006 guerra do paraguai - · pdf file6 sobre os episódios da guerra entre brasil e...

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81 Revista Historiar, ano I, n. I (2009) “GUERRA DO PARAGUAI”: OUTRAS HISTÓRIAS. Maria Regina Santos de Souza 1 RESUMO: Este artigo tem o propósito de mostrar como a forma literária mostra as convulsões sociais trazidas pelos alistamentos arbitrários de pessoas do estado do Ceará para a "Guerra que o Paraguai", bem como ressaltar os aspectos sócio-econômicos que marcaram a Província do Estado do Ceará neste período. PALAVRAS-CHAVES: Guerra, Ceará, sociedade, violência ABSTRACT: This article has the purpose to show in literary way which the social upheavals brought by the arbitrary conscription of people from the state of Ceará for “war it Paraguay”, as well as standing out the partner-economic aspects that regulated the province pertaining to the state of Ceará. KEY WORDS: War, Ceará, society, violence Ano do senhor de 1867. No tempo nublado de Fortaleza, natureza considerada estranha, acontecia uma revolta de presos na delegacia da cidade. Tratava-se de uma rebelião de recrutas, homens pegos a força ou “no laço”, como se dizia na época, para a lida militar. Os resultados finais da rebeldia foram à quebradeira do velho estabelecimento (uma casa velha sem segurança adequada, a quem o governo provincial chamava de cadeia pública) e a fuga de quarenta e cinco sujeitos potencialmente recrutáveis. Na visão popular, a tal cadeia era chamada de “oficina de satanás”, por ter fama de não recuperar ninguém e oferecer uma vivência inumana aos reclusos. O líder da rebelião chamava-se Bernardo Cão, homem a quem os piores infortúnios estavam à espreita. Não se sabia se seu segundo nome era uma alcunha ou sobrenome. O fato era que no Rol dos Culpados estava registrado Cão. Antes do motim, Bernardo tinha sido condenado pelos crimes de Resistência a Autoridades, Injúria e Ferimentos Leves. Acrescentaram-lhe os delitos de insurreição, 1 Graduação e Mestrado em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Atualmente é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal de Pernambuco de Pernambuco (UFPE) sob a orientação do Profº Dr. Marc Jay Hoffnagel. Bolsista CNPQ.

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Revista Historiar, ano I, n. I (2009)

 

“GUERRA DO PARAGUAI”: OUTRAS HISTÓRIAS.

Maria Regina Santos de Souza1

RESUMO: Este artigo tem o propósito de mostrar como a forma literária mostra as convulsões sociais trazidas pelos alistamentos arbitrários de pessoas do estado do Ceará para a "Guerra que o Paraguai", bem como ressaltar os aspectos sócio-econômicos que marcaram a Província do Estado do Ceará neste período. PALAVRAS-CHAVES: Guerra, Ceará, sociedade, violência ABSTRACT: This article has the purpose to show in literary way which the social upheavals brought by the arbitrary conscription of people from the state of Ceará for “war it Paraguay”, as well as standing out the partner-economic aspects that regulated the province pertaining to the state of Ceará. KEY WORDS: War, Ceará, society, violence

Ano do senhor de 1867. No tempo nublado de Fortaleza, natureza considerada

estranha, acontecia uma revolta de presos na delegacia da cidade. Tratava-se de uma

rebelião de recrutas, homens pegos a força ou “no laço”, como se dizia na época, para a

lida militar. Os resultados finais da rebeldia foram à quebradeira do velho

estabelecimento (uma casa velha sem segurança adequada, a quem o governo provincial

chamava de cadeia pública) e a fuga de quarenta e cinco sujeitos potencialmente

recrutáveis.

Na visão popular, a tal cadeia era chamada de “oficina de satanás”, por ter fama

de não recuperar ninguém e oferecer uma vivência inumana aos reclusos. O líder da

rebelião chamava-se Bernardo Cão, homem a quem os piores infortúnios estavam à

espreita. Não se sabia se seu segundo nome era uma alcunha ou sobrenome. O fato era

que no Rol dos Culpados estava registrado Cão.

