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    Por fim, a coletnea Mobilizao socialna Amazniavem propor uma possvelcontribuio para o fazer antropolgico.

    Um dos exerccios marcantes da Antro-pologia foi o de deixarmos de falar pornossos objetos de pesquisa, em umarelao que era eminentemente verticale etnocntrica. Atualmente, lidamos cominterlocutores com os quais o dilogo seapresenta cada vez mais encorajado e oretorno das pesquisas cada vez maisfecundo e cobrado por eles prprios.Porm, alm disso, esta coletnea atestaque no apenas os resultados devemser tornados visveis em conjunto, maso fazer-se ouvir cada vez mais umaampliao das prticas dos sujeitos quedescobrem a sua audibilidade, no s notexto acadmico, mas na imagem e naoralidade, marcando a sua posio deautoria e ressonncia poltica.

    LEITE, Yonne de Freitas. 2012. Lnguas ind-

    genas: memrias de uma pesquisa infinda.

    Bruna Franchetto & Thiago Coutinho-Silva

    (orgs.). Rio de Janeiro: 7Letras. 260 pp.

    Evandro Bonfim

    Pesquisador Dept de Antropologia Museu

    Nacional-UFRJ

    A figura do antroplogo como desbrava-dor solitrio h muito vem esmaecendocom a explicitao da srie de mediaese agentes que fazem o ofcio possvelantes mesmo do aceite das populaesnativas. Se missionrios e antroplogosso, a contragosto dos ltimos, brothers

    under the skin como afirma Van derGeest qual seria a relao entre elese os linguistas? A interlocuo prpriados companheiros de viagem parece seradequada para descrever as contribuiesmtuas entre os dois tipos de estudiosos,

    conforme mostra, para o caso brasileiro,o livro Lnguas indgenas: memrias deuma pesquisa infinda com escritos de

    Yonne Freitas Leite, falecida no final de2014. A coletnea de 16 artigos apresentade forma condensada para pblico maisamplo a verso, no campo da Lingustica,de uma das mais importantes incursesda Etnografia americanista, a saber,aquela realizada no mbito do MuseuNacional/UFRJ, de onde saram teoriasde repercusso para a Antropologia atual.As pesquisas de Leite sobre o tapiraprepresentam um marco no s na cons-tituio da cincia lingustica no pas,mas tambm do trabalho de campo emgrupos indgenas.

    Nos textos autobiogrficos (Memriasde uma aprendiz ingnua e A lngua ta-pirap. O caso de uma pesquisa infinda),Leite conta sobre as felizes coincidnciasque a levaram a ter contato nos Estados

    Unidos com dados de lnguas indgenasfaladas em territrio brasileiro e quefizeram com que chegasse depois, pelasmos de Roberto Cardoso de Oliveira,ao recm-criado Setor de Lingustica doDepartamento de Antropologia do MuseuNacional. A unidade estava a cargo doprofessor Mattoso Cmara, colega deLvi-Strauss nos cursos de Roman Jako-bson. A coroao dos acasos afortunados

    vem com a chegada aos Tapirap, grupofalante de lngua da famlia Tupi-Guaranique vive atualmente nos estados de MatoGrosso e Tocantins. A autora conta que,ao contrrio da iniciao traumtica queesperava, encontrou condies naturaisfavorveis e boa recepo por parte dosindgenas e das pessoas que trabalhavamcom eles, como as Irmzinhas de Jesus.

    As principais dificuldades surgiramdos poucos trabalhos, sobretudo emportugus, sobre os Tapirap pocadas primeiras visitas da pesquisadora rea. A falta de material etnogrficoe a necessidade de descrio da lngua

    DOIhttp://dx.doi.org/10.1590/0104-93132015v21n1p224

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    a partir das configuraes prprias dotapirap e no das teorias disponveis,como ressalta a autora deram margem

    articulao entre a Lingustica e aAntropologia que caracterizou grandeparte do trabalho de Yonne Leite. Artigoscomo Lngua e Cultura e A polticade institucionalizao do campo das ln-guas indgenas brasileiras e o papel daAntropologia, presentes na coletnea,so mostras de tal preocupao que seestende para outros textos, como DeHomens, rvores e Sapos: Forma, Tempoe Espao em Tapirap, em que autoraapresenta o complexo sistema de dixise de classificadores tapirap e o articulacom a cosmologia nativa.

    No entanto, a maior parte dos textos dedicada descrio lingustica, tarefaque a autora realiza de forma bastanteparticular: sempre apresentando os ga-nhos e as desvantagens do referencial

    terico do qual se utiliza e transitandoentre as vrias possveis respostas aosproblemas que planteia. Tais artigos sovaliosos para todos os acadmicos quepesquisam povos Tupi, visto que tantoos sete artigos sobre o tapirap quantoos dois sobre o arawet possuem quercomo meta direta ou plano de fundo oproblema da organizao interna aogrupo, principalmente da famlia Tupi-

    -Guarani. Os compartilhamentos e as di-vergncias de determinados elementosfonolgicos ou sintticos fazem com queos idiomas em questo, principalmente oarawet, se apresentem aparentados oracom determinado conjunto de lnguas,ora com outro, abrindo espao para mos-trar que os critrios de filiao genticafornecidos pela Lingustica Histrica

    no so suficientes para estabeleceras relaes entre as lnguas e os povosque as falam. O debate promovido porLeite excede as lnguas particularese toca em classificaes bem aceitaspara a famlia Tupi-Guarani, como as

    que caracterizam inmeros idiomas dogrupo como pertencentes ao tipo sint-tico ativo/no ativo proposto por Klimov.

