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    A socializao da medicina na era do adhemarismo

    v.20, n.2, abr.-jun. 2013, p.653-673 13791379v.21, n.4, out.-dez. 2014, p.1379-1396 1379

    Fabio de Oliveira AlmeidaDoutorando, Programa de Ps-graduao em Sociologia/

    Universidade Federal de So Carlos.Rodovia Washington Lus, km 235

    13565-905 So Carlos SP Brasil

    [email protected]

    A socializao damedicina na era do

    adhemarismo*

    The socialization of medicinein the era of So PauloGovernor Adhemar de Barros

    Recebido para publicao em abril de 2012.

    Aprovado para publicao em maro de 2013.

    http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702014005000018

    ALMEIDA, Fabio de Oliveira. Asocializao da medicina na era doadhemarismo.Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro, v.21, n.4,out.-dez. 2014, p.1379-1396.

    Resumo

    A anlise observa as conexes entreo processo de profissionalizao dosmdicos paulistas e polticas de sadedo governo estadual de Adhemar deBarros em So Paulo (1947-1951), emmeio a amplas mudanas na rea desade denominadas pelos mdicospaulistas socializao da medicina.

    Reconhecemos aspectos ambivalentespara o profissionalismo mdico diantedesse governo populista, como: aluta mdica pela equiparao ante osadvogados servidores pblicos estaduais;a criao de uma secretaria de sadeestadual; e certos elos contraditriosentre a rea de sade adhemarista e aideologia e a organizao profissionaisda medicina paulista. Nesse particular,o artigo aprofunda a anlise demanifestaes ideolgicas de importanteslideranas mdicas paulistas.

    Palavras-chave: socializao da medicina;adhemarismo; profissionalismo.

    Abstract

    The article analyzes how the process of the

    professionalization of physicians in So

    Paulo related to healthcare policy under

    the administration of So Paulo governor

    Adhemar de Barros (1947-1951) during

    a period of broad change in the realm of

    health known by So Paulo physicians

    as the socialization of medicine.

    Medical professionalism confrontedcertain ambivalences under this populist

    administration, including doctors struggle

    to achieve pay equal to that of state public

    attorneys; the establishment of a state

    health department; and some contradictory

    ties between the area of health under

    Adhemar and the professional ideology

    and organization of medicine in So Paulo.

    The article undertakes a more in-depth

    analysis of the ideological manifestations

    of important leaders in the states medical

    community.

    Keywords: socialization of medicine;Adhemarism; professionalism.

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    Fabio de Oliveira Almeida

    1380 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro1380 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Entre 1940 e 1950, a medicina experimentou relevantes desenvolvimentos tanto de naturezaprofissional como cientfica, tecnolgica e organizacional mais abrangentes, os quais seiniciaram antes, particularmente desde o sculo XIX, e que assumiram contornos especficos

    em distintas partes do mundo, especialmente depois da Segunda Guerra Mundial. Essesdesenvolvimentos alteraram as relaes entre medicina, sociedade e Estado e implicaramprocessos de diferenciao tanto de organizaes e servios de sade como de especialidadesprofissionais, com desdobramentos na iniciativa privada e nas polticas estatais, envolvendo

    mudanas na sade pblica e na assistncia mdica. Houve maior nfase ao trabalhodesenvolvido por equipes de profissionais, realizado em contexto organizacional (hospitalare/ou ambulatorial), alm de ampliao da participao estatal no setor, conforme o caso(Freidson, 2009; Porter, 2008).

    Tais mudanas foram assimiladas peculiar realidade brasileira de tal modo que, nesteartigo, as acompanhamos em relao ao seu impacto junto rea de sade do estado de So

    Paulo, especialmente em meio ao desenvolvimento de polticas pblicas de sade pelo governopaulista, durante o mandato de Adhemar Pereira de Barros como governador do estado (1947-1951). Tal governo populista (French, 1995) foi caracterizado, na rea de sade, pela criaode uma Secretaria de Sade Pblica e Assistncia Social, pelo estabelecimento de delegaciasregionais de sade e expanso de centros de sade e postos sanitrios no interior do estado.

    Alm disso, foi marcante pelas contraditrias relaes entre mdicos e governo em tornoda luta pela equiparao econmico-jurdica de mdicos e engenheiros com os advogadosservidores pblicos estaduais, os quais, poca, recebiam vencimentos superiores aos outrosprofissionais na mesma condio. Ademais, durante esse perodo ocorre a interiorizao da

    Associao Paulista de Medicina (APM), principal entidade mdica paulista da poca, rumoa diversas regies do estado, em um movimento relativamente paralelo ao da configurao

    da nova secretaria de sade. Entendemos que tais circunstncias implicaram um contextodesafiador, mas que tambm serviu de impulso ao processo de fortalecimento coletivo damedicina paulista. Na esteira dessas mudanas, em meio a um amplo processo internacionaldenominado pelos prprios mdicos paulistas socializao da medicina que implicava amaior participao de organizaes estatais e paraestatais nos servios de sade , a criao

    da referida secretaria sinalizou uma ampliao das estruturas estatais de assistncia sade eum crescimento do mercado de trabalho para esses mdicos, que passaram a contar com um

    organismo pblico mais especializado em seu mbito profissional.Nessas circunstncias, talvez fosse possvel afirmar que os mdicos da clnica privada

    representassem interesses relativamente distintos dos mdicos ligados administrao

    governamental, e que talvez tivessem se relacionado de maneira diversa com as polticas desade adhemaristas: de um modo aparentemente mais crtico que os profissionais ligados iniciativa privada, que passaram a atuar sob a concorrncia dos novos servios sanitrios; ede um modo, possivelmente, mais favorvel aos mdicos sanitaristas e profissionais ligados administrao pblica, visto, a priori, terem se beneficiado com o sentido das polticasadhemaristas. Tais distines do campo mdico paulista se situavam em um contexto muito

    particular, em funo de a sade pblica estadual ter adquirido um espao maior desde aPrimeira Repblica (Castro Santos, 2004; Hochman, 1998). Por outro lado, a medicina degrupo, que tambm realiza trabalhos em equipes de especialistas dentro de organizaes

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    de sade, igualmente atravessava significativos desenvolvimentos no perodo estudado. Enfim preciso mencionar o crescimento da medicina previdenciria, que aps 1930 teve sua esfera

    de atuao ampliada, dada a maior ateno do Estado brasileiro aos trabalhadores urbanos

    (Oliveira, Teixeira, 1985; Schraiber, 1993).Contudo, ao analisar dados da poca publicados no jornal O Estado de S. Pauloe naRevistaPaulista de Medicina(da APM), verificamos aes polticas e posicionamentos ideolgicos dosmdicos paulistas que suavizam bastante a aludida oposio intraprofissional. Acreditamos

    que, diante dos fatores mencionados acima e da anlise que se segue, ao longo do governoestudado, os mdicos paulistas experimentaram uma considervel relativizao de suasdiferenas e oposies internas e um reforo da coeso do grupo para enfrentamento dosdesafios de seu tempo. Este artigo procura evidenciar no apenas essa realidade, mas, aindaque particularmente quanto sua relao com as polticas de sade estaduais e mencionadasocializao mais abrangente da medicina, que os mdicos de So Paulo apresentaram uma

    postura tambm ambivalente frente ao governo populista de Adhemar de Barros.

