00423 - brasil - 500 anos de língua portuguesa

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BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA (Congresso internacional) Apoio específico para esta publicação CNPQ FAPERJ MINISTÉRIO DA CULTURA AlphagraficsPinheiro/São Paulo ABF/SBLL/UERJ EDITORA ÁGORA DA ILHA

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BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA 1

BRASIL – 500 ANOSDE LÍNGUA

PORTUGUESA(Congresso internacional)

Apoio específico para esta publicação

CNPQ

FAPERJ

MINISTÉRIO DA CULTURA

AlphagraficsPinheiro/São PauloABF/SBLL/UERJ

EDITORA ÁGORA DA ILHA

Page 2: 00423 - Brasil - 500 Anos de Língua Portuguesa

BRASIL – 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA2

COPYRIGHT: Leodegário A. de Azevedo Filho.TEL.: (0 XX 21) 522-5155

BRASIL 500 ANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Rio de Janeiro, junho de 2000

Magnífico Reitor da Universidadedo Estado do Rio de Janeiro

Antônio Celso Alves Pereira Presidente da Academia Brasileira de Filologia e

da Sociedade Brasileira de Língua e LiteraturaLeodegário A. de Azevedo Filho

Diretor do Instituto de LetrasCláudio Cezar Henriques

COMISSÃO EDITORIAL

Álvaro de SáAmós Coelho da Silva

Marina Machado Rodrigues

Editor: Paulo FrançaEDITORA ÁGORA DA ILHA

TEL.FAX: 0XX 21 - [email protected]

FILHO, Leodegário A. de AzevedoBrasil 500 anos de Língua Portuguesa / LeodegárioA. de Azevedo Filho (organizador)372 páginas - Rio de Janeiro, junho de 2000

Editora Ágora da Ilha - ISBN 86854Lingüística e Filologia CDD - 410.412

Ficha catalográfica

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PARTE ICONFERÊNCIAS.......................................................................................13

Sumário

Língua, poesia e música em Cecília Meireles...................................15Albano Martins (Universidade Fernando Pessoa, Portugal)Questões de globalização e lusofonia..................................................21Anna Hatherly (Universidade de Lisboa, Portugal)D. Francisco Manuel de Melo no Teatro da Língua Portuguesa.......33Evelina Verdelho (Universidade de Coimbra, Portugal)Da construção lingüística da identidade. Um estudo de caso...............61João Nuno Paixão Corrêa Cardoso (Universidade de Coimbra, Portugal)Sintaxe camoniana: “Na qual quando imagina.”...................................73Jorge Morais Barbosa (Universidade de Coimbra, Portugal)Os estudos vicentinos: balanço e perspectivas......................................81José Augusto Cardoso Bernardes (Universidade de Coimbra, Portugal)Em defesa da Língua Portuguesa.........................................................91Leodegário A. de Azevedo Filho (UERJ e UFRJ)A Lusitania liberata ou A Restauração portuguesa em imagens .....95Lilian Pestre de Almeida (Universidade Independente, Lisboa)A Língua Espanhola e a sua função na obra catequética no Brasil.....111Nicolás Extremera Tapia (Universidade de Granada)O primitivismo literário de influência brasileira na poesia deAngola....................................................................................................133Salvato Trigo (Universidade Fernando Pessoa)O léxico arcaico na história da Língua Portuguesa...........................143Telmo Verdelho (Universidade de Aveiro, Portugal)Tradução literária e comunicação cultural: o Português do Brasil emEspanha..................................................................................................149Xosé Manuel Dasilva Fernández (Universidade de Vigo, Espanha)

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PARTE IICOMUNICAÇÕES ESPECIAIS...................................167

Análise contrastiva da variedade da Língua Portuguesa no Brasil eem Portugal..........................................................................................169Alessandra Dias Gervasoni (Universidade de Assis, SP)José de Alencar e a língua nacional....................................................177Ana Lúcia de Sousa Henriques (UERJ)Duarte Nunes do Lião e a saudade do latim.......................................185Antônio Martins de Araujo (ABF e UFRJ)Língua e História do Brasil seiscentista em um manuscrito lusitano.................................................................................................................197Carla da Penha Bernardo (UFRJ)Os utensílios de cozinha: português europeu do séc. XVI em confrontocom o português do Brasil no séc. atual..............................................207Celina Márcia Abbade (UNEB/PPGL - UNBa)É uma Língua Portuguesa, com certeza............................................217Claúdio Cezar Henriques (ABF e UERJ)Qual é a “língua brasileira” a se aprender na escola?.......................221Darcília Simões (UERJ)A defesa da fé no púlpito transdisciplinar............................................227Geysa Silva (UFJF)A indeterminação do sujeito no falar culto do Rio de Janeiro...........235Hilma Ranauro (ABF e UFF)As linguagens de Fernando Pessoa e Manoel de Barros................251Isaac Newton Almeida RamosEdição diplomática de Gregório de Matos Guerra..............................261José Pereira da Silva (ABF e UERJ)Os sufixos tupi tyba ou tüba identificados com o sufixo português al...267Luís César Saraiva Feijó (ABF e UERJ)A Língua Portuguesa no Brasil: papel dos gramáticos na sua implantação(participação em mesa-redonda)........................................................271Manuel Pinto Ribeiro (ABF e UERJ)Clarice Lispector e Maria Gabriela Ilansol: tentativas de descreversutilezas ou como dobrar a língua........................................................281Maria de Lourdes Soares (UFRJ)Um olhar sobre O memorial do convento - Saramago, primeiro PrêmioNobel da Língua Portuguesa................................................................293Marina Machado Rodrigues (UERJ e ABF)Tupinismos, africanismos, asiaticismos e o Dicionário Houaiss deLíngua Portuguesa..............................................................................303Mauro Vilar (ABF e IAH)Confrontos entre o Tupi antigo e a Língua Portuguesa....................317Nataniel dos Santos Gomes (UFRJ e SUAM)

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A língua literária do Brasil no século XX e sua formação.................329Paulo Silva de Araújo (ABF e Unesa)A Língua Portuguesa no Brasil: papel dos gramáticos na sua implantação(participação em mesa-redonda)........................................................341Walmírio Macedo (ABF e USU)Língua culta e língua literária............................................................347Walmírio Macedo (ABF e USU)

PARTE IIICOMUNICAÇÕES LIVRES (Resumos).........................353

Isoglossas do português.......................................................................355Afrânio da Silva Garcia (UERJ-FFP)O contorno semântico-sintático dos adjetivos em “O coruja” de Aluísiode Azevedo..............................................................................................355Afrânio da Silva Garcia (UERJ-FFP)Intertextualidade como característica da língua literária machadiana.................................................................................................................355Alexandre Marcelo Matos (UFJF)A cidade na obra de Lima Barreto e Almada Negreiros.....................356Ângela Maria Thereza Lopes (UniverCidade – Univers. de Sá)As figuras femininas em A geração da utopia de Pepetela...............356Assunção Maria Sousa e Silva (UFRJ)O ‘sociolingüista’ Mário de Andrade e o problema da língua brasileira.................................................................................................................357Carlos Alexandre Victorio Gonçalves (UFRJ)História externa do português do Brasil............................................357Castelar de Carvalho (ABF e UFRJ)Diálogo entre tradições: uma leitura de “A cartomante” de Machado deAssis.......................................................................................................357Cecília de Macedo Garcez (UFJF)O fim de Arsênio Goddard de João do Rio: o destino de um voluntariosoCláudio de Sá Capuano (UFRJ e CMRJ)...............................................358Os caminhos da memória. Esquecer e lembrar. Uma leitura de Baú deossos de Pedro Nava...............................................................................358Cristina Ribeiro Villaça (UFJF)Texturas da narrativa de Autran Dourado...........................................359Irene Jeanete L. Gilberto (Univers. Católica de Santos)Neologismos formados por empréstimos na Língua Portuguesa escritacontemporânea do Brasil......................................................................359Isabel Aparecida S. Stamato (PG- FCL – UNESP)O português do Brasil: a língua de Alencar .......................................359Jorge Marques (UFRJ e CMRJ)

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A trajetória da Língua Portuguesa na Amazônia colonial................360José Ribamar Bessa (UERJ)A produtividade de alguns processos formadores de palavra na consti-tuição do vocabulário de pescadores artesanais.................................360Kátia Carlos Alves/ Nelson Carlos Tavares Junior/Vanessa Sant’AnnaTavares (UFRJ)Murilo Mendes e as rasuras na religiosidade....................................361Mara Conceição Vieira de Oliveira (UFJF)A defesa da Língua Portuguesa e do império lusitano nos primeirosgramáticos e em António Ferreira......................................................361Márcia Maria de Arruda Franco (UFOP – CNPq)Jeitinho brasileiro. A expressão idiomática no português do Brasil:uma contribuição para o léxico da língua............................................361Maria Auxiliadora Fonseca Leal (FALE – UFMG)As duas faces da cidade na prosa ficcional de João do Rio................362Mariângela Monsores Furtado Capuano (UERJ)A reinvenção do infinito: mundos imaginados e imaginários em A idadedo serrote, de Murilo Mendes..............................................................363Maria Perla Araújo Morais (UFMG)A onomástica indígena no português do Brasil: confrontos lingüísticose interétnicos.........................................................................................363Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick (USP)A linguagem do poder e o poder da linguagem: Lima Barreto e a LínguaPortuguesa.............................................................................................364Maurício Pedro da Silva (USP)O (não) lugar de Portugal na formação de Murilo Mendes................364Patrícia Riberto Lopes (UFJF)O duplo destronizado e a devoração simbólica – a antropofagia comorevisão canônica em um conto de Rubem Fonseca..............................364Petra Cristina Augusto (UFJF)Fatores externos na formação do léxico português da América: os ele-mentos indígenas e afro-negros...........................................................365Ruy Magalhães de Araújo (UERJ- FFP)Entre o segredo da Jurema e a perdida muiraquitã: uma busca da iden-tidade nacional.......................................................................................365Tatiana Alves Soares (UFRJ)A linguagem literária machadiana e a reescritura da tradição........366Terezinha Vânia Zimbrão da Silva (UFJF)

PARTE IVMINICURSOS..........................................................................................367

1 - “Edição crítica da lírica de Camões”, com as participações de Álva-ro de Sá (ABF); Marina Machado Rodrigues (UERJ) e Xosé ManuelDasilva Fernández (Universidade de Vigo, Espanha).....................369

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A – O corpus minimum (Xosé Manuel Dasilva Fernández)Lírica de Camões: problemas afetos à autoria e reconstituição textual– Tentativas anteriores de estabelecimento de um corpus líricocamoniano - Metodologia concebida por Emmanuel Pereira Filho –Os critérios empregados por Leodegário A. de Azevedo Filho – Acrítica textual: ferramenta fundamental para o estabelecimento críticodos textos – O corpus minimum camoniano, segundo edição críticade Leodegário A. de Azevedo Filho.

B – O corpus addititium (Marina Machado Rodrigues)Conceito de corpus addititium - Critérios propostos por LeodegárioA. de Azevedo Filho – Aplicação dos critérios aos textos excluídos.

2 - “Unidade do português literário no mundo lusofônico de Portugal,Brasil e nações africanas de Língua Portuguesa”, com as participa-ções de Pedro Lyra (UFRJ); Carmen Lúcia Tindó Secco (UFRJ) e NadiáPaulo Ferreira (UERJ).

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Realizou-se, no período de 26 a 30 de julho de 1999, o Congres-so Internacional-Brasil: 500 Anos de Língua Portuguesa, noInstituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

1 – Participação de professores estrangeiros

Participaram do Congresso os seguintes professores vindos doexterior:

1.1 -Prof. Dr. Eugenio Coseriu, da Universidade de Tübingen,Alemanha, que falou sobre “Língua Portuguesa e exemplaridadebrasileira”;

1.2 - Prof. Dr. Fernando Alves Cristóvão, da Universidade deLisboa, Portugal, que falou sobre “Unidade e diversidade da Lín-gua Portuguesa na hora da globalização”;

1.3 - Prof. Dr. Telmo Verdelho, da Universidade de Aveiro,Portugal, que falou sobre “O português quinhentista”;

1.4 - Profª Drª Evelina Verdelho, da Universidade de Coimbra,Portugal, que falou sobre “O português quinhentista”;

1.5 - Prof. Dr. Jorge Morais Barbosa, da Universidade deCoimbra, Portugal, que falou sobre “O português quinhentista”;

1.6 - Prof. Dr. José Carlos Seabra Pereira, da Universidadede Coimbra, que falou sobre “A redescoberta do Brasil pelo ima-ginário neo-romântico”;

1.7 - Prof. Dr. Nicolás Extremera Tapia, da Universidade deGranada, Espanha, foi debatedor em mesa-redonda que tratou dotema proposto pela conferencista Yonne Leite, do Museu Nacionale da UFRJ, sobre “As línguas indígenas brasileiras” e a Grammaticada lingoa mais falada na costa do Brasil, do Padre José deAnchieta. Em outra sessão, já como conferencista, expôs as suas

Apresentação

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conclusões sobre recente investigação feita em torno da língua doscatecismos usadas no Brasil quinhentista;

1.8 - Prof. Dr. José Augusto Cardoso Bernardes, da Universi-dade de Coimbra, Portugal, que falou sobre “Os estudos vicentinos:balanço e perspectivas”;

1.9 - Profª Drª Anna Hatterly, da Universidade de Lisboa, quefalou sobre “A questão da lusofonia”;

1.10 - Prof. Dr. Xosé Manuel Dasilva Fernández, da Universi-dade de Vigo, Galiza, que falou sobre “Tradução literária e comuni-cação cultural: o português do Brasil na Espanha”;

1.11 - Prof. Dr. Albano Martins, da Universidade Fernando Pes-soa, Porto, Portugal, que falou sobre a “Língua, poesia e música emCecília Meireles”;

1.12 - Prof. Dr. Salvato Trigo, da Universidade Fernando Pes-soa, Porto, Portugal, que falou sobre “O português em África”;

1.13 - Prof. Dr. João Nuno Paixão Corrêa Cardoso, da Universi-dade de Coimbra, Portugal, que falou sobre “A construção lingüísticada identidade”

2 – Participação de professores brasileiros

Em seguida, relacionaremos a participação de professores bra-sileiros, indicando temas de conferências e mesas-redondas:

2.1 - Conferência sobre a “Língua histórica portuguesa eexemplaridade brasileira”com as participações de Cilene da Cu-nha Pereira (ABF e UFRJ), Castelar de Carvalho (ABF e UFRJ)e Evanildo Bechara (ABF e UERJ);

2.2 - Conferência sobre “As línguas indígenas brasileiras e aGrammatica da lingoa mais usada na costa do Brasil, do pa-dre José de Anchieta”, de Yonne Leite (do Museu Nacional e daUFRJ), com a participação de Ricardo Cavaliere (ABF e UFF);

2.3 - Mesa-Redonda sobre “A contribuição das línguas indíge-nas e africanas para o enriquecimento do léxico do português doBrasil” com as participações de Horácio Rolim de Freitas (ABF eUERJ), Luís César Saraiva Feijó (ABF e UERJ) e Mauro Vilar(IAH);

2.4 - Conferências sobre “A Língua Portuguesa no Brasil:papel dos gramáticos na sua implantação” com as participaçõesde Evanildo Bechara (ABF e UERJ), Manuel Pinto Ribeiro (ABFe UERJ) e Walmírio Macedo (ABF e USU);

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2.5 - Mesa-Redonda sobre “A formação da língua literária noBrasil” com as participações de Domício Proença Filho (ABF e UFF),Gilberto Mendonça Teles (ABF e PUC) e Ildásio Tavares (UFBa);

2.6 - Conferência sobre “Tradução literária e comunicação cul-tural: o português do Brasil na Espanha”, com as participações deHelena Ferreira (UFRJ), Maria Lúcia Aragão (UFRJ), Ivany LessaBaptista de Oliveira (SBLL) e Maria Leny H.S. de Almeida (UERJ);

2.7 - Mesa-Redonda sobre “O português do Brasil - sua implan-tação e sua oficialização como língua nacional”, com as participa-ções de Claúdio Cezar Henriques (ABF e UERJ), André Valente(UERJ), José Carlos Azeredo (UERJ) e Darcília Simões (UERJ);

2.8 - Conferência sobre “Palavra de poeta – Cabo Verde eAngola” proferida pela escritora e jornalista Denira Rozário;

2.9 - Conferência sobre “Escrevendo ainda em Latim noséc.XVII e defendendo Portugal por imagem”, proferida por LílianPestre de Almeida (Lisboa, Portugal);

2.10 - Conferência sobre “Unidade e diversidade da LínguaPortuguesa na hora da globalização”, com as participações deEneida Monteiro Bonfim (ABF e PUC); Horácio Rolim de Freitas(ABF e UERJ) e Rosalvo do Vale (ABF e UFF);

2.11 - Mesa-Redonda sobre “A língua literária moderna” comas participações de Dalma Nascimento (UFRJ); Marcus Accioly(UFPe) e Pedro Lyra (UFRJ);

2.12 - Conferência sobre “Em defesa da Língua Portuguesa”,por Leodegário A. de Azevedo Filho.

Minicursos

1 - “Edição crítica da lírica de Camões”, com as participaçõesde Álvaro de Sá (ABF); Marina Machado Rodrigues (UERJ) eXosé Manuel Dasilva Fernández (Universidade de Vigo, Espanha);

2 - “Unidade do português literário no mundo lusofônico dePortugal, Brasil e Nações Africanas de Língua Portuguesa”, comas participações de Pedro Lyra (UFRJ); Carmen Lúcia Tindó Secco(UFRJ) e Nadiá Paulo Ferreira (UERJ).

Em síntese, o Congresso pôs em discussão, de um lado, o pro-blema do transplante e da implantação do português como línguanacional do Brasil, analisando o uso da língua geral no séc. XVI eo gradativo triunfo da Língua Portuguesa através do bilingüismo

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do séc. XVII e da sua definitiva implantação no séc. XVIII. Apartir do séc. XIX, a elite intelectual brasileira assumiu como delaa Língua Portuguesa, surgindo então várias polêmicas entre por-tugueses e brasileiros. Conclusivamente, a língua é a mesma en-quanto sistema, apresentando naturais variações de norma e uso,não apenas entre Portugal e Brasil, mas em todo o mundolusofônico. De outro lado, o Congresso analisou a formação dalíngua literária no Brasil, desde o séc. XVI, quando a obra deAnchieta se incluiu dentro dos postulados da estética jesuítica, re-cebendo os influxos ideológicos do Concílio de Trento, em suaexpressão pré-barroca. No séc. XVII, com Gregório de Matos eVieira, o Barroco atingiu a sua plenitude, estendendo-se ainda peloséc. XVIII, em que floresceu o Arcadismo com os poetas dogrupo mineiro. No séc. XIX, a língua literária do Brasil estavaplenamente constituída, como se pode ver nas obras literárias dosromânticos, realistas e simbolistas. Afinal, no séc. XX, a partir daSemana de Arte Moderna de 22, a literatura brasileira tornou-seuma das mais expressivas do mundo lusofônico.

Com a publicação das Atas do Congresso, que serão enviadasaos órgãos patrocinadores, melhor se poderá avaliar a qualifica-ção científica das conferências proferidas e dos temas discutidosem mesas-redondas e em sessões de Comunicações livres.

Em anexo, remetemos ainda a programação das sessões deComunicações, indicando os nomes dos participantes e os temasdas mesmas, com a observação de que também serão selecionadase inseridas nas Atas, ampliando-se assim os benefícios culturaisdo Congresso Internacional – Brasil: 500 Anos de LínguaPortuguesa.

Por fim, de acordo com o Regulamento do Congresso,por todos aprovado, aqui se publicam apenas os textos entreguesà Comissão Organizadora, com disquetes, dentro do prazo es-tabelecido.

Leodegário A. de Azevedo FilhoPresidente

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ConferênciasParte I

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.............................. palavras,que estranha potência, a vossa!

Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência

Há um poema de Cecília Meireles que me persegue hácinqüenta anos. Vem no seu livro Viagem, de 1939, e os seusquatro primeiros versos dizem assim:

Pus o meu sonho num navioe o navio em cima do mar;- depois, abri o mar com as mãos,para o meu sonho naufragar.

Porque me persegue ele, o poema? Não sei. Tenho-o noouvido, onde ressoa em surdina, e sei, isso sim, que lá irá con-tinuar, fazendo companhia a outros que ali um dia também en-traram, para não mais sair. Este, por exemplo:

Senhora, partem tão tristesmeus olhos por vós, meu bem,que nunca tão tristes vistesoutros nenhuns por ninguém.

Ao seu poema chamou Cecília “Canção”. Este, cujo moteacabo de evocar, é uma “cantiga”, e o seu autor, João Roiz de

Língua, poesia emúsica em Cecília Meireles

Albano Martins

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Castelo Branco, um dos poetas recolhidos por Garcia de Resendeno seu Cancioneiro Geral, lá por alturas de Quinhentos, quandoa Língua Portuguesa atravessava os mares, levada no bojo dasnaus – dos navios –, como o sonho de Cecília. Mas se a este, porvontade do poeta, o engoliram as “ondas entreabertas” por suasmãos, a língua, essa, aportou aqui triunfante, bebeu o sumo dosfrutos tropicais, mergulhou raízes no húmus estuante de seiva, tor-nou-se “vaga música”, abriu as vogais, suavizou as consoantes,fez-se imperatriz na toada dolente do chorinho, congonha no buledos dias iguais, vinho anestesiante das noites cálidas do luar serta-nejo, grito de Ipiranga, rosa e ametista.

É dessa “vaga música”, dessa suavidade, desse vinhoperturbante, do perfume dessa rosa e do brilho dessa ametista que éfeita a poesia de Cecília, que são feitas as suas “canções” – título deum sem número de poemas avulsos e de um emblemático livro seu.

E esta palavra “canção”, a que os tempos da demandapetrarquista haviam de emprestar novas feições, novos ritmos, no-vos conteúdos e respiração mais dilatada, logo remete para as ori-gens da língua literária, para a jubilosa atmosfera das “flores doverde pino” ou para as “ondas do mar de Vigo”, a que o poeta deMar Absoluto sempre se manterá ligado pelo ritmo escandido dosseus versos brandos. Canção, e canto, e música interligados numnovelo de rimas, de ritmos e de sons, ora vindos do corpo redondodos alaúdes, ora do afilado perfil das flautas, ora dos cravos e dasclarinetas que por ali andam urdindo a sua teia sonora, num compas-so de valsa lenta e suavíssimos adágios.

É essa a língua primeva de Cecília: a dos Cancioneiros. Osmedievais, os das cantigas de amigo e de amor, e o de Garcia deResende. Mas é também a do romanceiro popular português, comoclaramente deixam perceber o seu Romanceiro da Inconfidên-cia e alguns romances ou rimances que também escreveu e avul-samente publicou.

Volto ao poema. Para dizer que sei, afinal, donde vem o seufascínio. Vem do ritmo, do seu compasso lento, das cesuras e, também,dos seus timbres vocálicos. Diz Amorim de Carvalho, no seu Tratadode Versificação Portuguesa, que o octossílabo (e octossílabos sãoos versos do poema de Cecília) “tem uma toada própria lânguida,mole, vagarosa e dolente”; que os seus acentos rítmicos recaem,umas vezes, na 4ª e 8ª sílabas; outras, na 2ª, 4ª, 6ª e 8ª, caso em queo seu andamento se torna mais vagaroso. Não conheceu Amorimde Carvalho o poema de Cecília. Conhecendo-o, teria emendado a

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afirmação, ou tê-la-ia completado, ao menos, acrescentando que anorma por si enunciada pode admitir desvios, aceitar variantes.Repare-se no segundo verso:”e o navio em cima do mar”. Aqui, astónicas dominantes são a 3ª, 5ª e 8ª sílabas. E há, no mesmo poema,um verso – este: “colore as areias desertas” – em que eles, osacentos rítmicos, recaem na 2ª, na 5ª e na 8ª sílabas. Donde seinfere que o maior vagar e dolência do octossílabo podem tambémresultar da sua maior variedade rítmica. Como naquele verso – nemsáfico nem heróico – de Camilo Pessanha – “aridez de sucessivosdesertos” –, cuja acentuação (com as tónicas dominantes na 3ª e 7ªsílabas) se furta visivelmente às normas estabelecidas pelos tratadistaspara o verso decassilábico. Veja-se como, com tais acentos, ambosos versos ondulam.

O de Cecília:

lo rei ser co re ( as a as de ( tas ) ( ∪ - / ∪ ∪ - / ∪ ∪ - / )

O de Pessanha:

dez ssi ser ari de suce vos de (tos)

( ∪ ∪ - / ∪ ∪ ∪ - / ∪ ∪ - / )

No primeiro, o ritmo iâmbico volve-se em dactílico por exce-lência. E é também dactílico, no essencial, o verso de CamiloPessanha, onde a introdução do péon IV no segundo pé ( ∪ ∪ ∪ -)parece dilatar ad infinitum a extensão (a aridez) dos “sucessivosdesertos”. E esta é a prova – mais uma, e prova bastante – de que,em matéria de poesia, são os poetas quem, em definitivo, estabeleceas normas, não os tratadistas.

Mas falei dos timbres. É que também eles concorrem decisi-vamente para a música apetecida que os versos engendram. Aí ostemos: a tónica final do primeiro verso, que contém a vogal fechadai (“Pus o meu sonho num navio”) ecoa duas vezes no segundo (“e onavio em cima do mar”) e também no terceiro (“depois, abri o marcom as mãos”). As rimas em i (neste caso, internas) são, como ésabido, uma constante nas cantigas de amigo (“Ai flores, ai flores doverde pino, / se sabedes novas do meu amigo...”; “Ondas do mar de

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Vigo, / se vistes meu amigo...”), onde alternam, como também ésabido e notório, com as rimas em a. Aí as temos, na primeira quadrado poema de Cecília, onde o substantivo mar, do final do segundoverso, entra em consonância com o infinito naufragar, do quarto.E, como se tal não bastasse, o mar do segundo verso é recuperadono terceiro, numa espécie de leixa-pren, e a sua vogal repercute-se,como um eco, na palavra “água”, sempre sabiamente colocada ameio dos versos (“debaixo da água vai morrendo”; “praia lisa, águasordenadas”), lá onde o tom sobe ou se encrespa, como a cristaduma onda, que logo se quebra, desamparada, nas “areias desertas”.E de leixa-pren poderíamos falar ainda a propósito de navio esonho, que são, juntamente com mar, as palavras-chave dasemântica do poema. Navio e sonho que, em repetidas variaçõessobre o mesmo tema, como leit-motiv ou em jeito de estribilho,reaparecerão em outros, vários, momentos do poema. Antes que o“navio chegue ao fundo” e o “sonho desapareça”.

As rimas em i e em a, dizíamos. E são elas que de novoirrompem em pontos fulcrais do poema. As primeiras, nesta qua-dra, situada a meio:

O vento vem vindo de longe,a noite se curva de frio;debaixo da água vai morrendomeu sonho, dentro de um navio.

As segundas, no seu remate:

Depois tudo estará perfeito:praia lisa, águas ordenadas,meus olhos secos como pedrase as minhas duas mãos quebradas.

Entre parênteses, faria notar que são as rimas em i quedão o timbre mais saliente à “cantiga” de João Roiz de CasteloBranco atrás aludida, e as rimas em a as mais constantes noromanceiro popular português. Quem não se lembra do inícioda “Nau Catrineta”?:

Lá vem a nau catrineta,que tem muito que contar.Ouvi agora, senhores,uma história de pasmar.

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Poesia em mi, em si, em fá e em lá, isto é, poesia e músi-ca harmonizadas na escrita rendilhada de Cecília Meireles.Música de clavicórdio, instrumento antigo, e de harpa eólica(“O vento vem vindo de longe, / a noite se curva de frio...” –note-se a explosão das fricativas, a sugerir o continuado sus-surro da aragem). Ou, se preferirem, a língua elevada à suamais alta expressão musical. Terá sido a consciência de taisvalores – os valores musicais da língua -, tanto como a da suairresistível energia comunicativa, que levou Cecília a escrever,no “Romance LIII ou das palavras aéreas”, do seu Romanceiroda Inconfidência:

................................. palavras,que estranha potência a vossa!Todo o sentido da vidaprincipia à vossa porta;o mel do amor cristalizaseu perfume em vossa rosa;sois o sonho e sois a audácia...

Palavras. Sonho e rosa. Uma rosa de sílabas “aéreas”, per-fumadas. Uma canção. Todo o canto e toda a música no timbrede algumas vogais. Do i, sobretudo. Porque é em i que “ o mel doamor cristaliza”. Porque é lá, no amor, que o “sentido da vidaprincipia”. E eis como, deste modo, a frase do Génesis “Ao princí-pio era o verbo” ganha novo significado. Este: ao princípio era o i.O i de Cecília. O i de poesia. E, enfim, o i de Brasil.

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Em primeiro lugar, desejo expressar a minha satisfação por meencontrar mais uma vez nesta cidade maravilhosa que sempre meencantou e onde sempre fui tratada com tanto carinho. Agradeçoao meu querido amigo Leodegário de Azevedo Filho e aosorganizadores deste Congresso o convite para estar aqui convosco.

Apesar de a Lingüística não ser a área da minha especialida-de

, esta não é a primeira vez que me encontro no meio de mestres

da Lingüística: lembro-me bem de ter participado no 1º Congressode Lingüística que, em 1979, se realizou em João Pessoa, e que foipara mim um Encontro a muitos títulos memorável.

Vinte anos depois, aqui estou, novamente num Congresso deLingüística, mas como sou apenas escritora e professora de litera-tura, vão-me perdoar se, no meu pequeno texto, eu ficar dentro domeu terreno, tanto mais que a literatura, que é uma das áreasprivilegiadas de funcionamento duma língua, me permite abordara questão da lusofonia, que é aonde eu quero chegar.

Recentemente, no passado mês de Junho, estive em Varsó-

via, para participar no 66º Congresso do P.E.N. Club Internacional,que este ano se realizou na Polônia. O tema do Congresso eraFarewell to the XXth Century – uma despedida do século – maso sub-tema que mais se debatia era o problema da globalização,que, sendo na origem, de ordem econômica na Europa

, mas tam-

bém em todo o mundo, se projecta duramente na área da cultura.O conceito de global village prenunciado por Marshall Macluhanhá mais de duas décadas, começa agora a tomar forma de ummodo generalizado.

Devo dizer que além de ser membro da direcção do P.E.N.

Questões de globalização e lusofonia

Ana Hatherly, da Universidade Nova de Lisboa.

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Club Português, há muito que também sou membro da direcçãodo pelouro para os direitos lingüísticos no P.E.N. Club Internacio-nal, e por isso a minha ligação com as questões lingüísticas temsido uma das áreas do meu interesse.

Voltando ao Congresso de Varsóvia, o que preocupava oscongressistas do P.E.N Club, europeus, americanos do norte e dosul, africanos e asiáticos, uma vez que se tratava de uma repre-sentação de intelectuais de todo o mundo

, o que os preocupava

estava equacionado nos dois temas que foram propostos para de-bate e eram os seguintes:

1º - Quais os efeitos da globalização ante a singularidade doescritor?

2º - Qual o papel do escritor no próximo milênio?

Estes dois temas já haviam sido discutidos num Encontro In-ternacional de Escritores do P.E.N. que se realizara em Bled, naYugoslávia, no mês de Maio. O que se passou em Varsóvia, foi,portanto, um prolongamento desse debate.

Eu não estive nesse encontro de Bled, mas li atentamente asActas e, quando chegou minha vez de entrar no debate em Varsó-via, apresentei um texto de que vos darei aqui uma breve súmula.

Assim, voltando à questão inicial da globalização que tantopreocupa os intelectuais, especialmente os de países de línguasminoritárias que, em geral, correspondem a economias deficitáriasou em desenvolvimento, o que se pôde concluir destes debates foique o processo de globalização, que agora ameaça as erradamentechamadas “pequenas literaturas nacionais”, que representam porvezes, culturas longamente individualizadas, esse processo há muitoque tem estado em discussão porque, agora como antes, o queverdadeiramente está em questão é o problema da sobrevivência:sobrevivência duma individualidade, sobrevivência duma ideia decultura, sobrevivência do todo um mundo de expressão e criatividadeprópria, num contexto em que o domínio duma força econômica, aque agora chamamos globalização, é uma velha ameaça. O quemudou é que essa ameaça atinge agora mesmo países e culturassecularmente importantes que, hoje em dia, em termos de númerosde falantes, se encontram de repente no número das línguasminoritárias, como exemplo, a Alemanha.

Quanto à necessidade de afirmação de singularidade por partedo escritor, agora mais do que nunca confrontado com o processode globalização, esse confronto estende-se agudamente às litera-

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turas e às culturas nacionais, e a das em línguas minoritárias, con-frontadas com os padrões de consumo das áreas culturalmentedominantes.

Perante esta situação que, na Europa e no mundo, diz respei-to a um grande número de países com culturas tradicionais comséculos de existência, quesurgiram várias perturbantes perguntas,como por exemplo:

1) - Poderá acaso o romântico conceito de escritor comoout-sider, ou a defesa de uma cultura marginal, sobreviver nummundo dominado pelo processo de globalização, a qual, para citaruma definição oferecida pela Internet, que aqui traduzo, “é ummeio para se atingir altos níveis de produtividade, eficiência e se-gurança, penetrando as forças do mercado e os ciclos económicosà escala mundial”?

2) - Poderá acaso o velho conceito de literatura como merca-doria espiritual (ou Ropicapnefma segundo lhe chamou João deBarros no século XVI) poderá acaso esse velho conceito sobrevi-ver num mundo dominado pelos interesses económicos que fazemdos assuntos culturais uma indústria como qualquer outra?

3) - Qual é o lugar do talento individual num contexto que tendea nivelar as diferenças, tantas vezes pelo baixo, submetendo tudoaos padrões ditados pelos valores das sociedades antes dominantese suas dominantes línguas?

A estas prementes questões as tentativas de resposta gera-ram logo debates, que aqui não tenho tempo de relatar, mas quepoderemos aqui re-iniciar, se for vosso desejo.O que posso infor-mar é que, dos importantes debates que ocorreram tanto em Bledcomo em Varsóvia, uma das principais conclusões a que se che-gou foi que, curiosamente, ou talvez significativamente, aquilo aque o processo de globalização em curso tem dado origem, nospaíses e nas culturas de línguas minoritárias mais atentos, é umaintensificação das diferenças culturais, literárias e lingüísticas quereafirmam – ou pelo menos tentam reafirmar – uma diferencia-ção, surgindo essa diferenciação como a resposta natural à ame-aça da normalização, da standardização, do nivelamento das cul-turas personalizadas

, que põem em perigo a diversidade, que é

uma regra natural do processo de sobrevivência.Quando, nesse debate internacional, chegou a minha vez de

falar, o exemplo que eu dei, como não podia deixar do ser, foiprecisamente o da lusofonia.

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Como todos sabem, sendo a Língua Portuguesa uma línguaminoritária na Europa, à escala mundial é uma língua com umimportante número de falantes, mas isso só acontece no conjunto dalusofonia, que se caracteriza, precisamente, pela afirmação dumaconvivência apoiada numa diferenciação harmoniosa. Esse é oprodígio (talvez momentâneo) que se verifica no mundo da LínguaPortuguesa, e que evidencia a enorme ductibilidade dum idioma emque diferentes culturas se apoiam para se afirmarem individualmente,constituindo uma experiência multicultural em que as diferenças,até agora, têm sido uma vantagem, e não uma desvantagem.

Esse é o prodígio da lusofonia que, perante a ameaça deglobalização, consegue manter uma forma de coexistência das dife-renças num harmonioso plural, num todo sinfônico, em que o talentoindividual e as culturas individuais contribuem umas para as outrassem se contradizerem.

E se, como já tem sido dito, a literatura surge como o local daplenitude da língua, e não a literatura da lusofonia, explorando nasimultaneidade o mundo da diferença, no seu conjunto será umailustrativa manifestação do alcance da criatividade individual numconjunto de pluralidades.

E então pergunto:1) Não será acaso tarefa do pensamento criador tentar a

exploração do mundo da diferença?2) A criatividade, a todos os níveis, não será acaso a expres-

são duma procura da secreta relação que existe entre o homem eo mundo, destinada a promover imaginativamente a compreen-são do outro?

O exemplo da lusofonia surge, assim, como algo que se atin-ge através duma compreensão da unidade superior da língua portu-guesa, que poderá transformar-se em “uma ponte eterna sobre acorrente dos séculos, como tem sido uma ponte sobre a vastidãodo oceano.”1

Dois exemplos recentes da harmoniosa expressão da lusofonia:para além da arreigada competência e dedicação com que noBrasil se estudam os autores portugueses, quero assinalar aqui arecentíssima edição da Antologia da poesia portuguesa con-temporânea, organizada por Alberto da Costa e Silva e AlexeiBueno, que inclui dezenas de poetas.2

Também recentemente, em Maio, mas em Portugal, reali-zou-se em Sintra a II Festa da Língua Portuguesa, um encontro de

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poetas da lusofonia, vindos de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe. 3

Da participação desses poetas surgiu uma Antologia intituladaVozes poéticas da Lusofonia4 que é uma verdadeira sinfonia devozes em que as diferenças constituem a sua riqueza, a sua beleza,a sua força individual enriquecida pela convivência.

Para ilustrar esta afirmação vou ler alguns dos poemas inclu-ídos nessa Antologia, que merece um estudo atento porque o queela exemplifica é uma amostragem de talentos individuais queindependem da origem dos seus autores. Desta coletânea de ta-lentos e vozes individuais está excluído o folklore, a exploraçãomais ou menos primária de realidades culturais distintas. O que aídomina é o mundo da língua ao serviço da expressão individualainda que não esteja isenta de ideologia.

O que importa é que cada um se sentiu livre para se exprimire para utilizar uma língua comum como veículo de afirmação per-sonalizada.

Consideremos, portanto, alguns exemplos da criatividadelusofônica numa feliz convivência dentro do âmbito da poesia con-temporânea.

Homo angolensis

Mastiga a própria desgraçacom ela improvisa uma farraprecisa de uma boa makacomo do ar para respiraracha o mundo demasiado pequenopró seu coraçãori à toa fornica por disciplinarevolucionáriajura que um dia será potênciagosta de funje todos os sábadose foge do

trabalho na segunda

mas fica limãoquando lhe querem abusar

Angola: João Melo, p.17

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O número quatro

O número quatro feito coisaou a coisa pelo quatro quadrada,seja espaço, quadrúpede, mesa,está racional em suas patas;está plantada, à margem e acimade tudo o que tentar abalá-la,imóvel ao vento, terremotos,no mar maré ou no mar ressaca.Só o tempo que ama o ímpar instávelpode contra essa coisa ao passá-la:mas a roda, criatura do tempo,é uma coisa em quatro, desgastada.

Brasil: João Cabral de Melo Neto, p. 78

Ser tigre

O tigre ignora a liberdade do salto,como se uma mola o compelisse a pular.

Entre o cio e a cópula,o tigre não ama.

Ele busca a fêmeacomo quem procura comida.

Sem tempo na alma,é no presente que o tigre existe.

Nenhuma voz lhe fala da morte.O tigre, já velho, dorme e passa.

Cabo Verde:Arménio Vieira, p.116

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Imerecimento

AdormeçoNa luzdos teus olhosvejo Venezaque não conheço

Ondulonum círculode ondasde levitação

Confesso:não mereçoa ternurada gôndolaacariciandoas águasonda a onda

Guiné-Bissau: Tony Tcheka,p. 133

O nosso medo

Agoraa memória vasculhaos quatro cantos da cidadee encasacados os ex-amigosrastejam emaranhados nas raízessubterrâneas do seu medoe ágeis as suas mãos embraiam reluzentesbesoiros que dilaceram as estradasbebendo sequiosos o sangue dos ventos.

Vasculhaas ruasde ponta a pontaa memória

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laboriosa como um insectoe se há mais do que eu digotambém o meu medoencasacado instiga-me ao segredo.

Moçambique: José Craveirinha, p.157

Lá no Água Grande

Lá no “Água Grande” a caminho da roçanegritas batem que batem co’a roupa na pe-dra.Batem e cantam modinhas da terra.

Cantam e riem em riso de mofahistórias contadas, arrastadas pelo vento.

Riem alto de rijo, com a roupa na pedrae põem de branco a roupa lavada.

As crianças brincam e a água canta.Brincam na água felizes...Velam no capim um negrito pequenino.

E os gemidos cantados das negritas lá do rioficam mudos lá na hora do regresso...Jazem quedos no regresso para a roça.

S. Tomé e Príncipe: Alda do Espírito Santo, p. 239

O sal da língua

Escuta, escuta: tenho aindauma coisa a dizer.Não é importante, eu sei, não vaisalvar o mundo, não mudaráa vida de ninguém - mas quem

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é hoje capaz de salvar o mundoou apenas mudar o sentidoda vida a alguém?Escuta-me, não te demoro.É coisa pouca, como a chuvinhaque vem vindo devagar.São três, quatro palavras, poucomais. Palavras que te quero confiar.Para que não se extinga o seu lumeo seu lume breve.Palavras que muito amei,que talvez ame ainda.Elas são a casa, o sal da língua.

Portugal: Eugénio deAndrade, p. 195

A fala

Sou de uma Europa de periferiana minha língua há o estilo manuelinocada verso é uma outra geografiaaqui vai-se a Camões e é um destino.

Velas veleiro vento. E o que se ouviaera sempre na fala o mar e o signo.Gramática de sal e maresiana minha língua há um marulhar contínuo.

Há nela o som do sul o tom da viagem.O azul. O fogo de Santelmo e a trombade água. E também sol. E també sombra.

Verás na minha língua a outra margem.

Os símbolos os ritmos os sinais.E Europa que não mais Mestre não mais.

Portugal: Manuel Alegre, p. 209

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Estou aquiÓ Brasilterra maravilhosaonde crescea fruta mais gostosa

Quero comerquero beberágua de cocoquero provarfruta de cajácajucapuaçúgoiabaabacateabacaxiaruçasaracásjoácamboismamãomangavamacujémangarámaracujámapurungamandacarúpitombapitangapiquiáananás

umbumandacaruoititurubagenipapoAs romãs rubicundas, quando abertasà vista agrados são; à língua ofertas*

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Ah!Há um mundo na língua!

*Manoel Botelho de Oliveira, in A ilhada Maré (1705).

Notas1 Cf. Leodegário A. de Azevedo Filho, A língua, portuguesa e a

unidade do Brasil, Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Filologia,1999,p.22

2 Esta Antologia foi publicada no Rio do Janeiro, pela Editora NovaAguilar, em 1999.

3 Infelizmente não foram incluídos poetas da Ásia nem da Oceania,onde se destaca Xanana Gusmão, de Timor, cuja poesia é regularmente deantologias e recitais em Portugal.

4 Organização do Instituto Camões, de Lisboa, Edição da CâmaraMunicipal de Sintra, Maio de 1999

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Entre os numerosos estudos realizados sobre a personalidadee a obra valiosa, vasta e diversificada, em português e espanhol, deD. Francisco Manuel de Melo, contam-se alguns que incidem sobrea sua linguagem, designadamente trabalhos académicos que trou-xeram contributos para o conhecimento do seu estilo. Essa constitui,todavia, uma área de investigação ainda muito em aberto, a solicitarnovos estudos de vária ordem. Refiro a propósito que na Universi-dade de Coimbra está a desenvolver-se um projecto de investiga-ção que tem em vista organizar o corpus lexical das obras em Lín-gua Portuguesa do Polígrafo, tanto quanto possível com base emedições fidedignas. Neste ensejo proponho-me focar algumas facetasdeste autor manifestadas perante o idioma português, as quais –adoptando expressão modelada pelo universo teatral, à imagem doque se verificou com o próprio D. Francisco Manuel de Melo, no-meadamente no soneto “Mundo he Comedia” (As Musas portu-guesas, p. 6), e com outros autores de Seiscentos – poderei etiquetarde espectador, crítico e actor no teatro da Língua Portuguesa.

Nas suas obras, quer no discurso de autor, quer nas falas defiguras ou personagens, D. Francisco Manuel de Melo faz não ra-ras referências a aspectos e materiais da Língua Portuguesa. Dequando em quando, como que interrompe o fio da narração ou dareflexão, e detém-se em vocábulos, assinalando o significado ou ouso, às vezes apontando o que se verificava no português de épocasanteriores, ou em outras línguas. Entre outros casos, de que umlevantamento exaustivo propiciará certamente informações cominteresse no âmbito da história da língua, destaco que assim procedecom vocábulos que designam categorias sociais, como «dama»,

D. Francisco Manuel de Melono Teatro da Língua Portuguesa

Evelina Verdelho, da Universidade de Coimbra.

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«dona», «senhora» e «fidalgo», em A Visita das fontes, em inter-venção da Fonte Velha, onde está notado que às «(…) Damas eSenhoras (…) antigamente chamavam Donas» (p. 118), e naEpanáfora política, onde se lê: «Viuia por estes tempos em Lis-boa hum dos nobres do Reino, de aquella ordem a quem osPortuguezes chamão: Fidalgos, com mais digna recordação queas outras nasções de Espanha, sendolhes a todas vniuersal estenome, não ha muito trocado ao de Caualleiros» (p. 8) (veja-se nofinal indicação das obras e edições citadas). Também palavrasrelativas ao comportamento lhe merecem nota, como «despejo»,«compostura», «descompostura», e outras. Na Carta de guia decasados depara-se-nos o seguinte trecho: «Faz grande dano amaldita palavra que se nos pegou de Castela, a que chamam des-pejo, de que muitas [mulheres] se prezam. E certo que em bomPortuguês, despejo é descompostura» (p. 140). Em A Visita dasfontes, pela voz de duas figuras, Apolo e o Soldado, regista-se queao «saber misturar o despejo e a compostura, dando o seu a seudono» chamam «bizarria» (p. 59).

Em casos como os dos vocábulos acima mencionados, em queas referências extralinguísticas constituíam, no século XVII, maté-ria sensível, designadamente sob o ponto de vista moral, político esocial, as observações metalinguísticas surgem geralmente associa-das a observações de outra natureza.

Por vezes o escritor apresenta séries mais ou menos extensasde termos e de expressões, da linguagem comum e de linguagensespeciais, sendo notório que essa apresentação tem muito que vercom o comprazimento que D. Francisco Manuel de Melo encontra-va nos próprios materiais linguísticos reunidos. É o que sucede emOs Relógios falantes, onde aparecem, em fala do Relógio da Al-deia, os seguintes «modos de dizer» em que entra o vocábulo«hora»: «em boa hora», «em má hora», «ide com as horas más»,«vinde com as horas boas», «a hora muito fermosa», «nas horas deDeus», «logo nessas horas», «as horas perentórias», «as horas su-cessivas», «são horas», «a que horas», «a desoras», «fora de ho-ras»» (p. 27). Em A Visita das fontes, o Polígrafo, em fala da FonteVelha, expõe não escassos termos relativos à arte militar, que aliáslhe deveriam ser familiares, pois prestou serviço na carreira dasarmas durante largos anos. Veja-se: «(…) combóis, brechas, aproxes,víveres, avançadas e castrametanções (…), cornas, hornaveques,crubeques, golas, francos, lisieres, barbacãs e falsas-bragas (…)esquadrões, serras, grandes fundos, grandes frontes, quadrados de

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gente e de terreno, dobretes, cruzes, cubos e prolongados (…),arreueres, marechais-da-estala, caporal, corneta, dragão, furriéis,quartéis-mestres, grão-preboste» (p. 58). Muitos destes termos sãoestrangeirismos, comentando-se, após o seu registo, ainda pela bocada Fonte Velha, que aqueles são proferidos «(…) com milhares devozes estrangeiras que nossos pecados, além dos costumes estran-geiros, nos trouxeram à terra para sua maior corrução que defesa»(pp. 58-59).

Sublinho que uma compilação extraordinária de materiaislinguísticos é oferecida pelas Metáforas, ou Feira de anexins.Nessa obra o autor apresenta, através de diálogos, um avultadocontingente de metáforas, jogos de palavras, ditos e provérbios. Se-gundo as palavras de Alexandre Herculano, a Feira de anexins«(…) seria quasi um manual para os escriptores dramaticos, princi-palmente do genero comico, que quizessem fazer falar as suas per-sonagens com phrase conveniente, e com as graças e toque proprioda nossa lingua portugueza e do verdadeiro estylo dramatico (…)»(apud ob. cit., p.V).

Conforme se vê pelo que acima fica relevado, as obras de D.Francisco Manuel de Melo mostram-no como observador minucio-so da Língua Portuguesa, sensível a aspectos como a sua riqueza,variedade, mudança e pureza, a convocar o leitor para as particula-ridades e preciosidades que nela detecta e colecciona, enfim, comoum espectador do espectáculo do idioma.

O emprego da Língua Portuguesa na escrita cuidada, por partede poetas e prosadores, que D. Francisco Manuel de Melo menci-ona, é objecto de alguns comentários no Hospital das letras. Aíencontramos, por exemplo, a seguinte opinião expressa pela voz deLípsio, a propósito das obras de Francisco Rodrigues Lobo: «As deprosa têm perfeitíssima saúde; não há para que lhes pôr mão, por-que foi claro, engenhoso, elegante, grande cortesão e não menorjardineiro da Língua Portuguesa que tosou, poliu e cultivou comobom filho e grato repúblico» (p. 72). Situação semelhante verifica-se em algumas das missivas que subscreveu, nomeadamente nasque correspondem a solicitações de apreciação de composiçõespoéticas. Nelas está patente que o Polígrafo analisou, a par da satis-fação de requisitos específicos da Retórica e Poética, a ortografia, apontuação e até a letra com que as composições lhe foram apresen-tadas. Leiam-se, por exemplo, as cartas nº 109 e nº 565 do volumeCartas familiares em que há alguns anos foi reunida e publicada asua copiosa correspondência. Naquela – «Sentenceando um

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certámen poético» – D. Francisco Manuel de Melo afirma: «Demuitas considerações pende a averiguação da preferência entrePoemas contenciosos. Parece-me se podem reducir a quatro cir-cunstâncias. A primeira: que sejam em tudo conformes ao assunto.A segunda: que guardem decoro aos sujeitos propostos. A terceira:que se apropriem ao dialético da língua em que se escrevem. Aquarta: que observem boa ortografia» (pp. 143-144). Na carta nº565 – «Tornando a um amigo poeta um livro de versos que lhe haviadado a ver» – avisa: «Esta noite (e tarde) recebo os quadernos, epoderei logo dar deles alguma razão. A letra é boa mas pouco cas-tigada, e eu proluxíssimo nestas meudezas. Lá se achará V. M.coalhado de pontos e vírgulas» (pp. 539-540).

Os comentários metalinguísticos de D. Francisco Manuel deMelo avultam particularmente em torno da realização da LínguaPortuguesa na conversação. Aliás, com o Polígrafo o discurso oralé referenciado (e valorizado) como meio privilegiado de recolha etransmissão de certos saberes – saberes tradicionais, de senso co-mum, de experiências de vida – o que está indiciado nos seus textos,designadamente nos apólogos, por expressões como: «dezia minhaavó» (Visita, p. 37), «Dezia um amo» (Visita, p. 37), «disseram osantigos» (Visita, p. 46), «disseram as nossas velhas» (Carta, p. 140).Estas expressões ocorrem tão frequentemente nos escritos do au-tor que ganham foro de traço característico do seu estilo, tal como,por exemplo, os adágios.

Em A Vista das fontes, numa intervenção da Fonte Nova, quede resto suscita o aplauso de outro interlocutor do diálogo, Apolo,preconiza-se que as pessoas se exprimam com simplicidade e natu-ralidade, e censura-se a fala arrebicada que perde em clareza o quepresume em subtilezas e requintes, quando aquela figura diz: «Nãohá cousa como um falar desabotoado, de sorte que as pessoas di-gam tudo quanto lhes faz mister sem pedir outras regras que as quelhe dá a Natureza de mão comum com a necessidade, ocasião ecompostura, que a todos em seu modo pertence. Mas, andar falan-do como quem bebe por púcaro penado ou como a história doCalcinha, que não haveis de dizer sim nem não, é um maldito costu-me» (p. 109; trecho comentado por Giacinto Manuppella, em notada sua edição do apólogo, pp. 576-577). Aliás, a fala enfatuada,(pseudo)erudita e obscura dos poetas cultos, e a dos gramáticosque se preocupavam com questões pequeninas e irrelevantes, no-meadamente certos pormenores de etimologia, são alvo de críticaem O Fidalgo aprendiz (através da elocução do Mestre das Tro-

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vas e dos comentários que lhe faz D. Gil Cogominho), e, mais de-senvolvida e explicitamente, na Visita. Nesta obra lê-se: «Pelo mes-mo caso que os gramáticos de contino desentranham os idiomas efazem a varrela, e muitas varrelas, à linguagem, são de contínuo osque pior falam, escrevem e conversam (…)» (p. 110; cf. tambémpp. 109 e 111).

Em relação à Língua Portuguesa realizada na conversação,são sobremaneira interessantes as observações registadas na Car-ta e na Visita sobre modos de tratamento, em particular os que secumprem através das formas pronominais «tu», «vós», «ele», «ela»,e de «senhor e «senhora», «dom» (ou) «dona», «mercê», «senhoria» e «excelência». Na primeira obra, D. Francisco Manuel de Meloconsidera o tratamento entre marido e mulher, aconselhando algunsusos, desaconselhando outros. Veja-se: «O Tu é Castelhano e pormais que eles o achem carinhoso, como lá dizem, é palavra muito depraça e que ao mais não deve de quebrar a menagem da câmarapara fora. O Vós é Francês, que com um Vous receberam a mesmaRainha Sabá, se cá tornara. Tenho-o por demasiado vulgar. O Ele eEla, um Ouve Senhor, Que diz Senhora, é termo bem Português,assaz honesto e bem soante» (Carta, p. 177). E continua, não es-quecendo certamente a apropriação abusiva – a despeito de dispo-sições legais que regulavam o seu emprego – das fórmulas quemenciona, por pessoas que não tinham elevado estatuto social: «AsSenhorias e Excelências, a quem pertencem, gravidade induzem;mas parece um certo modo de esquivança tratar um homem suamulher como que se o não fora. Fiquem-se para os Príncipes e Reisas Altezas e Majestades (…)» (ibidem). Na segunda obra, pela vozde Apolo, é descrita pormenorizadamente a maneira como, segun-do os ditames da galanteria, as damas e os seus servidores se trata-vam em três «pontos» ou circunstâncias (que o autor – no seu jeitode se deter em certas palavras – explica serem também chamadas«momentos, partes, ou ocasiões», informando ainda depois que «par-tes» é usado com outro significado, isto é, ‘inimigos’ (Visita, pp. 122e 126). Essas circunstâncias são: a conversação «em lugares públi-cos diante dos Reis»; entre as damas que passeiam em coche e osgalantes que se colocam ao lado; na «cabeça de motes», complexacomposição poética, entretecida de perguntas e respostas. Alémdisso, Apolo indica a forma de tratamento entre as damas e os seusnoivos, especialmente segundo a «lei do Paço», quando se acordavao casamento (Visita, pp. 122-127).

Qualidades e principalmente imperfeições da prática

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conversacional são apontadas por D. Francisco Manuel de Melo naCarta, ao expor orientações para a vida familiar, e na Visita, aocaracterizar e caricaturar alguns tipos da sociedade portuguesaseiscentista, como letrados, militares, fidalgos, gramáticos. Nesteapólogo, o autor não desaproveita a oportunidade de deixar um re-paro ao «desvario» «da gente vulgar» diante de palavras como «por-co» e «asno», que evitavam proferir e que não ouviam sem «nojo emelindre» (p. 42) – considerando de caminho, por meio de Apolo,que «os abusos» – por certo os de linguagem – «estão no vulgointroduzidos e se vão já nele metendo como a unha pela carne.Porque abusos e povo são como unha com carne» (p. 43).

Entre as qualidades da elocução advogadas pelo Polígrafo conta-se, no que concerne as mulheres discretas, falar «(…) o necessário,brando, a tempo, com tom que baste para ser ouvida da pessoa aquem fala e não das outras» (Carta, p. 139). Entre as imperfeiçõesverberadas, ainda em relação às mulheres, inclui-se «falar sempre»,e falar alto, nomeadamente nas igrejas (ibidem), e, no caso doshomens, a utilização de certas expressões perifrásticas para fazerreferência às esposas. Veja-se: «A cousa com que mais atentadosou é uns que dão em nomearem as mulheres por circunlóquios,chamando-lhes ora a minha velha, a minha companheira, a mi-nha hóspeda, a minha obrigação, a mãe dos meus filhos, ecousas assi que, em qualquer tom que sejam ditas, parecem poucograves e, a meu juízo, indignas de se acharem na boca de nenhumsisudo. A mulher de que o homem se preza e o homem de que amulher se honra, por que não hão-de ser por seus nomes nomea-dos? Digo delas para eles outro tanto» (Carta, pp. 176-177).

Por quanto fica salientado, D. Francisco Manuel de Melo dife-rencia-se do tipo do «gramaticão», ou seja, daqueles gramáticos doseu tempo que, segundo declara na Visita pela voz da Fonte Velha,se enredavam a discutir «Sobre se um tu ou um eu (…) vem deGrécia ou de Palestina, sem que nisso vá ou venha cousa alga» (p.109). Poderá dizer-se que o Polígrafo se manifesta como um críticodo desempenho da Língua Portuguesa, pois que usa de saber esensibilidade para apreciar e julgar a prática do idioma, opinandocomo deve ou não deve realizar-se, especialmente na conversação,em família e entre pessoas de qualidade. Tendo por base uma sólidae ampla formação, adquirida nos livros e apurada nos círculos aris-tocráticos onde nasceu e se fez espelho de fidalguia e cortesania,com os seus comentários, os seus reparos e as suas orientações,configura uma arte de bem falar, em que não só a correcta e infor-

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mada realização da língua, mas também a urbanidade, as conveni-ências de ordem social e até a moral, estão implicadas, sendo a boaconversação um dos predicados principais de quem pretendesseatingir o ideal do cortesão discreto (caracterizado pelo Prof. JoséG. Herculano de Carvalho, com fundamento na análise da Cortena aldeia de Francisco Rodrigues Lobo, no estudo Um Tipo literá-rio e humano do Barroco: o «cortesão discreto», Coimbra, 1963).É de notar que, embora em várias referências e alusões, o modocomo se exprimem as pessoas da Corte e de Lisboa apareça enca-recido, em A Visita das fontes Apolo pronuncia-se pela superiori-dade da linguagem falada em Coimbra, ao afirmar: «(…) os Gregosdividiram seu idioma em quatro classes, das quais era mais sublime,regular e concertada a língua dos Áticos, por cair em seu distrito aUniversidade de Atenas que lhe deu nome, e ao mundo todo: comose cá, entre vós, disséssemos se falava mais elegante em Coimbraque em outra parte, não mentiríamos, sendo ali o coração e alma dasciências que se ensinam e aprendem» (p. 110).

Como é sabido, D. Francisco Manuel de Melo escreveu sobrematérias variadas, em diversos géneros de textos. Relanceando decorrida a sua obra, a tal respeito releva-se que, em Língua Portu-guesa, em prosa, registou factos relativos à História em epanáforase relações (algumas destas concernem o Brasil); que expôsensinamentos e críticas sobre costumes do tempo, em escritos dependor pedagógico e moralizante; que tratou de múltiplos negóciospessoais e alheios, em abundante correspondência; que elaboroudiscursos de circunstância para sessões académicas. Em verso, alémde textos de carácter teatral, compôs, entre outras formas poéticas,cartas, églogas, romances, sonetos.

O que importa aqui salientar é que D. Francisco Manuel deMelo, em conformidade com os preceitos retóricos e poéticos emque foi instruído, procurou «em todos seus escritos acomodar sem-pre o estilo com a matéria», como se declara na dedicatória aosleitores da edição de 1651 da Carta de guia de casados (p. 87),assinada pelo impressor Paulo Craesbeeck, a cujo conteúdoporventura não terá sido estranho o Polígrafo. Não faltam de restoreferências do escritor a vários estilos em que modalizou a sua ex-pressão. Assim, no Prólogo do Escritório avarento afirma que,requerendo a matéria de que ia tratar «um estilo excelente» da sua«pena já muito alheo», usou «deste nosso modo familiar, amigo einteligível» (p. 70), e de «comum eloquência» (p. 71). No Hospitaldas letras , depois de mencionar a Carta de guia de casados

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entre as obras que elaborara, observa que se acha «agora tão bemcom estilo corriqueiro», e que faz propósitos «de não tornar ao [es-tilo] majestoso» (p. 99).

Ora, o estilo desse apólogo – «descansado estilo», segundo aspalavras da respectiva dedicatória (p. 87) – distingue-se do dasEpanáforas, em cuja escrita eloquente se empenhou, como se de-duz de vários passos (cf. por exemplo, pp. 354 e 481; veja-se oestudo da Prof.ª Maria Lucília Gonçalves Pires, “Epanáfora trágica:viver e escrever história”, in Xadrez de palavras, Lisboa, 1996, pp.173-185), e com nenhum deles se identifica o das orações acadé-micas, espessas de elegâncias e ornatos de linguagem. Encontra-setambém uma paleta variada de estilos, no volume das suas cartas,em que o familiar se cruza com o solene, o mesmo se podendo dizerde composições em verso que integram as Musas portuguesas,ora graves, ora jocosas.

Alguns editores e comentadores da farsa O Fidalgo apren-diz consideraram que a fala da figura nuclear, D. Gil Cogominho,integra formas linguísticas populares, e que com elas D. FranciscoManuel de Melo terá pretendido sublinhar o perfil rústico da figura.Em rigor, a maior parte das formas que foram distinguidas sob talperspectiva pertencem ao fundo comum linguístico portuguêsseiscentista, sendo idênticas a outras que se detectam no própriodiscurso do autor, tal como é documentado pelo manuscrito autó-grafo de A Visita das fontes, e não são características ou exclusi-vas da linguagem das pessoas iletradas do povo. Algumas outras,todavia, podem ser classificadas de populares em tal acepção,como, por exemplo, - intés - e - home - ( pp. 59 e 86). Em Osrelógios falantes, o Relógio da Cidade apresenta na sua fala -depois» (p. 11), enquanto na do seu interlocutor aldeão vemos -despois - (ibidem), e - samos - , em vez de - somos - (p.13).Perante estes e outros elementos semelhantes poderá admitir-seque D. Francisco Manuel de Melo teve em vista modalizar alinguagem das figuras ou personagens que tomam voz nas suasobras, em consonância com os estatutos sociais e culturais quelhes atribuiu, mas será necessário, para se avançarem asserçõesprecisas sobre este ponto, dispor-se de estudos minuciosos dalinguagem do escritor, que colham fundamentação dos rarosautógrafos que dele nos chegaram, onde as formas linguísticas semostrem tal como saíram da sua mão, e não eventualmentealteradas por interferência de copistas, tipógrafos ou editores.

Como quer que seja, pode dizer-se que o Polígrafo, ao pôr em

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cena o nosso idioma sob as máscaras dos vários estilos e, certa-mente, de vários registos sócio-culturais, perante a LínguaPortuguesa, além de procedimentos de espectador e crítico, teveainda o de actor.

