dar”, porque estava quase certo de que teria de pagar as contas do príncipe.

Estava disposto a fazê-lo. Ao mesmo tempo, lembrava-se de que havia vários cavalos de Searle que ele próprio gostaria de possuir, sendo essa a única razão por que se dispusera a deixar Londres e abandonar durante dois dias as buscas de Cyrilla.

No começo da semana, contratara dois outros agentes de Bow Street e dissera a Ashworth, antes de partir, que, se houvesse alguma novidade, mandasse um lacaio com urgência à casa do conde, de onde voltaria imediatamente.

— Só posso desejar que eu precise fazer isso, milorde — respondera Ashworth.

— Você tem razão — disse o príncipe. — Vai chover. É uma falta de sorte seu faetonte não ter capota.

— Nunca me interessei por isso — respondeu o marquês. —

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Torna o veículo muito pesado. — Pesado ou não, não tenho o menor desejo de chegar

parecendo um rato afogado — queixou-se o príncipe, irritado.O marquês, sentindo as pesadas gotas de chuva no rosto,

chicoteou os cavalos, fazendo uma curva com velocidade maior do que a recomendável pela prudência. Nesse momento surgiu no meio da estrada um carro de fazenda dirigido por um camponês meio adormecido.

— Cuidado! — gritou o príncipe, enquanto o marquês, com notável perícia, conseguia desviar os cavalos em direção à cerca, a fim de evitar uma colisão frontal. Contudo, uma roda do faetonte raspou no carro do camponês.

Ouviu-se um grito do camponês e uma praga do príncipe, enquanto o marquês parava seus assustados cavalos.

— Que pensa que está fazendo? — gritou o camponês, cuja tranqüilidade fora abalada pelo medo.

— Seria melhor se não andasse no meio da estrada! — replicou o marquês.

— Como podia eu saber que vocês iam aparecer na curva como um vendaval? — perguntou o camponês.

O lacaio do marquês correu a segurar os cavalos, enquanto ele descia do faetonte para examinar os danos.

Como previra, a roda estava torta, não muito, mas o suficiente para exigir reparos imediatos.

— Que aconteceu? Podemos prosseguir? — perguntou o príncipe.

— Onde fica o ferreiro mais próximo? — perguntou o marquês ao camponês.

Este meditou sobre a pergunta, antes de responder.— Há um no castelo.— Que castelo? — indagou o marquês.O camponês apontou um dedo sujo em direção a algumas

árvores. Os olhos do marquês voltaram-se para aquela direção e ele pôde ver o alto de uma torre, na qual tremulava um estandarte.

— Quem mora lá? — perguntou o marquês.— É Sua Alteza, o duque.— Duque de quê? — insistiu o marquês.— Aquele é o Castelo de Holm, onde vive o duque de

Holmbury — respondeu o camponês —, e este carro em que vocês bateram é dele.

O marquês tirou um guinéu do bolso, jogou para o ar e o camponês o apanhou, com a expressão estúpida de quem não pode acreditar em sua sorte.

Depois, mordeu a moeda para ver se era legítima.

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— Será que temos de ir até o Castelo de Holm? — indagou o príncipe, quando o marquês subiu ao faetonte.

— Duvido que exista outro ferreiro a menos de algumas milhas de distância — respondeu o marquês, enquanto os cavalos, até agora bem seguros pelas rédeas, prosseguiam vagarosamente.

— Holm não gosta de mim e jamais gostou — disse o príncipe. — Ele sempre ficou do lado de meu pai nas brigas por causa de minhas dívidas. Além disso, ele é muito ligado à minha mãe. Sou capaz de dizer, sem perguntar, o que ele pensa de mim.

O marquês soltou uma risada, sem o menor humor.— Estou certo de que também não sou um dos favoritos dele.

Ele me ignorou ostensivamente, desde que tive uma pequena aventura com uma de suas primas. Foi algo de que me arrependi, porque ela era terrivelmente maçante, mas duvido que ele aceitasse isso como desculpa.

O príncipe riu.— Vejo que não teremos uma recepção cordial. Quanto

tempo demorará o conserto?— Umas duas horas — respondeu o marquês. O príncipe

olhou para o céu.— Eu preferia sentar-me com o próprio diabo a ficar na

chuva. Espero que o duque nos ofereça pelo menos um copo de clarete.

O marquês não respondeu.Se fosse um pouco mais intuitivo, talvez percebesse que o

destino estava sorrindo para ele.

Cyrilla arrumou o tabuleiro de xadrez em que estivera jogando com seu pai.

— O senhor é ótimo jogador, papai! Mas ainda conseguirei vencê-lo. Acho que é um jogo fascinante, que exige mais inteligência do que qualquer outro.

— É verdade. Sempre me pareceu estranho que homens, com uma boa cabeça desperdicem seu tempo jogando cartas e acreditando em algo chamado sorte.

— É ridículo, concordo, papai.Enquanto guardava o tabuleiro de xadrez no canto da sala,

perguntou-se a si própria se o marquês jogaria. Parecia-lhe improvável. Ao mesmo tempo, pensou em como sabia pouca coisa a respeito dele, exceto que o amava e que pensava nele o tempo todo.

— Está chovendo — disse ela, olhando pela janela. — É pena, pois queria ver se os novos peixinhos dourados se acostumaram com os outros.

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— Nós os veremos amanhã — respondeu o duque. — Hoje, iremos ao laranjal. Encomendei novas orquídeas de que certamente vai gostar.

— Oh, papai, que emocionante! — exclamou Cyrilla. — E as laranjeiras estão floridas! Já havia me esquecido de sua beleza!

Havia no castelo muitas coisas de que Cyrilla se esquecera, como ela agora percebia, e mesmo depois de um mês diariamente encontrava uma coisa nova para comentar com seu pai.

Procurava esconder dele seu sentimento de que nada valia a pena e que todo sorriso que dava era com esforço.

Cyrilla achava que ele acreditava em sua felicidade e Hannah era a única pessoa que conhecia a verdade.

— Há mais algumas plantas que pretendo comprar para o laranjal — prosseguiu o duque —, e você precisa me dizer…

A porta abriu-se e Burton anunciou.— Sua Alteza Real, o príncipe de Gales!Por um momento, o duque ficou tão surpreso que nem

sequer se levantou.Quando o fez, o príncipe, resplandecente e sedutor, como

sabia ser quando isso lhe convinha, encaminhou-se para sua direção.

— Vai perdoar-me esta intromissão — disse ele, estendendo a mão —, mas tivemos um ligeiro acidente, diante de seus portões, que lamentavelmente resultou em uma roda entortada. Se puder contar com a sua hospitalidade por uma hora, mais ou menos, ficarei extremamente grato.

O duque inclinou a cabeça.— Vossa Alteza Real é bem-vindo a tudo quanto posso

oferecer. Tenho um ferreiro no castelo.— Foi o que me disseram e ele está neste momento, creio eu,

examinando a roda.— Espero poder oferecer a Vossa Alteza alguma bebida.— Obrigado, obrigado! — respondeu o príncipe, olhando

significativamente para Cyrilla, que se encontrava em pé ao lado de seu pai.

Cyrilla estava, de fato, pensando que o príncipe era exatamente como imaginara.

— Permita-me, sir, apresentar-lhe minha filha, lady Cyrilla Holm — disse o duque formalmente.

— Encantado! Absolutamente encantado! — respondeu o príncipe, olhando para Cyrilla, com a expressão de admiração com que olhava toda mulher bonita.

Depois, quando ela fazia uma mesura, exclamou:— Certamente já nos conhecemos? Ou eu a vi antes em

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algum lugar?— Não… Alteza — respondeu Cyrilla, ao mesmo tempo em

que suas faces se ruborizavam.Sabia muito bem onde ele a vira. O príncipe insistiu, dizendo:— Tenho certeza de que não estou enganado. Eu a vi. Eu

nunca esqueço uma fisionomia!— O marquês de Fane! — anunciou Burton.O duque ficara surpreendido pelo aparecimento do príncipe,

mas Cyrilla, quando olhou para a porta, ficou como que paralisada.O marquês, ainda ignorante de sua presença, avançou pela

sala, com os olhos voltados para o duque, perguntando-se o que diria o relutante anfitrião quando soubesse que o conserto da roda demoraria mais do que havia pensado. Só quando chegou perto, percebeu que o duque olhava para ele de maneira extremamente hostil.