    Populismo e profissionalismo mdico

    De uma perspectiva mais geral, muitas vezes o populismo tem sido discutido como umfenmeno poltico brasileiro caracterstico dos anos entre 1930 e 1964, sendo-lhe peculiar

    a emergncia das massas populares como relevantes atores polticos, em um contextode crise de hegemonia entre as classes dominantes e autonomizao do poder de Estadojunto sociedade (Weffort, 1978; Saes, 1985). Nesse enquadramento, o conceito de massas

    vem sendo empregado em seu sentido marxista original, ou seja, como classes sociais decomportamento poltico heternomo e relaes sociais amorfas, o que relativizaria os

    termos da influncia poltica dos grupos populares, que assim permaneceriam sob a tutelae manipulao poltica estatal e das chamadas lideranas populistas.

    No entanto, conforme Ferreira (2001), outros pesquisadores tm sido crticos dessa visodicotmica desigual e sem interlocuo entre Estado e sociedade. Sem rejeitar o conceito depopulismo de uma forma mais ampla, autores como John French (1995) propem outro eixoexplicativo, que destaca as relaes entre as classes sociais e o Estado populista como relaes

    de aliana: assim, as relaes entre trabalhadores, Estado, classes mdias e burguesia se teriam

    constitudo em termos de interlocuo e alianas que, embora estabelecidas entre atoresdesiguais do ponto de vista sociopoltico, no prescindiram de conflitos ou negociaes. Taisalianas no seriam apenas bilaterais, mas parte de um sistema contraditrio de alianas decada um dos grupos envolvidos. Com efeito, entendemos que a estrutura de poder populista

    possibilita a investigao no apenas das classes tomadas como agregados estanques, mastambm o estudo das relaes de aliana entre setores ou grupos sociais determinados, queassim integram uma mesma classe e se caracterizam por lgicas sociopolticas relativamentepeculiares e especficas que no se encontram direta e imediatamente subsumidas lgicadas relaes de classes.

    Em nossa anlise, acompanhamos as relaes de aliana entre alguns setores declasse mdia paulista e o Estado populista, quais sejam, determinados grupos mdicos,em termos de suas alianas com o poder de Estado em So Paulo durante o governo de

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    1382 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro1382 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Adhemar de Barros. Tais relaes marcaram o processo de profissionalizao dos mdicospaulistas. Questionamos como tais grupos sociais, presentes na estrutura sociopoltica de

    So Paulo, relacionaram-se com essa expresso de liderana populista. Nesse nterim, so

    valiosas as contribuies de Eliot Freidson (2001) sobre o profissionalismo e os processosde profissionalizao. Segundo o autor, o profissionalismo sustenta-se na valorizao domrito e da expertiseprofissionais, alegando que, nessas condies, os profissionais atuam demaneira autnoma tanto da clientela como dos patres, na defesa de valores transcendentes

    como a sade, que tem sido amplamente defendida como um importante valor socialpela medicina.

    Freidson no nega, mas reconhece a existncia de interesses profissionais especficos;contudo, em vez de salientar um possvel sentido meramente usurpador de poder nasestratgias profissionais, destaca tambm suas estratgias de autoproteo, conquista emanuteno de autonomia profissional frente s influncias e interferncias externas.

    Assim, a autonomia tcnico-profissional permitiria aos profissionais oferecer servios demelhor qualidade e com independncia sociedade e ao Estado. O conceito de autonomiacarregaria: Duas implicaes bem diferentes autonomia da influncia ou poder deoutros, e autonomia para influenciar ou exercer poder sobre outros (Freidson, 2009, p.410;destaque meu). Como conceito sociolgico, o profissionalismo reuniria as caractersticas

    institucionais e ideolgicas dos grupos ocupacionais organizados sob sua lgica. Em SoPaulo, podemos observar tais caractersticas em relao s condies da medicina paulistadurante o governo adhemarista.

    Os mdicos de So Paulo realizavam atividades laborais especializadas, sustentadas por

    conhecimentos tcnico-abstratos discricionrios (expertise), e ocupavam um importante espaona fora de trabalho. Eram mdicos generalistas, sanitaristas e especialistas clnicos e/ou

    cirurgies que dominavam conceitos, mtodos e tcnicas para a realizao de diagnsticos etratamentos de diversas enfermidades. Tais mdicos controlavam uma jurisdio exclusivae ocupavam posio dominante nos hospitais, servios sanitrios e demais organizaes desade. Mantinham credenciais profissionais exclusivas em instituies de formao de nvelsuperior, que transmitiam conhecimentos, formavam e credenciavam profissionais, como:

    Faculdade de Medicina e Faculdade de Higiene e Sade Pblica, ambas da Universidade deSo Paulo (USP), e Escola Paulista de Medicina. Enfim, esse grupo cultivava uma ideologia

    que primava mais pelo compromisso com a realizao de seu trabalho com qualidade quesua eficincia econmica: notvel tanto em crticas de lideranas associativas influncianegativa de interesses econmicos privados sobre a rea de sade como em divergncias

    com organismos estatais que no nutririam condies apropriadas ao seu trabalho nem aoatendimento populao. Apesar dessas crticas, o compromisso com valores socialmentesuperiores tambm se expressava na justificao de maior participao do Estado na rea desade, a despeito do consequente e nem sempre bem-vindo assalariamento de profissionais(Ramos, 1949).

    Encontramos, portanto, linhas de convergncia entre traos especficos do aludido

    conceito de profissionalismo e significativas caractersticas da medicina paulista, que possuaconsidervel autonomia tcnica e permanecia em peculiares condies de interlocuo como estado adhemarista.

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    De acordo com Terence Halliday (1999), em sua relao com o Estado, os profissionaisno apenas produziriam expertisequele, mas, embasados na neutralidade do conhecimento,

    organizar-se-iam em nome da sociedade civil para defend-la da autoridade estatal, em favor

    do bem comum: o que ele denomina profissionalismo cvico. Halliday no exclui a existnciade interesses jurisdicionais na atuao profissional nem interesses por statusou benefcioseconmicos e polticos. O autor acredita que as motivaes do agir profissional implicam umcomplexo amlgama de orientaes que difere conforme o contexto poltico, econmico ou

    profissional. Mas, ao lado dessas motivaes, o socilogo encontra uma motivao cvica,centrada na neutralidade da tcnica e em suas distines sobre a poltica partidria, a fim depreservar o mbito profissional das influncias polticas externas prejudiciais sua posiona sociedade.

    Halliday percebe uma tensa coexistncia entre o que ele chama de centro da profisso,ou elite, com perfil mais conservador, e a periferia, ou base, mais engajada politicamente.