Antes do motim, Bernardo tinha sido condenado pelos crimes de Resistência a

Autoridades, Injúria e Ferimentos Leves. Acrescentaram-lhe os delitos de insurreição,

                                                            1 Graduação e Mestrado em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Atualmente é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal de Pernambuco de Pernambuco (UFPE) sob a orientação do Profº Dr. Marc Jay Hoffnagel. Bolsista CNPQ.

 

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destruição de órgão público e facilitação de fuga. Aos olhos da lei, um transgressor que

merecia cuidado especial...

Mas, quais crimes teriam cometido os fugitivos? E Bernardo, por que não

conseguira fazer parte dos procurados? Um crime a mais talvez não fizesse tanta

diferença na sua desgraçada vida. Na fuga ele escorregou nos detritos humanos comuns

na Cadeia de Fortaleza2. Caiu e foi dominado por um policial que lhe apontava a

carabina. Ficou imóvel... Não queria morrer!

Na cidade não se comentava outra coisa senão a fuga em massa liderada pelo tal

Cão. Nos sarais, o medo fazia com que os homens de letras comentassem sobre a

desordem na capital. Como podemos nos divertir agora com tantos facínoras vagando

por aí? Comentava um patético juiz de direito.

Facínora? Com exceções de uns poucos assassinos e alguns larápios, a maior

parte dos fugitivos era composta por sujeitos cujos crimes eram a pobreza e a falta de

proteção de um poderoso local3. Sem o amparo de “um grande”, o homem comum do

sertão torna-se presa fácil para o recrutamento, palavra que arrepiava, mas também

armava o sertanejo. Tempos difíceis. Se não for falar demais, a escapada deu-se em

plena a “Guerra do Paraguai”, especificamente no terceiro ano de combate, quando o

Decreto dos Voluntários de nº 3.371 não despertava interesse em muitos. 4

O decreto dos Voluntários da Pátria oferecia para aqueles que quisessem

participar do conflito terra, dinheiro, emprego público, soldos atrativos para os soldados

e pensões para os parentes destes em caso de morte, entre outros benefícios. Por que

faltou interesse por parte da população masculina?

A falha não fora apenas da “lei”. Certo que a guerra demonstrou-se morosa

demais, mas o desamparo (por parte do governo imperial) em relação soldados

                                                            2 Sobre as condições sanitárias da Cadeia de Fortaleza Cf:MARIZ, Silviana Fernandes. Oficina de Satanás: a Cadeia Pública de Fortaleza (1850-1889). Fortaleza, 2004 (Dissertação de mestrado UFC/ Ceará). 3 Para escrever sobre os pobres e livres cearenses do século XIX busquei inspiração em GEREMEK, Bronislaw. Os Filhos de Caim: vagabundos e miseráveis na Literatura Européia (1400-1700). (Tradução Henryk Siewierski ). São Paulo: Cia das Letras, 1995. 4 Em relação as vantagens oferecidas pelo Decreto do Voluntários da Pátria nº 3.371 conferir: COSTA, Wilma Perez. A Espada de Dâmocles: o Exército, a Guerra do Paraguai e crise do Império. São Paulo: HUCITEC, Unicamp, 1996. P.225-229.

 

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retornados ou recambiados fazia com que a animosidade contra o serviço das armas

aumentasse.

Os soldados retornados estavam apresentando mutilações físicas e/ou mentais.

Cegos, pernetas, manetas, alienados – eis aí os bravos cearenses recambiados do

Paraguai, comentava um anônimo que assistira um desembarque de soldados retornados

no cais da capital do Ceará. Essas notícias de horror se espalhavam por toda província

como o vento, rápidas e em várias direções.5 Também por essas razões, aleijões e

loucura, os homens não queriam ir a guerra. Se ao menos o Império tivesse assistido

essas pessoas como mandava a lei, se tivesse dado os ressarcimentos econômicos a

esses mutilados, talvez a ojeriza diminuísse ou ao pelos não aumentasse. É só uma

hipótese!