Lançou um olhar de relance para o ambiente e ficou paralisado, como Cyrilla.

Completamente imóvel, olhou para ela e percebeu que seu corpo inteiro estremecia. Ela estava ali! Estava parada à sua frente e a busca terminara.

— Cyrilla!Ouviu uma voz dizer o nome e ficou surpreendido por não ser

capaz de falar.O duque estava de testa franzida, mas o príncipe olhava do

marquês para Cyrilla. Depois, soltou uma repentina exclamação.— Agora sei o que ela me lembra e sei também o que você

estava procurando… a Virgem do quadro de Lochner!O som da voz do príncipe quebrou o encantamento que

mantinha o marquês imóvel.Ele avançou até o lado de Cyrilla, tomou-lhe a mão e disse,

com a voz cheia de emoção:— Eu… eu a encontrei! Como pôde me deixar, como pôde ser

tão cruel? Eu fiquei tresloucado… fora de mim… porque pensei que nunca a encontraria de novo!

Cyrilla olhou nos olhos do marquês e pareceu-lhe, naquele momento, que o mundo todo dava uma cambalhota e caía de novo exatamente no lugar onde devia estar.

O marquês estava ali e ela não estava mais sozinha!Os dois pareciam hipnotizados e se consumiam de amor.Abruptamente, o duque assumiu o controle da situação.— Eu soube, Fane — disse ele —, que você se encontrou

antes com minha filha e a tratou de uma maneira que certamente não o recomenda.

Com um esforço, o marquês desviou o olhar de Cyrilla para o

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duque. Fitou-o como se não compreendesse o que ele dizia. Depois, como se encontrasse as palavras com dificuldade, disse:

— Eu posso explicar, milorde.— Não é necessário — respondeu o duque rispidamente. —

Cyrilla, quer pedir a Burton que traga vinho para Sua Alteza Real? E depois retire-se para seu quarto.

— Sim… papai! — respondeu Cyrilla, depois de um momento de hesitação.

— Não! Você não pode me deixar! — exclamou o marquês, segurando a mão dela.

Era como se ele tivesse voltado à realidade.Cyrilla lançou-lhe um olhar rápido e assustador e, retirando

sua mão, atravessou a sala em obediência à ordem de seu pai.Temendo por um momento que o marquês a seguisse, o

duque disse rapidamente:— Vossa Alteza Real quer sentar-se? E você também, Fane.

Talvez queira ter a bondade de dizer qual a opinião de meu ferreiro sobre o estado da roda de seu carro.

Os olhos do marquês ainda seguiam Cyrilla, que chegou à porta, abriu-a e saiu por ela sem olhar para trás.

Com esforço, o marquês sentou-se em uma cadeira na frente do duque, dizendo:

— A roda? Oh, sim, a roda do faetonte! Receio que vá demorar algumas horas.

— Espero que Vossa Alteza não ache que estamos abusando de sua hospitalidade — falou o príncipe.

— É claro que não, sir — respondeu o duque. — Posso lhes oferecer alguma coisa para comer, se ainda não almoçaram.

— Nós comemos alguma coisa a caminho daqui — respondeu o príncipe —, embora não possa dizer que tenha sido uma refeição adequada. Se, antes de partirmos, Vossa Alteza puder oferecer-nos um pequeno repasto, asseguro-lhe que não recusaremos.

— Providenciarei isso — prometeu o duque. Ergueu os olhos quando a porta se abriu. — Ah, aí está o vinho. Espero que seja de seu gosto, pois sei que é um entendido na matéria.

Não disse isso como se fosse um elogio e o príncipe percebeu exatamente suas intenções.

Controlando seus impulsos, respondeu gravemente:— Vossa Alteza é muito generoso. Fane e eu estamos

extremamente gratos.Burton, tendo ao lado um lacaio carregando uma bandeja de

prata, caminhou em direção ao príncipe e o duque, e fazendo uma inclinação formal, retirou-se da sala.

Quando o duque chegou ao hall, viu que Cyrilla estava

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parada ao pé da escada. Teve a impressão de que ela estava hesitando entre desafiá-lo e voltar ao salão ou obedecer e subir para seu quarto.

Quando viu o pai, correu para ele.— Por favor… papai, por favor — disse. — Preciso ver o

marquês… sozinha, por um momento. Por favor… deixe-me fazê-lo.O duque sacudiu negativamente a cabeça.— Não tem sentido torná-la mais infeliz do que já foi —

respondeu ele. Cyrilla ergueu os olhos para seu pai, que acrescentou: — Eu não sou cego, minha querida. Sei como você está sofrendo, mas nada pode ser resolvido com discussões sobre isso. Você conhece os sentimentos dele. Naturalmente, podem ter mudado pela diferença havida em sua posição, mas está realmente disposta a acreditar em qualquer explicação que ele lhe dê?

O duque só estava expressando o que a própria Cyrilla pensava. Por um momento ela não falou, depois disse, com voz triste:

— Estou certa de que tem razão, papai. — E começou a subir a escada. O duque observou-a por um momento, depois suspirou e desceu em direção ao escritório do administrador.

Estava decidido a servir comida e bebida ao príncipe, depois livrar-se dele e do marquês de Fane o mais depressa possível.

Encontrando um lacaio, mandou-o procurar o administrador, que, em seu entender, seria mais capaz do que qualquer outra pessoa, de apressar o conserto da roda do faetonte.

Cyrilla subia vagarosamente os degraus, como se tivesse ficado velha repentinamente.

Estava quase chegando ao alto da escada, quando ouviu uma porta abrir-se embaixo e olhou para lá.

Viu o marquês sair do salão e dirigir-se apressado para a porta da frente, onde dois lacaios estavam em serviço.

— Onde está lady Cyrilla? — ouviu-o perguntar.O lacaio ergueu os olhos em direção a Cyrilla, antes de

responder, e o marquês, seguindo seu olhar, viu-a também.Subiu a escada pulando os degraus de dois em dois. Quando

alcançou-a, tomou-lhe a mão e conduziu-a até o patamar.— Preciso falar com você, por favor — disse, com aflição. —

Mostre-me onde poderemos conversar.A aflição em sua voz contaminou-a. Abriu uma porta que

dava para uma sala de estar ligada ao seu dormitório.Dera ao aposento um toque muito pessoal, com um retrato

de sua mãe sobre um pequeno cavalete ao lado da janela. Se nada mais dissesse ao marquês que pertencia a ela, isso seria indicado pela profusão de flores que havia em todo o aposento.

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Ele entrou na sala e fechou a porta depois de passar.— Minha querida! Meu amor! — exclamou. — Encontrei-a de

novo quando pensava tê-la perdido para sempre!Havia em sua voz um tom que ela nunca ouvira e que a

comovera como nunca havia comovido até então.Cyrilla olhou em seus olhos e sentiu que não poderia resistir.Um momento depois, estava em seus braços e ele a beijava

freneticamente, apaixonadamente, desesperadamente, como se voltasse de um túmulo de onde nunca esperara sair vivo novamente.

Era impossível pensar. Ela só sabia, tendo sofrido tanto, em tão completa desolação, que o marquês a arrebatava para o paraíso que conhecera quando ele a beijara pela primeira vez.

Era tão perfeito, tão maravilhoso, que ela só podia sentir-se como se ele tivesse trazido de volta seu coração, que batia freneticamente. Eles eram um do outro e ninguém mais poderia separá-los.

Eu o amo! tentou dizer Cyrilla, mas o marquês disse por ela:— Eu a amo! Eu a adoro! Quando poderemos nos casar?Essas eram as palavras que ela desejava ouvir dele e, no

entanto, agora que ele as dissera, não significavam mais nada.Ele a amava como ela o amava e naquele instante teve

certeza de que o casamento não poderia torná-los mais unidos do que estavam naquele momento.

Depois, o marquês voltou a acariciá-la, beijando seus olhos, suas faces, seu queixo e até mesmo seu pequeno nariz reto, antes de chegar a seus lábios.