    O primeiro grupo mantm uma fronteira mais rgida entre o aspecto tcnico-profissionale o poltico-partidrio; j o segundo tende a mesclar ambos os aspectos. Essa polaridadepermite-nos fazer uma aproximao da teoria de Halliday com a teoria formulada por PierreBourdieu acerca do conceito de campo: [este] se define como o locusonde se trava uma lutaconcorrencial entre os atores em torno de interesses especficos que caracterizam a rea em

    questo (Ortiz, 1983, p.19), em que se notam posies de poder em funo da distribuiodesigual de um quantumsocial em seu interior, que o autor chama de capital social, sendoo eixo fundamental da estrutura do campo constitudo por dominantes e dominados. Assim, ogrupo dominante estabelece prticas ortodoxas de conservao do capital acumulado, ao passo

    que o outro utiliza prticas sociais heterodoxas, a fim de desacreditar o poder de seus rivais.No campo profissional, como da medicina, a autonomia tcnica representa a base de seu

    poder e fonte principal de sua dinmica e lutas internas. Parte importante da fundamentaodessa autonomia advm da preservao de certa neutralidade tcnica diante da influnciapoltico-partidria. Isso constitui uma espcie de ortodoxia, qual se contrape umaheterodoxia representada pela postura que aproxima a expertiseprofissional de um maiorengajamento poltico. No caso dos mdicos de So Paulo, verificamos como lidaram com os

    dilemas relacionados influncia poltica do adhemarismo, responsvel pelo desenvolvimentode polticas de sade com significativas implicaes no profissionalismo mdico. Considerada

    essa relao do ponto de vista das conexes entre neutralidade tcnica e poltica, observamosambivalncias entre a medicina e o adhemarismo. Verificamos, ainda, como observado, certarelativizao das oposies internas aos mdicos em termos de hierarquia de poder e entre

    os diversos setores e especialidades , a fim de esse grupo se fortalecer e enfrentar as mudanassetoriais que acompanham o perodo.

    A sade adhemarista e a medicina de So Paulo

    As polticas de sade de Adhemar de Barros ora impulsionaram a autonomia profissional

    mdica (Freidson, 2009), ora atuaram negativamente, e foram empreendidas em umconturbado ambiente, marcado por contraditrias relaes entre as partes em torno da

    conhecida questo de equiparao, que se estendeu ao longo desse governo. Esse episdio

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    1384 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro1384 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    implicou a tentativa do grupo mdico paulista de equiparar-se jurdica e economicamente aogrupo dos advogados que trabalhavam para o Departamento Jurdico do Estado de So Paulo

    e que recebiam vencimentos superiores aos mdicos servidores estaduais.

    Essa luta, entre momentos de aproximao e distanciamento com o governo Adhemar,aproximou a medicina da categoria dos engenheiros que tambm trabalhavam para omesmo governo. Aliados, criaram o Movimento de Assembleia Permanente de Mdicos eEngenheiros, que lutou pela equiparao. O movimento, embora inicialmente bem recebido

    pelo governo paulista, que chegou a prometer a realizao da desejada mudana, entrou emforte atrito com Adhemar e com a Assembleia Legislativa estadual, por conta do posteriordesinteresse do governo de atender sua demanda e em razo do polmico projeto de lein.209, o qual propunha, entre outras questes, a mencionada equiparao. O governador emdico Adhemar de Barros chegou a ser considerado inimigo da categoria mdica; deputadosestaduais e profissionais mobilizados desentenderam-se e apenas reataram o dilogo por

    interferncia do arcebispo de So Paulo da poca, dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota.Alm disso, essa mobilizao produziu uma greve que levou colegas de profisso a excluirde suas associaes os profissionais contrrios mesma. No entanto, embora o polmicoprojeto tenha sido aprovado e sancionado pelo poder pblico, foi acompanhado de umveto que excluiu de seu texto a pretendida equiparao. Se, do ponto de vista da autonomia

    e neutralidade tcnicas, os mdicos restringiram seu mbito de influncia, ameaando nooferecer seus servios aos deputados contrrios s suas demandas e entrando em atrito comcolegas de profisso, por outro lado, esse movimento fortaleceu a coletividade mdica,beneficiando sua autonomia profissional pela extenso de sua organizao poltica estadual,

    pois mobilizou distintas entidades como a Associao Paulista de Medicina, a Sociedade deMedicina e Cirurgia de So Paulo e o Sindicato Mdico de So Paulo e criou vrios ncleos

    do movimento no interior.A questo da equiparao revelou apenas uma faceta das ambivalncias entre os mdicos

    e o governo estadual. No processo de criao e organizao, em 1947, da nova Secretaria deSade Pblica e Assistncia Social, notamos um relativo movimento pendular que oscilouentre considervel instabilidade e politizao do comando dessa secretaria e a promoo de

    uma reforma nos servios de sade estaduais. Do ponto de vista da autonomia profissional,de um extremo a outro desse movimento pendular tambm evidenciaram-se ambivalncias

    nas relaes entre a medicina paulista e o adhemarismo.Tal instabilidade se relacionava a um agitado contexto poltico que acompanhou esse

    governo. Desde o incio de seu mandato, Adhemar de Barros promoveu significativas

    alteraes em seu secretariado causadas por motivaes poltico-partidrias. Vrias dessasmudanas aconteceram em funo da instabilidade poltica do governo, marcado por forteoposio da Unio Democrtica Nacional (UDN), do Partido Social Democrtico (PSD) e atdo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) (Sampaio, 1982). Nesse contexto, negociaes polticasque implicaram tentativas do governo de contornar tais crises produziram alteraes no seusecretariado.

    Seja por razes partidrias ou no, apenas no ano de 1947, o titular da pasta da Sade substitudo vrias vezes. Alm disso, outros ocupantes de cargos importantes na Secretariade Sade so substitudos, como os diretores do Departamento de Profilaxia da Lepra, do

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    v.20, n.2, abr.-jun. 2013, p.653-673 13851385v.21, n.4, out.-dez. 2014, p.1379-1396 1385

    Instituto Butant e do Departamento de Sade. Com efeito, deve-se observar que, quanto aocargo mais importante da administrao sanitria paulista entre 1889 e 1947 isto , diretor

    sanitrio (primeiramente) e secretrio da Sade (mais tarde) , a tendncia de instabilidade

    e mudana de comando tpica do governo adhemarista contrasta com a tendncia no setorao longo da Primeira Repblica: enquanto, nesse perodo, houve em So Paulo um diretordo Servio Sanitrio como Emlio Ribas, que permaneceu no cargo durante quase vinte anos,no governo de Adhemar de Barros as substituies de secretrios se estenderam alm do

    primeiro ano de mandato.Essa instabilidade poltica no se restringiu questo das trocas de secretrios ou

    diretores de departamentos. Verificou-se, ainda, em dois polmicos episdios. O primeiro,que ficou conhecido como o caso do Hospital das Clnicas, diz respeito ciznia emtorno do oramento do governo e o impacto, para as contas pblicas, das verbas destinadasao Hospital das Clnicas da USP. Esse evento repercutiu no somente na imprensa como

    tambm entre os grupos polticos, servindo como mais uma fonte de atritos entre situaoe oposio estaduais (O Estado..., 26 jan. 1949, p.3; 30 jan. 1949, p.3; 16 fev. 1949, p.4).A comisso da Assembleia Legislativa responsvel pela questo no teria seguido aquiloque o governo paulista desejava e apresentou um oramento maior para o Hospital dasClnicas que o governo pretendia grupos polticos adhemaristas culparam a UDN pelo

    acontecimento.O outro episdio deveu-se a um processo de transferncias e relotao de funcionrios

    ocorrido no Instituto Butant, em 1948, fato que gerou manifestaes polticas significativasda oposio na Assembleia Legislativa. Em sesso noturna relatada pelo jornal O Estado deS. Paulo, em 6 de fevereiro de 1948, o deputado oposicionista Ernesto Pereira Lopes (UDN)criticou mudanas de funcionrios, as quais teriam prejudicado os trabalhos da instituio. Mas

    as acaloradas discusses entre oposio e situao se prolongaram ainda mais e tomaram boaparte daquela sesso noturna da Assembleia Legislativa. Houve outros processos de relotaode funcionrios no governo Adhemar que alteraram relativamente sua configurao interna,mas nenhum gerou tanta polmica.