Aliás, a metáfora das máscaras serve para aludir ao facto de alinguagem de D. Francisco Manuel de Melo, em muitos passos, eem diversos planos, não se oferecer com transparência à fruiçãoimediata do leitor não filólogo dos nossos dias, em consequência demudanças que o tempo trouxe ao idioma e às suas referências, e deconcepções e técnicas literárias do autor, ao gosto de Seiscentos.Aliás, já em vida, segundo uma vez mais a dedicatória do impressorde 1561 da Carta de guia de casados, foi - reprendido de misteri-oso (ou talvez de escuro) - (p. 87). Desde logo a (orto)grafiaseiscentista, com que os textos foram transmitidos por manuscritose impressos, motiva dificuldades de interpretação, de que destacoas que concernem o valor fónico de grafemas actualmente desusa-dos, o valor semântico-estilístico das maiúsculas, e as funções dapontuação. O significado preciso de muitos dos vocábulos que ocor-rem nas suas obras é hoje de problemática apreensão, havendonumerosos termos que, empregados ou não por outros autores, nãorecebem esclarecimento de dicionários ou vocabulários antigos, emque não tiveram entrada ou foram insuficientemente tratados. Alémdisso, interessando-se o Polígrafo por uma arte poética - rara erequintada -, dirigida a leitores não vulgares – como expôs, detida efundamentadamente, a Prof.ª Maria Lucília Gonçalves Pires, em“As Ideias literárias de D. Francisco Manuel de Melo”, in Xadrezde palavras, Lisboa, 1996, pp. 41-52 – cultivou com assiduidadeprocessos de estilo, como elaboradas metáforas e subtis jogos depalavras, que conferem alguma opacidade à sua expressão.

Esperemos que D. Francisco Manuel de Melo, graças à leiturapersistente e acurada da sua obra, não venha a ser uma persona-gem esquecida, a assistir na obscuridade do - vestuário - a - tramóias- do teatro da nossa língua. Até porque, além de se nos apresentarcomo espectador, crítico e actor do espectáculo do idioma, nelealcançou o estatuto de autoridade. Este, porém, tem de ficar comotema para outra visita às suas letras.

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Notas bibliográficasObras e edições citadas de D. Francisco Manuel de Melo

Carta de guia de casados. Quadros cronológicos, Introdução, biblio-grafia selectiva, fixação do texto e notas de Pedro Serra. Braga-Coimbra,Angelus Novus, 1996.

Cartas familiares. Prefácio e notas de Maria da Conceição MoraisSarmento. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1981.

Epanáforas de vária história portuguesa (Epanáfora política,Epanáfora trágica, Epanáfora amorosa , Epanáfora bélica, Epanáforatriunfante). Introdução e apêndice documental por Joel Serrão. Lisboa,Imprensa Nacional-Casa da Moeda, s. d. (reprodução fac-similada da ed.de 1660).

Escritório avarento. In Os relógios falantes e Escritório avarento.Edição crítica de Maria Judite Fernandes de Miranda. Coimbra, 1968. Sepa-rata da Revista da Universidade de Coimbra, vols. XX-XXI. Ocupa as pp.69-117.

Feira dos anexins. Edição dirigida e revista por Inocêncio Franciscoda Silva. Lisboa, Livraria A. M. Pereira, 1875.

O Fidalgo aprendiz. Texto estabelecido, introdução e notas de AntónioCorrêa de Oliveira. 2ª edição, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1958.

Hospital das letras. In Jean Colomès, Le Dialogue “Hospital dasletras” de D. Francisco Manuel de Melo. Texte établi d’ après l’ éditionprinceps et les manuscrits, variantes et notes par … . Paris, FundaçãoCalouste Gulbenkian, Centro Cultural Português, 1970.

Metáforas, ou Feira de anexins. Ver Feira dos anexins.As Musas portuguesas (ou As Segundas três musas do Melodino). In

Obras métricas. Lyon, Horacio Boessat e George Remeus, 1665. Com pagi-nação própria.

Os relógios falantes. In Apólogos dialogais, vol. I, Introdução, fixaçãodo texto e notas de Pedro Serra. Braga, Angelus Novus, 1998, pp. 1-31.

A visita das fontes. In Apólogos dialogais, vol. I, Introdução, fixaçãodo texto e notas de Pedro Serra. Braga, Angelus Novus, 1998, pp. 33-127.Também reenviamos para nota da edição preparada por Giacinto Manuppella,Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1962.

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O tema que me foi proposto, relativo à unidade e diversidadeda Língua Portuguesa, aceitei-o de muito bom grado, pois a esta eoutras questões afins tenho dedicado boa parte do meu percursoacadémico.

Proponho-me tratá-lo reflectindo sobre a incidência nas lín-guas, dos fenómenos culturais e sociais que no nosso séculocondicionaram e condicionam a Língua Portuguesa, nomeadamenteo moderníssimo fenómeno da globalização.

Todos sabemos como foi necessário no Brasil, desde José deAlencar e Carlos de Laert, em especial, reivindicarem contraCastilho, Pinheiro Chagas e Camilo, a existência de uma normabrasileira, de um estilo próprio.

Felizmente que tudo se esclareceu fazendo-se justiça tanto àdiversidade como à unidade da língua pois não se tratam de duasdinâmicas alternativas, mas complementares.

Na convergência destas duas realidades se tem vivido e con-tinua a viver nos nossos dias, porque a Língua Portuguesa não temum dono mas vários condóminos que a usam como sua.

Lapidarmente afirmou Celso Cunha, a este propósito: “Che-ga-se assim à evidência de que para a geração actual de brasilei-ros, de cabo-verdianos, angolanos, etc, o português é uma línguatão própria, exactamente tão própria, como para os portugueses.

E em certos pontos, por razões linguísticamente justificáveis,na Românica nova, a língua se manteve mais estável do que naantiga Metrópole”1.

Mas, para se chegar a esta situação de estabilidade tranquila,largo e difícil caminho foi necessário percorrer.

Diversidade e unidade dalíngua na hora da globalização

Fernando Alves Cristóvão,da Universidade Clássica de Lisboa.

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Inúmeras foram as dificuldades, porque inúmeros foram osperigos e ameaças do exterior, mas todas vencidas, contribuindoaté para o seu enriquecimento.

E porque a história não para, novos desafios estão a ser en-frentados pela língu portuguesa e pelas culturas que nela se pro-cessam, sendo o mais recente o da globalização.

Permitam-me, pois, algumas considerações preliminares quemais claramente ponham em evidência como, tanto a diversidadelinguístico–cultural, como a unidade são indissociáveis e comple-mentares, ora postulando as diversidades, a importância da unida-de, ora exigindo a unidade, a autenticidade das diversidades.

O nosso século, agora a chegar ao termo, conheceu quatrograndes dinâmicas no modo de considerar as línguas e de asensinar e aprender: a dinâmica do romantismo herdadasobretudo de Humboldt e que se intensificou por meio donacionalismo político, a ponto de chegar até aos nossos dias atéaos anos 50, apesar dos progressos da linguística, da doutrinaçãode Saussure e das novas perspectivas da psicologia e dasociologia;a dinâmica internacionalista e imperialista queconviveu com a mentalidade anterior e chegou até ao fim dadécada de 60; a dinâmmultilinguística e multicultural que naEuropa teve a sua expressão mais significativa quando arestruturação desencadeada pelo plano Marshall, após a 2ªGrande Guerra Mundial, atraiu milhões de emigrantes da Europado sul e dos países da bacia mediterrânica para os paísesindustrializados; a dinâmica da globalização que se processaem nossos dias e que não só condiciona as comunicações e aeconomia, mas também interfere na cultura, nas religiões, noscostumes e, também, nas políticas linguísticas.

Na etapa nacionalista, em que muitos de nós fomos forma-dos, as línguas eram estudadas como a expressão dos povos,diversificadas como eles, património que era preciso zelosamentedefender e enriquecer segundo o lema de Du Bellay.

Assim, era necessário combater duas espécies de desvios eerros, os herdados da tradição de séculos anteriores que alatinarame helenizaram as línguas, sobretudo a ortografia, complicando-a(séculos XV e XVI) ou a vestiram à espanhola e à francesa (sé-culos XVII e XVIII).

A essa tarefa se entregaram os puristas e suas sociedadescombatendo por igual os estrangeirismos, então, sobretudogalicismos, e o que julgavam serem “erros” e “corruptelas”.

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Ao mesmo tempo, multiplicavam-se os apelos à leitura dosclássicos como modelos a seguir fielmente.

Quanto às relações com as outras línguas, eram entendidasdentro de um quadro de prestígio: o latim e o grego para a erudi-ção, o Direito e a medicina; o francês para a cultura; o alemãopara a filosofia etc..

Deste modo, as línguas não se expandiam, mas vigiavam-se zelosamente, apenas sendo permitidas algumas liberdades con-troladas.

Nas etapas internacionalistas, os países com colónias ou as-pirações a tê-las, impunham em todo o seu espaço de soberania alíngua oficial, proibindo que se falassem as línguas étnicas ou, den-tro do território metropolitano, combatendo as línguas regionais.

Em simultâneo, e com o apoio de grandes meios financeiros,foram criadas instituições destinadas a propagar no estrangeiro,ou trazer até ao país os estrangeiros para dar a conhecer a língua,cultura, instituições etc, não se poupando em oferecimento de li-vros, revistas, conferências, cursos anuais e de férias etc..

Assim surgiram o British Council, a Alliance Française, oInstituto de Alta Cultura e outros institutos e centros culturais.

Percebeu-se então que, por honestas e louváveis razões dediálogo entre culturas, ou por ousada propaganda com objectivosde hegemonia política ou de facilitação comercial, a expansão dalíngua nas colónias ou no estrangeiro era um veículo privilegiadopara coisas tão diversas como o diálogo, a hegemonia, a expansãodominadora, segundo o velho aforismo colonial de que a língua eaa melhor companheira do império.

Na etapa do multilinguísmo e multiculturalismo que é aquelaem que, desde à algumas décadas vivemos, o ensino e aprendiza-gem das línguas, de um modo geral, pedeu a sua hybris de domínioe expansão, democratizou-se, passou da propaganda ao diálogoentre iguais, tendo-se as instituições que vinham da etapa anterior,transformado em foruns de diálogo, no melhor sentido da palavra.

É que, entretanto, quer nos Estados Unidos quer na Europa, aconjuntura sócio-política alterou-se profundamente: as correntesmigratórias procurando trabalho, realizando negócios, promoven-do peregrinações, alteraram a composição étnica dos países.

Milhões de trabalhadores fixaram residência nos países indus-trializados e de um dia para o outro esses países monolíngues ou dedébil variedade de expressão linguística viram-se multilingues emulticulturais, com as inevitáveis consequências, tanto no plano das

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relações socias como nos da educação, cultura e ensino das línguas.Os governos tiveram de perceber que a unidade nacional não

devia ser entendida à maneira napoleónica do centralismo linguísticoe cultural, mas que deviam respeitar e fomentar o ensino das lín-guas dos seus emigrantes e aceitarem as suas culturas em suasvariadas expressões: no vestuário, na alimentação, nos costumes,na frequência de sinagogas, mesquitas e outros templos que eraurgente construir.

Por outras palavras, chegaram à conclusão de que a paz e aharmonia sociais, bem como o rendimento do trabalho, melhor seconseguiriam com o multilinguismo e o multiculturalismo. Que seos trabalhadores estrangeiros vivessem no país de acolhimentocomo no seu meio cultural, o benefício seria de todos.

Também, em consequência, passaram a interrogar-seseramente sobre que sentido tinham agora o centralismo linguístico,o purismo baseado em conceitos de correcção e vernaculidade,os“erros” e “corruptelas” de linguagem, a luta contra osestrangeirismos?

Para além disso, e em simultâneo com esta invasão pacíficadas multidões de emigrantes, outra explosão comunicativa acon-teceu, favorecendo os ignorantes contra os eruditos: a explosãocomunicativa da televisão impondo uma linguagem simplificada.

Com ela, a escola tradicional passou a sofrer a concorrênciadaquela que George Friedmann apelidou de “escola paralela”, atelevisão. À lentidão da escrita sucedeu o imediatismo e a evidên-cia da imagem, e o saber deixou de ser hierarquizado e segundovalores para se tornar num verdadeiro mosaico de realidades de-sintegradas, como o multilínguismo, o multiculturalismo ou os qua-dros de Picasso.

Sobre a etapa recente da globalização, diametralmente opos-tas são as suas interpretações.

Para os herdeiros do capitalismo triunfante, ela permitirá re-solver alguns problemas de âmbito geral, antes insoluveis.

Para os deserdados do marxismo e do arruinado império so-viético ela representa a chegada do apocalipse de todas as abomi-nações.

Para os que entre ambos os grupos se interrogam sobre ofuturo do Homem no milénio que chega e sobre o papel mediadora desempenhar pelas culturas ela é sobretudo, um desafioambivalente, porque tudo está a ser reformulado.

Será a globalização aquilo que o título do estudo de Ignacio

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Ramonet sugere, uma Geopolítica do caos2 ou dela poderáresultar algum cosmos benéfico?

Demorei-me algum tempo no esboço deste cenário porqueentendê-lo e tê-lo em conta é essencial para se compreender comose põe hoje o problema das políticas linguísticas e culturais relati-vas à diversidade e unidade da língua.

Políticas que não pertence só aos governos actualizar nas relaçõesexternas, nos sistemas e programas escolares, mas também àsinstituições nomeadamente Universidade e aos professores.

Porque é óbvio que importa defender agora, ainda mais doque no passado, a diversidade.

Diversidade essa que exprime mundividência dos falantesem situações concretas, herdeiros de um património cultural que alíngua materna guarda, exprime e transmite como sistemamodelizador primário, base de outros sistemas modelizadores queacompanham a vida individual e colectiva, como bem o observouIuris Lotterman.

Diversidade que na Língua Portuguesa começou a esboçar-se muito cedo dando origem a variantes, sobretudo na fase da suaexpansão intercontinental.

Já o nosso primeiro gramático Fernão de Oliveira observa em1536 variantes no vocabulário, “porque os da Beira têm umas falase os do Alentejo outras, e os homens da Estremadura são diferen-tes dos de Entre Douro e Minho, porque assim como os tempos,assim também as terras criam diversas condições e conceitos”3.

Se tal acontecia no interior do país, na fase arcaica da língua,como demonstrou Lindley Cintra, com a aventura dos mares maio-res proporções essa diversidade atingiu.

Assim aconteceram as grandes variantes de carácter naci-onal - portuguesa, galega e brasileira -, e previsivelmente poderãoacontecer as dos países africanos que foram antigas colóniasportuguesas.

Daí que defender e enriquecer as diversidades é o mesmo quesalvaguardar a própria autenticidade de cada país e da sua cultura,ou das suas culturas, e que no caso do Brasil se compatibiliza em“cerca de 170 línguas indígenas, as línguas brasileiras autóctonesidentificadoras de mais de 180 regiões indígenas com uma popula-ção de 220.000 índios”4 .

E, do mesmo modo, os crioulos que resultaram da expansãocolonial, desde o século XVI.

O reconhecimento destas diferenças chegou mesmo ao pon-

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to de uma especulação excessiva a propósito de uma possívellíngua brasileira a partir de contributos do tupi e das línguas africa-nas. Suposições estas cujas ambiguidades vieram a ser desfeitaspela primeira grande geração universitária de linguisticos brasilei-ros, como o notou objectivamente Paul Teyssier (Mattoso Câmaca,Serafim da Silva Neto, Silvio Elia, Gladstone Chaves de Melo,Celso Cunha, Nelson Rossi).

E não só por estes, também por outros antes e depois deles.Associando-me, por isso, à homenagem que este congresso

presta a Barbosa Lima Sobrinho, por ocasião dos seus 102 anos,torno aqui presente a sua opinião sobre o assunto, exposta na obraA Língua Portuguesa e a Unidade do Brasil, publicada em1958 e que dentro em breve o Professor Leodegário de AzevedoFilho analisará com a agudeza e o brilho a que nos habituou.

São afirmações do ilustre escritor e académico: “Há que pen-sar num idioma que não seja monopólio de portugueses e brasilei-ros (…) o termo idioma, é claro, aqui tem o sentido de língua, queé apenas uma, por força da unidade de todos os seus morfemasgramaticais. Mas, dentro dessa unidade morfológica, existe a di-versidade de pronúncia e de sintaxe, além da riqueza tambémdiversificada do léxico. Por isso mesmo, nenhuma nação do mundolusofónico pode ter a prtensão pueril de querer ditar normas e usoslinguísticos às demais. No caso, o que todas as nações devemfazer é proceder ao conhecimento das diferenças sempre em bus-ca de uma unidade superior. Até porque a norma culta da línguacomum estará sempre onde houver maior desenvolvimento decultura e civilização como hoje ninguém ignora. Em outras pala-vras, todas as nações do mundo lusofónico famal a mesma língua,mas cada um a seu modo” 5 .

Segundo o mesmo Paul Teyssier a adopção de métodos cien-tíficos conduziu estes e outros filósofos a uma revisão crítica des-sas ideias recebidas e não devidamente comprovadas, embora,obviamente, confirmassem as citadas influências. E desse modo,a adoptarem um posicionamento de grande correcção e objectivi-dade científica: “Plus générale les philologues de l Ecole brésilienneont adopté sur la “question de la langue” des positions modérés. Ilssont à la fois attachés à lóriginalité linquistique du Brésil et à l´unitéde la langue portugaise. Une spécifité brésilienne à l´interieur duportugais, voilà, ensomme ce qu´ils revendiquent”6 .

Segundo Jean-Michel Massa, algo de semelhante se poderádizer do português em África, embora numa situação muito instá-

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vel e de acentuado plurilinguismo. Porque, “En Afrique, depuisl´indépendence, une nouvelle phase est engagée. Les portugaiss´ètaient empanés d´une partie de l´Afrique, les Africains se sontemparés du portugais”7 .

No Brasil ainda, a situação de ambiguidade relativamente àLíngua Portuguesa, quanto à sua designação no sistema escolarque persistiu até aos anos 80, viria a ser completamente eliminadapelo relatório da Comissão formada por António Houaiss, CelsoCunha, Celso Luft, Fábio Lucas, João Vanderley Geraldi, e presi-dida por Ábgar Renáult, que assim dirimiu a questão: “Podemosadoptar a pespectiva de que no Brasil se pratica uma variedade daLíngua Portuguesa, vencida a etapa em que se procurou insinuaro designativo “língua brasileira” ou “brasileiro”, para aquela queserve de meio de comunicação e expressão em nosso país (…)Torna-se consensual que, nos documentos ou textos expositivosquando se empregam “língua nacional”, língua materna”, “línguapátria” ou “língua vernácula”, é à Língua Portuguesa, na sua vari-edade brasileira, que tais expressões se reportam, salvo entendi-mento contrário, decorrentedo contexto.

(…) Recomendação: Será de toda a conveniência que osdiplomas legais que tratam do nosso idioma oficial se refiram ex-pressamente à Língua Portuguesa ou português, fazendo constaressas denominações nos programas de ensino de todos os grausadmitidos em nosso sistema educacional” 8 .

Se o problema da salvaguarda da diversidade se identificou,em certa época, com a reivindicação da independência, não sópolítica, mas também cultural e, nos nossos dias, atingiu o ponto doequilíbrio entre diversidade e unidade entendendo-as como com-plementares, com a novíssima globalização, uma nova luta é pre-ciso empreender, a do reforço e da eficácia da unidade.

E por duas razões fundamentais:Porque num mundo em que tudo se intercomunica e interactiva,

a unidade própria de uma língua de cultura falada e escrita emvários continentes e apta a exprimir tanto o pensamennto abstrac-to como a expressão poética, como as situações triviais do dia adia, tem a melhor garantia de eficácia nesse tipo de relacionamen-to e de resistência. A globalização não seria inevitávelmente ummal, poderá transformar-se num bem, tal como a força do ventoque os marinheiros aproveitaram navegando à bulina.

E também porque, paradoxalmente, e ao contrário do queaconteceu no passado, será na unidade e força da lusofonia que

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poderá estar a estabilidade e futuro da diversidade. Sem o seuapoio, as várias diversidades ficariam à mercê da poderosa forçaneo-colonialista globalizante da actual língua franca, o inglês.

Em face dela, as línguas de grande expressão internacionalpoderão representar alternativas de uso e santuários de preserva-ção de valores culturais.

Para tanto, precisam de ser unas e sustentadas pelos paísesque as partilham.

Entre elas o português, língua de base da lusofonia, só terápossibilidade de sucesso, se todos os seus integrantes responsá-veis o fizerem, pois se situa “entre a quinta, inclusivé, até à sétimaposição inclusivé” 9.

Obviamente que a unidade da língua se faz enquanto línguade cultura, não sobre a língua oral, mas sobre a escrita, língua de“feição universalista (oferecida) aos seus milhões de usuários, cadaum dos quais pode preservar, ao mesmo tempo, usos nacionais,regionais, setoriais, profissionais” 10.

António Houais explica essa dimensão cultural da língua com-parando-a com uma pirâmide em que ele ocupa o ápice, “pelo qua-se igual teor de sua culturalização gráfica – se entendeu entre si deum modo quase comum ou mesmo comum: nesse nível, a língua decultura portuguesa é universal para todos os que a aprenderam comolíngua de cultura, isto é, transmitida pelo aprendizado escolar: nessapirâmide, sobe-se de milhares de dialectos locais para um certo tipode linguagem sem cor local e, de certo modo, sem cor temporal, poisa culturalização acumula o léxico e as regras gramaticais do passadono léxico e regras gramaticais do presente (…) numa fonia, que, nosnosso caso, é a lusofonia” 11.

As vantagens em se promover e defender esta unidadelusófona que, obviamente, admite várias normas cultas, que dis-pensam outros argumentos.

Mas não só na actualidade o problema foi encarecido pelosbrasileiros.

Já no princípio deste século alguns intelectuais tinham cha-mado a atenção quer para a importância da língua como fronteiracultural, quer para a sua relevância como fronteira política, decisi-va para os interesses nacionais.

Soube este último aspecto, o seu grande defensor no Brasilfoi Silvio Romero que em plena época anti lusista proferiu em,Julho de 1902, uma memorável confência intitulada “O elementoportuguês”.

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Nela preconizava a intensificação e preferência pela coloni-zação portuguesa moderna como a mais acertada medida não sópara obstar às tendências separatistas de alguns núcleos de colo-nos, nemeadamente em São Paulo e no Rio Grande do Sul, mastambém para fortalcer o sentimento da unidade nacional face àscobiças dos vários imperialismos reinantes, nomeadamente daInglaterra e da Alemanha.

Cobiças essas voltadas não só para a África e as regiões cen-trais da Ásia, mas também para a América Latina, especialmenteapetentes do Amazonas, do Madeira, do Purús e do Acre.

O que é surpreendente nesta apologia de uma nova coloniza-ção portuguesa é a coragem de se demarcar do ambiente dominan-te anti lusista, e a previsão, de tipo profético, dos acontecimentosque se começariam a realizar cerca de vinte e cinco anosdepois,ligando intimamente a colonização lusitana à língua e culturade Portugal como revitalizadoras do orgulho nacional brasileiro.

Chegou mesmo como veremos, a prevêr a organização daspotências em blocos de poder aglotinados pela língua comum queusaram, e a união lusófona como uma solução para lhes faze face.

Antes de Fernando Pessoa, Silvio Romero foi um dos pimeirosteóricos da construção da lusofonia.

Previsões estas que contrastaram com o citado ambiente rei-nante e triunfante do anti-lusismo.

Com efeito, à lembrança das críticas galhofeiras de RamalhoOrtigão e Eça nas Farpas, e de Camilo no Cancioneiro alegre,tinha-se juntado a onda de indignação patriótica contra o acolhi-mento e imponidade concedida pela força naval portuguesa fun-dada na baía de Guanabara aos conspiradores derrotados na “Re-volta da Armada” de 1894.

A indignação foi tão grande que provocou o corte de rela-ções diplomáticas entre Portugal e o Brasil e levava ao auge assátiras e chacotas de Raul Pompeia na literatura, no teatro e nacaricatura.

Mesmo depois da intervenção de Sílvio Romero continuou amaré de hostilidade e desentendimentos acompanhada por medi-das drásticas contra os monópolios de portugueses na imprensa,nas pescas etc..

Basta ler As Razões da Inconfidência de António Torres,para desde a primeira página, se poder avaliar o nível de degrada-ção das relações luso-brasileiras.

Foi no meio deste torvelinho de paixões exacerbadas que a

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voz de Silvio Romero se levantou.Para o notável crítico, sociólogo, folclorista e historiador literá-

rio, a língua era um factor decisivo na identidade brasileira: “Basta-ria o facto extraordinário, único, inapreciável, transcendente, da línguapara marcar ao português o lugar que ele ocupa em nossa vida, emnossas lutas, em nossas aspirações; bastaria a língua para definirmose extremar-nos de quaisquer concorrentes estranhos que porventurasonhem embaraçar-nos em nossa marcha. Ela só por si na erapresente serve para individualizar a nacionalidade”12.

Dentro da mesma lógica Romero anteviu que no desenrolardo xadrez mundial jogado pelas nações se caminhava no sentidode se agruparem em grandes blocos de poder e influência levadospelo que então se julgava a maior força social - a raça -, e aglutinadospela força da língua:

“Esse movimento unitário e centrípeto das raças, formandograndes todos homogéneos entre si, e diferenciados uns dos ou-tros, é que há-de poupar à humanidade a monotonia asfixiante docosmopolitismo avassalador, que facilmene triunfaria de pequenospovos isolados.

Uma das ideias mais ousadas, atribuídas creio que a CecilRhodes, é a de uma imensa federação de gentes que falam alíngua inglesa, e é verdadeiramente um pensamento genial.

Inglaterra, Escócia, Estados Unidos, tudo isto unido, aliado,federado,vem a ser alguma coisa de inédito, de nunca visto nosanaes do homem.E mais admirável será o quadro se nos lembrar-mos que nele deverão entrar a Índia e o Egipto, transformadospelo génio britânico.

É de assombrar” 13.Sendo esta a dinâmica prevista e temida da anglofonia, lógica

se tornou também a previsão - desejo de que os povos de LínguaPortuguesa se organizassem, mesmo num tempo em que as inde-pendências africanas em geral e as das colónias portuguesas emparticular eram imprevisíveis:

“Sim, meus senhores: não é isto uma utopia, nem é um sonhoa aliança do Brasil e Portugal, como não será um delírio ver nofuturo o império português de África unido ao império portuguêsda América, estimulados pelo espírito da pequena terra da Euro-pa que foi o berço de ambos.

Só assim, quando estamos a assistir à difusão do elementoanglo - saxónico por todos os continentes, do elemento eslavo portoda a Europa oriental e por toda a Ásia do norte e do centro, e do

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elemento francês nessa última parte do mundo e pelo coração adentro de África; só assim, quando até o Japão se aparelha paraas peripécias do futuro e é de esperar que a China venha a fazero mesmo; só assim, só pela união, é que se manterá no porvirlongínquo a famosa língua de Vieira e Herculano”14.

E, em geito de “grand finale” retórico, o também grande ora-dor rematou a sua conferencia com esta exortação entusiástica:“Nós devemos também esforçar-nos para que esta língua,grandíloqua e sonorosa, seja também perpétua, seja eterna emnossas almas, para que nunca mais desapareça das plagas deGuanabara, nem de toda esta imensa e amada terra que vai doAmazonas ao Prata”15.

Outro sonhador do futuro de Língua Portuguesa, para melimitar a dois grandes vultos do mundo luso-brasileiro, foi FernandoPessoa que, por volta, provavelmente de 1931, no Livro do De-sassossego deixou expresso: “não tenho sentimento nenhum polí-tico ou social. Tenho porém num sentido, um alto sentimentopatriótico, minha pátria é a Língua Portuguesa”16.

Não pode esta afirmação ser diluída como hiperbólica ou deexaltação simples, mas deve entender-se como definição a umtempo simbólica e literal do seu pensamento sobre a Língua Por-tuguesa.

E por razões que não cessam de lhe confirmar a intenção e osentido, à medida que foram sendo publicados inéditos seus refor-çando afirmações sobre o significado de um quinto império cultu-ral fundado na língua.

Em 1934, no prefácio à obra de Augusto Ferreira Gomes,intitulada O Quinto Império explica Pessoa a cronologia dos im-périos e como têm sido interpretados, contrapondo-lhes a sua, emque o português se afirma como o Quinto, por vir na ordem deuma sucessão não de impérios materiais mas espirituais.

O Quinto Império de Pessoa é, simultâneamente, espiritual etemporal, sendo a Língua Portuguesa a constituinte essencial des-se império, antecipando as modernas concepções da lusofonia.

Identificando as traves mestras desse edifício imperial, assimas enumera: uma língua apta, rica, gramaticalmente completa efortemente nacional, e o aparecimento de homens de génio literá-rio escrevendo nessa língua e ilustrando-a.

Assim, alguns tópicos avultam nessa construção:a) A capacidade da Língua Portuguesa, pela sua riqueza e

plasticidade, servir de pátria comum;

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b) A existência de um património lusófono, como o apelidarí-amos hoje, linguístico e cultural capaz de se impor no mundo dacultura e da ciência;

c) A capacidade institucional e sócio-política da nossa línguase propagar e impor no estrangeiro;

d) Um número considerável de falantes;e) A existência de uma geografia linguística correspondente

à de um império17.Porque para Fernando Pessoa “A base da pátria é o idioma,

porque o idioma é o pensamento em acção, e o homem é um animalpensante, e a acção é a essêcia da vida. O idioma, por isso mesmoque é uma tradição verdadeiramente viva, concentra em si, indistin-ta e naturalmente, um conjunto de tradições, de maneiras de ser epensar uma história e uma lembrança, um passado morto que sónele pode reviver. Não somos irmãos, embora possamos ser ami-gos, dos que falam uma língua diferente, pois com isso mostram quetêm uma alma diferente (…) A base da sociabilidade, e portanto, derelação permanente entre os indivíduos é a língua, e é a língua comtudo quanto traz em si e consigo qe define e forma a Nação”18.

É nesta óptica que se explicam e completam os conceitospessoanos de pátria, quinto império, mensagem, conceitos que pre-param e explicam o que entendemos por lusofonia que, como afir-mava Agostinho da Silva, não tendo quinto-imperador não contémem si quaisquer ambições de domínio.

Porque “outro não é o espírito da lusofonia, descartadas quesejam as vertentes imperialistas, pois ela reclama como objectivostão somente os de viver e testemunhar uma forma mais humanade ser e de dialogar com as outras fonias e culturas, sem a preten-são de vir a dominá-las”19.

Por todas estas razões nos parece uma excelente propostade interpretação da lusofonia a de Silvio Elia que, partindo de umaanalogia com o uso que se fez da palavra “România” no mundoneolatino, apelidou a língua comum de “Lusitânia”, assim denomi-nando os espaços em que ela é ou foi usada: Lusitânia Dispersa -a dos emigrantes espalhados pelo mundo20.

Deste modo se pode afirmar tanto a diversidade como a uni-dade da Língua Portuguesa.

E nessa unidade não reside simplesmente um modo mais fá-cil e eficiente de comunicar, mas também, simultâneamente, umavisão da vida individual e colectiva algo diferente da das outrasfonias, herdadas do carácter nacional português e enriquecida pelos

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contributos brasileiro e africanos.Já Pessoa notava que “de todos os povos da Europa somos

nós aquele em que é menor o ódio a outras raças e a outras na-ções. É sabido de todos, e de muitos censurado, o pouco que nosafastamos das raças de cor diferente (…) a nossa índole preparapara aquela fraternidade universal”.

Atá Charles Boxer, que tão implacavelmente analisou a colo-nização portuguesa, e que tantas dificuldades teve para entenderas suas contradições que escapavam à sua coerência egeometrismo saxónico, não pôde deixar de afirmar, no meio decríticas ao racismo que também foi português, que os portugueseso eram menos que os outros: “can truthfully be said is that, in thisrespect, they were usually more liberal in pratice than were theirDutch, English and French sucessors”21.

Como já foi afirmado a lusofonia dá os seus primeiros pas-sos, e a unidade da língua só lentamente provoca a construção daunidade das nações lusófonas agindo como um bloco.

Até porque não é fácil realizá-la, dado que os países lusófonosnão estão no número das grandes potências industriais, sendo al-guns deles de economia muito débil e vivendo situções de pobrezaaguda. Situações estas que os forçam à dependência económica epolítica em relação a países da anglofonia e Commonwealth e dafrancofonia.

Mas também essas situações serão um dia vencidas comoultrapassadas foram outras conjunturas difíceis, perigos ou ameaças.No passado mais remoto foram as ameaças hegemónicas doexpansionismo de Castela sobre a jovem nação portuguesa, reno-vadas de 1508 a 1640 com a junção das duas coroas ibéricas.

Ameaças ao Brasil e às colínias africanas portuguesas queviriam a ser países independentes, por parte das grandes potênci-as imperialistas europeias, a que Sílvio Romero se referiu.

Perigos e ameaças na primeira metade do século, não já di-rectamente a uma soberania nacional, mas à própria culturalusófona, miscigenada, por parte da ideologia ariana branca cujoracismo foi claramente denunciado por Gilberto Freire na famosaconferência de 1940: “Uma cultura ameaçada”.

Ameaças provenientes da ideologia marxista que, pregandoo materialismo e a luta de classes como motor da História e métododialéctico de evolução, não via com bons olhos a cultura lusófona debase cristã, do diálogo, do entendimento étnico e cultural dos váriostipos de mestiçagem e humanismo da conciliação e concertação.

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Perigos e ameaças ainda decorrentes da mesma perspectivaideológica e política encarnados por uma forte corrente da negrituderadicalmente racista no seu anti-racismo, também anti -cristã, anti-europeia, anti-mestiça ou branca como era proclamada pela “legi-time défense”, e nas reuniões e congressos de Manchester, de1945, e de Bandung, de 1955 22.

Desafio ambivalente da globalização porque, se por um lado seobtém algum ganho na promoção dos valores e direitos humanos,especialmente pela homogeneização das políticas e dos sistemasjurídicos nacionais e também pela proposição - aceitação de modelospara resolver problemas que sempre ultrapassaram as capacidadesde um país no âmbito da saúde, do ambiente, do combate à pobreza,por outro lado a grande concentração económico destabiliza edesorganiza a ordem económica, plolítica e cultural dos povos.

É que a concentração económica arrasta consigo a reorgani-zação da sociedade, provocando a “desterritorialização” das for-ças produtivas levando ao esvaziamento das economias nacionaise a uma “concomitante polarização de actividades produtivas,industriais, manufactureiras, de serviços, financeiras, administrati-vas, gerenciais, decisórias” 23, com as inevitáveis consequênciasnas línguas e nas culturas.

E como são as nações mais ricas e prósperas o centro motordestas transformações, e os Estados Unidos o centro do centrodeste furacão, daí as imposições descaracterizadoras da culturatecnocrática, e a dominância da língua inglesa e do “americanway of life”.

Entre as culturas e línguas mais prejudicadas encontram-seas de matriz latina (a hispanofonia, a lusofonia, a francofonia), peloque uma estratégia de defesa, individual e de grupo se impõe.

Por um lado, devemo-nos aliar a espanhóis e franceses con-tra a expressão anglófona, por outro, impõe-se o reforço da nossaprópria coesão.

Em relação à francofonia, em especial, a lusofonia devia rei-vindicar um respeito maior pelo seu espaço e esfera de influência,pois ultimamente se têm sentido demasiadas cobiças de hegemonia,nomeadamente em Cabo Verde e na Guiné. Se nos dividirmoscomo rivais como fazer frente aos excessos da anglofoniaamericanizante?

É que a influência potencialmente descaracterizadora daglobalização não se faz sentir só sobre os países de economiaspobres, também se exerce sobre outras culturas de países indus-

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trializados, quer diluíndo-lhes a identidade, quer apropriando-se dosseus valores próprios não já como contributos para a harmoniauniversal, mas sobretudo coisificando-os como objectos banais deconsumo cultural.

E não são estes perigos meras suposições teóricas, porque ainevitável unificação do mundo está a verificar-se em movimentouniformemente acelerado.

Segundo o último relatório do Programa das Nações Unidaspara o Desenvolvimento (PNUD) publicado neste mês de Julhoem que nos encontramos, o movimento cultural contemporâneoestá desiquillibrado por ser grande a instabilidade cultural dos pa-íses pobres que não dispóem de barreiras de resistência ou selec-ção, sobretudo nas duas áreas mais sensíveis para a criação outransformação da mentalidade colectiva: a da informação e a doentretenimento.

É cada vez mais universal e avassaladora a audiência daCNN e da BBC que agora emitem 24 horas sobre 24 horas, atéporque, em apenas quatro anos, no mundo inteiro passou para odobro o número de televisores em uso.

Quanto à informatização em geral, e ao uso da Internet emparticular, elas passaram a ser práticas rotineiras e prestigiadas,possibilitadas por facilidades cada vez maiores que vão até à ofer-ta total por parte das grandes empresas e dos governos.

E o mesmo se poderá dizer do showbusiness e do cinemaamericano em especial. Basta lembrar de que a maior e maisrentável indústria americana não é a da aeronáutica ou do auto-móvel, mas do audiovisual, e que os filmes de Holliwood triunfamem toda a parte.

Concluem os autores do relatório do PNUD que “há neces-sidade de maior apoio para as culturas indígenas e nacionais, paraque elas possam florescer de forma paralela às culturas estrangei-ras “porque obviamente não pode ser um idela, o isolacionismo,mas uma saudável competição.

Naturalmente que a unidade linguística não é panaceia mila-grosa para resolver eficazmente os problemas levantados pelaglobalização, mas ela está na base de uma conjugação de forças aque chamamos lusofonia.

Nela e na lusofonia deverão ser enquadrados os meios paraque o necessário e indispensável diálogo com as outras culturas serealize preservndo os nossos valores.

Valores que se constelem à volta de concepções e atitudes

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relativas a Deus, ao Homem, à família, à sociedade, realizadossobre um fundo cristão, em diálogo étnico que repele todas asformas de racismo e que elegem a tolerância, a cordialidade, acocertação, a solidariedade, como formas suas de Humanismo.

A lusofonia não é só um problema linguístico de ensino eaprendizagem de uma língua de comunicação internacional, é muitomais do que isso - uma certa forma de estar no mundo e viver emsociedade.

Por isso trabalhamos cada vez mais a favor da unidade dalíngua comum da lusofonia para que enfrente com sucesso osdesafios que lhe surgem, e reivindicarmos na União Europeia amudança na sua política linguística protagonizada pelos progra-mas “Língua” e “Sócrates”.

Política essa que pretendendo, certamente com boas inten-ções, ajudar todas as línguas que, brevemente ultrapassaram asvinte, em vez de favorecer o diálogo entre elas, as vão encher deruídos e confusão, reeditando a Torre de Babel.

Em vez disso será mais eficaz e aconómico apoiar as línguasde basedas grandes fonias mundiais de comunicação, que todassão europeias, independentemente da língua franca, o inglês, ouseja: a hispanofonia, a lusofonia, a francofonia, a germanofonia,pois que apoiando essas línguas de base da comunicação interna-cional, não são só nem principalmente as línguas de quatro países,mas as línguas de quatro constelações de países espalhados pelomundo inteiro.

Também por isso, reivindicamos como tarefa prioritária amuitas outras, a concretização do Instituto Internacional da Lín-gua Portuguesa, criado no papel em 1989 e que deveria ser postoa funcionar antes da CPLP (Comuidade de Povos de Língua Por-tuguesa) que não o substitui de modo algum.

Em resumo, só com uma política linguística concertada pelossete seremos capazes de transformar o desafio da globalizaçãoem potenciação de eficácia e não em confissão de derrota.

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Notas1 Celso Cunha, Uma Política do Idioma, Rio, Liv.S.José, 1964, p.342 Ignacio Ramonet, Geopolítica do Caos, Rio, Vozes, 19983 Fernão de Oliveira, Gramática4 Virgínia Mattos e silva, “Diversidade e Unidade – A Aventura Lin-

guística do Português, (2ªparte)”, in Revista Icalp, Lisboa, 1988, p.155 Barbosa Lima Sobrinho, A Língua Portuguesa e a Unidade do Bra-

sil, , 1958, p.1776 Paul Teyssier, Histoire de la Langue Portugaise, Paris, PUF, 1980,

p.1177 Jean-Michell Massa, “La Langue Portugaise en Afrique”, in Lexikan

des Romanistischen Linguistik, Tobugen, 1994, p.5758 Comissão Nacional para o Aperfeiçoamento do Ensino / Aprendi-

zagem da Língua Nacional – Relatório Conclusivo,Ministério da Educa-ção, Janeiro de 1986, p.4

9 António Houais, O Português no Brasil, Rio, Unibrade, 1985, p.14110 Comissão Nacional para o Aperfeiçoamento…, p.5 e 611 António Houais, ibidem, p.1512 Silvio Romero, O Elemento Português, Lisboa, Tipografia da Com-

panhia Nacional Editora, 1902, p.1113 ibidem, p.3314 ibidem, pp 32-3315 ibidem, p. 4916 Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, Lisboa, Ática, 1982, p. 1717 Fernando Pessoa, em textos – fragmentos, publicados in Sobre Por-

tugal, dir. de Joel Serrão, Lisboa, Ática, 1978, p.22918 Fernando Pessoa, ibidem, p. 121-12219 Fernando Cristóvão, “Fernando Pessoa e a Lusofonia a haver”, in

Letras, Edição especial dedicada a Fernando Pessoa, Santa Maria, Univer-sidade Federal de Santa Maria, 1995, p.91

20 Joel Serrão, ibidem, p.23721 Charles Boxer, Four Centuries of Portuguese Expansion, 1415-

1825, Succint Survey,22Fernando Cristóvão, “As literaturas de Língua Portuguesa em áreas

tropicais”, in Notícias e Problemas da Pátria da Língua, Lisboa, Icalp,1987, p.91

23 Octávio Ianrri, A Era do Globalismo,3ª ed.,Rio,CivilizaçãoBrasileireira,1997,p.12

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1. Considerações prévias

A bibliografia sociolingüística dos últimos anos tem aproxi-mado, com uma premente insistência, três realidades cuja associ-ação o exame teórico de pendor imanentista não deixava consi-derar com demora. Hoje em dia e independentemente das comu-nidades estudadas, a língua, a escola e os processos de cons-trução da identidade dos indivíduos e/ou dos grupos constituemum tríptico conceptual em que repousa novo ímpeto da investiga-ção aplicada.

Para além de tudo aquilo que o discurso crítico da lingüísticanos tem legado acerca do seu objeto formal, é com crescenteconvicção que os investigadores identificam agora o aproveita-mento utilitário das línguas naturais em projectos políticos de plani-ficação educativa, com o fim último de claro nivelamento dos su-jeitos falantes, esteja em análise a legitimação de uma norma ou aimposição do ensino de um sistema dominante em salas de aulasmulticulturais.

Paralelamente à influência inicial do núcleo familiar, a escola,na sua qualidade de instituição ao serviço das ideologias compoder decisório, transformou-se na arena privilegiada do movi-mento socializador de crianças, de jovens (e até de adultos) queretomam, noutros moldes, a construção da sua identidade - íntimae grupal - de acordo com os parâmetros definidos por instânciasque lhes são igualmente desconhecidas e superiores.

O objectivo primordial do traballho de campo realizado entreos filhos de trabalhadores portugueses fixados em território ale-

Da construção lingüística daidentidade. Um estudo de caso.1

João Nuno Paixão Corrêa Cardoso,da Universidade de Coimbra

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mão e cuja primeira língua adquirida foi o português consiste noexame de uma dimensão parcelar das suas titudes lingüísticas paracom esse idioma, no âmbito particular da situação de contactocom a língua alemã: a da elaboração do universo íntimo de sobre-vivência no país receptor.

A par deste leit-motiv considerarei a concepção dosinformadores do espaço lusófono e o grau de consciência do es-pectro sociolingüístico do português nas duas cidades germânicasde Hamburgo e de Harburg e verei das (im)possibilidadesdefinitórias das cumplicidades dos três vectores referidos.

2. Aspectos do terreno abordado

O ensino ministrado da L1 procura corresponder às solicita-ções dos pais e às exigências programáticas do Ministério da Edu-cação português. Estas duas entidades procuram solucionar proble-mas, a meu ver, concêntricos: que o futuro dos educandos nào fiquetruncado, na eventualidade de desejarem regressar a Portugal ou,então, de não perderem o sentimento de pertença ao espaço lusófono,se resolverem permanecer na Alemanha para sempre.

Se se fizer uma leitura circunstanciada dos textos homologa-dos que, em termos oficiais, orientam o ensino português nos nos-sos núcleos no estrangeiro, detectamos neles a presença constan-te da preocupação em satisfazer positivamente ambas as necessi-dades. Senão, atentemos:

Em 1978, os Objectivos a alcançar através doPrograma de Língua e cultura portuguesas eramo de transformar o educando num indivíduo ca-paz de “(...) intervir oportunamente, tanto no paísde origem, como no país onde vive (..)” (p.3). Se-gundo as notas preliminares, “(..) tal programadeverá proporcionar um conhecimento da rea-lidade social do país de origem, que Ihe faciliteuma possível integração futura, sem demasiadossobressaltos e traumatismos e, ao mesmo tempo,lhe abra perspectivas para compreender a suaprópria situação de filho de imigrante (...)” por-que “(...) essas novas aquisicões não poderão serdesligadas das vivências concretas da criança edo ambiente em que vive (...)” (p. 4)2

Nos Objectivos programáticos do estudo da

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Língua Portuguesa para a obtenção da equiva-lência ao ensino secundário, são de destacar osque ocupam o 3 e 6 lugares: “Levar o aluno aodomínio progressivo da Língua como meio deexpressão do Pensamento e de transmissão devalores individuais e colectivos” e “intensificaro interesse pela língua e pela civilização portu-guesas”3 .

Também não se encontram alheadas desta óptica as inten-ções que presidiram a arquitectura dos programas só de culturaportuguesa.

De facto, logo nos Objectivos gerais do do-cumento que permite a equivalência ao Curso Uni-ficado de Portugal, pode ler-se o seguinte: “O pre-sente programa de cultura portuguesa tem comofinalidade ajudar o aluno, filho de emigrantes,que vivendo desligado do contexto cultural daterra de seus pais e da realidade actual do nossopaís, a integrar-se na sociedade e na escola por-tuguesas. Na mesma página, mais à frente, repete-se a formulação do desejo institucional de “Permi-tir ao aluno, filho de emigrantes, que regressa aPortugal uma melhor adaptação à escola que iráfrequentar evitando assim desajustamentos, mauaproveitamento escolar com consequente perdade anos lectivos.”4

Na década de 90, registou-se a emissão de novos programasescolares que continuam a acentuar - se bem que com uma maiorveemência - a importância da identidade de partida dos alunos (edos núcleos familiares de que são oriundos) a par, naturalmente,da equacionação de outros problemas do foro psico-pedagógico edidático, levantados pelas realidades - multifacetadas – do ensino– aprendizagem em português no mundo.

Por exemplo, nas Finalidades do quadro oficial da difusãolinguística e cultural dirigido às crianças dos 6 aos 10 anos deidade, tecem-se as seguintes linhas de acção: “3) Favorecer odesenvolvimento da consciência da identidade linguística ecultural, através do confronto com a língua estrangeira e a(s)cultura(s) por ela veiculada(s). 4) Fomentar um dinamismocultural que não se confine à escola nem ao tempo presen-

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te(...). 5)Promover a educação para a comunicação enquan-to fenómeno de interacção social, como forma de favorecer orespeito pelo(s) outro(s), o sentido da entreajuda e da coope-ração, da solidariedade e da cidadania. 6) Proporcionar ocontacto com outras línguas e culturas, assegurando o domí-nio de aquisições e usos linguísticos básicos. 7) Estruturar oconhecimento de si próprio (..), valorizando a sua identidadee raízes. 8) (...) reflectir sobre a sua própria realidade sócio-cultural, através do confronto com aspectos da cultura e dacivilizacão portuguesas.”( p.s 9-10). Nos contéudos culturaisaparecem sublinhadas a identidade nacional, por um lado, e alocalização de Portugal face à Europa e ao resto do mundoou as ligações de Portugal com o mundo, por outro. (p. 31)5

Em meu entender, esta ambivalência programática reflecte,de maneira explícita, o (re)conhecimento que as autoridadeseducativas possuem dos vários constrangimentos inerentes àacu1turação por que passam estes indivíduos em fases iniciais (eimportantes) da formação do Eu (profundo e frágil) e do estabele-cimento dos laços com os não-EU.

Em ambas as circunstâncias, o que motiva a prática escolare, no fundo, a intenção de alertar para a anterioridade da heran-ça portuguesa e desenvolver e manter mecanismos identificativosrenovados que combatam o enorme peso do factor da extra-territorialidade de que a gradual separação das culturas de par-tida é a primeira consequência inevitável.

3. O.I.L.H. - 97O Inquérito Linguístico foi aplicado nas Escolas de Harburg

e de Hamburgo, da Missão Católica Portuguesa, pertencentes àzona consular de Hamburgo, em Maio de 1997, e a fase posteriorde confirmações realizou-se em Maio de 1997, e a fase posteriorde confirmações realizou-se em Fevereiro de 1998. Compostopor três Questionários (A, B e C), permitiu a obtenção de dadosjunto quer do corpo docente, quer da população escolar que fre-quenta, mais ou menos assiduamente, as aulas de língua e de cul-tura de origem (da 1 geração).

Durante a aplicação do I.LH-97, auscultei igualmente as ori-entações das vontades políticas e institucionais em matéria educativae (socio)linguística - a) da Direcção da Escola da Missão CatólicaPortuguesa em Hamburgo e em Harburg, na pessoa do PadreDr.Eurico José de Azevedo, b) junto do Dr. José António Fernandes

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Costa, na qualidade de Erziehungsattaché des portugiesischenGeneralkonsulats em Hamburgo e c) do Departamento de Co-ordenação Geral do Ensino, da Embaixada de Portugal em Bona,através da Dra. Maria da Piedade Gralha , aqui ficando publica-mente registado, a todos três, o meu reconhecimento.

A discussão teórica anunciada pelo título da minha interven-ção é suscitada essencialmente pelas respostas abertas, fornecidasàs cinco últimas perguntas do Questionário 2. (I.L.H.-97/B): 34)Agora, vou escrever o nome dos países do mundo onde sefala a Língua Portuguesa...; 35) E agora, vou dizer o quesinto quandoouço falar português à minha volta...; 36) Comoestou quase a acabar, voudizer o que sinto quando falo aLíngua Portuguesa...; 37) Para mim, Portugal é...; 38) E osportugueses são...

4. Apresentação da amostra

A selecção dos informadores foi, de início, condicionada pe-las seguintesircunstâncias: a) os contactos, em tempos desiguais,com os professores responsáveis pelas turmas6, b) a difícil articu-lação entre as actividades escolares previamente calendarizadase a aplicação do I.L.H.-97 e c) as contingências vividas pelo cor-po discente que frequenta, em dias alternados, as Escolas da Mis-são após o cumprimento de um horário lectivo diario (de tipo diur-no e completo) nas escolas oficiais alemãs.

Todos estes informadores frequentam o ensino oficial ale-mão. O dia normal de aulas nas instituições germânicas inicia-seàs 8 horas da manhã e termina às 14 horas e trinta da tarde. Ostempos lectivos das escolas portuguesas compreendem-se entreas 15 e as 18 horas, privilegiando-se o estudo da língua,

da história

e da geografia de Portugal. Entre outros factores, a própriae1aboração do texto do Questionário 2. devia prever, é claro, ocansaço acumulado e/ou o desinteresse dos alunos inquiridos.

Hoje apresentarei apenas os elementos fornecidos por trêsdos cinco grupos de alunos, ainda nascidos em Portugal, que par-ticiparam na pesquisa. A Tabela 4.1. disponibiliza as informaçõesessenciais sobre a amostra recolhida:

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Tabela 4.1 (Fonte: I.L.H. – 97)

Com um total de 80 informadores, trata-se de uma amostrade proporções equilibradas, tanto quanto a flutuação do universode partida o permite. De uma forma global7, o perfil sócio-econó-mico dos inquiridos situa-os num escalão médio.

5. Resultados e seriação das conclusões globais8

A imagem unificada do espaço lusófono resulta de uma visãoconsensual de todos os grupos entrevistados e permite a delimita-ção inequívoca de zonas solidárias.

De forma repetida, Portugal (às vezes acompanhado pelanomeação de centros urbanos como o de Lisboa e o do Porto)encimou sempre a lista das enumerações, juntamente com os terri-tórios açoreano e madeirense. O mesmo aconteceu com o Bracilque esteve presente em quase todas as escolhas. Não foram es-quecidos os países africanos de expressão oficial portuguesa, comoAngola, Mucambique, Cabo Verde, Guinea, São Tomê e Principe(incluídos por este ou por aquele informador em designaçõesgenéricas do tipo nas costas da Africa ou na Àfrica). Nas selecçõesde lugares onde vivem grupos residuais de locutores do português,Macau, Timor Leste e Goa aparecem pontualmente.

Todos falam, como seria de se esperar, na Alemanha que é opaís do quotidiano ou em Hamburg, a cidade que melhor conhe-cem; mas é o sentimento agudo da condição de portugueses a

Ano de escolaridade GØnero MØdia etÆria_________________________________________________________

9 raparigasGrupo I 5 classe 11.6

12 rapazes13 raparigas

Grupo II 7 classe 13.1 11 rapazes

25 raparigasGrupo III 9 classe 15.3

10 rapazes

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viver no estrangeiro por motivos económicos que ajuda especial-mente os informadores mais velhos (Grupos II e III) a encontrarnoutras regiões de extensão lingüística portuguesa - e com preci-são -, como em França, no Luxemburgo, na Suíssa, na Africado Sul, no Canadá ou, então, no Mexico e na Amérika do Nortee do Sul o paradeiro de companheiros de infortúnio aí colocadospor meio de viagens com escalas (trans)europeias.

Poderá surpreeder-nos a minúcia dos contornos e dos por-menores do retrato da grande família lusitana traçado por indiví-duos tão jovens e tão distanciados dos meios de (re)produção e derepresentação ideológicas e simbólicas nucleares da língua e dacultura portuguesas. Ela decorrerá certamente da acção combi-nada i) do legado transmitido euforicamente pela viva voz da gera-ção dos progenitores – sempre mais renitente nos processos deaculturação -, com responsabilidades na apreciação positiva dasorigens ibéricas e dos concidadãos, e ii) da insistência com que setrabalham, na escola, determinados conteúdos programáticos, dosquais sublinharia o estudo dos países de língua oficial portu-guesa e sua localização ou análise das razões históricas do usodo português por cerca de 200 milhões de falantes, referindoas grandes viagens dos portugueses.8

Assim condicionados pelas intenções confluentes da famíliae da instituição escolar, eis como os informadores testemunhamo teor da sua relação com Portugal, com os portugueses e com alíngua de Fernando Pessoa9:

1 - Para mim, Portugal é um dos países mais lindo que á (2),o melhor país (6), um país onde a muito Sol, e onde eu nasci, ondeesta a minha família (9), a terra mais importante que há (23), umanação que é uma das melhores que conheço (46), um País deAlegria (um paraíso) (48), o País que eu mais gosto e por o que eusinto mais consideração (57);

2 - E os portugueses são passoas sinpaticas e spetaqular (2),como pais (6), inteligentes (24), bons em Futebol (30), the Best(33), as pessoas mais felizes do mundo (40), porreiros fixes, (52),têm as mulheres mais bonitas do universo (58), freundtich (71);

3 - A Língua Portuguesa é minha língua (Muttersprache) (25).Portugal é o pais de origem, o país de uma vida liberta de

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obrigações (escolares e profissionais), onde os pais lhes dedicammais atenção. É ainda o reduto dos avós e de familiares querevisitam ano a ano e talvez constitua um eventual futuro destino.Parece estar assegurada a identidade (linguística e psicossocial)de base de uma população escolar afastada do quadro participativooriginal e que se pode traduzir em enunciados paradigmáticos dotipo Portugal é o meu país e tenho muito orgulho nisso (24), aminha terra (31), O meu país perferido (36), a minha pátria,embora eu viver na Alemanhã (46), os portugueses são os meusamigos (31), o meu Povo são as pessoas que eu tenho maisconsideração (49) e quando falo português eu sinto que per-tenço a Portugal (46).

Estes resultados poderão ser, afinal, animadores, se pensar-mos, em primeiro lugar, que,

no país receptor, os jovens em causa

devem satisfazer necessidades comunicativas e, portanto,corresponder com sucesso a expectativas de usos actualizandoum sistema semiótico tipologicamente diferenciado da L1 e, emsegundo lugar, se considerarmos o estatuto da utilidade que atribu-em ao português como língua minoritária, plasmado que foi naslimitações sociais das práticas discursivas reservadas à L1 com asdimensões dos seguintes segmentos micro-culturais: é a língua que50.5%. falam em casa com a família e, nesse ambiente, a prefe-rida por 56.9% em relação ao alemão. Por isso e a par da escola,o lar é o local decisivo para a transmissão e a manutenção doportuguês: o idioma aprende-se em casa (83.9%) e na escola(96%), com os professores (92.8%), a família (85.6%) e, maisremotamente, com alguns dos amigos próximos (39.7%).

A observação do continuum dos comportamentos subjecti-vos para com a L1 indica, todavia, uma crescente deterioração daidentidade lusa a favor de uma aproximação linguística (e cultural)a situação sociolinguística do país de acolhimento. O poder daassimilação da língua maioritária exercido em todos os domíniosda vida comum, ao conduzir os alunos estrangeiros no processogradual de integração, fá-los passar por uma fase mais ou menos(in)consciente e conflituosa de hierarquização das línguas em con-tacto, marcada pelo movimento de oposições e adesões aos múl-tiplos valores veiculados pelo alemão. A passagem da qualidadede othergroup a owngroup members evidencia índices de hesi-tação flutuantes, muito particularmente quando funcionam os cha-mados contextos de crispação identitária, isto é, em situações deenunciação concretas em que as fronteiras da(s) diferença(s) ou

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não fazem parte do horizonte de espera - na óptica alemã – ou nãopodem (nem devem) transparecer.

A auscultação dos sentimentos desencadeados quer pelaaudição do português, quer pela actuação individual nessa mesmalíngua, no âmbito de um dualismo linguístico cuja tensão é vividade forma continuada, manifesta os diferentes graus de desafectode tal idioma. Para uma amostragem das tendêcias, ouçamos par-ticipações exemplificativas dos três grupos implicados:

GRUPO I Quando ouço falar português à minha voltaSinto o meu coração a rir e penso em portugal (7), Apetece-me falar p’ra as pessoas e falar (13), eu gosto muito dissoporque sei que aqui também há portugueses (15). Quandofalo a Língua Portuguesa Sintume bem (1), Sinto que estou afalar a língua que a minha mãe e também os professores meensinaram (18), Sintu-me feliz porque sei falar Português (21).

Neste conjunto de entrevistados poucas são as vozesdissonantes.

Porém, algumas respostas do Grupo II perdem a vivacidadena aceitação da L1; e apontam, com maior nitidez, o afastamentosentido pelos locutores da comunidade apresentando soluções tí-picas de um compromisso linguístico:

GRUPO II Quando ouço falar português à minha voltanão sei o que sinto (24), É bom porquê as pessoas afinal nãoesqueceram a Língua Portuguesa (32), Eu sintome comosempre normal (38), Sinto muita alegria por terem respeitopela Língua Portuguesa (43). Quando falo a Língua Portu-guesa Eu sinto igual como falo Alemão (38), Não tenho aserteza (39).

Entre os mais velhos, as evidências empíricas obtidas reme-tem já para o estatuto de marginalidade do português e para umaesbatida noção de pertença à comunidade de língua:

GRUPO III Quando ouço falar português à minha voltanão me sinto no meio deles por não falar e perceber bemportuguês (58), sinto normal porque também há pessoas quefalam outras línguas (65), Nada. Mas gostava falar tão bemPortuguês como alguns portuguêses (68), Eu acho que teminteresse para aprender (77). Quando falo a Língua Portu-guesa eu detesto falar (65), Não sinto nada é uma línguacomo qualquer outra (79).

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A geração de educandos que acabamos de observar é dasque, em situações idênticas de transplante geo-linguístico, acabampor ser socializadas através de esquemas, espirituais e materiais,

em

concorrência assimétrica: uns, os menos fortes, pertencem ao mundodas referências familiares; os outros, diversos e dominantes, são osdas coordenadas que conforma(ra)m a sociedade alemãcontemporânea. Por outro lado, é também a juventude psico-fisioló-gica dos seus organismos que surge como potência responsável peloprocesso de alteração e/ou mudança (socio)linguística, favorecen-do o rápido desenvolvimento da competência comunicativa na lín-gua da comunidade receptora.

A prática quotidiana de um excelente bilinguismo, nesta ge-ração de transição, poderá, por conseguinte, conservar-se - natentativa em defender-se a chamada memória colectiva do gru-po- ou conduzir à extinção de um dos sistemas co-existentes,segundo a força do desejo de integração e de aceitação pelosnão-Nós. Tudo dependerá da tipologia das atitudes desencadeadaspor tais esquemas para com o código semiótico em risco.Outraespecificidade do conjunto dos informadores é a íntima aliançacriada entre a Língua Portuguesa e a identidade étnica e nacional,reunião essa que os estudos de Psicologia Social nos dizem nãoser obrigatória. De facto, quanto mais afastados se sentem daproficiencia em português, mais ácidas são as apreciações sobrea população de Portugal: no Grupo I são generalizados comentá-rios como os portugueses são bons amigos (12), simpaticos epessoas boas (15), (Aqueles que também falam Português.)bons (18); no Grupo II diminui o grau de solidariedade, com enun-ciados do género os portugueses sao simpácticos,

mas só às

vezes (35), fantásticos, burros, inteligênticas, etc. (.37); noGrupo III indiferença impõe-se, com asserções como os portu-gueses são pessoas normais como todas as outras raçastamben (68) ou como todas as outras pessoas (79).

6. EpílogoA aproximação a esta complexa realidade escolar, em tempo

aparente e vivida por uma população não natural, dá-nos a medidaexacta do que ocorre no terreno. Durante a adolescência, as crisesque lhe são inerentes fazem-se acompanhar, de maneira reforçada,pela instabilidade nos processos pluridimensionais e funcionais dasauto e hetero-identificação linguística (e cultural) uma vez que hámais do que um modelo orientador colectivo proposto.

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Notas1 Trata-se do primeiro estudo de um conjunto amplo em que desen-

volverei outros temas a partir dos dados obtidos por intermédio do I.L.H– 97 ou em que retomarei, para desenvolvimento teórico, pistas que aanálise aqui avançada me tenha sugerido ao longo da elaboração dopresente texto. À Prof. Doutora Maria Manuela Gouveia Delille, doInstituto de Estudos Alemães da Faculdade de Letras da Universidadede Coimbra, quero expressar a minha gratidão por me ter proporcionadoambas as estadias na Alemanha, sem as quais não só o trabalho decampo teria sido impossível, bem como as subsequentes pesquisa, refle-xão e sistematização, de que o presente texto é subsidiário.

2 Programa de Língua e cultura portuguesas para 5 e 6 anos deescolaridade, Ministério dos Negócios Estrangeiros - Secretaria de Es-tado dos Negócios Estrangeiros e da Emigração.

3 Programa de Língua Portuguesa, Ministério dos Negócios Es-trangeiros Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Emigra-ção, p.3.

4Programa de cultura portuguesa, Ministério dos Negócios Estran-geiros – Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Emigração,p.3

5 Cf. a título ilustrativo ANTUNES, M. F., SILVA, M. R, TEIXEIRA,M., 1994' Programa de língua e cultura portuguesas, Lisboa, Ministérioda Educação - Departamentc da Fducação Básica.