O fato é que quando o episódio da fuga liderada por Cão chegou aos ouvidos do

Dr. Leão Velloso, o presidente da província, ele ficou enfurecido dirigindo impropérios

as autoridades policiais locais. Os ânimos se exaltaram. Na condição de humilhadas,

essas resolveram interrogar Bernardo.

Instaurou-se uma “inquisição” sobre a pessoa de Bernardo. O chefe de polícia da

província, também delegado de Fortaleza, o Sr. Joaquim Fonteles, fez o papel do

inquisidor; o subdelegado também fez parte do interrogatório.

- Bernardo, há tempos que estou a observá-lo, não tentes mentir! Por que

cometeras tal crime contra ordem? Por que não queres salvar tua pátria?

Como o réu não respondeu a nenhuma das perguntas, aquele dia foi pausado

totalmente. Mas, na manhã seguinte, apesar de soar muito frio, Bernardo apresentava

um aspecto bem melhor e até deu bom dia para os cincos praças que ficaram de

prontidão em frente sua cela. Talvez fosse confiança em si mesmo.

Cão apesar de pobre tinha algum conhecimento das letras. Fora alfabetizado não

se sabe como. Tinha conhecimento vulgar das leis imperiais e sabia na pele quais os

estragos que o serviço militar causava na vida dos pobres e livres, pois aquela não foi a

primeira vez que o laço o capturou.

                                                            5 Sobre as notícias de soldados cearenses recambiados da “guerra do Paraguai” ver a edição do jornal Fortalezense A Constituição do dia 11 de setembro de 1867. P.3.

 

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Em 1851, quando o Brasil de Pedro II se digladiava com a Argentina de Rosas,

Bernardo fora obrigado a combater até o fim do confronto, em 18526. Quando voltou

para sua choça, no Riacho do Sangue, sua a mãe, sua sogra e seu varão haviam morrido

de cólera-morbus, e por milagres, sua mulher, que estava desfigurada pela fome,

sobrevivera às calamidades.

Retornando o caso. O interrogatório foi retomado.

- Vás falar hoje, Cão?

- Sim... senhor ...

- Vou começar de outra maneira... Prometes dizer a verdade?

-Sim... senhor...

- Qual tua idade, filiação, local de nascimento e seu verdadeiro nome?

- Senhor, a idade ao certo eu não sei. Mas quem sabe? Nas terras do Riacho do

Sangue, quando um pobre consegue registrar os filhos, ele acaba esquecendo a data

correta do nascimento, porque juntar dinheiro para pagar o papel que vai dar nome a

alma vivente é muito difícil. O mais comum é não registrar... No sertão existem

almas!... Mas, acho que tenho uns quarenta e tantos... Quanto aos meus genitores... meu

pai se chamava Bento Sombra Cão, morreu muito cedo de tísica, e minha mãe, a d.

Maria do Espírito Santo, faleceu quando eu estava na luta contra os Argentinos.

-Por que liderou uma insurreição na minha cadeia? Não vedes que tua prisão e a

de teus camaradas foram justas? O Brasil precisa de recrutas para se defender do

“maldito” Lopez do Paraguai! Pensas? Não desprezaste apenas a mim e a meus homens,

a pátria também foi alvo de desdém.

- Senhor nenhum indivíduo pode ser privado de liberdade, exceto se tiver

cometido um crime abominável como assassinato por questões fúteis ou roubo seguido

de morte. Sei que pesam algumas condenações sobre minha pessoa, mas se não fosse

esse desenfreado recrutamento, se não fosse a violência dele, eu não teria me tornado

                                                            6 Sobre os episódios da Guerra entre Brasil e Argentina (1851-1852) Ler: BARROSO, Gustavo. A Guerra do Rosas (1851-1852). Fortaleza, Secult, 2000. Ver também do mesmo autor A Guerra do López (1864-1870). Fortaleza, Secult, 2000

 

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um transgressor... Se eu injuriei, agredi, insuflei, foi por defesa... Faz mais de dois

meses que estou preso, já fui até julgado, e quero cumprir minha pena....

- Quer dizer que somos os culpados? Digo-te que estamos cumprindo a lei...