    Toda essa instabilidade levou mdicos paulistas a demandar a permanncia de um

    profissional da rea para o comando da Secretaria de Sade, escolhido essencialmente porcritrio tcnico, algo talvez difcil naquelas circunstncias. Acreditamos que essa instabilidade

    decorreu em parte do fato de Adhemar ter-se desentendido com foras polticas tradicionaisdo estado, criando um ambiente mais hostil para seu governo. Alm disso, inegvel quehouve uma transio que reorganizou os servios de sade, culminando na criao da

    Secretaria de Sade Pblica e Assistncia Social, produzindo um contexto de mudanas comfortes implicaes polticas.

    A Secretaria de Negcios da Sade Pblica e Assistncia Social foi criada pelo decreto-lein.17.339, assinado em 28 de junho de 1947. Com essa secretaria, embora os mdicos tivessemobtido uma relevante conquista para sua autonomia profissional em mbito estadual, tiveramde enfrentar significativa politizao da mesma, o que representou um desafio ao grupo mdico

    do ponto de vista do profissionalismo, pois a constituio da secretaria foi acompanhadade um campo de tenses e conflitos em torno das fronteiras entre poltica e neutralidadetcnico-profissional (Halliday, 1999).

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    1386 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro1386 Histria, Cincias, Sade Manguinhos, Rio de Janeiro

    Da antiga Secretaria de Educao e Sade Pblica, foram transferidos para a novaSecretaria de Sade os departamentos de Sade, de Assistncia a Psicopatas, o Estadual

    da Criana e o da Profilaxia da Lepra e, ainda, os Servios de Pnfigo Foliceo e de

    Medicina Social, o Instituto Butant e o Servio Social do Estado. A essa estrutura tambmse acoplaram os centros de sade, postos de higiene e subpostos estaduais. Ademais,incorporaram-se as instalaes hospitalares e santas casas ligadas ao governo. Alm decriar essa nova secretaria, o governo desenvolveu outras organizaes que passaram a

    estrutur-la internamente. Foi estabelecida a Diviso Sanitria do Estado de So Paulo, emconformidade com o que havia determinado antes o decreto-lei n.17.030, de 6 de marode 1947, o qual tambm organizou, integrada ao Departamento de Sade, a Diviso doServio do Interior, instituindo uma diretoria com sede na capital, 304 unidades sanitriasespalhadas pelo estado e mais 19 delegacias regionais de sade. A Diviso do Servio doInterior deveria administrar e fiscalizar os servios da sede, das delegacias e dos centros de

    sade e postos mdico-sanitrios. J as delegacias de sade deveriam cuidar dos serviosda sede e das unidades sanitrias sob sua jurisdio.

    Os cargos criados e vinculados s unidades sanitrias por esse decreto foram: mdicosanitarista, mdico em funo gratificada responsvel pela administrao da prpriaunidade sanitria, educador sanitrio, inspetor sanitrio, fiscal sanitrio e escriturrio,

    alm de tcnico de laboratrio, prtico de laboratrio, atendente, servente, assistente dosdispensrios e ambulatrios, e anatomopatologista. Para cargos de comando, como chefesde subdiviso, inspetores tcnicos e delegados de sade, deveriam ser designados mdicosnomeados que integrassem o quadro de servidores efetivos da Diviso do Servio do Interior

    e que j tivessem exercido funo de assistente tcnico ou congnere, ou de chefia, ou quetivessem sido admitidos por concurso, ou, ainda, mdicos com especializao em higiene

    ou sade pblica. Nesse sentido, podemos perceber como os mdicos assumiram posiescentrais na configurao hierrquica da secretaria e a preferncia por mdicos que estivessemefetivamente vinculados ao servio pblico. De certo modo, os mdicos passaram a ocuparposies centrais no apenas nas equipes tcnicas, mas, igualmente, nos cargos de carterpoltico-administrativo, como os de delegados de sade. Diante disso, parece evidente que a

    preferncia por mdicos, particularmente funcionrios efetivos e no nomeados puramentepor indicao poltica, demonstra como, do ponto de vista profissional, os mdicos paulistas

    foram tambm favorecidos por essas mudanas. Isto , do ponto de vista da autonomiaprofissional (Freidson, 2001), os mdicos tiveram sua posio de controle e poder sobre seuambiente de trabalho fortalecida dentro da Secretaria de Sade.

    Quanto s delegacias regionais de sade, teriam ordenao numrica crescente,localizando-se a primeira na capital e as outras nas seguintes cidades-sedes interioranas:Taubat, Guaratinguet, Santos, Itapetininga, Santa Cruz do Rio Pardo, Presidente Prudente,Marlia, Lins, So Jos do Rio Preto, Araraquara, Ribeiro Preto, Casa Branca, Campinas, SoCarlos, Bauru, Botucatu, Sorocaba e Barretos. No que se refere s unidades sanitrias, houveuma distribuio que atingiu as mais diferentes regies interioranas, em um movimento de

    expanso que ocorreu em mais de uma oportunidade, extrapolando posteriormente o nmeroinicial de 304 novas unidades.

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    Com isso, podemos perceber como o governo adhemarista, a despeito do considervelnvel de politizao do comando da Secretaria de Sade, desenvolveu polticas especficas

    que alteraram as organizaes internas dessa pasta, de modo a oferecer-lhe mais capilaridade

    junto aos diferentes territrios do estado. Mesmo sendo difcil averiguar, com nossos dados,a efetividade, a eficcia ou a eficincia desses servios, possvel perceber um desenhoinstitucional que esteve direcionado para a sua expanso rumo ao interior. Por outro lado,tal direcionamento talvez revele outra dimenso do adhemarismo e de sua relao com os

    mdicos do estado, pois o desenvolvimento de estruturas de sade no interior certamenteimplicou negociaes polticas entre o governo e os grupos polticos situados nas diferenteslocalidades do interior, com reflexos indiscutveis na realidade profissional dos mdicosatuantes nessas reas no sem razo, durante esse governo, o adhemarismo estendeu oseu raio de ao, com vitrias eleitorais em todo o estado (Sampaio, 1982). Essa difusode estruturas sanitrias representou a emergncia de novas variveis para a configurao

    do trabalho mdico interiorano, para a definio de carreiras profissionais e para a relaomdico-paciente nas localidades que receberam tais estruturas, visto ambos passarem aconviver com novas organizaes que vieram a realizar uma medicina apoiada mais emtrabalho de equipe e em ambiente organizacional que na ao direta do mdico profissionalliberal.