— Minha querida! Minha adorada! Meu amor! Minha Virgem dos Lírios! Você é minha! Completa e absolutamente minha! Corri toda a cidade de Londres procurando você. E você estava aqui, o tempo todo, onde o destino teve a generosidade de me trazer!

— É sempre o destino… quando se trata de nós dois — conseguiu sussurrar Cyrilla.

— Nunca a perderei de novo — afirmou o marquês. — Nós nos casaremos imediatamente. Minha querida, até minha aliança estar em seu dedo, juro que não a deixarei sair de minha vista.

Ele percebeu, pelo resplendor em seu rosto, que era isso que ela desejava.

— Tenho tantas explicações a lhe dar — prosseguiu —, tantas desculpas a pedir! Mas isso não é importante. Realmente importa apenas que eu a amo, que nós nos casaremos e seremos felizes, como sabíamos que seríamos no primeiro momento em que nos vimos.

— Eu… o amo! — sussurrou Cyrilla. — Mas… que dirá papai?

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As palavras saíram de seus lábios sem que ela pensasse e, enquanto falava, a porta abriu-se e o duque entrou na sala.

Um olhar para seu rosto disse a Cyrilla como ele estava zangado. Instintivamente, ela se aproximou um pouco mais do marquês, como que à procura de proteção.

— Seu comportamento, Fane, não me surpreende! — disse o duque ferozmente. — É o que eu poderia esperar de você.

— Não estou compreendendo, milorde — respondeu o marquês. — Gostaria de ter sua permissão para me casar com Cyrilla. Nós nos amamos e isso é o que desejamos.

— Casamento? — explodiu o duque. — Então, é isso que você está oferecendo a ela agora? Você não estava disposto a oferecer-lhe casamento antes de saber que ela era minha filha.

O marquês afastou-se de Cyrilla e endireitou-se.— É difícil explicar, milorde — disse ele —, mas vou tentar

fazê-lo. Não sei o que Cyrilla lhe contou sobre nosso encontro, mas não tivemos tempo de explicar coisa alguma a nosso respeito, a não ser que nos amávamos.

O marquês viu a expressão de escárnio no rosto do duque e percebeu que ele não aceitava o que lhe dizia.

— Asseguro a Vossa Alteza que essa é a verdade. Foi só depois que Cyrilla fugiu de mim que eu percebi, e admito que foi muita estupidez de minha parte, que ela queria se casar comigo, como eu quis me casar com ela assim que percebi isso.

Enquanto falava, o marquês percebia que estava se explicando muito mal.

— É fácil dizer isso agora — retrucou o duque. — A verdade, Fane, é que você não ofereceu casamento à minha filha e, permita-me dizer, firme e categoricamente, que não estou disposto a aceitá-lo como genro.

Cyrilla soltou um pequeno grito.— Oh, papai! O senhor não pode estar falando sério.— Estou falando muito sério — respondeu o duque —, e tanto

você quanto o marquês sabem que não poderão se casar agora, nem no futuro, sem a minha permissão, que não darei em circunstância alguma.

Falava vagarosamente, como se quisesse fazer com que ambos entendessem a plena significação de suas palavras.

— Se Vossa Alteza me der uma oportunidade de explicar… — começou o marquês.

— Explicações não são necessárias — falou o duque, interrompendo-o. — Eu não o aprovo, Fane, e nunca o aprovei. O que você chama de amor não mudará minha opinião. Um leopardo não pode esconder suas manhas, por mais que tente. — O duque

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viu a expressão de dor no rosto de Cyrilla e prosseguiu, em tom mais bondoso: — Você viu, nos últimos oito anos, o que acontece quando uma mulher viola as convenções e desafia a sociedade. O marquês de Fane zombou das convenções, mais ou menos da mesma maneira. Posso assegurar-lhe que ele não a fará feliz, nem eu permitirei que você viva esse tipo de vida, como sua esposa ou sua amante. — Voltou o olhar para o marquês. — Nada mais tenho a dizer sobre o assunto e peço-lhe, milorde, que se retire de minha casa. Poderá encontrar abrigo nas cocheiras até que a roda de seu faetonte esteja pronta, o que está sendo providenciado o mais depressa possível. Assim que esteja tudo pronto, poderá ir buscar Sua Alteza Real na porta da frente.

Em qualquer outra ocasião, o marquês teria se recusado a aceitar o insulto, mas naquele momento só pôde olhar desesperado para Cyrilla.

— Só posso lhe dizer — falou em voz baixa —, que a amo e que continuarei a amá-la até morrer.

Lágrimas encheram os olhos de Cyrilla, que não pôde responder-lhe. Só pôde cerrar as mãos, enquanto o marquês, com uma dignidade in-disfarçável, virou-se para a porta e deixou a sala sem olhar para trás.

Um momento depois, o duque seguiu-o.Vagarosamente, as lágrimas que enchiam os olhos de Cyrilla

começaram a correr por suas faces.Não soluçou, nem mesmo, como desejava fazer, perdeu os

sentidos. Só disse a si mesma que não queria mais viver.

Havia parado de chover quando a roda ficou pronta, e o marquês levou seu faetonte até a porta da frente.

O príncipe já havia sido informado e agora descia os degraus, escoltado pelo duque.

— Devo agradecer a Vossa Alteza o excelente repasto — disse ele —, e espero ter um dia a oportunidade de retribuir sua hospitalidade.

O duque fez uma inclinação de reconhecimento e ficou olhando, enquanto o príncipe era ajudado por dois lacaios a subir para o alto banco do faetonte, ao lado do marquês.

Afastaram-se, o marquês olhando para a frente, sem se preocupar em tirar o chapéu, como fez o príncipe.

Haviam percorrido apenas curta distância quando o príncipe perguntou:

— Que diabo aconteceu? Você não voltou ao salão e o duque informou-me que estava esperando fora da casa.

— Foi o que ele me ordenou que fizesse — respondeu o

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marquês. — Se quer saber a verdade, sir, ele me expulsou de sua casa.

— Por ter feito amor com a filha dele? Não culpo você. Ela é mais bonita do que parece no retrato.

O marquês não respondeu e o príncipe acrescentou:— Sabemos agora que é uma falsificação, mas incrivelmente

boa! Tão boa, de fato, que me parece valer o dinheiro que paguei por ela. — Interrompeu-se, sorriu e acrescentou, como se sua honestidade o forçasse a admitir: — Ou melhor… que você pagou!

— Isso não tem a menor importância — disse o marquês.— Mas a moça tem — acrescentou o príncipe. — Que vai

fazer em relação a ela?— Que posso fazer? O duque não me dará permissão para

desposá-la.As sobrancelhas do príncipe franziram-se.— Finalmente, você caiu, Virgílio. Bem, isso é sem dúvida

uma surpresa. Ao mesmo tempo, sou capaz de compreender. Ela é adorável, absolutamente adorável.

— Que posso fazer?A pergunta parecia ter sido arrancada de seus lábios.— Por que não foge com ela? — sugeriu o príncipe.— Duvido que ela concordasse com isso! — respondeu o

marquês. — Estou começando a compreender por que ela estava vivendo em Islington, naquela casinha miserável.

— Foi lá que você a encontrou? Por que estaria vivendo lá?— Lembro-me de ter ouvido contar há muito tempo —

explicou o marquês —, que a duquesa havia deixado o duque e estava vivendo na Irlanda.

— Quer dizer que a esposa de Sua Alteza estava vivendo em Islington?

— Em companhia do artista com quem havia fugido — completou o marquês. O príncipe sempre fora muito sagaz.

— É claro! E ele pintou o Lochner falso usando a adorável mocinha como modelo. Que história! Parece coisa saída de um romance!

— Só posso pedir a Vossa Alteza, que não a repita, por causa de Cyrilla — pediu o marquês —, e por mim também.

— É a espécie de história que eu gostaria de cortar — disse o príncipe —, mas se você me pede para guardar silêncio, eu o farei.

— Estou-lhe pedindo que me ajude, sir. Cyrilla é a única mulher com quem desejo me casar. Se o duque nega sua permissão, o que posso fazer?

O príncipe pensou um momento.— Para ser sincero, muito pouco, Virgílio. Sabe tão bem

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quanto eu que, se raptar a filha dele enquanto for menor de idade, se ele quiser uma vingança, você poderá ser degredado. Todo mundo conhece sua fama com uma espada. Mas, na idade dele, é improvável que o desafie para um duelo.