33 A obtenção de todo o material linguístico só foi possível pela

acção adjuvante de três professoras cujo elevado profissionalismo eadesão ao projecto me impressionaram ao tornarem possível o meu con-tacto (imediato e prolongado) com os alunos das suas turmas,

como pela

disponibilidade e cuidado que revelaram ao responder ao I.L.H.-97/A(Questionário 1.). As Dr.as. Maria Isabel M. Dantas de Brito, ReginaCorreia e Ana Paula Fonseca Pilzecker deixo lavrado um especial agrade-cimento.

7 De acordo com as informações prestadas pelas respectivas pro-

No sentido de vencer este penoso período afectivo e psíquicodas criancas e dos jovens perfeitamente divididos entre dois pólos- de igual modo legítimos - e de, com integridade, se perpetuarema língua e a cultura portuguesas neste e noutros ambientes adver-sos,

devemos repensar, com toda a seriedade, o nível dos canais

que transmitem o discurso da unidade.Só assim se cumprirá, nas palavras de Aníbal Pinto de Cas-

tro, a vocação ecuménica de Portugal10.

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fessoras no I.L.H.-97 (Questionário 1.) Na transcrição dos dados, mante-

nho a ortografia dos alunos.8 ANTUNES, M.F., SILVA, M. R., TEIXEIRA, M., Op. cit., p.31.9 Entre parênteses curvos, indico o número de ordem dos

informadores.10 In Em questão: lusofonia. Apud Discursos. Estudos de língua

e cultura portuguesa. 1993, vol..3. Unidade linguística. Diversidadecultural. Coimbra, Universidade Aberta, p.122.

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Convidou-me o meu velho amigo Professor Leodegário A. deAzevedo Filho para participar neste congresso sobre “Brasil: Qui-nhentos Anos de Língua Portuguesa” com uma intervenção dedicadaao português quinhentista. Desde logo aceitei, com entusiasmo, oseu convite, porque vir ao Brasil há muito se tornou para mim umaespécie de vício, hoje enraizado: e de todos os vícios que eu possater é este, seguramente, o mais gostoso. É também, felizmente, omais inofensivo, excepção feita, claro, por quantos, em circunstânci-as como esta, padecerem com escutar-me.

Mas, aceite o convite, não me foi fácil escolher o tema deminha intervenção. O conhecimento que hoje podemos ter de qual-quer estado da língua anterior ao de nossos dias é, como bem se vê,limitado ao que a literatura nos proporciona, e nem sequer o teatrode Gil Vicente, tantas vezes invocado como testemunho de usosconsiderados arcaizantes, nos permitirá conhecer o que de facto sedizia no Portugal de Quinhentos. Os próprios conhecimentos que naliteratura podemos colher, além de eventualmente enganadores -que representam, na realidade, muitos dos usos atestados em Camõesmais que uma execução singular de potencialidades linguísticas? -,não se encontram nem sistematizados nem suficientemente desen-volvidos. A tendência tem sido, salvo excepções, para se falar da“língua” de um autor por referência ou ao português nosso contem-porâneo ou ao que se julga saber de fases a ele pretéritas. Faltam-nos, numa palavra, trabalhos como o que Paul Teyssier dedicou aGil Vicente. Já uma vez tive ocasião de dizer que, fora Camõesespanhol, quase nada restaria hoje para investigar a seu respeito:como o não foi, resta quase tudo: bastará reportar-nos à “Biblio-

Sintaxe camoniana:“Na qual quando imagina.”

Jorge Morais Barbosa,da Universidade de Coimbra.

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grafia Camoniana (1980-95)” organizada por Maria Vitalina Lealde Matos para nos darmos conta do reduzido interesse queCamões tem merecido aos linguistas portugueses, em flagrantecontraste com o exemplo que nos dão colegas nossos do Brasil.

1. Ocupei-me em Outubro passado, na Academia Internacional daCultura Portuguesa, de alguns problemas de sintaxe e topicalizaçãon’ Os lusíadas. Também como homenagem ao Presidente daAcademia Brasileira de Filologia e da Sociedade Brasileira de Línguae Literatura e dinamizador deste nosso Congresso, que tanto sevem dedicando ao estudo da obra camoniana, trago hoje aqui outrocaso, este de natureza apenas sintáctica, que em particular tem quever com os bem conhecidos versos da epopéia (I.33)

2.Sustentava contra ele Vénus bela,Afeiçoada à gente lusitanaPor quantas qualidades via nelaDa antiga, tão amada sua, romana,Nos fortes corações, na grande estrelaQue mostraram na terra tingitana,E na língua, na qual quando imaginaCom pouca corrupção crê que é a latina.

Epifânio Dias, cuja edição do poema, ainda relativamente aces-sível graças à reprodução que dela se fez por iniciativa da ComissãoBrasileira encarregada das comemorações do IV Centenário dapublicação da epopeia, continua sendo, a meu ver, a melhor quantoà interpretação e comentário linguístico do texto, escreveu em notao seguinte: “A construcção ‘na qual quando imagina...crê que he alatina’ equivale a ‘a qual, quando nella imagina, Venus crê que he aLatina’ [...] (Não deve conseguintemente pôr-se pausa entre ‘naqual’ e ‘quando’).” Não viria esta sábia recomendação a ser aten-dida pelos editores subsequentes do poema que, preferindo seguir apontuação das duas edições de 1572, assim leram: E na língua, naqual, quando imagina, [...] Curiosamente, a Carlos Eugénio Corrêada Silva (Paço d’Arcos), que de tão perto o seguiu, parece ter pas-sado despercebida essa observação do mestre, o que o levou aconsiderar a construção como representando um caso de “oraçãosimultaneamente relativa e temporal”. Deixando de lado conceitoscomo este, que em sintaxe se não revestem de qualquer interesse,

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dir-se-á que tal pontuação não sustenta qualquer interpretação acei-tável dos versos. Ter-se-ia de considerar, por um lado, o verbo ima-ginar aqui em uso intransitivo, o que seria possível, já que, conformese verá, ele ocorre em Camões com este estatuto, mas isso obriga-ria, por outro lado, a entender a latina e a qual como os dois termosde uma construção dita equativa, ou seja, onde um delescorresponderia à função “sujeito” de “ser” (é) e o outro a umadeterminação deste. Nunca sendo, porém, os functivos de “sujeito”precedidos em português de preposição, teria de ver-se em qual amencionada determinação de “sujeito” e, consequente-mente, em alatina o functivo deste determinante de “ser”. Ora, com este verbo,também a determinação do “sujeito” nunca ocorre precedida depreposição. Certa estava assim a lição de Epifânio, pois, como reco-nheceria qualquer leigo em matéria linguística, de outro modo osversos não fariam sentido.

Interessará agora atentar em dois pontos relativos aos mes-mos versos: respeitam aos usos de imaginar e de qual.3. Graças aos inestimáveis Índices devidos a A. Geraldo da Cunhae às facilidades de pesquisa proporcionadas pela Biblioteca Virtualdos Autores Portugueses, sabemos que o verbo imaginar ocorredezasseis vezes n’Os lusíadas e vinte e uma nas Rimas. Daquelasdezasseis ocorrências, duas apresentam o complemento precedidode em: são a já citada de III,21 e a de IX,27, para a qual, aliás, noprosseguimento da nota acima citada, já Epifânio remetera em abonoda sua interpretação:

4. E vê do mundo todo os principais Que nenhum no bem púbrico imagina.

Também na lírica está essa regência representada, pelo me-nos quatro vezes:

Ao longo d’ ûa praia deleitosa,vou na minha inimiga imaginando;Ainda eu imagino em ser contente?Que tanto por seu dano se perdeu,que o longo imaginar em seu tormentoem desatino Amor lho converteu;Que um contino imaginarnaquilo que Amor ordena,é pena que, enfim, por penase não pode declarar.

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Encontram-se, bem entendido, usos intransitivos e usos transi-tivos do mesmo verbo. São os primeiros os seguintes:

A disciplina militar prestanteNão se aprende, Senhor, na fantasia,Sonhando, imaginando ou estudando,Senão vendo, tratando e pelejando;... este fantasiar que, imaginando,a vida me reserva.

Não me deterei, por hoje, em dois casos que podem prestar-sea dúvidas. Um é o de

Se tão alto imaginoque de vista me perco, peco nisto,desculpa-me o que vejo,que na edição de 1598 se lê comoSe tão alto imaginoque dé vista me perco, ou pecco nisto,desculpame o que vejo,

onde que de vista me perco deve ser “consecutiva” de tãoalto e não integrante de imagino, e o outro

imaginando sobre o famulento,quanto mais come mais está crecendo,na edição de 1598Imaginando como o famulento,Que come mais, e a fome vai crecendo.

Creio, todavia, tratar-se em ambos os casos de usos intransitivos,embora o segundo coloque um interessante problema de “regênciapreposicional” que seria deslocado desenvolver aqui.

Dos usos transitivos, os mais frequentes tanto na epopeia comona lírica, limitar-me-ei, por economia de espaço, a assinalar seremde variadas formas os functivos correspondentes à função “com-plemento directo”. Apenas acrescentarei que, a meu ver, nos ver-sos de onde partimos - E na língua, na qual quando imagina /Com pouca corrupção crê que é a latina- , o estatuto sintácticode a qual equivale ao deste complemento, uma vez que imaginarem X, entendido como verbo sintemático, exclui Y como “comple-

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mento directo” de imaginar.

5. Mereceriam um estudo pormenorizado os usos de qual, como“conjunção”, “adjectivo” ou “pronome” (e entre estes “relativo” ou“interrogativo”), no português quinhentista e particularmente emCamões. Não sendo este o lugar adequado para o fazer, limitar-me-ei a registar alguns dos seus usos como “relativo”, não sem, noentanto, ressalvar que, por facilidade de exposição, me refiro agoraao termo no sentido mais corrente na terminologia gramatical, quenão seria decerto o mais adequado numa exposição de outra natu-reza e com outros fins.

Mencionarei, de passagem, o facto, corrente no português qui-nhentista, de qual, como anafórico, poder ter por referência não umnome mas um “discurso”, caso onde hoje se diria que ou isso: pare-ce-me ser o que se vê em

Pelo qual, admiradaa Rainha infernal e comovida,te deu a desejadaesposa que, perdida,de tantos dias já tivera a vida.

Referirei ainda de passagem que qual ocorre como parte deuma determinação intra-sintagmática e, contrariamente ao que hojeé de regra em semelhantes casos, não apenas de determinaçãointer-sintagmática:

Não há cousa a qual natural sejaQue não queira perpétuo seu estado.

Mas interessa regressar à posição de qual em Na qual quan-do imagina. Fazer preceder e seguir este segmento de vírgulasimplicará que qual deixe de ser complemento de imagina e passe asê-lo de crê, o que manifestamente nem se coaduna com a sintaxeportuguesa, onde o “complemento directo” não pode ser precedidode preposição outra que a, nem faria sentido.

Documenta-se a mesma ou idêntica posição em outros passoscamonianos, como os dois seguintes:

Esta é a ditosa pátria minha amada,À qual se o Céu me dá que eu sem perigo

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Torne com esta empresa já acabada,Acabe-se esta luz ali comigo.Nisto ûa parte dela foi passada,na qual se tive algum contentamentobreve, imperfeito, tímido, indecente,não foi senão sementede longo e amaríssimo tormento.

Conforme se vê, vírgula que se colocasse depois de qual ex-cluiria este “relativo” da oração iniciada por o céu e por tive, res-pectivamente, e ligada à “principal” pelo conector se, o quer dizerque faria de qual complemento de acabe no primeiro caso e de foino segundo. Não é pois aceitável tal pontuação, como o não é igual-mente em

Quando a fermosa NinfaCom todo ajuntamento venerandoNa pura e clara linfaO cristalino corpo está lavando,O qual nas águas vendoNele, alegre de o ver, se está revendo:nem emMas vês o fermoso Indo, que daquelaaltura nace, junto à qual tambémde outra altura correndo o Gange vem.

6. Embora possa parecer estranha a quem menos familiarizado es-tiver com a sintaxe, cujo objecto não reside no estudo da ordem daspalavras (como já ouvi a alguém que tinha obrigação de não dizerdisparates destes), nem sempre importa às relações de determina-ção sintáctica a posição do “relativo”. Não poderei alongar-me ago-ra neste ponto, mas não deixarei ainda assim de mencionar um exem-plo de onde:

7. Veria erguer do sol a roxa face,veria correr sempre a clara fonte,sem imaginar a água donde nace,nem quem a luz esconde no horizonte

no qual, conforme é evidente, a água faz parte do functivo dosujeito de nace (a outra parte está na “3.ª pessoa” amalgamada

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neste sintagma verbal). Sem querer regressar hoje a tais problemas,não deixarei de notar termos aqui um caso de topicalização, de quecito apenas mais um:

Peço-vos que me digaisas orações que rezastesse são pelos que matastesse por vós, que assi matais.

Dizer, como por vezes ainda se ouve, que se trata de liberdadespoéticas ou de questões de estilo é esquecer que não há nem liber-dades daquelas nem efeitos destes que se situem fora da língua edeixem por isso de ter enquadramento linguístico descritível e expli-cável.

8. Recordarei, para terminar, que apenas me propus falar hoje deproblemas de qual como “relativo” em Camões: foi a esse propósi-to que, sem sair da obra camoniana, me ocupei de imaginar eimaginar em. Mas muito haverá que estudar acerca do assunto,bem como dos usos do mesmo monema com diverso estatuto sin-táctico, no português de Quinhentos e das fases que o precederame se lhe seguiram. Mesmo hoje, haverá um só monema qual oumais de um? Haverá “relativos” ou apenas um “relativo” com vari-antes contextuais? E será, de facto, “relativo” tudo quanto tradicio-nalmente dá por esse nome?

Deixo para outro dia tais problemas. Por hoje é tudo.

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Se exceptuarmos o invulgar estrelato que corresponde aCamões e a voga relativamente recente de Pessoa, poucos autoresportugueses terão suscitado mais adesão e inspirado mais estudosdo que Gil Vicente. Em alguns casos, estão já razoavelmenteinventariados os factores (intrínsecos e extrínsecos) que explicam afortuna - ainda assim desigual - de alguns desses “escritores maio-res”. Mas não em Gil Vicente. Perguntemos pois: Que motivoscontribuirão para que continue a sobressair desta forma no cânoneda Literatura Portuguesa o poeta lavrante da Rainha D. Leonor?Habituados desde sempre a esta centralidade, quase nunca nos ocor-rem formulações deste tipo. A verdade, porém, é que essa indaga-ção pode desde logo conduzir-nos a explicações interessantes (senão mesmo decisivas) a respeito do fluxo e das orientações dospróprios estudos vicentinos. Vejamos pois, sumariamente, que res-postas podem encontrar-se para estas questões.

Coloco em primeiro lugar um factor de ordem estética: preci-samente o que decorre da relativa extensão e variedade do corpusvicentino. São quase cinquenta peças, recobrindo os grandes géne-ros do teatro medieval europeu, e esta circunstância, que nuncapoderia ser ignorada, traduz-se, por si só, num raríssimo valorpatrimonial, que abrange a Língua (captada numa impressionantemultiplicidade de níveis e registos) e as formas artísticas moldadas apartir dela e a partir de uma tradição de base peninsular e extra-peninsular, que incluía o Lirismo, a Narrativa e as formas dialogadasem geral, sem falar nas inúmeras manifestações não discursivaspróprias da convivialidade palaciana; vem depois outra condicionanteque, embora sendo de natureza cívica e política, se revela igualmen-

Os estudos vicentinos:balanço e perspectivas

José Augusto Cardoso Bernardes,da Universidade de Coimbra

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te poderosa: refiro-me ao próprio estatuto de dramaturgo quinhen-tista, que Gil Vicente partilha com relativamente poucos escritoresde Língua Portuguesa e que se vê reforçada com a aura de teste-munha viva desse “memorial eterno da portugalidade” que é o sé-culo XVI; e termino este inventário lembrando a absolutaexcepcionalidade da Copilaçam no panorama da criação teatralportuguesa, em termos de qualidade (e até de quantidade), conside-rando não apenas o século de Quinhentos, mas todos os que atéhoje se lhe seguiram. Em função dessa excepcionalidade, pode afir-mar-se que, para além dos seus méritos próprios, a escrita de GilVicente vale também pelo seu desacompanhamento, o mesmo édizer, que contrasta com os silêncios que o precedem e se lhe se-guem na história do teatro português.

À primeira vista, são estas as razões principais que fazem deGil Vicente um autor incontornável da Literatura Portuguesa, aomesmo tempo que lhe garantem um lugar muito especial no nossoimaginário cultural, como crítico dos desconcertos de uma épocaonde, como em nenhuma outra, se entrelaçam sem cessar as nos-sas Grandezas e Misérias.

E são também estas as razões que explicam o grande caudalbibliográfico que tem inspirado. Só nos vinte anos que medeiamentre 1975 e 1995, puderam recensear-se 620 contributos, contandoedições, traduções e estudos gerais ou localizados1. A este númerohaveria ainda que somar os trabalhos publicados desde 95 para cá:tomando por base apenas o ritmo médio das duas últimas décadas,chegamos à apreciável média de trinta e cinco trabalhos por ano.

No âmbito de um Congresso comemorativo de 500 anos deLíngua Portuguesa no Brasil, pareceu-me justificável delinear umavisão esquemática dos estudos vicentinos tal como eles se configu-ram hoje, tentando depois captar algumas das tendências que sedesenham num futuro mais próximo, em função das muitas tarefasque permanecem por cumprir. A escolha de tal assunto radica evi-dentemente no meu próprio interesse; mas tenho esperança de quea minha opção possa ser tolerada no temário desta Reunião científi-ca. De facto, se entendermos, com Eugenio Coseriu, que a Litera-tura corresponde à plenitude da Língua, não há dúvida de que osautos de Gil Vicente consubstanciam uma das mais completas ediversificadas realizações estéticas da Língua Portuguesa de sem-pre. É nessa perspectiva (lateral) que aqui gostosa e honrosamenteme associo à celebração da Língua materna de Gil Vicente, que porinsondável fortuna, é ainda a nossa.

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2. Como é sabido, a percepção moderna da obra de Gil Vicentedeve-se, em Portugal, ao Romantismo. Há desde logo boas razõespara acreditar que tenha sido Almeida Garrett a recomendar aBarreto Feio e Gomes Monteiro (dois judeus de origem portuguesa,radicados em Hamburgo) a reimpressão da Copilaçam, o que es-tes fizeram a partir de um exemplar da 1ª edição que se encontravana Biblioteca da Universidade de Göttingen. E foi a partir desteacontecimento (1834) que Gil Vicente se tornou conhecido e estu-dado por uma plêidade de filólogos dos finais do século passado eprincípios deste, de onde é justo destacar Carolina Michaëlis deVasconcelos e Anselmo Braamcamp Freire2.

Apesar dos esforços de contextualização que foram sendo fei-tos, a mitologia romântica (que, pelo menos em Portugal conviveu,sem litígios de maior, com o positivismo filológico) depressa se apro-priou da figura de Gil Vicente, transformando-o designadamentenuma encarnação da vox populi, espécie de génio sem suportenem explicação racionais (como se sabe, na teogonia romântica, osgénios não necessitam de um suporte histórico rigoroso).

E não se estranha que essa lendarização (como tantas outrasque tiveram por objecto figuras literárias) tenha acabado por exce-der, em muito, os limites cronológicos do próprio Romantismo. Nemos trabalhos de António José Saraiva que, um tanto incompreendida-mente, em finais de 30, coloca a obra vicentina na senda de umavasta e rica tradição européia, conseguiram obstar à ideia de que GilVicente é uma espécie de meteoro desacompanhado no firmamentopolítico e idiomático da Península.

Grande parte do esforço de nomes cimeiros do vicentismo comoPaul Teyssier, Luciana Stegagno-Picchio, Stephen Reckert ouThomas F. Hart (para só citar quatro nomes vivos e activos, cujolabor vem desde, pelo menos, a década de sessenta) pode ainda serlido como uma tentativa de desromantizar o dramaturgo português.Mas em vão. A avaliar pelo que se vê ainda hoje escrito(inclusivamente entre os meios universitários), não se pode aindaprescindir totalmente desse logotipo, até porque —reconheçamo-lo— ele se enquadra exemplarmente no nosso esquema mítico depensar e de sentir.

3. Olhando para o índice de nomes com que se encerra o jácitado volume da Bibliografia de Stathatos e destacando de entreeles os que são responsáveis pelos contributos de melhor qualidade,verifica-se, em primeiro lugar, que o inventário dos vicentistas

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incontornáveis vai aumentando a bom ritmo e, ao lado dos consa-grados nos anos 60 e 70, tornou-se já obrigatório referir um bompunhado de investigadores, dos quais destaco María Luisa Tobar,Armando López Castro, Manuel Calderón Calderón, Stanislav Zimic,Constantine C. Stathatos ou João Nuno Alçada.

Como não poderia deixar de ser, por entre os títulos mais re-centes, detectam-se muitas duplicações de perspectiva e de resulta-dos obtidos; mas também se vêem claros movimentos de renova-ção numa área que, aliás, durante muito anos, permaneceu seques-trada pela história literária (em sentido estrito), quase imune, portan-to, aos ventos novos que vieram fecundar as metodologias dos estu-dos literários e teatrais.

Continua a predominar, quantitativamente, a tendência para oestudo isolado de um só auto, correspondendo, muitas vezes, a in-cursões esporádicas e de fôlego menor de estudiosos não reinciden-tes; mas são já em número significativo os estudos transversais queabrangem os autos ou pelo menos alguns conjuntos de peças, deli-mitados em termos cronológicos, temáticos ou genológicos: a farsa,a comédia, a representação da Mulher, do Natal, do Amor, a projec-ção cénico-teatral dos textos, etc. Ainda numa linha estruturante eglobal, a Lírica vicentina, cuja importância foi desde sempre intuída,vem merecendo uma atenção crescente, consubstanciada em edi-ções antológicas, que não deixam de surpreender quem tem dosautos um conhecimento mais rarefeito e em estudos de sólida fun-damentação que religam Gil Vicente à grande tradição da lírica ibé-rica de Quatrocentos, nas formas e nos temas, ao mesmo tempoque se busca o significado global da Lírica enquanto correlatodialéctico de outras formas de expressão (V. Reckert, CalderónCalderón e López Castro).

4. Perante sinais tão encorajadores, apetece pensar que osestudos vicentinos se encontram a caminho do lugar que lhes com-pete por direito próprio no âmbito da história literária (portuguesa epeninsular, pelo menos). E assim há-de ser, seguramente. Masconvém não embarcar em contentamentos de suficiência, umavez que as lacunas são ainda numerosas e de grande monta. Sempretensões de exaustividade, anotemos apenas cinco: as edições;a Língua; as matrizes estéticas; as coordenadas contextuais e ossentidos.

4.1.Um dos sinais que melhor reflecte o grau de desenvolvi-

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mento de uma determinada área dos estudos literários é, como sesabe, o grau de fiabilidade que merecem os textos diponíveis. E,para o caso de Gil Vicente, o mínimo que se pode dizer é que eleestá longe de ser satisfatório. Continuam tímidos os passos dadospara se chegar a uma edição crítica. Em 1965 (ano em que secomemorou o quarto centenário do nascimento do autor) chegou aser nomeada uma Comissão Nacional para trabalhar criticamenteos textos vicentinos. Passadas mais de três décadas, os dedos deuma só mão chegam para contar as edições que podem reclamar-se de críticas (e creio que, das que existem, nenhuma veio a benefi-ciar desse fervor comemoracionista). Em contrapartida, cresce quaseincontavelmente o número de edições didácticas, em suporte escri-to e também já em suporte informático, repetindo, por sistema, oserros de leitura, tão favorecidos, como se sabe, pelas deficiências daprópria editio princeps. São as consequências normais da presen-ça de Gil Vicente na Escola de massas, onde aparece inevitavel-mente reduzido a meia-dúzia de chavões, que oscilam sobretudo emfunção das conjunturas cívico-políticas e em resultado do caprichoincontrolado dos autores de programas e manuais.

Mais inaceitável do que a escassez de edições críticas é, po-rém, a penúria de edições globais fidedignas. No mercado portugu-ês encontram-se hoje apenas a edição da Lello & Irmão (que selimita a reproduzir, em aparato de luxo, a que Mendes dos Remédiospreparou em 1907 para a colecção Subsídios para a História daLiteratura Portuguesa); e encontra-se ainda a edição de CostaPimpão que, apesar da sua melhor qualidade científica, é “artística”,o que significa dizer que é ainda mais cara, além de pouco prática,pelas suas invulgares dimensões. A edição dos clássicos Sá da Costa(preparada por Marques Brag) cumpriu razoavelmente a sua missãona Escola portuguesa ao longo de trinta anos mas já só se encontraem alfarrabistas; até a que Maria Leonor Buescu preparou para aImprensa Nacional (com normalização de texto), e que temalimentado o mercado escolar nos últimos anos, se encontra já forada vista dos potenciais compradores.

O panorama das traduções, por sua vez, também está longe deser excelente. Para além das Barcas, do Auto da Alma e da SibilaCassandra (peças muito traduzidas para quase todas as línguaseuropeias na primeira metade deste século) tem-se verificado umanatural curiosidade pelos autos que reflectem as circunstâncias daexpansão, inspirando um número razoável de versões, nomeada-mente em Língua Inglesa. Menção muito positiva, a este respeito,

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merecem as traduções francesas coordenadas por Paul Teyssier,que começaram a vir a lume muito recentemente, sob a chanceladas Éditions de la Chandeigne. Mas se a este excelente exemplo,quiséssemos contrapor um fenómeno de sinal contrário, não seriadifícil: bastaria aludir às edições do teatro exclusivamente castelhanode Gil Vicente (feitas por espanhóis e publicadas em Espanha) e aoutras feitas em Portugal, deliberadamente expurgadas dos autosem castelhano ou até dos textos bilingues.

As insuficiências de base verificadas nestes dois planos nãopode obviamente deixar de condicionar a produção crítica, uma vezque daí resultam dificuldades naturais no acesso aos textos. Destemodo, a necessidade de conjugar esforços para ultrapassar esteestado de coisas, num sentido duplo e convergente impõe-se comabsoluta urgência:

a - elaborar uma edição fiável dos textos, o que significa, parajá, cotejar as lições existentes e expurgá-las dos muitos lapsos defixação que resultam da leitura deficiente da Copilaçam que é, comose sabe, ão patrimonialmente preciosa quanto filologicamente de-sastrada. É necessário também estabelecer critérios de anotação,que poderão ir desde o esclarecimento vocabular localizado e co-textual (tarefa que, em muitos casos, se revela espinhosa) até aocomentário estético e ideológico, só realizável por equipas numero-sas e bem coordenadas.

b - depois - ou paralelamente? - deve levar-se por diante a tãoalmejada edição crítica, muito mais trabalhosa, mas ainda assimperfeitamente exequível e, sobretudo, amplamente justificada emface dos benefícios que promete.

4.2. Na posse destes dois elementos de trabalho seria, emdúvida, muito mais fácil deitar ombros a tarefas de outra índole,enfrentando problemas que desde há muito se encontram suspensos.Era preciso voltar à questão da Língua, em primeiro lugar. Sobreeste assunto, Paul Teyssier disse praticamente a primeira e a últimapalavra. Mas disse-a em 1959. Na mesma perspectiva ou adoptan-do outros enfoques, impõe-se retomar o estudo da Langue vicentina,em correlação com os vários registos do discurso literário e não-literário da mesma época, nos domínios idiomáticos do Castelhano edo Português, através de cruzamentos que os recursos informáticosvieram entretanto facilitar enormemente.

4.3. É também necessário reexaminar a questão das matrizes

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da arte vicentina. Concebido durante muito tempo como uma aveinsólita nos céus rarefeitos da dramaturgia portuguesa, Gil Vicentepermanece ainda pouco integrado na tradição peninsular e europeia,em geral, tanto em termos de ascendência como em termos deprojecção. Questões como a dos géneros teatrais ou a dos própriosesquemas de encenação muito terão a ganhar com este trabalho deinserção que liberte a obra vicentina das fronteiras políticas e atéidiomáticas a que tem estado confinada. Neste plano particular, éóbvio que os estudos vicentinos muito têm a ganhar com o grandeincremento de publicações de textos dramatúrgicos, inéditos ou re-ajustados em bases filológicas mais seguras, que se vêm fazendo noespaço francês e espanhol e bem assim dos estudos acerca doteatro tardo-medieval (nomeadamente o de expressão francesa);como podem beneficiar significativamente com os novos quadrosde leitura abertos pela semiologia do texto dramático, definitivamen-te concebido, não já como objecto estritamente linear e passivo mascomo objecto poligonal e transversalmente codificado.

4.4. Outro aspecto que carece de atenção reforçada prende-se com as coordenadas contextuais que balizam a produção e arecepção dos textos vicentinos. Superados há muito os limites e osexcessos do contextualismo determinista que marcou os estudosliterários até à primeira metade deste século e preservada aespecificidade do fenómeno estético, é incompreensível que se nãoaproveite o contributo das disciplinas historiográficas (História daArte, das Mentalidades, dos planos Institucional e Político). Parale-lamente ao enraizamento estético, torna-se indispensável esclare-cer melhor os parâmetros da convivialidade cortesâ em Portugal, noprimeiro terço do século XVI, ajustando, para já, a leitura dos autosao que de novo se tem vindo a publicar sobre estas matérias. Nosanos mais recentes, têm surgido contributos importantes, nomeada-mente no que se refere à figura da Rainha D. Leonor de Lencastree às linhas de espiritualidade que lhe são próximas e cuja repercus-são no teatro vicentino se vai tornando cada dia mais nítida (Carnei-ro de Sousa); e também se tem progredido no conhecimento doséculo XVI, em geral, em termos sócio-políticos e mentais, abrindocaminhos para a aferição da importância que em Gil Vicente detema tradição popular, seja ela vista como um depósito cultural que ospalácios não excluíam, seja ela entendida como uma opção estéticaconsequente (Alves das Neves).

Durante muitos anos, o teatro vicentino foi assumido como

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ponto de partida para aceder à compreensão do século XVI, funci-onando, nessa medida, como fonte quase irreservada da maioriados historiadores; é chegado o momento de estes enriquecerem osestudos vicentinos com conhecimentos hauridos em fontes diferen-tes. Só asim será possível discriminar aquilo que em Gil Vicente émanifestamente testemunhal, aferir o grau da transformação estéti-ca que a partir daí se operou e derimir, enfim, com senso histórico ehermenêutico, velhas questões dos estudos vicentinos como sejamo realismo, a sátira ou o cómico.

4.5. Efectuadas estas operações prévias, será altura deaprofundar os sentidos da obra vicentina, concebida não apenascomo um aglomerado de peças, mas como um macro-texto, ouseja, uma totalidade orgânica apoiada em linhas de coerência temáticae ideológica. Existe verdadeiramente um ideário vicentino? Comose projecta ele através do jogo teatral? Quais as componentes esté-ticas que lhe dão corpo? Que tipos de correlação se estabelecementre elas?

Poderão parecer demasiado gerais estas perguntas. Mas, defacto, se não erro, são elas que hoje melhor ilustram as expectativasdos devotos vicentistas. Daqueles que estudam os textos e daquelesque, pura e simplesmente, mantêm com eles uma relação de curio-sidade fruitiva e indagante.

Independentemente das respostas que possam vir a encon-trar-se para estas questões, talvez se possa reconhecer desde já autilidade da sua simples formulação, uma vez que ela se revelasusceptível de abalar alguns clichés que vêm circulando comtrânsito demasiado fácil. Como era inevitável, o lugar central queGil Vicente ocupa no cânone português contribuiu para umamineralização excessiva do conhecimento que sobre ele tem sidodivulgado. Costuma dizer-se, aliás, que essa é a “defesa” dos clás-sicos e é também, sem dúvida, o segredo do seu sucesso numdeterminado modelo de Escola. Resta saber se essa situação secompadece com a Escola que todos afirmamos querer construir:activa e não dormente, criativa, transformativa e não redutoramentepatrimonialista. Seja como for, o que não pode aceitar-se é queesta visão pobre possa ser transposta para círculos de maior exi-gência intelectual, como a própria Universidade.

A 7 de Junho de 2002 completar-se-ão 500 anos desde que GilVicente, disfarçado de rústico saiaguês irrompeu na câmara da ra-inha parturiente para pronunciar o famoso “Pardiez” fundador do

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teatro português. Espera-se que essa circunstância venha a ser de-vidamente assinalada no plano cívico-cultural. Mas epera-se sobre-tudo que, por essa altura, estejam já supridas algumas das lacunasque aqui apontei, mormente as que respeitam à falta de textoscredíveis.

Em outras ocasiões se hão-de fazer outros balanços dos es-tudos vicentinos para apontar outros desígnios, suscitados peloaparecimento de novos dados e pela emergência de novas expec-tativas. É verdade que um clássico é “aquele que nunca acaba dedizer o que tem para dizer” (Ítalo Calvino). É plenamente o casode Gil Vicente: ouvi-lo e inquiri-lo cada vez mais e de ângulosdiferentes é um imperativo ético e há-de ser um desafio constan-te. E não há dúvidas de que ele está mais do que preparado paraessa prova.

Referências bibliográficas

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CALDERÓN CALDERÓN, Manuel. La lírica de tipo tradicionalde Gil Vicente. Dissertação de Doutoramento apresentada à Universida-de de Barcelona, 1992 (policopiada).

DIAS, João José Alves das. Portugal do Renascimento à crisedinástica (Série ‘Nova História de Portugal’, dirigida por Joel Serrão eOliveira Marques). Lisboa, Editorial Presença, 1998.

LÓPEZ CASTRO, Armando. “La lírica de Gil Vicente”. In Actas delIII Congreso de la Asociación Hispánica de Literatura Medieval(Salamanca, 3 al 6 octubre de 1989). Ed. María Isabel Toro Pascuala. Vol.I, Salamanca: Biblioteca Española del Siglo XV, Departamento de Litera-tura Española e Hispanoamaericana, 1994. p.517-524.

— “Las cantigas paralelísticas de Gil Vicente”. In Actas do IV Con-gresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval (Lisboa, 1-5 deOutubro de 1991). II: Literatura Medieval. Organização de Aires Nasci-mento e Cristina Almeida Ribeiro. Lisboa, Cosmos, 1993. p.175-185.

RECKERT, Stephen. “A Lírica vicentina: estrutura e estilo”. In Es-pírito e Letra de Gil Vicente. Lisboa, INCM,1983. p. 135-174.

— “Las poesías del Auto Pastoril Castellano. Edición, comentario ynotas”. In Homenaje a Eugenio Asensio. Madrid, Gredos, 1988. p.379-389.

SOUSA, Ivo Carneiro de. A Rainha da Misericórdia na história daespiritualidade em Portugal na época do Renascimento. Dissertaçãode Doutoramento em Cultura Portuguesa apresentada à Faculdade deLetras do Porto, 1992 (policopiada).

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Notas1 Esta contabilidade exacta figura na Bibliografia vicentina que tem

vindo a ser publicada por Constantine Stathatos e que conta já doisvolumes: A Gil Vicente Bibliography (1940-1975), London, Grant &Cutler Limited, 1980 e A Gil Vicente Bibliography (1975-1995), With aSupllement for 1940-1975, Bethlehem: Leigh University Press/London:Associated University Press,1977.

2 Para uma resenha dos estudos vicentinos do século XIX aosnossos dias veja-se o meu Sátira e Lirismo, p. 10 e s.

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Em defesa da Língua Portuguesa

Leodegário A. de Azevedo Filho, da UERJ e UFRJ

A expressão língua literária, por muitos desconhecida,estabelece imediatas relações de intersecção entre dois campossemânticos naturalmente interligados: o da língua e o da literatura.Em tal espaço comum logo se configuram problemas específicos,já que toda e qualquer linguagem literária pressupõe a existênciade uma língua. Assim, do ponto de vista da língua, bem sabemosque há duas posições na lingüística moderna: a que vem deBloomfield e a que vem de Sapir. Para o primeiro, apenas a línguafalada devia ser objeto de estudo da lingüística, enquanto o segundosempre entendeu que, de tal objeto, não se podia excluir a línguaescrita. Portanto, de um ponto de vista literário, o que vai importaré o estudo de uma língua a serviço de uma criação estética. Em taluso, por meio da língua, cada povo vai exprimir a sua própria cultura,de tal forma que o mesmo sistema lingüístico pode servir adiferentes culturas, como no mundo lusofônico, que se constitui dePortugal, Brasil, Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde,São Tomé e Príncipe e, agora, também Timor Leste. São naçõesirmanadas pela mesma língua, mas culturalmente diversificadasentre si. Pois bem, em função dessa diversidade cultural, os grandesescritores, muitas vezes, se afastam da norma da língua escrita,para a criação de um estilo individual. Sobre o assunto, ouçamosinicialmente o que escreveu Álvaro Lins: “...um escritor tem odireito de violar as regras gramaticais de sua língua, para a criaçãode um estilo pessoal. Este é um direito legítimo, com o qual asliteraturas se enriquecem e as gramáticas também. Mas serápreciso, num caso dessa espécie, ter o instinto da língua, a intuiçãoda literatura, o senso da vida artística.” (Jornal de Crítica, 2ª

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série, p.161).Aliás, antes de Álvaro Lins, mas no mesmo sentido, já havia

observado Mário de Andrade: “É quase lapalissada afirmar quesó tem direito de errar quem conhece o certo. Só então o errodeixa de o ser, pra se tornar um ir além das convenções, tornadasinúteis pelas exigências novas de uma nova expressão.” (Oempalhador de passarinho, p.215). E daí se conclui que a língualiterária, sem deixar de ser uma modalidade da língua culta ouexemplar, apresenta liberdade de expressão artística, por vezesinfringindo-se a norma criadoramente. Em poucas palavras,entende-se por língua literária escrita a língua da literatura, poisesta se sobrepõe à língua falada, embora dela se alimente, paramelhor espelhar a cultura de um povo. Assim, a penetração defatos da língua falada na língua escrita da literatura, com naturaisdesvios da norma lingüística gramaticalmente institucionalizada, écomum a todas as literaturas, não sendo a nossa nenhuma exceção.Sem conhecimento da norma culta ou exemplar, será sempreadmissível que, por ignorância, se fale ou escreva mal. Mas umescritor, conhecendo a norma culta da sua língua, dela pode afastar-se estilística e criadoramente. Até porque todos sabemos que hádiferenças entre a língua escrita, em suas diferentes modalidadessempre ajustada à norma culta, e a língua falada, em seu cursomais livre e espontâneo.

Tudo isso facilmente se verifica quando se cotejam as línguasliterárias de Portugal, do Brasil e das Nações Africanas irmanadaspelo mesmo sistema, nelas logo se depreendendo múltiplos fatoresde convergência e de divergência. Como é evidente, a linguagemliterária brasileira, bem assim a linguagem literária das naçõesafricanas aqui citadas, regionalmente vão exprimir a própria cultura,não sendo exatamente a mesma de Portugal. Lá, na antiga Metrópole,existem falares, como o minhoto, o alentejano ou o algarvio, comoaqui temos falares regionais do Norte, Nordeste, Centro e Sul, omesmo ocorrendo em África. A língua, como sistema, é claro que éa mesma. Mas comporta, tanto em Portugal, como no Brasil e NaçõesAfricanas, natural diversidade de normas e de usos. Conseqüen-temente, cai por terra o ideal fantasioso e inútil de uma língua literáriaintangível ou desligada da realidade cultural dos povos que a falam.Na prática, embora persista o sentimento da língua comum, em faceda integridade do sistema com todas as suas estruturas fônicas emórficas, temos plena consciência da divergência dos fatoresculturais. Dito de outro modo, Portugal se insere numa cultura

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européia, enquanto as Nações Africanas pertencem a outro mundo.E o Brasil se integra na América.

Mas nada disso autoriza a pensar-se na cisão estrutural dalíngua comum, nem agora, nem mesmo num futuro próximo ouremoto. No Brasil, estamos mesmo convencidos do contrário, porforça da nossa unidade territorial e por força do ensino sistemáticoda nossa língua nas escolas, numa situação que deve prolongar-se, no próprio interesse nacional, indefinidamente. Por isso mesmo,as duas línguas literárias, a de Portugal e a nossa, são variantescultas do mesmo sistema lingüístico. No caso, seria muita inge-nuidade supor que a presença cultural do elemento indígena e doelemento africano em nossa sociedade de pluralismo étnico, quenão exclui ainda a importante presença de imigrantes aloglotas,seria muita ingenuidade supor que tudo isso pudesse determinar amudança, de todo indesejável, da nossa língua comum. Por certo,haverá vários fatores que vão responder pela variedade de normase de usos, mas não pela diversificação do sistema lingüístico, poiseste absorverá, como historicamente o tem feito, todas essasdiferenças culturais. Aliás, a grande tendência do mundo modernoé para fortalecer, jamais para desintegrar, os grandes blocoslingüísticos, cujo prestígio universal vai decorrer exatamente dasua unidade na variedade, não se querendo outro destino para omundo lusofônico. Em suma, temos unidade na variedade, comoem todas as grandes línguas de civilização escrita, a exemplo dainglesa, da francesa ou castelhana. E, com tal unidade, por sermosa sexta língua materna mais falada no universo, devemosserenamente encarar o futuro.

Em conclusão, o de que todos necessitamos é do fortalecimento,da valorização e do melhor conhecimento da língua nacional. Assimcomo os Estados Unidos da América assumiram a língua inglesa eos países hispano-americanos a língua castelhana, a nação brasileirasó poderia adotar o português como língua nacional. Mas isso, éclaro, sem qualquer tutela da antiga Metrópole, pois a língua pertencea todos os seus usuários e será aquilo que todos juntos fizermosdela. Nem se fala aqui, em termos de idioma nacional, nenhumalíngua indígena ágrafa, entre centenas que aqui havia durante acolonização. Também não se fala, sempre em termos de idiomanacional, nenhuma língua africana ágrafa, entre as muitas que paracá vieram com os escravos. A propósito, ninguém ignora que oportuguês da América teve o seu vocabulário enriquecido comempréstimos lexicais de procedência indígena, africana e de povos

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Leodegário A. de Azevedo Filho - Professor Titular da UERJ e daUFRJ e Presidente da Academia Brasileira de Filologia.

aloglotas que para o Brasil imigraram. Mas tais empréstimos tiveramque se adaptar fonomorfologicamente à estrutura do português, paraentrar na língua. Nem vai ser qualquer forma ou qualquer tentativade globalização que nos levarão a marginalizar o que é essencialmentenosso: a língua que bebemos com o leite materno, pois aí estão osnossos grandes escritores, que muito bem souberam enxergar agrandeza e a beleza da língua comum em sua riquíssima variedade,respeitando-se até mesmo o espírito democrático que circula pelaflexibilidade de algumas normas, sempre maleáveis, para melhorexpressão das particularidades idiomáticas de cada povo luso-falante.Juntos, portanto, entoemos, todos nós, daqui e de além mar, os versosimortais de Antônio Ferreira: “ Floresça, fale, cante, ouça-se e viva/a portuguesa língua; e, lá onde for,/ senhora vá de si, soberba ealtiva.” O que se torna urgente é a preservação carinhosa da línguaportuguesa, resguardando-se sempre a sua expressão brasileira, poisela é nossa e nós somos dela.

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1. Introdução

Num colóquio em que se aborda essencialmente o problemada Língua Portuguesa no universo luso-brasileiro, gostaria deapresentar um texto português do século XVII ainda escrito emlatim e que apresenta uma iconografia riquíssima, em grandeparte, ainda inédita.

Evidentemente, não poderemos aqui analisar todas as ima-gens. Contentar-nos-emos em apresentar o volume nas suas gran-des linhas, mostraremos em slides o conjunto das imagens dentreas quais seleccionaremos apenas duas para leitura mais atenta.Essa exemplificação bastará, cremos, para dar uma ideia do inte-resse e da riqueza do texto em questão.

Em meados do século XVII, é publicado em Londres, numbelíssimo volume ilustrado, o texto do Dr. António de Sousa deMacedo intitulado Lusitania liberata. A obra, escrita em latim,defende a causa portuguesa perante o público culto e as cortesestrangeiras. Dois exemplares da obra pertencem a colecçõesportuguesas: a da Biblioteca Nacional de Lisboa e a do Arquivoda Santa Casa de Misericórdia de Lisboa.

A Lusitania liberata ou ARestauração portuguesa em imagens

Análise de algumas das gravuras da obra de António deSousa de Macedo sobre a Restauração.

Lilian Pestre de Almeida,da Universidade Independente, Lisboa

Em memória de dois latinistas amigosProfessor José Correia Pinto e Professor Baltasar Xavier.

Para Maria Helena Kopschitz

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O exemplar pertencente à Misericórdia está em muito bomestado e é sobre ele que redigimos o presente texto. No Catálogodas obras impressas no século XVII da Colecção da Santa Casada Misericórdia de Lisboa1, o volume é descrito, sob o nº 369,como se segue:

MACEDO, António de Sousa de, 1606 - 1682.

Lvsitania liberata ab injusto Castellanorum dominiorestitvta, legitimo Principi Serenissimo Ioanni IV. Lusitaniæ,Algarbiorum, Africæ, Arabiæ, Persiæ, Indiæ, Brasiliæ &c. Regipotentissimo; Summo Pontifici, imperio, regibus, rebus-publicis,cæterisq[ue] orbis christiani princibus/ demonstrata per D.Antonium de Sousa de Macedo Lusitanum, aulæ generosumRegij Ordinis Cristo Equitem …; Opvs historice-juridicum,materiarum varietate jacundum; Complectens ultra principaleinstitutum omnes Lusitaniæ notitias (quoad terram, gentem,potentiam & eventus ab orbe condito) notatu digniores necnon plurimas aliarum provincarum; Cum duplici indice alterocapitum in principio voluminis altero rerum in fine … - Londini:in officinâ Richardi Heron, 1645. - 3 v. em 1 t.; 2º (30 cm). - BarbosaMachado 1 p. 401, NUC NS 0744931. - V. 1: [3 br.], [27], 467, [1br.] p. - Na p. [1] o retrato de D. João IV. - Na p. [2] o frontispícioalegórico representando o triunfo do dragão da Casa de Bragançasobre o leão de Castela. - Na p. 58 o retrato de D. Afonso Henriques.- Na p. 93 a visão de Ourique. - Na p. 143 o retrato de D. João I. -Na p. 165 a árvore genealógica dos descendentes de D. Manuel I.- Grav. John Droeshout. - Notas impr. marginais. - Assin.: [ ]6, A34,A64, A2, B-Z4, Aa-Zz4, Aaa-Nnn4, Ooo2. - V. 2: [2], 540 [i. é 70]p.- Na p. [2] a fénix renascida. - Grav. John Droeshout. - Notas impr.marginais. - Paginação e assin. contínuas; paginado a partir de 471.- Assin.: [ ]2, Ppp-Yyy4, Zzz2. - V. 3: [2], 794 [i. é 252], [22]p. - Nap. [2] gravura alegórica a representar o dragão da Casa de Bragança.- Na p. 560 a sagração de D. João IV. - Na p. 650 o triunfo de D.João IV. - Grav. John Droeshut. - Na p. 708 o dragão e a esferaarmilar. - Na p. 764 o escudo das armas reais de Portugal. - Na p.792 alegoria a D. João IV. - Grav. John Droeshut. - Notas impr.marginais. - Paginação e assin contínuas. paginado a partir de 543.- Assin.: [ ]2, Aaaa-Ssss4, Tttt6, Vvvv-Zzzz4, Aaaaa-Iiiii4, Kkkkk-Nnnnn2.

Algumas folhas manchadas e rasgadas e encadernação ras-

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gada e com a pasta posterior solta.- Falta a folha “A2” da primeirasequência.- Pert.: Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.- Enca-dernação portuguesa do século XVIII em pasta de papelão revestidaem pele castanha e decorada com dois frisos gravados a seco elombada decorada com frisos gravados a seco e motivos florais emdourado e o título em dourado.- Cota antiga: Est.13.C.5.L.15.- Do-cumentação iconográfica: estampa 1, 24 e 25.

L.A.XVII.0609 1-3

A obra possui importante iconografia, tanto do ponto de vistaplástico como histórico, em parte ainda inédita. São 13 gravurassobre figuras e acontecimentos históricos, antigos e contem-porâneos. Das gravuras, apenas 5 foram anteriormente publicadas:as nº 1, nº 3, nº 4, nº 9 e nº 11. A notícia acima, da autoria de JúlioCaio Velloso, faz a listagem não só de toda a série como propõeuma primeira identificação dos temas, sem esgotar-lhes, eviden-temente, a significação.

Note-se, por um lado, que três gravuras da LL são reproduzidasno próprio Catálogo da Misericórdia de 1994: a estampa 1 coma sagração de D. João IV , a estampa 24 com o triunfo de D. JoãoIV e estampa 25 com a visão de Ourique. Por outro lado, o retratode D. Afonso Henriques reproduz um modelo iconográfico bas-tante difundido. A tradição criou um modelo do Fundador : umguerreiro de longas barbas que corresponde, de certa forma, àimagem de Carlos Magno, “l’empereur à la barbe fleurie”, daChanson de Roland.

Enfim, duas outras estampas da LL servem de ilustração aoúltimo número da revista Oceanos com as seguintes legendas:

a) na p. 91, D. João coroado pelas figuras alegóricas da Jus-tiça e da Paz (imagem correspondente, no Catálogo da Miseri-córdia, à sagração de D. João IV) e

b) na página 146, os astros auguram bons sucessos ao Portu-gal restaurado (imagem correspondente, no mesmo Catálogo, àgravura do escudo de Bragança e a esfera armilar).

Temos assim cinco gravuras totalmente inéditas e originais.O volume de António de Sousa de Macedo constitui um texto

importante no debate sobre a Restauração de Portugal e sustentaa ascensão à coroa do duque de Bragança, apresentado pela pro-paganda espanhola como um rebelde e usurpador. É material-mente, sem dúvida, o mais belo volume publicado sobre Portugal

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no século XVII.Consideramos aqui as 13 gravuras na ordem do seu apareci-

mento em confronto com o texto que as acompanham. Assim, emcada gravura buscamos fazer uma leitura articulada da mensagemicónica e linguística. A relação do texto com a imagem é, na maioriadas vezes, complementar e ideológica. Diante da polissemia (ouambiguidade) da imagem, as inscrições em latim ancoram, no espí-rito do leitor, um determinado significado que se torna, assim, predo-minante e privilegiado. As inscrições latinas criam uma teia simbóli-ca de significados que buscamos destacar.

Observe-se por fim que as gravuras distribuem-se de formairregular no volume: há seis gravuras no Livro I; uma no Livro II eseis no Livro III.

No Livro I, as duas primeiras ligam-se a acontecimentos con-temporâneos: o retrato do novo Rei e o frontispício alegórico coma luta dos dois animais simbólicos, o dragão e o leão. Seguem-seos momentos fortes da evolução do reino português até a crisedinástica: Afonso Henriques, Ourique, D. João I, a árvoregenealógica de D. Manuel I.

No livro II, a imagem da fénix renascida faz a transição entreo passado de Portugal e a Restauração.

No livro III, todas as gravuras sem excepção dizem respeitoao novo rei português.

2. A série das gravuras da Lusitania liberata: algumasimagens a título de exemplo.

Para dar uma ideia do texto, seleccionamos apenas 4 ima-gens, as de n° 4, 6, 8 e 11.

Gravura nº 4, Livro I, p. 93: Visão de OuriqueA gravura, de tamanho menor, representa a visão do primei-

ro rei de Portugal antes da batalha de Ourique. De todas as gravu-ras da LL é sem dúvida a mais ingénua do ponto de vista da com-posição e a mais ideologicamente marcada. Está assinada(Drœshout _culp) no canto inferior esquerdo.

Quatro textos a companham:a) o primeiro, no alto da página, glosa de certa forma o título

do volume:

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Ad Lusitanima liberatam(à Lusitânia liberada)

b) o segundo identifica o personagem ajoelhado no centro ede mãos postas:

ALPHONSUS. HENRICVS.I.REX. LVSIT.(Afonso Henriques, 1º Rei da Lusitânia)

c) a frase em diagonal estabelece a ligação entre a visãoceleste e a cena terrestre, ou seja entre o Cristo crucificado e oRei de joelhos:

uolo in te et in femine tuoimperium mihi stabilire

O texto em diagonal corresponde ao discurso divino: é o pró-prio Cristo que assume o sentido da História de Portugal (queroem ti e na mulher o teu império estabelecer para mim)

d) o quarto é o texto da inscrição abaixo da gravura propria-mente dita:

Quid mea miratur mundus, quid facta meorum:Non ego, non illi, sed, sibi, Christus agit.

(Que o mundo admire os meus feitos, quer os feitos dos meus:Não eu, nem eles, mas Cristo age por si mesmo).

O último texto corresponde ao discurso atribuído à persona-gem: o Rei afirma que o que fez e o que fizeram ou farão os seus,foi (e será) por acção divina

A passagem retoma e glosa, de certa forma, S. Paulo (IICor., 4, 4-9): “Por conseguinte, se o nosso evangelho permanecevelado, está velado para aqueles que se perdem, para os incrédu-los, dos quais o deus deste mundo obscureceu a inteligência, a fimde que não vejam brilhar a luz do evangelho da glória de Cristo,que é a imagem de Deus. Não pregamos a nós mesmos, mas aCristo Jesus, Senhor”.

A imagem é composta por duas cenas: uma visão celeste, noalto à esquerda e uma cena terrestre no primeiro plano à direita.Na visão, o Cristo crucificado surge numa mandorla cercado denuvens e de onze anjos. Na cena terrestre, o Rei despojado desuas armas (espada e escudo) e de seus ornatos (chapéu de plu-

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mas, “talons rouges” à francesa, gibão de laços), de joelhos emãos postas, vê a cena divina e ouve a mensagem do Cristo.Observe-se o facto - curioso e deliberado - de o Rei trajar à modado século XVII: o anacronismo no traje reforça a identidade dafigura medieval (D. Afonso Henriques) com o soberanoseiscentista.

A paisagem, em tonalidade mais apagada, tem cariz simbóli-co: árvores à direita e ao fundo, à esquerda, um grande monastério.D. Afonso Henriques aparece, em bom número de gravuras, doséculo XVII e sobretudo do século XVIII, como aquele que man-da construir uma igreja em agradecimento ao milagre de Ourique.

A visão de Ourique retoma e nacionaliza, de certa forma, avisão de Constantino. A tradição afirma que a Afonso Henriques,antes da batalhe de Ourique, apareceu o Cristo. Não era só avitória que Cristo prometia ao Rei cristão; era também a protec-ção do Reino, glórias futuras, a fundação de um império. Dessemodo, a independência portuguesa assenta na vontade expressade Deus e o povo português assume o carácter de povo eleito.

No século XIX Herculano refuta o milagre de Ourique a par-tir das fontes que a ele se referem2. É no final do século XV,provavelmente através do relato de Vasco Fernandes de Lucena,embaixador de D. João II junto ao papa Inocêncio VIII, que surgea primeira menção directa ao milagre. O aparecimento do Cristopassara a fazer parte integrante da História de Portugal.

Depois, no século XVII, com Bernardo de Brito, na Chronicade Cister, a lenda ganha em precisão e prestígio.O mongecisterciense dá-lhe nova importância, conferindo a Portugal e aosseus Reis uma missão divina.

Podem, pois, fundamentalmente, considerar-se dois momen-tos na “história” de Ourique: sua invenção por Fernandes de Lucenae sua reinvenção ao tempo do frade de Alcobaça. Note-se oparalelismo das conjunturas que levaram o seu aparecimento noséculo XV e sua reinvenção no século XVII. Em ambos os casos,em momento de crise nacional, afirma-se a autonomia de Portu-gal, o carácter da sua eleição pelo próprio Cristo e a impossibilida-de de sujeição do reino lusitano a soberanos estrangeiros.

Mas a gravura da LL vai mais além: ela afirma o papel funda-mental da mulher no projecto divino. É da mulher, Dona Catarina,esposa do 6º duque de Bragança, que descende o novo Rei. Comose sabe, a duquesa D. Catarina desenvolveu notável actividade nomomento da crise dinástica de 1580 para que lhe fosse reconhecido

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o direito ao trono por ser neta de D. Manuel I. Mas só em 1640 seuneto D. João, 8º duque, filho do 7º duque, D. Teodósio, veio a subirao trono. É esse direito ao trono que defende a LL.

A casa de Bragança sobe pois ao trono em 1640 no meio degrande debate jurídico sobre quem é o Rei e quais as suas fun-ções. O Direito exerceu grande influência na defesa da nova di-nastia. Impunha-se demonstrar à Europa que, no momento da cri-se dinástica de 1580, face aos diferentes candidatos ao trono por-tuguês, a coroa devia, por “benefício da representação”, ter cabi-do a Dona Catarina, duquesa de Bragança. Como filha do infanteD. Duarte, a ela pertencia com justiça o trono de D. Manuel I,levando em conta ainda que a invasão de Filipe II de Espanha,pretendente pelo lado materno, violara os foros autênticos do reinoantes da decisão oficial. A partir desta base “ilegal”, o governodos três Filipes podia ser considerado ilegítimo e não aceite pelaconsciência dos Portugueses. O oitavo duque de Bragança limita-va-se, pois, a exercer o princípio jurídico da pertença à mais antigacasa senhorial do reino. Um grupo de jurisconsultos de 1640, comoFrancisco Velasco de Gouveia, António Pais Viegas, João PintoRibeiro e o nosso António de Sousa de Macedo, defendia assim atese da “restituição” da coroa a D. João IV. Assim se justificava adesignação de Restauração.

Uma segunda tese justificaria a Restauração por outro cami-nho. Baseava-se no princípio da alienação do poder, que permitiaaos povos expulsar os soberanos que desrespeitassem o pactumsubiectionis acordado com os súbditos. Deste ponto de vista, asoberania não era pertença dos reis, que apenas a exerciam porobra de um pacto natural: detinham assim os Reis o poder in actu,enquanto o povo o recebera in habitu. A doutrina é sustentada pelojesuíta Francisco Suárez, o célebre Doctor eximius, que ilustra coma sua docência a Universidade de Coimbra. Assim sucedera comos três Reis espanhois, o que tornava legítimo a acção do povo aosagrar pela força do direito natural a realeza de D. João IV.

Como o indica Joaquim Veríssimo Serrão, os diplomatas por-tugueses tiveram que defender estes princípios nas diferentes mis-sões no estrangeiro. Contra a corrente espanhola que afirmavater o duque de Bragança cometido um acto de rebeldia e deusurpação, foi preciso sustentar a razão do movimento aclamatório,como a vontade de povos livres que, ao longo de sessenta anos,não haviam perdido o sentimento da sua autonomia.

Um tema reiterado impõe-se portanto em Portugal no século

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XVII, que se pode semantizar como profecia, oráculo ou promes-sa. O tema foi glosado de diferentes modos. Em 1641, AntónioPais Viegas descreve-o assim:

Este foy aquelle venturoso a quien Cristo bai-xando del Cielo dio le investidura y corona de umreyno, que dixo escogia para si quando le hablo enla Cruz, honrandole desta manera darle tal Reyno3.

Resta-nos considerar de mais perto o papel da mulher no pro-jecto divino, tal como aparece na gravura na frase atribuída ao pró-prio Cristo. Como D. João IV descende de D. Manuel I pelo ladofeminino, era necessário exaltar o papel da mulher. A iconografiaimplica numa paráfrase indirecta ao papel de Maria, como novaEva, na ordem da Salvação. O mesmo tema reaparecerá, maistarde, de forma paralela, na oratória de Vieira quando se trata dejustificar a substituição de Afonso VI pelo seu irmão D. Pedro e ocasamento deste com Dona Maria Francisca Isabel.

Essa concepção da História vista como um projecto divinomarca todo o século XVII português: ela reaparece de formatransparente na LL nas gravuras sobre os reis que precedem D.João IV.

O génio de Fernando Pessoa, em Mensagem, foi, entre ou-tras coisas, dar forma poética a tal acção subterrânea. O facto éfacilmente apreendido na apresentação sintética do antepassadodo Fundador (ou seja o pai do pai):

O conde D. Henrique

Todo começo é involuntário.Deus é o agente.O herói a si assiste, várioE inconsciente.À espada em tuas mãos achadaTeu olhar desce.“Que farei eu com esta espada?”

Ergueste-a, e fez-se.

Assim, a força do heroi, instrumento de Deus, nasce do seuabandono confiante à vontade divina. Esta age, apesar do heroimas também graças ao heroi. O objeto mágico (= a espada) apa-

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rece-lhe nas mãos e o homem aceita ser o instrumento do verda-deiro agente superior. A mesma concepção da acção reapareceem outras gravuras da série.

Gravura nº 6, Livro I, p. 165: A árvore genealógica dos des-cendentes de D. Manuel.

Gravura fundamental para se entender as relações dos pre-tendentes ao trono português no momento da crise de 1580. Arepresentação do Rei português toma de empréstimo o modeloiconográfico da árvore de Jessé, antepassado do Cristo.

D. Manuel I, coroa à cabeça e o manto de arminho, apresen-ta-se deitado por terra. Um braço dobrado sustenta-lhe a cabeça.Do seu baixo ventre ergue-se a árvore dos seus descendentes,todos coroados. Uns levam a coroa ducal, outros a coroa real.Cada descendente leva uma cartela que o identifica: de formapara nós, hoje, talvez paradoxal, os nomes masculinos inscrevem-se num círculo e os nomes femininos, num losângulo.

A função do texto aqui é particulamente importante, sobretu-do didáctica.

A legenda abaixo reza:Mascule dum fuerit, seruat me, linea, viuum;Subsidium extinetæ, fœmina, prolis, erit.

(Enquanto foi viva a linha masculina serviu-meExtinta, será subsídio meu a feminina)

As pequenas legendas, lidas de baixo para cima e da esquer-da para a direita, indicam sucessivamente a descendência do Rei:

a) na base da árvore: Manuel, 14º Rei da Lusitâniab) na primeira linha: Beatriz, duquesa de Saboia; a Imperatriz

Isabel; João III, 15º Rei da Lusitânia; Luís, duque de Beja; o Car-deal D. Henrique, 17º rei da Lusitânia; Eduardo, Duque de Guima-rães, todos já mortos;

c) na segunda linha, temos: Manuel Filiberto, duque de Saboia(pretendente); Filipe II, rei de Castela (pretendente); D. João, prín-cipe de Lusitânia (já morto); António, prior do Crato (pretenden-te); D. Maria, duquesa de Parma (já morta) e D. Catarina, duque-sa de Bragança (pretendente);

d) no alto: D. Sebastião, 16º rei da Lusitânia (já morto) eRainunfo, duque de Parma (pretendente).

A árvore permite ainda ao leitor atento à sucessão dos reis

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portugueses perceber a sequência que vai do 14º ao 17º soberano:D. Manuel; D. João III; D. Sebastião uma vez que o seu pai, oinfante D. João (1537 - 1554), morre antes do seu nascimento;Cardeal D. Henrique.

O texto latino retoma uma vez mais a argumentação deexaltação da linha feminina quando se extingue a masculina. Osimbolismo aqui confirma a ideia de que uma figura feminina foi (eé) necessária à Salvação. Da mesma forma que, do ponto de vistateológico, Maria é a nova Eva porque permitiu o nascimento donovo Adão, isto é, o Cristo; do ponto de vista político, D. Catarinade Bragança “salvou” Portugal, assegurando o direito da linha-gem da terra.

Gravura nº 8, Livro III, p. [2]: O dragão de Bragança ao péda árvore.