    Alm disso, a interiorizao das delegacias de sade manteve certa correspondnciacom um movimento semelhante realizado pela Associao Paulista de Medicina (APM),principal entidade mdica paulista da poca, que ento assume feio poltico-administrativaefetivamente estadual. Criada em 1930 para cuidar dos interesses mdicos, essa associao

    passou por uma reorganizao institucional promovida por uma importante reforma emseu estatuto no ano de 1948, que criou as sees regionais e sociedades filiadas APM,

    situadas no interior do estado (Associao..., 1950). Tal mudana implicou que essas duascategorias de entidade assumissem a funo de representar a APM nas cidades interioranas.Essas instncias foram estabelecidas em cidades onde se percebeu a convenincia de reunirassociativamente mdicos das respectivas regies que vieram a ter representao nasassembleias gerais da APM, a qual, pela reforma, tornou-se a principal instncia deliberativa

    da entidade, o que impulsionou a participao de mdicos do interior na associao. Dos21 municpios com sociedades filiadas e sees regionais da APM, 12 tambm vieram a

    sediar delegacias regionais de sade,1revelando afinidades entre a interiorizao poltico-institucional da APM e o movimento de interiorizao das polticas adhemaristas, o queindica uma favorvel influncia destas sobre o fortalecimento poltico-institucional damedicina em mbito estadual.

    Enfim, da questo de equiparao criao da nova Secretaria de Sade, percebemosmudanas que se conectavam a alteraes mais amplas, inclusive internacionais, as quaisproduziam desde desenvolvimentos em sade pblica expanso da medicina previdenciria eda chamada medicina de grupo. Tal ambiente determinou srios desdobramentos autonomiaprofissional mdica (Freidson, 2001), os quais foram acompanhados com preocupao por

    destacadas lideranas profissionais paulistas, sobretudo o que denominaram socializaoda medicina.

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    A socializao sob a tica mdica

    Ilustres lderes da medicina de So Paulo reconheciam durante o governo Adhemar umsignificativo contexto sociopoltico para sua profisso, com o desenrolar de um processo

    que, embora de dimenses internacionais, atingia peculiarmente a realidade profissionallocal. Esse processo referia-se progressiva socializao dos servios mdicos e sociais, que setransformavam em vrios pases, com implicaes diretas sobre a prtica liberal e a medicina

    realizada em organizaes. Esses desenvolvimentos foram experimentados pelos mdicospaulistas de forma mais imediata pela expanso de estruturas estatais e paraestatais de sade,em meio ao despontar da medicina de grupo que futuramente assumiria um relevantepapel no setor de sade como um todo. Os servios mencionados enfatizavam atividadesmdicas realizadas a partir de equipes de sade especializadas, em contexto organizacional,

    contribuindo para a expanso do trabalho assalariado.

    Em palestra proferida na Associao Mdica de Minas Gerais, em setembro de 1949, oento presidente da APM, doutor Jairo Ramos,2tratou do tema da socializao, em foco nomundo inteiro. Para ele, no seria possvel nem negar nem impedir o processo de mudana

    em curso. Contudo, defendia discutir a oportunidade e as bases diretivas de sua realizao,particularmente combater a socializao unilateral dos servios mdicos (Ramos, 1949, p.71).Por outro lado, em discurso na cerimnia de posse do cargo de presidente da Sociedade deMedicina e Cirurgia de So Paulo (SMCSP), em maro de 1950, o doutor Jos Pereira Gomes,3

    disse que no era contra a socializao da medicina, que reconhecia existir e funcionar comxito no mundo h muitos anos, mas acreditava que a medicina e suas associaes deveriam

    ficar em alerta para que no se realizassem mudanas sem uma crtica precisa de seus elementosmais credenciados (O Estado..., 8 mar. 1950, p.8).

    Tratando de processos de socializao em outros pases, Jairo Ramos afirmou que, na Rssia,o Estado sovitico fez o correto e deu bastante importncia medicina preventiva, orientao

    contempornea poca e base dos servios sociais e dos institutos de aposentadoria, tendoa assistncia ao doente abrangido a assistncia mdica domiciliar, hospitalar e ambulatoriallocalizada nos centros de sade, de modo a atingir tanto as zonas urbanas como as rurais. Osrecursos que financiavam esse sistema provinham do Estado e de contribuies de segurossociais. Contudo, Ramos argumentou (seguindo a opinio de Pereira Gomes) que o outro

    lado desse amplo processo foi a transformao da profisso mdica em pura carreira estatal.Ramos entendia que alguns mdicos podiam exercer a clnica privada, principalmente osmais competentes, mas os honorrios que recebiam estavam sujeitos a altas taxas de impostode renda: o mdico era pago de acordo com o local em que exercia a profisso, sua idade ecompetncia, sendo a remunerao fixa e no dependente da unidade de servio prestado.

    Embora o Estado tivesse o trabalho mdico em alta estima, Ramos considerava que, naquelepas, o mdico perdia quase totalmente sua individualidade e se subordinava ao Estado(Ramos, 1949, p.71).

    Contrariamente ao caso russo, os dois dirigentes concordaram tambm que, naInglaterra, a socializao dos servios mdicos teria sido fruto de uma ampla discusso doassunto no legislativo, na imprensa mdica e na Associao Mdica Britnica. Depois de

    livre discusso e concesses entre os envolvidos, Ramos assegurava que se havia promulgado

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    uma lei que, ao criar o Servio Nacional de Sade, em 1948, efetivou em paz a granderevoluo pela qual modernizou a assistncia mdico-sanitria de seu povo (Ramos, 1949,

    p.71). Inserido nesse regime, o mdico ingls podia escolher sua atividade profissional. Se

    almejasse ingressar no servio pblico como mdico do Servio Nacional de Sade, deveriainscrever-se e indicar o posto ambicionado, ficando ao arbtrio de uma junta mdicaexaminar o pedido e a necessidade de seu trabalho. Os mdicos que trabalhassem para ogoverno recebiam bons salrios, o que diminua a necessidade de trabalho fora do mbito

    estatal, mas estavam livres para exercer a clnica privada desde que no atendessempacientes sob seus cuidados nos servios pblicos. Assim, para Ramos, a socializao dosservios mdicos ingleses seguiu estritamente princpios democrticos. Contudo, PereiraGomes destacou problemas no sistema ingls na distribuio de pacientes entre distintasregies e deficincias no sistema hospitalar, com certas unidades superlotadas e mdicoscom excesso de trabalho.

    Jos Pereira Gomes tambm tratou da socializao ocorrida no Chile, desde 1925,mas considerou que a situao dos mdicos desse pas deixava muito a desejar. Eles erampagos por uma espcie de caixa com recursos oriundos de contribuies sociais. Tal caixaadministrava os servios mdicos e exames laboratoriais e radiolgicos gratuitos. O presidenteda SMCSP considerava que, embora fosse limitado, o exerccio da clnica privada ainda

    existia. Apresentando uma avaliao mais geral, Pereira Gomes acreditava que a medicinasocializada era justificvel desde que valorizasse o trabalho profissional, a evoluo na carreirae o aperfeioamento tcnico, com garantia de honorrios condizentes com a posio socialque reconhecia carreira mdica.