— Foi o que eu pensei — murmurou o marquês.— Acha que lady Cyrilla será capaz de fazer seu pai mudar

de idéia?— Duvido. Não tive tempo de explicar-lhe por que me

comportei daquele jeito.— Você parece ter se metido numa encrenca dos diabos —

observou o príncipe — Mas deve haver alguma coisa que possa fazer. Deus sabe que ela é suficientemente bonita para virar a cabeça de qualquer homem, mesmo a sua.

— Ela já virou!Continuaram rodando, e só quando a casa de lorde Searle

apareceu o marquês disse, como se acabasse de tomar uma decisão.

— Tenho uma coisa a sugerir-lhe, sir. Espero que compreenda.

— Que é? — perguntou o príncipe.— Pretendo não voltar a Londres amanhã, depois de ter visto

os cavalos de Searle.O príncipe virou-se para olhá-lo, surpreendido.— Que vai fazer?— Ficar perto do castelo — respondeu o marquês. — Preciso

ver Cyrilla de qualquer maneira. Talvez consiga subornar uma criada para levar-lhe um bilhete, ou talvez tenha oportunidade de falar com ela quando sair a cavalo. Só sei que, tendo-a encontrado, não pretendo perdê-la de novo. — Respirou fundo e acrescentou: — Quer ela queira ver-me ou não, sejam quais forem os obstáculos em nosso caminho, de alguma maneira eu a verei. Por isso, aconteça o que acontecer, estarei lá.

— Não sei o que fazer com lady Cyrilla, milorde! — disse Hannah, com sua franqueza.

— Notei que ela está comendo muito pouco — respondeu o duque.

— Pouco! — disse Hannah, bufando. — Vossa Alteza sabe que, dia sim, dia não, preciso apertar uma polegada na cintura dos vestidos dela? E não é direito que chore toda a noite, até seu travesseiro ficar ensopado, mesmo de manhã.

O duque andou de um lado para o outro da biblioteca, antes de falar:

— Você não pode esperar, Hannah, que eu aprove o marquês

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de Fane, considerando seu comportamento em relação a lady Cyrilla, quando não sabia que ela era minha filha.

— Ele foi muito bondoso, milorde, no caso dos funerais, e, se há um cavalheiro que a tenha amado, esse cavalheiro é ele. Mas amor é uma coisa, como sabe Vossa Alteza, e casamento é outra!

— Ele não é uma pessoa indicada para se casar com qualquer jovem, muito menos lady Cyrilla — disse o duque firmemente.

— Bem, se ela continuar assim, milorde, não vai se casar com ninguém! — afirmou Hannah. — Só espero que Vossa Alteza saiba o que está fazendo.

Fez uma cortesia diante do duque e, sem esperar que ele respondesse, saiu da biblioteca, perguntando-se, enquanto subia a escada, se teria agido acertadamehte. Contudo, era preciso fazer alguma coisa, embora Hannah não soubesse bem o quê.

Chegou à sala de estar ao lado do dormitório de Cyrilla e encontrou-a como esperava, olhando pela janela para os terrenos ensolarados.

Quando Hannah entrou na sala, apanhou rapidamente o livro que tinha no colo, mas a criada sabia que era apenas simulação e que ela não virará uma página, desde que a deixara para ir à biblioteca.

— Seu pai está sozinho na biblioteca. Por que não vai fazer-lhe companhia?

— Irei, se você acha que ele quer minha companhia — respondeu Cyrilla.

Levantou-se e guardou o livro.Era sua atitude muito submissa, nesses dias, que deixava

Hannah mais preocupada.Era como se Cyrilla não tivesse a menor vontade, nenhum

sentimento para expressar, porque estava só parcialmente viva. Quase como uma marionete, ela se movia de acordo com quem puxava seus cordéis, sem usar sua própria vontade e sem demonstrar o menor interesse pelo que fazia.

— Maldito homem! — murmurou Hannah, entre dentes, quando Cyrilla deixava o quarto.

O “maldito homem”, como Hannah o chamara, estava nesse momento cavalgando ao longo da estrada empoeirada que margeava o parque do duque.

Quando o muro de pedra era baixo, ele podia olhar por cima e, através das árvores, ver o castelo, que se erguia, grande e imponente, sob o sol.

O castelo parecia às vezes ter uma invulnerabilidade que o marquês achava impressionante. Era como se o desafiasse e tinha

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um pouco de medo de não ser capaz de vencer tão insuperável obstáculo.

Ninguém em Londres acreditaria que o marquês de Fane, com suas confortáveis casas e suas grandes posses, estivesse vivendo como estava agora, no desconforto de uma pequena hospedaria de aldeia, a duas milhas do Castelo de Holm.

Não fizera a tolice de acomodar-se na hospedaria local, que ficava no largo em frente aos portões do castelo.

Ainda assim, havia muita especulação sobre ele, entre os velhos que se sentavam do lado de fora da taberna com suas canecas de cerveja, quando ele passava a cavalo de manhã bem cedo e várias vezes durante o dia.

O que não sabiam, porque o marquês era extremamente cuidadoso, era que, escondido nos bosques à volta do parque, ele observava Cyrilla andando a cavalo com seu pai.

Embora pudesse vê-la, não se atrevia a aproximar-se dela. Mas isso era melhor do que ficar sozinho, apenas com seus pensamentos voltados para ela.

A hospedaria em que estava era pequena e limpa, embora muito primitiva.

O marquês parecia não notar a dureza da cama, as dificuldades para obter água quente para se lavar ou a comida modesta que lhe serviam.

De fato, eram seus criados os que mais sofriam, pois tinham aguda consciência de todo aquele desconforto e odiavam permanecer em uma pequena aldeia, sem divertimentos ou atrações que teriam em Fane House.

O marquês, porém, não percebia nada, além de sua necessidade de ver Cyrilla.

Pensava que, em seu novo traje de montar, com um véu de gaze esvoaçando atrás de seu chapéu de copa alta, ela parecia tão adorável e, ao mesmo tempo, tão insubstancial, a ponto de entender que seu pai tivesse ciúmes dela.

Pensava, no entanto, que, de algum modo que ainda não conseguira imaginar, precisava fazer com que o duque cedesse, obrigando-o a concordar com seu casamento.

Até aquele momento, depois de pensar durante uma semana, ainda não encontrara solução para o enigma e nem tinha idéias para o futuro.

Toda manhã, enquanto aguardava que Cyrilla aparecesse no parque, tinha a esperança de que ela viesse sozinha, sem a companhia do duque.

Não ousava aproximar-se dela quando seu pai estava presente, pois sabia que isso só poderia piorar a situação. Tudo

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quanto pudesse dizer seria inútil e anulado pela autoridade do duque.

Só poderia falar com ela se a encontrasse cavalgando com um lacaio ou sozinha, o que era improvável.

Mas os dias se passavam e o duque estava sempre ao lado dela. À tarde, os dois saíam de carruagem e o marquês observava-os, sem ser visto, à discreta distância, entre as árvores.

Pensava que Cyrilla, com um elegante chapéu preso ao pescoço por fitas, parecia tão adorável que, embora não a pudesse ver claramente, seus lábios doíam pelo desejo de beijá-la.

O marquês sabia que, para tê-la mais uma vez em seus braços, seria capaz de renunciar ao céu!

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CAPÍTULO VII

— Estou falando com você, Cyrilla.— Desculpe, papai.Cyrilla falou como se seu espírito estivesse voltado para

muito longe. O duque, sabendo em quem ela estava pensando, cerrou os lábios antes de conseguir dizer, em tom desagradável:

— Estava lhe sugerindo que experimentássemos esta tarde uma nova parelha de baios, que comprei para dar a Edmund, quando ele voltar.

— Uma nova parelha, papai?— Sim, são vendidos aqui mesmo, e eu acho que são ótimos,

embora ainda mal treinados.— Tenho certeza de que Edmund ficará entusiasmado!— Vá pôr seu chapéu, enquanto digo a Burton para trazer o

faetonte. Cyrilla levantou-se, obediente, e deu a seu pai um pequeno

sorriso, antes de se dirigir para a porta.Quando ela deixava a sala, o duque observou como ela

emagrecera e achou que Hannah tinha razão ao dizer que ela estava sumindo.