Talvez a mais bela (e obscura) gravura da série. Ainda nãoreproduzida em nenhum estudo, ao que sabemos. Sem texto naparte superior, leva apenas a inscrição:

In tempus, vigilo, simulans dormire; neg ullumIam timeo Alcidem, Lysius arma colens.

(Até o fim dos tempos, alerta vigio, parecendo dormir;Já não temo Alcides nenhum: Lísio empunha as armas)

Ou seja: Como Lísio, em armas, já não temo nenhum Alcides.Vários arquétipos aqui se unem: a lembrança da árvore de

Jessé que assegura a permanência da linhagem dos reis portugue-ses; a árvore do jardim das Hespérides com seus pomos doura-dos; o dragão ctónico (oriundo da terra) protegendo a promessade flores e frutos de Portugal.

Observe-se que, nessa gravura, o dragão não tem asas eparece um enorme sáurio. O texto refere-se a duas figuras, Alcidese Lisius, como antepassados míticos, respectivamente da Espanhae de Portugal.

Como lembra o leitor, Luso aparece várias vezes em Oslusíadas (I, 39; III, 21; VIII, 2): é o filho e/ou companheiro deBaco que, segundo Camões, fixou-se em Portugal. Os eruditos daRenascença relacionavam esse nome com Lusitânia. O geógrafolatino Plínio fala de um filho de Baco chamado Lysias ou Lysa e oy dito grego é transcrito em latim ora como i, ora como u. O pró-

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prio Camões faz alusão à dupla grafia:

Esta foi Lusitânia, derivadaDe Luso ou Lysa, que de Baco antigoFilhos foram, parece, ou companheiros,E nela estão os íncolas primeiros. (Lus., III, 21)

Alcides é um dos nomes de Hércules, descendente de Al-ceu. Camões assim se refere ao herói em diferentes passos doseu poema: III, 137; IV, 49, 80; IX, 57. Os soberanos espanhois seapresentavam como descendentes de Hércules: esse antepassadomítico explica, por exemplo, a série de telas de Zurbarán sobre osfeitos de Hércules no grande Salón de los Reinos, criado porVelázquez em 1635.

Por temor de Alcides, isto é, da invasão espanhola, Luso iden-tificado com o dragão da casa bragantina, vigia sem dormir, defen-dendo a árvore da terra.

Deitado ao pé da árvore central, como um anel protector, odragão lembra vagamente um ouroboros (cf. o ouroboros que cir-cunda o retrato do novo rei na gravura 1). A árvore apresenta-sevicejante com folhagem e frutos. À direita, no segundo plano, umaoutra árvore esgalhada e seca ergue-se: sugere a linhagem de D.Manuel interrompida ou a morte simbólica da linhagem dos Filipesem terras portuguesas.

A enxertia real viceja na nova árvore.A paisagem de terrafértil lembra que o corpo do rei é o corpo da terra. No universotradicional, a saúde do rei é a saúde da terra e dos produtos daterra. Um mau rei, ou um rei não legítimo, provoca a esterilidadeda terra. Por outro lado, a continuidade do sangue real permitecompreender a frase “O rei está morto, viva o rei”.

A oposição Alcides vs Lísio presente no texto latino reapare-ce na oposição das árvores seca vs viva. Veja-se sobretudo aimportância do arquétipo da árvore nessa gravura. Para a árvore,Mircea Eliade sugere sete interpretações no seu Traité de l’Histoiredes religions: elas se articulam todas em torno da ideia do Cos-mos vivo em perpétua regenerescência. A árvore põe em contac-to os três níveis do cosmos: o subterrâneo pelas raízes que serpen-teiam no solo, aprofundando-se; a superfície da terra pelo seutronco e seus primeiros ramos; as alturas, pelos ramos superiorese o seu cimo que se ergue em direção à luz do sol.

Essa árvore teve o seu cimo cortado, símbolo das perdas

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sofridas e a sofrer durante a guerra com Espanha mas o troncomantém-se forte e verdejante. A árvore do dragão é uma árvorecósmica e de vida, eixo do reino de Portugal.

Gravura nº 12, Livro III, Apêndice, p. 764 : O escudo dasarmas reais de Portugal

Duas figuras de anjos ladeiam o escudo português encimadopor um capacete militar coroado, tendo por trás o dragão da Casade Bragança de grandes asas abertas. A legenda latina reza:

Lusiadum Regnum cujus vide stemmata Christi,Mittit enim rebus Stemmata quisque suis.

(Vê o Reino dos Lusíadas com os estigmas de CristoAssim leve cada um os estigmas do que é seu)

Na página à direita o Capítulo III do Apêndice anuncia:

CAPUT IIIStemma Lu_itani Scuti declaratur.

O texto da inscrição merece certo desenvolvimento. Ele inci-ta o espectador a contemplar o escudo português como objetosagrado pelas suas marcas (ou estigmas).

As armas do rei de Portugal são descritas, do ponto de vistaestricto da heráldica, por Anselmo Braamcap Freire da seguintemaneira:

De prata, cinco escudetes de azul, postos em cruz e carrega-dos cada um de cinco besantes do campo; bordadura de vermelhocarregada de sete castelos de oiro. Coroa de florões fechada dedois meios círculos. Timbre: serpe alada, nascente, de oiro. Nãotem letreiro. Vol. I, p. 32)

Assim, tecnicamente, na heráldica, não se faz qualquer alu-são a estigmas.

No entanto, a ideia difundida pelo ensino, até muito recente-mente, de que o escudo português carrega as cinco chagas doCristo vem do facto de que os besantes de campo são vistos comorepresentações das chagas, ideia que sacraliza o país (e o Rei).Essa ideia está já presente na inscrição latina da LL através doemprego reiterado do sintagma “stemmata Christi”. Assim, acon-selha a inscrição latina, “leve cada um os estigmas do que é seu”.

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À identidade Portugal=Israel já anteriormente analisada, sobre-põe-se uma outra em que o corpo de Portugal existe simbolica-mente à imagem do corpo de Cristo e o povo português torna-se opovo eleito, ungido como o do Cristo e messiânico por excelênciano concerto das nações.

Mais ainda: como cada uma das quinas (ou escudetes) levacinco chagas (ou besantes), temos cinco vezes cinco chagas. É ocinco elevado ao quadrado. Graficamente, o cinco se multiplica nadisposição dos escudetes em cruz com um ao centro, cada escudetelevando, repetimos, cinco besantes.

O número cinco tira o seu simbolismo do facto de ser, por umlado, a soma do primeiro número par e do primeiro número ímpar( 2+3) e, por outro lado, o meio dos nove primeiros números. Ésigno de união, número nupcial diziam os Pitagóricos; número docentro, da harmonia e do equilíbrio. As cinco chagas do Cristosacraliza o ensino clássico e o difunde em todo o Ocidente cristão.A harmonia pentagonal dos Pitagóricos deixa a sua marca na ar-quitectura das catedrais medievais. A estrela de cinco pontas, aflor de cinco pétalas é colocada, no simbolismo hermético, no cen-tro da cruz dos quatro elelemntos: é a quinta-essência.

Os dois anjos laterais justificam-se do ponto de vista teológi-co: eles ladeiam uma representação metafórica do corpo de Cris-to que é o corpo de Portugal. A Restauração de 1640 retoma econfirma a disposição do escudo português na charola de Tomar.A recente exposição realizada no Paácio da Ajuda, depois do res-tauro das escuplturas, sob o nome de “A luz que vem do Norte”,mostra claramente a continuidade da velha tradição portuguesada sacralidade do escudo nacional. Já em Tomar, no século XVI,o escudo das cinco quinas ergue-se no centro de dois anjos.

3. Conclusão.

As gravuras da LL não são obra do Dr. António de Sousa deMacedo: foram encomendadas para ilustrarem a sua argumenta-ção jurídica e muito provavelmente executadas segundo sua ori-entação e/ou supervisão. Elas fornecem ao leitor uma série deimagens que resumem, anunciam, glosam, difundem ou transfigu-ram em exemplos que falam à imaginação, figuras e aconteci-mentos contemporâneos. Por outro lado, as ilustrações criam umeixo diacrónico em que momentos fortes da história de Portugalarticulam-se de forma coerente segundo um projeto divino e hu-

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mano. Sobretudo, essas gravuras ajudam a fundar no espírito dopúblico leitor a iconografia do novo rei e da nova casa reinante.

Para tal, as imagens lançam mão da retórica característicada época: a Fénix que renasce das cinzas é a imagem do país querenasce da servidão; a vitória das armas portuguesas estava es-crita nos astros, etc. Figuras mitológicas como Alcides ou Lusosão invocadas para justificar a oposição Espanha vs Portugal.

No entanto a própria escolha paradigmática é reveladora. Dosreis de Portugal anteriores a D. João IV são citados apenas três: ofundador do Reino (Afonso Henriques em 2 gravuras), D. João I (ovencedor de Aljubarrota e o iniciador da dinastia de Avis) e D.Manuel com sua numerosa descendência à moda do Jessé bíblico.Observe-se que não há nenhuma imagem de D. Sebastião, nem doAfricano, por exemplo, ou de qualquer outro rei português.

Várias gravuras implicam uma evidente intertextualidade decunho religioso: D. Manuel surge como o patriarca Jessé,antepassado do Messias, ou seja, do Esperado. O próprio Cristodirige-se ao rei fundador estabelecendo uma promessa que passapela mulher. Esta não é, no texto latino que comenta a gravura, aVirgem Mãe, mas D. Catarina de Bragança, que ganha assimconotações religiosas de nova Eva. A vitória da casa de Bragançareflete a acção divina. Portugal repete o destino de Israel comoterra de Deus. O exemplo mais interessante de todos, no caso, é aideia veiculada pelo texto latino de que Portugal (ao mesmo tempoRei e Reino) leva, no seu corpo simbólico, os estigmas de Cristo.

Por outro lado, os animais míticos, a heráldica e a astrologiafornecem um outro fio de articulação e de leitura, unindo váriasideias: o dragão de Bragança defendeu-se e por ser justa a suacausa, venceu o leão de Castela; a vitória estava escrita no céue nas estrelas; as armas portuguesas são e serão vitoriosas. Todoo anexo final do volume, consagrado às profecias, reitera o eloentre o fado (que não pode ser revocado porque é promessadivina e Fatum) e o aspecto inquestionável da independênciaportuguesa. O próprio nome escolhido para o volume - Lusitanialiberata e Restauração - implica em saída da servidão e retornoao estado de direito.

Assim a LL fornece a iconografia do novo rei através da suaefígie, sua sagração, seu triunfo sobre o trono móvel (que é ocavalo) e o reconhecimento da sua grandeza pelo monumentofinal com as trombetas da fama. Os louvores ao novo Rei e ànova casa reinante estão também inscritos de forma imperecível

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Bibliografia:ABREU, Ilda Maria Assunção e Silva Soares de. Simbolismo e ideário

político. A educação ideal para o príncipe ideal seiscentista. Disserta-ção de Mstrado em História Cultural e Política. Universidade Nova deLisboa, 1997.

BUESCU, Ana Isabel. O milagre de Ourique e a História de Portu-gal de Alexandre Herculano. Lisboa, INIC, 1987.

CHEVALIER, Jean et GHEERBRANT, Alain. Dictionnaire dessymboles. Édition revue et augmentée. Paris, Laffont, 1982.

COLUNGA -TURRADO. Biblia Vulgata. Biblioteca de autorescristianos. Madrid, 1977.

ELIADE, Mircea. Traité d’histoire des religions. Paris, Payot, 1964.FREIRE, Anselmo Braamcamp. Brasões da Sala de Sintra. 3 vol.

Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1973.GÁLLEGO, Julián. Visión y símbolos en la pintura española del

Siglo de Oro. Madrid, Aguilar, 1972.HATHERLY, Ana. A experiência do prodígio. Bases teóricas e anto-

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SERRÃO, Joel. Dicionário de História de Portugal. Dirigido por. IVtomos. Iniciativas editorias, s/d.

VIEGAS, Antonio Pais. Principios del Reyno de portugal. Con viday hechos de Don Affonso henriques su primero Rey. Lisboa, Off. PauloCraesbeeck, 1641.

nos corações portugueses.Obra de propaganda e de defesa de uma tese, a LL desen-

volve a sua argumentação a partir de um determinado universosimbólico ligado ao messianismo português.

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Notas1 Catálogo das obras impressas no século XVII. A Colecção da

Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Lisboa, 1994. Apresentação doProfessor Doutor José V. de Pina Martins. Introdução, organização, bibli-ografia, catalogação e índices por Júlio Caio Velloso. Indicado daqui emdiante por LL.

2 Sobre o assunto veja-se BUESCU, Ana Isabel. O milagre de Ouriquee a História de Portugal de Alexandre Herculano. Lisboa, INIC, 1987.

3 VIEGAS, Antonio Pais. Principios del Reyno de portugal. Convida y hechos de Don Affonso henriques su primero Rey. Lisboa, Off.Paulo Craesbeeck, 1641, f. 2vº e 3.

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Quando conclui, provisoriamente, as minhas investigações so-bre os aspectos da obra de Anchieta que me têm interessado,ficou-me uma interrogação, que quase me atreveria a dizer quesão duas: por que razão os jesuítas, començando pelo PadreAnchieta, escrevem parte da sua obra poético-religiosa em espanhole por que razão os investigadores não exploraram ainda comprofundidade esta questão?

É possível encontrar uma longa presença da Língua Espanholanos textos literários jesuíticos desde os primórdios da literatura noBrasil até ao ano de 1698, no qual o P. Luis Vicencio Mamiani,publica o seu? Catecismo da doutrina christãa na lingua brasilicada nação kiriri1 .

Para expor o problema nos seus termos mais concretos,darei por boa a relação que Luiz Soares de Lima faz das poesiasdo manuscrito de Anchieta, o fundador da poesia religiosa no Bra-sil e mais globalmente da literatura brasileira, “organizadas de acordocom a língua ou as línguas em que foram escritas”.2

a) Composições unilíngües

Em Português 12Em Espanhol 34Em Tupi 18Em Latim 2

_ 66

A Língua Espanhola e a sua funçãona obra catequética no Brasil

Nicolás Extremera Tapia,da Universidade de Granada

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b) Composições bilíngües

Em Português e Espanhol 1Em Português e Tupi 2Em Português e Latim 2

_5

c) Composições trilíngües

As composições em Português, Espanhol e Tupi são dois autosde catequese, intitulados: “Na Festa de São Lourenço” e “NaFesta do Natal”.

Neste corpus poético anchietano podemos observar umelevadíssimo número de composições em espanhol. Cioranescu,sublinha que no “livrinho de várias poesias salta a la vista el pesoexcepcional de las composiciones en español, casi la mitad del con-junto; son también las mejores y, junto con los párrafos españoles delteatro, las de mejor nivel conceptual”3 . Para sistematizar a nossaexposição distinguiremos primeiro entre teatro e poesia.

Dentro desta podemos distinguir também dois sectores rela-tivamente bem diferenciados: a sua produção contrafactística ea sua produção poética plenamente original. Em geral a motiva-ção e a finalidade de toda essa actividade literária são rigorosa-mente apostólicas. Interessa-me sublinhar a subordinação que, napoesia jesuítica em geral e na de Anchieta em particular, encon-tramos de qualquer outro elemento de índole formal ou estética aeste zelo missionário. A idéia de apostolado, de utilidade para le-var a bom fim a sua missão é a predominante em todo o processode criação poética de Anchieta.

Alguma coisa de semelhante acontece em toda a actividadeliterária dos jesuítas não só no Brasil, em língua tupi, mas tambémem guaraní e, em geral, em todas as línguas indígenas.

O padre Meliá chega mesmo a perguntar-se se não será pos-sível identificar na América “género didáctico” com “género cris-tão”4:

Le corpus des écrits en langue guarani dutemps des réductions permet de prime abord unjugement sévère à ce sujet; sauf quelques lettresdes indiens, tout le reste peut être facilementrangé sous la rubrique du genre didactique;catéchisme, explications du catéchisme,

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sermonnaires, manuels de confession, livres depiété, voire une histoire à intention “édifiante”.Le genre didactique serait-il le genre “chrétien”par excellence?

Para resumir o processo ou os processos que os jesuítas se-guiram para exercer o seu apostolado citarei uma tão excelentecomo breve síntese feita por Alexander Marchant5 .

Converter o gentio significava que osíndios deviam saber o que era o cristianis-mo e isso não seria possível sem doutrina-ção. As dificuldades no caminho de um es-forço consciencioso para a conversãoeram, no entanto, muito grandes. Os jesuí-tas e os índios deviam, antes de mais nada,entender-se em sua linguagem, o que sig-nifica que os jesuítas tinham de aprenderas línguas indígenas ou os índios, o portu-guês. Com o contrapeso da dificuldade delinguagem, os jesuítas deviam levar avantea instrução religiosa para preparar os na-tivos para o batismo. A educação, incluin-do o idioma, indispensável à conversão,não podia ser um assunto casual, tratadoao acaso. Nóbrega teve dois caminhos aescolher, indo ao encontro dos índios paraeducá-los. Um seria ir para as aldeias in-dígenas e ali instruí-los. Outro, compelir osindígenas da região a se concentrar numdeterminado ponto onde os jesuítas pudes-sem ensinar a todos. A espécie de estabele-cimento nesse determinado ponto depen-dia da modalidade da instrução conside-rada necessária. Para a instrução religio-sa geral, usavam casas. Para dar a algunsíndios e portugueses uma educação maiscompleta também sobre outros assuntos,criaram os jesuítas colégios. A mais preci-sa diferenciação entre casas e colégios estáem que casa era para instrução dos não-

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batizados, enquanto o colégio destinava-se à educação dos cristãos. Logo depoisde desembarcar na Bahia, já Nóbrega reu-nia numa casa duzentos indígenas, e de-pois, ao criar o primeiro colégio, mais devinte submetidos a esse regime de instrução.Os jovens índios eram arrolados nos colé-gios, destacados dentre os conversos e aliaprendiam ao mesmo tempo o idioma e asidéias - o idioma, para habilitá-los a viverentre os portugueses, as idéias, paraprepará-los a ajudar os jesuítas na con-versão de outros tantos pagãos. Juntamentecom eles estavam alguns jovens portugue-ses de Portugal e do Brasil, e, dentro depouco tempo, alguns mestiços. Alguns des-ses meninos (como eram chamados os jo-vens dos colégios) obtinham licença paraentrar na Companhia. Viviam nos colégiose, estudando verbos com sua Vulgata,devassavam, sob as farfalhantes folhas depalmeira, os intrincados segredos do latim.

A ideia de utilidade, de zelo apostólico, reveste-se, por isso,no Brasil, dumas características muito particulares pela naturezapeculiar do público, ou melhor, dos públicos, a quem é dirigido oapostolado. Os jesuítas têm além de dois públicos três aulas: a daselva, a das casas, a dos colégios. Para cada uma das aulas escre-ve-se numa ou em várias línguas

Vejamos agora, para tentar definir o papel do espanhol noprocesso de apostolado, qual é o uso que Anchieta faz de cadauma das línguas em que escreve.

No teatro:

O uso do tupi exclusivamente nas obras de Anchieta deter-mina o conteúdo, o programa, a forma da instrução. No caso dosAutos, o uso da língua tupi é condicionado por toda uma interrelaçãocom outro código. De aí a sua rebuscada elementaridade. O docereapenas começa a conjugar-se.

Entre as composições em Tupi há três autos de catequese, a

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saber: “Dia da Assunção, quando levaram sua imagem à Reritiba”;“Dos mistérios do Rosário de Nossa Senhora” e “Na aldeia deGuaraparim”.

“Dia da Assunção, quando levaram sua imagem à Reritiba”,em 103 versos encena uma discussão entre um anjo e um diabo,uma dança e um pequeno discurso dum anjo.

Algo maior, com 124 versos e mais complicado é “Dos mis-térios do Rosário de Nossa Senhora”.

Paula Martins6 descreve-o assim:

[...] As meditações do rosário repre-sentam alguma cousa de mais abstrato nameditação popular. Instituição existente emvárias religiões e baseada num princípiode contagem numérica, verificável , empovos primitivos, na forma de colares dedentes, pedras, sementes, etc., faz parteda Igreja Católica desde 1208 [...]. A in-tenção principal do rosário era divulgara saudação angélica simbolizada na “AveMaria”, repetida e com intervalos, ondeum Padre Nosso periodizava a série. Essetipo de devoção calava no espírito, tantopela frequência, quanto pelo ritmo da re-petição.

[...] Os chamados “mistérios” consti-tuíram quadros de valor teatral, com avantagem de não impressionarem apenaspelo aspecto doloroso da sequência ob-servada na Via Sacra, pois se enriquece-ram com mistérios “gozosos” e “glorio-sos”, sugestivos e edificantes.

As meditações do rosário deviam cons-tituir motivo especialmente aproveitável noteatro catequético, pois ensinavam, atravésdesses quadros, descritivos e objetivos, asvirtudes teologais.

Num nível sensivelmente superior há que situar “Na aldeiade Guaraparim”. Esta é a mais longa peça do caderno de Anchieta

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escrita exclusivamente em língua tupi 806 versos.“Apresenta uma personagem original para o teatro indígena -

a Alma- e uma provável cena celestial, indícios de época avança-da na catequese. Contém elementos de outras peças, o que suge-re arranjo organizado à pressa e fixa a sua composição em dataposterior à delas.

Fornece dados etnográficos, como o comportamento doscasais, a adoção de muitos nomes, à moda indígena, e indicaçõesgeográficas, como a de aldeias não conhecidas na ocumentaçãoda época.

Lingüísticamente, revela flexibilidade na linguagem, rapidezno diálogo e vocabulário relativamente mais rico que o das peçastupis anteriores.”7

O uso do tupi e do português

As suas composições em Português e Tupi são: “A Dançados Reis” e “Recebimento, que fizeram os índios de Guaraparimao Padre Provincial Marçal Beliarte”.

A primeira, formal e conceptualmente poderia estar perfeita-mente incluída entre as peças mais elementares do grupo anterior:de facto, compõe-se de dez estrofes de cinco versos das quais sóuma está en português. É talvez uma das peças mais ingénuas deAnchieta, mais para um público primitivo de índios que não que-rem ser escravos.

A segunda, o “Recebimento, que fizeram os índios deGuaraparim ao Padre Provincial Marçal Beliarte”, é uma peça de289 versos, cujo conteúdo Martins resume assim “ No porto deGuaraparim o P. Marçal Beliarte é recebido com um discurso deagradecimento pela visita e boas-vindas à aldeia. Na igreja, doisdiabos mostram que os habitantes da aldeia são seus adeptos, tor-nando inútil a visita do Provincial. O Anjo promete guardar o local,expulsa os diabos e um índio quebra-lhes a cabeça. Dançam, emseguida, dez meninos índios.”8

Esta última peça, embora conceptualmente esteja,inclusivemente, a um nível inferior que “Dos mistérios do Rosáriode Nossa Senhora” e “Na aldeia de Guaraparim”, representa umpasso à frente no processo didáctico, pois dirige-se a um públicode índios capaz já de compreender o português.

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O uso do tupi, do português e do espanhol

São dois autos de catequese as composições em Português ,Espanhol e Tupi, intitulados: “Na Festa de São Lourenço” e “NaFesta do Natal”. A segunda é na realidade uma adaptação redu-zida da primeira. “Na Festa de São Lourenço” “é a mais longa erica peça do caderno de Anchieta. Tanto a extensão do seu texto,quanto o aparato literário e técnico de que se reveste, explicam oêxito a ela atribuído, justificam uma sua adaptação reduzida e atra-em, ainda hoje, a atenção dos estudiosos da história e da línguanacional”, entre outras razões porque é “o mais longo documentode tupi da costa até agora conhecido e efetivamente praticado emfins do séc. XVI”.9

O auto começa com uma canção em castelhano. Seguem-seas acostumadas cenas de diálogos entre anjos, santos e demóniosem tupi, tupi-português e tupi-castelhano. E no acto 4, por ocasiãodo enterro de São Lourenço, surgem dois discursos catequéticos,dirigidos sem dúvida a um público já muito instruído na religiãocristã. O primeiro em português, em oito estrofes de cinco versos,e o segundo de 278 versos em castelhano, que constituem o nú-cleo doutrinário desta obra que conclui com uma dança indígena.

O uso das línguas peninsulares

O uso exclusivo duma, doutra ou de ambas as línguas penin-sulares situa-nos já noutro mundo: o mundo do colonizador. Aíhabitam os filhos dos colonos bem estabelecidos e os índios selec-tos aculturados: é a universidade dos colégios do Brasil.

Entre as composições em Português há um auto de catequeseintitulado “Auto de Santa Ursula” ou, como consta do Caderno,“Quando no Espírito Santo, se recebeu uma relíquia das onze milVirgens”. Diz o P. Hélio A. Viotti a respeito desta composição:“Da produção dramática anchietana é a peça melhor elaborada.Cheia de vivacidade e bom humor, encerra os ensinamentos deuma longa vida de govêrno e conhecimento dos homens”. “Possuiincontestável dramaticidade e reflete bem, não apenas a forma-ção mental e espiritual do autor, mas igualmente o nível intelectu-almente mais refinado do auditório, a que foi apresentada, muitodiverso do ambiente das aldeias, a que foi destinado, por exemplo,o Auto de S. Lourenço.”10

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Seus atores parecem ter sido estudan-tes da escola dos Jesuítas e membros daConfraria de S. Mauricio, sediada na igre-ja de Santiago, em cujo adro se represen-tou a parte principal do auto.”1 (p. 99)

Entre as composições em Espanhol há um auto de catequeseintitulado “Na Visitação de Santa Isabel”.

[...] é a última peça que Anchieta es-creveu, toda em castelhano, cerca de ummês antes de sua morte [...]

É um auto completamente diferente dosoutros, mais próximo dos de Gil Vicente: odiálogo é mais longo e a parte doespetáculo menor. Naturalmente teve emvista o auditório e a conjuntura especialpara o qual o escrevia.12

O uso do latim.

O uso do latim era um exercício imposto aos eleitos para oapostolado. Diz o Padre António Blazquez, numa carta datada daBahia em 1564:

“O estudo nunca nesta terra andou com tanto fervor (en-tendendo-se entre os nossos Padres e Irmãos, que a gente de fórapouco se dá disso). Tem os nossos as suas conclusões nos sabbadosá tarde e a ellas se acham presentes o Padre Provincial com ou-tros Padres. No outro sabbado veiu o Bisbo vel-os e tambem ar-gumentar com elles, e, pela bondade do Senhor, para estudantesBrasis fazem-n’o muito bem. São por todos, entre Padres e Ir-mãos, onze, e porque a todos se désse o tempo necessario para osseus estudos, lê o irmão Luis Carvalho pela manhã uma hora depoesia do livro 2º da Eneida aos mais adiantados, posto que tenhaaccidentes costumados; mas a caridade e necessidade fazem comque tome em seus hombros esta carga ainda que seja tanto á seucusto e trabalho, esperando que V. Revma., vendo esta falta, seresolva a mandar-nos dessa provincia alguns Irmãos latinos queajudem aquelles que pouco podem”.13 O uso do latim escapa demomento ao nosso interesse.

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Na Poesia

Vou-me limitar dentro da poesia à actividade contrafactística,talvez a mais elucidativa do que pretendemos dizer. Para Anchietatanto vale a poesia tradicional, como a poesia culta, a poesia margi-nal, ou as danças; tudo pode ser usado para a sua missão apostólica.Anchieta compõe os seus poemas à margem de qualquer pretensãoartística; isso, evidentemente, não quer dizer que os seus poemasnão sejam apreciáveis sob uma perspectiva estética, mas a sua be-leza não provém duma intencionalidade prévia.

Em geral, os poetas divinizadores apropriam-se das composi-ções mais conhecidas do seu tempo. Isto é válido na Europa, masnão o parece tanto entre os índios brasileiros que, naturalmente,não conheciam nenhuma das composições.

Em trabalhos anteriores distinguíamos entre as composiçõesque têm como únicos destinatários os índios e as dirigidas aoscolonos. No primeiro caso, quando a cantiga é exclusivamentedirigida ao público indígena que não pode em caso nenhum esta-belecer relações entre o contrafactum e o seu modelo profano, osjesuítas utilizavam não tanto cantares populares, mas outros poucoconhecidos, embora utilizados nas suas escolas, nos quais o ele-mento aproveitável e aproveitado é a música.

No segundo caso, tratava-se, em geral, de composições emespanhol ou português que têm como origem uma cantiga muitopopular na Península porque se dirigem, como dissemos, a umpúblico de colonos ou a um público de colegiais da Companhia,bem filhos de colonos ou índios, que podem estabelecer pontos decontacto emocionais entre o pensamento exposto no poema pro-fano e a significação religiosa do contrafactum..

Isto acontece, como dissemos, naqueles contrafacta deAnchieta cuja origem temos podido determinar. Refiro-me aospoemas intitulados: Cantiga por o Sen Ventura a Nosso Senhor(Tupã ci porãgete) (25), Cantiga por el sin Ventura(yanderubete Iesu) (26), Venid a suspirar con Jesús amado(12v), El que muere en el pecado (18v) cujo original resõa tam-bém em alguns fragmentos dos Autos: Na Vila de Vitória e daVisitação, Mira Nero (94), Los que muertos veneramos (95v),cujo metro está presente em outras composições, Já furtarão aomoleiro o pelote domingueiro (158v), Polo Moleiro (Pitãgimorauçubara) (169v).

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Resumindo sucintamente o que já foi exposto:Os poemas podem-se reunir em dois grupos principais: os

dirigidos aos índios que não guardam relação com o poema origi-nal, que são contrafacções incompletas, e os dirigidos a um públi-co de colonos ou de colegiais, que são contrafacções completasou quase completas. Entre ambos os grupos situa-se um terceirono qual o poema original sofre diferentes tratamentos, de acordocom o público ao qual vai dirigido.

Ao primeiro grupo (os dirigidos aos índios, que não guardamrelação com o poema original e que são contrafacções incompletas)pertencem: Cantiga por o Sen Ventura a Nosso Senhor (Tupã ciporãgete), Cantiga por el sin Ventura (yanderubete Iesu). Aosegundo grupo pertencem os poemas Venid a suspirar, El quemuere en el pecado, Mira Nero e Los que muertos veneramos.).

Ao terceiro grupo (no qual o poema original sofre diferentestratamentos segundo o público ao qual vai dirigido) pertencem: Jáfurtarão ao moleiro o pelote domingueiro, Polo Moleiro (Pitãgimorauçubara); baseados nas glosas ao tema:

Já furtaram ao Moleyro Seu Pelote domingueiro

obra de três autores, a primeira sem especificar e as seguintesde António Leitão, Luís Brochado e João de Couto respectivamente.

Até aqui apresentámos um breve resumo das conclusões que,até agora, à luz dos originais encontrados, nos tem sido possívelestabelecer. Mas não quero concluir esta contribuição semextrapolar estas conclusões a outros poemas cuja origem não con-seguimos localizar. Refiro-me, em princípio, àqueles que come-çam: Do Santíssimo Sacramento (O que pão, o que comida)(9), S. Tomedemira O Dios infinito) (13), Cantiga & querendoo alto Deus (yande canhemira yande rauçupa) (25v), Canti-ga polo tom de Quien tiene vida en el cielo (Taçori yanderaira) (74v), Sobre el ciego amor (El buen Jesús me prendió)(94v), Outra pola mesma toada. Esta se cantou estando S.Lourenço nas grelhas (Por Jesú mi salvador) (95), Por gracigco gte (Quando la muerte quería) (131), Por graci gco gte(Eua yandeci ipi) (147v).

Ao primeiro grupo, (os dirigidos aos índios, que não guardamrelação com o poema original e que são contrafacções incomple-

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tas) pertenceriam: Cantiga & querendo o alto Deus (yandecanhemira yande rauçupa) (25v), Cantiga polo tom de Quientiene vida en el cielo (Taçori yande raira) (74v); ambos poe-mas, em tupi, têm como referentes declarados dois poemas: Que-rendo o alto Deus e Quien tiene vida en el cielo que têm todaa feição de serem canções religiosas cantadas nos Colégios daCompanhia. Não é preciso dizer que não encontramos, e não te-mos demasiadas esperanças de encontrar os originais.

Por graci gco gte (Quando la muerte quería) (131), Porgraci gco gte (Eua yandeci ipi) (147v) pertenceriam ao terceirogrupo, no qual o poema original sofre diferentes tratamentos se-gundo o público ao qual se dirige. Encontramos assim um tão cu-rioso quanto involuntário paralelismo com os poemas baseados noMoleiro, (que também pertencem ao terceiro grupo dos que têmreferente conhecido).

No segundo grupo, (poemas dirigidos a um público de colo-nos y colegiales, contrafacções completas ou quase completas)poderiamos incluir: Ó que pão, ó que comida, um precioso hino àEucaristia, cujo referente provável é um chapirón que DiegoSánchez de Badajoz traduz para o divino14:

Otro cantar para los muchachos cantar y bailar en elmismo día (Corpus) al ritmo del chapirón.

Dios del cielo en pan se muestra Oh que divino manjar

S. Tomedemira (O Dios infinito) (13), cujo referente talvezseja preciso procurar, (embora não o tenha encontrado) nas can-ções que cantavam os romeiros que visitavam a igreja de StoTomé, perto de Coimbra, nos anos em que Anchieta aí estudava.

Sobre el ciego amor (El buen Jesús me prendió) (94v), yOutra pola mesma toada. Esta se cantou estando S. Lourençonas grelhas (Por Jesú mi salvador) (95), são dois poemas emespanhol, dirigidos também provavelmente a um público de colo-nos, cujo poema original profano não conseguimos encontrar, em-bora eu não tenha ainda perdido a esperança.

Até aqui, graças aos originais profanos, pudemos estabeleceruma série de hipóteses em volta da intencionalidade dos contrafactae do seu processo de produção. Essas hipóteses, como no caso doteatro, também polarizam em dois blocos: línguas peninsulares/lín-guas indígenas as implicações que tem o uso duma determinada

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língua. E contribuem complementarmente com a obra dramática,para definir qual é o papel do espanhol na estratégia evangelizadorada Companhia de Jesus no Brasil nos primeiros séculos da colónia.

Observando o conceito de utilitas desde uma outra perspec-tiva, complementar àquela que até agora deduzimos dos proces-sos de contrafacção de Anchieta, verificamos que dos contrafactaque têm o seu

Destino em tupi (6),procedem do espanhol (4)procedem do português (2).

Dos quatro que procedem do espanhol, um, incluído no Autode S. Lorenzo e não recolhido por Cardoso, é um aleluya primiti-vo e procede duma clara canção religiosa; dois são canções, oumelhor orações em tupí, uma a Jesús e outra a Maria, procedentesduma cancão áulica de tema clássico, de pouca difusão, limitadaprovavelmente aos seminários da Companhia em Portugal. Só uma,Por graci gco gte., que partilha o seu destino com outro poemaem espanhol, parece proceder dum romance laico e popular, tal-vez pertencente ao ciclo de Los Infantes de Lara.

Dos dois que procedem do português, um é uma canção emlouvor de Maria procedente de outra, Querendo o alto Deus,provavelmente limitada aos seminários da Companhia em Portu-gal. A outra, que tem um paralelismo com o caso anterior de Porgraci gco gte porque partilha o seu destino com outro poema emportuguês, intitula-se polo Moleiro e procede dum poema laico epopular. Quer dizer que nesse total de 6 poemas com destino emtupi, encontramos dois cujos modelos espanhol e portuguêsproducem, além do resultado em tupi, outro na língua de origem ecuriosamente ambos são de tema e feição populares e laicos.

Assim podemos afirmar que todas as canções com destinoexclusivo em tupi têm como modelo também exclusivo cançõesreligiosas ou áulico-religiosas conhecidas no ámbito da Companhia.

Destino em português (2)procedem do português (2)

Um poema com destino em português é polo Moleiro, queacabamos de descrever. É uma alegoria dirigida à comunidadeportuguesa entre quem a música devia ser muito popular: Lem-

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bremos que há três versões populares do mesmo tema e a suafrequência de uso levou possivelmente a Anchieta a criar outraversão em tupi para que os índios aproveitassem a música que,sem dúvida, pela sua frequência de uso conheciam.

A outra, um canto à Eucaristia, dirigida também à comunida-de portuguesa, é mais culta, de origem profana. Refiro-me a “Oque pão...” da qual falarei mais tarde.

Destino em espanhol

Pelo contrário, do resto, as seis que têm a sua origem e o seudestino exclusivamente em espanhol, (repare-se no rotundamenterevelador das cifras) são na sua totalidade canções populares deamplíssima difusão na unidade cultural peninsular.

Das outras duas, uma tem a sua origem numa canção de ro-meiros a Sto Tomé de Mira e a outra num romance cavalheiresco,recuperando essa qualidade na versão espanhola, embora a percana tupi.

A conclusão imediata é que, tanto na origem como no destinoa maior parte dos contrafacta identificados total ou parcialmentesão em espanhol e de origem e conteúdo cultos.

Resumindo:Todas as canções com destino exclusivo em tupi (4) têm como

modelo também exclusivo canções religiosas ou áulico-religiosasconhecidas no âmbito da Companhia.

Todas as canções com destino exclusivo em português (2)são de origem popular dirigidas à comunidade portuguesa ondedeviam ser muito populares música e letra.

A imensa maioria (7) dos contrafacta identificados total ouparcialmente são em espanhol e de origem e conteúdo cultos.

A conclusão mais evidente que podemos tirar da obra líricade Anchieta, seja esta contrafactística ou não, é que as composi-ções em espanhol predominam em quantidade, em popularidade eem qualidade tanto na origem como no destino.

A qualidade destas composições em espanhol em relação aoresto da produção literária de Anchieta seria um elemento distinti-vo duma finalidade superior no plano didáctico.

Esta actividade situar-se-ia no ponto culminante da instruçãocatequética destinada aos filhos dos colonos e aos índios que teri-am merecido aceder a uma formação conducente ao ingresso nos

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colégios da Companhia.Deste modo deveremos entender a carta de Nóbrega ao Padre

Mestre Simão datada em 1552:

[...]Já tenho escripto por vezes a Vossa

Reverendissima como nestas partespretendiamos criar meninos de Gentio, porser elle muito, e nós poucos, e sabermos-lhe mal fallar em sua lingua, e elles de tan-tos mil annos criados e habituados emperversos costumes, e por este nos parecermeio tão necessario á conversão do Gentio:trabalhamos por dar principio a casas, quefiquem para emquanto o mundo durar,vendo que na India isso mesmo se pretende,e em outras partes muitos collegios, em quese criem soldados para Christo.15

Dizíamos anteriormente que os jesuítas têm, além de doispúblicos, três aulas: a da selva, a das casas, a dos colégios. Paracada uma das aulas escrevem em uma ou várias línguas.

Era pois nestes colégios, onde se criavam soldados para Cristo,onde apreendiam juntamente com a doutrina o uso das línguaspeninsulares: o português, ensinado também nas casas, e o espa-nhol, mais limitado aos futuros soldados de Cristo. O espanholcumpria assim uma função catequética superior e pretendia am-pliar as possibilidades de apostolado dos novos irmãos.

Uma parte da sua educação, provavelmente a última, antes dalatina, complementar das línguas peninsulares, mas com uma finali-dade menos prática. A estes estudiosos do latim parece destinadatoda a obra latina de Anchieta e especialmente os poemascatequéticos.

Poemas catequéticos:

Dentro de toda esta actividade literária há um subgénero,amplamente practicado por Anchieta e pela Companhia, que sãoos chamados poemas catequéticos, que desempenhavam umafunção particularmente específica no processo de educação dosfuturos sacerdotes. Estes poemas catequéticos de Anchieta tive-

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ram uma larguíssima difusão nos estádios superiores da catequese,ilustrando os temas centrais do dogma cristão e associadoslogicamente aos catecismos.

Os primeiros catecismos que circularam pelo Brasil foramprimeiro o fruto dum processo de tradução iniciado já em 1549,ano em que os jesuítas chegaram ao Brasil. Afirma o Padre Meliá:

Il est normal que les premièrestraductions qu’on fait dans une langueétrangère soient à revoir par la suite. Lesprières traduites par le Père Navarro furentbientôt améliorées par le Frère AntonioRodrigues, qui dit-on parlait la langue tupimieux que les indiens eux-mêmes. Vers 1574,Leonardo do Vale, qui était lecteur delangue tupi au collège de Bahia, avait écritune “Doutrina na Língua do Brasil”,traduction et adaptation de celle, trèsfameuse à cette époque lá au Portugal, duPère Marcos Jorge. Auparavant on parledéjà en 1565 d’un catéchisme en forme dedialogue du Père Braz Lourenço, qui servaitpour la catéchèse des indiens. Dialoguessur la doctrine chrétienne, chants,explications de l’évangile...étaient la for-me ordinaire de cette prèmiere catéchèse enlangue brésilienne. De cette période rienn’a été imprimé; le premier catéchismecomplet est celui de Araujo, qui est déjàl’aboutissement de longues annés d’effortset d’essais souvent anonymes.16

Este catecismo de Araújo, publicado em 1618,17 e reeditadoem 1686,18 é o resultado dos esforços colectivos para adaptar ocatecismo “que nesta lingoa antigamente escreverão alguns padresdoctos e bons lingoas” às novas circunstâncias. Inclui, no começoumas Cantigas na lingoa, pera os mininos da Sancta Doctrina.Feitas pello Padre Christouão Valente Theologo, & mestre dalingoa, estão escritas em tupi e dedicadas aos temas principais dalírica catequética anchietana e em geral dos jesuítas. São as titula-das: Do nome santissimo de IESV, Ovtra em louvor da Virgem,

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Ovtra do Anio da Guarda, Ovtra do Santissimo Sacramento.Naturalmente o tema do Santíssimo Sacramento é o assunto

fulcral da religião cristã e pode perfeitamente servir de exemplopara aquilo que estamos a dizer.

Da sua continuidade no labor catequética dirigida aos colegiaisda ideia o facto de que Anchieta utilizou esta canção para contrafa-ze-la, partindo duma versão a lo divino em espanhol. Refiro-me aÓ que pão, ó que comida citado supra, no grupo dos poemasdirigidos a um público de colonos e de colegiais, (contrafacçõescompletas ou quase completas). O seu referente provável é umchapirón, dança de provável origem portuguesa, redigida em espa-nhol e que Diego Sánchez de Badajoz traduziu para o divino19:

Otro cantar para los muchachos cantar y bailar en elmismo día (Corpus) al ritmo del chapirón.

Dios del cielo en pan se muestra Oh que divino manjar

Anchieta, além de o contrafazer para o português, tradu-lo, apartir da sua própria versão, para o latim.20

DIVINUM PANEM

Divinum panem, caelestia pocula nobis Sacra reis omni porrigit ara die21.

O seguinte catecismo que se publica no Brasil é obra do Pa-dre P. Luis Vicencio Mamiani: Catecismo / da Doutrina / Christãa/ na Lingua Brasilica / da Nação Kiriri, (bilingue português -kiriri), publicado em 1698, inclui antes do prólogo umas CANTI-GAS NA LINGUA KIRIRI22 para cantarem os Meninos da Dou-trina com a versão em versos Castelhanos do mesmo metro.23

São as tituladas: Do nome Santissimo de IESVS, Em louvorda Virgem Santissima Mãy de Deos, Do Santissimo Sacramentoda Eucharistiae paralela e curiosamente outra em latim, O StabatMater dolorosa, vertido na Lingua Kiriri Sobre nossa Senhora aopé da Cruz. Isto dá-nos ideia da continuidade do espanhol comolíngua franca de catequese pois, juntamente com o latim, está emplena vigencia ainda nos finais do século XVII. Tanto o espanholquanto o português serviram simultaneamente de línguas francasentre os colegiais e padres e irmãos da Companhia na America

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hispana. Não devemos esquecer que a primeira missão dos jesu-ítas no Paraguay se fez pelos Padres Juan Saloni, catalão, TomásField, irlandês, e Manuel Ortega, português. Chegaram a Asuncióna 11 de agosto 1583.

Quand les Pères Saloni, Field et Ortegasortirent du Brésil en 1586, le travaillinguistique que les jésuites de cetteprovince avaient accompli étaitconsidérable. Le principe d’après lequel lacatéchèse doit être faite dans la langue desindiens y étsit pleinement acquis. Le tupi seprésentant comme la lingoa geral, parlée etcomprise par la plupart des indiens aveclesquels les jésuites étaient entrés encontact, on porta tous les efforts sur cettelangue.24

Sobre esta missão, o padre Meliá revela-nos o seguinte:

Un motif dórdre linguistique est àl’origine de cette mission. Le Père Barzanade la province du Pérou était en traind’apprendre aux Pères récemment arrivésdu Brésil les langues lule et tonocote, quidevaient les rendre aptes pour les ministèresauprès des indiens de la région, quand iltomba malade et ne put poursuivre sa tâche;or ces Pères connaissaient assez bien lalangue dite générale du Brésil, c’est-à-direle tupi, peu différente de la langue guaraniparlée par le groupe ethnique le plusnombreux du Paraguay; ici donc la languene leur serait pas un obstacle.

Pendant quelques années les PèresOrtega et Field surtout, le Père Salonirestant davantage dans la ville deAsunción, parcourront les forêtsparaguayennes, et en même temps qu’ilsvisitent les bourgades des espagnolsjusqu’a Ciudad Real et Villarrica,aujourd’hui territoire du Brésil, ils essaient

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de convertir les indiens que habitent cescontrées et instruisent ceux qui, bien quebaptisés en hâte par un prêtre de passage,ignorent tout de la religion chrétienne. Iln’y a pas de doute qu’ils employaient lalangue indienne pour la prédication et lacatéchèse.25

Assim - em palavras de Arno Alvarez Kern26- “Respectiva-mente um português, um catalão e um irlandês [...] representam auniversalidade de nações que caracterizou à Companhia de Jesus,bem como posteriormente a história das Missões Guaranis.”

Notas1 Serafim Leite, no tomo V, da sua História da Companhia de Jesus

no Brasil, afirma: “A esta Aldeia andam unidas a Gramática e o CatecismoKiriri, feitos pelo P. João de Barros, mas que nesta Aldeia estudou e prepa-rou para a imprensa o P. Mamiani, sob cujo nome correm mundo”. p. 326.

2 Lima, Luiz Soares de - “Anchieta: o Poliglota, o Gramático e oEscritor nos Nossos Começos”, in VV.AA. - “ Estudos universitários delíngua e literatura. Homenagem ao Prof. Dr. Leodegário A. de AzevedoFilho. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. 267-289 (pp. 268 y 269)

3Cioranescu, A. José de Anchieta, escritor. La Laguna, Instituto deEstudios Canarios, 1987. p. 13.

4 Vid. Meliá, Bartolomeu, S. J. La création d’un langage chrétiendans les réductions des guarani au Paraguay I Thèse pour le doctoraten sciences religieuses. Université de Strasbourg. Faculté de Théologie,1969. p. 118.

5 Marchant, Alexander, 1912- Do escambo à escravidão: as rela-ções econômicas de portugueses e índios na colonização do Brasil,1500-1580. Tradução de Carlos Lacerda.- 2. edição.- São Paulo: Ed. Na-cional; [Brasília]: INL, 1980. p. 82

6 José de Anchieta , S.J. Poesias . Manuscrito do séc XVI, emportuguês, castelhano, latim e tupi. Transcrição, traduções e notas deM. de L. de Paula Martins. São Paulo, 1594. p. 583.

7 Ibidem. p. 603.8 Ibidem. p. 665.9 Ibidem. p. 681.10 Cit pelo P. Armando Cardoso, in P. Joseph de Anchieta S.J. Tea-

tro de Anchieta, Obras Completas 3. volume. Originais acompanhadosde tradução versificada, introdução e notas pelo P.....São Paulo, EdiçõesLoyola, 1977. pp. 98-99

11 Vid. P. Joseph de Anchieta S.J. Teatro de Anchieta, Obras Com-

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pletas 3. volume. Originais acompanhados de tradução versificada, in-trodução e notas pelo P. Armando Cardoso. op. cit. p. 99

12 Ibidem. p. 107.13 Cartas avulsas. 1550-1568 / Azpilcueta Navarro e outros. Belo

Horizonte. Itatiaia. São Paulo. Editora Universidade de São Paulo, 1988.Carta do Padre Antonio Blasquez do Collegio da Bahia de Todos os

Santos do Brasil Para Portugal e Escripta a 13 de Setembro de 1564. p. 454.Acrescenta em nota: “Esse irmão Luis Carvalho veiu em 63 com o Pe.Quiricio Caxa e os irmãos Balthazar Alvares e Sebastião de Pina (Carta LI)por doente, e não logrando saude, tornou a Portugal em 65. Era “latino”como diziam os padres (Carta LV) pois que lia, ou era lente, dando aula, depoesia, do 2º. livro da “Eneida”, Vergilio, no Brasil, em 1564.” p. 459

14 Recopilación en metro, 156.15 Vid. Nóbrega, Manoel da. Cartas do Brasil, 1549-1560. Belo

Horizonte, Itatiaia, São Paulo,. Editora da Universidade de São Paulo,1988. p. 137

16 Vid. Meliá, Bartolomeu, S. J. La création d’un langage chrétiendans les réductions des guarani au Paraguay I. op. cit. p. 39.

17 ARAÚJO, António de - CATECISMO / NA LINGOA /BRASILICA, NO QVAL / SE CONTEM A SVMMA / DA DOCTRINACHRIS-/ tã. Com tudo o que pertence aos / Mysterios de nossa sancta Fè/ & bõs custumes. / Composto a modo de Dialogos por Padres / Doctos,& bons lingoas da Compa- / nhia de IESV. / Agora nouamente concerta-do, orde- / nado, & acrescentado pello Padre Antonio d’ Araujo Theologo/ & lingoa da mesma / Companhia. / [...] / Em Lisboa por Pedro Crasbeeck,ãno 1618,

18 ARAÚJO, António de - CATECISMO / BRASILICO / Da Doutri-na Cristãa, / Com o Ceremonial dos Sacramentos, & / mais actosParochiaes. / COMPOSTO / Por Padres Doutos da Companhia de / JE-SUS, / Aperfeiçoado & dado a luz / Pelo Padre ANTONIO DE ARAUJO/ da mesma Companhia. / Emendado nesta segunda impressão / PeloP.BERTHOLAMEU DE LEAM / da mesma Companhia. / LISBOA. / Naofficina de MIGUEL DESLANDES / M. DC. LXXXVI,

19 Recopilación en metro, 156.20 Anchieta, Pe Joseph de, S.J. Lírica Portuguesa e Tupi. Obras

Completas-. volume-I. Originais em Português e em Tupi Acompanhadode Tradução Versificada, introdução e anotações ao Texto pelo Pe. Ar-mando Cardoso, SJ. São Paulo, Edições Loyola, 1984. p. 102

“[...] A estima que A. lhe votava o levou a traduzir ele próprio esta suacomposição em latim culto, parafraseando-a ao lado daqueles hinos (cfr.Poemas Eucarísticos). Particular significativo: é a única poesia portuguesaavulsa que se encontra em autógrafo. [...] Sua estrofe e sistema de rimassão singulares, talvez invenção de A., pois ele os reproduz no Poemeto daAssunção em ritmos medievais latinos (cfr. Poemas Eucarísticos).”

21Anchieta, P. Joseph de S.J. Poemas Eucarísticos e Outros. De Euca-

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ristia et aliis. Poemata Varia. Obras Completas, 2. Volume. Originais Lati-nos, Acompanhados de Tradução Portuguesa, Introdução e Notas PeloPadre Armando Cardoso S.J. São Paulo, Edições Loyola, 1975. (pp. 74-85).

22 Vid. FR. BERNARDO DE NANTES, Capuchinho frances. Missi-onário Apostólico no Brasil. KATECISMO / INDICO / DA LINGVAKARIRIS, / ACRESCENTADO DE VARIAS / Praticas doutrinaes, &MORAES ADAPTA_ / das ao genio, & capacidade dos / Indios doBrasil, / PELO PADRE / Fr. BERNARDO DE NANTES, / Capuchinho,Prégador, & Missionario / Apostolico; / OFFERECIDO / AO MUY ALTO,E MUY PODEROSO REY / DE PORTUGAL / DOM JOAÕ V. / S.N. QUEDEOS GUARDE, / LISBOA, / Na Officina de VALENTIM DA COSTA /Deslandes, Impressor de Sua Magestade. / M.DCCIX.

No prólogo Ao Leytor diz:“Ver o titulo deste katecismo, poderà ser , Amigo Leytor, te pareça

logo ser obra inutil à vista de outro katecismo na mesma lingua, qual pou-cos annos ha sahio a luz, porêm se quizeres tomar o trabalho de combinarhum com o outro, mudaràs logo o parecer; porque veràs que como ha emEuropa nações de differentes linguas, com terem o mesmo nome, assimtambem os ha no novo Orbe, como são os Kariris do Rio de S. Francisco noBrasil, chamados Dzubucua, que são estes, cuja lingua he tão differente dados Kariris chamados Kippea, que são os para quem se compoz o outroKatecismo, como a lingua Portugueza o he da Castelhana...”

Este catecismo também traz uma cantiga sobre o Santíssimo Sacra-mento

Pelo Padre Fr. Martinho de Nantesconditor alme syderum.Capuchinho.Iheclite no Padzuârè Martinho Capuchinho.da qual copiamos a primeira estrofe[pp.152-167]

Cântico Sobre o Mysterio da Kamara espiritval tvpam, moEncarnação do Verbo Divino, jvviclite nhinho do dse ho mo Igreja, katsea, mo wo kabamara

I ICantemos, Christãos, alegres Dokamara Christãos han y,A Deos Filho mil louvores, Inhûra túpam diwjliO qual de Maria Virgem o dsého do quemâpleaPor nòs nasce, & se fez homem. Mo imuddhu Virgem Maria.

23 Sobre Mamiani escreve Inocéncio: “Segundo uma das interes-santes notas que acompanham a descripção das obras d’este auctor naBibliographia da lingua tupi ou guarani, pelo sr. Valle Cabral 9 p. 14), opadre Luiz Vicencio Mamiani della Rovere pertencia a uma illustre familia

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de Pesaro, nascêra a 20 de janeiro de 1620 e entrára na companhia deJesus da provincia de Veneza a 11 de abril de 1668. Depois de concluidosos estudos, partira para o Brazil, e ahi se entregára a conversão dospovos selvagens e particularmente dos denominados kiriris . Constavaque ainda vivia em Roma por 1725.”

24 Vid. Meliá, Bartolomeu, s. J. La création d’un langage chrétiendans les réductions des guarani au Paraguay I op. cit. p. 38

25 Vid. Meliá, Bartolomeu, s. J. La création d’un langage chrétiendans les réductions des guarani au Paraguay. I pp. cit. pp. 36-37.

26 Vid. Arno Alvarez Kern. Ações evangelizadoras e culturais demissionários portugueses e espanhóis no Rio da Prata. In Actas doCongresso Internacional de História Missionação Portuguesa e Encon-tro de Culturas. Vol. II. Braga, 1993. p. 476.

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As relações entre Angola e o Brasil começaram por ser pauta-das, numa primeira fase, pelo negócio negreiro, especialmente ba-seado em arimos diversos, discretamente ligados a alguns missioná-rios em sintonia com os movimentos brasileiros de defesa da isen-ção do índio do trabalho escravo, a que outros missionários aí em-prestavam a sua voz. A partir de 15 de agosto de 1648, essas rela-ções

passaram a ter uma importante vertente política, militar e religi-

osa, criando uma considerável dependência de Angola relativamen-te ao Brasil, pelo menos até ao célebre governo de FranciscoInocêncio de Sousa Coutinho, iniciado em 1764.

Na verdade, a intervenção da armada de Salvador Correiade Sá, (da família do famoso Estácio de Sá), vinda do Rio deJaneiro, para libertar Angola dos Holandeses que a dominavam,desde 1641, permitiu que a Fortaleza de S. Miguel de Loandafosse resgatada, restabelecendo-se, assim, a soberania portugue-sa nessa colónia, em 15 de Agosto de 1648. A coroa de Lisboa,enfraquecida aqui pela resistência ao domínio filipino, passou, porassim dizer, para o Brasil a responsabilidade de intervir em Angolae, assim, resolver um problema à época crucial para a já prósperaeconomia brasileira do ciclo do engenho, qual era a necessidadede permanente abastecimento de mão-de-obra escrava.Esse abastecimento, prejudicado pelo domínio holandês, era, semdúvida, vital para o Brasil e, por extensão, para Portugal.

Não vamos, por não estar nos horizontes deste estudo, ocu-par-nos destas questões mais históricas do relacionamento deAngola com o Brasil. Para os fins que perseguimos importa-nossobretudo rastrear a influência política e cultural que o Brasil terá

O primitivismo literário de influênciabrasileira na poesia de Angola

Salvato Trigo,da Universidade Fernando Pessoa

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exercido sobre Angola a partir desses meados do séc. XVII atéao último quartel do séc. XVIII, a que se seguiu um interregno dequase meio século ate à Lei Áurea.

Tal influência política e cultural traduzia-se, designadamente,pela interferência directa do Brasil na nomeação de governadores- gerais e de responsáveis militares, mas também na subordinaçãode algumas terras de Angola à autoridade religiosa de certas cida-des brasileiras. Se, até ao último quartel do séc. XVIII, as rela-ções angolano-brasileiras tinham uma base essencial e exclusiva-mente económica que, como se disse, o tráfico negreiro sustenta-va, a partir daí entra-se na fase de um relacionamento tambémcultural, na mais lata acepção do conceito de cultura. Na realida-de, parece ter sido com os exilados da Inconfidência Mineira, ex-pulsos para Angola, que irá dar-se início a um interesse mais cul-tural pelo Brasil, o que, aliás, Gregório de Matos, o satírico poetabaiano, também ele exilado no séc. XVII, havia tentado sem gran-de sucesso. Desta feita, porém, ou porque tivessem vindo mais ouporque as condições contextuais fossem melhores, o interesse pelacultura e pela literatura do Brasil crescerão exponencialmente. Éque uma boa parte dos inconfidentistas idos para Angola era deintelectuais esclarecidos e letrados que, por força desse estatutoagitaram a morrinha da vida cultural angolana que, nesse tempo,teria como principais protagonistas alguns militares e um que outrofuncionário da administração pública.

Não obstante, os resultados desse contágio cultural poderemter sido consideráveis, a verdade é que ele (o contágio) não foiresponsável pelo despertar serôdio de uma consciência cultural epolítica nacional que, no caso de Angola, só emergería no séc.XIX já num contexto mais claro.

O governador-geral Sousa Coutinho, dando mostras de visãoestratégica sustenta a necessidade de reduzir, se não neutralizar, apesada influência económica e política que o Brasil exercia emAngola. Conseguiu parcialmente os seus objectivos afirmando umaautoridade praticamente incontestada, na defesa de interesses pró-prios da colónia, fora da lógica da cooperação com o Brasil. Aliás,este assomo de angolanismo colonial tinha já um precursor emJoão Fernandes Vieira, o governador “brasileiro” que, modelandoa sua administração pela do Brasil, procurou sanear o governo dos“germes deletérios da governação ultramarina” porque sabia que“não poderia manter-se o domínio (português de Angola) sem baseseconómicas estáveis”. Era, todavia, visto no Brasil como um

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indianista confesso, tendo, por isso mesmo, dado um impulso con-siderável ao movimento dos “resgatados africanos” que atraves-saram em barcos negreiros o Atlântico sul. Destinava-se essapolítica a obter fortes recursos financeiros para o desenvolvimen-to local da colónia e, assim, diminuir paulatinamente a sua depen-dência económica do Brasil. Diga-se, entretanto, que FernandesVieira beneficiou, para o efeito, da acção desenvolvida pelo seuantecessor, Luís Martins de Sousa Chichorro, o homem que, em12 de Outubro de 1656, recebeu a submissão da celebrada RainhaJinga, da Matamba, personagem que alimentou até aos nossosdias o imaginário poético de muitos dos escritores angolanos.

Esta política de afirmação de uma autoridade local própriaseguiu-a também um outro governador “brasileiro”, André Vidalde Negreiros, o estratega da defesa de Angola contra os ataquesda pirataria que se acentuaram, após a expulsão dos Holandeses,e que punham em causa a estabilidade da vida económica da co-lónia e a sua ligação comercial ao Brasil.

A coroa portuguesa ficava, entretanto, um pouco à margemdeste relacionamento económico Angola-Brasil e dos seus efeitosna colónia africana, especialmente aqueles que se sentiram nohinterland centro-sul da região de Benguela, durante a governaçãode João Fernandes Vieira que, de alguma forma, facilitou o apareci-mento de grupos locais fechados muito ligados a congéneresbrasileiros e que serviram de semente ao futuro movimento dosKuribekas benguelenses, nos séc. XVIII e XIX, espécie de exten-são local da maçonaria brasileira. A coroa portuguesa despertaria,entretanto, e não da melhor forma, para a administração directa dacolónia, quando D.Afonso VI nomeou governador Tristão da Cu-nha, cuja administração foi catastrófica na relação com os sobadosgentios, fontes insubstituíveis de abastecimento de “peças” para apujante economia brasílica. Dois anos após a sua posse, Tristão daCunha é obrigado a fugir de Angola devido a uma sedição militar,sendo, então, substituído, em 4 de Novembro de 1668, pelo Condede Alvor, Francisco de Távora, que aos 22 anos passa a ter respon-sabilidade de capitão-general e de governador de Angola.

Francisco de Távora exerceu um governo extremamentepositivo para os interesses da colónia que realinhou de novo com oBrasil. Mereceu bem o cognome de “Menino Prudente” com queos sectores económicos e políticos de Angola o brindaram, teste-munhando o equilíbrio com que conduziu a sua administração. Abraços com sublevações várias dos nativos, herdadas em grande

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parte do governo do seu antecessor, Francisco de Távora, ele e ogovernador e capitão-general do Brasil, Afonso Furtado de Cas-tro de Rio e Mendonça, primeiro Visconde de Barbacena, organi-zaram uma expedição militar, vinda do Rio de Janeiro, durante oano de 1673, para submeter sobas rebelados contra a estratégianegocial dos negreiros que enxameavam o território angolano,apresando mão-de-obra para as plantações de açúcar.

Esta vinculação de Angola com o Brasil e o entretecimento derelações políticas, económicas e militares daí advenientes, seria con-tinuada e aprofundada pelos governadores a vir, normalmente àmedia de um cada triênio. Refira-se que esse aprofundamento teve,de novo uma boa expressão com Lourenço de Almada, que, em 20de novembro de 1705, tomou posse do governo de Angola quedeixou em 4 de outubro de 1709, para partir para o Brasil paraexercer idêntico cargo, a partir de 1710. O sucessor de Lourençode Almada, que em Angola ficou conhecido como moralizador dosnegócios e dos costumes e por isso incómodo para a burguesia dasduas margens do Atlântico Sul, foi António de Saldanha deAlbuquerque Castro de Mesquita Lobo de Andrade de Ribafria,outro brasileiro que se distinguiu, sobretudo, pela luta contra a pirata-ria e contra as guerras tribais e do Kuata-Kuata desenfreado.