    Por sua vez, Ramos destacou, ainda, a socializao dos servios mdicos pretendida pelogoverno dos EUA. Em 1945, o presidente americano enviou uma mensagem ao Congresso

    nacional acerca da organizao dos servios mdicos. Entre os itens tratados, assinalou:construo de hospitais, centros de sade e outras instalaes mdicas acessveis populao;expanso dos servios de sade pblica e de sade materno-infantil; pagamento antecipadode despesas mdicas para pronta acolhida a todos os servios, com a distribuio desses custosproporcional expanso do seguro social compulsrio existente; e, ainda, permisso aos

    pacientes para escolher o mdico e o hospital que desejassem (estivessem integrados ou noao sistema) e permisso aos mdicos para tambm escolher seus pacientes e se participariam

    ou no do plano, integral ou parcialmente; enfim, existiria uma proteo contra perda desalrio por doena ou incapacidade mais relacionada com benefcios em dinheiro. Nacondio de rgo executivo, haveria uma diretoria-geral com amplas atribuies de gesto

    do setor, que seria assistida por um conselho consultivo.Segundo o presidente da APM, contra essa lei lutavam a Associao Mdica Americana

    e a American Bar Association (associao dos advogados americanos), embora houvessedeterminados mdicos menos prestigiados que a apoiassem. A Associao Mdica Americanaafirmava que o plano prejudicava a medicina privada e implicava uma socializao perigosa,promovendo uma alterao nos servios mdicos somente verificada na URSS. Tambm

    considerava ditatorial a funo de diretor-geral. Por sua vez, Pereira Gomes enfatizou asalegaes de seus colegas americanos de que essas alteraes reprimiam a livre iniciativa e oprestgio mdico.

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    Tais anlises dos presidentes da APM e da SMCSP tocam em aspectos at hoje significativosda organizao dos servios de sade. Os dirigentes tratam das relaes entre: mdico e

    paciente, prtica liberal e servios pblicos de sade, assistncia mdica e sade pblica,

    medicina curativa e preventiva. Alm disso, interessante observar como os dirigentes avaliamas distintas realidades nacionais abordadas: no caso russo, ambos concordam relativamentecom as mudanas, mas se mostram contrrios falta de liberdade profissional do mdico e presso negativa realizada pelo governo sobre a prtica liberal. Quanto ao caso ingls, o

    presidente da APM entendeu que se tratava de uma revoluo que modernizou a assistnciamdico-sanitria do pas e que havia contado democraticamente com a participao dosmdicos ingleses. J Pereira Gomes acreditava que, embora houvesse liberdade para o mdicona Inglaterra, as condies de trabalho eram questionveis. Quanto socializao norte-americana, o dirigente da APM no emitiu consideraes mais claras e conclusivas, mas fezquesto de apresentar no apenas as caractersticas da lei pretendida pelo governo americano,

    como a posio da Associao Mdica Americana. De sua parte, Pereira Gomes apresentouas crticas de seus colegas americanos, tambm realando a viso de sua categoria sobre oprocesso de socializao nos EUA.

    Diante desse quadro, verificamos que ambos os dirigentes compreendem a socializao damedicina como um processo irreversvel, mas que pode assumir feio particular conforme

    o pas, e que seria imprescindvel a participao mdica organizada no processo. PereiraGomes no aceitava que a medicina socializada fosse desequilibrada e unilateral, por gerargrave desigualdade de direitos e salrios entre mdicos. Jairo Ramos reconhecia a necessidadede organizar os servios mdicos em outras bases, dada a crescente complexidade dos meios

    diagnsticos e teraputicos, que estavam encarecendo o servio mdico, deixando-o forado alcance da maioria da populao. Ramos aceitava discutir o problema, mas combatia a

    tendncia que observava em seu pas de uma socializao unilateral sem a anuncia da categoriamdica brasileira. Dessa maneira, se, de um lado, a socializao representava um processoque respondia a uma necessidade imperiosa, de outro, no estaria sendo acompanhada deuma modificao equilibrada para a profisso mdica.

    O lder da APM acompanhava com preocupao o desenvolvimento dos vrios Institutos

    de Aposentadoria e organizaes semelhantes, que estariam socializando a profisso mdica,com evidentes prejuzos aos profissionais da clnica privada. Ademais, as vrias organizaes

    beneficentes de sua poca estariam estendendo benefcios custa do trabalho mdico. E oEstado, com seus servios de assistncia pblica, estaria estabelecendo concorrncia como exerccio profissional privado. Com esse entendimento, Jairo Ramos combatia as

    organizaes de servios sociais ligadas indstria e ao comrcio, conhecidas como ServioSocial da Indstria (Sesi) e Servio Social do Comrcio (Sesc), que prestariam assistnciamdica aos operrios e comercirios pela supresso progressiva da medicina liberal, mediantecontratos de servios a muito baixo preo. Para ele, a situao apresentava considervelcomplexidade, pois a populao empobrecida no dispunha de recursos para a manutenode sua sade, o que demandava cuidados organizados naquela modalidade, mas o problema

    que reconhecia nisso era de que se estava socializando a medicina e os servios de sade custa do trabalho mdico, desconsiderando os demais fatores socioeconmicos influentessobre a sade do trabalhador (Ramos, 1949). O presidente da APM afirmava que os servios

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    sociais da indstria e do comrcio e os vrios Institutos de Aposentadoria e Penses (IAPs)previdencirios pagavam na base do salrio-mnimo, sendo essa referncia insuficiente para

    as condies de formao e prestgio da categoria.

    Contudo, Jairo Ramos tambm apontava erros cometidos pelos mdicos brasileiros, quedificultariam igualmente essa situao como a pletora de mdicos nos centros de maiordensidade populacional: na capital paulista, em 1949, existiriam 2.400 mdicos para 23%da populao do estado, ao passo que, para os 77% restantes do interior, existiriam trs mil

    profissionais. Ramos acreditava que a situao nos outros estados era semelhante. Assim,sugeria que os jovens mdicos deveriam aderir ao seu apelo e assumir o que ele chamou deesprito de bandeirantes da sade, aceitando cuidar dos problemas de sade das populaesinterioranas. Enfim, defendia a ao coletiva dos mdicos brasileiros por meio da criao deuma Sociedade dos Mdicos do Brasil, que participaria ativamente do processo de socializaoem curso (Ramos, 1949).

    Tratando dos mesmos problemas, encontramos a viso de outro influente mdicopaulista, talvez mais conhecido por sua atuao na poltica partidria que como profissionalda medicina. Em matria publicada na imprensa paulista em 1947 (O Estado..., 2 jul. 1947,p.5), encontramos uma anlise da medicina daquela poca realizada por Antnio de AlmeidaPrado.4 Essa anlise se refere a um discurso proferido na solenidade de posse da novadiretoria do Departamento Cientfico do Centro Oswaldo Cruz, da Faculdade de Medicinada USP, evento ocorrido na APM. Nesse pronunciamento, Almeida Prado faz um balanodos desenvolvimentos da medicina de sua poca, destacando a importncia da medicina

    de grupo, mas, principalmente, enfatizando a necessidade de maior participao do Estado

    no setor de sade. possvel extrair do pronunciamento elementos que caracterizam,ao mesmo tempo, tanto a evoluo tcnica e organizacional da medicina quanto algunsfatores inerentes s relaes internas ao grupo mdico. Destaca-se a expanso no apenasde vrios tipos de especialidades mdicas como ainda de organizaes pblicas e privadas

    responsveis por servios de sade. O pronunciamento revela ainda uma importantedistino no interior da medicina nos anos 1940 e 1950, ou seja, as diferenas entreclnicos liberais e mdicos que realizavam seu trabalho em organizaes de sade, comona medicina de grupo, na sade pblica, na medicina previdenciria e na administraogovernamental em geral.