Perguntou a si próprio o que poderia fazer e não conseguiu descobrir a solução.

O faetonte do duque era muito diferente dos do marquês e do príncipe. Estes eram altos, difíceis de dirigir, mas podiam desenvolver velocidades espantosas.

Contudo, pintado com as cores de Holm, o faetonte do duque, puxado por dois baios perfeitamente emparelhados, era muito bonito. Tomando as rédeas, ele disse aos lacaios:

— Nós só vamos dar um pequeno passeio, por isso não precisam vir conosco.

Os lacaios tocaram as abas de seus chapéus e o duque pôs a carruagem em movimento.

Ele era excelente cocheiro, como Cyrilla se lembrava de ter visto no passado, e teria grande prazer em treinar os novos cavalos de Edmund. Sabendo que isso agradaria a seu pai, disse:

— Estou contando os dias que faltam para rever Edmund. Agora sei que serei capaz de acompanhá-lo, quando montarmos.

— Lembro-me de que você se queixava porque ficava para trás em seu pônei — observou o duque.

— Era muito humilhante o fato de Edmund montar sempre cavalos maiores e mais velozes do que os meus.

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— Agora que está praticando, está montando bem.— Penso que Edmund e eu saímos ao senhor, papai — disse

Cyrilla, percebendo que seu pai ficara contente com a afirmação.Atravessaram o parque e viraram à direita, em volta de um

bosque.— Onde vamos indo? — perguntou Cyrilla.— Eu não estou apenas experimentando os cavalos —

explicou o duque —, mas quero falar com Jackson a respeito de algumas novas construções.

Continuaram rodando e a estrada começou a descer, em acentuado declive, na direção de Dingle Bottom, onde as terras eram muitas vezes inundadas durante o inverno e se tornavam pantanosas.

O duque estava puxando as rédeas para fazer os cavalos diminuírem a velocidade, quando, de repente, da sebe, ao lado esquerdo, saltou um veado.

O animal correu na frente dos baios, assustando-os, de maneira que um deles empinou e o outro recuou, tomando nos dentes uma das rédeas, sob o eixo central.

Por um momento, o faetonte balançou-se, depois os dois cavalos saíram galopando sem controle, em disparada, pela íngreme ladeira que levava a Dingle Bottom.

Puxando as rédeas com toda a sua força, o duque percebeu que estava tendo pouca influência na selvagem corrida dos cavalos. Sabia que a estrada fazia uma curva fechada no sopé do morro, passando sobre uma ponte de pedra.

Desesperado, pensou que, se não pudesse soltar a rédea presa embaixo do eixo e conter a louca corrida do cavalo, era lá que iriam bater. Mas havia pouco tempo para pensar. Perguntou-se ansiosamente se deveria dizer a Cyrilla para saltar. Depois percebeu que isso poderia ser mais desastroso do que a colisão.

Era uma questão de segundos. A ponte apareceu à frente deles e nada havia a fazer. Mesmo aplicando toda a sua força, não conseguia controlar os baios.

Então, de repente, parecendo ao duque ter surgido do nada, apareceu um homem, que, desmontando de seu cavalo, correu para o meio da estrada.

Por um momento, o duque pensou que ele fosse louco.Depois, quando o homem alcançou, estendeu os braços e

agarrou os freios dos dois cavalos, segurando-os com mãos de ferro e contendo sua corrida, o duque percebeu que estavam salvos.

Puxou as rédeas ainda com mais força do que antes, retesando todos os nervos de seu corpo, como sabia estar fazendo

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aquele estranho que segurava os cavalos.Lentamente, a alguns metros da estreita ponte, o faetonte

quase parou.Foi então que um dos cavalos empinou e uma de suas patas

dianteiras atingiu o homem que o segurava, do lado da cabeça.Ele não soltou os cavalos, mas seus pés escorregaram,

quando os animais deram mais alguns passos e o arrastaram.O duque ouviu Cyrilla gritar e um momento depois viu-a

saltar para a estrada, quando os cavalos passaram por cima do corpo do homem que segurava a carruagem e que estava caído ao lado do faetonte.

O duque não podia deixar seus animais ainda assustados, mas sabia, sem precisar virar a cabeça, que Cyrilla estava ajoelhada no chão, ao lado do corpo prostrado do marquês.

Ela beijava freneticamente o rosto do marquês, enquanto lágrimas corriam por suas faces.

— Vai precisar de muitos ternos novos, milorde.— Sei disso — respondeu o marquês, olhando-se no espelho.

Parecia incrível que tivesse emagrecido tanto, mas embora sua calça cor de champanhe fosse tão justa quanto exigia a moda, seu casaco estava sem dúvida deselegantemente largo nos ombros.

— Muitos cavalheiros, milorde — dizia seu criado de quarto — engordam quando ficam tanto tempo de cama, como Vossa Senhoria. Mas a verdade é que nós não esperávamos que fosse como os outros!

Havia na voz do criado um orgulho que o marquês teria achado divertido, se estivesse escutando.

Mas estava pensando se, agora que o médico lhe permitira levantar-se, o duque o mandaria deixar o castelo.

Não vira seu anfitrião, que fora obviamente coagido a levá-lo para o castelo.

Primeiro o médico local, depois sir William Knifton, que fora chamado de Londres, descobriram que tinha duas costelas fraturadas e estava escoriado de uma maneira não apenas extremamente dolorosa, mas que o fazia parecer, conforme ele dizia com desgosto, um “pônei malhado”.

O primeiro baio atingira-o do lado da cabeça e o segundo o pisoteara, quando caíra embaixo do faetonte.

Quando recuperou a consciência, lembrou muito pouco do que acontecera. Depois, gradualmente, foi-se recordando de como, escondido nos bosques, observara Cyrilla e seu pai rodando na carruagem.

Protegido pelas árvores, acompanhara-os a cavalo, pensando,

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como fizera milhares de vezes, o que poderia fazer para encontrar-se com ela a sós.

Notou vagamente que os cavalos, uma parelha bem combinada, eram difíceis de controlar, mas só quando o faetonte começou a descer a íngreme ladeira percebeu que Cyrilla e o duque estavam em dificuldades.

Visto em retrospecto, tudo parecia ter acontecido em uma fração de segundo. Compreendeu imediatamente o que precisava fazer para salvar Cyrilla e teve perfeita noção do perigo que correria.

Mas sabia que nada importava, a não ser que ela estava ameaçada de um acidente, que seria inevitável, se os cavalos não fossem contidos.

— Ouvi dizer — falara sir William Knifton, com um sorriso, quando fez sua terceira visita ao Castelo de Holm para ver seu distinto paciente —, que você esteve bancando o herói! Para prová-lo, tem uma porção de condecorações!

— Posso garantir-lhe que são terrivelmente dolorosas — respondera o marquês.

— Foi muita sorte não ter acontecido coisa pior — afirmara sir William. — Você poderia ter quebrado um braço, uma perna, ou os dois.

— Quando poderei levantar-me? — perguntara o marquês.Fora preciso muita insistência por parte de sir William para

convencê-lo de que era necessário esperar que suas costelas se consolidassem. Sabendo, porém, como o marquês era forte, o médico dissera ao criade de quarto que a recuperação dele estava sendo muito mais rápida que se poderia esperar de um homem comum que tivesse sofrido tais ferimentos.

— Conserve-o quieto o máximo de tempo que puder — recomendara sir William ao criado, antes de retirar-se. — Como ele odeia se sentir fraco e sem ação, faça muita massagem em suas pernas, mas não lhe toque no peito.

— Compreendo, sir — dissera Davis.Era um homenzinho forte e ágil, que estava com o marquês

havia muitos anos e que, à sua maneira, era devotado a ele.De fato, havia sido Davis quem fizera o marquês obedecer às

prescrições de sir William, embora ele praguejasse, freqüentemente, dizendo que não permitiria que alguém lhe desse ordens.

Agora, finalmente, estava em pé, sentindo-se muito melhor do que esperava.