Poderíamos continuar a fazer o inventário destas ligaçõesadministrativas de Angola ao Brasil que tiveram em Rodrigo Césarde Meneses, antes governador de São Paulo, João Jacques Ma-galhães e António Almeida Soares Portugal Alarcão Eça e Melo,Conde de Lavradio, os últimos três protagonistas, antes que seentrasse no chamado período do fomento pombalino iniciado comAntónio Álvares da Cunha, Conde da Cunha, em 1753. Não vale-rá, porém, a pena, porque já temos matéria suficiente paracontextualizar o ambiente político-cultural angolano-brasileiro quepoderia potenciar uma influência no domínio da expressão literá-ria, que, todavia, não existiu naquela colónia de África, se umainfluência no domínio da expressão literária, que, todavia, não existiunaquela colónia de África. se não a partir de 1845, pela introduçãotardia do prelo pelo Governador Pedro Alexandrino da Cunha.Doutro modo, não se compreenderia por que motivo Gregório deMatos, degredado em Angola nos últimos anos da sua vida, nãoteve seguidores ou epígonos de uma poesia, como a sua, burlescae satírica quanto bastava, e cáustica na crítica à política de admi-nistração colonial e militar portuguesa.

Aliás, Gregório de Matos, estando em Loanda, em 1694, pôde

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testemunhar uma insurreição militar de tropas mal pagas e maltra-pilhas com que teve de lidar o governador Henriques Jacques deMagalhães. Esse testemunho serviu-lhe para vergastar com a suafácil verve poética a degenerescência política e moral da colóniade Angola, por semelhança, aliás, com o que havia feito em diver-sas ocasiões quanto ao governo da Bahia e do Brasil. Se Gregóriode Matos não deixou epígonos, pelo menos conhecidos, em Ango-la, isso também pode significar que a indigência cultural no seutempo de degredo, seria muito grande e, por isso, os grupos comalguma capacidade para as musas (militares missionários e umque outro funcionário. Isto é, não haveria em Angola destes finaisdo sec. XVII condições culturais para a emergência de uma acti-vidade literária por parte dos filhos da terra, o que, aliás, transparececlaramente da História Geral das Guerras Angolanas (séc.XVII)de António de Oliveira Cadornega, que, tendo aí vivido por maisde meio século, desde o governo de Pedro César de Meneses(1639) até a administração de D. João de Lencastro (1691), nãoconseguiu registar dessa actividade mais do que a Décima (1647)do capitão António Dias de Macedo, filho da terra, que não foialém de um hesitante texto crítico-satírico sobre a arrogância dealguns administradores de segunda linha.

Uma explicação possível para essa indigência poderá ser tam-bém o facto de, então, não existir em Angola ainda uma sociedadede base mulata ou parda como a que existia no Brasil e da qualGregório de Matos foi, seguramente, o primeiro poeta, pondo emdestaque as suas qualidades, designadamente, as intelectuais e debeleza, para exasperação dos europeus:

É parda de tal talento,Que a mais branca e a mais bela,Poderá trocar com elaA cor pelo entendimento.

Mas, se, por um lado, os promovia poeticamente, por outrolado, também os criticava:

Muitos mulatos desavergonhados,Trazidos sob os pés os homens nobres,Posta nas palmas toda a picardia.

Era, assim, descrita a Bahia degradada nos costumes políti-

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cos e sociais da época, minados por uma fidalguia que o mesmoGregório de Matos, aliás, nascido numa abastada família de senho-res de escravos, filho de Gregório de Matos, fidalgo da série deEscudeiros em Ponte de Lima, e de D. Maria da Guerra, “matronada Bahia”, zurziria no célebre soneto “A Fidalguia do Brasil”:

Há cousa como ver um PaiaiáMui prezado de ser caramuru,Descendente do sangue de Tatu,Cujo torpe idioma é cobé pá? (cobessa)

A linha feminina é Carimá,Moqueca, pititinga, caruru,Mingau de puba, vinho de cajuPisado num pilão de Pirajá.

A masculina é aricobéCuja filha Cobé um branco PaíDormeu no promontório de Pacé.

O branco era um Marau, que vejo aqui:Ela era uma Índia de Marí:Cobé pá, aricobé, cobé, paí.

Regressado a Pernambuco, onde lhe autorizaram ir morrer,não deixou, então, Gregório de Matos verdadeira semente poéticaem Angola que germinasse antes da primeira metade do séculoXIX, desta feita já por intermediação de Castro Alves, de quemterá sido verdadeiro precursor. De facto, mulatizada já considera-velmente Angola, sobretudo em Loanda e no hinterlandbenguelense (o que, aliás, deu a Benguela o epíteto, também poé-tico, de Praia Morena) a plêiade de nativistas contestatários iriainevitavelmente surgir. Isso mesmo se constata, por exemplo, numrelatório de Nicolau de Abreu Castelo Branco, governador e capi-tão-general do reino de Angola, onde se insurge contra “as ideiassubversivas dos Demagogos, (que) têm chegado a toda a parte doMundo, influindo segundo as conveniências aos diferentes indiví-duos, que os inspiram”, juntando-se em “clubes muito recônditos”,sendo o maior número de adeptos os mulatos, e onde, então seforjava a revolução na colónia, a fim de se unirem “à causa doBrasil” recônditos”, sendo o maior número de adeptos os mula-

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tos, e onde, então se forjava a revolução na colónia, a fim de seunirem à causa do Brasil”.

Era, como vimos atrás, o fenômeno Kuribeka a funcionar liga-do estreitamente à maçonaria brasileira, impulsionada, aliás, por umaprofunda crise que, desde os finais do século XVIII, tinha tomadoconta de Loanda e de Angola, acentuando-se por toda essa primei-ra metade do séc. XIX. É neste cenário de crise que as influênciasliterárias brasílicas, especialmente as de cariz mais nativista e exóti-co do que propriamente as de cariz social (estas só emergirão peloinício do século XX, para se manifestarem amadurecidas apenasnos anos 40 e 50), começaram a notar-se mais em Angola.

Será José da Silva Maria Ferreira, nascido em 1827 e embar-cado para o Brasil em 1834 acompanhado por duas irmãs paraseguir estudos, no dizer do historiador angolano Carlos Pacheco, ointrodutor na literatura de Angola, por influência do Brasil, do“nativismo como precursor do nacionalismo” que brotaria

, a partir da

década de 50, com o movimento da Vamos Descobrir Angola. Aestada no Rio de Janeiro permitiu a Maia Ferreira o contacto comos meios intelectuais e literários locais, sobretudo através das lojasmaçônicas que vieram a originar os tais “clubes recônditos”, valen-do-se da experiência e da leitura dos vates brasileiros para escreverum poema a cantar a sua terra com glosa conhecida:

Minha terra não tem os cristaisDessas fontes do só Portugal,Minha terra não tem salgueirais,Só tem ondas de branco areal.(...)Não tem vates por Deus inspirados,Que decantem um Gama, um Moniz,Que em seus feitos com loiros ganhadosDeram lustre ao nativo país.(...)- Mas que, minha terraNão ten vate por Deus inspirado,Não é pátria do divo CamõesTão poeta, quão bravo soldado.

Não é pátria dos vates da AméricaQue em teus cantos, com maga harmonia,Na Tijuca em seu cume sentadoDecantaste em tão bela poesia.

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Nada tem a minha terra natalQue extasie e revele primor,Nada tem, a não ser dos desertosA soidão que é tão grata ao cantor.

E tu, Poeta bem fadado,Que na gentil GuanabaraTantos cantos tens cantadoÀ tua pátria preclara,

Recebe este meu cantoDe amargor e de pranto,Sem belezas, sem encanto,À minha pátria tão cara.

Leitor seguramente de O Uraguay de José Basílio da Gamae outros, Maia Ferreira evidencia em toda a sua poesia uma sintoniacom os ideais de liberdade e do liberalismo político de que o Rio deJaneiro era, no seu tempo, autêntico cadinho. Pelo início do séculoXX, em Angola, em Lourenço do Carmo Ferreira e em JorgeRosa, encontramos expressão poética desses ideais moldados napoesia brasileira de cariz nacionalista. Mas estas vozes de ango-lenses nacionalistas seriam eclipsadas por quase meio século, paradarem lugar a uma poesia angolana de orientação nitidamentecolonial que vai buscar grande parte da sua inspiração em Gonçal-ves Dias e Casimiro de Abreu, não pelo que tinham de mensa-gem, mas pelo exotismo semantico revelado. É assim que oindigenismo das paisagens física e humana do Brasil capta mais aatenção de poetas menores como João Baptista Pereira que, nosanos 40, glosa a célebre “Canção do exílio”:

Nos parmêra do BrasilCanta, canta o sabiá;Seja em Março ou em AbrilPassa os dias a cantá.

Dizem que canta a soidadeCoisa triste como o luto –Deste branco da cedadeQue não mais voltou ao Puto.

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E os gentes sonha ao ouvilO sabiá do Brasil!

Castro Alves, entretanto, irá repercutir na poesia da geraçãoda Mensagem da Literatura Angolana, sendo só expressamenteconvocado por João Maria Vilanova, um poeta angolano heterónimomais do que pseudónimo, na sua “Canção do Navio Negreiro”, jána década de 70. Aliás, João Maria Vilanova preferiu o regresso àgenuidade romântico-revolucioária de Castro Alves, não seguin-do, portanto, os caminhos do Modernismo Brasileiro que Mauríciode Almeida Gomes e Geraldo Bessa Victor anunciavam como osmais adequados para modelarem a poesia de Angola, desde Ma-nuel Bandeira e Ribeiro Couto a Jorge de Lima que Viriato daCruz invocaria. Mário António de Oliveira, esse, preferiu JorgeAmado para inspirar-lhe o poema sobre Jubiabá e António Balduíno,na linha da Terra Nova, lá na Luanda dos muceques.

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A Língua Portuguesa, esta língua que hoje põe em comunica-ção quase 200 milhões de falantes é favorecida por uma longa epreenchida memória escrita que se aproxima dos 800 anos. Temosdois textos autênticos do princípio do século XIII, que prolongaram econservaram, até aos nossos dias, na sua configuração material,esses gestos instituidores que fizeram do romance falado no noroesteda Península Ibérica uma língua escrita. O Testamento de D. AfonsoII,1 que se preserva mesmo em duplicado, é de 1214, e a Notícia deTorto,2 não estando embora datada, deve ter sido escrita pela mesmaaltura. Cerca de trezentos anos depois, foi esta língua escrita pelaprimeira vez no Brasil, num texto igualmente instituidor e, de algummodo paralelo do Testamento de D. Afonso II, que é a Carta do“achamento desta vossa terra nova”, escrita por Pero Vaz deCaminha.3500 anos depois, é justamente essa língua, que aindafalamos e escrevemos, que nos reune aqui, como um lugar deencontro, simultaneamente natural e cultivado, língua materna efraterna, pátria por sobre as pátrias, na qual depositamos as nossascomplacências e a esperamça de que a nossa voz chegue longe.

Gostaria de propôr uma breve apreciação do ritmo de varia-ção diacrónica, estabelecendo uma comparação entre os primei-ros 300 anos de escrita da Língua Portuguesa (desde o Testamen-to de D. Afonso II até ao séc. XVI), e o percurso histórico cor-respondente aos últimos 500 anos, desde a Carta do achamentodo Brasil, até aos nossos dias.

Para um falante do português, hoje, a Carta do séc. XVIoferece uma grande transparência e uma quase total legibilidade.É obviamente muito mais legível do que os dois textos do início do

O léxico arcaico na históriada Língua Portuguesa

Telmo Verdelho,da Universidade de Aveiro

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séc. XIII. Somos levados a imaginar que seria muito fácil comuni-carmos nós actualmente com Pero Vaz de Caminha, se ele pudes-se tornar à Terra de Santa Cruz, passados 500 anos, e falar-nosnesta assembleia. O mesmo não aconteceria certamente com elRei D. Afonso II e com os seu notários, ou com os poetas quenaquele tempo cantavam amores. Provavelmente, o próprio PeroVaz de Caminha teria mais dificuldade em entender o portuguêsfalado 300 anos antes do que entender esta língua que nós fala-mos 500 anos depois.

Quer dizer, a degradação arcaizante da memória da línguaparece atenuar-se ao longo dos últimos séculos, estaremos peran-te um abrandamento do processo de envelhecimento da língua.

A hipótese fundamenta-se sobretudo na observação do ritmode sedimentação lexical.

No séc. XVI, os leitores da língua escrita portuguesa encon-trariam mais arcaísmos no texto patrimonial a que tinham acesso,do que nós encontramos hoje no texto produzido durante os cincoséculos subsequentes.

Será necessário distinguir, por um lado, a massa lexical arcai-ca, constituída por um conjunto de formas que poderemos consi-derar completamente obliteradas como os verbos “filhar”, “leixar”,que perderam qualquer ligação com o vocabulário activo, e poroutro lado, as palavras desusadas e todo o conjunto lexical carac-terizado por conotações arcaizantes mas que mantêm em relaçãoà língua moderna uma espécie de motivação interna que facilita asua interpretação.

São sobretudo as primeiras, as palavras que perderam qual-quer ressonância no sistema lexical do português contemporâneo,que podemos designar de arcaísmos profundos e que marcam aruptura de intercompreensão no percurso da memória linguística.Ainda neste âmbito são particularmente determinantes as formasque foram de uso mais frequente e especialmente as partículas deligação ou de significação gramatical como os pronomes, os ad-vérbios, as preposições e as conjunções.

No séc. XVI pode marcar-se com uma certa precisão o limi-te entre um dicionário arcaico e um dicionário do português mo-derno. Todos os estudiosos da periodização da língua assinalamesta fronteira diacrónica. Logo no século XVII, Jorge Cardoso noAgiológio Lusitano (1657, t.II) e Frei Manuel do Sepulcro, naRefeiçam Espiritual anotam (cito deste último): “E naõ ha duvidaque maior mudança fez a lingua Portugueza nos primeiros vinte

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annos do reinado de Dom Manoel, que em cento & sincoentaannos dahi para cà: como o vemos pollos ecrittos, em verso &prosa, de hüs & outros tempos” (Refeiçam Espiritual , parte hiemal,Lisboa, 1669, p.11)

Mas já antes, os humanistas tiveram a percepção, uma espé-cie de consciência metalinguística, dessa substancial mudança damemória lexical. Um primeiro testemunho, certamente entre mui-tos outros que se perderam, encontra-se no esboço de um Voca-bulário de nomes antiguos que se guarda na Biblioteca da Aju-da e que remonta à primeia metade do século XVI,4 trata-se écerto de um vocabulário de nomes de especialidade referentesexclusivamente à actividade administrativa e elaborado certamentepor um cronista, mas é nos textos administrativos e tabeliónicosque se guarda a memória linguística mais próxima da vida para oportuguês medieval.

Interessante também e mais esclarecedor ainda, é o teste-munho de Aquiles Estaço (1524-1581), contemporâneo de Camõesque deixou entre os seus manuscritos em Itália (depositados nabiblioteca dos Oratorianos, em Roma, actualmente designadaVallicelliana), um brevíssimo apontamento com palavras dePortugues velho explicadas em latim ou em português.5

Anota entre outras:— a palavra “mais” com o equivalente latino “sed”, isto é

com o significado da adversativa “mas”— a forma “seente” com o equivalente latino “sedens” e a

glosa “seente nüa cadeyra”—”quite de peccado” e a explicação “livre”—”guisa” que traduz por “maneyra”—”esguardamento” que traduz por “conspectus”— e ainda entre várias outras formas, as partículas “pero”,

“hy”, “acá”, “de suso”, “entonsce”.Ora é sobretudo pelo abandono destas partículas de ligação

ou de significação gramatical e pela obliteração de alguns verbosde grande frequência que se torna sensível essa estranheza de umportuguês velho, de leitura muito mais difícil do que o portuguêspós-camoniano.

Vale a pena considerar, ainda que em breve listagem, natural-mente incompleta, algumas dessas partículas obsoletas que tecemo texto arcaico. Por ordem quase alfabética, e sem detençasclassificativas, lembrarei:

acá, adur, al, ar / er (re), atá, ca (quia), cas (en cas de), chus,

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crás, desi, en, ende, dende, por ende, ensembra, i (ibi - y, hi), guisa,juso / suso, mais (mas), oi, oimais, ormais, ogano, pero, empero, depram, ren, samicas, tamalavez, toste, u/hu (ubi).

Deve notar-se que esta instrumentação gramatical tornou-semuito mais estável ao longo dos últimos quinhentos anos e quasenão se encontram mais formas perdidas.

Há também um conjunto de verbos que sofreram uma forteobsolescência e, porque muito provavelmente tinham uma eleva-da frequência no português medieval, a sua presença ou ausênciarepercute-se de maneira sensível no horizonte lexical destes doismomentos da história da língua.

Citarei apenas alguns:acaecer, apartar, cousir, departir, enader, esguardar, filhar,

gaançar, guarir, guisar, iguaar, leixar, liar, osmar, nembrar/renembrar,prasmar, quitar, retar, rezoar, saar (sanare), seer, talhar, tolher, traer.

Cada um destes verbos têm a sua história e o seu percursodiacrónico. Quase todos eles se apagaram da memória lexicalportuguesa activa antes do século XVI.

Destacarei entre eles os verbos filhar, leixar e guisar, queno século XV eram verbos de ocorrência bastante frequente.

Em Fernão Lopes, na Crónica de D. Fernando, o verbo“filhar” tem 23 ocorrências; “guisar” tem 8 ocorrências e guisatêm 290; “leixar” tem 127 ocorrências e a forma moderna “dei-xar” não tem nenhuma; “Filhar” e “guisar” obliteraram-se maiscedo e não chegaram a entrar no séc. XVI, mas “leixar” foi subs-tituído pelo meio desse mesmo século.

Pero Vaz de Caminha, em 1500, traz ao Brasil ainda e ape-nas a forma “leixar”.

Na primeira edição do Auto da barca do inferno (1518) ocorresempre o verbo “leixar”, mas na edição da Compilaçam preparadapor Luís Vicente, ocorre 3 vezes o verbo “deixar” e 2 “leixar”6

Damião de Góis que viveu entre (1502 - 1572) na Crónicado Príncipe D. João alterna “deixar” e “leixar” com predomíniode “deixar” (21 oc.) sobre “leixar” (12 oc.).

Garcia de Resende (1470-1536) em Vida e feitos de D. JoãoII, escrito em 1533 usa “deixar” - 46 vezes e 3 vezes apenas “leixar”.7

André de Resende (1498-1573) que era um fervorosolatinizante, na Vida de Frei Pedro, publicada em 1570, recusou aforma “deixar” e usa apena “leixar”, meticulosamente grafada“lexar”, como quem pretende recuperar o étimo “laxare”.

Finalmente Camões que era pelo menos 20 anos mais novo

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do que Damião de Góis e ainda mais do que André de Resende,nunca usa o verbo “leixar” em “Os Lusíadas” e, no conjunto daobra lírica que lhe é atribuída, registam-se duas ocorrências de“leixar” contra 130 de “deixar”. Estas duas ocorrências de “leixar”,únicas em toda a obra atribuída a Camões, encontram-se em doistextos líricos, um soneto e uma glosa sobre uma “cantiga velha” e,muito provavelmente, podem não ser da autoria do poeta.

Concluindo, quando a Língua Portuguesa chegou ao Brasil, oudizendo melhor, quando a língua portuguesa fez a sua trasumânciapara o Brasil, estava a criar condições para manter uma recursividadelexical interactiva e vivaz. A criação de um importante patrimóniotextual, a elaboração de dicionários e o alargamento daintercomunicação diacrónica terão sido factores preponderantes paraa manutenção da memória disponível das palavras.

A língua evolui e envelhece, mas os falantes de todo o tempopodem contribuir para que a língua continue a evoluir, mas queenvelheça cada vez menos. Foi isso que fez Pero Vaz de Caminhaao escrever a sua famosa Carta. Contribuíu para que as suaspalavras continuassem a ser revitalizadas, e, na verdade, em todoo seu texto, apenas 4 formas não vêm registadas nos dicionáriosdo português moderno, por serem consideradas arcaísmos:

“ca, leixar, senhos, tamalavez”.Como quer que seja, nenhuma destas palavras ultrapassou o

século XVI, na memória do léxico activo português.

Notas1— V.: Avelino de Jesus da Costa, “Os mais antigos documentos

escritos em Português”, in Estudos de cronologia, diplomática e histó-rico-linguísticos, Sociedade Portuguesa de Estudos Medievais, Porto,1992, p.169-256.

2— V. Luís F. Lindley Cintra, “Sobre o mais antigo texto não-literárioportuguês: A Notícia de Torto (Leitura crítica, data, lugar de redacção ecomentário linguístico)”, in Boletim de Filologia, t.XXXI (1986-1987),Lisboa, 1990, p.21-77; e ainda Susana Maria de Figueiredo Tavares Pedro,De noticia de torto, Dissertação de Mestrado de Paleografia e Diplomá-tica, na Faculdade de Letras, Lisboa, 1994.

3— V. Vocabulário da Carta de Pero Vaz de Caminha (seguido defac-símil e leitura diplomática do texto), Rio de Janeiro, Instituto Nacional

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do Livro - Ministério da Educação e Cultura, 1964.4 V. Telmo Verdelho, As origens da gramaticografia e da lexico-

grafia latino-portuguesas, Aveiro, INIC, 1995, p.385 e s.5 A investigação na biblioteca Vallicelliana foi feita pelo Dr.

BelmiroPereira da Fac. de Letras do Porto, que generosamente me facul-tou o acesso a esta informação.

6 I. S. Révah, Recherches sur les oeuvres de Gil Vicente, Lisboa,1951, p.95.

7 Evelina P. Silva Verdelho, Livro das Obras de Garcia de Resende,edição e estudo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.

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Numa recente visita à Galiza, logo de ser laureado com o PrémioNobel da Literatura, José Saramago manifestava com louvável sin-ceridade que para optar a um triunfo internacional tão apetecidouma das condições mais vantajosas, um requisito inescusável qua-se, consiste em dispor de uma obra, além de valiosa em sentidoestético, traduzida para o maior número de línguas. Era uma afirma-ção com certeza irrepreensível no caso do autor de Que farei comeste livro?, cujo património literário se estende por todo o mundoatravés de variados idiomas, mais de trinta, do inglês, o alemão ou ofrancês até ao russo, o turco ou o chinês, sem esquecer por anteci-pado o sueco, língua para a que se traduziram quatro romances seusnum período de apenas quatro anos antes de receber o Nobel.Saramago falava assim a partir da experiência privilegiada de verfelizmente alargado o espaço da sua lingua original e não se mostra-va ignorante, aliás, do amplo significado que a tradução possui paraa vontade de projecção de um autor, não em vão ele mesmo viveusacrificadamente muitos anos, longe ainda da consagração, de ver-ter obras estrangeiras em português.

É boa verdade, por suposto, que o facto de um escritor termuitas versões dos seus livros noutros idiomas não garante a hipó-tese de qualquer ano alcançar o Prémio Nobel da Literatura. Pau-lo Coelho, nas redondezas da criação literária, cumpre a condiçãoapontada por Saramago com vinte milhões de livros vendidos emmuitos países, os quais permitem, mais do que nada, que ganhecada mês por direitos de autor à volta de um milhão de dólares.Ora bem, nem por isso admite dúvida que a popularização interna-

Tradução literária ecomunicação cultural: o

português do Brasil em Espanha

Xosé Manuel Dasilva,da Universidade de Vigo

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cional desde há pouco tempo do nome de Saramago se tem firma-do, em grande medida, num mecanismo da notoriedade tão efec-tivo como o que constitui a capacidade divulgadora da tradução1.Perante a realidade desta circunstância, de natureza até esmagado-ra, mesmo é plausível imaginar que o próprio autor de Memorial doconvento criasse os seus romances e ao mesmo tempo estivesse jáa pensar na sua imediata translação a outras línguas, o que poderiater até influência em certas escolhas estilísticas para o texto original.Talvez esta suposição seja exagerada, mas não convém descartá-ladesde que uma voz tão esclarecedora como a do editor e narradorportuguês Luiz Pacheco lançasse, nesse sentido, a denúncia deste-mida de Saramago e também Lobo Antunes utilizarem, com o pen-samento posto generosamente nos seus tradutores, uma prosa jánão de genuína feição lusitana, mas sobretudo formada por traçosidiomáticos acessíveis de fácil adaptação a qualquer âmbito interna-cional. Inserida num depoimento jornalístico, eis reproduzida na ínte-gra a citada denúncia de Luiz Pacheco, corajosa verdadeiramente enão isenta de relevo:

Queremos que digas o que quiseres. Há aquium problema grave, que é assim. O Lobo Antunese o Saramago não estão a escrever para vocês nempara mim. Estão a escrever uma coisa génerostandard, que é o romance internacional. Já não éprosa portuguesa. Se eu amanhã estivesse traduzi-do na China, na Alemanha, na Inglaterra, não podiaestar a escrever um texto com requintes poéticosou termos idiomáticos ou ir buscar palavras esqui-sitas, porque isso, na tradução, o tradutor não sevai chatear. (...). Como sabem que vão ser traduzi-dos, têm de fazer uma linguagem o mais correntepossível, mais linear, mais badalhoca. Desculpa,mas quer o Saramago quer o Lobo Antunes nãosão propriamente escritas assim tão simples. Sãoaté barrocas, num certo sentido. Não sei comoserá em tradução. Ó pá, hoje, um escritor, géneroSaramago ou Lobo Antunes, está a fazer um livro ea pensar no Prémio Nobel. Não está a pensar emvocês nem em mim. É na tradutora sueca ou alemã.Não está a fazer um romance, está a fazer um produ-to. tem de escrever a pensar nisso: temas mais oumenos de interesse universal, e depois serve-seaquilo na prata da casa.2

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Numa recente visita ao Brasil, logo da sua estada na Galiza,Saramago propunha, com motivo da IX Bienal do Livro do Rio deJaneiro, a necessidade de uma iniciativa similar luso-brasileira queterminasse com o isolamento entre os escritores e os leitores deambos os países. Este apelo esperançoso estava destinado a cor-rigir a dolorosa ignorância recíproca a respeito das duas literatu-ras, mas cumpriria interpretá-lo, aliás, como medida indispensávelcom o intuito de favorecer a tradução da literatura que se produzem cada comunidade lusófona. Com efeito, como será possívelimpulsar o conhecimento internacional das letras portuguesas ebrasileiras por meio de versões noutras línguas se a leitura de au-tores de cada uma destas literaturas simplesmente não existe, coma ressalva da massa universitária, tanto em Portugal como no Bra-sil? É evidente, por antecipado, a conveniência de um conheci-mento mútuo das duas literaturas, e isso porque, em primeiro lugar,contribuiria para fortalecer os elos culturais entre as duas comuni-dades, mas ainda seria muito útil também a fim de propiciar, poroutra parte, um bloco comum na conquista de leitores para lá dasfronteiras da lusofonia.

É muito ilustrativa, no que diz respeito a esta questão, a expe-riência que se viveu há dois anos na Feira do Livro de Frankfurt,na Alemanha, onde Portugal participou com sucesso na qualidadede país-tema. Uma literatura como a portuguesa, periférica nasgrandes rotas editoriais, conseguiu então um importante reconhe-cimento para afirmar-se no mercado internacional, prelúdio doimediato Prémio Nobel que se outorgaria às suas letras. Se antesexistiam apenas sessenta e cinco livros de autores portuguesestraduzidos para alemão, a Feira do Livro de Frankfurt permitiu quetão-só no período de um ano aparecessem as versões de maisquarenta livros. Este sucesso não atingiu, contudo, do mesmo modoa literatura brasileira nem, além disso, facilitou quando mais nãoseja que a recepção dos autores de cada um dos dois países setornasse mais fluída no outro espaço. Foi exequível, pelo contrário,verificar nesse evento a contradição de que a mesma língua, maisdo que a diversidade idiomática, possa chegar a ser um obstáculo,ao menos em termos editoriais, na difusão correspondente dasliteraturas portuguesa e brasileira. Efectivamente, o editor portu-guês não comprava na Feira do Livro de Frankfurt os direitos deedição de títulos brasileiros e a mesma era a atitude em sentidoinverso, isto é, o editor brasileiro no que diz ao livro português, demaneira que se continuou a perpetuar assim a distribuição das

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literaturas respectivas em ambos os países através de importado-res, os quais não raro dificultam mais o trânsito literário entre fron-teiras do que os tradutores.

Seja como for, é necessário revelar uma certeza incontestá-vel quanto à projecção internacional das letras portuguesas e bra-sileiras. Está-se a fazer referência à sua dissemelhante expansão,visto que as primeiras alcançaram um grau de conhecimento maiselevado ainda de cada vez, designadamente como consequênciado Prémio Nobel concedido a Saramago, que as letras brasileirasnão conseguiram, e isso com independência da rica qualidade queoferece tanto uma literatura como a outra, sem nítidas diferençasa este respeito. Se se adopta como ponto de partida o âmbitoespanhol, por exemplo, não é comparável o peso da presença por-tuguesa e da presença brasileira entre os leitores deste país pormeio de traduções. Conquanto não se tenha chegado ao limitemais satisfatório, é interessante registar o número de obras deautores portugueses vertidas em Língua Espanhola, enquanto osautores brasileiros se contabilizam ainda em quantidade poucosuficiente. Realmente deve-se dizer que apenas é exequível lerem espanhol a obra de autores assinalados da literatura brasileira,mais uma excepção do que um acontecimento sistemático, graçasao esforço teimoso de alguns tradutores a imporem as suas prefe-rências perante as editoras.

Talvez não haja que rejeitar para esta desigualdade ser assima cercania, tanto em termos geográficos como culturais, de Portu-gal com relação a Espanha e a distância do Brasil3 . Trata-se deuma explicação aceitável que é adequado matizar, no entanto, comoutras notas de índole idiomática sobre a peculiaridade da língualiterária brasileira. Há que confessar, antes de mais, que fica longede qualquer intenção aqui encarecer a diversidade palpável, sem-pre menor, aliás, do que a unidade, entre a modalidade americanae a modalidade europeia da Língua Portuguesa. Não é difícil com-preender sem prejuízos enfadonhos que a larga difusão do portu-guês no mundo, a ocupar espaços muito afastados entre si, tivessecomo consequência a variedade legítima que o idioma apresentahoje em dia. Uma análise dos traços particulares de cada modali-dade realizada de uma perspectiva restritamente filológica con-duz, efectivamente, a fixar a sua natureza comum no conjunto domesmo sistema linguístico, e isso a despeito da existência de cor-rentes, de forma paradoxal até a surgirem na antiga metrópole,interessadas em traçar diferenças abertas e inconciliáveis entre

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as diversas normas da Língua Portuguesa.Ora bem, esta situação descrita, susceptível de ser examina-

da com conceitos filológicos transparentes, reclama uma aproxi-mação mais pormenorizada do ponto de vista tradutológico. E éque parece complicado negar em princípio a realidade de umalíngua literária brasileira singular, por vezes não ajustada às con-venções da língua escrita comum, que encerra repercussões evi-dentes, nem sempre de fácil abordagem, para a sua desembara-çada circulação exterior por meio da translação a outros idiomas.Como se sabe, cumpre estabelecer a vontade definitiva de criaruma língua literária de signo nacional, após tentativas primigéniasno período romântico, especialmente a partir do Modernismo, cujarevolução estética há-de significar o desejo irrefreável de renovara linguagem no território da criação literária. Para lá de excessosostensíveis de alguns autores, é por via de regra aceite que a ousa-dia modernista supôs a vantagem de a literatura brasileira granjearuma língua privativa pouco distante dos seus referentes mais vivose, aliás, de grande virtualidade artística. Bem certo é que na maiorparte dos primeiros modernistas apenas se percebem actos deescrita individuais, arbitrários portanto e sem procurarem aunicidade de uma norma no seio da língua literária, mas isso nãoevita reconhecer, através das suas experiências tão versáteis, ogérmen possante de um instrumento idiomático tão marcadamentenacional quanto afastado da rigidez lusitana. Embora não seja agoraa melhor ocasião para aprofundar neste novo horizonte que o rom-pimento modernista delineou no panorama literário brasileiro, sirvaao menos como amostra o conhecido testemunho do poeta RaulBopp, tão revelador como os famosos versos de Manuel Bandeiraem idêntico sentido no poema “Evocação de Recife”:

Leis da gravidade do idioma e seus valoresincógnitos. A gramática atravessou o oceano e ins-talou-se na Casa Grande, com as suas fórmulasvernáculas, preocupada com purismos lusos namaneira de dizer. Não ouvia as vozes de lá fora.Mas o Brasil amansou o idioma... a linguagem, nassuas múltiplas relações de cultura, foi-sediferençando das usadas em livros de além-mar.4

Esse processo de nacionalização, por assim dizer, da lingua-gem inerente às letras brasileiras contemporâneas favoreceu des-de então, acima de tudo, a existência de um sistema literário com

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fisionomia inconfundível, sem vínculos estreitos demais com a litera-tura portuguesa. Mas primeiro o Romantismo e nomeadamente oModernismo mais tarde propiciaram dessa maneira, além disso, aconsolidação de um veículo expressivo que permite identificar umcerto pendor da língua literária brasileira. Com efeito, nessa linguagemartística é preciso pôr em lugar de destaque a sua extremada liberdadede sabor invulgar, repleta de flexibilidade e de imaginação verbal.Tudo consistiu em sobrepor formas actuais às raízes já conhecidascom anseio indagador, sem medo a misturar elementos de origemvariegada e até afortunados achados, o que determinou a constituiçãode uma língua literária de complexo tratamento para ser traduzidanoutros âmbitos culturais. No mesmo campo da tradução, mas agorano que diz respeito a essa linguagem como ponto receptor e não naqualidade de fonte emissora, é oportuno trazer à baila asexperimentações de Augusto e Haroldo de Campos com a obra dediversos nomes da literatura universal —Ezra L. Pound, James Joyce,Mallarmé, Maiakovski, Paul Valéry, Goethe, Lewis Carroll,Keats...— que revolucionaram a língua literária e, por essa razão,deparavam um atraente repto de tradução5. Não apenas inexistentesem Portugal, mas também desditosamente irrealizáveis, taisexperimentações de Augusto e Haroldo de Campos desvendariamuma atitude idiomática de semelhante carácter inovador, a alargarem,neste caso, a dimensão da língua própria graças à influência dalíngua estrangeira que se traduz.

Um experiente tradutor de textos lusófonos no âmbito hispâni-co expunha, não há muito tempo, a reflexão de a língua literáriabrasileira, por ele mesmo qualificada significativamente como modelodas línguas do século XXI, ser um instrumento vulcânico de ímpetoessencialmente renovador6. O seu magma seria um conjunto léxicoe uma modelação sintáctica de proporções trasbordantes, fruto deuma realidade proteica que é um resumo do mundo e desafia otradutor com inúmeros segredos. Um universo original, enfim, comuma cultura multiforme em que se torna saliente a sugestiva presençade diferentes tradições, as quais se manifestam no vocabulárioatravés de um património opulento e na sintaxe por meio de umaagilidade irreprimível. Este tradutor citado tem vertido em espanholvárias obras de autores como João Ubaldo Ribeiro, Autran Dourado,Clarice Lispector ou Rubem Fonseca, sempre a preservar o pendorda língua literária brasileira embora por vezes esse esforço apenasmerecesse a derrota, como aconteceu com o romance Tebas domeu coração, de Nélida Piñon, cuja tradução abandonou após um

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ano de batalhas contra uma sintaxe que rompia premeditadamentequalquer linearidade do pensamento. Tratar-se-ia de um fenómenoexpressivo análogo ao que surge na modalidade americana doespanhol, manancial também de novo sangue que se transfunde, adar uma outra vida, para um idioma que é tão antigo como oportuguês7. É conveniente trazer à colação, a fim de perceber asdificuldades paralelas que suscita a tradução da narrativa hispano-americana, o seguinte depoimento sobre uma versão alemã da suaobra feito pelo escritor guatemalense Miguel Ángel Asturias, tambémPrémio Nobel da Literatura:

O tradutor de romances latino-americanos temque ter uma potência poética. Se ele, no fundo, nãoé poeta, se ele não sabe traduzir euforicamente osnossos livros, o leitor alemão nunca terá uma im-pressão remota do que seja a nossa literatura. Onosso espanhol é uma língua que se move numaescala amplíssima, e esta escala que se permuta emestações do sentir, do adivinhar, do pensar -exatamente nesta ordem - requer que ela sejatraduzida na maneira em que se expressa no origi-nal. O tradutor de nossa literatura tem que estar apar do que acontece em nossas terras, ele tem quesaber que nossas obras são a resposta a esta reali-dade viva e em transformação.8

Esse é um pensamento que Meyer-Clason, tradutor para ale-mão de Guimarães Rosa, põe de relevo de caso pensado com oalvo de patentear a complexidade tradutora da língua literária bra-sileira e, mais em concreto, os abrolhos que levanta qualquer ver-são noutro idioma do autor de Grande sertão: veredas. Guima-rães Rosa, justamente, pode servir de valiosa ilustração para reve-lar os efeitos tradutológicos da capacidade verbal dos autores bra-sileiros, embora seja necessário aceitar, por suposto, que é umescritor de grande singularidade nesse sentido. É verdade que aobra literária de Guimarães Rosa representa, por si só, uma aven-tura expressiva de génio excepcional no próprio panorama dasletras brasileiras, porquanto o seu estilo indefinível significa umaaudaz proposição que liberta a linguagem até ao infindo. Não seestá aqui, como bem se sabe, perante um instrumento comunica-tivo de base colectiva, mas antes é um discurso de perfil abstracto,quase de pura ficção, que mistura ingredientes naturais e artifici-ais para explorar, com fôlego altamente criativo, as próprias possi-

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bilidades do idioma português9. Consoante o seu axioma de quetão-só renovando a língua é que se pode renovar o mundo10, Gui-marães Rosa enriquece a expressão, efectivamente, com critériosintransferíveis que nascem sobretudo da sua subjectividade inaca-bável. Foi dito quanto a isso, e é uma equação susceptível de seraceite, que o seu idiolecto dispõe de um alcance vivificadorequiparável à fertilidade que o discurso literário brasileiro forneceao sistema linguístico português11. Esse carácter solitário da expe-riência estilística de Guimarães Rosa porventura seja a interpreta-ção última que convem dar àqueles versos iniciais do poema “Umchamado João”, de Drummond de Andrade, vindo à luz apenastrês dias após o falecimento do escritor: Sertão místico dispa-rando / no exílio da linguagem comum?12

Apesar de o código de Guimarães Rosa ser uma descobertaindividual, a mágica revelação da sua linguagem representaria, to-davia, uma amostra levada até ao extremo do gosto renovador tãofecundo da língua literária brasileira13. É conhecido que as primeirasexperimentações modernistas implicaram mormente a transforma-ção da língua no género poético, enquanto a prosa, por sua vez,opunha mais resistência a qualquer mudança radical. Há-decorresponder a Guimarães Rosa a propagação bem sucedida dessealento vanguardista no campo da ficção, a dar lugar assim a umaprosa de espírito inovador que acrescentava à radicalização vocabulardos modernistas uma sintaxe revolucionária14. A capacidade supre-ma do autor de Noites do Sertão para criar um estilo original vincu-lar-se-ia, portanto, ao mesmo curso da história das letras nacionais eseria uma prova deslumbrante, para lá da sua natureza privativa, dopoder verbal que não raro é traço comum na literatura brasileira.Segundo se pode observar com clareza no seguinte depoimento,Guimarães Rosa era consciente do vasto catálogo de recursos aodispor do escritor brasileiro, e não do escritor português, para desen-volver uma língua literária de alargado signo criativo:

Deve-se apenas partir do princípio de quehá dois componentes de igual importância em mi-nha relação com a língua. Primeiro: considero alíngua como meu elemento metafísico, o que semdúvida tem suas consequências. Depois, existemas ilimitadas singularidades filológicas, digamos,de nossas variantes latino-americanas do portu-guês (...). Temos de partir do facto de que nossoportuguês-brasileiro é uma língua mais rica, inclu-

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sive metafisicamente, que o português falado naEuropa. E além de tudo, tem a vantagem de queseu desenvolvimento ainda não se deteve; aindanão está saturado. Ainda é uma língua JenseitsVon Gut und Bösel —Além do Bem e do Mal—, eapesar disso, já é incalculável o enriquecimentodo português no Brasil, por razões etnológicas eantropológicas. (...). Naturalmente, tudo isto estáà nossa disposição, mas não à disposição dosportugueses. Eu, como brasileiro, tenho uma es-cala de expressões mais vasta que os portugue-ses, obrigados a pensar utilizando uma língua jásaturada.15

Uma outra razão justificaria ainda a escolha de GuimarãesRosa para desvendar as consequências tradutológicas da riquezaexpressiva dos autores brasileiros, e é a ampla difusão internacio-nal dos seus livros através de um bom número de versões noutraslínguas16. Mesmo não é complicado registar o seu interesse pelofenómeno da tradução, graças sobretudo a alguns testemunhosentre os quais se tornam especialmente salientes os contactosepistolares com Meyer-Clason, já citado, tradutor para alemãodas suas obras, e com Edoardo Bizzarri, responsável de algumasversões italianas17. Esse interesse de Guimarães Rosa cimenta-va-se, por suposto, na sua multíplice competência linguística, aabranger diferentes idiomas como o espanhol, o francês, o italiano,o inglês, o alemão, o russo, o sueco ou o holandês. Também sefirmava, no entanto, numa perspicaz compreensão do processotradutor no território da literatura, mais ainda no que tem a vercom uma obra de aclimatação tão intricada noutras realidadesculturais como era a dele18. Guimarães Rosa revelou, com efeito,uma inteligência total da profícua comunhão entre criador e tradu-tor, o que é frequente hoje em dia com excelente resultado namaior parte dos casos mas que ainda na altura parecia esquisito19.Sabe-se que ele acompanhava a tradução das suas obras noutraslínguas, a contribuir valiosamente assim para esclarecer dúvidaspontuais, nomeadamente de índole léxica, ou para iluminar passosobscuros de leitura inacessível. Os abrolhos que os seus textosdeparavam ao tradutor foram chamados de procustos pelo enge-nho irónico do próprio escritor, em alusão às conotações lancinantese tirânicas do leito de ferro em que Procues, assaltante da Ática,torturava os viajantes20. Inclusivamente Guimarães Rosa, além

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desta disposição cordial perante as hesitações dos seus traduto-res, era capaz de reconhecer com generosidade a hipótese deuma versão bem aprumada chegar a preencher o sentido da obraoriginal, como se sublinha nestas palavras de afervorada aprova-ção a respeito das edições italianas feitas por Edoardo Bizzarri:

Sem piada, mas sincero: quem quiser realmen-te ler e entender Guimarães Rosa, depois, terá de iràs edições italianas.21

A fim de ter em vista o exemplo de Guimarães Rosa com oobjecto de demonstrar as particularidades de trasladar a língua literáriabrasileira caberia aduzir, de resto, uma última motivação não menosinteressante. E é que ele responde à verdade de que, em últimainstância, quase sempre não se traduz uma língua, mas sim umescritor. Conhece-se com bastante pormenor, após demoradasanálises já realizadas por diferentes estudiosos22, a dilatada colecçãode procedimentos expressivos que configuram a feição maisrevolucionária da prosa de Guimarães Rosa. À margem deindianismos, regionalismos, latinismos, estrangeirismos23, neologis-mos ou, noutro plano, para além de recursos gramaticais de notávelprofusão como o uso de sufixos e prefixos, a abreviação de palavrasou a desarticulação da sintaxe, sem esquecer ainda os valores fónicosda sua escrita24, há um outro aspecto saliente que é muito significativono que diz à criatividade da sua linguagem. Trata-se da galecidadeléxica que está presente em certas obras através de palavras antigas— amojar, chirimia, sanfona, orvalho, lusco-fusco...— , hojemortas ou ao menos moribundas no português europeu mais canónicoe ainda vivas no fundo vocabular da língua galega25.

Todos os procedimentos expressivos referidos, e mais outrosque seriam de interminável enumeração, convertem a linguagemde Guimarães Rosa numa amostra elucidativa do zelo que exigeverter um texto literário brasileiro noutra língua. É prova disso, porexemplo, o seu livro zenital Grande sertão: veredas, onde o lon-go monólogo de Riobaldo, mais de quinhentas páginas, supõe umconvite tão aliciante como arriscado para qualquer tradutor. Oestorvo principal, como nem podia deixar de acontecer, é reprodu-zir na tradução esse ar estilístico tão sobresselente que está inti-mamente unido ao modo de dizer de Guimarães Rosa. Com efei-to, a tarefa mais árdua consiste em transmitir a mesma sensaçãode estranhamento que o leitor original, por seu turno, experimentaem face da portentosa utilização da língua que se manifesta ao

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largo da obra. Para isso a melhor estratégia tradutora tem de guardarum cuidadoso equilíbrio entre o respeito às peculiaridades idiomá-ticas do romance, de um lado, e a procura da sua inteligibilidadepor parte de receptores forâneos, de outro.

Grande sertão: veredas foi vertida em numerosas línguasdesde que veio a lume em 1956, mas nem sempre, verdade diga-se, esse equilíbrio necessário se conservou na medida mais ajus-tada26. Como modelo de tradução digno de não ser imitado cum-pre citar a versão francesa, cujo título é simplesmente Diadorim27,visto que o tradutor tende aqui a explicar demais os labirintos daprosa de Guimarães Rosa ao leitor estrangeiro. Os esclareci-mentos excessivos conseguem, isso sim, a compreensão da obra,mesmo por vezes com indicações óbvias, embora seja à custade transformar a língua do escritor num francês coloquial quefica longe da sensação de estranhamento que origina a leitura deGrande sertão: veredas. Uma impressão equivalente suscita aversão inglesa do livro, The Devil to Pay in the Backlands, denovo com o título modificado sem razão aparente28, onde seregularizam de forma injustificável o vocabulário e a sintaxe daobra com falsas correspondências pertencentes ao registo maisconvencional do idioma.

No ponto contrário em relação às traduções citadas situar-se-ia a versão espanhola de Grande sertão: veredas, exemplo modelardaquele equilíbrio antes reivindicado entre a singularidade do textooriginal e a inteligibilidade do texto traduzido29. O acerto primeiro doseu responsável, um critério essencial do princípio ao fim desta versão,é perceber que a assombrosa linguagem de Guimarães Rosa não sesubmete aos preceitos concertados da Língua Portuguesa e mesmopossui matizes especiais no conjunto da língua literária brasileira. Apartir de aí o tradutor para espanhol tenta manter o ar estilístico deGrande sertão: veredas, a utilizar para isso uma estratégiatranslativa que se estriba em aplicar à Língua Espanhola o mesmorepertório de efeitos expressivos que estão presentes na obra original30.É um verdadeiro trabalho de recriação idiomática em que o leitor datradução consegue experimentar a mesma sensação deestranhamento perceptível no romance de Guimarães Rosa e, alémdisso, sem deixar de entender por inteiro a sua mensagemexcepcional. Veja-se a forma espanhola de Grande sertão: veredasneste desfecho do monólogo de Riobaldo:

Cierro. Ya ve usted. Lo he contado todo.Ahora estoy aquí, casi un barranquero. Para la

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vejez voy, con orden y trabajo. ¿Sé de mí? Cumplo.El Río de San Francisco —que de tan grande secomparece— lo que parece es un árbol grande, enpie, enorme... Amable usted me ha oído, mi idea haconfirmado: que el Diablo no existe. ¿Pues no?Usted es un hombre soberano, circunspecto.Amigos somos. Nonada. ¡El diablo no hay! Es loque yo digo, si hubiese... Lo que existe es elhombre humano. Travesía.31

Pode servir como indício da competência do tradutor a resolu-ção que adopta no atinente ao título da obra, desatinadamente alte-rado, como se viu, no caso das versões francesa e inglesa. A tradu-ção para espanhol do romance intitula-se Gran sertón: veredas,que transmite assim a partir da sua mesma designação, de elevadatranscendência semântica, um dos grandes conceitos do livro damesma maneira que se tinha feito já na versão alemã, publicadacom o título original Grande sertão32. É indubitável que o vocábulosertão, introduzido como neologismo na Língua Espanhola sob aforma sertón, constitui uma holófrase, quer dizer-se, uma palavraque faz referência a uma noção cultural privativa, sem correspon-dência exacta noutras línguas. A decisão de traduzir tal holófrasenunca permitirá exprimir o amplo sentido que o vocábulo possui nalíngua a que pertence de forma original, nem tão sequer por meio deuma pormenorizada explicitação, mas existiria ainda um outro desa-certo se se decidir a sua substituição por um termo próprio na línguareceptora. Efectivamente, a eliminação da palavra sertão repre-senta, em alguma medida, um gesto de desdém escusado diante deum elemento decisivo na obra de Guimarães Rosa. O tradutor es-panhol, com a sua resolução para o título do romance, mostra-seconsciente disso e reproduz o vocábulo original, a cumprir dessemodo um dos requisitos acima enunciados exigíveis para verter alinguagem de Guimarães Rosa noutra língua. Mas nem por essarazão o tradutor esquece o outro aspecto implicado no equilíbrio queantes se reclamou, isto é, a inteligibilidade da obra, já que comenta osignificado de sertão, a par de outros termos igualmente susceptí-veis de serem conservados, num glossário que aparece nas páginasfinais da edição espanhola. É muito provável que o próprio Guima-rães Rosa tivesse autorizado esta estratégia translativa que se movealternadamente do respeito à inteligibilidade, pois é a conclusão quese tira do seguinte trecho que inseriu como “Prefácio” anteposto àstraduções de contos húngaros realizadas por Paulo Rónai33, que ele

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considerou, em sentido inverso, inteligíveis mas pouco respeitosascom a substância dos textos originais:

Saudável é notar-se que ele [Paulo Rónai] nãopende para a sua língua natal, não imbui de modos-de-afeto seus textos, que nem mostram sedimen-tos da de lá; não magiariza. Antes, é umabrasileiramento radical, um brasileirismo generali-zado, em gama comum, clara, que dá o tom. A mim,confesso-o, talvez um pouquinho, quem sabe, atéagradasse também a tratação num arranjo mais tem-perado à húngara, centrado no seio húngaro, aversão estreitada, de vice-vez, contravernacular,mais metafrásica, luvarmente translatícia, sacudin-do em suspensão vestígios exóticos, o especiosode traços hungarianos, hungarinos —o ressaibo eo vinco— como o tókai, que às vezes deixa umsobregosto de asfalto. Mesmo à custa de, ou —franco e melhor falando— mesmo para haver umpouco de fecundante corrupção das nossas fór-mulas idiomáticas de escrever.34

O desafio de traduzir Guimarães Rosa, modelo proeminentedo espírito tão feraz da língua literária brasileira, é complexo de-mais, com certeza, mas não conduz inevitavelmente ao fracas-so35. É necessário aceitar, de resto, que o amplo número de ver-sões dos seus livros noutras línguas, além da sua incontroversaaltura estética, contribuiu definitivamente para fortalecer a exten-sa projecção internacional do seu nome. O importante é estimularo mesmo sucesso exterior da língua literária brasileira através detraduções a diferentes línguas de mais autores em que se tornepatente, a todo o transe, o equilíbrio aqui requerido entre agenuinidade expressiva da obra original e a inteligibilidade leitorada respectiva versão. É difícil, com efeito, mas não impossívelconceber que a tradução é, primeiro que tudo, um acto de comu-nicação cultural e de compreensão mútua, embora se vejam dequando em quando experiências surpreendentes no próprio siste-ma linguístico português que contradizem esse princípio. Por umaparte, as edições brasileiras das obras de Saramago incluem umabreve advertência destinada a expor a vontade terminante do es-critor de que as suas obras se difundam no Brasil com ortografiaoriginal36. Por outra parte, ao invés, as edições portuguesas dedois autores tão assinaladamente brasileiristas como José Lins do

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Notas1Vid. Carlos Reis. “José Saramago. Contador dos dias”. Jornal de

Letras, Artes e Ideias, 671, 3 Julho 1996.2Rodrigues da Silva e Ricardo de Aráujo Pereira. “Luiz Pacheco. A

velhice do guerrilheiro da escrita”. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 703, 24de setembro de 1997.

3Cf. Jacques Thiériot. “La traduction du roman portugais”. em VV.AA.,Cinquièmes Assises de la Traduction Littéraire (Arles 1988). Arles, ActesSud, 1989, pp. 202-221.

4Raul Bopp. Movimentos modernistas no Brasil. Rio de Janeiro, SãoJosé, 1966, pp. 82-83.

5Vid. Jorge Wanderley. A Tradução do Poema: Notas sobre a expe-riência da geração de 45 e dos concretos. Rio de Janeiro, PUC, 1985.

6Sol Fuertes, “La lengua del siglo XXI”. El País, Suplemento Babelia.4 de Octubre de 1997.

7Cf. Óscar Lopes. “Guimarães Rosa —intenções de um estilo”, emVV.AA., Guimarães Rosa. Lisboa, Instituto Luso-Brasileiro, 1969, p. 31.

8Apud Curt Meyer-Clason. “Guimarães Rosa e a língua alemã”.Em VV.AA., Guimarães Rosa. Lisboa, Instituto Luso-Brasileiro, 1969,pp. 51-52.

9Vid. Leodegário A. de Azevedo Filho. “O discurso de ficção emGuimarães Rosa”. Colóquio-Letras, 15, 1973, p. 28.

10Vid. Inês Oseki-Dépré. “A tradução francesa das Primeiras Estóri-as de João Guimarães Rosa”. Colóquio-Letras, 87, 1985, p. 44.

11Luciana Stegagno Picchio. “Guimarães Rosa: le spondedell’allegria”. Strumenti Critici, IV, 1, 1970, p. 35.

12Carlos Drummond de Andrade. “Um chamado João”, Correio daManhã, 22 de Novembro 1967.

13Vid. Basilio Losada. “Guimarães Rosa y la experimentación idiomá-

Rego ou Graciliano Ramos apresentam profundas mudanças noseu léxico patrimonial, enquanto um outro escritor como Jô Soa-res, pertencente à actualidade literária, viu publicado em Portugalo seu romance O Xangô de Baker Street37, há pouco tempo,com divergências mais do que ortográficas que prejudicam o en-genhoso jogo idiomático a respeito da modalidade linguística lusi-tana relevante na versão brasileira. Apesar de tudo afortunada-mente Guimarães Rosa, por sua vez, dizia que traduzir é conviver,uma sentença tão bela como verdadeira.

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tica en el Brasil: los linderos de la posmodernidad”, em Joaquim Marco, ed.,Actas XXIX Congreso del Instituto Internacional de LiteraturaIberoamerica, t. III, Barcelona, PPU, 1994, pp. 377-380.

14"Quando Guimarães Rosa publica em 1946 seu volume Saragana,o Modernismo, até então carente e incompleto na prosa, reencontra oespírito de vanguarda e se propaga coerentemente no plano da ficção. Em1956, com a dupla presença rosiana, Corpo de baile e Grande sertão:veredas, o Modernismo brasileiro cria definitivamente sua prosa e projetatodo um novo universo ficcional para a literatura do país” (Sílvio Castro, ARevolução da palavra (Origens e estrutura da literatura brasileira mo-derna), Petrópolis, Vozes, 1976, pp. 219-220).

15José Carlos de Vasconcelos. “Gostaria de ser um crocodilo...”.Jornal de Letras, Artes e Ideias, 700, 13 Agosto 1997.

16Vid. Paulo Rónai. “A Fecunda Babel de Guimaraes Rosa e os seustradutores”. O Estado de São Paulo, Suplemento Literário, 30 Novembro1968; “Guimaraes Rosa e os seus tradutores”, O Estado de São Paulo,Suplemento Literário, 10 Outubro 1971; “Itinerario de João Guimarães Rosa”,Revista de Cultura Brasileña, 35, 1973, pp. 21-36.

17Vid. Paulo Rónai. “Unha correspondencia singular”. Grial, 51, 1976,pp. 109-111.

18Vid. Stephanie Merrin. “In the wake of the word: Translating Gui-marães Rosa”. Dispositio, VII, 1982, pp. 209-215.

19Cf. Isabelle Vanderschelden. “Authority in literary translation:collaborating with the author”. Translation Review, 56, 1998, pp. 22-31.

20Paulo Rónai. Escola de tradutores. 5ª ed., Rio de Janeiro, Educom,1976, p. 23.

21João Guimarães Rosa. João Guimarães Rosa —Correspondênciacom o tradutor italiano. São Paulo, Instituto Italo-Brasileiro, 1972, p. 24.Certamente Guimarães Rosa nunca poupou louvores, justificados aliás, noatinente à actividade tradutora de Edoardo Bizzarri: “Que nenhum tradutoraté aos dias de hoje foi tão euforicamente elogiado pelo autor que traduziucomo o foi Edoardo Bizzarri por Guimarães Rosa, é uma verdade tão firmeque sobre ela se pode apostar, sem receio, dobrado contra singelo” (JoséAlves Pires, João Guimarães Rosa —Uma literatura almada, Braga -Lisboa, Editorial A. I. - Edições Brotéria, 1993, p. 162).

22São interessantes de modo muito especial os seguintes contributos:M. Cavalcanti Proença, Trilha do Grande Sertão, Rio de Janeiro, Serviçode Documentação do M.E.C., 1958; Oswaldino Marques, Ensaios Esco-lhidos, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968; Irlemar Chiampi Cortez,“Narración y metalenguaje en Grande Sertão: Veredas”, RevistaIberoamericana, 43, 1977, pp. 199-224; Julio E. Miranda, “Modos, lenguajey sentido en Gran sertón: veredas, de João Guimarães Rosa”, Revista deCultura Brasileña, 21, 1967, pp. 161-170.

23Cf. por exemplo William M. Davis. “Japanese Elements in Grandesertão: veredas”. Romance Philology. 29, 1976, pp. 409-434.

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24Vid. Vítor Manuel Aguiar e Silva. “Visão do mundo e estilo emGrande sertão: veredas”, em VV.AA., Guimarães Rosa. Lisboa, InstitutoLuso-Brasileiro, 1969, pp. 76-77.

25Foi Paz-Andrade, polígrafo galego, quem pôs de relevo essa di-mensão da linguagem de Guimarães Rosa: “Elementos galegos que perderanvixencia no portugués, maormente no literario, ou que dentro da mesmaárea da comunidade lingüística viñeran a menos, se non ficaban esmoreci-dos, recobran a súa plenitude ou a súa pristinidade na obra rosiana.Regroman nos tecidos do idioma con insospeitados valores expresivos,con beleza reconquerida” (Valentín Paz-Andrade, A galecidade na obrade Guimarães Rosa, Sada-A Coruña, Ediciós do Castro, 1978, p. 84). Cf.ainda Salvador Lorenzana, “Un mergullo pasadío na obra de GuimarãesRosa”, Grial, 98, 1987, pp. 433-443; Eduardo Moreiras, “Vivencias galegasnas narracións de Guimarães Rosa”, Grial, 48, 1975, pp. 168-174.

26Vid. Pilar Gómez Debate. “Notas sobre las versiones y traduccionesde Grande sertão: veredas”. Revista de Cultura Brasileña, 21, 1967, pp.188-208.

27João Guimarães Rosa. Diadorim. Paris, Editions Albin Michel, 1965.Trad.: Jean-Jacques Villard.

28João Guimarães Rosa. The Devil to Pay in the Backlands. NewYork, Alfred A. Knopf Publisher, 1963. Trad.: James L. Taylor e Harriet Onis.

29João Guimarães Rosa. Gran sertón: veredas. Madrid, AlianzaEditorial, 1999. Trad.: Ángel Crespo. A 1ª ed. foi publicada em Barce-lona, por Editorial Seix Barral, no ano 1965. Vid. também Ángel Cres-po, “Breve antología de Guimarães Rosa”, Revista de CulturaBrasileña, 21, 1967, pp. 107-160. Há ainda mais traduções de Guima-rães Rosa para espanhol: Primeras historias, Barcelona, Seix Barral,1982. Trad.: Virginia Fagnani Wey. A 1ª ed. foi publicada em 1969;Manolón y Miguelín, Madrid, Ediciones Alfaguara, 1981. Trad.: PilarGómez Bedate; Noches del sertón, Barcelona, Editorial Seix Barral,1982. Trad.: Estela dos Santos; Urubuquaquá, Barcelona, EditorialSeix Barral, 1982. Trad.: Estela dos Santos.

30Ángel Crespo. “Nota del traductor”, em João Guimarães Rosa, Gransertón: veredas. Madrid, Alianza Editorial, 1999, pp. 15-18.

31Guimarães Rosa. Gran Sertón:..., p. 605.32João Guimarães Rosa. Grande sertão. Colonia, Kiepenheur &

Witsch, 1964. Trad.: Curt Meyer-Clason.33João Guimarães Rosa. “Prefácio”, em Paulo Rónai, Antologia do

conto húngaro. 3ª ed., Rio de Janeiro, Artenova, 1975.34Apud Paulo Rónai. A tradução vivida. Rio de Janeiro, Educom,

1976, p. 114.35Cf. Haroldo de Campos. “Da tradução como criação e como crítica”

e “A linguagem do Iauaretê”, em Metalinguagem & Outras Metas. 4ª ed.revista, São Paulo, Editora Perspectiva, 1992, pp. 31-48 e pp. 57-63.

36Cf. Levantado do Chão. Lisboa, Editorial Caminho, 1980; São Paulo,

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Difel, 1982. Memorial do convento, Lisboa, Editorial Caminho, 1982; SãoPaulo, Difel, 1983; Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 7ª ed., 1989; São Paulo,Círculo do Livro, 1987. O ano da morte de Ricardo Reis, Lisboa, EditorialCaminho, 1984; São Paulo, Companhia das Letras, 1989. A jangada de pe-dra, Lisboa, Editorial Caminho, 1986; São Paulo, Companhia das Letras, 1989.

37Jô Soares. O Xangô de Baker Street. Rio de Janeiro, Companhiadas Letras, 1997; Lisboa, Editorial Presença, 1997.

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Comunicações especiais

Parte II

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Introdução

Propõe-se, na presente comunicação, apresentar a LínguaPortuguesa ao mesmo tempo na sua unidade e na sua diversida-de. Para tanto, aplicar-nos-emos os postulados teóricos básicos dotexto “Sistema, Norma e Fala”, de E. Coseriu, ao nosso corpus,constituído por estruturas extraídas da prática cotidiana de comu-nicação entre os falantes.

Existem diferenças entre o português de Portugal e o do Bra-sil. Essas diferenças abrangem todos os aspectos da língua - foné-tica, léxico, morfologia e sintaxe. A própria ortografia não estáainda totalmente unificada. Assim, cada uma das duas formas quetoma a língua escrita e falada deve ser considerada, no seu domí-nio geográfico próprio, como a única válida e “correta”. Há por-tanto duas normas do português, cada uma das quais forma umsistema autônomo e coerente. Apesar de todas essas diferenças,serão analisados somente os níveis morfológico e sintático.

1. Pressupostos TeóricosSegundo Saussure, a língua é uma instituição social, exterior

ao indivíduo, a este não cabe nem criá-la nem modificá-la, umavez que existe como um contrato estabelecido entre os váriosmembros de uma mesma comunidade. Somente com o auxílio daaprendizagem, e, de maneira lenta, a criança vai aprendendo o

Análise contrastiva davariedade da Língua Portuguesa

no Brasil e em Portugal

Alessandra Dias Gervasoni,da Universidade de Assis, SP

Em homenagem ao magníficolingüista Eugenio Coseriu

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funcionamento da linguagem.O estudo da linguagem abrange dois aspectos fundamentais:

um, tem por objeto a língua, refere-se àquilo que é essencial e queapresenta o caráter social da linguagem, sendo de natureza pura-mente psíquica. O outro aspecto, por sua vez, já tem por objeto aparte individual, referindo-se à fala, à fonação propriamente dita epsicofísica. Essas duas modalidades da linguagem, denominadaslíngua e fala, são interdependentes.