    Sobre essa questo da relativa diversidade, poca, de perfis profissionais entre os mdicospaulistas, bom lembrar que, como assinalado, j existiam pelo menos trs grandes instituiesde formao mdica em So Paulo. Conforme Mrcia Regina Barros Silva (2001), no inciodos anos 1930, havia no estado de So Paulo uma crescente demanda de estudantes por vagasno ensino mdico, e todos os anos sobravam vrios candidatos excedentes nos vestibularesda Faculdade de Medicina de So Paulo. Com o tempo, isso gerou uma mobilizao desses

    estudantes no sentido de que se aumentasse o nmero de vagas. Para Silva, tal demanda foia principal motivao para a criao de uma nova escola mdica no estado, a Escola Paulistade Medicina, constituda em 1933, a terceira faculdade da rea, juntando-se Faculdade de

    Medicina anterior e Faculdade de Higiene. A autora aponta, ainda, que essa demanda noestava relacionada apenas a candidatos oriundos de grupos de elite, mas tambm a candidatos

    das classes mdias.

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    Esses dados nos fazem afirmar que o ps-1930 apresenta relevante intensificao demudanas na medicina paulista, como: aumento da especializao ocupacional; diversificao

    das instituies de formao profissional; maior participao estatal no setor; e pluralizao

    em termos de origem social dos profissionais, tendo como uma de suas consequncias umalargamento da base do grupo mdico estadual. Acreditamos que tenha sido em meio a esseconjunto de mudanas, iniciadas alguns anos antes, que se pde contextualizar no apenas amedicina paulista no governo adhemarista analisado como tambm as alteraes em termos

    de polticas de sade que esse governo empreendeu.O pronunciamento de Almeida Prado revela ainda interessantes aspectos da ideologia

    profissional que permeavam a viso de pelo menos uma parcela bastante influente dosmdicos de So Paulo, representada por aquela liderana mdica e sua audincia na APM.Com efeito, Almeida Prado traceja uma viso clara sobre o papel da medicina, sua missosocializadora e sua relao com o Estado. Para ele, a medicina socializada e a medicina

    de grupo deveriam substituir a medicina liberal ou individualizada, de tal modo que amedicina planificada atentasse para os problemas socioeconmicos que afetavam a sadede coletividades, aproveitando-se dos desenvolvimentos tcnico-cientficos, das diversasespecialidades mdicas e organizaes de sade (O Estado..., 2 jul. 1947, p.5). Contudo,essa viso acerca da participao do Estado na sade e quanto substituio da medicina

    liberal pela medicina socializada no era compartilhada, inteiramente, pelos dirigentesJairo Ramos e Jos Pereira Gomes. Embora ambos acreditassem que a socializao dasade fosse um processo irreversvel, mostravam-se mais cautelosos quanto aos destinosda prtica liberal, isto , defendiam que o processo de socializao mdica garantisse a

    liberdade do mdico em aderir ou no aos servios socializados. Essa relativa divergnciaevidencia que, embora uma associao profissional, como a APM e a SMCSP, consiga

    falar em nome da sua coletividade, sempre existem vozes mais ou menos discordantes,com maior ou menor influncia sobre o grupo profissional (Freidson, 1996), matizandoa ideologia do grupo. No entanto, apesar desse sinal de discordncia, claramentecompreensvel que, poca, a clnica liberal tivesse um considervel espao na medicinapaulista e que certamente possusse interesses relevantes que deveriam ser considerados

    por suas lideranas.Por outro lado, devido ao encarecimento dos servios de sade, decorrente dos

    desenvolvimentos tcnicos de sua poca, Almeida Prado, Ramos e Pereira Gomes concordavamque, para a difuso dos benefcios da medicina, principalmente no sentido da populaoempobrecida, era necessrio o protagonismo estatal no setor. Tal defesa indica uma linha

    de continuidade no pensamento mdico paulista entre a Primeira Repblica e o ps-guerra,j que tambm os sanitaristas daquele perodo entendiam que o Estado deveria assumiruma posio central na oferta de servios de sade (Castro Santos, 2004; Hochman, 1998).Tal posicionamento poltico-ideolgico e profissional aponta para uma atitude de relativaabertura da profisso mdica paulista s necessidades e demandas sociopolticas externas esubstantivas, uma postura que, como sugerido, enquadra-se no espectro poltico-ideolgico

    tpico de grupos profissionais em certas condies contextuais: trata-se de uma postura queaproxima a poltica da profisso das demandas sociais da poltica partidria, entendimentoque polariza em relao simples crtica anterior socializao da medicina, a qual se centrava

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    mais nas necessidades profissionais em sentido estrito. Tal iderio evidencia, ao mesmo tempo,algo tpico da ideologia profissional desses mdicos e que comum s profisses em geral,

    ou seja, comprometem-se com a prestao de servios no apenas s elites, mas tambm

    sociedade em geral, estabelecendo uma conexo entre a misso que associam ao grupo e arealizao do bem comum.Esses dados manifestam ainda que a profisso mdica paulista, entre 1940 e 1950, possua

    uma composio social mais diversificada, e as preocupaes com os desdobramentos

    sociopolticos da medicina apontam para uma posio que no se refere meramente deuma elite profissional atenta s prprias necessidades de insero no conjunto das classesdominantes. bem verdade que no podemos desprezar as origens ou aspiraes sociais declasse e suas possveis influncias sobre um grupo profissional, mas entendemos que, com opassar do tempo, houve no grupo mdico paulista certa pluralizao em termos de origemde classe de seus membros, com um aumento concomitante do nmero de profissionais, o

    que reforou a organizao e a autoimagem do grupo como profisso. Ou seja, a profissomdica paulista j vinha incorporando grupos sociais no oriundos de setores de elite, o que,em nossa viso, aponta no sentido da crescente incorporao de grupos de classes mdias, oque resultou no reforo da mobilizao dos mdicos como grupo profissional com interessese ideologia prprios, cada vez mais definidos a partir das necessidades da profisso como

    um todo parte, e menos a partir dos condicionamentos ligados estrutura de classes.Entendemos que esse movimento de profissionalizao iniciou-se antes, mas foi favorecidopela pluralizao em termos de origem social dos integrantes desse grupo e do crescimentode sua base em todo o estado.

    O estado de So Paulo contava, ao final de 1949, com aproximadamente 5.400 mdicos(Ramos, 1949, p.80), com diversas especialidades; alm disso, existiam no apenas adeptos

    da prtica liberal e privada, mas tambm uma crescente frao de mdicos assalariadospelos servios pblicos de sade, os quais, como j analisado, estavam em processo deexpanso e interiorizao no estado. No por acaso, vimos que o perodo marcado pelaextenso do raio de ao da ento principal entidade mdica estadual, a APM, a qual,desde 1948 passou por um processo de interiorizao poltico-institucional e de suas bases

    sociais, em um movimento relativamente paralelo interiorizao dos servios sanitriosestaduais adhemaristas. Entendemos que a organizao particular da medicina paulista

    como profisso (Freidson, 2001) e parte de um movimento de maior abrangncia damedicina brasileira representa um processo iniciado anteriormente ao perodo em foconesta pesquisa; movimento que aconteceu desde, pelo menos, a Primeira Repblica (Castro

    Santos, 2004; Hochman, 1998; Pereira Neto, 2001). Mas o processo de incorporao desetores mdios medicina paulista, iniciado antes e que se desenrola durante o governoadhemarista, favoreceu o fortalecimento da organizao profissional da medicina.