— Vou descer — disse ele. — Vou tomar um pouco de ar, diga você o que disser. Estou enjoado deste quarto e de tudo quanto

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existe nele.Isso não era inteiramente verdade, como o marquês sabia

muito bem.Ao lado de sua cama e sobre a mesa perto da janela, havia

dois objetos para os quais seus olhos se voltavam, não uma vez, mas praticamente em todos os momentos do dia.

Eram dois vasos de lírios.Lírios! Foi a primeira coisa que viu quando recuperou a

consciência. Sabia quem os mandava e que eram uma mensagem dizendo-lhe que, embora não pudesse vê-lo, Cyrilla o amava.

Deitado na cama, muitas vezes se esquecia da dor que estava sentindo, às vezes agudamente, quando via o rosto dela em cada lírio e sabia que as pétalas tinham a maciez da pele dela.

Os lírios eram a única comunicação que tinha com os moradores do castelo em que era hóspede involuntário.

O duque não fora vê-lo, e ele sabia que Cyrilla não teria permissão para isso. Quem o servia era seu próprio criado de quarto.

Ashworth viera duas vezes de Londres, mas o marquês estava tão desinteressado de tudo quanto lhe dizia, que chegou à conclusão de que suas visitas eram inúteis.

Por isso, dissera a Davis que só voltaria se o marquês o chamasse.

— Sua Senhoria tem coisas na cabeça — dissera Davis —, além do que ele chama de “essas dores do diabo” em seu corpo.

Ashworth sabia o que estava na mente do marquês, mas não tirara conclusões sobre as razões por que ele se encontrava no castelo até o momento em que vira Cyrilla.

Reconhecera-a imediatamente pelo retrato que havia no quarto do marquês e, de volta a Londres, dispensara os agentes de Bow Street, entendendo que seus serviços não eram mais necessários.

— Bem, estou pronto — disse o marquês.Enquanto falava, lançou um último olhar à sua elegante

gravata branca, com o laço habilmente dado por Davis, de um jeito que sempre provocava a inveja aos janotas de St. Jame's.

Ouviu-se uma batida na porta. Davis abriu-a, falou com alguém do lado de fora e voltou para dizer:

— Sua Alteza agradeceria se milorde fosse ao laranjal. O marquês soltou um suspiro.Esperava que o duque lhe desse tempo suficiente para

esticar as pernas e tomar um pouco de ar fresco, antes da inevitável entrevista, que não podia deixar de temer.

Achava, porém, que talvez fosse melhor acabar logo com

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aquilo e perguntava-se como poderia, antes que o duque o pusesse fora do castelo, mandar uma mensagem a Cyrilla, dizendo-lhe que precisava vê-la.

Concluiu que não sairia do castelo sem vê-la, sem dizer-lhe quanto a amava e que estava tentando encontrar uma solução para o futuro de ambos.

Desde que recuperara a consciência, estava preocupado, pensando em como poderia fazer o duque mudar de idéia e dar seu consentimento para o casamento de ambos.

Achava improvável que o fato de haver salvo a vida dele e a de Cyrilla influenciasse um homem que o desprezava e o odiava, havia anos, mesmo antes que sua filha estivesse envolvida com ele.

O duque era como todos aqueles que desaprovavam o “grupo de Carlton House”, e dedicavam sua lealdade e sua inabalável fidelidade ao rei, por mais louco que ele pudesse estar.

O marquês pensara em toda a situação durante tanto tempo, que acreditava não haver aspecto dela que não tivesse examinado e ponderado. E acreditava ter quase perdido a esperança de conquistar a felicidade para ele e Cyrilla.

Enquanto caminhavam em direção à porta, parou um momento para olhar o vaso de lírios sobre a mesa, perto da janela. O sol iluminava-os com uma luz que dava às flores um fraco tom dourado. Ele pensou no resplendor que sempre parecia aureolar a cabeça de Cyrilla, como acontecia na pintura de Lochner.

Sabia que, sem a sua pequena Virgem dos Lírios, a vida seria triste e desolada, a ponto de desejar que os cavalos o tivessem matado quando passaram sobre seu corpo.

— Como posso continuar vivendo sem ela? — perguntou, sabendo que isso era impossível…

Mas como poderia fazer o duque compreender essa verdade?Havia mudado muito, desde que a conhecera, porque seu

amor lhe dera uma nova compreensão das pessoas, além de torná-lo capaz de sentir emoções que antes não conhecia.

Rememorou seu comportamento nos anos passados e ficou chocado. Via agora como fora muitas vezes sem sentimentos e insensível. Admitia sua arrogância e seu egoísmo.

Amar Cyrilla fizera com que sofresse com uma intensidade que nunca pensara ser possível. Sabia que, no futuro, se nada mais acontecesse, teria pelo menos mais compreensão com o sofrimento alheio.

— Agora, milorde, tenha cuidado e não se esforce demais — dizia Davis. — Estarei esperando que Vossa Senhoria volte e se deite antes do jantar. Pense Vossa Senhoria o que for agora, mais tarde ficará contente por haver seguido as ordens.

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Ocorreu ao marquês que talvez não voltasse para a cama, mas fosse embora, se o duque não lhe permitisse mais permanecer no castelo.

Contudo, de nada adiantava dizer isso a Davis. Limitou-se a pousar a mão sobre o ombro do criado, quando passava por ele, expressando sem palavras sua gratidão por tudo quanto fizera.

Davis compreendeu e, quando seguia seu patrão com o olhar até a escada, seus olhos pareciam os de um cão fiel.

O marquês desceu a escada vagarosamente e com muito cuidado, segurando-se no corrimão.

Não era difícil andar, pois as massagens de Davis conservaram seus músculos fortes como antes. Mas não queria correr riscos.

Quando chegou ao hall, perguntou a um dos lacaios em serviço:

— Quer me mostrar o caminho do laranjal?— Pois não, milorde.O moço estava ansioso por prestar serviço ao homem que

sempre admirara por suas qualidades de esgrimista e seu sucesso nas corridas de cavalos. E ainda mais, embora o marquês não o soubesse, por sua ação ao salvar o duque e Cyrilla de um acidente que poderia ter sido fatal.

De fato, os velhos camponeses sentados em frente às hospedarias das aldeias haviam bebido à sua saúde com canecas de cerveja.

— É um verdadeiro herói — diziam eles entre si, enchendo mais uma caneca para comemorar.

O marquês avançou pelo corredor que levava ao laranjal.Pensou que era um lugar estranho para a conversa séria que

deveria ter com seu anfitrião.Mas sabia por Davis, que o duque se interessava pelo cultivo

de plantas raras, especialmente orquídeas.Perguntou a si próprio se fora lá que Cyrilla colhera seus

lírios e se poderia agradecer-lhe a mensagem transmitida por eles, que o animava mesmo quando estava mais deprimido.

Lírios, tão brancos, puros e belos como ela; lírios que haviam sempre feito parte de seus pensamentos sobre ela, desde que vira pela primeira vez seu rosto adorável, no retrato de Lochner.

Amei-a à primeira vista!, pensou o marquês.O amor que sentira havia crescido cada vez mais, até encher

todo o seu mundo, e era impossível pensar em qualquer coisa, a não ser em ! Cyrilla e na necessidade que tinha dela.

Quando chegaram ao laranjal, o lacaio abriu a porta e o marquês entrou na suave atmosfera, quente e perfumada.

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Havia orquídeas raras de todas as cores, arbustos exóticos de países estrangeiros crescendo até o teto e até azaléias dos sopés do Himalaia.

O marquês olhou em volta, esperando ver o duque. Depois, de trás da fonte, quase como se emergisse através da água iridescente, apareceu Cyrilla!

O marquês ficou imóvel por um momento, quase não acreditando que a estava vendo de novo, depois de tanto tempo.

Mas ela estava ali, tão adorável quanto os lírios com que a comparara minutos antes em seu quarto.

Ela caminhou vagarosamente em sua direção. Depois, quando estavam distantes apenas por alguns passos, disse, em voz baixa:

— Você está em pé! Eu não sabia que você estava… tão bem!— Estou muito bem — respondeu o marquês.Então, Cyrilla, com uma voz que ele quase não reconheceu,

disse:— Eu estava com tanto medo, tão preocupada! Disseram-me

que você ficaria bom, mas eu achava difícil acreditar.— Mas, como vê, estou bom.— Como pôde ter sido tão corajoso? Tão incrível e

maravilhosamente corajoso? — perguntou Cyrilla. — Eu estava pensando, depois que nos salvou, que você ia morrer e eu nunca mais o veria.