O lingüista romeno Eugenio Coseriu propôs uma divisãotripartida segundo o modelo abaixo (1979, p.56), por achar insufi-ciente a bipartição saussuriana:

Parole uso langue

(norma intermediária) (sistema funcional)A divisão de Coseriu vai do mais concreto (parole) ao mais

abstrato (langue), passando por um grau intermediário: a norma.Com a divisão tripartida, ficam melhor esclarecidos os funda-

mentos dos vários aspectos, tendências e orientações da lingüística.Assim, esta pode dedicar-se à análise do falar – teoria da lingua-gem – ou ao estudo das línguas – lingüística histórica. Ao conside-rar a linguagem, pode estudar e valorizar a originalidade expressi-va do falante – estética –, pode estudar a norma – história dacultura –, ou o sistema gramática pura.

Portanto, a única realidade lingüística é o falar concreto (=linguagem). Nesse falar concreto, nessa atividade lingüística Coseriudistingue gradualmente três conceitos já citados: Fala (ou falar): atosde criação inédita por corresponder a intuições inéditas, mas (são)ao mesmo tempo – dada a condição essencial comunicativa da lin-guagem – atos de recriação; não são invenções ex novo e totalmen-te arbitrárias do indivíduo falante, mas estruturam-se sobre modelosprecedentes. Norma: o falante utiliza modelos, formas ideais queencontra no que chamamos de ‘língua anterior’ (sistema preceden-te de atos lingüísticos). Ou seja, o indivíduo cria sua expressão numalíngua, fala uma língua, realiza concretamente, na sua fala, moldes,estruturas da língua da comunidade. Num primeiro grau deformalização, essas estruturas são simplesmente normais e tradici-onais na comunidade, constituem o que chamamos de norma. Siste-ma: mas num plano de abstração superior, derivam-se delas mes-mas uma série de elementos essenciais e indispensáveis, de oposi-ções funcionais: o que chamamos de sistema.

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2. Análise contrastivaResumindo, o sistema é um conjunto de oposições funcionais;

a norma é a realização “coletiva” do sistema, a qual contém o pró-prio sistema mais os elementos funcionalmente “não-pertinentes”,mas normais no falar de uma coletividade; o falar é a realizaçãoconcreta da norma que contém a própria norma (conseqüentemen-te também o sistema) mais a originalidade expressiva dos falantes.

Com respeito especificamente à Língua Portuguesa, o “sis-tema” é o aspecto de unificação da língua e a “norma”, o aspec-to de diversificação da mesma. O estabelecimento de uma nor-ma lingüística parte geralmente da consideração das variedadesliterárias e socioculturalmente mais prestigiadas da língua emcausa. Porque não é possível legislar sobre a evolução lingüística,que se tem de aceitar como um fato com suas conseqüências,torna-se naturalmente inevitável estabelecer a norma portugue-sa e a norma brasileira.

Segundo Coseriu, “na linguagem é importante o pólo da vari-edade, que corresponde à expressão individual, mas também o é oda unidade, que corresponde à comunicação inter-individual e égarantia de intercompreensão. A linguagem expressa o indivíduopor seu caráter de criação, mas expressa também o ambientesocial e nacional, por seu caráter de repetição, de aceitação deuma norma, que é ao mesmo tempo histórica e sincrônica: existe ofalar, porque existem indivíduos que pensam e sentem, e existem‘línguas’ como entidades históricas e como sistemas e normasideais, porque a linguagem não é só expressão, finalidade em simesma, senão também comunicação, finalidade instrumental, ex-pressão para outro, cultura objetivada historicamente e que trans-cende ao indivíduo” (La geografía linguística).

Não menos importante é o objetivo prático, ou seja, o de ela-borar um trabalho útil tanto para o professor como para o aluno,um trabalho que possa demonstrar – através de alguns exemplos– as diferenças da Língua Portuguesa de um país para outro, e apraticidade que a teoria funcionalista permite ao seu estudo.

Através da análise, quando um exemplar particular, uma pala-vra, uma forma ou uma grafia pertencem exclusivamente a umadas duas normas, indicamo-lo pelas abreviaturas P ou B, demons-trando a variedade da Língua Portuguesa na Europa e no Brasil.

2.1. Emprego dos pronomes de tratamento da 2ª pessoaO tratamento é o modo pelo qual aquele que fala se dirige ao

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interlocutor (ou aos seus interlocutores).O português tinha originalmente um sistema de tratamento

idêntico ao do francês, baseado na oposição de tu e vós.A partir do século XVI um novo sistema veio sobrepor-se a

este: o tratamento da 3ª pessoa. Usou-se nessa altura: Vossa Se-nhoria, Vossa Mercê e outras formas do mesmo tipo.

Daqui resultou, na língua moderna, um sistema complexo que,além disso, não é o mesmo em Portugal e no Brasil. Exemplos:

Tu foste à Universidade. (P)Tu: muito vivo e geral como tratamento familiar.Vós: sobrevivência literária; fora de uso da língua falada, na

maior parte do País.Você foi na Universidade. (B)Tu: já não existe senão no extremo sul e no extremo norte.

As formas te, ti, contigo ouvem-se no entanto na linguagem fami-liar, misturadas com você.

Vós: como em Portugal, desapareceu completamente da lín-gua falada.

No Brasil, tu e vós continuam evidentemente a pertencer àtradição literária.

Segundo a Gramática Brasileira, você é uma forma de trata-mento indireto de 2ª pessoa que leva o verbo para a 3ª pessoa.

“Em quase todo território brasileiro, foi ele substituído porvocê como forma de intimidade, como tratamento de igual paraigual ou de superior para inferior...” (Celso Cunha & Lindley Cintra,pág. 294).

2.2. Utilização e colocação das formas casuais dos pro-nomes pessoais

Eu vi ele na rua. (B)Eu vi-o na rua. (P)Os pronomes átonos o, a, os, as têm um emprego mais limita-

do no Brasil do que em Portugal.Mas a maneira mais comum de evitar os pronomes átonos

o(s), e a(s) consiste em substituí-los pelas formas tônicas ele(s) eela(s), como o exemplo citado acima.

Embora esta construção tenha raízes antigas no idioma, poisse documenta em escritores portugueses dos séculos XIII e XIV,deve ser hoje evitada.

Segundo a Gramática Brasileira, o pronome ele, no portugu-ês moderno só aparece como objeto direto quando precedido de

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todo ou só (adjetivo) ou se adotado de acentuação enfática, emprosa ou verso: “Só eles conservam o português”.

Diz-se e escreve-se assim no Brasil: “Me parece que...” “Sesentou...”

Segundo Celso Cunha e Lindley Cintra, a colocação do pro-nome átono não está incorreta, pois em relação ao verbo, o mes-mo pode estar enclítico, proclítico e mesoclítico. Mas, sendo opronome átono objeto direto ou indireto do verbo, a sua posiçãológica normal é ênclise.

Eu me calei. (B)

2.3. Funções do pronome seO autor Evanildo Bechara cita três funções sintáticas:1) sujeito de infinitivo (com auxiliares causativos, mormente

deixar):Deixou-se ficar à janela (B e P).2) objeto direto (com verbo transitivo direto na voz reflexiva):Ele se feriu. (B)Ele feriu-se. (P)3) objeto indireto (com verbo transitivo indireto na voz refle-

xiva, ou com verbo acompanhado de dois complementos):Elas se correspondem freqüentemente. (B)Elas correspondem-se freqüentemente. (P)Pode ainda o pronome se juntar-se a verbos que indicam:1) sentimento: admirar-se, esquecer-se, lembrar-se, queixar-

se, atrever-se, etc.2) movimento ou atitudes da pessoa em relação ao seu pró-

prio corpo. Exemplos:João se levantou (B) – movimentoJoão levantou-se (P) – movimentoDesta forma, o uso brasileiro está incorreto, pois o pronome

se junta-se a um verbo de movimento (levantar). Enfim, o usocaracterístico do português do Brasil, ou seja, o lugar do pronomeé constante qualquer que seja a construção da frase.

2.4. Utilização de preposiçõesO na é amálgama de em + a. Só deve ser utilizado no espaço

e na noção, por exemplo, “O jantar está na mesa” (B e P).A preposição em amalgama-se com artigo definido (na, no,

etc.) e indefinido (num, etc.). Exemplos:Fui na cidade. (B) – De acordo com a Gramática Tradicio-

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nal, está incorreto.Fui à cidade. (P)

2.5. Construção aspectualEla estava brincando. (B)Ela estava a brincar. (P) .A construção de estar (ou andar) + gerúndio, preferida no

Brasil, é a mais antiga no idioma e ainda tem vitalidade em dialetoscentro-meridionais de Portugal (principalmente no Alentejo e noAlgarve), nos Açores e nos países africanos de Língua Portuguesa.

No português padrão e nos dialetos setentrionais de Portugalpredomina hoje a construção, de sentido idêntico, formada de es-tar (ou andar) + preposição a + infinitivo, que aparece, uma vezpor outra, na pena de escritores brasileiros. Estar + gerúndio foi ouso corrente em Portugal até séc. XIX. Só a partir de então surgeestar + a + infinitivo, porém, os brasileiros não se modernizaram,pois continuam até hoje usando o gerúndio.

2.6. Morfologia do Verbo na linguagem popular do BrasilNa linguagem popular do Brasil a morfologia do verbo sofreu

grandes simplificações. Apenas subsistem as primeiras e tercei-ras pessoas do singular e do plural (o tratamento por você, etc.,torna inúteis as segundas pessoas). As desinências foramsimplificadas, quer pelo desgaste fonético (queda do r final, porexemplo cantá por cantar), quer pela unificação dos paradigmas(supressão da desinência –mos da primeira pessoa do plural). Porexemplo, a conjugação simplificada do verbo devê (dever) no pre-sente do indicativo e do conjuntivo será:

eu devo eu devaele deve ele deva

nós deve nós deva eles deve eles deva

(indicativo) (conjuntivo)

3. ConclusãoA norma de Portugal é fácil de definir, pois é objeto de um

vasto consenso e foi estudada muitas vezes. A do Brasil, pelocontrário, põe um problema específico, pois está longe de ser uni-versalmente reconhecida pelos próprios brasileiros. Enquanto no Brasilnão se estabeleceu um consenso como em Portugal, o enunciado da

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norma brasileira será, por vezes, necessariamente vago e impreciso.Com relação ao extensíssimo território brasileiro da Língua

Portuguesa, a insuficiência de informações rigorosamente científi-cas sobre as diferenças de natureza fonética, morfo-sintática elexical que separam as variedades regionais nele existentes nãopermite classificá-las em bases semelhantes às que foram adotadasna classificação dos dialetos do português europeu.

Estas características, são do nosso ponto de vista, as coorde-nadas sociais e culturais que não só os justificam, mas também oscondicionam. Porque, em verdade, tudo faz crer que estamos nolimiar de uma era sociopolítica em que as grandes línguas nacionaistendem a apresentar progressivamente uma coesão mais profunda,uma unidade superior, fruto da disseminação do ensino e, sobretudo,da consciência cada vez mais viva da nacionalidade.

Nossas aventuras linguísticas pelo português terminam aqui.Nossa viagem para dentro do túnel definitivamente começou so-mente quando constatamos que o português, como termo genéri-co, poderia apresentar ramificações dentro do túnel: ou o portugu-ês europeu, ou o português que falamos hoje no Brasil. Realiza-mos, então, resumidamente, um percurso pelo sistema morfológico,sintático, etc., procurando resgatar as principais modificações queo português teria sofrido a partir do latim.

Do túnel, entretanto, não poderemos sair. Nossa língua-mãe,o português, dentro dele nos aprisiona e nos cativa; através dela,essa “última flor do Lácio, inculta e bela”, nos expressamos, falan-do ou escrevendo. E além disso, quão estimulante é a simplesconstatação de que, em um futuro remoto, nós também seremosvisitados por novos aventureiros, mas, como nós, eterno apaixona-dos pelo funcionamento desse sistema de comunicação. Presos ecativos estamos, sim, mas livres para variar e mudar esse sistemaem novas formas e novas funções.

Referências bibliográficasBECHARA, Evanildo (1976). Lições de Português pela análise

sintática. Rio de Janeiro, Grifo.COSERIU, Eugenio (1979). Teoria da linguagem e lingüística ge-

ral. Rio de Janeiro: Presença.COSERIU, Eugenio (1980). Lições de lingüística geral. Rio de Ja-

neiro, Ao Livro Técnico S/A.CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley (1985). Nova Gramática do

português contemporâneo. 2ªed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira.

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SAUSSURE, Ferdinand (1972). Curso de lingüística geral. 4ªed.,São Paulo, Cultrix.

O autor Eugenio Coseriu afirma que a possibilidade e a ne-cessidade de distinguir entre norma e sistema surgiu-lhe da pró-pria obra de Saussure e se propõe voltar a ela para encontrar aorigem das dificuldades, contradições e incoerências contidas nosvários enunciados acerca da língua e da fala. Pretende nela en-contrar também possíveis sugestões que levem a uma soluçãomais aceitável do problema. Não atribui à doutrina de Saussureuma incoerência fundamental, mas acha que sua concepção ofe-rece, sim, dificuldades de interpretação, pois não foi suficiente-mente desenvolvida.

Podemos notar que a norma brasileira distingue extremamenteda linguagem escrita padrão culta, enquanto a norma portuguesaestá mais próxima dessa linguagem.

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A necessidade de consolidação ou de preservação de cultu-ras nacionais levou escritores do Romantismo a valorizar determi-nados elementos que queriam como típicos de seus países, dentreeles a língua nacional. A conquista da independência fez com quenações jovens, como o Brasil, defendessem a idéia da existênciade uma cultura própria.

O movimento romântico chega ao nosso país na décadaseguinte à da independência. A nação recém-independente co-meça a pensar a sua história, a resgatar suas tradições, buscan-do-as por isso em suas origens. Havia, pois, a necessidade deconsolidar a cultura nacional, de fundar uma literatura própria,como também de afirmar, frente a Portugal principalmente, oespírito nacional brasileiro.

O momento histórico-social de então tem, portanto, extremarelevância para que se compreenda o sentimento nacionalista queiria surgir, acompanhado da importância de se criar a imagem deum país coeso, unido nacionalmente. Após a conquista da inde-pendência política, cabia lutar pela liberdade nas artes. Nossosescritores desejavam construir uma literatura que estivesse emharmonia com a natureza americana, que servisse como um ins-trumento de valorização do país.

Na verdade, o que pode ser observado nesse período é a inten-sificação de um processo de afirmação de nossa nacionalidade, cujaorigem é anterior ao Romantismo e à independência do país. Dessaforma, o início desse processo surge ainda no Brasil colonial. Suassementes vão sendo plantadas pelos árcades brasileiros, tantoneoclássicos quanto pré-românticos. Mesmo ainda estando presos

José de Alencar e a língua nacional

Ana Lucia de Souza Henriques, da UERJ

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a moldes universalistas, esses escritores voltaram-se para temas esentimentos nossos. (Cf. CÂNDIDO, 1971, vol. II, p. 9-10)

Durante toda sua carreira, José de Alencar valorizou a litera-tura nacional. Em prefácios, posfácios, cartas de advertência, dei-xaria sempre clara a preocupação em propagar e defender suasidéias em relação ao rumo a ser tomado pela literatura brasileira, oque conseqüentemente significou também a defesa do estiloadotado por ele em suas obras.

Ainda jovem, fala sobre a literatura nacional nascente nas crí-ticas que tece ao poema épico indianista A confederação dostamoios, de Gonçalves de Magalhães, publicado em 1864 àsexpensas do imperador D. Pedro II. Magalhães pretendia que seutexto fosse considerado o poema épico nacional por excelência, poisglorificava o passado histórico da nação e o sentimento antilusitano.

Alencar causou uma polêmica ao questionar, em suas Car-tas sobre a confederação dos tamoios, a inadequação do poe-ma de Magalhães em relação ao que ele se propusera cantar.Essas críticas se referem a um poema que se queria nacional, nãoa um poema qualquer. E é, sob esse ponto de vista, que dirige suascríticas, enfatizando constantemente a idéia de que a literaturanacional nascente deveria estar de acordo com a nossa terra enossa gente. (ALENCAR, vol. IV, p. 914)

Na concepção alencariana a respeito da maneira apropria-da para cantar a paisagem e o povo brasileiros de uma formaoriginal mais adequada aos tão buscados traços nacionais, pode-se observar que não caberia o emprego de modelos pré-estabe-lecidos, nem tampouco a repetição pura e simples de costumes evocábulos indígenas.

Assim, nas Cartas sobre a confederação dos tamoios,Alencar não apenas critica o poema épico de Magalhães, como jádissemos, mas também vai, à medida que fundamenta suas críti-cas, fornecendo dados a respeito do que acreditava ser necessá-rio à criação de uma obra dentro de um estilo que pudesse sertípico da literatura nacional nascente.

Essa sua maneira de pensar levou José de Alencar a conside-rar o romance a forma apropriada para escrever seu poema nacio-nal. Iracema é, então, escrito nessa nova forma por ele sugerida, eAlencar, servindo-se da temática do indianismo, participa conscien-temente da fundação de uma literatura nacional que retrata o país,fazendo-o de uma forma original e valendo-se de uma linguagemque acredita ser bem próxima ao português falado no Brasil.

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A originalidade da língua e do estilo alencarianos foi motivode crítica variada. O escritor não deixou de falar em defesa deseus romances, apresentando argumentos bem fundamentados,típicos de quem estudara o assunto de que tratava. Segundo ele,suas opiniões a respeito de gramática fizeram com que fosse to-mado tanto como um inovador quanto como um escritor incorretoe descuidado. (ALENCAR, 1958, vol. III, p. 312)

Assim, em sua resposta à crítica que o literato português Pi-nheiro Chagas fez sobre a falta de correção na linguagem portu-guesa em Iracema, o escritor cearense refuta as acusações afir-mando que não se tratava de uma mania de nossos escritoresquerer tornar o “brasileiro” uma língua diferente do velhoportuguês. (ALENCAR, 1958, vol. III, p. 314)

Segundo Alencar, a origem das mudança estava no falarde um povo que, além de separado politicamente, encontrava-seem um continente de características próprias. Mais tarde, em1872, em Bênção paterna, ensaio que antecede o primeiro capí-tulo do romance Sonhos d’ouro, Alencar perguntaria: O povoque chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba, podefalar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito dopovo que sorve o figo, a pêra, o damasco e a nêspera?(ALENCAR, 1959, vol. I, p. 702)

Essas transformações na linguagem seriam, segundo suamaneira de pensar, conseqüência de vários fatores combinados,como as condições climáticas, a contribuição dos primitivos habi-tantes e a influência recebida pelos estrangeiros que aqui viviam.Todos, enfim, participariam desse processo, que ele consideravaum aperfeiçoamento, uma adequação da língua ao espírito do povo.

José de Alencar revela no estilo por ele utilizado em Iracemaque suas pesquisas abrangeram também o campo da linguagem,pois o preocupavam questões como o vocabulário, a ortografia, aacentuação e a gramática da Língua Portuguesa falada no Brasil,a língua nacional.

Após tecer considerações acerca de algumas das escolhaslingüísticas que faz, o escritor deixa evidente sua determinaçãoem procurar escrever de uma maneira mais adequada à línguanacional. Uma das questões de que trata é a do pronome se, que,em suas palavras, zune em torno da frase como uma vespateimosa. (ALENCAR, 1958, vol. III, p. 315) Alencar demonstrater pesquisado o tema, pois afirma que procurara e encontrara nagramática uma solução para o uso adequado de pronomes. Co-

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menta o assunto e, em seguida, passa a tratar da colocação dospronomes pessoais oblíquos átonos. Sobre eles, escreve no Pós-escrito de Iracema:

É também matéria de escândalo a colocaçãodos pronomes pessoais que servem de comple-mento ao verbo, me, te, lhe e se. Entendem quenós os brasileiros afrancesamos o discurso, fa-zendo em geral preceder o pronome, quando emportuguês de bom cunho a regra é pospor o pro-nome.

Tal regra não passa de arbítrio que sem fun-damento algum se arrogam certos gramáticos. Pelomecanismo primitivo da língua, como pela melhorlição dos bons escritores, a regra a respeito dacolocação do pronome e de todas as partes daoração é a clareza e elegância, eufonia e fidelidadena reprodução do pensamento. (ALENCAR, 1958,vol. III, p. 316-317)

Em relação a isso, no livro a Gramática de José de Alencar,Cândido Jucá Filho tece vários comentários e aponta, em trechosretirados de obras diversas do autor de Iracema, a maneira pelaqual os pronomes foram ou deixaram de ser empregados.

Gladstone Chaves de Melo, em Alencar e a “língua brasi-leira” , afirma que Alencar colocou pronomes regular (aqui apalavra tem sentido gramatical lusitano) e irregularmente,levado pela eurritmia da frase. Gladstone chama a atenção parao fato de o escritor ter feito mudanças em relação à posição depronomes na segunda edição de Iracema, nas quais colocaçõesregulares passaram a ser irregulares. (MELO, 1972, p. 104)

Em seu ensaio Alencar e língua do Brasil, Evanildo Bechararessalta que o autor de Iracema, ao falar em defesa de seus usoslingüísticos, faz antecipações que já apontavam para estudos cien-tíficos da língua que viriam a ser realizados anos mais tarde. Co-mentando a atualidade das afirmações de Alencar, Bechara citaSaid Ali e comprova a grande semelhança existente entre o quedissera o autor de Iracema e o que diria, anos mais tarde, esserenomado filólogo.

Consideramos ainda relevantes os comentários de CândidoJucá sobre os recursos lingüísticos utilizados por Alencar quandoprocura mostrar a forma com que o estrangeiro fala a LínguaPortuguesa. Devemos entender por estrangeiro todo aquele que

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não tem o português como língua-mãe. Daí o índio em Alencartambém demonstrar certa dificuldade em se expressar num idio-ma que não é o seu. Sobre essa questão, diz o crítico:

O Índio nem sempre se ajeita em usar, falan-do de si, os pronomes da primeira pessoa. Expri-me-se como as crianças, ainda não adestradas, naterceira pessoa:

“– A filha de Araquém é mais forte que ochefe dos guerreiros – disse Iracema travando dainúbia. – Ela tem aqui a voz de Tupã, que chamaseu povo” (Iracema, p. 41.). Ou seja: “– Eu soumais forte que o chefe dos guerreiros. Eu tenhoaqui a voz de Tupã, que chama seu povo”.

Um outro recurso lingüístico comentado por Cândido Jucá éo da utilização das formas depoentes dos verbos, segundo o críti-co, Alencar as adotava para conseguir um tom estranhável ousolene, de prática de estrangeiros, ou de linguagemenvelhecida: O irmão de Iracema anuncia que é chegado aoscampos dos Tabajaras”. (Iracema, p. 48)

Cândido Jucá também comenta o fato de Alencar ter inven-tado palavras, ter introduzido palavras novas e ter feito com quealgumas outras voltassem à circulação. Dentre os vários vocábu-los citados pelo crítico, citemos, por exemplo, o verbo onomatopaicorugitar, que, segundo Cândido, foi introduzido pelo autor de Ira-cema. Este verbo, de acordo com o que diz, surgiu do termo latinorugitus, que significa particularmente o borborigmo(burburinho), ou o roncar do ventre. (JUCÁ, 1966, p. 118)

Ainda a respeito da seleção vocabular presente na obraalencariana, Gladstone Chaves de Melo ressalta o uso detupinismos e brasileirismos, apresentando noventa e oito exemploscolhidos apenas em Iracema. Constam dessa seleção palavrascomo carnaúba (Iracema, p.1), graúna, jati, tabajara (Irace-ma, p. 5), cauim (Iracema, p. 272), ubiratã (Iracema, p. 71),tacape, araçóia, jenipapo, mandioca (Iracema, p. 133), zabelê(Iracema, p. 93), dentre outras.

Com relação ao Português do Brasil, Alencar também cha-ma a atenção para o gênio musical do povo brasileiro, ressaltandoque esse era o fator responsável pela maior sonoridade e brilho doidioma aqui falado. Ao comentar o estilo de Alencar, GladstoneChaves de Melo afirma que quem lê com atenção e com a alma

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os escritos literários de Alencar sente para logo a música desua frase. (MELO, 1972, p. 58)

José de Alencar diria que em Iracema seriam encontradassuas idéias sobre literatura nacional e também a poesia inteira-mente brasileira, haurida na língua dos selvagens.(ALENCAR, 1958, vol. III, p. 307) A respeito da maneira em quedeveria ser expressa a língua dos aborígenes, diz Alencar:

Sem dúvida que o poeta brasileiro tem detraduzir em sua língua as idéias, embora rudese grosseiras, dos índios; mas nessa traduçãoestá a grande dificuldade; é preciso que a lín-gua civilizada se molde quanto possa à singe-leza primitiva da língua bárbara; e não repre-sente as imagens e pensamentos indígenas se-não por termos e frases que ao leitor pareçamnaturais na boca do selvagem.

O conhecimento da língua indígena é o me-lhor critério para a nacionalidade da literatura.Ele nos dá o verdadeiro estilo, como as imagenspoéticas do selvagem, os modos de seu pensamen-to, as tendências de seu espírito, e até as maioresparticularidades de sua vida. É nessa fonte quedeve beber o poeta brasileiro; é dela que há desair o verdadeiro poema nacional, tal como eu oimagino.

Cometendo, portanto, o grande arrojo, apro-veitei o ensejo de realizar as idéias que me flutua-vam no espírito, e não eram ainda plano fixo; areflexão consolidou-as e robusteceu. (ALENCAR,1958, vol. III, p. 307)

Após mencionar que não conseguira realizar em versos aobra desejada, Alencar justifica a sua opção pela prosa, em partepelo fato de ela oferecer maior elasticidade, o que, segundo afir-ma, facilita o emprego de imagens indígenas. (ALENCAR, 1958,vol. III, p. 307) Dessa forma, podemos observar que, em Irace-ma, ele se preocupa com a questão da autenticidade em uma obraque deseja adequada ao que o país tem de mais tipicamente seu.Logo, procura utilizar uma linguagem que acredita ser brasileiracomo um importante elemento marcador de nacionalidade paracantar nossas origens em seu poema nacional.

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Referências bibliográficasALENCAR, José de. Obras completas. Rio de Janeiro: José Aguilar,

1958/1960. 4 v.BECHARA, Evanildo. José de Alencar e a língua do Brasil. In:

MATTOS, Elsa Savino de et alii, eds. Linguagem. Niterói: Ceuff, n. 1, 1978,p. 105-22.

CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentosdecisivos. São Paulo: Martins, 1971. v. 2.

CASTELLO, José Aderaldo, org.. Textos que interessam à históriado romantismo. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1961.

COUTINHO, Afrânio. Ainda e sempre a língua brasileira. In:––.Impertinências. Niterói: EdUFF, 1990, p. 165-205.

JUCÁ (filho), Cândido. A gramática de José de Alencar. Rio de Janeiro:Colégio Pedro II, 1966.

MELO, Gladstone Chaves de. Alencar e a “língua brasileira”. Riode Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1972.

SILVA NETO, Serafim da. Introdução. In: ––. História da LínguaPortuguesa. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1970, p. 13-53.

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1. A querela entre conservadores e inovadores

Recuemos à Paris de 1529. Nesse ano, o livreiro-editor fran-cês Geofroy Rory publicou uma obra sua intitulada Champ fleury,que deflagrou uma verdadeira revolução na ortografia francesa.A fim de evitar a algaravia em que se constituíra a escrita medie-val daquele idioma, Tory propôs tirar partido dos recursos aportadospela incipiente caixa de tipos móveis da imprensa para melhorar esimplificar a escrita daquele idioma.

Suas lúcidas sugestões caíram logo na aceitação geral e seincorporaram aos usos do francês escrito de então. Abriram ca-minho principalmente para que os gramáticos e os ortógrafos deseu tempo, como Dubois, Louis Meigret e Jacques Peletier duMans, estabelecessem o formato de uma das mais estáveis orto-grafias românicas.

Não obstante o sucesso que alcançaram esses primeiros ajus-tes ortográficos do francês quinhentista, como era de esperar-senesses casos, encontraram eles sérias resistências, como as deRobert Estienne, impressor do rei, que era a favor da ortografiatradicional de base latina, com um número enorme de grafemassem qualquer valor fonológico.

Segundo a obra do doutor Kukenhein em que colhemos asinformações acima1, é grande o interesse de filólogos italianos, fran-ceses e espanhóis, principalmente nos séculos XV e XVI, em esta-belecer as normas ortográficas dessas três línguas vulgares em facedo latim. Em pouco mais de dois séculos, esse tema ensejou cerca

Duarte Nunes do Liãoe a saudade do latim

Antônio Martins de Araujo,da ABF e UFRJ.

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de 76 obras e documentos afins de 60 filólogos italianos, 61 outrasde 42 filólogos franceses, e 39 outras de 35 filólogos espanhóis.

Não é de admirar tão prolífica fortuna crítica do tema orto-grafia naqueles dois séculos, justamente quando estava em jogo oembate entre a necessidade da racionalização da escrita dessesidiomas em face das inúmeras transformações por que passaram,e o ideal do retorno às fontes greco-romanas pregado peloRenascimento na Europa Ocidental, a partir do movimento que,nesse sentido, partiu da Itália quatrocentista.

Para a análise dos dados e para o esboço das conclusões a quechegaremos, contentar-nos-emos com nossas duas primeiras gra-máticas, a de Fernão de Oliveira2 e a de João de Barros3, e comnossos dois primeiros tratados de ortografia, o de Pêro de Maga-lhães de Gandavo4 e o de Duarte Nunes do Lião5. A seleção dosvocábulos foi feita a partir dos vocábulos com consoantes em posi-ção implosiva medial encontrados no tratado desse último ortógrafo.

O interesse principal desse tema para nós reside no fato deque o suruabácti de apoio a essas consoantes no uso oral distensobrasileiro do idioma comum, transforma em sobredáctilos oubiesdrúxulos trissílabos propararoxítonos, como técnica e rítmi-co; ou deslocam para a nova sílaba a subtônica de palavras, comoa de abissolutamente. Esse dengue reflete-se no uso literário,como nas quatro sílabas da palavra ignóbil, destes versos do épi-co I Juca Pirama, de nosso poeta maior: “Contudo os olhos deignóbil pranto / Secos estão; / Mudos os lábios não descerramqueixas / Do coração.”6

2. O corpus em face das metas

E por que estes não outros? Além do valor testemunhal desuas obras fundadoras num século de profundas mudanças porque passou o português, poder-se-á lembrar, entre outras razões,as que ora apresentamos.

Fernão de Oliveira, “um dos gramáticos mais originais (emcerto sentido o mais original” e “o mais importante foneticista daRenascença na România”, segundo Eugênio Coseriu7 , pela suamoderna compreensão da mudança lingüística explicitada nestepasso:

“e muy poucas [são] as cousas que duram por todas as ida-des em hu) estado, quanto mais as falas que sempre se conformãocõ os conçeitos ou os entenderes, juizos e tratos dos home)s: estes

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home)s entendem, julgão e tratão por diversas vias e muytas, asvezes segundo quer a neçessidade, as vezes segundo pedem asinclinações naturaes.”8

Quanto a João de Barros, já bastaria sua preocupação emcriar um sistema próprio de acentuação para refletir o timbre dasvogais de seu tempo. Muito mais do que mero continuador daGramática de Antônio de Nebrija em Portugal, valha-nos, por agora,esta reflexão de Leonor Buescu sobre a obra polimorfa do tam-bém novelista e poeta JB:

Para além e acima do historiador, do filósofo,do pensador, do crítico da sociedade e do homemdo Paço, está o sopro renascentista quecondicionou a Gramática no seu conjunto peda-gógico-didático e fez do seu autor um dos maisrelevantes espíritos do Humanismo português.9

Em relação à de Barros e de Oliveira, é reduzida a bagagemde Pero de Magalhães de Gândavo. Sua inserção, todavia, aquitambém se impõe, por sua nítida percepção da interação pragmá-tica entre a pronúncia e a escrita das palavras, consubstanciadasneste passo:

[...] com saberem [os Portugueses] escrever,saberião bem pronunciar os vocábulos, & com ossaberem bem pronunciar, ficaria a mesma linguaparecendo melhor aos naturaes que a professam.Por onde não avia de aver pessoa que se prezassede si, que não trabalhasse por saber algu) latim,que nisso consiste o falar bem Portugues. e destamaneira facilme)te euitarião todos estes erros, eserião perfectos em guardar a orthographiacõforme á ethymologia e pronunciação dosvocabulos.10

Finalmente, a Orthographia de Duarte Nunes revela-nosum homem dividido entre a inovação portuguesa e a tradição lati-na. Embora, por mais de uma vez, recomende que não se devemacrescentar ou mudar, na escrita, letras que violentem o uso oral,pelo menos no tema de que nos ocuparemos aqui, seu sistemaortográfico está preso a este seu postulado:

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A Vltima regra, que na lembrança deue sera primeira seja, que trabalhemos sempre, por in-vestigar a orige) dos vocabulos. Porq[ue] pelaetymologia delles, se sabe a orthographia, & pelabõa orthographia a etymologia. E essa he a fonte& a raiz de fallarmos, & escreuermos bem, & pro-priamente, ou mal11

Como esse ortógrafo é o que mais prodigamente utilizou con-soantes em posição implosiva medial, a seleção dos vocábulos denosso corpus foi feita a partir daquela sua obra. O cotejo dessasobras pioneiras de nossa filologia com Os lusíadas 12 nos mostra-rá se a norma ortográfica de Camões foi inovadora ou conserva-dora no uso daquelas consoantes. O objetivo principal deste estu-do, portanto, é mostrar em que graus esse retorno ao latim secristalizou nessas cinco obras portugueses quinhentistas. Para taldemonstração, porém, procedemos a um rigoroso corteepistemológico. Procuraremos quantificar e qualificar esse retor-no ao latim, exclusivamente quanto ao apagamento e à recupera-ção das consoantes /t/, /d/; /p/, /b/; e /k/, /g/, em posição implosivamedial. Vistas que foram as metas e as razões do corpus, entre-mos em nosso assunto.

3. As consoantes /t/ e /d/ em posição implosiva

A regularidade com que FO e JB escrevem ajetivo e auerbiosem o <d> latino parece atestar a fragilização, ou mesmo o apaga-mento dessa oclusiva linguodental sonora em posição implosivamedial nos meados do século XVI em Portugal. Com saudades dolatim, DNL recuperaria para o uso aquele grafema que, naquelaspalavras, até hoje resiste gozando da contrapartida fonológica. Porisso, será mero eufemismo chamar-se de mudas a essas conso-antes assilábicas. Vejamos o quadro I:

Quadro 1 - Consoante oclusiva linguodental sonora emposição implosiva medial

FERN ˆ O D EO LIVEIRA (1536)

JOˆ O D EBA RROS (1540)

LU˝S VA Z D ECA M ES (Oslus adas ) (1572)

PERO D EM A GA LH ˆ ES D EG´ N DA VO (1574)

DUA RT ENU N EZ D OLIˆ O (1576)

ajetiuo (s ) 5 v aietiuo(s ) 26 v ad jectiuo 2 v

auerb io(s ) 8 vauØrb io(s ) 15 vauerb io(s ) 3 vaduØrbio (60.9)

aduerbio (s ) 14 v

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Sem o /t/ implosivo, JB grafa o helenismo arisméticos 139.4;mas DNL, por duas vezes, grafa com o <th> latino arithmetica.Abramos aqui um parêntese para mostrar a curiosa a sobrevidado theta grego e do taw (ou tav) hebraico em nosso corpus. Comooclusiva plena, em início de sílaba, transformou-se hoje em <t>simples aquele dígrafo nos antropônimos Tamar e Mateus. Emposição implosiva medial, essa consoante desapareceu na evolu-ção de Bethlee) 50.23 para Belém; porém, simplifica-se em <t>na atualização de Bethphagee (ibid.) e Bethsabel (ibid.). E, comoa história das línguas “tem razões que a própria razão desconhe-ce”, em posição final, após passar pelo crivo do grego e do latim,os desdobramentos do dígrafo <th> oriundo do grafema hebraicotav ocorrem meio à la diable. Ou simplifica-se em <-t-> seguidode um <-e> paragógico em Judite e Rute; ou vira <-s>, valendo /sà/ ou /s/ conforme a região, em Golias; ou simplesmente apaga-se em Nazaré e Jafé.

Duarte Nunes também grafa com <-d-> assilábico admirativo3 v, admittir 10 v, aduertir 10 v, e os antropônimos Ariadna eCadmo 37.14. A regularidade desse grafema nos hábitos ortográ-ficos desse escritor parece testemunhar a presença da consoanteem seu uso oral à época, uso que vem atravessando os tempos aténossos dias.

4. A consoante /p/ em posição implosiva medial

A evolução da consoante oclusiva bilabial surda em posiçãoimplosiva medial não é muito diversa da história do /t/ que vimosde examinar. JB já não a representa graficamente em corruçám126.14; mas, pelo menos a partir de Os Lusíadas, o <-p-> latinose reinscreve não só naquele substantivo como também nos seuscognatos corrupto e corruptor; prossegue em PMG e DNL, echega incólume até nós. Examinemos o quadro 2:

Quadro 2 - Consoante oclusiva bilabial surda em posi-ção implosiva medial

FERNˆ O DEOLIVEIR A(1536)

JOˆ O DEBARRO S (1540)

LU˝S VAZ DECAM ES (Oslus adas) (1572)

(1574)PERO DEMAG ALHˆ ES DEG´ NDAVO

DUAR TE NUNEZDO LIˆ O (1576)

corru Æm(126.14)

corrup ª o 2 v corrup ª o (23.1) corrup ª o 15 v

corrupto e fl.5 vcorruptorVIII40

corruptamente(23.10)

corrupto e fl. 20 v

escrito(s) 2 v escrito(s) 2 v escripto e fl. 3 v escripta 2 v scripto e fl. 13 vescritura 8 vescriptura (19 .1)

escritura 10 v escriptura 4 v escriptura(s) 6 v scriptura(s) 48 v

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O mesmo não ocorreu com escrita, e seus cognatos, assimgrafados por FO e JB. Reinstalado por Camões e, depois, pornossos dois primeiros ortógrafos, esse <-p-> latino não sobreviveuaí nem em seu cognato escritura.

Se esse <-p-> etimológico em posição implosiva inicial, usadopor DNL em pneuma 37.7 se conserva até hoje; cai, todavia, empsalmo 37.10, forma com que ele desejava banir salmo, então jápopularizada. Outrossim, resulta frustrada sua tentativa de reinseri-lo em muitas outras palavras, como baptismo 70.4; baptizar 70.3;concepto 72.6; malscriptas 61.9; Neptuno 60.5; precepto 52.23ou preçeptos 1.4; preceptor 52.24; scriptores 2v; septil 43.20; e,ainda, no antropônimo latino Hiempsal 37.10, e no topônimo helênicoTerapne (ibid.)

5. A consoante /b/ em posição implosiva medial

Quanto a esse tópico, não contemos com a ajuda de PMG.Nenhum dos cinco vocábulos de nosso corpus se encontra emsuas breves Regras. Enquanto FO, JB e LVC preferem o adj.escuro, DNL considera-o corrupto, e prefere o erudito obscuro eo italianizado oscuro. Analisemos o quadro 3:

Quadro 3 - Consoante oclusiva bilabial sonora em po-sição implosiva medial

Enquanto FO e JB preferem o adj. e particípio sogeita com<-og->, Camões prefere-os com <-uj->, forma que se imporia.Aqui, mais uma vez, DNL sacrifica aos numes latinos: grafasubjecto, com duas consoantes assilábicas. Assim, continua esse

FERNˆ O DEOLIVEIRA (1536)

JOˆ O DEBARROS (1540)

LU˝S VAZ DECAM ES (OsLus adas) (1572)

(1574)PERO DEMAGALHˆ ES DEG´ NDAVO

DUARTE NUNEZDO LIˆ O (1576)

escuro(a) 3v. escura(s) 2 v..

escuro e flex. 30 v

escuro (70.6)

obscuro 3 voscuro (70.6)

sogeita (60.2)sogeyta(s) 2 v

sogeita v. (116.12) sujeito e fl. 9 v,subjeito (III.127),sujeitar e fl. 7 vsugeitar (VII.33)

subjecto 2 v

sojυ)tivo (37.30) suiuntiuo (106.1)suiυ)tivo (96.12)

subjunctiuo 2 v

sustantiuo 3 vsustª tiuo 4 v

substantiuo 3 vsubstª tiuo (52.14)

sustancia 6 vsustancial (80.14)

substancia (5.4)

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ortógrafo a opor-se à ortografia fonética dos nossos dois primeirosgramáticos. FO usa soiuâòtivo, JB suiuntiuo e suiu)tiuo. Aindasem o <b> latino, FO grafa nada menos que 7 v sustantiuo, e JB6 v sustancia, com o sentido de força física.

Das práticas fonético-ortográficas de DNL não pegou olatinismo absente, que ele dá como variante de ausente nestepasso: “E nos dizemos absente, & ausente, & abano, & auano,& aljaba, & aljaua, & faba, & fava, & tabula, & tauoa [...]”4.11. Os demais bês etimológicos por ele mantidos na posição queestamos examinando sobreviveram até nossos dias, a saber:Adbera 37.4; obstar 2.3; obstinados 4.1; subterfugio 38.2 eobtuso 2v.

6. A consoante /g/ em posição implosiva medial

Decididamente DNL extrapola na revoada em direção aolatim, no tocante ao uso do grafema <g> no fim de sílaba medial.Olhemos o quadro 4.

Quadro 4 - Consoante oclusiva velar sonora em posi-ção implosiva medial

Sem esse <g> latino, que, segundo tudo leva a crer, já nãomais se pronunciava, FO, JB e Camões escreveram aumento eseus cognatos, e mais reyno, esta última já com a omissão daimplosiva velar e o conseqüente desenvolvimento do yode emsemivogal. FO usa a forma dinos, uma só vez, em 55.12; e Camõesprefere-a sem a implosiva. Usa-a 15 vezes contra apenas 8 com o<g> etimológico. A coexistência das duas formas em Os Lusíadasparece apontar para a transição da mudança lingüística em favor

F E R N ˆ O D EO L I V E IR A( 1 5 3 6 )

J O ˆ O D EB A R R O S ( 1 5 4 0 )

L U ˝ S V A Z D EC A M E S ( O sL u s a d a s ) ( 1 5 7 2 )

( 1 5 7 4 ) P E R O D EM A G A L H ˆ E SD E G ´ N D A V O

D U A R T E N U N E ZD O L Iˆ O ( 1 5 7 6 )

a u m e n t o (4 3 .6 )a u m e n t a t i u o 2 v

a u m e n t o (9 4 .1 6 )a u m e n t a t i u o (s ) 5 v

a u m e n t o 3 v

a u g m e n t o 2 v

d i n o s (5 5 .1 2 ) d i g n o e f l . 8 vd i n o e f l . 1 5 v

d i g n o ( 3 4 .1 6 ) d i g n o e f l . 3 v

i g n o r a n d o ( 3 4 .2 ) i g n o r a r e f l . 3 vi n o rª te s ( 7 5 .8 ) i g n o r a n t e 4 v i g n o r a n c i a 3 vr e y n o 4 v r e y n o ( s ) 2 v r e y n o ( s ) 1 2 v

r e i no (s ) 8 9 v r e g n o 2 v

s i n i fi c a r 2 6 v s i n i fi c a r e f l . 1 1 v

s i g n i f ic a r e f l . 9 v s i g n i f ic a r e f l . 1 8 v

s i n i fi c a ª o 6 v s i n i fi c a am 3 v,s i n i fi c a ª 3 vs i n i fi c a Æm 3 vs i n i fi c a ı e s ( 1 1 2 .9 )

s i g n i f ic a ª o 4 v s i g n i f ic a ª o 2 2 v

s i n i fi c a d o 6 v s i n i fi cÆd o ( s) 5 v s i g n i f ic a d o (1 7 .1 5 ) s i g n i f ic a d o 4 v

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da forma erudita digno, preferida aliás por PMG 34.16 e DNL 3v. Além disso, a grafia inorãtes em FO 75.8 revela o apagamentodessa consoante naquela posição, mas vai ser reabilitada porCamões 4 v, por PMG em ignorando 34.2 e por DNL em igno-rar 3 v e ignorancia 3 v.

À vista desses elementos, se excluirmos augmento e regno,cujas grafias à latina parecem divorciar-se da prática oral da épo-ca, temos de reconhecer que a reinserção do <g> etimológico emdigno, ignorar e significar com seus cognatos, gerou conseqü-ência fonológica duradoura. É nítida a reabilitação dessa consoan-te em posição implosiva a partir dos nossos dois ortógrafos doúltimo quartel do século XVI. Enquanto FO e JB a silenciam em27 ocorrências; PMG e DNL a reabilitam em 31 outras.

7. A consoante /k/ em posição implosiva medial

Caso extremo é a infrutífera tentativa de PMG abandonar asformas já ditongadas de perfeito (fl. e der.) e respeito(s), consa-gradas pelos três antecessores seus aqui estudados, no sentido deforçar-lhes a realidade morfonológica, grafando perfecto 3v erespectos 14.8, já obsoletos àquela altura. Cegamente lhe seguiuos passos, dois anos depois, DNL não só nessas duas lexias, comotambém na preferência a lector(es), e lectura, lexias inexistentesno corpus dos dois gramáticos e de Camões. Debalde DNL tentareintegrar aos hábitos manuscritores daquele século, o <-c->implosivo latino, que não teve sobrevida fonológica, em palavrascomo auctor, conjunctas, no subst. contrato (sobreviveu no adj.participial contracto e fls. [= contraído]), dicto e fls., distincto,lectores(es) e practica. Exploremos agora o Quadro 5.

Quadro 5 - Consoante oclusiva velar surda em posiçãoimplosiva medial

FERN O DEOLIVEIRA (1536)

JO O DEBARROS (1540)

LU S VAZ DECAM ES (OsLus adas) (1572)

PERO DEMAGALH ES DEG NDAVO (1574)

DUARTE NUNEZDO LI O (1576)

autor (30.2)autoridade 2 v.

autor(es) 3 v.autoridÆde 2 v.

autoridade 2 vauthoridade VII.59

autor 1.9authoridade (36.16)

auctor 2 v.

conjunto (90.18)cı jυ)ta 2 v

conjunctas (51.18)conunctiuo 2 v

contrÆtas adj.(89.20)

contrato subst. 3 v

contracto(s) 3 v .s.cı tracto 2 v s., adj.

ditas 2 v. dita (86.14) dicta 22 vdito 6 v

dito X.5ditoso e fls. 12 v

dito 2 v dicto 22 vdictos 12 v

distinta(os) 2 v distintos 2 v distinto II.1 distincta(s) 3 v

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Por interessantes, impõe-se destacar três casos pontuaisocorrentes neste tópico, a saber: 1) O uso, só por parte de Camões,da variante trayto 6v, com ditongação, ao lado da forma cultatracto 2 v. 2) Isolada é a tentativa de DNL tentar recuperar essaimplosiva no latinismo docto 6 v, ao que tudo indica, sem nenhumacontrapartida fonológica, à revelia da variante evoluída douto, comditongação, já consagrada pelo uso e reconhecida pelos seusantecessores. 3) Com exceção apenas de JB, é consensual entreos outros quatros autores aqui estudados, a forma alatinada sancto,mas a presença de quatro variantes sem a implosiva em Camõesjá nos sugere, pelo menos, possível vacilação da pronúncia dessapalavra ao tempo.

É diante de alguns fatos como os aqui estudados que MattosoCâmara Jr advertia: “[...] devemos voltar os olhos para a línguageral escrita e especialmente para a língua literária, onde a padro-nização não poucas vezes se afasta da realidade lingüística diária,e às vezes passa a influir sobre ela. ”13

Por amor à brevidade, silenciaremos sobre outras três deze-nas de tentativas frustradas de DNL no sentido de reconduzir o <-c-> com valor implosivo, até à revelia da própria história da língua,como aquele terrível anoctescer 40.14, com que tenta desbancaro parassintético anoitecer. A bem da justiça, porém, temos dereconhecer uma vitória de DNL. Com exceção apenas de Os

distitamente114.18

distintamenteX.109

doutos 2 v douto(s) 2 v douto 3 v doctos 6 veffeito (15.31) effeitos (122.16),

mas effectiuo (79.3)effeito 6 vefeyto VIII.81

effecto 6 v

lector 4 vlectura (19.9)

lector(es) 4 v

perfeyta(s) 3 v perfeito(a) 5 vperfectamente(116.22)

perfeito(s) 7 v perfectos 2 vperfectamente(22.14)

perfecto 3 vperfectamente 3 v

pratica 4 v pratica 2 v practica 4 vrespeito 7 v respeito (71.24) respeito(s) 9 v

respeyto 2 vrespectos (14.8) respecto 7 v

sancto (6.27) sancto(s) 44 vsanto(a) 4 v

sancta (3.2) sancto 3 v

sojeitas (60.2)sogeyta(s) 2 v

sogeitar fl. (106.12) sujeito(a) 9 v, sub-jeito 1 v, sugeitar efl. 6 v, sujeitar 1 v

subjecto (subst.)2 v

sojυ)tiuo (37.30) suiuntiuo(106.1)suiυ)tiuo (96.12)

subjunctiuo 2 v

tratar e fl. 11 vtratada 2 v

tratar e fl. 6 v trayto 6 vtracto 2 v

tratar 3 v tractar e fl. 8 vtractado 3 v

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Lusíadas, enquanto todos os outros textos do corpus assinalam oapagamento do /k/ implosivo latino de dictione[m] nas variantesportuguesas dição / diçam e seu plural dições, as 43 ocorrênciasde dicção e as 72 de dicções (um total, portanto, de 115 evidênciasna Ortografia do licenciado) são até hoje as formas preferidas emtodo o mundo da lusofonia. Tanto aqui, como em Portugal, e emÁfrica, a semente lionina pegou e deu frutos duradouros.

8. Conclusões

À vista do exposto, eis algumas das conclusões que podere-mos estabelecer.

1.Na esteira das liberalidades grafemáticas da scriptologiamedieval portuguesa, em que se projetaram os múltiplos dialetos,falares e idioletos da primeira metade do séc. XVI, indubitavelmenteFO e JB espelharam em suas normas ortográficas o habitual apa-gamento das consoantes latinas em posição implosiva medial, àque-la altura, nos 36 vocábulos e nos cognatos selecionados no corpus.

2.Embora algumas dessas consoantes reconduzidas à escrita,no decorrer da segunda metade dos anos quinhentos, não tenhamgerado conseqüência fonológica duradoura (como em augmento,auctor e escripto/-ura); outras se revelaram de intensa vitalidadee chegaram até nós (como em corrupção; substantiuo, substancia;digno, ignorar, significar).

Sob a palavra de ordem renascentista de retorno às formas, aoestilo e aos temas da cultura greco-romana, embora já se insinuediscretamente em Os Lusíadas a recuperação gráfica de algumasdessas consoantes latinas na posição estudada (como em corrupçãoe ignorante), essa prática recuperatória se intensifica nas Regras deGândavo e se torna constante e homogênea na Ortografia de DuarteNunes do Lião. Por isso, mister se faz creditar a este último as láureasde subverter o preceito de que só à língua escrita cabe espelhar o usooral, e assim haver ajudado a mudar os caminhos da história.

AgradecimentoDesejamos expressar nossos agradecimentos ao Prof. Toru

Maruyama por nos haver permitido consultar os Índex Alfabético(s)do(s) Vocabulário(s) das gramáticas de Fernão de Oliveira e João deBarros, bem como os dos tratados ortográficos de Pero de Magalhães deGândavo e Duarte Nunes do Lião, pertencentes ao acervo da Universi-dade de Nanzan, da cidade de Nagoya (Japão). Sem tal privilégio, seriaimpossível alcançar os objetivos da presente pesquisa.

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Notas1 KUKENHEIN, Dr. L. Contribuitions à l’histoire de la grammaireitalienne, espagnole et française à l’époque de la Renaissance. Amsterdão,Noord-Hollandsche Nitgevers-Maatschappij, 1932. p. 22-23.2OLIVEYRA, Fernão de. Grammatica da lingoagem portuguesa. Fac-simile da l.ª ed. (Lisboa, Germão Galharde, 1536). Lisboa, Imprensa Nacio-nal, 1981.3 BARROS, João de Barros. Cartinha (1539). Grammatica da lingua por-tuguesa com os mandamentos da santa madre igreja. Dialogo da viçiosavergonha (1540). Repr. facsimilada, leitura, introd. e anot. por Maria LeonorCarvalhão Buescu. Lisboa, Univ. de Lisboa, 1971.4 GANDAVO, Pero de Magalhães de. Regras que ensinam a maneira deescrever a orthographia da lingua Portuguesa, com hum Dialogo queadiante se segue em defensam da mesma lingua. (Lisboa, AntonioGonsalves, 1574) Introd. de Maria Leonor Carvalhão Buescu. Lisboa, Bibli-oteca Nacional, 1981.5 LIÃO, Duarte Nunes de. Orthographia da lingoa portuguesa. Lisboa,Ioão de Barreira impressor del Rei N. S., 1576.6 DIAS, Antônio Gonçalves. Poesia completa & prosa escolhida. Org. eestab. de texto por Antônio Houaiss. Rio de Janeiro, Aguilar, 1959. p. 360.7 COSERIU, Eugenio. Língua e funcionalidade em Fernão de Oliveira.Rio de Janeiro, EDUFF, 1991. p. 47.8 op. laud. p. 50, linhas 2-8.9 BUESCU, Maria Leonor Carvalhão. Historiografia da Língua Portugue-sa. Lisboa, Sá da Costa, 1984. p. 3210 Op. laud., p. 8.11 Op. laud., p.61 verso.12 CUNHA, Antônio Geraldo da, et alii. Índice analítico do vocabuláriodos Lusíadas. 3 v. Rio de Janeiro, MEC/ INL, 1966.13 CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Dispersos. Rio de Janeiro, FundaçãoGetúlio Vargas, 1975, p. 83.

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Teceremos algumas considerações a partir da leitura do No-ticiário maranhense, descrição do Estado do Maranhão, suascontendas e peregrinas circuntâncias, de 1685, de João de SouzaFerreira,1 fazendo-o dialogar com outras antigas crônicas. O tex-to, cedido pelo professor Antonio Martins de Araujo (UFRJ), foicopiado a partir do microfilme do recém-falecido lexicógrafo An-tônio Geraldo da Cunha, que, por sua vez, fizera cópia do manus-crito original que pertencera ao bibliófilo francês J. J. Renoux,também já falecido.

Todos os que se referiram ao Noticiário chamaram a atençãopara seus problemas, sobretudo para sua oscilação ortográfica, tan-to que Francisco Barata, que editou o texto em 1919, afirmou:“Manuscripto singular é o que ahi vai por cópia! /..../ Tem defeitos eerros tão numerosos, que quasi se pode dizer não haver nelle umapalavra portuguezmente escripta”. Não se pode deixar de notar, noentanto, o valor documental da obra. As idéias nela presentes, quan-do lidas junto com as de obras contemporâneas, permitem uma melhorcompreensão de importantes fatos históricos do país.

O Noticiário maranhense é uma forma de angariar a simpatiareal para as terras brasílicas, em especial as do antigo Estado doMaranhão e Grão-Pará. O texto mostra as adversidades enfrentadaspelos portugueses em uma terra desconhecida, de climas e hábitoscompletamente diversos dos seus, repleta de matas, índios violentos,doenças, animais ferozes, mas também de bens naturais e de rique-zas, cujo principal produto, o pau-brasil, oferecia o lucro de 500%.

No livro, defende-se o cativeiro indígena como solução paraeliminar os problemas do norte do país, visto que a mão-de-obra

Língua e História do Brasil seiscentistaem um manuscrito lusitano

Carla da Penha Bernardo, da UFRJ.

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negra, além de mais cara, era difícil de ser adquirida no Estado – éisso o que o autor tenta provar em suas 236 páginas manuscritas.

Havia, de um lado, a proibição do cativeiro defendida peloReino e pelos jesuítas, por isso era preciso não apenas mostrar anecessidade de submeter os Tapuias ou índios, como os europeusos chamavam, mas sobretudo prová-la com fatos. Isso foi motivode muitos conflitos no Maranhão, o que levaria o povo local a serevoltar, a perseguir e a expulsar os jesuítas. Sequer o padre Antô-nio Vieira escaparia.

A dependência do português em relação ao indígena era to-tal, ‘comendo o branco por sua mão’ e sendo salvo, pelos nativos,das matas desconhecidas onde os europeus morriam por não po-derem encontrar a saída:

Demais que, se há razão para se captivarempretos, desterrando-os de suas terras, menosescruplo, parece, se podia fazer de pessuir Tapuiascaptivos, ficando no seu natural senhores de suasplantas e criações os que delas querem tratar, comose não fossem captivos; nem tal captiveiro se po-dia tomar pelo reputado dos teologos na Europa,onde há tal fome e frio, que vestem e comem o queseus senhores lhes dão; e no Brasil vai tanta dife-rença, que, baste saber-se, não há fome, nem frio:comemos por sua mão, e quando eles querem. (p.176-7).

Nem esse fato, no entanto, foi suficiente para permitir que amaioria dos brancos visse no índio um semelhante. À época,homens simples ou nobres, seculares ou religiosos não viam nosnativos senão um animal, o que já ocorrera com os negros.

Ainda em 1720, Rafael Bluteau, renomado autor do Voca-bulário latino-português, escreveria, a respeito dos negros, asseguintes linhas, representantes do pensamento da época:

Tem o [salvagem] cara quasy da feyção dehomem, com o nariz chato, & revolto, cabeça gros-sa, peyto sem cabello, & as costas cubertas decabello negro. Tem este animal muyta força, &muyta agilidade. Sabe porse em pé, & quasi sempreanda direyto. Ha salvagem macho & salvagemfemea; esta tem peytos, & ventre a modo de mulher/..../. Em Hollanda trouxerão ao Príncipe Frederico

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Henrique hua salvagem femea do tamanho de huarapariga de tres annos, ainda que gorda,& repleta,era muyto agil, bebia & comia com aceyo, & dormiaem cama com lençois como gente.

Esse pensamento acerca dos negros e dos índios também seapresenta no Noticiário em vários pontos. Havendo um grupodestes sido levado a Lisboa, diante da repugnância manifestadapelo povo, que “se retirava, ou pelo menos intojava, não lhe saben-do o nome, mais que de ‘papa gente’” (p. 173), J. S. Ferreiraconclui como Bluteau: “/..../ os Indios, tão alheios dela [são, i. é: dacapacidade], que, de gente, parece, não têm mais que a similhança/..../”. (p. 173).

O mesmo tipo de exposição se daria com seis indígenas leva-dos a Paris, anos antes, onde receberam nomes franceses e secasaram com francesas. Três deles teriam morrido, segundoMalherbe, “pelo ar não lhes ser saudável”.

Séculos passados, parece-nos tristemente risível o exotismoe a exploração desses europeus que tudo nos levavam, desde “pa-pagaios sabendo algumas palavras de francês”, até nossos ho-mens. Portugueses e franceses, portanto, davam o mesmo trata-mento aos maranhões brasilianos. Assim, pode-se delinear umaresposta à pergunta tantas vezes feita sobre os resultados de umacolonização, no Brasil, realizada por povos que não o lusitano.

Pode-se dizer que enquanto os primeiros pretenderam, decerta forma, criar a Nova Lusitânia imaginada por Gândavo, osúltimos fundaram sua efêmera França Equinocial. Os própriosbrasílicos, com o tempo, puderam percebê-lo. Por isso, diante doarmistício entre franceses e portugueses no Maranhão, os índiostomam uma lúcida atitude: “/..../ os índios /..../ manifestavam aintenção de fugir /..../; nas aldeias, espalhara-se o rumor de que,se os brancos haviam chegado a um acordo, era para reduzi-los,todos, ao cativeiro /..../.” (Apud PIANZOLA).

Em pleno século XVI, vivia-se no Brasil um atemporalmedievalismo, falando-se em “liberdade sujeita”, em servos, em dis-tribuição desigual de terras, problemas que se estenderiam aos sé-culos seguintes. Não se pode, pois, deixar de admirar a forma maismoderna e humana de colonização adotada pelos religiosos, sobre-tudo os jesuítas, o que levaria os habitantes da Colônia a persegui-rem-nos, fato que se repetiria em outros países. As palavras dealguns religiosos, no entanto, dão conta de sua idéia de conversão,como nos lembra J. G. Merquior: “Anchieta acha os silvícolas ‘sem

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engenho’; desenganado, chega a recomendar ‘espada e vara deferro, que é a melhor pregação”. Quanto a Nóbrega, seu desabafoé franco: ‘São tão bestiais, que não lhes entra no coração coisa deDeus’”. (Apud MERQUIOR, p. 18).

Apesar disso, o tratamento atribuído aos indígenas no Grão-Pará, como indica Souza Ferreira, se podia ser de extrema cruelda-de, também podia ser mais humano, sobretudo quando comparadoao que era dado aos negros. Contudo, nem isso foi suficiente paraimpedir que os índios fossem tachados de “naturalmente preguiço-sos”, ainda que até suas crianças fossem forçadas ao trabalho.

Esse bom tratamento dado aos índios era uma necessidade,caso contrário, como se indica no Noticiário, eles morriam – natu-ralmente ou por vontade própria – ou se rebelavam, matando osbrancos, o que, pouco a pouco, também os seculares perceberam.

As crônicas da época mostram que o indígena jamais se sub-meteu espontaneamente. Mesmo os curumins fugiam diante da pri-meira oportunidade. Muitos, incapazes de lutar, preferiam a mortede formas variadas e “desasperadas”, como indica Ferreira, fatoque a literatura romântica apresenta com menos idealismo do quehoje se imagina:

/..../ muitos que, desno principio da conquistaestavam servindo aos Portugueses por amigos ecompanheiros; outros que, quando buscavam apaz, que com sinal de cristandade se lhes haviapremetido, então se achavam com a liberdade ren-dida, e assim permaneciam, como se expirimentava,matando aos senhores e fugindo; outros comendoterra e morrendo; e as femeas tomando medecinapara não gerarem; e se alguas chegavam a ter fructo,lhe faziam, como me succedeo, que, comprandoduas Indias com ua cria, se meteram pelo mato, e,daí a tres dias, voltaram fartas, mas sem o filho,ensinando outros a comer carvão, cinza, cascas depao, terra e outras desasperações, com que uns eoutros se malogravam. (pp. 178-9).

Por que teriam os índios ‘escapado’ ao jugo, ao contráriodos negros? Por muitas razões, mas, principalmente, porque,como vimos, os brancos deles dependiam e porque, eles, aocontrário dos negros, escapavam com facilidade pelos matos:

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Nem estas terras eram como as do Brasil, ondetodos os meses lhes entravam [sic] cantidade denegros, o que não tinha o Estado do Maranhão,por suas deficuldades, e que, se os estilos das ter-ras faziam lei, não eram estas capazes, ainda que emalgu tempo tevessem pretos, para se viver só comeles, e sem alguns Indios para guias e pilotos dosmares, por não haver outras estradas de que ospretos nem a si se saberiam livrar, quanto mais aosbrancos, e menos entrarem e saírem dos matos coma caça, de que no Estado se vive, pelo menos noPará /..../. (p. 48).

Apesar desse conhecimento geográfico e do fato demuitos conhecerem a língua túpica ou geral ao lado da sua, osíndios sucumbiram. Os negros, por outro lado, resistiram, masainda hoje se reflete o tratamento de séculos idos.