-Lei, senhor! Os inspetores de quarteirão, os soldados de polícia, os guardas

nacionais, enfim, todas as autoridades que se empregaram na caça a recruta, esses sim é

que são os “fora da lei”... Eu estava trabalhando no meu pequeno roçado quando recebi

voz de prisão. Na minha cabeça um trabalhador honesto não pode ser recrutado... Isto

está na lei militar... Se há alguém aqui está humilhado, essa pessoa sou eu... Muitos

fugitivos também alegavam não ter cometido nenhuma transgressão, por que então

fomos presos?

- Cão, isso não vem o caso!

Nesse momento um “cachorro de rua” adentrou o recinto por uma porta que

estava entreaberta e avançou sobre o Sr. Joaquim. Este ficou imóvel com a cena

estranha. Rapidamente o animal é contido e posto para fora da delegacia pela escolta e

pelo subdelegado. Estes também acham incomum o ocorrido. Lá fora o cão fica a rosnar

como se estivesse à espreita de alguém.7

-Senhor, dizem que os cães vêem coisas! Diz Bernardo.

-Tens o poder de entender os brutos, Bernardo Cão?

-Não, senhor! Quando era criança lá no meu distante Riacho do Sangue, ouvi

muitas histórias sobre o poder que os animais têm de prever o futuro... Às vezes, dizia-

se, que eles pressentem o mal...

-Nunca ouvi falar nessa lenda... Para mim, tu assinas tua culpa a cada palavra

dita...

Esse comentário perturbou o réu. A sabatina foi interrompida naquela manhã,

porque o “inquisidor Joaquim” ficou muito impressionado com a investida do cachorro

sobre sua pessoa... Todavia, no dia seguinte, a investigação fora retomada com mais

furor.

                                                            7 CAMPOS, Moreira. Dizem que os cães vêem coisas. Fortaleza:Editora UFC, 2002.

 

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- Onde estão escondidos os teus compassas? Ou pensas que não desconfiamos de

um regaste? Tua rebeldia não te levará a nada!

-Senhor Joaquim, não sou rebelde. Minha vida e a dos colegas de cela foram

desgraçadas pelo “laço”... Represento um coletivo. Minha dor é a mesma dor dos

sertanejos do Riacho do Sangue, do Sobral, do Crato, de São João do Príncipe, dos

citadinos de Fortaleza, enfim, é de um sofrimento coletivo que vos falo...8

- Bernardo Cão conheci um padre muito sábio que certa vez me disse que na

Grécia Antiga os heróis se destacavam pelos excessos, sobretudo pelos excessos de

coragem. Aviso-te que tu não estás entre os gregos... Teu excesso é tua condenação...

Diz-me onde estão os fugitivos? Sei que sabes... sinto que algo. Alguma coisa como

uma nova rebelião irá acontecer. Estou com pressentimento que minha vida corre

perigo... Será que o animal raivoso de ontem veio anunciar esse mal?

Um dos soldados que fazia a segurança da cadeia ao presenciar a conversa teve

uma vertigem. Caiu desacordado sendo socorrido pelo próprio interrogador.

-Não foi nada, dr. Joaquim... Tive um calafrio quando o doutor repetiu o

episódio do cachorro... Um homem que tem um sobrenome de Cão, nascido no Riacho

do sangue e conseguiu dar fuga a 40 presos sem ser notado... pode ter parte com alguma

coisa que não é de carne e osso....

Uma longa pausa tomou conta do recinto... O silêncio fora quebrado com

entrada da companheira de Bernardo que aos prantos pedia que o soltassem..

-Cala-te, mulher! Não vês que aqui é um lugar de ordem, diz o sr Joaquim.

Queres o impossível.

-Senhor, chamo-me Cassandra... Por favor, gostaria que me concedesse uns

instantes de prosa com meu Bernardo... pelo menos isso!