Havia tanta dor em sua voz que, instintivamente, o marquês lhe estendeu a mão. Cyrilla tomou-a nas suas, dizendo:

— Você precisa sentar-se, precisa descansar. Tenho certeza de que não está suficientemente bom para permanecer em pé.

— Sou capaz de fazer qualquer coisa, desde que possa estar com você — respondeu o marquês.

Sentiu que ela o puxava para um lado e verificou que havia ali um banco de mármore coberto por almofadas de seda.

Sentaram-se, ainda fitando-se nos olhos e o marquês pensou, como o fizera tantas vezes antes, que era impossível existir alguém com tanta beleza.

Ao mesmo tempo, porém, percebeu que Cyrilla estava mais magra e havia em seu rosto algo mais espiritual do que antes.

De fato, os olhos dela pareciam extraordinariamente grandes e o marquês sabia que não era apenas porque emagrecera muito, mas também por causa do sofrimento que sentia.

— Você esteve doente, minha querida? — perguntou. Cyrilla sacudiu a cabeça.

— Não, só preocupada por sua causa.— Eu pensei em você. Estava com tanto medo de não tornar

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a vê-la. Só os lírios que mandou me deram esperança.— Pensei que você compreenderia que eu não podia…

escrever-lhe… ou vê-lo.— Eu compreendi — respondeu ele delicadamente. — Mas

que vamos fazer, minha querida?Cyrilla ainda segurava as mãos do marquês, e ele sentiu seus

dedos tremerem.— Que disse seu pai? — perguntou rapidamente.— Nada! Isso é que torna tudo difícil. Pensei que talvez ele

mudasse, depois que você nos salvou… mas ele nada disse… e eu estava com medo de tornar as coisas ainda piores.

— Compreendo. Vou falar com ele. De fato, estou esperando falar com ele neste momento.

— Ele lhe pediu que viesse aqui?— Sim.— Que estranho!— Por quê?— Porque me disse para vir ao laranjal.Cyrilla olhou para o marquês e soltou um pequeno grito.— Ele queria que nos encontrássemos!— Talvez quisesse que nos despedíssemos — falou

vagarosamente o marquês. — Seria uma condescendência por gratidão.

— Despedirmo-nos? Como seria possível uma despedida entre nós?

— É o que estou perguntando a mim mesmo. Oh, minha adorada, tenho tanta coisa a lhe dizer, tanta coisa para explicar.

Ela puxou uma de suas mãos e colocou dois dedos sobre os lábios dele, para que não falasse.

— Não há necessidade. Eu pensei… e compreendi muitas coisas que não havia entendido antes.

— Que é que compreendeu?— Talvez… talvez eu… esteja errada — disse Cyrilla,

hesitando um pouco —, mas senti que, talvez porque desejava que ficássemos sozinhos, como eu também desejava, simplesmente não lhe ocorreu que devia se casar comigo.

O marquês olhou para ela, depois disse:— Como você pode ser tão perfeita, tão maravilhosa a ponto

de compreender o que nenhuma outra mulher seria capaz? Essa é a verdade, minha querida, a única verdade. Mas pensei que nunca conseguiria fazê-la acreditar. — Fez um momento de pausa, antes de prosseguir: — Quando percebi que a havia ofendido, entendi que tolo eu fora em perdê-la. E praguejei contra mim mil vezes por causa de minha estupidez.

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— Eu também fui tola em não compreender — disse Cyrilla —, mas foi tão horrível em muitos sentidos saber que mamãe sofreu por ter fugido com Frans Wyntack. Ela o amava… amava-o desesperadamente… mas eu pensei que aquilo por que ela passou… estragaria nosso amor.

— Estragaria mesmo — concordou o marquês —, e se você tivesse dito, tivesse me explicado…

— Eu sei. Pensei muito nisso… e não entendi, como entendo agora, que o amor é maior que tudo. Maior e mais importante mesmo do que o casamento! — Respirou fundo, antes de continuar: — Se ainda me quiser… e se papai não permitir que nos casemos… eu… irei com você.

Os dedos do marquês apertaram-se sobre os dela.— Você acha que eu permitiria isso? Quero você como minha

esposa. Quero você comigo para sempre, dia e noite, de hoje até a eternidade. — Sua voz era profundo e intensa, com as emoções que ela lhe despertara. Depois acrescentou: — Mas eu a adoro pelo que acaba de sugerir.

— Se você não me levar embora… e papai não nos deixar casar — disse Cyrilla, com voz assustada —, o que acontecerá conosco?

— Essa é a pergunta que fiz a mim mesmo milhões de vezes — respondeu o marquês.

— Tenho rezado tanto para que aconteça um milagre… para que tudo dê certo! Mas… às vezes sinto que ninguém, nem mesmo mamãe, escuta minha prece.

— Sua mãe compreenderia o que estamos sentindo.— Sei disso — respondeu Cyrilla —, e talvez ela ache que foi

tolice minha… não ter ido com você, como queria, para que pudéssemos estar juntos, naquela casinha com o jardim…

— Você estava certa naquela ocasião — afirmou o marquês. — Estava absolutamente certa. Eu a amava, Cyrilla, mas não da maneira como a amo agora. E porque a adoro, minha pequena Virgem dos Lírios, com todo o meu coração e minha alma, não a prejudicarei nem a maltratarei de maneira alguma.

— Mas, nunca me prejudicaria… estar com você.— Prejudicaria! — disse o marquês simplesmente. — Só o

que é bom e perfeito é certo para nós. Por isso, minha querida, se seu pai não permitir que nos casemos, eu terei que ir embora.

Cyrilla soltou um pequeno grito.— Não posso perdê-lo… não posso! Se você me deixar… eu

morrerei! — Apenas sussurrou a palavra, que, no entanto, pareceu ecoar muito forte.

O marquês olhou para ela e o sofrimento expresso nos olhos

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dos dois parecia uni-los mais ainda do que antes.Era como se suas vidas se fundissem e eles estivessem de tal

modo juntos que nem a morte poderia separá-los.Então, quando se olhavam, desesperados, ouviram a porta do

laranjal abrir-se e passos que se aproximavam.Nem o marquês nem Cyrilla viraram a cabeça. Ambos sabiam

quem se aproximava.O marquês, naquele momento, teve a impressão de estar à

beira de um abismo. Sem querer, sua mão apertou os dedos de Cyrilla até eles ficarem sem sangue, depois, com esforço sobre-humano, desviou os olhos dela e olhou para o duque.

O duque parou ao lado deles, fitando-os com uma expressão autoritária e muito severa.

Ia levantar-se, mas o duque estendeu a mão para impedi-lo.— Não se levante, Fane. Acho que você precisa poupar suas

forças, pois esta é a primeira vez que desce.— Só posso agradecer-lhe pela hospitalidade, milorde —

disse formalmente o marquês.Quando falou, sua voz soou como se viesse de muito longe e

não fosse realmente sua.Porque Cyrilla estava perto dele, por causa de tudo que

haviam dito um ao outro, achou difícil fazer sua cabeça trabalhar. Percebia claramente que era quase impossível.

— Tenho recebido boas notícias sobre sua saúde — disse o duque. O marquês respirou fundo.

— Talvez, milorde, quando for conveniente, eu possa falar com Vossa Alteza.

Enquanto falava, percebeu que o duque não olhava para ele, mas para Cyrilla.

O rosto dela, muito pálido, estava erguido para o pai e seus olhos tinham uma expressão de súplica.

Ela não fez o menor esforço para soltar a mão do marquês. Pelo contrário, segurava-se nele como se tivesse medo de que a qualquer momento pudessem se separar para sempre.

O marquês teve a impressão de que se passara muito tempo; poderia ter passado um segundo ou um século, antes que o duque dissesse a Cyrilla:

— Sugiro, minha querida, que dentro de uns dez minutos você leve nosso hóspede para o salão azul. Lá tomaremos chá e depois, se ele não estiver muito cansado, faremos planos.