A abolição da escravatura só se deu quando esta era jáum fato. E os libertos de então, sem meios de subsistência,tinham poucos caminhos: vinganças contra os senhores, assal-tos em estradas, roubos a fazendas ou nova sujeição aos se-nhores. Aptidão para o crime e subserviência, diriam alguns,palavras que são repetidas irrefletidamente, passados mais decem anos. E esclarece o samba contemporâneo que o negro hojeestá “livre do açoite da senzala, preso na miséria da favela” porproblemas que refletem os do passado. No Noticiário, contudo,fala-se principalmente da causa índia.

No que diz respeito à religião, Ferreira indica “/..../ assimcomo não há nenhu [índio] que reze de sua devação [devoção]mais que enquanto os fazem repetir o que se lhes ensina; da mes-ma maneira, é necessário, para fazerem algua cousa, estar-se-lhes sempre apontando com o dedo” (p. 205).

Também os franceses reconhecem que “ensinam” práticasaos índios, inclusive as religiosas e que eles, segundo Yves d’ Évreux,“embora não compreendam nada /..../, avançaram tanto que dir-se-ia que viveram toda a sua vida entre os franceses” (ApudPIANZOLA, p. 159). E, apesar das evidências, o padre Yves d’Évreux concluiria que a terra estava conquistada “não pela força,mas pelo amor” (id., p. 163).

Diferença foi e continua a ser sinônimo de estigma. Por isso,em relação à língua túpica, acreditaram os portugueses – inclusiveJoão de Souza Ferreira – não possuir o F, o L e o R entre seus

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fonemas por se tratar de gente “sem Fé, nem Lei, nem Rei”.Dessa idéia, não escaparia sequer o lúcido e competente FrancoBarreto em sua Ortografia da lingua portuguesa.

Mas o preconceito lingüístico não se ateve ao século deFerreira. Acreditou-se que a pretensa “preguiça natural” dos na-tivos se devesse também ao calor tropical, que atingiria, inclusive,sua pronúncia. Em texto de Caldcleugh, de 1825, transcrito em “Avitória do português no Brasil colonial”, de J. H. Rodrigues, lê-se:

O português falado pelos brasileiros /..../distingue-se facilmente do português de Portu-gal. O modo de falar é muito mais vagaroso, umaparticularidade que se nota em todas as colônias,e pode somente ser atribuído ao clima, ao privarseus habitantes da atividade de espírito, da qualnão há deficiência na Europa, produzindo de fatoconsiderável lassidão.

Apesar da idéia de lassidão e subserviência que os brancospassaram acerca dos índios, o que se observa nas crônicas antigasé seu desejo de escapar ao jugo de todas as formas, até mesmoasfixiando-se, provocando o aborto e comendo terra. Isso ocorre,por exemplo, com uma índia prestes a ser devorada por uma triboinimiga, a qual, liberta pelos portugueses, segundo João de SouzaFerreira, “/..../ vendo que a desamarravam, voltou o contentamentoem lagrimas, mostrando que queria mais morrer e deixar nome emtão celebrada festa do que ser escrava dos brancos” (p. 209).

Anos antes, no mesmo Maranhão, houve conflitos entre ospróprios índios em razão de alguns se renderem aos franceses. Nessemomento, uma índia lhes gritaria: “Não, não /..../, jamais nos rende-remos aos tupinambás, eles são traidores. Eis que nossos principaisestão mortos e morreram por essas bocas de fogo [os mosquetes],coisa que nunca vimos. Se for preciso morrer, morreremos /..../.”(Apud PIANZOLA, p. 138).

Há inúmeros casos de violência dos indígenas, apresentadosnão só no Noticiário maranhense, mas também nas várias crônicasda época. Ao lado dessa, ocorre a violência dos portugueses, narra-da por Souza Ferreira, como o sacrifício público de índios diante daboca do canhão (pp. 37-38). Por vezes, Ferreira critica seus compa-triotas, inclusive os religiosos, de forma extremamente dura, comoaqui: “/..../ na verdade, mui odioso era o [titolo] de captivos dosbrancos aos Indios, pela falta de justiça”, ou aqui:

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/..../ Porém, sendo este o tempo em que sedeviam fazer as jornadas de conducções pelo riodas Almazonas, não davam repetidas ambiçõeslugar a esperar monção [estação apropriada] por-que todo o tempo lhe parece pouco [ao coloniza-dor], sendo que no inverno são aquelas jornadasmatadoras, assim pelo ruim tempo e poucosostento que se acha, como pela agoa que entãose bebe, turba, das terras que as enchentes vãoquebrando e envolvendo, alimpando os lagos ematas que vêm batendo, de que saem nuves depragas a beberem o sangue da gente: de dia, mui-ta mosca, e, de noite, mosquitos, tantos, e taes,que por melhor que ua pessoa se cubra, tudo pas-sam por chegarem ô couro e carne, que atraves-sam sem darem lugar a que se possa dormir, a queos pobres Indios remeiros fazem descuberta bar-reira, de que, suposto adoecem brancos e negros,destes morrem mais tanto quanto com maior dife-rença lhes custa.

Mas, muito sadio é o Almazonas naqueletempo, quando as agoas apuradas correm, retira-das de toda a praga, e as praias providas de todobom agasalho, cinco meses de bõa monção; se sesubisse pelo natal, e descessem de setembro pordiante, serviria de recreação o que servia de ruína,e tudo, assim, aproveitaria, mediante o Creador /..../. (pp. 214-5).

Pelo que se vê, houve violências e equívocos entre brasílicos,portugueses e franceses no Estado do Maranhão. A antiga colo-nização se mostra como a grande responsável pelas desigualda-des sociais hoje vividas no Brasil. O problema da distribuição deterras, o preconceito racial, o subemprego dos descendentes dosnegros, a redução dos grupos indígenas, os apadrinhamentos –tudo isso está contado nas velhas crônicas, inclusive no manus-crito tricentenário de João de Souza Ferreira. O Noticiáriomaranhense é um dos documentos que, lido junto aos demais,serve de subsídio para a História do Maranhão passado e deseus reflexos no Brasil contemporâneo.

Vale a pena lermos textos brasileiros de 300, 400, 500 anos emtodos os tempos e não apenas em uma data, sem dúvida memorá-vel, como a que se anuncia. Se, de fato, queremos nos conhecer eaprender com o já ido, que haja cada vez mais espaço para a pesqui-

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sa desses textos e dessa língua na Universidade brasileira.

BibliografiaBARRETO, Ioam Franco. Ortografia da lingua portuguesa. Lis-

boa: Officina de Ioam da Costa, MDCLXXI.BERNARDO, Carla. Edição do manuscrito Noticiário maranhense,

descrição do Estado do Maranhão, suas contendas e peregrinas cir-cunstâncias, de 1685, de João de Souza Ferreira. Dissertação de Mestradoem Filologia Românica apresentada à Faculdade de Letras da UFRJ, 1996.581 pp.

CÂMARA JR. Joaquim Mattoso. Introdução às línguas indíge-nas brasileiras. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1965.

FERREIRA, João de Souza. Noticiario maranhense, RIHGB. Rio deJaneiro, v. 81, 1919, pp. 289-352.

GÂNDAVO, Pêro Magalhães de. Tratado da província do Brasil.Editado por Emmanuel Pereira Filho. Rio de Janeiro: INL – MEC: 1965.

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio deJaneiro: INL, Lisboa: Portugália, 1943. T. III.

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MARICHAL, Robert. La critique des textes. In:___. L’ Histoire etses méthodes. Dir. de Charles Samaran. Paris: Gallimard, 1961.

MARQUES, César Augusto. Estudo critico sobre o manuscritoAmerica abreviada, suas noticias e de seus naturaes, e em particulardo Maranhão, titulos, contendas e instrucções á sua conservação eaugmento muito uteis pelo padre João de Souza Ferreira. Rio de Janei-ro. Ms do IHGB, 1888. 11 p.

MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides. Rio de Ja-neiro: Topbooks, 1996.

PIANZOLA, Maurice. Os papagaios amarelos; os franceses na con-quista do Brasil/ Les perroquets jaunes; des Français à la conquête duBrésil – XVIIe siècle. Trad. de Rosa Freire d’ Aguiar. São Luís do Maranhão:Secretaria da Cultura do Estado do Maranhão: Alhambra, 1992.

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______. A Vitória do Português no Brasil Colonial. Brasília, 1983, v.I, 1983, v. I, n. 4, pp. 21-41, jul.-set., 1983.

TEYSSIER, Paul. História da Língua Portuguesa. Trad. de CelsoCunha e Claire de Oliveira. Lisboa: Sá da Costa, 1984.

VARNHAGEN, A. História geral do Brasil; antes de sua separa-ção e independência de Portugal. Revisão e notas de Rodolfo Garcia.São Paulo: Melhoramentos, MEC, 1975, T. III.

VERNEY, Luís Antonio. Verdadeiro método de estudar. Valensa:Oficina de Antonio Balle, MDCCXLVI. T. I. Carta I.

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VASCONCELLOS, Simão Leite de. Crônica da Companhia de Je-sus no Brasil. 3. ed. Petrópolis: Vozes; INL: 1977, v. I.

Nota1 As páginas citadas dizem respeito à edição do manuscrito feita pornós e indicada na bibliografia.

Carla da Penha Bernardo- Mestra em Filologia Românica e doutorandaem Literatura Portuguesa (UFRJ).

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1. Apresentação

Ao iniciar o Mestrado na Universidade Federal da Bahia,na área de Lingüística Histórica, no primeiro semestre de 1996,sob a orientação da professora Célia Marques Telles, esco-lheu-se trabalhar com o estudo de alguns aspectos lexicais dasreceitas encontradas no Livro de cozinha da Infanta D. Ma-ria, manuscrito português do século XVI, a partir da ediçãocrítica de Giacinto Manuppella.1

O interesse pelo estudo do vocabulário quinhentista relati-vo à cozinha, surgiu primeiramente da curiosidade despertadaao se entrar em contato com o primeiro livro manuscrito decozinha portuguesa conhecido até o momento: o Livro de co-zinha da Infanta D. Maria que provavelmente pertenceu aofinal do século XV e princípios do século XVI2 .

Ao deparar-se com tais receitas, reconhecem-se de ime-diato as diferenças em relação às atuais: o vocabulário utiliza-do na época, tanto pode diferir do atual, como pode ser manti-do até os dias de hoje.

Um estudo diacrônico desses vocábulos mostraria a evo-lução de cada um deles, ou a sua permanência na língua resis-tindo às modificações através dos tempos. O presente estudo,entretanto, pretende apenas demonstrar como, apesar de ostempos modernos terem trazido novos utensílios que não exis-tiam na época, grande parte deles permanecem, utilizando ape-nas, algumas vezes, uma nova “roupagem” seja ela na expres-são ou no objeto material.

Os utensílios de cozinha: portuguêseuropeu do séc. XVI em confronto

com o português do Brasil no séc. atual

Celina Márcia de Souza Abbade,da UNEB/ BA/ BRASIL, PPGL-UFBA

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Trata-se de um estudo lexicológico, e, portanto, serão ob-servados apenas os aspectos relativos ao léxico, restringindo-se o enfoque ao campo dos “utensílios”. Sabe-se, porém, comoé a história de um povo, através do seu vocabulário.

Como textos de base, serão utilizados o Livro de cozinhada Infanta D. Maria (para os utensílios utilizados no séculoXVI) e O livro de cozinha de Pedro Archanjo com as me-rendas de Dona Flor (para os do século XX). A partir des-ses textos, mostrar-se-á a evolução ou permanência dos uten-sílios encontrados em ambos os textos.

2. Dois livros de receitas

2.1. O Livro de cozinha da Infanta D. Maria

O Livro de cozinha da Infanta D. Maria é o manuscritoI-E-33 da Biblioteca Nacional de Nápoles. Teria pertencido auma Infanta portuguesa de cultura notável: a Infanta D. Mariade Portugal, filha de D. Duarte (1515/1540) duque de Guima-rães, neta do rei D. Manuel e sobrinha de D. João III. Moçaletrada e culta, lida em grego e latim, que ao casar-se comAlexandre Farnésio (duque de Parma, Placêncio e Castro),vai, em 1565, morar em Parma. O manuscrito que teria sidolevado para a Itália pela Infanta, faz parte de um grupo decinco tomos de origem farnesiana, doação vinda da famíliaFarnésio. Consta de setenta e quatro fólios, divididos em qua-tro cadernos com setenta e quatro receitas. Um códice que,apesar dos problemas paleográficos e cronológicos que apre-senta, é deveras valioso, contribuindo não só para o vocabulá-rio histórico da linguagem nacional, como também mostrandoum lado importante da vida social que é a arte de cozinhar ebem comer, numa época da história nacional portuguesa deque muito pouco se conhece e cujo mais antigo documento dereceitas culinárias publicado não é anterior a 1680, que é “AArte de Cozinha” de Domingos Rodrigues.3

A edição de Giacinto Manuppella do Livro deCozinha da Infanta D. Maria, inicia-se com a edi-ção crítica do manuscrito e em seguida é feita aleitura diplomática nas páginas de números pa-res, junto a leitura em ortografia moderna, naspáginas de números ímpares. Ao final do livro,

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encontram-se dois índices que são de interessepara o estudo do léxico: índice de palavras queocorrem no códice (p. 165-244) e índice de assun-tos versados nas receitas (p. 247-249). Como al-guns vocábulos são desconhecidos da maioriados leitores, fez-se também um glossário das pala-vras que ocorrem no códice, o que serviu paracolaborar no levantamento lexical pretendido.

O Livro de cozinha da Infanta D. Maria é composto de67 receitas distribuídas em quatro cadernos e mais seis recei-tas avulsas que não tratam especificamente de culinária, masde receitas diversas de uso doméstico. O primeiro caderno é oCaderno dos manjares de carne com 26 receitas (numera-das de 4 a 29); o segundo, Caderno dos manjares de ovos,com 4 receitas (numeradas de 30 a 33); em seguida encontra-se o Caderno dos manjares de leite com 7 receitas (numera-das de 34 a 40); e, finalmente, o Caderno das cousas deconserva com 24 receitas (numeradas de 41 a 64).

2.2. O Livro de cozinha de Pedro Archanjo com asmerendas de Dona Flor4

Em 1987 resolvi estudar a obra do meu pai, o escritor JorgeAmado, para fazer um livro de cozinha. Fiz a leitura de seusromances em ordem cronológica para sentir a evolução da pre-sença e da importância da comida e da bebida nos seus livros.Dei-me conta que o material é muito mais rico do que imaginavae que valeria à pena identificar não somente os pratos da culiná-ria baiana, mas tudo que se come e bebe, seja vatapá, acarajé,jaca, cachaça, champanhe, seja terra, rato, gente.5

Assim nasce A comida baiana de JorgeAmado ou O livro de cozinha de Pedro Archanjocom as merendas de Dona Flor. Pedro Archanjoe Dona Flor, são personagens de romances deJorge Amado. Foi Pedro Archanjo quem inspirouPaloma Amado a organizar esse livro de receitas.Manual de culinária baiana é o título dado porPedro Archanjo, personagem de Tenda dos mila-gres6 , a seu livro de cozinha. Nas palavras dePaloma Amado:

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Pedro Archanjo é um obá de Xangô, Oju Obá cheio deconhecimento e sabedoria. Conhece o povo mestiço da Bahiacomo a palma de sua mão, seus hábitos, sua cultura. Atravésde Archanjo pode-se ter a noção exata da delicadeza e daforça, da simplicidade e da sofisticação desta culinária que tam-bém é fruto da miscigenação, que junta o dendê africano àmandioca do índio e ao azeite de oliva português.7

Dona Flor é a personagem central de Dona Flor e seusdois maridos8 que, do ponto de vista alimentar, é também umlivro de cozinha baiana. Utilizando novamente as palavras dePaloma Amado, pode dizer-se desse romance que:

Além de dar receitas - todas corretas efactíveis - mostra o jeito de comer da Bahia; expli-ca os carurus de Cosme e Damião; ensina o queservir num velório; explica como fazer uma grandemerenda à tarde Em Dona Flor e seus dois maridosse encontra uma relação das comidas de candom-blé, com os pratos preferidos de cada santo e asquesilas ¾ o que os santos e seus filhos não podemcomer e às vezes nem pronunciar o nome.9

Após fazer o levantamento de todo o material, Paloma Amadoafirma ter, inicialmente, caído na tentação de fazer um estudosobre a alimentação através de um ponto de vista antropológicoou sociológico, mas resiste e faz a opção pelo livro de cozinha,devido ao grande número de material encontrado. Divide essematerial por temas e resolve fazer vários livros. Esse é o primeirodeles e divide-se em duas partes: a primeira, O livro de cozinhade Pedro Archanjo, refere-se aos pratos utilizados nos almoços ejantares baianos. Na segunda, com As merendas de Dona Flor,lembra os pratos não apenas servidos entre as refeições principais,mas que compõem os cafés da manhã e os jantares baianos10.Mais dois livros se seguirão posteriormente, um das comidas decandomblé e outro sobre as frutas devido a enorme variedadedelas e a importância que têm na alimentação. Esses dois nãoserão tratados no presente estudo.

3. Utensílios de cozinha: do séc. XVI ao séc. XX

Pelo fato de as técnicas culinárias no séc. XVI não semostrarem excessivamente complexas (assar, cozer, fritar, es-

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tufar ou afogar eram as principais técnicas empregadas), pou-cas variedades de utensílios se tornavam necessárias:

para levar os ingredientes ao fogo usavam-se tigelas, panelas, tachos, púcaras ou púcaros;o peixe era frito em frigideiras e sertãs; bacias ebacios serviam para lavar os alimentos, misturá-los e os levar ao lume; as panelas eram cobertascom tapadeiras, testos, telhadores ou sapadeiras;colheres, garfos e facas, geralmente de ferro, as-sim como escumadeiras, jueiras, graais, rolos,furadores, machadinhas, carretilhas auxiliavamos cozinheiros. À mesa, levava-se alimentos empratos, escudelas, tachos etc. Desde a Idade Médiaque se usavam nas mesas toalhas e guardana-pos. Nesse período, a faca era instrumento porexcelência, desconhecendo-se garfos e utilizan-do-se com pouca freqüência a colher. Para beberusavam-se copos um pouco maiores dos que osatuais. Embora se recorresse às escudelas parasopas e outros alimentos líquidos, comia-seinicialmente a carne e o peixe em cima de grandesrodelas de pão, substituídas mais tarde pelotalhador de madeira e, depois, por escudelas queserviam para duas pessoas11.

No Livro de cozinha da Infanta D. Maria encontram-se quarenta utensílios diferentes: agulha, albarada de bico,alfinete, algujdar (alguydar), bacia, bacio, borcelana,caninhas (canynhas), canyuete, canudo, capadeira,carretilha , colher(es), escudela(s) (escudella), escumadeira,fogareiro (ffogareiro, fugareiro), furador , fuso (ffuso), gral,jueira (juejra), lagia, machadinha, panela(s) (panella),pano(s), pao rrolyco, peneira (pineira, pinejra, pineyra,pyneyra(s)) , prato(s), púcara (pucaro(s), pucoro, pucaros),rrapadoura , rrolo (s), sesto, sertã (sartãa, sertãa, sartam,sertam, certãa), tacho, tapadeira, tauoa, telhador, testo, ti-gela [tejalla, tegela(s), tigella(s), tijella, tyjela, tijela, tijella] ,toalha, vasilha (vasylha, vazilha).

A comida baiana de Jorge Amado traz uma variedadede quarenta e seis utensílios a saber: assadeira, batedeira,braseiro, caldeirão(zinho), caneca, churrasqueira, colher(de pau), compoteira, concha, copo, cortador, cumbuca

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de barro, cuscuzeiro, escovinha, escumadeira (espumadeira),espátula, espeto, espremedor, faca, folha de bananeira, fôrma,forminhas, forno, frigideira, garfo(ão), geladeira, grelha,liqüidificador, martelo de carne, moedor de carne, molheira,palito, panela(lão), pano, papel absorvente, peneira, prato,rolo, tábua (de carne), tabuleiro, tampa, travessa, tigela,urupema (peneira de palha bem fina), vasilha, xícara.

Atualmente, algumas técnicas mais requinta-das podem ser utilizadas após a invenção de bate-deiras, liqüidificadores, multiprocessadores, fornoselétricos, forno de microondas, dentre outros. Masbasicamente, continua-se cozinhando, assando efritando os alimentos, como se fazia no século XVI.A variedade de utensílios utilizados na cozinha atualé maior, mas nada tão distante daqueles tempos. Éimportante lembrar que, já no século XIV, Leonardoda Vinci, com suas experiências culinárias e suamente criativa, já fazia desenhos de maquinários eutensílios que poderiam contribuir e facilitar as co-zinhas da época. Ele já imaginava picadores de car-ne, máquinas de lavar, descascadores de nozesmecânicos e coisas semelhantes. Com o tempo, seusdesenhos transformam-se em objetos reais.12

Se no Livro de cozinha da Infanta D. Mariaforam encontrados 40 utensílios, no livro A comi-da baiana de Jorge Amado encontram-se 46. Àprimeira vista, a diferença é bem pequena, apenasseis utensílios a mais. No entanto, apenas dez de-les são encontrados em ambas as épocas (colher,escumadeira, panela, pano, peneira, prato, rolo,tábua, tigela, vasilha). Os demais trinta e seis uten-sílios do livro A comida baiana de Jorge Amadonão citados no Livro de cozinha da Infanta D.Maria, poderiam até não existir no século XVI. Masdos trinta utensílios restantes do Livro de cozinhada Infanta D. Maria, que não são citados em Acomida baiana de Jorge Amado, apenas sete de-les não são mais utilizados atualmente (albarada,caninha, gral, sertã, sapadeira, tapadeira,telhador). Os outros vinte e três apenas não seencontram no livro em questão, mas existematualmente, mesmo que sejam de pouco uso (agu-lha, alfinete, alguidar, bacia, bacio, canivete, canu-do, carretilha, cesto, escudela, fogareiro, furador,

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fuso, joeira, lage, machadinha, pau roliço, porce-lana, púcara(o), rapadeira, tacho, testo, toalha)13.

Isso esquematizado, dará o seguinte:

Partindo do Livro de cozinha da Infanta D. Maria podeobservar-se, portanto, que lexias como agulha, alfinete, ba-cia, canivete, canudo, carretilha, cesto, colher,escumadeira, fogareiro, furador, laje, machadinha, pane-la, pano, peneira, prato, porcelana, rolo, tábua, tigela,toalha, vasilha são utilizados atualmente, mantendo o mesmosignificado. Outros - como alguidar (vaso em forma de troncoinvertido), escudela (tigela de madeira, pouco funda),fuso(instrumento roliço e pontiagudo que serve para fiar),joeira (peneira que serve para separar o trigo do joio), pauroliço (qualquer pedaço de madeira em forma de rolo),púcara(o) (pequeno recipiente com asa, ordinariamente desti-nado a extrair líquidos de outros recipientes maiores), rapadoura(instrumento próprio para rapar), tacho (recipiente largo e poucofundo, em geral com asas), testo (tampa) - existem ainda, po-rém são de muito pouco uso. Algumas unidades lexicais achou-se documentadas no Estado da Bahia: alguidar, tacho, testoe púcaro foram registrados por Nilton Vasco da Gama nomunicípio de Marogogipe, no Recôncavo Baiano.14 Porcela-na está documentada em toda a região do “falar baiano” noAtlas prévio dos falares baianos15. Em todos os casos, man-tém-se o sentido do século XVI.

Albarada, caninha, gral, sertã, sapadeira, tapadeira,telhador não mais existem no vocabulário atual. Para caninha

FON TE UTEN S˝LIOSENCON TR ADOS

UTEN S˝LIOSEM COM UM

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2 7 9 7

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utiliza-se caniço, para gral usa-se cálice, para sertã tem-sefrigideira ou torradeira e sapadeira, tapadeira e telhadorforam substituídos por tampa. Bacio tinha o mesmo sentido debacia hoje.

4. Considerações finais

Estudar o léxico de uma língua é descobrir um mundo cominúmeras possibilidades de mudanças e pode dizer-se que essasmudanças fazem parte da nossa própria evolução como sereshumanos.

Através dos tempos os utensílios de cozinha, assim comoas coisas do mundo, vão se transformando, vão surgindo ou-tros, melhoram-se os já existentes, que permanecem em cons-tantes mudanças. Porém, mais importante que as mudanças, éa capacidade humana de poder realizá-las ou não.

Referências bibliográficas:COSTA, P. 1994. A comida baiana de Jorge Amado ou O livro de

cozinha de Pedro Archanjo com as merendas de Dona Flor. São Paulo,Maltese.

FERRO, J. 1996. Arqueologia dos hábitos alimentares. Lisboa, DomQuixote.

GAMA, N. 1976. Breves considerações sobre o vocabulário deuma variante lingüístico profissional em Maragogipe. In I EncontroNacional de Lingüística. Conferências/ PUC-RJ, p.406-433.

MANUPPELLA, G. 1986. Livro de cozinha da Infanta D. Maria dePortugal. Códice português I.E.33 da Biblioteca Nacional de Nápoles,Lisboa, Imprensa Nacional / Casa da Moeda.

ROSSI, N. 1965. Atlas prévio dos falares baianos. Salvador, Uni-versidade Federal da Bahia – Faculdade de Filosofia - Laboratório deFonética. Instituto Nacional do Livro: Carta 46.

ROUTH, S. y J. 1996. Notas de cocina de Leonardo da Vinci.Compilación y edición. Traducción de Marta Heras. Madrid, Temas deHoy SA.

Notas1Cf. Giacinto MANUPPELLA. Livro de cozinha da Infanta D. Ma-

ria: Códice português I. E. 33. da Biblioteca Nacional de Nápoles. Lis-boa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1986.

2Cf. id. ibid., p. XVI.3 Cf. Domingos RODRIGUES Arte de cozinha.. Lisboa: Imprensa

Nacional / Casa da Moeda,1987. Leitura, apresentação, notas e glossário

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por Maria das Graças Pericão e Maria Isabel Faria.4 Cf. Paloma Jorge Amado COSTA. A comida baiana de Jorge

Amado ou O livro de cozinha de Pedro Archanjo com as merendas deDona Flor. São Paulo: Maltese, 1994.

5 Cf. id. ibid., p. xi.6 Cf. Jorge AMADO. Tenda dos milagres. São Paulo: Martins,

1969. (Coleção Obra de Jorge Amado, Vol. 18).7 Conf. Paloma Jorge Amado COSTA. Ob. Cit. p. xxv.8 Cf. Jorge AMADO. Dona Flor e seus dois maridos. São Paulo:

Martins, 1966. (Coleção Obra de Jorge Amado, Vol. 17).9 Conf. Paloma Jorge Amado COSTA. Ob. Cit. p. xxiv-xxv.10 A comida baiana de Jorge Amado é dividida em várias partes

além das duas principais. Começa com umas introdução onde se faz umhistórico do surgimento e utilização da comida baiana nos romances deJorge Amado. Segue com O livro de cozinha de Pedro Archanjo dividi-do em onze capítulos: (Dos Tira-Gostos (p.3), Dos Grandes Pratos daComida de Azeite (p.31), Das Frigideiras (p.57), Das Moquecas (p.75), DaRampa do Mercado (p.95), Das Aves (p.113), Do Mar e do Rio (p.135),Dos Assados de Carne (p.151), Das Carnes-Secas (p.165), Das Caças deTição Abduim (p.179), Dos Doces (p.189). Em seguida, As Merendas deDona Flor se divide em cinco partes: De Beiju e Cuscuz (p.221), DosBolos (p.233), Dos Mingaus (p.253), De Legumes e Frutas (p.267), DosBiscoitinhos e de Outras Coisas (p.279). O livro termina com os índicesde Receitas, Livros e Personagens; de Pratos e Ingredientes e de Pesso-as e Restaurantes Citados.

11 Cf. João Pedro FERRO. Arqueologia dos hábitos alimentares.Dom Quixote: Lisboa, 1996. P.37.

12 Cf. Shelagh y Jonathan ROUTH. Notas de cocina de Leonardoda Vinci. Compilación y edición. Traducción de Marta Heras. Temas deHoy S.A: Madrid, 1996.

13 Os utensílios marcados em ítálico, são aqueles considerados de“pouco uso”.

14 Cf. Nilton VASCO DA GAMA. Breves considerações sobre o voca-bulário de uma variante lingüístico profissional em Maragogipe. In: IEncontro Nacional de Lingüística. Conferências/ PUC-RJ, 1976. P.406-433.

15 Cf. N. ROSSI. Atlas prévio dos falares baianos. UniversidadeFederal da Bahia – Faculdade de Filosofia - Laboratório de Fonética.Instituto Nacional do Livro: Salvador, 1965. Carta 46. Registra-se tambémno Estado de Sergipe.

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“À vista do que fica exposto, a Comissão reconhece eproclama esta verdade: o idioma nacional do Brasil é a LÍN-GUA PORTUGUESA. E, em conseqüência, opina que a de-nominação do idioma nacional do Brasil continue a ser: LínguaPortuguesa.”

Assim terminava o relatório apresentado ao Ministro da Edu-cação e Saúde pela Comissão nomeada para cumprir a determi-nação contida no art. 35 do Ato das Disposições Transitórias,apenso à Constituição de 18 de setembro de 1946, onde se lia: “OGoverno nomeará comissão de professores, escritores e jornalis-tas, que opine sobre a denominação do idioma nacional.”

Seu relator, Sousa da Silveira, Presidente da Academia Bra-sileira de Filologia, encerrava sua longa exposição de motivos afir-mando que tal denominação, além de corresponder à verdade dosfatos, tinha a vantagem de lembrar, em duas palavras, “a históriade nossa origem e a base fundamental da nossa formação depovo civilizado”.

Portanto, começamos nossa breve exposição sobre o temadesta mesa-redonda, que trata da implantação e da oficializaçãodo português do Brasil como língua nacional, relembrando o docu-mento institucional que marca essa definição lingüística, associadamuita vez em nossa história a posicionamentos políticos nem sem-pre dos mais isentos.

Não é improvável, porém, encontrar ainda algum defensorintransigente da proclamação de uma independência terminológicaque venha a “corrigir” o citado parecer. Foi o que ocorreu em1986, quando Afrânio Coutinho se manifestou contrariamente a

É uma Língua Portuguesa, com certeza

Claudio Cezar Henriques,da ABF e UERJ.

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um outro parecer, sobre Diretrizes para o aperfeiçoamento doensino/aprendizagem da Língua Portuguesa, do Conselho Federalde Educação. O acadêmico insistia na tese de que a norma culta,defendida pelos filólogos como um dos componentes obrigatóriosdo ensino, corresponde à norma portuguesa. E afirmava:

“Pretender submeter a massa brasileira à norma culta dePortugal, que os gramáticos portugueses e brasileiros teimam emestabelecer, é um crime de leso-patriotismo e de lesa-ciêncialingüística.”

Voltemo-nos, então, para a transplantação do Português parao Brasil, que ocorreu vinculada a uma colonização em massa, oque não foi em verdade um fenômeno novo na história lingüísticada humanidade. Como nos outros casos, também aqui se precisa-ria fazer uma avaliação das condições sociais e lingüísticas espe-cíficas que envolveram as relações desse contato.

Desde a época da independência política brasileira, as inicia-tivas em busca do estabelecimento de uma norma lingüística fun-damentada no uso geral do Brasil tomavam como foco algumaspreferências locais quanto ao uso de construções sintáticas –notadamente a questão da colocação pronominal – e ao vocabulá-rio brasileiro. É o que se nota nas idéias defendidas pelo Viscondeda Pedra Branca em 1926 e, alguns anos mais tarde, no que MacedoSoares também sustenta: “Já é tempo de escrevermos como sefala no Brasil e não como se escreve em Portugal.”

No campo literário, Gonçalves de Magalhães e José de Alencarforam dos primeiros a incluir o tema em suas manifestações escri-tas. Ao longo do tempo, tal atitude, porém, não se manifestaria deuma maneira muito lúcida e firme, variando – conforme o caso e oautor – da atitude conservadora light ao radicalismo extremo de sedefender a tese da existência de uma língua brasileira, distinta daportuguesa, a partir de teorias sobre causalidade e evolucionismo,biologismo, vocabulismo ou nacionalismo, que englobavam a refe-rência a empréstimos (e não substratos) lingüísticos indígenas e afri-canos, entre outros argumentos.

Consideremos que, hoje, esse tema da língua nacional faladano Brasil se mostra como conseqüência amadurecida e superadaem torno de adesões ou rejeições à matriz européia (e seus mode-los?). Afinal, como já foi dito por filólogos conceituados nos doislados do Atlântico, não é uma ficção falar num português america-no, em bloco, em face do bloco do português europeu – isto semincluir o que se passa com os demais países da comunidade

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lusofônica. Esses dois grandes dialetos, o lusitano e o brasileiro, porsua vez se diferenciam numa multiplicidade de subdialetos e ex-põem características específicas de influências e preferênciassintáticas, morfológicas ou lexicais e acentuadas marcas de pronún-cia – e é aqui que reside a principal diferença entre as duas princi-pais maneiras de falar a Língua Portuguesa. No caso brasileiro, alíngua comum se confirma nas variedades regionais, sociais e indivi-duais, ao contrário do que apregoavam os argumentos “pan-brasileiristas”.

Contra qualquer defesa que se possa fazer sobre a chamada“língua brasileira”, pode-se recorrer às conclusões de RaimundoBarbadinho Neto, Sobre a norma literária do Modernismo (AoLivro Técnico, 1977), que confirmam ser “o sistema da língua doBrasil, em seu conjunto, ainda o mesmo da de Portugal, sem em-bargo das leves diferenças de norma e da nítida existência de umestilo nacional americano e um estilo nacional português.”

Para encerrar, fiquemos com as palavras de Barbosa LimaSobrinho em A Língua Portuguesa e a unidade do Brasil (JoséOlympio, 1977 – a 1a edição é de 1958):

“No dia em que se quebrasse a disciplina da língua escrita e dalíngua literária, para que prevalecessem os falares regionais, teriatambém desaparecido a unidade lingüística, que é um dos funda-mentos de nossa unidade política e de nossa unidade nacional.”

Ou as de Edith Pimentel Pinto, em A língua escrita no Bra-sil (Ática, 1992 – série Fundamentos):

“O esgotamento das posições que pleiteavam o estatuto dedialeto ou de língua autônoma para o português do Brasilcorresponde, no plano dos especialistas, à divulgação de teoriaslingüísticas capazes de iluminar melhor a questão; e, por parte dosnão-especialistas, ao sentimento, estimulado pela escola, de per-tencerem ao mundo lusófono, do que resulta, hoje, um consenso arespeito da língua materna dos brasileiros. Isto significa que a redede oposições funcionais, características de um sistema, é, rigoro-samente, a mesma em Portugal, no Brasil ou na África.”

A norma culta brasileira, por sua vez, está consignada nasobras literárias contemporâneas e na imprensa de prestígio. Naescola, já não se tem a imposição de uma norma artificial, preva-lecendo as propostas que privilegiam o ensino das modalidades daLíngua Portuguesa, da gramaticalização brasileira e do sabermetalingüístico. Quando isso não acontece, as causas – infeliz-mente – podem ser atribuídas à política institucionalizada de des-valorização do magistério.

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Pôr na mesa de discussões a questão do português brasileiro,sua implantação e sua oficialização levou-me a refletir sobre pen-samento do estudioso SÍLVIO ROMERO acerca da questão dacorreção lingüística que, no foro do ensino da língua é matéria dedestaque. Polêmicas acirradas se desenrolam, mas as divergênci-as continuam vivas. Afinal, quem está com a razão acerca dalíngua certa do povo? E mais: quais os critérios de definição delíngua certa (ou errada)?

O fragmento em epígrafe integra texto datado de 1916 e, em1999 (83 anos depois), continua-se a discutir o tema com o mesmocalor de antanho.

O advento da Lingüística trouxe-nos a dicotomia descrição& prescrição que, em primeira instância, parecia resolver a ques-tão, uma vez que definia os papéis dos lingüistas e dos gramáticos:estes com a responsabilidade de apontar os modelos adequados;aqueles com o compromisso de explicar a sistemática das línguas.No entanto, retomando a idéia de SILVIO ROMERO quanto àquestão da moda e dos pedantes, creio que a solução do certo e doerrado em língua do ponto de vista do ensino vai perpetuar-se tal

Qual é a “língua brasileira”a se aprender na escola?

Darcilia Simões,da UERJ.

Não há uma língua mais correta do que outra, porque não há umalíngua típica. No seu desenvolvimento, uma língua pode ser mais oumenos opulenta, porém, nunca mais ou menos correta. Não se trata, pois,de elogiar ou vituperar, a linguagem de Portugal ou a do Brasil. Deresto, um povo fala e traja como quer (seria mais certo do dizer comopode) e os pedantes da língua se parecem com os pedantes da moda. 2

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como o dilema do ovo e da galinha. Isto porque a definição domodelo ideal da língua – dito correto – deságua numa questão depoder que, por sua vez, leva-nos ao status quo que, a seu turno,assevera a relação entre língua e homem. Logo, se a língua é umfato social, por conseguinte, construído pela inter-relação humana,estará aquela sujeita aos ires-e-vires da vaidade humana e de suasconseqüências na estruturação do poder.

A elitização das formas de dizer acaba por gerar uma idéiadistorcida a respeito do domínio da língua nacional. É comum ou-vir-se algo como “a gente fala tudo errado mesmo!” se a gentequiser falar de acordo com a gramática fica muito difícil”,etc. E essa distorção é intensificada pela atitude escolar que de-termina a variante padrão (ou norma culta) como a única formacorreta de usar a Língua Portuguesa. Isto promove umdistanciamento absurdo entre o que se ensina da língua e o que seusa da língua. Chega-se a pensar que aprender o português ditocorreto é tão difícil quanto aprender uma língua estrangeira.

Esse problema é histórico, pois a escola no Brasil nasceu porforça de necessidades políticas completamente afastadas do aten-dimento a interesse popular. E até hoje o que se vê é uma gestãoescolar elitista, preocupada com quadros estatísticos de fachada,completamente distante da realidade vivida pela população. Logo,a política do ensino do idioma nacional não corresponde aos anseioslingüísticos da população, uma vez que sonega a variedade decor-rente das dimensões continentais de nosso país, olvidando a ca-racterização de um povo plural na cor, no credo, nos usos e costu-mes, enfim, na forma de viver.

Não quero fazer apologia de um ensino anarquista em que avariante padrão seja posta de lado, mas um ensino de fato demo-crático em que não se faça hierarquização dialetal.

É preciso situar claramente a variante padrão no âmbito só-cio-político, para que o estudante tome consciência da necessida-de dessa modalidade de língua em benefício da comunicação am-pla entre os usuários do português do Brasil. Sem alimentar a idéiade que um uso lingüístico possa ser melhor ou pior que outro, avariante padrão pode passar a ser buscada pelo estudante, ao in-vés de imposta pela escola. Para tanto é preciso demonstrar, atra-vés dos textos e de seu compromisso comunicacional, a necessá-ria adequação de registro e a variedade estrutural decorrente dapluralidade de estilos à disposição do falante.

Entendo que a política do ensino da língua para o terceiro

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milênio tende a ser eminentemente semiótico-estilística, sem aban-donar os domínios gramaticais, mas privilegiando a forma e seusefeitos expressivo-comunicativos. Destarte, a atitude elitizante darialugar a uma postura interacional, e a estilística não mais seria vistacomo antagonista da gramática, mas como sua coadjuvante, umavez que viria ao texto todas as vezes que houvesse necessidadede um contorno expressivo especial e indispensável ao seu apuroexpressivo-comunicativo.

Minha preocupação maior, enquanto estudiosa do vernáculo,tem sido o ensino e, durante minhas pesquisas, descobri que oestudo do texto abarca a dualidade que o define como objeto designificação e objeto de comunicação. Por isso, o estudo dotexto com vistas à construção de seu (seus) sentido(s) só pode serentrevisto como o exame tanto dos mecanismos internos quantodos fatores contextuais ou sócio-históricos de produção do sen-tido. Convém observar que a tomada dos mecanismos internos éjustamente a preocupação de natureza gramatical, enquanto osfatores contextuais ou sócio-históricos ficam por conta dasabordagens semióticas e estilísticas.

Para ilustrar minhas palavras quanto a essa ótica metodológicasobre a abordagem dos conteúdos vernáculos, esclarecemos que asrelações estabelecidas entre os signos lingüísticos perpassam porvários níveis de construção de sentido. Os que têm interessado àobservação no projeto que venho desenvolvendo são o nívelsemiótico: por que isto significa o que significa? E o nívelestilístico: o que isto pode provocar no leitor, enquanto impres-são ou sugestão? Para tanto, há que se atinar para o potencial dosigno lingüístico, como material disponível para o falante nativo(estamos tratando de língua materna – L1), por meio do qual eleinteragirá com os seus pares.

Nessa ótica, o ensino do idioma ganha contornos bastantediversos do que nos legou a escola tradicional. Proponho hojeum ensino não apenas normativo, mas interacionista, progressis-ta, produtivo. Observando-se os valores funcionais dos signos eas conseqüências estilísticas e semióticas de seu emprego nosenunciados, a gramática não será trazida de fora para dentro,mas emergirá dos textos e das necessidades comunicativas.Portanto, vincular-se-á aos atos de fala (cf. SEARLE, John R.1981. Os actos de fala) e terá valores ajustados e ajustáveis àsnecessidades enunciativas.

Trata-se de um trabalho em que a gramática vai ao plural e

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será estudada em conformidade com a modalidade de texto emque estiver inserida. É um estudo gramatical contextualizado. Éum estudo que não tem a nomenclatura como fim, mas como con-seqüência. É um estudo que não visa às classificações absolutas,mas a uma relativização funcional dos elementos da língua, de suasrelações e de seus mecanismos. Trata-se, portanto, de uma propos-ta metodológica em que nada é proibido desde que seja oportuno.

Ilustrando: Estudar tipos de sujeito, de predicado, classes gra-maticais, etc. deve ser o atendimento de uma necessidade de en-tendimento de relações, como: “A gente somos inútil!”

Por que tal enunciado soa mal em nossos ouvidos? Porqueestamos habituados a ouvi-lo como A gente é inútil ou Nós so-mos inúteis. Logo, a dissonância causada pelo desrespeito à con-cordância – seja verbal seja nominal – é o dado problemático.Portanto, cumpre aproveitar para examinar os valores: flexão no-minal - singular/plural; flexão verbal – número-pessoal; concor-dância verbal e nominal: verbo/substantivo & substantivo/adjetivo,respectivamente; etc.

Observe-se que à escola cabe informar das melhores manei-ras de expressão levando em conta a indispensável adequaçãocontextual. Por isso, trago ao texto algumas palavras de CelsoCunha (In Língua, Nação, Alienação, 1981: 15):

O próprio status da modalidade lingüística deque nos servimos não está claramente definido, oumelhor, as conceituações propostas se fundam emrazões extralingüísticas, de regra eivadas de pre-conceitos historicistas ou nacionalistas. Daí as de-nominações variadas que vão desde as jacobinas(do tipo língua brasileira) às subservientes (comodialeto brasileiro). Isso sem falar nas neutras,anódinas (a exemplo de língua ou idioma nacio-nal), que mais de uma vez têm valido para acalmarzelos patrióticos, mas que, em verdade, deixam alíngua inominada, pois não há país soberano quenão possua o seu idioma nacional.

Como é possível depreender do excerto, todo radicalismo sobreesta ou aquela variante seria uma atitude leviana ou intempestiva,uma vez que as fronteiras entre as variações lingüísticas não pas-sam de cortinas de fumaça, por isso, são tênues e flutuantes, emgeral. Logo, a impermeabilidade lingüística não é uma atitude pe-

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dagógica adequada, sobretudo em tempos de globalização, ondetudo é de todos e para todos. Por que não a língua?

Na obra citada, o ilustre gramático já se indagava sobre: Comoclassificar o português do Brasil? E qual a metodologia deque nos devemos servir para descrevê-lo e explicá-lo?(Id. Ib.)

Verifica-se, então, que o enfrentamento das questões relati-vas à descrição e à explicação da língua – e ao ensino, por exten-são – são preocupações históricas que vêm sendo trabalhadaspelos filólogos, gramáticos, literatos, professores, compositores,políticos, etc. Logo, não se trata de questão simples de ser aborda-da, tampouco resolvida por um modelo qualquer de trabalho didático,sobretudo. No entanto, é preciso considerar-se que, dos modelospedagógicos praticados podem emergir rotulações danosas paraos estudantes (usuários do vernáculo), pelo simples fato de nãodominarem a dita norma culta (ou padrão), apesar de comunica-rem-se satisfatoriamente em suas variantes lingüísticas originais.

A responsabilidade da escola em propiciar meios e modosem que o educando se assenhorie progressivamente do dialetoprestigiosos sem que seja violentado com a desorganizaçãoou a destruição do seu vernáculo (CUNHA, Celso. 1985. Aquestão da norma culta brasileira. [p. 47]) é patente. Entretan-to, os excessos precisam ser combatidos, e os olhos da escolaprecisam ser abertos para a necessidade de uma comunicaçãolingüística plural, extensiva a todos os falantes de uma língua, inde-pendentemente de localização geográfica ou social.

O ensino eficiente da língua, portanto, deve calcar-se no usodesta; é o texto quem orienta um ensino produtivo, já que aquele émeio de veiculação das idéias; e é por meio do texto (oral ouescrito) que a comunicação é efetivada. O texto também trazconsigo os compromissos do contexto: o que falo? para quefalo? com quem falo. Dessa tríade de indagações surge uma deimportância capital: como devo falar?

Aí ressurge a estilística como a grande organizadora dos di-tos, dos enunciados. É por meio da estilística que se tem acesso aum conjunto de “instruções” sobre o funcionamento eficaz dasformas de dizer. Não basta pensar no autor defunto & defuntoautor de Memórias póstumas de Brás Cubas, ou nos olhos deressaca de Capitu em Dom Casmurro, assim como nas vozesveladas veludosas vozes de Cruz e Souza, como matéria para aanálise estilística. É de interesse estilístico também a escolha doregistro que, por sua vez vai determinar a seleção vocabular e as

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combinações sintagmáticas que mais se adaptem à formulaçãotextual pretendida.

Ao lado da estilística vem a semiótica, tomando os signosverbais ora como ícones, como índices ou como símbolos (clas-sificação genérica) e viabilizando a seleção da seleção e arecombinação mais oportuna e eficaz, associando a necessidadeexpressiva à interpretabilidade do texto.

Não devendo prolongar as reflexões sobre o tema em funçãoda natureza desse trabalho - uma fala em mesa-redonda, decidiconclui-lo retomando a pergunta-título Qual é a língua brasileiraa se aprender na escola? e reapresentar a questão substituindoaprender por ensinar, apontando o adjetivo brasileiro não comoum índice de jacobinismo, mas de soberania; lembrando da impor-tância do domínio mais amplo possível das variedades da LínguaPortuguesa do Brasil, como condição de eficiência comunicacionale de competência cidadã; alertando os docentes sobre a importân-cia de uma metodologia interacionista, funcional, dinâmica, onde aestilística seja de fato trabalhada como ciência do estilo, e a semióticaseja convidada a participar da festa do idioma (classes de portu-guês), atuando como “bússola” para a composição dos melhorestextos e, por conseguinte, para a leitura destes.

Por isso, a escola deverá apetrechar o aluno, se não com ouso imediato de qualquer variante, mas pelo menos com a disponi-bilidade de interagir com qualquer delas sem atitude preconceituosaou discriminatória. A partir do convívio sistemático com amultiplicidade de usos lingüísticos e a observação cuidadosa dosvalores expressivo-comunicativos dos componentes textuais, ousuário tornar-se-á versátil diante das potencialidades da língua e,conseqüentemente, estará preparado para desempenhar valiosopapel social no BRASIL adulto do terceiro milênio.

Nota2 (Palavras SÍLVIO ROMERO. Estudos sobre a poesia popular. p. 310Apud in VIRGÍLIO DE MEMOS – O problema dialetológico. In PINTO,Edith Pimentel. O português do Brasil- Textos críticos e teóricos – 1820-1920 – Fontes para a teoria e a história. Rio de Janeiro: Textos técnicos ecientíficos; São Paulo: EDUSP.)

Darcilia Simões - Doutora em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa)pela UFRJ, tendo defendido tese sobre a aplicação da semiótica ao ensi-no da redação. É professora adjunta do Programa de Mestrado em Lín-gua Portuguesa do Instituto de Letras da UERJ, atuando comosubcoordenadora do Curso e coordenadora da Pós-graduação lato sensu.

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O progressivo deslocamento dos estudos literários, para outrasáreas além da teoria mesma, implica a absorção de elementos denatureza diversa, que apontam para a cultura como centro irradiadorde pesquisas e de publicações referentes ao assunto. Essa mudan-ça de enfoque trouxe uma nova postura diante do texto e liberou acrítica para penetrar em várias disciplinas, usando-as comocontraponto a sua especialidade e, assim, melhor lidar com os múl-tiplos aspectos que a leitura do literário oferece. Nestas condições,não devem surpreender a ninguém relações entre literatura e reli-gião, ou entre literatura e música, pois tão agudas quanto as mudan-ças de gêneros são as mudanças teóricas que os analisam.

Considerando-se que palavra e música são em essênciaimbricadas pelo som e que a ligação entre elas remonta às origenslíricas, possível é observar como se dão essas referências que semanifestam no tecer das estruturas dessas formas de arte. Por ou-tro lado, a religião, ao invocar a persuasão retórica para atrair econvencer os fiéis, deu, muitas vezes, a seus sermões um ritmo euma melodia facilmente identificáveis.

De início, poder-se-ia dizer com Empédocles1 que, no literário,“o tornar-se um é ele mesmo um múltiplo, o concentrar-se éseparar-se”, pois do literário não se pode afirmar de modo enfáticoo que é, só se pode declarar do que se trata; trata-se da manta queencobre as afirmações religiosas e do mantra que se invoca e serepete no ato litúrgico da escritura. No discurso religioso, os rastrosdo literário vão denunciando os enigmas que se ocultam e se mos-tram na cena musical e ambígua da linguagem, pois a religião comoa música é duplicável, é som (palavra) e silêncio, construção e

A defesa da fé nopúlpito transdisciplinar

Geysa Silva,da UFJF.

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desconstrução, uma forma de inferência e de representação, umalente através da qual não se vê, mas se concebe a vida e o homem.

Por trabalhar com concepções, a crítica literária hoje escapa àtradição racionalista do ocidente, interpretando Saberes e permitin-do que a literatura se amplie, ocupando o terreno transdisciplinar,numa operação de deslizamento que vai da harmonia dos vocábulosaos apelos impactantes de uma religiosidade aflita.

Falar da experiência religiosa significa recuperar uma tradiçãodeterminada, desprezando a razão para adotar componentesemotivos e intuitivos na apreensão do que é dito e vivido. No casoparticular desse trabalho o que se pretende é pegar os fios de dife-rentes meadas e trançá-los, para tentar apreender a herança cultu-ral de uma cidade, suas crenças, seus medos e desatar o nó de suasmemórias. O tripé - literatura, música e religião - constitui, portanto,a complexa arquitetura com que serão examinados alguns discur-sos do Padre Júlio Maria, redentorista que abalava o comodismo decatólicos do século XIX e princípios do século XX, na cidade minei-ra de Juiz de Fora.

Quem era esse Padre Júlio Maria, que pregava um catolicismovigoroso e atacava a mescla de sagrado e profano, observada nasfestas religiosas de Juiz de Fora, no início do século? Nascido emAngra dos Reis, bacharelou-se em Direito, em São Paulo; militou napolítica e exerceu cargos de magistratura em Minas Gerais. Aoenviuvar pela segunda vez, foi para Mariana, onde estudou Teologiae ordenou-se padre, em 1891, indo para Juiz de Fora. Ficou famosopor seus sermões, que traduzem um esforço de situar-se entre oreligioso e o literário, na dinâmica das relações que integram formae conteúdo. Dele nos fala Murilo Mendes, em A idade do serrote,como alguém que tem visão diferente do catolicismo e, assim, influ-enciava os fiéis:

O Padre Júlio Maria já me vacinara contra a religião pi-egas das beatas1 .

Ao transformar o discurso religioso em literário, o Padre JúlioMaria lhe atribui o imperativo de representar, ser imagem, um uni-verso em outra dimensão. E suas palavras vão ganhar traços musi-cais, visto que a música repousa sobre a relação triática: homem/obra/transcendência, daí a importância do ritmo, do tempo construídopelo artista que transfigura o real. A fala performática, que do púlpi-to imprecava contra os fiéis, é atravessada por uma melodiamonocórdia, análoga à monofonia do canto gregoriano, que o rigoreclesiástico conduziu ao máximo de perfeição expressiva, permitin-

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do que até hoje ouvintes se deliciem com sua beleza. Essa monodia(segundo alguns) ou monofonia (segundo outros) limita as opçõesde representação, todavia permite centrar a atenção no orador e,por conseguinte, em suas palavras, conforme se constata neste tre-cho de O Deus desprezado:

Eu sigo os trilhos que o Senhor me riscou;dou os combates a que me convidou;acompanho a estrela que Ele fez brilhar nastrevas da minha mocidade1 .

Em música, a melodia é o universo semântico da obra, o espa-ço (no sentido amplo do termo), onde se desenham imagens orde-nadas pela harmonia e onde o musical adquire materialidade. Estamúsica-linguagem é captada pelo leitor que percebe as relaçõesentre essas duas formas expressivas e pelo autor que pretende aintegração do homem com a totalidade absoluta. É preciso notar,contudo, que totalidade aqui não significa uma forma de organiza-ção e, sim, uma vivência plena do Santíssimo Sacramento, mostran-do que o homem pode e deve aspirar a esse estado último da hierar-quia cristã, mesmo sem desprender-se de suas obrigações cotidia-nas. O Padre Júlio Maria não receita a irracionalidade, mas percebeque o desapreço pelos valores espirituais constituía-se em graveameaça ao catolicismo. Ao notar as “doenças” de uma cidade quecomeçava a mergulhar na era da técnica e a entregar-se aos exces-sos do pragmatismo, o vigário vai tentar “salvá-la” para Deus, pro-pondo uma prática de vida que se opunha à superficialidade da fé.

Assim, entre os extremos da fé desencaminhada e um ateís-mo transformado em réu de um processo de animosidade contra aSanta Madre Igreja, o Padre Júlio Maria procurou um espaço noqual a razão se unisse ao sentimento. Nessas condições, modificaa melodia de seus discursos, que invocam testemunhos, colocamem disponibilidade várias vozes, não como diálogo polifônico, por-que as vozes não se contrapõem, porém como expressão de umamesma idéia.

Os santos são, em relação a Jesus Cristo, diz com muitofeliz comparação, Augusto Nicolau, como prismas em rela-ção à luz2 .

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Ou ainda:

S. Vicente de Paulo [...] aos padres exprobava esta tristedecadência da religião e dizia: “Somos nós, os padres, a cau-sa principal da deplorável diminuição da fé1 .

Admitir a culpa dos padres traz, para a discussão, o tema darecompensa e do castigo, do mérito e do demérito. Há nessa religi-osidade o imperativo categórico kantiano, uma escuta anterior - odever que a consciência impõe ao sujeito que é visto como imagem,modelo a ser seguido pelos leigos. Para exortar os padres avivenciarem o Santíssimo Sacramento e a disseminarem essa devo-ção (tal como fazem os carismáticos contemporâneos), o PadreJúlio Maria organiza seu discurso em perguntas retóricas, no maispuro estilo de Vieira. No final de século XIX, a atmosfera de angús-tia e de pessimismo exemplificada por Schopenhauer provocava,em contraponto, a vontade hedonística de aproveitar cada momentoda existência; por isso muitos preferiam os prazeres dos sentidosaos prazeres intelectuais ou aos prazeres místicos. Os padres demi-tiam-se do dever de estudar e adotavam o improviso como práticaoratória. Contra isso investe o Padre Júlio Maria:

Pode saber pregar quem não procura noDivino Mestre da palavra a alma, a inspiração,o fogo da eloqüência sagrada?!

[...] A palavra de Deus não precisa, paratrazer frutos de talentos oratórios; precisa ape-nas ser reproduzida pelo padre com decoro, fi-delidade, gravidade2 .

Os sermões se sucedem, organizados em suíte que, após vari-ações esporádicas, executam o ritornello da adoração ao Santíssimo,como condição sine qua non para a beatitude ser alcançada. Essaestrutura de repetição, que lembra o estribilho, combina-se com alinguagem metafórica e com os inúmeros similes e comparaçõesencontradas nos discursos.

Em música, ao contrário do texto verbal, nenhuma combinatóriada conta do texto específico, pois é impossível encaixar os sons emsintagmas. Entretanto, os movimentos de um discurso podem serapreciados como os de uma obra musical. É assim com os sermõesde O Deus desprezado. Iniciam-se com um adágio grave, aoqual se seguem fórmulas dramáticas que lembram as árias operísticas

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ou os recitativos acompanhados de elementos musicais. Essa técni-ca leva o ouvinte num crescendo para ancorá-lo num tempo quepermanece até no silêncio depois da última palavra (ou última nota)e que se faz na dialética entre stasis e kinesis. Vejam-se algunsfragmentos do vigésimo quinto sermão:

Início: Quanto ao ensino em geral, é umatristeza a doutrinação das paróquias.

Meio: O sermão! Ele revela a degeneraçãodo culto, o falseamento das devoções e o divórcio,em muitos, da fé eclesiástica com a Teologia.

Final: Assim, no sermão há de haver o provei-toso da fruta, o formoso das flores, o vestido dasfolhas[...], mas tudo isso nascido e formado de umsó tronco, e esse levantamento no ar, senão funda-do nas raízes do Evangelho1 .

A macro-estrutura desses sermões é a segmentação didáticatradicional: apresentação, desenvolvimento, conclusão e por con-seguinte, a mesma estrutura da sonata. A tonalidade do desen-volvimento contrasta com a da apresentação, enquanto a últimaparte retorna a primeira, porém num ritmo vibrante não usadoanteriormente.

O final apoteótico desses sermões, em O Deus desprezado,faz a negação do lado trágico da vida e substitui a gratuidade e ainsignificância de nossa existência pela crença na redenção. Assimcomo a vontade de potência é, para Nietzsche, a força maior quenos possibilita uma jubilação trágica, o culto de Cristo presente naEucaristia é a devoção principal que permite ao Senhor humilhar-se,repetir o sacrifício do Calvário e oferecer-se de novo como Salva-dor. Em Juiz de Fora do início do século, o Padre Júlio Maria seassombra com uma religiosidade que não consegue aceitar, comuma fé que não conduz a nada e, então, ele elabora meios de enca-rar esse nada de frente; constrói, em seus sermões, uma ética emque a religião é capaz de assumir a vida em sua integridade. Se, emA origem da tragédia, Nietzsche pensa o trágico não como convi-te à paralisação, mas como proximidade com Dionísio e como meiode penetrar no Eterno Retorno, em O Deus desprezado, o PadreJúlio Maria pensa que a tragédia da morte pode ser superada pelapresença de Cristo encarnado que leva o crente à glória inefável.

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A presença real! A permanência de Jesus Cristo na terra!A sua perpétua coabitação com os homens! [...] O espírito quese fortalece neste mistério quase que sente despedaçados osgrilhões da carne e vai, nas regiões do infinito, pedir aos anjosque cantem a fortuna e a glória da humanidade!1

A literatura, através do discurso religioso, presentifica um tem-po distante, permitindo que a imaginação percorra o texto, desvelesua geologia para alcançar o contemporaneidade. A obra, assim,deixa de ser apenas o documento que indica o passado de modo nãoproposital, para transformar-se em monumento. Com as inúmerasdiguras de linguagem, encontradas em O Deus desprezado, ergue-se uma Juiz de Fora ansiosa por viver as delícias da “belle époque”que se formava; um catolicismo entregue a festas e comemoraçõesque mais divertiam do que doutrinavam; um clero dividido por ques-tões pessoais ou por divergências teológicas.

Quais são as enfermidades que desunem muitos pa-dres? ressentimentos,rivalidades, egoísmos, vaidades. Ora,que ressentimento alheio pode resistir a um ato de amor denossa parte2 ?

Fato social e mônoda, a obra, segundo Benjamim, é cristaliza-ção das tensões sociais e alegoria do outro de sua época, mostran-do a História como poderia ter sido e como legado do que foi, en-quanto o murmúrio barthesiano da linguagem transmuta os elemen-tos que afloram no texto e revela a face oculta da palavra, quepenetra no entrevisto e no entretido, exibindo os fractais de outrosSaberes, diferentes do literário.

Musical, religioso, literário, o discurso de O Deus despreza-do sobrepõe a tudo o problema da crença. Crer na salvação, numaépoca caracterizada pelo esquecimento de Deus, significa susten-tar uma referência a um sentido. É esse sentido que o poeta MuriloMendes, menino ainda quando ouvia as pregações do Padre JúlioMaria, vai retornar, já adulto, ao encontrar-se com Jorge de Limae Ismael Nery. Crer, para o padre e para o poeta, não é apenasaceitar as certezas oferecidas pela religião institucional. Crer écompartilhar a vida com o Verbo Encarnado e viver na angústiado silêncio de Deus.

Geysa Silva - Professora de Teoria da Literatura da UFJF.

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BibliografiaMENDES, Murilo. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguila,

1994.NIETZSCHE, Friederich. O nascimento da tragédia no espírito da

música. In: Nietzsche. São Paulo: Abril Cultural. Coleção. Os pensadores,1978.

PADRE JÚLIO MARIA. O Deus desprezado. Rio de Janeiro: LivrariaBoa Imprensa, 1905.

Notas1 Empédocles (1973), p.2321 Mendes (1994), p.941 Padre Júlio Maria (1895), p.1022 Padre Júlio Maria (1895), p.341 Idem, p.262 Idem, p.861 Padre Júlio Maria (1905), p.911 Padre Júlio Maria (1905), p.106-1072 Idem, p.84

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1. Introdução

O sujeito formalmente expresso pode ou não estar indefinidoou definido, indeterminado ou determinado, semanticamente, oque depende de o falante poder ou não identificá-lo, ou mesmo que-rer ou achar relevante fazê-lo. Pode ele atribuir o que afirma àmassa humana indiferenciada, falando de um modo geral, sem refe-rir-se a alguém em especial. Nesses casos, pode haver ou não,formalmente expresso, um termo-sujeito, que seria, do ponto devista semântico, indeterminado.

Nosso corpus, retirado de dois Inquéritos do Projeto NURC/UFRJ, dá mostra de vários recursos da Língua Portuguesa do Bra-sil, mais especificamente do Rio de Janeiro, utilizados, na fala oralconsiderada culta, para a chamada indeterminação do sujeito: você,a gente, nós, eles, a(s) pessoa(s), alguém, eu, além dasregistradas pelas gramáticas normativas (verbo na 3ª p. pl. ouverbos na 3ª p. sing. + se), muitas vezes em coocorrência, emdistribuição livre. Muitos são os contextos em que a ocorrência dediferentes formas, em diferentes momentos e contextos, revelamque o falante vem a incluir a si mesmo e/ou seu interlocutor no queseria o sujeito dito indeterminado.

É importante que se esclareça ser característica do informantedo Inquérito 193, o que se depreende do seu discurso, uma atitudeliberal quanto a padrões e valores sociais. A informante do Inquérito373 manifesta pontos de vista tradicionais e conservadores em algu-mas de suas colocações. Até que ponto isso se estaria refletindo emsuas opções lingüísticas?