O pedido foi atendido. Cassandra pediu ao seu homem que falasse a verdade,

mas caso essa não existisse, que ele inventasse uma, que ele dissesse o que o chefe de

polícia queria ouvir.                                                             8 Sobre a concepção de que a História da Humanidade se faz pela rebeldia dos homens ler as tragédias gregas de ÉSQUILO. Prometeu acorrentado. São Paulo: Martin Clarent, 2007; SÓFOLCLES. Édipo Rei. São Paulo: Martin Clarent, 2007.

 

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-Homem, tua vida está desgraçada... Falas o que o chefe quer .... Lembra-te que

tua desgraçada é a de toda tua família... Mesmo que não vás combater, a distância já

existe...Eu e teus filhos já estamos abandonados... A lida na roça não está dando para

viver. A seca castiga e só tu conheces alguns segredos do roçado. Se estivesses lá

poderia vagar a procura de trabalho extra para nós. Tentas diminuir a pena ... Pode ser

que nós consigamos esperar... Estamos nos desfigurando pela fome... Inventa uma

história e safa-te!

Suplicou em vão em nome dos cinco filhos. Bernardo não respondeu nada. Ela

saiu desconcertada com o silêncio do companheiro. Cassandra, realmente foi uma

portadora de más notícias. Os discursos do sofrimento e da fraqueza também mexeram

com o réu. Contudo, este mesmo de coração partido, continuou firme contra os abusos

do serviço militar obrigatório.

Cão sabia que cada dia naquele lugar insalubre o desumanizava. O único

sentimento que o fazia o sentir-se racional era justamente um dos piores castigos

dirigidos a raça humana, a solidão. Ela o corroia e as vezes colocava dúvidas em sua

mente de titã. Pensava na família. Já não dormia mais..9.

O subdelegado Hilário Albano aconselhou Bernardo a contar a verdade. Falou-

lhe sobre a difícil empreitada da ordem pública, do desgastante exercício do poder, da

humilhação que as autoridades sofriam por parte do Ministério da Justiça quando

ocorriam fugas e rebeliões, enfim, tentou arranca-lhe uma verdade que só existia na

cabeça dele, Hilário.

A idéia de que uma nova sublevação iria acontecer e que a investida atentaria

também contra vidas, isso consumia os chefes que presidiram o “inquérito”.

-Tenho piedade de ti, Cão! Disse o sr. Albano.

A resposta veio em forma de enigma.

- Senhor, não se dá astúcia a quem a possui...

                                                            9Sobre a literatura da Solidão e do Amor Cf: AUSTER, Paul. Timbuktu. São Paulo: Cia da Letras, 1999; CONCHE, Marcel. A Análise do Amor. In: Análise do Amor. São Paulo: Marins Fontes, 1998. P.9-28.

 

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Essas palavras perturbaram o subdelegado. Ele, que até então, ficara em dúvida,

passou a ter certeza de que um plano para destruir a cadeia estava a caminho. Era

apenas questão de semanas, quem sabe até de dias. Haveria destruição e mortes -

pensou Hilário. A idéia fez a “coisa”.10

Os chefes de policia pensaram em dar um fim em Bernardo, mas poderiam ser

descobertos e terem suas situações pioradas. Mas, chegaram à conclusão de que a pior

punição para o réu era mandá-lo a guerra.

De fato para os pobres e livres das províncias brasileiras, a condição de recruta

fosse talvez uma das mais monstruosas penas aplicada ao homem comum. Que sujeitos

em sã consciência queriam viver longe da família e do trabalho sofrendo castigos físicos

e psicológicos dos seus superiores sem receber nada em troca? O serviço militar é um

trabalho árduo no qual o indivíduo quase não tem soldos. Era realmente um

castigo.Disso as autoridades que julgavam Bernardo Cão sabiam muito bem.11

- Bernardo, vamos te mandar a guerra! Não adiantas querer fugir, porque desta

vez nem tua magia vai te salvar. Se tentares desertar quando já estiveres nas fileiras, já

sabes o que acontece com os desertores, não é mesmo? Grita a voz sórdida do chefe.