    Preocupaes acerca da organizao profissional dos mdicos paulistas podem, contudo,ser evidenciadas desde antes do governo Adhemar que analisamos, com a criao da SMCSP(1895) e da APM (1930) que, at o surgimento do Conselho Regional de Medicina de So

    Paulo, em 1957, atuaram como principais organizaes associativas dos mdicos do estado.Tais preocupaes em termos de organizao profissional ultrapassaram o momento de criaodessas entidades e extrapolaram fronteiras de questes meramente tcnicas da atividade

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    mdica, com a ateno voltada para a participao do Estado no setor de sade, em meio aocontexto mais abrangente do que denominaram socializao da medicina.

    Analisamos efetivamente essas preocupaes na aludida questo de equiparao: uma

    luta que no se referia diretamente medicina liberal, mas aos profissionais assalariadospelos servios pblicos de sade. Tal movimento revelou uma composio de interesses evalores comuns capaz de mobilizar os mdicos coletiva e politicamente, e que tais interessese valores se estendiam aos dilemas da base do grupo profissional, j que a equiparao afetava

    diretamente o poder econmico e o prestgio dos mdicos dependentes de uma inseroprofissional baseada em carreira estatal ou seja, principalmente mdicos recm-formadosou com poucos anos de carreira e que ainda contavam com uma clientela privada poucoabrangente. Alm disso, notamos as mesmas preocupaes em relao s ambivalentesinfluncias entre a interiorizao da APM e a politizao e interiorizao da nova secretariade sade adhemarista. Dessa maneira, os mdicos paulistas reagiram como uma verdadeira

    coletividade profissional e se mobilizaram ativamente quanto forma como as inovaes nasade de seu tempo aconteciam.

    Consideraes finais

    Em nossa investigao, notamos uma ambivalente convivncia ideolgica entre a defesa

    mdica no sentido de uma maior participao estatal no setor de sade e temores quanto aoconsequente assalariamento profissional. Vimos tambm os ambivalentes esforos mdicosde enfrentamento das mudanas na sade, diante dos dilemas apresentados pelas polticas de

    sade adhemarista. Mas, apesar dessas ambivalncias difceis de inexistir naquele contextopoltico-profissional, entendemos que a medicina paulista possua interesses e ideologia claros

    e comuns, e que cada vez mais se organizava profissionalmente. Embora j se notasse umacomposio profissional mais diferenciada no perodo investigado, no notamos no grupomdico uma oposio estanque de interesses e ideias entre elite e base profissional ou entreos diversos setores e especialidades. Em realidade, os mdicos paulistas realizaram um esforode fortalecimento da coeso interna ao grupo, a fim de enfrentar os reflexos da denominadasocializao da medicina e os dissabores da contraditria relao com o adhemarismo.

    Finalmente, gostaramos de salientar que aqui se investigou o governo populista de

    Adhemar de Barros a partir de referenciais conceituais da sociologia das profisses, que nosofereceu valiosas contribuies para o estudo dessa expresso do populismo brasileiro.

    NOTAS

    *Este artigo apresenta resultados da dissertao de mestrado defendida em 2010 (Almeida, 2010), apoiadapor bolsa da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (Capes) e Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (Fapesp).1Seguem os municpios do interior com entidades regionais da APM aqueles com asterisco tambm vieram asediar delegacias de sade: Araraquara*, Assis, Barreto*, Bauru*, Botucatu*, Catanduva, Ja, Jundia, Ourinhos,Piracicaba, Piraju, Rio Claro, Taubat* e Tup. J os municpios com sociedades locais filiadas APM eram:

    Campinas*, Marlia*, Presidente Prudente*, Ribeiro Preto*, So Carlos*, So Jos do Rio Preto* e Sorocaba*.2Jairo de Almeida Ramos (1900-1972) formou-se na Faculdade de Medicina e Cirurgia de So Paulo e foipresidente da APM entre 1945-1952 e 1955-1956. Trabalhou na Santa Casa de Misericrdia de So Paulo

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    A socializao da medicina na era do adhemarismo

    v.20, n.2, abr.-jun. 2013, p.653-673 13951395v.21, n.4, out.-dez. 2014, p.1379-1396 1395

    (de onde foi tambm diretor clnico), no Hospital So Luiz Gonzaga, especializado em doenas pulmonarese no Instituto de Higiene de So Paulo, alm de atender em consultrio particular. Presidiu a Sociedadede Medicina de So Paulo em 1939-1940, tendo sido patrono da cadeira n.75. Livre-docente da Faculdade deMedicina da USP e professor e diretor da Escola Paulista de Medicina, ajudou a fundar a Sociedade Brasileirade Cardiologia, sendo seu presidente em 1955-1956. Foi fundador e editor dosArquivos Brasileiros de Cardiologia,participou da criao da Associao Mdica Brasileira, daRevista Brasileira de Medicinae do Conselho Regionalde Medicina do Estado de So Paulo. Foi scio e fundador da Associao Brasileira de Escolas Mdicas. Paramais informaes, ver: http://www.academiamedicinasaopaulo.org.br/?pg=biografia&idioma=1.3A Sociedade de Medicina e Cirurgia de So Paulo surgiu em 1895 com o objetivo de cuidar dos interessese do congraamento da classe mdica do estado. Em 1953, veio a denominar-se Academia de Medicina deSo Paulo, como conhecida hoje. O doutor Jos Pereira Gomes foi seu presidente em 1927-1928 e 1950-1951. Diplomou-se mdico e iniciou sua carreira, em 1914, como mdico e cirurgio na Santa Casa deMisericrdia de So Paulo. Mais tarde, complementou sua formao na Europa. Aps seu retorno, tornou-seassistente da disciplina de oftalmologia da Faculdade de Medicina e Cirurgia de So Paulo. Pereira Gomestambm contribuiu para a fundao do Instituto Padre Chico, obra de benemerncia aos cegos paulistas.Faleceu em So Paulo, em 1968. Foi patrono da cadeira n.80 da Academia de Medicina de So Paulo. Paramais informaes, ver: http://www.academiamedicinasaopaulo.org.br/?pg=biografia&idioma=1.

    4Antnio de Almeida Prado, alm de profissional influente, candidatou-se ao governo paulista nas eleiesde 1947, pelo PSD, perdendo o pleito para Adhemar de Barros. Membro da APM e professor da Faculdade deMedicina da USP, alm de reitor dessa universidade entre outubro de 1946 e janeiro de 1947. Foi aindapatrono da cadeira n.102 da Sociedade de Medicina e Cirurgia de So Paulo. Para mais informaes, ver:http://www.academiamedicinasaopaulo.org.br/?pg=biografia&idioma=1.

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