— Planos… papai? A voz de Cyrilla era pouco mais que um medroso sussurro. O

duque sorriu.— Um casamento, seja grande ou pequeno, sempre exige

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muito planejamento e nós devemos procurar escolher um dia em que os jardins estejam com sua melhor aparência.

O duque afastou-se e eles ouviram a porta fechar-se após sua passagem.

Por um momento, o marquês e Cyrilla ficaram paralisados. Depois, com a voz muito fraca, quase num cochicho, Cyrilla perguntou:

— Você… ouviu o que ele disse… ou foi… imaginação minha? O marquês fez um som que era meio exclamação de triunfo e

meio risada.— Você ouviu e eu ouvi também! Oh, minha querida, minha

amada! Nós vencemos! Está compreendendo? Nós vencemos e não precisamos mais ter medo.

Puxou-a enquanto falava e seus braços enlaçaram-na, segurando-a bem perto de si, com seu lábios sobre os cabelos dela.

— Nós vencemos, minha querida. Podemos nos casar e você poderá er minha. Não precisarei mais continuar procurando a minha pequena Virgem dos Lírios.

O rosto de Cyrilla estava escondido no ombro dele. Depois de um momento, ele disse:

— Você está chorando! Minha querida, não chore!— Não posso acreditar que… seja verdade! Não posso

acreditar que papai realmente… tenha falado sério! — respondeu Cyrilla. — Estou chorando porque me sinto… muito feliz.

O marquês teve o estranho pressentimento de que seria capaz de chorar também.

Sabia que era fraqueza, mas compreendia também que era um incrível e inexplicável alívio saber que Cyrilla agora seria sua.

Depois, com um toque de sua antiga autoridade, segurou o queixo de Cyrilla e virou o rosto dela para o seu.

— Tudo mudou — disse baixinho —, e agora não haverá mais lágrimas, não haverá mais infelicidade.

Olhou para ela, cujos olhos cintilavam, embora ainda houvesse lágrimas em suas faces e em seus cílios.

— Eu a amo. Farei você feliz e depois disso nunca mais precisará chorar.

— É verdade… é… realmente verdade?— É verdade.Depois seus lábios pousaram sobre os dela.Enquanto a beijava, Cyrilla conheceu a maravilha e a glória

que conhecera antes. Mas havia uma nova devoção naquele beijo e Cyrilla sentia que ele estava tão dominado pela emoção quanto ela.

Esse era o milagre por que rezara; esse era o momento em que as trevas desapareciam e eles eram levados juntos para a luz

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radiante que vinha de Deus.— Eu o amo! Eu o amo!O marquês, apertando-a ainda mais, disse:— Foi o amor que fez com que nos encontrássemos e nos

guiou através de todas as dificuldades, até ficarmos juntos, como sempre quisemos.

— É tão perfeito… tão maravilhoso! — disse Cyrilla. — Agora sei uma coisa… que nunca esquecerei.

— Que é, minha adorada?— Por mais que se tente, o amor que vem de Deus não pode

ser destruído!— Foi uma coisa que ninguém conseguiu! — respondeu o

marquês, — Nem mesmo seu pai, com todo o seu poder!— Devemos agradecer a ele — disse Cyrilla. — Assim como

agradeceremos a Deus, porque nos deu a graça que é parte Dele próprio.

— É exatamente isso — concordou o marquês —, e você, minha querida, é boa, pura e perfeita em todos os sentidos, e eu preciso de você para me ajudar.

Cyrilla mostrou um pequeno sorriso que ele pensou ser a coisa mais adorável que já vira.

— Desejo ajudá-lo, mas não para mudá-lo, pois eu o amo como você é. Você é tudo que eu sempre sonhei que um homem deveria ser… bondoso, gentil e muito corajoso. Como pude ter a sorte de encontrar alguém como você?

— Não foi sorte, foi o destino — disse firmemente o marquês —, o destino que vem nos manipulando desde o começo.

Enquanto falava, pensou em como isso era verdadeiro.Fora o destino que fizera Frans Wyntack pintar uma

falsificação de Lochner; o destino que levara o quadro ao príncipe de Gales; o destino que o fizera pintar novamente Cyrilla quando falsificara o Van Dyke.

Afora essa longa cadeia de estranhas coincidências que só poderia ter sido dirigida por uma força situada além deles, fora o destino que o levara ao castelo, quando estava quase sem esperança de reencontrar Cyrilla.

Uma chuva, um acidente na roda de seu carro e lá estava Cyrilla, onde ele nunca esperaria encontrá-la!

O marquês percebeu que se encontrava em silêncio há alguns segundos e que Cyrilla olhava para ele interrogativamente.

— Está pensando no destino? — perguntou ela.— Acho que realmente estava pensando em você. Acho

impossível pensar em qualquer outra coisa.— Do mesmo modo que eu pensava em você. Como poderia

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pensar em outra pessoa quando você está tão perto de mim? No entanto, antes eu não me atrevia a ir até você. Às vezes eu escutava do lado de fora da porta… esperando ouvir sua voz.

— Essa é uma coisa que nunca fará no futuro — afirmou o marquês. — Estará do lado de dentro da porta, perto do meu coração, e nunca, isso eu juro, nunca eu perderei você.

Ela sorriu para Fane e ele pensou que seria impossível uma mulher ser tão adorável e, ainda assim, tão humana, tão parte deste mundo.

— Eu a adoro! — disse ele, agora com um tom de voz apaixonado que não tinha antes. — Quando poderemos nos casar?

— O jardim está com uma aparência maravilhosa!— Vamos ver seu pai e, por favor, minha querida, convença-o

de que, se não permitir que nos casemos muito, muito depressa, nós dois sumiremos e não haverá casamento algum, mas apenas dois fantasmas para assombrar as futuras gerações do castelo.

— Essa é uma coisa que nunca acontecerá.Cyrilla levantou-se enquanto falava. O marquês também se

levantou.Depois, quando se olharam, tudo desapareceu de suas

mentes. Cyrilla estava em seus braços e ele a beijava apaixonada, feroz e insistentemente, mas ela não sentia medo.

Aquilo era amor, divino, mas muito humano.Cyrilla podia sentir o fogo nos lábios de Fane e sabia que ele

estava ateando também uma fogueira dentro dela.Desejava que ele a beijasse e continuasse beijando. Que

ficassem mais próximos e ainda mais próximos um do outro.Não compreendia bem o que sentia, só sabia que era

maravilhoso e que era amor — o amor de que eles nunca mais escapariam e de que ninguém mais poderia duvidar!

F I M

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QUEM É BARBARA CARTLAND?

As histórias de amor de Barbara Cartland já venderam mais de cem milhões de livros em todo o mundo. Numa época em que, segundo a própria Barbara, a literatura dá muita importância aos aspectos mais superficiais do sexo, o público se deixou conquistar por suas heroínas puras e seus heróis cheios de nobres ideais. E ficou fascinado pela maneira como constrói suas tramas, em cenários que vão do esplendor do palácio da rainha Vitória às misteriosas vastidões das florestas tropicais ou das montanhas do Himalaia.

A precisão das reconstituições de época é outro dos atrativos dessa autora inglesa que, além de já ter escrito mais de trezentos livros, é também historiadora, teatróloga, conferencista e oradora política. Mas Barbara Cartland se interessa tanto pelos valores do passado quanto pelos problemas do seu tempo. Por isso, recebeu o título de Dama da Ordem de São João de Jerusalém, por sua luta em defesa de melhores condições de trabalho para as enfermeiras da Inglaterra, e é presidenta da Associação Nacional Britânica para a Saúde.

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A PRIMEIRA VALSANº 33

— Aconteça o que acontecer, não posso viver sem você, Miklós! — disse Gisela, com os lábios trêmulos de medo e angústia, as

lágrimas correndo pelas faces pálidas, os olhos súplices, procurando desvendar no rosto do homem amado as terríveis

razões que o obrigavam a fugir! Por quê? Por que, depois de lhe oferecer as maravilhas do céu, ao som das valsas que embriagavam os salões de Viena, Miklós lhe mostrava agora as portas do inferno,

dizendo-lhe que, mais uma vez, era obrigado a partir?Gisela não entendia o mistério que arrastava Miklós para longe de

seus braços…

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