O réu ficou imóvel. A autoridade estava referindo-se ao fuzilamento e a

“pranchada”, penas dirigidas aos desertores e/ou traidores. Esta última consistia em

espancamento do desertor até a morte com uma espada de “prancha”. Isso causava

horror entre a soldadesca, no entanto, tal castigo nunca impediu que as deserções

acontecessem.12

O certo é que ano de 1867 foi uma data importante nos tempos da guerra entre

Brasil e Paraguai. O governo imperial faz uso do Artigo Cento e Um Parágrafo Oitavo

da Constituição Brasileira que dizia perdoar os réus que estão cumprindo na cadeia da

Capital do Ceará, desde que eles se ofereçam voluntariamente para o conflito                                                             10 HEGEL. G.W.F. OS PENSADORES , coletânea. São Paulo: Nova Cultural, 1996.  11Em relação ao Recrutamento no Ceará no tempo da Guerra do Paraguai ver: RAMOS, Xisley de Araújo. Por trás de uma fuga nem sempre há um crime: o recrutamento a laço e os limites da ordem no Ceará (1850-1875). Fortaleza, 2003. (Dissertação de mestrado UFC/ Ceará). ; SOUZA, Maria Regina Santos de. Impactos da Guerra do Paraguai na Província do Ceará (1865-1870). Fortaleza, 2007. (Dissertação de mestrado UFC/ Ceará). ; SODRÉ, Nelson Werneck. História Militar Brasileira. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1979. 12 DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva . Maldita Guerra: uma nova historia da guerra do Paraguai. Cia das Letras, 2002.

 

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paraguaio.13 Essa não era a primeira vez que o império utilizou-se deste expediente para

angariar braços para a guerra. Seja como for, esse foi um momento impar na história do

Ceará, pois além de Fortaleza, outras cidades da província registraram presos ansiosos

por uma “vaga” nas fileiras. Todavia, nem todo condenado pôde participar dos

combates.

Os transgressores que atentaram contra a vida de algum parente ou alguém a

quem devesse respeito, por exemplo, não lhes era permitido a entrada nas fileiras.

Aqueles que não tivessem cumprido um terço da condenação e não tivessem bom

comportamento, também lhes era negado o alistamento voluntário para guerra. Nesta

exigência, Bernardo não se encaixava, afinal estava sendo acusado de ser líder de uma

insurreição. Mesmo assim, foi alistado como voluntário da pátria.

À distância da cadeia pública até o “porto” de Fortaleza era longa. Como nos

antigos autos de condenação, Bernardo foi conduzido, seguido por uma multidão, até

onde se encontrava a embarcação. Ele tentou reagir, mas as correntes nas mãos

impediram, de certa forma, sua habilidade. Uma vez imobilizados os membros

exteriores, a língua entrou em ação. Durante o cortejo, o condenado diz palavras

ofensivas as autoridades, e insuflava em vão as levas de almas que assistiam impotente

aquela humilhação.

Fazer o quê? Os expectadores eram em maior número, mas a escolta também

estava numerosa e armada, afinal um preso com a fama de Bernardo carecia de total

cuidado.

Nunca se viu tantos soldados armados. Era chegada a hora da partida, mas

Bernardo ajoelhou-se gritando:

- Meus irmãos, não sou voluntário, sou involuntário, vós bem sabeis!

-Cala-te “pobre-diabo”! Grita uma voz autoritária.

-Eu sou um homem livre de corpo e alma... Se fiz o que fiz.. Fiz em nome da

liberdade. Nem os filhos de Caim merecem tal castigo... Não me arrependo dos meus

                                                            13 Livro de Avisos dos diversos Ministérios. Serie: ofícios recebidos. Livro. Nº 16. Ofício enviado em 01/06/1867. Público Arquivo do Ceará (APEC).

 

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atos... Já estou morto, porque um ser que não pode opinar sobre seu próprio destino não

deve viver.

Dois soldados o arrastaram até o Paquete Guará. Bernardo pulou ao mar e uma

onda o engoliu. A multidão ficou atônita. O desespero na re-captura do réu foi em vão.

A confusão durou meia-hora. O corpo de Cão apareceu boiando. Acorrentado pelas

mãos não podia nadar... Foi suicídio!