    Em As classes de verbos intransitivosem lnguas da famlia Tupi-Guarani, aautora mostra como a diviso semnticatradicional entre verbos ativos e verbosde estado no se integra a fatos sintti-cos como a incorporao e a composioatravs de morfemas de mudana devalncia como causativos, fazendo-aconsiderar a separao entre verbosinergativos e inacusativos proposta porHale & Keyser.

    Os artigos sobre o tapirap, o arawete a famlia Tupi-Guarani desvelam outroaspecto importante da obra de YonneLeite que se soma s contribuieslingusticas: o valor do trabalho colabo-rativo e interdisciplinar. Muitos textosso assinados tambm pela linguistaMrcia Dmaso, atualmente professora

    do Museu Nacional, cuja descrio dalngua assurini apresenta a questo dano configuracionalidade na famlia Tupi--Guarani. Leite aborda o tema a partirde uma caracterstica interessante dotapirap encontrada nas demais lnguasda famlia, a aparente ordem livre dosconstituintes (sujeito, objeto e verbo),discusso presente no texto A ordemlivre em algumas lnguas da famlia Tupi-

    -Guarani: em busca de uma proposta deanlise. J os artigos sobre o arawetpartem da descrio preliminar realizadapelo etnlogo Eduardo Viveiros de Cas-tro, cuja monografia sobre o povo Tupi,ento recm-contatado, se inscreve comomarco da americanstica contempornea.

    Dois artigos da pesquisadora mostrampreocupaes mais amplas a partir da ques-

    to das lnguas indgenas. Em O SummerInstitute of Linguistics estratgias e aono Brasil, a autora analisa o significadopoltico da iniciativa missionria queoferecia apoio lingustico e pedaggicopara estabelecer acordos com pases com

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    grupos nativos no cristianizados. Apesarda intensa atividade de ensino universi-trio nos anos iniciais do SIL no Brasil, a

    produo lingustica dos integrantes daorganizao se mostra exgua, diante daquantidade de anos e de grupos indge-nas com os quais trabalharam. Isto por-que, a partir de 1969, o SIL passou a tratardiretamente com a Funai, apoiando-sebasicamente na questo da alfabetizao.A qualidade da maior parte dos trabalhosestava limitada pelo objetivo maior dereduzir a lngua forma ortogrfica,necessria para a traduo da Bblia.Segundo Leite, os resultados prticos doempreendimento so cartilhas nas quaisa lngua indgena aparece esvaziada dequalquer relevncia e conexo com a vidaindgena, trazendo muitas vezes conte-do propagandstico do Estado brasileirodurante o perodo dos convnios oficiais,encerrados em 1977.

    Em O portugus brasileiro, uma ln-gua criola, a autora comenta a hipteseda influncia do substrato indgena naformao do portugus nacional. Dois fo-cos importantes so tratados no decorrerdo artigo: o papel das lnguas francas deorigem tupi (como o tupinamb e o nhe-egatu amaznico) e o portugus faladopor indgenas em regies multilngues,como o Parque do Xingu. A autora conclui

    que certos fenmenos encontrados noportugus brasileiro (como a falta de con-cordncia sujeito/verbo) no poderiam sedever ao substrato indgena em virtudedas diferenas lingusticas substanciaisexistentes, geralmente apagadas atravsda categoria supratnica ndio.

    Assim, os textos selecionados de YonneLeite possuem valor de memria sobre a

    pesquisa em terras indgenas e registrohistrico sobre a conformao mtua doscampos da Lingustica e da Etnologia noBrasil, alm das discusses especficassobre as lnguas tapirap e arawet quebeneficiariam estudiosos dos povos Tupi.

    No entanto, os artigos conduzem ainda oleitor para a reflexo sobre o papel pol-tico do estudo das lnguas indgenas no

    Brasil: atores, motivaes e implicaes, oque s aumenta o alcance e a importnciada obra de Yonne Leite para pesquisado-res das duas disciplinas.

    ROCHA, Lia de Mattos. 2013. Uma favela

    diferente das outras? Rotina, silencia-

    mento e ao coletiva na favela do Perei-

    ro, Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Quartet

    & Faperj. 292 pp.

    Daniela Fichino

    Pesquisadora na Justia Global

    Uma favela tpica da exceo, um casoparticular do possvel, bom para pen-

    sar. No Rio de Janeiro anterior ao incioda implantao das Unidades de PolciaPacificadoras (UPPs), a favela do Pereiropoderia ser tomada como uma ilha detranquilidade em meio a um cenrio deincurses policiais e confrontos comouma favela diferente das outras? Queoportunidades e obstculos esta supostatranquilidade ofereceria ao coletivados moradores e atuao das organi-

    zaes locais e supralocais que existemno mbito da favela? Seria um cenriosuficiente para afastar as representaesque estigmatizam os moradores e osconfundem com traficantes de drogase, consequentemente, alterar o grau deinterlocuo possvel que detm no es-pao pblico?

    Tais questes, aqui simplificadamente

    colocadas, so o ponto de partida para ocuidadoso trabalho de pesquisa realizadopor Lia Rocha na Vila Pereira da Silva,ou simplesmente Pereiro, favela lo-calizada na zona sul da cidade do Rio deJaneiro. Dialogando com uma extensa

    DOIhttp://dx.doi.org/10.1590/0104-93132015v21n1p226