A indeterminação do sujeitono falar culto do Rio de Janeiro

Hilma Ranauro

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O informante do Inquérito 193, um homem, tinha, à época daentrevista, 45 anos de idade; a informante do Inquérito 373, umamulher, 58 anos. Até que ponto todos esses dados, além da profis-são de cada um (não constante dos inquéritos) estariam a determi-nar opções e/ou número de ocorrências? Caberia levantar um mai-or número de inquéritos para que se pudesse ousar em termos deinterpretações nesses níveis.

Que se registre que o inquérito de n.º 193 data de 1973 e o den.º 373 de 1978. Apresentam, porém, usos que são facilmenteobserváveis nos nossos dias. O número de ocorrências de cadauma das formas levantadas - em cada inquérito e no total - estáregistrado na tabela apresentada ao final.

2. Os inquéritos 193 e 373 do Projeto NURC2

2.1 - VOCÊ (74 ocorrências - 64 no inquérito 193 e 10 noinquérito 393)

Sabemos ser comum, entre os falantes do português doBrasil, o emprego de você, onde se indetermina (indefine) o sujeito,ou, como já colocamos, se o generaliza.

Em relação ao falar do Rio de Janeiro, temos, a comprova-rem essa afirmação, exemplos coligidos a partir dos inquéritos 193 e373 do Projeto NURC:

Inquérito 193:

Mas era um maiô de duas peças que vocêvia... três dedos de...barriga, né? (p.19); O efeito éque você tem toda uma ligação espiritual, quandovocê vê aquela imagem de mulher grávida dá sem-pre um carinho.. uma ligação espiritual...com...com o lado espiritual e... e... estético. (p.11); Peru-ca, por exemplo, é...bonito. Você...Você não tem asensação de postiço, né? (p.20); Antigamente vocênão usava uma jóia falsa, era ridículo, você usaruma jóia falsa, né? Ou você usava uma jóiararíssima, ou você não usava nada. (p.25); Lávocê............., você tem que...que...se vestir de acor-do com o local, né? Lá na Europa, em Paris, tinhatanta roupa de lã, tinha que botar agasalho. Nãobotava gravata que também lá usa pouco grava-ta. (p.28). (São nossos os grifos).

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No último exemplo, observa-se o emprego do verbo na 3ª p. dosing. sem o pronome se: “...tinha que botar agasalho. Não bota-va gravata que também lá usa pouco gravata”. Pelos padrões con-siderados cultos pela norma vigente, caberia dizer: “...tinha-se quebotar agasalho. Não se botava gravata que também lá se usapouco gravata.” Observa-se, aqui, o emprego de você, e, após, ode outra forma para indeterminar o sujeito. Isso é comum nesteInquérito 193:

...você não nasce com roupa. É uma neurose,não é nem complexo, é neurose mesmo. Você nãonasce com roupa. Com duas horas, três horas denascido, te põem uma roupa em cima e você nãoconsegue tirar nunca mais. (p.01); Se você estádependente dele, pra...pagar sua comida, pra pa-gar teu almoço, pagar não sei o que, você nãoquer contrariar, não quer criar caso... (p.25)

(No último exemplo, observa-se o empregode pronome possessivo referente à 3ª p. e o refe-rente à 2ª).

Não, não há relação entre você ficar nu*,com o erotismo, com coisa nenhuma. Você apren-de isso quando acontece o fato e de repente vocêvê que não tem a menor importância. Que é umdrama, não é? Você imagina...é...o fato de vocêficar nu,* você (espera aí um instantinho) vocêdramatiza, é uma coisa terrível. Você acha quepela primeira vez você vai ficar nu* em tudo nafrente das pessoas, te cria um drama, e até umtrauma, já aconteceu isso, eu já vi gente assim denão conseguir ficar, não conseguir tirar a rou-pa. (p.02).

Observe-se que, se o pronome se referisse ao interlocutor, nocaso, uma mulher, ele teria dito “você ficar nua (fem.)”. Percebe-se, aí, a consciência de que você não se refere diretamente à pes-soa com quem se fala, mas às pessoas de um modo geral, incluindo-se a com quem se fala. O mesmo ocorre nos exemplos dados aseguir, também do Inquérito 193:

Da importância que é a pessoa poder tirar aroupa, poder ficar nu na frente dos outros. (p.01);Você na zona norte não fazendo nada... vai fazer oquê? Vai ficar sentado num banco de praça ou

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ficar trancado em casa? (p.12); Não aceita maissubordinação, que antigamente você, eu tinha fa-lado isso há pouco tempo, você, a mulher era cri-ada pra...prendas domésticas, né, e isso significa-va apenas você transferir porque a mulher antesde se casar ela era dependente dos pais... (p.22).

Registra-se uma mudança de atitude do informante, na medi-da em que toma consciência de que o que vai falar não pode seratribuído a todos, de um modo geral, indiferenciadamente, comovinha fazendo. Está ele, agora, referindo-se a uma condição espe-cífica da mulher. Isso o faz retomar o início do pensamento, dasconjecturas e retificar-se:

...antigamente você, eu tinha falado isso hápouco tempo, você, a mulher era criada pra... pren-das domésticas etc.

Inquérito 373:

No Inquérito 373, p. 23, a partir da linha 07, registra-se o em-prego do pronome de primeira pessoa do singular, eu, juntamentecom o emprego de você. O falante se coloca na situação, parte dageneralização para a identificação com a situação a que se refere:

Porque você vê, um pagamento bancário quevocê tenha com aquele prazo, se eu passar um dia,um dia, você vai pagar...

Na página 22, linhas 14 e 15, registra-se:

Está meio...de...depositar todo mês, que seeu parar de depositar, então já...

Foi também registrada a coocorrência de você e a(s)pessoa(s) (item a seguir).

2.2 - A(S) PESSOA(S) (7 ocorrências - 3 no Inq. 193 e 4 no Inq.373).

É comum a coocorrência da forma no singular e no plural emambos os Inquéritos:

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Inquérito 193:

Da importância que é a pessoa poder tirar aroupa, poder ficar nu na frente dos outros. (p. 02)

Inquérito 373:

Agora o que as pessoas fazem pra levar aque-le dinheiro pra dentro de casa... (p.25); Agora, apessoa também tem que ser um pouquinho esper-ta, né? (p.28); Então a pessoa... É um trabalhão.Tem que ter agenda pros pagamentos, pras coi-sas. Você tem que estar escrevendo aquilo, duran-te o mês tem que fazer: dia tal pagar o banco, diatal, tal banco (inintelegível). Porque se você seatrasa, vai pagar juros. (p.13). (Atente-se para acoocorrência de você).

2.3 - A GENTE (10 ocorrências - 3 no Inq. 193 e 7 no Inq. 373)

Gladstone Chaves de Melo cita, dentre as formas de exprimiro sujeito indeterminado, “o sujeito materialmente constituído pelaexpressão ‘a gente’, de valor indefinido” (MELO, 1980,p.122).Já Evanildo Bechara, na 9ª edição da sua Moderna GramáticaPortuguesa, aponta como uma das formas de indeterminar o sujei-to o emprego do pronome se junto ao verbo “de modo que a ora-ção passe a equivaler a outra que tem por sujeito alguém, agente ou expressão sinônima” (BECHARA, 1964, p.247).

No exemplo que se segue, colhido do Inquérito 193, percebe-se a coocorrência de a gente e do verbo na 3ª p. sing. + se, aconfirmar a correspondência semântica entre ambos os empregosquanto à indeterminação do sujeito

:E agora a gente usa uma calça de, de boca

larga e...e se lembra a calça de boca sino, acharidículo, né? Ou tem uma antiga que bota e acharidículo. Mas também já houve um tempo em que...usava-se boca larga e depois virou de boca sinoe se achava ridículo a boca larga. Isso é modismo.(Inq. 193, p.05); É uma calça tipo... calça justa quea gente usou. (ibid:29).

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No Inquérito 373, ocorre, por exemplo:

Se ele tem um bom emprego, a gentecalcula...calcula logo que é o emprego que estásustentando aquilo, né? (p.15); Cla...claro, cader-neta de poupança a gente tem. Tem que ter, né?(p.22).

2.4 - NÓS (10 ocorrências - todas no Inq. 373).

Outro fato observado é o emprego do pronome nós,correspondendo a a gente, como sujeito indeterminado. As dezocorrências se encontram no Inquérito 373. Não registramos ne-nhuma no Inquérito 193:

DOC E (inteligível) se a gente for compararcom com a televisão brasileira, né...

LOC Se nós formos fazer isso a tele...as televi-sões... (Inq. 373, p.32).

Registramos, aqui, o emprego de a gente pelo documentador(DOC). Oberve-se que, curiosamente, o informante, que vinhaempregando a gente, usou nós.

No exemplo apresentado a seguir, registra-se coocorrência doemprego da forma verbal na 3ª p. do sing. + se e de nós:

...não se pode dizer que é...as mulheres este-jam mais...não sei. Isso agora está variando mui-to. Talvez que há algum tempo nós pudéssemosdizer que a mulher juntava primeiro pra comprardepois. (Inq. 373, p.27).

Se ocorre o emprego de a gente onde se indetermina o sujeito,é natural que se empregue nós, já que, semanticamente, ambos secorrespondem (a gente = nós)1 .

2.5 - ELES (9 ocorrências - todas no Inq. 373).

Registra-se, também, uma tendência que se observa comumenteentre nós: o emprego de eles onde se empregaria uma das formasgramaticais de indeterminação do sujeito:

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Que você vê, toda hora eles estão mostran-do um negócio...; Eu sei que nos Estados Unidos,eles já estão olhando muito essa parte...; Eles es-tão chegando a esta conclusão. (Inq. 373, p.33).

A forma pronominal, cabe esclarecer, não se reporta a ne-nhum referente anteriormente mencionado. O documentador per-guntara: “Vai haver agora alguma espécie de modificação, né?No funcionamento da caderneta?” A informante respondeu ini-cialmente: “É, se... eles dizem que vai ha..., vai, não. // É outrotipo de poupança que eles estão pensando em fazer.”

2.6 - O PESSOAL (2 ocorrências, uma em cada Inquérito):

Via de regra, o pessoal todo além de nãofazer nada...também tá...tá liberto de uma série decompromissos... (Inq. 193:12); Será que o pessoalquer mesmo? Se se marcar uma reunião, uma pa-lestra sobre isto, será que vai-se ter público pra...(Inq.373, p.29)

2.7 - ALGUÉM (1 ocorrência no Inquérito 373):

“É verdade que...agora alguém pode argu-mentar: ah, mas é...agora o nível de vida...”(Inq.373, p.4).

Foi comum, entre gramáticos mais antigos, a discussão quantoa terem enunciados desse tipo sujeito indeterminado ou sujeito“claro” . No cerne dessa questão, estava a confusão entre os pla-nos morfossintático e semântico. Do ponto de vista morfossintático,o sujeito é alguém, semanticamente indeterminado (indefinido paraSaid Ali). É “claro” por ser formalmente expresso, mas não o ésemanticamente.

2.8 - VERBO NA 3ª P. PL. (1 ocorrência no Inquérito 193).

Quanto às formas apontadas pela gramática normativa para aindeterminação do sujeito, observamos que a forma de 3ª pessoado plural aparece só uma vez, no Inquérito 193, mesmo assim,após o Documentador tê-la empregado, o que nos leva a concluirque o informante deve ter sido influenciado pelo registro de seu

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interlocutor.

DOC Se batessem na porta e você tivesseque se levantar rapidamente?

INF ...Se batessem e ...eu tivesse que sair dacama, eu enfiava uma calça. (Inq. 193, p.24).

2.9 - VERBO NA 3ª P. SING. + SE (17 ocorrências) e/ou- SE (16 ocorrências) (Inquérito 193: 7 ocorrências com se e 14sem o se; Inquérito 373: 10 ocorrências com o se e 2 sem o se).

Inquérito 193:

No Inq. 193, chegamos a registrar a construção com o se e,imediatamente, a sem o se:

Antigamente se durava dois ou três anos paraseparar, agora leva cinco anos. (Inq.193:21); Nãose usava cores vivas, nem em gravatas.Depois...começaram a aparecer camisas floridasde influência americana, não é? Aí, de repente,liberou tudo. (Inq. 193, p.04); Aí liberou tudo. (Inq.193, p.05).

Lembremos, aqui, o exemplo de Gladstone Chaves de Melo“Quebrou a compoteira.” Por “Quebrou-se a compoteira.”,como uma das formas de se indeterminar o sujeito. (MELO, 1980,p.120)

Lá você , você tem que, que... se vestir deacordo com o local, né? Lá na Europa, em Paris,tinha tanta roupa de lã, tinha que botar agasalho.Não botava gravata que também lá usa pouco gra-vata. (por “ tinha-se que botar agasalho” ; “Nãose botava gravata que também lá se usa poucogravata”). (Inq. 193, p.28).

Inquérito 373:

Ah! só paga daqui a dois meses (porsó se paga). (Inq. 373, p.29).

No exemplo que damos a seguir, colhido no Inquérito 193, ob-servamos que nem o fato de o documentador empregar a constru-

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ção com o se leva o informante a fazê-lo. Observemos:

DOC Em relação à roupa interna, de mu-lher e homem, o que se usava antes, o que que seusa agora, ou não se usa?

INF Usava e não usa? Sutiã! Pelo menos agrande maioria não usa, né? Parece até que asfábricas estão...falindo. Não usava sutiã, hoje nãousa sutiã. Hoje não usa sutiã. Calça continua usan-do. (por “usava-se”, “não se usa” “continua-seusando”). (Inq.193, p.23).

Este fato é comum entre nós, principalmente no falar mineiro.(cf. A perda dos pós-clíticos no dialeto mineiro, Dissertação deMestrado de Alair da Cruz Cavalcante D’Albuquerque/UFRJ/1982).

2.10 - Coocorrência de várias formas para a indeterminaçãodo sujeito.

A construção com verbo na 3ª p. sing. + se ocorre 10 vezesno Inquérito 373. Na maioria das vezes, há uma oscilação: ocorre,por vezes, o emprego concomitante dessa forma e de outras emque se registra formalmente um sujeito (você, nós, a(s) pessoa(s),a gente, etc.). Isso comprova a correspondência semântica entreaquela construção e as que tenham esses termos, ou outros simila-res, como sujeito claramente expresso. Vejamos:

É verdade que...agora alguém pode argu-mentar ah, mas é...agora o nível de vida... Estácerto, eles pagam caro. Eles pagam caro isto...estapossibilidade que eles têm agora. Eunão...não...não...não...não...não...não acredito queseja de se... de se isolar esse pensamento, não. Elesestão, realmente, pagando um preço muito alto.”(Inq. 373, p.04). (Eles, nesses contextos, reporta-sea “os estudantes”). “ Só se pensa em trabalho prater dinheiro.” (Inq.373, p.26).

O último enunciado conclui uma fala que se inicia na p.25, linha15, em que a informante emprega as pessoas:

Agora o que as pessoas fazem pra levar aque-le dinheiro pra dentro de casa... (Inq.373,p.25, li-

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nha 17); As pessoas têm dois, três, quatro empre-gos. (p.25, linha 19); ...influi dentro de casa. Desdeo humor da pessoa... (não mais as pessoas). (p.26,linhas 2 e 3). Só se pensa em trabalhar pra terdinheiro.( E não: “ A(s) pessoa(s) só pensa(m) emtrabalhar pra ter dinheiro”) .

Nesses contextos, não inclui a informante a si mesma nem suainterlocutora. Emprega as pessoas e verbo na 3ª p. sing. + se.Por vezes, passa ela a incluir sua interlocutora e a si mesma:

...não se pode dizer que é...as mulheres este-jam mais...não sei. Isso agora está variando mui-to. Talvez que há algum tempo nós pudéssemosdizer que a mulher juntava primeiro pra comprardepois. (Inq.373, p.27). (Emprego do verbo na 3ª p.sing. + se e da 1ª p. pl.).

Inclui ela a si mesma e a interlocutora no que vinha atribuindoa um sujeito indeterminado. Comparemos esse exemplo com osque damos a seguir:

Será que o pessoal quer mesmo? Se se mar-car uma reunião, uma palestra sobre isto, seráque vai se ter público pra... (Inq.373, p.29); Masnós nos deparamos logo com um problema: nósnão vamos ter um público para aquilo. (Inq.373,p.31); Contrata-se uma pessoa, um economista,um assistente social, um nutricionista e vamos fa-zer uma série de palestras pra pessoa aprender oque deve comprar e o que não deve comprar, vai-se ensinar isso tudo, muito bem, né? (Inq.373, p.31).

Temos, onde se indetermina o sujeito, a coocorrência de opessoal, do verbo na 3ª p. sing. + se, do verbo na 1ª p. pl., comou sem a presença do pronome sujeito e de a pessoa. Percebe-se,nessa oscilação, nessa variação, que a informante se inclui e incluisua interlocutora entre os que “marcariam uma reunião”, os que“teriam ou não público”, entre os que “fariam uma série de confe-rências” e “ensinariam tudo”, mas não entre os que “quereriam ounão isso” (emprega o pessoal), nem entre os que “iriam ou nãoresponder à convocação” e os que deveriam “aprender a comprar”(emprega ela a pessoa).

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Esses exemplos estão a cobrar um levantamento maior e umestudo mais profundo. Caberia verificar as várias formas de“indeterminar” (indefinir?) o sujeito, verificando-se as escolhas doutente da língua e o que subjaz a elas, o que estaria a motivá-las.Cabe verificá-las em relação à inclusão ou não do emissor e/ou doreceptor.

No emprego de eles, parece clara, pelo menos no dito ou apa-rentemente dito, a exclusão do emissor e do receptor. É semprebom lembrar que muitas vezes se atribui “aos outros” (eles) o quese gostaria de dizer, ou se pretende dizer, do receptor ou a ele, nas“indiretas”, no “jogar verde para colher maduro”, para ver se ele“veste a carapuça”, como se costuma dizer. No emprego de a gen-te e nós, percebe-se a inclusão do emissor. Haveria por vezes ainclusão de ambos, emissor e receptor, o que se poderia depreender,ou não (resta sempre o subliminar), da situação de enunciação e/oudo contexto.

No Inquérito n.º 373, são vários os contextos em que a formaque representa o sujeito do(s) enunciado(s) varia a cada afirmação:ora ele, ora eles, ora eu, nós, a pessoa, a gente, etc... No queapresentamos a seguir, o emissor passa do distanciamento de simesmo e do ouvinte para a inclusão, primeiro, de si mesmo, depois,de ambos:

...eles também se perdem, eles não vêem queno fim do mês eles vão ter que pagar aquelascontas todas. E agora também há um fator: ah! sópaga (por só se paga) daqui a dois meses, três me-ses, a pessoa: ih, daqui... eu compro em dezembrovamos comprar porque só em março nós vamospagar. (Inq. 373, p.29).

(Após empregar eles, verbo na 3ª p. sing. semo se e a pessoa, a informante emprega eu (por in-cluir a si mesma) e nós (por incluir a si e suainterlocutora).

Essas oscilações são freqüentes no Inquérito 373 e não noInquérito 193. Neste, o informante emprega exaustivamente a for-ma você, como já registramos. Raros são os contextos em queemprega o verbo em 3ª p. sing., na maioria das vezes sem opronome se.

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2.11 - EU (1 ocorrência no Inquérito 373).

No trecho dado a seguir, ocorre também o emprego de eu,alternando com as demais formas. É interessante observar que,nesse trecho, ocorre, também, o emprego de eu (formas não assi-naladas), reportando-se à 1ª p. sing., à 1ª p. do discurso como sujeitodito “claro”, não “indeterminado”. O mesmo ocorre em relação avocê.

Nós já temos tanta papelada pra olhar osprazos, se não olhar o prazo, vai pagar juros, vaipagar juros de mora, vai pagar imposto, tanta coi-sa; agora mais um negócio na cabeça da gentepra saber se...se vai botar...vai botar mil, ou se vaibotar mil e quinhentos. Espera aí”! Não acho que...Não acho prático isso não, ouviu? Eu acho que acoisa deve ser ah...facilitando, facilitar a vida.Porque você vê, um pagamento bancário que vocêtenha com aquele prazo, se eu passar um dia, umdia, você vai pagar... (Você, em sua 1ª ocorrência(sem negrito), reporta-se à documentadora). Euestou com um aqui que...que...que é um condomí-nio, se eu me atrasar, vou pagar vinte por cento! Éum absurdo pagar vinte por cento. (Inq. 373, p.22-23). (Eu, nessas últimas ocorrências, reporta-se à 1ªpessoa do singular. A informante refere-se a si mes-ma). A informante emprega nós (temos), a 3ª p.singular – se, e a gente. Mais adiante, vem a em-pregar você, eu e você.

Há uma identificação da informante com a situação. Ape-sar de falar de um modo geral, ela acaba por colocar-se tambémcomo sujeito, ou no sujeito. Observa-se a oscilação entre o empregode você (maior identificação com o receptor) e eu. Do mesmomodo que o emprego de você, nesses contextos, corresponde se-manticamente à indeterminação do sujeito, esse emprego do eutambém corresponderia. Não se trata do emprego de você e eucom referência a uma pessoa do discurso - 2ª e 1ª do singular, res-pectivamente - mas referindo-se a um você e eu gerais, universais,empregados onde, numa linguagem mais cuidada, formal, se em-pregaria a construção com o verbo na 3ª p. sing. + se:

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...um pagamento bancário que você tenhacom aquele prazo, se eu atrasar um dia, um dia,você vai pagar...

por ...um pagamento bancário que se tenhacom aquele prazo, se se atrasar um dia, vai-sepagar).

3. TABELAS

* Esse emprego de verbo na 3ª pes. pl., surge imediatamente apósseu emprego pela Documentadora ao formular a pergunta. Alémdisso, é único nesse Inquérito. Esses fatos nos levam a concluir queo Informante foi influenciado pela fala da Documentadora. Nãodeve, pois, ser considerado.

4. Conclusão

A análise de dois Inquéritos do Projeto NURC (Inquérito 193 e373) nos fez observar formas de indeterminação do sujeito para asquais não se costuma atentar. Os vários níveis de envolvimento dofalante no que atribui a um sujeito dito indeterminado (indefinido,para Said Ali) se vai revelando em seu discurso. Isso fica bem claroem exemplos colhidos ao Inquérito 373.

Até que ponto o Informante se envolve e/ou busca envolverseu interlocutor fica muitas vezes claro nas suas escolhas lingüísticas,que apontam para aspectos da linha argumentativa que vem a im-primir ao seu discurso. Isso se pode observar, nos Inquéritos estuda-dos, com referência à indeterminação do sujeito.

VOC˚ AGENTE

N S ELES A(S)PESSOA(S)

ALGU M EU

Inq. 193 64 3 − − 3 − −Inq. 373 12 7 10 9 4 1 1TOTAL 76 10 10 9 7 1 1

VERBO NA 3“ P. SING. + SE − SE

VERBO NA3“ P. DO PL.

Inq. 193 7 14 1 *Inq. 373 10 2 −TOTAL 17 16 1

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Restam questões a serem levantadas quanto aos processos eformas de indeterminação do sujeito; no caso em estudo, especifi-camente do falar culto do Rio de Janeiro. Qual seria a forma predo-minante? Seria você, como nesses dois inquéritos? A que se pode-ria atribuir isso? Qual a inovação mais recente? E mais: que outrasrazões podem levar à indeterminação do sujeito? Por quê? Quais aspredominâncias por faixa etária, sexo, profissão, nível sociocultural,etc.? Em que situações, e em que níveis, o falante se inclui e/ou seuinterlocutor no que seria o sujeito indeterminado? Quais as gradaçõesdessa inclusão? Que fatores a determinam e caracterizam?

Caberia a feitura de uma escala, com os vários graus deindeterminação do sujeito. Parece que as pessoas é exemploprototípico de indeterminação do sujeito, cabendo-lhe, então, o mai-or grau de indeterminação numa possível escala.

Caberia igualmente detectar as variáveis, por exemplo, nos di-ferentes gêneros de discurso, com ênfase naturalmente, no discursodito argumentativo.

A língua, cabe dizer até a exaustão, é viva. Que se registremas normas do uso tido como culto, mas que se atente para o fatode que há o uso culto oral e o uso culto escrito, nas seus váriose diferentes níveis e registros. Isso é claro para nós, os estudiosose especialistas. Cabe esclarecê-lo, e sempre, aos usuários da línguade um modo geral. Só assim se lhes apresentará o estudo da línguacomo algo prazeroso e criativo, e não como algo distante e delesindependente.

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Referências bibliográficasBECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa - Curso mé-

dio - 9ª ed., São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1964.CUNHA, Celso F. da. Gramática da língua portuguesa - 5ª ed., RJ,

FENAME, 1970.D’ALBUQUERQUE, Aliar da Cruz C. A perda dos pós-clíticos no

dialeto mineiro - Dissertação de Mestrado, UFRJ, 1982.MELO, Gladstone Chaves de. Gramática fundamental da língua

portuguesa - 3ª ed., RJ, Ao Livro Técnico S/A Indústria e Comércio, 1980.OMENA, Nelize Pires de. “A Alternância entre NÓS e A GENTE em

Função do Sujeito”; in XIX Anais do Seminário do GEL, pp. 93/105, Cam-pinas, 1987.

SAID ALI, Manuel. Gramática secundária da língua portuguesa,6ª ed., Rio de Janeiro, Edições Melhoramentos, 1965.

Material que serviu de base para o levantamento do corpusanalisado:

- Inquérito 193 do Projeto NURC (n.º 59) Rio de Janeiro. / Tema:vestuário. / Informante n.º 221. / Sexo: masculino. / Idade: 45 anos / Data:29/11/1973. / Documentadores: Diana Maria Isente Calou e Maria doSocorro Demais.

- Inquérito 373 - Projeto NURC (n.º 123) Rio de Janeiro. / Tema: Dinhei-ro, Banco, Finanças, a Bolsa. / Informante n.º 459. / Sexo: feminino. / Idade:58 anos. / Data: 02/03/1978. / Documentadores: Maria Cristina Rigoni eMarco Aurélio Pires.

Nota1 Sobre essa correspondência, consulte-se “A Alternância entre NÓS

e A GENTE em função do Sujeito”, de Nelize Pires de Omena - in XIX Anaisdo Seminário do GEL, Campinas, 1987, p.93-105.

Hilma Ranauro - Professora universitária (UFF), Mestre em Letras pelaPUC/RJ e Doutora em Letras Vernáculas pela UFRJ. Autora de O falardo Rio de Janeiro - Um estudo de caso e Contribuição à Historiografiados Estudos Científicos da Linguagem no Brasil – Sílvio Elia e JoãoRibeiro. Membro da Academia Brasileira de Filologia.

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ResumoO presente trabalho tem por objetivo expor as peculiaridades

semelhantes constatadas, após diversas análises, sobre o discursopoético de Fernando Pessoa e de Manoel de Barros. Ao compa-rar as estruturas análogas, foi possível relacionar como expres-sões comuns: a infância e a metalinguagem. Demonstraremos odialogismo poético entre os dois autores.

Unitermos: Fazer poético, imagem, infância, intertextua-lidade e existência.

No presente artigo elegemos dois dos pontos abordados emnosso projeto de pesquisa: a “Infância” e a “Metalinguagem”. Ou-tros, tais como: o existencialismo, o surrealismo, a religiosidade e alicenciosidade, ficarão para uma outra oportunidade. A união dosdois, dialogicamente, não é ou foi casual, inclusive transformou-seem um exercício crítico salutar. Propomo-nos a uma discussão maisampla sobre os dois poetas, no entanto, o espaço aqui não permiteoutras considerações. Então, passemos ao texto em questão.

A volta à infância é uma das marcas da poesia de Manoel deBarros e de Fernando Pessoa. A infância, idade da inocência,apresenta-se como o lugar e tempo ideal da vida, configura-secomo experiência marcante do poeta. “A infância, soma das in-significâncias do ser humano, tem um significado fenomenológicopróprio, um significado fenomenológico puro porque está sob osigno do maravilhamento. Pela graça do poeta, tornamo-nos opuro e simples sujeito do verbo maravilhar-se.”2.

As linguagens de FernandoPessoa e Manoel de Barros

Isaac Newton Almeida Ramos

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Se “o poeta é aquele que ouve uma linguagem sem entendi-mento”3, podemos afirmar que a linguagem infantil é uma lingua-gem sem entendimento para o adulto. Só que o poeta sabe ouvi-la erecria-a para recontá-la e recortar a solidão de criança, que é amesma solidão dos poetas, os quais são salvos pela literatura. Ob-servemos como isso ocorre numa poesia de Barros:

Hoje completei 10 anos. Fabriquei um brin-quedo com palavras. Minha mãe gostou. É assim:De noite o silêncio estica os lírios. (LSN.,33)4

O poeta Manoel de Barros, através do eu-lírico na primeirapessoa, faz um retorno à infância. Nesta tem-se a presença dobrinquedo e da figura materna, que aprova o que fez a criança,que não é um brinquedo qualquer, é um “brinquedo com pala-vras”; isto é, o EU afirma que com elas pode-se fazer o que qui-ser, em face das mesmas serem imóveis, e só ganharem movi-mento se o EU (sujeito) movê-las. No relacionamento entre ho-mem, mundo e linguagem, a infância subleva-se como um estadopotencial de todas as invenções. E quando o adulto (no caso, opoeta) vislumbra tais devaneios é porque reconhece que “a infân-cia é o poço do ser”5. E o EU, por sua vez, move as palavras deacordo com a sua vontade. Em seguida ele mostra qual foi o brin-quedo que fabricou, trata-se de um ‘jogo’ de palavras, sendo queelas atendem à lógica morfossintática; todavia rompem com asemântica. Então, perguntamo-nos como pode “de noite o silêncio(esticar) os lírios?” Primeiramente o silêncio se constitui em au-sência de som e, além de tudo, isso não seria perceptível, muitomenos teria a capacidade de alongar os lírios posto que são floresnão suscetíveis de serem espichadas. Instaurou-se uma imagemsurreal. A partir de um acontecimento pictórico/natural da noiteele inverte as expectativas, segundo a ordem natural das coisas, eacaba por demonstrar realmente um brinquedo, ao mesmo tempoque o eu-lírico não se preocupa em obedecer a essa mesma or-dem natural das coisas. E sendo o brinquedo uma realidade que setem na infância, Barros ao citá-lo através de/com as palavras,sempre o relaciona com a infância. Em Pessoa a infância é vista apartir de um posto de vista sentimental e melancólico:

Pobre velha música!Não sei por que agrado,

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Enche-se de lágrimasMeu olhar parado.

Recordo outro ouvir-te,Não sei se te ouviNessa minha infânciaQue me lembra em ti. (...)(OP, 90:140)

Percebe-se que o eu-lírico se encontra numa idade madura, eao ouvir uma dada música recorda-se de sua infância e, dessaforma, entrega-se à emoção. “Nos devaneios da criança, a imagemprevalece acima de tudo. As experiências só vem depois.”6 Pode-mos observar isso de uma maneira metafórica nos versos de Bar-ros: “A última estrela que havia no céu/ deu pra desaparecer/ omundo está sem estrela na testa”. (GEC, 41) Ou nessa imagemonomatopéica: “O menino caiu dentro do rio, tibum,/ ficou todo molhadode peixe.../ A água dava rasinha de meu pé”. (GEC, 127)

Neste outro trecho de Pessoa, temos um exemplo de infân-cia vista saudosamente a partir do olhar de um adulto:

O Luar quando bate na relvaNão sei que cousa me lembra...Lembra-me a voz da criada velhaContando-me contos de fadas. (...)(OP,224:215)

“O poema nos faz recordar o que esquecemos: o que somosrealmente”.7 Aqui o eu-lírico exibe referenciais situados na nature-za (luar e relva), os quais funcionam como ocasionadores da lem-brança da infância do EU. “Para entrar nos tempos fabulosos, épreciso ser sério como uma criança sonhadora. A fábula não diver-te – encanta”.8 Depois de termos visto um cenário pessoano, veja-mos o que Barros, nos revela com seu olhar infantil: “Meu avôampliava a solidão./ No fim da tarde, nossa mãe aparecia nos fun-dos do quintal: Meus filhos, o dia já envelheceu, entrem pra dentro”.(LSN, 21) Já o poeta português nos conta: “Quando era criança,/Vivi, sem saber,/ Só para hoje ter/ Aquela lembrança.”(OP, 171:174-5) Blanchot afirma que: “(...) As lembranças são necessárias, maspara serem esquecidas, para que nesse esquecimento, no silênciode uma profunda metamorfose, nasça finalmente uma palavra, aprimeira palavra de um verso.”9

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Em outro poema, do livro Poesias, cujo título é “Infância”,Barros mostra-nos um eu lírico criança, em um dia de chuva, queparece estar olhando através da vidraça, numa imagem bastantesingela e calma:

Coração preto gravado no muro amarelo.A chuva fina pingando... pingando das árvores...Um regador de bruços no canteiro.Barquinhos de papel na água suja das sarjetas...Baú de folha de flandres da avó no quarto dedormirRéstias de luz no capote preto do pai.Maçã verde no prato. (...)(GEC, : 110)

A partir de um ritmo “estilo crônica”, o eu-lírico apresenta-secom verbos no presente descrevendo cenas corriqueiras da infân-cia, as quais possuem desde brinquedos à presença de familiares.Aqui é mostrado um prisma próximo da visão pessoana. Constata-se isso em: A VOZ DE MEU PAI (GEC:103): “Os ventos levam-me longe...” e (...) “entro na casa onde nasci”; uma típica volta aopassado. E, num outro trecho, ao alternar o ato de abrir e fechar osolhos, ele enxerga a realidade e sente a dor da perda das coisas,inclusive a presença da figura paterna, que o chama docemente:“Venha, meu filho,/ Vamos a ver os bois no campo e as canas ama-durecendo ao sol,/”. Ao retornar à realidade, o eu-lírico sente asolidão. “Estou só”, tendo em vista que não ouve a voz de seu pai.

Já Pessoa, mostra um eu-lírico arrependido pelo que deixoude ser:

A criança que fui chora na estrada.Deixei-a ali quando vim ser quem sou;Mas hoje, vendo que o que sou é nada,Quero ir buscar quem fui onde ficou.(OP, 700)

Barros, em Noturno do filho do fazendeiro, assim se apre-senta: “Ia até a infância e voltava./ Gostaria mais se pudesse fi-car/” (GEC,65). Neste verifica-se o desejo não apenas de voltarà infância, como também de se enclausurar nela. Afinal, “a Infân-cia é uma Água humana, uma água que brota da sombra. Essainfância nas brumas e nas luzes, essa vida na lentidão dos limbos,dá-nos uma certa espessura de nascimentos. Quantos seres te-mos começado!”10 Vejamos como isso ocorre em outro livro:

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Remexo com um pedacinho de arame nasminhas memórias fósseis.Tem por lá um menino a brincar no terreiro:...............................................................................O menino cangava dois sapos e os botavaa puxar o carrinho.Faz de conta que ele carregava areia e pedrasNo seu caminhão. (RAQC, 14:47):

Além disso, Barros coloca a infância situada num estágio deprimitivo, valioso para a construção da poesia, para ele, a criança émais poeta que o adulto; pois tudo expresso por ela é espontâneo,contém pureza assim como o primitivo. “Nossas solidões de criançaderam-nos as imensidades primitivas.”11Essas imensidades são dis-cursadas pelo poeta dessa forma: “Para voltar à infância, os poetasprecisariam também reaprender a errar a língua”. (GA: 57) Em outraobra ele já justificava que “crianças desescrevem a língua. Arrom-bam as gramáticas. (Como um cálice lilás de beco!)” (LPC, 62)

Por outro lado, Alberto Caeiro questiona o dogmatismo e usaas crianças como exemplo, pois segundo ele, são vítimas deinculcações que geram crendices, todavia destaca que ao mesmotempo que são dogmáticas (deus doente), possuem capacidade dediscernimento (deus) para constatar como as coisas possuem exis-tência, mesmo que seja apenas na imaginação:

A criança que pensa em fadas e acredita nas fadasAge como um deus doente, mas como um deus...............................................................................................,Sabe que não há razão nenhuma para nada existir,Sabe que ser é estar em um pontoSó não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.(OP, 287:239)

Em Barros temos o olhar infantil, enquanto em Caeiro/Pes-soa é o adulto que se manifesta (conforme o último trecho citado).Esse adulto apresenta uma “moral”, mas não uma moral doentia,ela é sobretudo reflexiva.

Quanto à metalinguagem afirmamos que ela ocupa posiçãodestacável na poesia dos dois autores. E tem por objetivo oferecerao leitor um ensinamento, um certo didatismo. Percebe-se, ainda,que há uma preocupação de ambos com relação à leitura de suasobras. Paul Valéry definiu o verso como “equilíbrio maravilhoso esensibilíssimo entre a força sensível e a intelectual da linguagem”.

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Esses dois poetas mostram claramente esse equilíbrio e têm consci-ência do seu fazer poético. Neles, a busca ao leitor não é um exer-cício insano, sobretudo apresenta-se como uma preocupação esté-tica. A natureza dialógica de suas obras mostra que nelas operauma espécie de circularidade ou transitividade que as modificamnum processo contínuo e crítico com relação às próprias estratégiasde composição de cada um deles.

“(...) O escritor nunca sabe que a obra está realizada. O queele terminou num livro, recomeçá-lo-á ou destruí-lo-á num outro....”12.Ambos adotam essa postura de recomeçar ou destruir, repetindo-sepor vezes. Pessoa e seus heterônimos comunicam-se. Barros eseus “eus líricos” festejam a comunicação intertextual. De um livroao outro eles promovem um verdadeiro interlúdio. Barros afirmaque o “poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina”.(GA, 35) Pessoa, por sua vez, mostra que “o poeta é um fingidor”.(OP, 143: 164) Temos dessa forma definições inter-relacionadas.Ainda, Pessoa afirma que: “Dizem que finjo ou minto/ Tudo queescrevo. Não./ Eu simplesmente sinto/ Com a imaginação”. (OP,144: 165) Pode–se reparar que há uma oposição ao conceito que vêo poeta como um fingidor, mas em seguida ele destaca que usa a“imaginação”, e no mesmo poema ele continua: “Por isso escrevoem meio/Do que não está ao pé,/Livre do meu enleio,/Sério do quenão é./Sentir? Sinta quem lê! (...)”.

Para Pessoa o seu fazer poético se dá fora das regras, poisestá fora do pé da letra e utiliza-se do adjetivo “livre” para dizer queé livre do seu enredo. Usa o adjetivo “sério” para expressar certeza,certeza do que não é, quer dizer do que não possui existência. Comisso mostra que possui liberdade sobre seu enredo e consciência danão-existência. “Assim como a poesia separou-se do coração, tam-bém a forma separa-se do conteúdo. A salvação da poesia consistena linguagem, enquanto o conteúdo permanece em suainsolubilidade.”13

Vejamos como isso ocorre em um verso-poema de Barros:“Minhocas arejam a terra: poetas, a linguagem”. (LPC, 55) Nestetemos uma comparação entre um ser da natureza que tem a suautilidade pelo fato de arejar a terra, com um ser das letras, que porsua vez é útil para a linguagem, pois a areja também. Dentro daconcepção de Barros, arejar a linguagem significa trabalhar com aspalavras, buscando sempre inová-las, tanto no sentido de criar no-vas palavras, como no de encantar as já existentes, objetivando“ressemantizar” a linguagem. Numa outra situação, Caeiro afirma

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que: “Há poetas que são artistas/ E trabalham nos seus versos/Como uma carpinteiro nas tábuas!” (OP, 241: 22) Isso mostra queassim como o carpinteiro aparelha a madeira para a obra, sendo umartífice que trabalha em artes grosseiras de madeira e faz da maté-ria-prima o que deseja, fazendo dela a sua arte, da mesma forma opoeta tem como matéria-prima as palavras, e com elas faz o que lheconvêm, formando então os seus versos. “A poesia é uma arte dalinguagem. A linguagem, contudo, é criação da prática.”14

Caeiro também afirma: “Procuro encostar as palavras à idéia”.Para Valéry a idéia é suscetível de ser observada, provocada emanobrada, trata-se de um discurso interno, imagem, intenção, oupercepção do espírito que, pode ser exprimida em palavras, se fortransformada e posicionar entre o pensamento produtor de idéias, aatividade de resoluções internas, e depois os versos, que somenteatendem “às necessidades que devem ser criadas por eles mes-mos”. O ato de encostar as palavras à idéia constitui-se no desejodo eu-lírico em contrabalançar as palavras às idéias, a fim de que aprimeira venha equivaler, ou melhor, se identificar com a segunda.Neste mesmo poema o eu-lírico ressalta o seguinte: “Procuro des-pir-me do que aprendi,” na verdade isto configura-se na ação dedesaprender, tão mencionada por Barros. Um exemplo claro podeser apreendido no LI: “Desaprender 8 horas por dia assim ensina osprincípios”. Os princípios aqui empregados valoriza a atividade de“desaprendizagem”. Pois para Barros: “Ao poeta faz bem/Desexplicar—” . Penso em Barthes quando afirma que “a literatu-ra é tão somente uma linguagem, isto é, um sistema de signos:...ocrítico não tem de reconstruir a mensagem da obra, mas somente oseu sistema...”15. E Barros parece apostar nessa afirmativabarthesiana, não só porque ele tem pleno domínio da técnica defazer versos de maneira estranhada, mas também porque é a partirda própria estrutura que a sua poesia se diferencia da de Pessoa.

Enquanto isso, Caeiro manda-nos um recado: “Não tenhoambições nem desejos/ Ser poeta não é uma ambição minha/ É aminha maneira de estar sozinho”. (OP, 206: 203) Para o eu-lírico,ser poeta é um refúgio, uma forma de se isolar, de forma algumase refere a uma ambição, mas sim a uma condição. Barros de-monstra esse mesmo pensamento: “Não tenho pretensões de con-quistar a inglória perfeita”16, o qual revela que não há por parte doeu-lírico o desejo de se glorificar.

Para finalizarmos, vejamos alguns trechos de um dialogismoentre Pessoa e Barros:

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FP: “Procuro encostar as palavras à idéia.” (251)MB: “Acho um tanto obtuso ter idéias. Prefiro fazer vadiagem com letras. Ao fazer vadiagem com letras posso ver quanto é branco o silêncio do orvalho.” (RAQC., 51)FP: “Procuro despir-me do que aprendi.” (251)MB: “Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.”(LI.,11)FP: “A aprendizagem que me deram ...................................................

Uma aprendizagem de desaprender.”(456)MB: “Minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem.”(GEC, 252)FP: “Não me importo com as rimas

.....................................................E a minha poesia é natural como o levantar-se vento...”(219)MB: “Sou puxado por ventos e palavras”.(LI., 41) “Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.” (LSN, 68)FP: “Não tenho ambições nem desejos Ser poeta não é uma ambição minha É a minha maneira de estar sozinho.”(206)MB: “Não tenho pretensões de conquistar a inglória per-feita.” (LSN, 85)FP: “Não sou nadaNunca serei nada Não posso querer ser nada.” (456)MB : “Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas sóa poesia é verdadeira.”(67)FP: “Pensar em nada É ter a alma própria e inteira.” (505)MB: “Tem mais presença em mim o que me falta. melhor jeito que achei para me conhecer foi fazendo o contrário.” (LSN.,67)FP: “Nada me prende a nada.” (452)MB: “Poesia é a loucura das palavras.” (GEC., 186)FP: “Não: toda a palavra é a mais. Sossega. Deixa, da tua voz, só o silêncio anterior.” (680)MB: “A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma ima-gem.

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Notas1 1 Prof. Auxiliar junto ao Departamento de Letras da UNEMAT,

campus de Alto Araguaia, MT, especialista em Letras pela UNESP-As-sis, coordenador do projeto de pesquisa “AS INFLUÊNCIAS DEFERNANDO PESSOA NA POESIA DE MANOEL DE BARROS”.

2 BACHELARD, Gaston. A Poética do devaneio. São Paulo:Martins Fontes, p.122, 1988.

3 BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral.Rio de Janeiro: Rocco, p.45, 1987.

4 Siglas utilizadas nesta comunicação: LSN (Livro sobre nada); OP(Obra poética); GEC (Gramática expositiva do chão); RAQC (Retrato deartista quando coisa); GA (O guardador de águas); ; LPC (Livro de pré-coisas); LI (Livro das ignorãças).

5 BACHELARD, p,109.6 Ibid, p.97.7 PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Saravy. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira, p.133, 1982.8 BACHELARD, Ibid., p.113.9 BLANCHOT, Ibid., p.83.10 BACHELARD, Ibid., p.106.11 BACHELARD, Ibid., p.97.12 BLANCHOT, Ibid. p.11..13 FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna (da metade do

século XIX a meados do século XX). Trad. Marise M. Curioni.. 2.ed. SãoPaulo: Duas Cidades, p.40, l99l.

O antesmemente verbal: a despalavra mesmo.”(RAQC., 53)FP: “Uma flor acaso tem beleza? Têm beleza acaso um fruto? Não: têm cor e forma E existência apenas.” (231)MB: “Beleza e glória das coisas olho é que põe. Bonito éo desnecessário.” (GEC., 260)FP: “Todas as opiniões que há sobre a Natureza Nunca fizeram crescer ou nascer uma flor (...) Se a ciência quer ser verdadeira, Que ciência mais verdadeira que a das cousas semciência?” (290)MB: “As coisas que não levam a nada têm grande impor-tância.” (GEC, 179)FP: “Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena.” (29)

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14 VALÉRY, Paul. Variedades. Trad. Maiza Martins de Siqueira. SãoPaulo: Iluminuras, p.208, 1991.

15 BARTHES, Roland. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva,p.162, 1982. (Debates,.24)

16 BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record,p.85, 1996.

17 BACHELARD, Gaston. A Poética do devaneio. São Paulo:Martins Fontes, p.122, 1988.

18 BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral.Rio de Janeiro: Rocco, p.45, 1987.

19 BACHELARD, p,109.20 Ibid, p.97.21 PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Saravy. Rio de Janeiro:

Nova Fronteira, p.133, 1982.22 BACHELARD, Ibid., p.113.23 BLANCHOT, Ibid., p.83.24 BACHELARD, Ibid., p.106.25 BACHELARD, Ibid., p.97.26 BLANCHOT, Ibid. p.11..27 FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna (da metade do

século XIX a meados do século XX). Trad. Marise M. Curioni.. 2.ed. SãoPaulo: Duas Cidades, p.40, l99l.

28 VALÉRY, Paul. Variedades. Trad. Maiza Martins de Siqueira. SãoPaulo: Iluminuras, p.208, 1991.

29 BARTHES, Roland. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva,p.162, 1982. (Debates,.24)

30 BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record,p.85, 1996.

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IntroduçãoGregório de Matos Guerra nasceu na Bahia e viveu no sécu-

lo XVII como um advogado famoso, clérigo polêmico e poetacontestador, inconformado com os costumes de sua época.

Sua rica poesia está esparsa em várias dezenas de códices,muito bem guardados (a chaves) na Biblioteca Nacional (do Riode Janeiro), na Biblioteca Histórica do Itamaraty, na Coleção Prof.Celso Ferreira da Cunha (da Faculdade de Letras da UFRJ), naBiblioteca do Congresso (Estados Unidos), na Torre do Tombo(Portugal) etc.

A requisitada edição crítica da obra poética do “Boca do In-ferno” não poderá ser concretizada antes que se conclua a suaedição diplomática, por ser absolutamente inviável a consulta diretaa todos esses códices manuscritos (alguns de três e de quatrogrossos volumes, como aquele de que o Imperador D. Pedro IIpossuiu dois tomos (só agora encontrados, pelo cotejo da cópiaque nos trouxe de Portugal o Prof. Adriano Espínola), o que per-tenceu a Celso Cunha (do qual está desaparecido o quarto tomo)e o que se denomina códice Varnhagen (conservado na Bibliotecado Itamaraty).

A edição diplomática consiste na transcrição mais fiel possí-vel, sem qualquer tentativa de correção do que parecer erro domanuscrito, de forma que os pesquisadores possam ter a confian-ça de estar diante do que mais próximo se tenha conseguido che-gar dos documentos mantidos com tanto zelo pelas instituiçõesque protegem.

Edição diplomática deGregório de Matos Guerra

José Pereira da Silva,da UERJ.

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O plano da edição

Este trabalho teve início em 1997, a partir da proposta que foiapresentada pelo Prof. Dr. Emmanuel Macedo Tavares no 5ºEncontro Internacional da Associação dos Pesquisadores do Ma-nuscrito Literário, realizado em Salvador no ano anterior, de sefazer a edição diplomática do códice Celso Cunha, que se encon-trava na Biblioteca da Faculdade de Letras da UFRJ.

Animado com a proposta do colega, apresentei-me comocolaborador para empreender tão simpática proposta e transcre-vemos os três volumes que então foram encontrados daquelacoleção, pois o quarto havia desaparecido misteriosamente.

Nessa primeira etapa do projeto, coordenou-o o Prof. Dr.Emmanuel Macedo Tavares, digitando pessoalmente o primeirotomo e revisando a cópia dos dois seguintes, digitados por mim,que fiz a revisão do primeiro.

Enquanto preparávamos esses três volumes, indo diariamen-te à Ilha do Fundão para cumprir nossa tarefa, sem qualquer auxí-lio ou bolsa, preparava-se uma segunda etapa desse projeto, paraa publicação dos códices que se encontram na Biblioteca Nacio-nal e, posteriormente, dos que estão guardados na Biblioteca His-tórica do Itamaraty.

Ali foram encontrados 15 códices, que estão assim relacio-nados:

Códice 1711 da Biblioteca do Congresso, em Washing-ton (há uma cópia mircofilmada na Biblioteca Nacional), com407 página e índices, das quais temos cópia em microfilme;

Códice 45 da Torre do Tombo, denominado por nósCÓDICE DO IMPERADOR 3, com 257 páginas já digitado ecom duas revisões já concluídas, será disponibilizado na Internetnos próximos dias, em www.filologia.org.br/textos (a cópia fac-similar existente na Biblioteca Nacional foi oferecida pelo Prof.Adriano Espínola);

Códice 46 da Torre do Tombo, denominado por nósCÓDICE DO IMPERADOR 4, com 785 páginas já digitado ecom duas revisões já concluídas, será disponibilizado na Internetnos próximos dias, em www.filologia.org.br/textos (a cópia fac-similar existente na Biblioteca Nacional foi oferecida pelo Prof.Adriano Espínola);

Códice 50,1,11 da Biblioteca Nacional, denominadoCÓDICE DO IMPERADOR 1, com 222 páginas já digitado e

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com uma primeira revisão concluída;Códice 50,2,1 da Biblioteca Nacional, denominado

CÓDICE CARVALHO, com 374 páginas já digitadas e comduas revisões concluídas, disponível na Internet, emwww.filologia.org.br/textos;

Códice 50,2,1A da Biblioteca Nacional, denominadoCÓDICE CAPITÃO-MOR, com 385 páginas já digitadas;

Códice 50,2,2 da Biblioteca Nacional, denominadoCÓDICE DO CONDE 1, com 445 páginas já digitadas e comuma primeira revisão concluída;

Códice 50,2,2A da Biblioteca Nacional, denominadoCÓDICE DO CONDE 2, com 416 páginas já digitadas;

Códice 50,2,3 da Biblioteca Nacional, denominadoCÓDICE AFRÂNIO PEIXOTO 1, com 363 páginas jádigitadas e com uma primeira revisão concluída;

Códice 50,2,3A da Biblioteca Nacional, denominadoCÓDICE Nº 59, com 369 páginas, fora de consulta

Códice 50,2,4 da Biblioteca Nacional, denominadoCÓDICE CAMILO CASTELO BRANCO, com 650 pági-nas, fora de consulta;

Códice 50,2,5 da Biblioteca Nacional, denominadoCÓDICE DO IMPERADOR 2, com 912 páginas, já digitadoaté à folha 156, pois o restante não pertence a Gregório de Matos;

Códice 50,2,6 da Biblioteca Nacional, denominadoCÓDICE AFRÂNIO PEIXOTO 2, com 819 páginas jádigitadas e com uma primeira revisão concluída;

Códice 50,2,7 da Biblioteca Nacional, denominadoCÓDICE JOÃO RIBEIRO, com 1024 páginas já digitadas ecom uma primeira revisão concluída;

Códice 50,2,8 da Biblioteca Nacional, denominadoCÓDICE LINO DE MATOS 1, com 190 páginas já digitadase com uma primeira revisão concluída;

Códice 50,2,9 da Biblioteca Nacional, denominadoCÓDICE LINO DE MATOS 2, com 528 páginas já digitadas;

Códice 50,3,16 da Biblioteca Nacional, denominadoCÓDICE DE ÉVORA, com 68 páginas já impresso pela DIGRAFe disponível na Internet, em www.filologia.org.br/textos;

Códice 50,4,1 da Biblioteca Nacional, denominadoCÓDICE DATILOGRAFADO, com 251 páginas digitadas ecom duas revisões concluídas

Códice L. 15-1 da Biblioteca Histórica do Itamaraty,

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denominado CÓDICE NOVO por James Amado, tem 299 fo-lhas, das quais temos cópia em microfilme;

Códice L. 15-2, 1º vol. da Biblioteca Histórica doItamaraty, denominado CÓDICE VARNHAGEN 1, tem 269p. e índice, das quais temos cópia em microfilme;

Códice L. 15-2, 1º vol. da Biblioteca Histórica doItamaraty, denominado CÓDICE VARNHAGEN 1, tem 269p. e índice, das quais temos cópia em microfilme;

Códice L. 15-2, 2º vol. da Biblioteca Histórica doItamaraty, denominado CÓDICE VARNHAGEN 2, tem 449p. e índice, das quais temos cópia em microfilme;

Códice L. 15-2, 3º vol. da Biblioteca Histórica doItamaraty, denominado CÓDICE VARNHAGEN 3, tem 484p. e índice, das quais temos cópia em microfilme;

Códice L. 15-2, 4º vol. da Biblioteca Histórica doItamaraty, denominado CÓDICE VARNHAGEN 4, tem 376p. e índice, das quais temos cópia em microfilme.

Novas dificuldades – novas soluções

No início do ano passado, foi solicitado à FAPERJ um auxíliopara a publicação dessa obra, na forma de edição diplomática,como estamos preparando. O auxílio foi negado, com a falsa ale-gação de que o Prof. Fernando da Rocha Peres (na Bahia) e oProf. Francisco Topa (em Portugal) já desenvolviam o mesmoprojeto, o que caracterizaria duplicação de recursos para um mes-mo fim. Como não pude reunir a documentação no tempo conce-dido para recorrer, espero ainda consegui-lo noutra oportunidade.

Tendo-me reunido a um grupo de pesquisadores da UERJpara, através do PROCIÊNCIA, solicitar os recursos do FAP(Fundo de Apoio à Pesquisa), oferecido pela FAPERJ, consegui-mos R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais) que seriam destinados,entre outras coisas, para montar um laboratório de informáticapara edição em CD-ROM. Pelo que me consta, até ontem, aFAPERJ ainda não havia liberado esse fundo.

Na seleção dos projetos para conseguirem bolsas de Inicia-ção Científica, dois professores entraram com pedido de uma cotacada um para a pesquisa da obra de Gregório de Matos. Nin-guém conseguiu.

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Concluindo

Essa edição diplomática indicará em notas de rodapé todosos vestígios percebidos de intervenção física (humana ou não) notexto transcrito, tais como borrões, emendas e rasuras; furos ouruídos no papel, perda de folha, mudança do tipo de tinta ou deoutro instrumento da escrita, desenhos ou outros elementos deco-rativos; informações complementares sobre os copistas e sobreos proprietários anteriores das referidas cópias, características dopapel e da encadernação, assim como seu estado atual de conser-vação.

Com todas as dificuldades relatadas, resolvemos começar apublicar nosso trabalho pela Internet, de modo que o maior núme-ro possível de interessados possa guardar cópias desse materialpara que tal obra não se perca definitivamente. Para isto, tivemosde fazer algumas adaptações naqueles textos ali disponibilizados,para que ficasse somente o texto de Gregório de Matos, sem osnossos comentários, que aparecem em notas nos arquivos emdisquete ou impressos.

Por volta de oitenta por cento do material já está disponível,em Word para Windows, embora ainda não tenha recebido todasas revisões necessárias. (Pretendemos cotejar o texto digitadocom o manuscrito pelo menos três vezes).

Os editores críticos, os organizadores de antologias, os estu-diosos em geral da Literatura Brasileira do século XVII, assimcomo os analistas dos usos e costumes daquela época de nossahistória política, eclesiástica e moral, já têm um rico material paraprosseguir em seus trabalhos.

Para que tenha o uso que pretendemos dar-lhes, os textos se-rão fornecidos gratuitamente, em disquetes, aos pesquisadores quese identificarem e o solicitarem, e alguns já estão disponibilizados naInternet, na home page www.filologia.org.br/textos.

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São inúmeros os topônimos portugueses oriundos de elemen-tos da língua tupi. A onomástica indígena no português do Brasilapresenta sua marca do século XVII ao século XVIII em milharesde termos, conforme pesquisa da professora Marina Vicentina dePaula do Amaral Dick que registra mais de 10.000 termos levanta-dos, comentados e analisados em sua significativa contribuição aosestudos lingüísticos das línguas indígenas, no estado de São Paulo,num mapeamento onomástico que está prestes a se concretizar.

Aqui, os nossos comentários dizem respeito aos topônimosencontrados nas regiões sudeste e sul do Brasil, formados com oselementos tupis tüba e tyba,1 que funcionam como sufixos, introdu-zindo no radical, noção de coletivo, grande quantidade, abundância,equivalente “à desinência portugueza em al” 2.

Por estarmos residindo na capital do Estadodo Paraná, lecionando nos Cursos de Graduação ePós-graduação em Comunicação Social da Facul-dade OPET (Organização Paranaense de EnsinoTécnico), iniciaremos nossos comentários comtopônimos deste Estado, começando pelo nomede sua capital.

1- Curitiba , do tupi ku’ri, pinheiro e tüba, sufixo coletivo, grandequantidade. Do antigo nome Curituba ao atual Curitiba, verificou-sea preferência por este último, uma vez que os sufixos tüba e tyba sealternam 3 na formação de muitos outros topônimos. Assim, Curitibapode ser entendido como região de pinheiral, onde o sufixo – al –

Os sufixos tupi tyba ou tübaidentificados com o sufixo português al

Luiz César Saraiva Feijó,da ABF e UERJ

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apresenta a idéia de coletivo, grande quantidade, abundância. Ossítios paranaenses 4 concentram enorme quantidade dos únicos pi-nheiros do Brasil, conhecidos como araucária-do-Paraná (araucáriabrasiliensis 5), encontrados nativos nas faixas de terras que vão docentro-oeste do Paraná ao Chile, região de Arauco, donde o seunome. Por isso, o elemento tupi ku’ri é raro fora dessa região, comotopônimo. Como formador de substantivos comuns, ocorre em al-gumas regiões do Brasil (Norte, Nordeste), como curiúva ( de ku-ri , pinheiro + iwa, árvore). Encontramos, ainda, o elemento ybirá ,que também significa árvore, muito comum na formação de nomes,como, entre outros, o conhecido ibirapitanga (árvore vermelha, opau-brasil), primitivo nome de nossa terra.

2- Guabirutuba é um bairro da cidade de Curitiba. Do tupiguabiru, rato pardo, menor que a capivara (do tupi kapi’xawa,comedor de capim) e tüba, como sufixo coletivo.

3- Guaratuba é cidade do Paraná, do tupi wa’ra, garça etüba, abundância, muito. Outro topônimo com a mesma origem,bairro no litoral sul da cidade do Rio de Janeiro é Guaratiba, ondefoi usado o sufixo tyba e não o sufixo tüba.

Na região sudeste, no Estado de São Paulo, encontramosos seguintes topônimos:

4- Ubatuba – Cidade praiana. Do tupi u’ba, cana deflecha, caniço e o sufixo coletivo tüba;

5- Caraguatatuba – Cidade praiana. Do tupi karawa’ta,gravatá e o sufixo coletivo tüba;

6- Araçatuba – Cidade do interior de São Paulo. Do tupiara’as, araçá (fruta) e o sufixo coletivo tüba;

No Rio de Janeiro, há, também, alguns topônimos com osufixo coletivo tyba (tüba), da lígua dos tupinambás, que pelo litoraldeste Estado viveram:

7- Mangaratiba – Do tupi mâga’ra e tüba, sufixo coletivo,o sítio dos mangarás. (Mangará é a ponta terminal da inflorescênciada bananeira; umbigo);

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8- Sepetiba – Do tupi as’pê e sufixo coletivo tyba (tüba).Sapezal;

9- Sernambetiba – Do tupi surunam’bi, sernambi(molusco, concha branca) e sufixo coletivo tyba.

Portanto, os sufixos tüba e tyba corresponderiam ao sufi-xo português – al – introduzindo a noção de coletivo, fartura, grandequantidade etc. Contudo, nem sempre os sufixos tupi tüba e tyba,agregados primitivamente a um sintagma tupi passaram a integrartopônimos portugueses. É o caso de yby cuî tyba que significaareal (tyba = al), pois yby é terra e cuî é farinha, pó, isto é, areia,mais tyba, sufixo coletivo, areal. Mas o topônimo que ficou foiybycuî. Ibicuí , praia e distrito de Mangaratiba, no Rio de Janeiro.Realmente este local não é caracterizado por extensa faixa de areia.Não é um areal, logo não comportaria no topônimo o sufixo tupityba, mesmo porque a faixa de areia branca, o grande areal está emfrente a Ibicuí, voltado para o mar aberto que banha a Restinga daMarambaia 6. Ibicuitiba não existe como topônimo.

Outro comentário ligado a esta colocação sociolingüística, dizrespeito a uma observação de campo ocorrida em 1964, quandolecionávamos no Colégio Estadual Barão do Rio Branco, em SantaCruz, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro, bem perto de Sepetiba.Naquela ocasião, durante uma festividade, em Sepetiba, comemo-rando o dia de São Pedro, o pescador, verificamos que os já muitoidosos pronunciavam os topônimos Sepetiba, Mangaratiba,Sernambetiba, Guaratiba (locativos constantes do vocabulário ativodos pescadores), com um fonema paragógico /s/, de plural. Volta-mos diversas vezes à região e constatamos o fenômeno.

Pensamos que esses topônimos, assim pronunciados (Sepetibas,Mangaratibas, Sernambetibas, Guaratibas), sejam formas pluralícias,percebido o sufixo tyba como coletivo. É importante salientar quetodos os idosos eram caiçaras 7. Uma semantização inconsciente,perdida no tempo, materializada pelo /s/ paragógico ? Interessante éque o normal na linguagem inculta, na fala descuidada, no falar da-queles que não têm a língua adquirida, isto é, a língua que se aprendena escola, é a redução, o não pronunciamento do /s/ de plural. Con-tudo, parece que existe uma semantização inconsciente na compe-tência do indivíduo falante, pois este /s/ paragógico poderia ser umsinal de pluralização. Inconsciente, também, é a concordância de-

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sastrosa da língua popular, encontrada em expressões do tipo “opessoal chegaram”, numa espécie de concordância ideológica,silepse , portanto. Ainda para abonar esta teoria, não nos esqueça-mos da consciência lingüística do indivíduo falante, materializada notopônimo Ibicuí, comentado acima, sem a presença do sufixo “tyba”.Por outro lado, é sempre oportuno salientar que muitos topônimoscom roupagem tupi nascem por criatividade da cultura do homembranco, falante da Língua Portuguesa, já estabelecida como línguanacional pela elite intelectual brasileira, desde os fins do séculoXVIII, quando, por aglutinação, dois ou mais lexemas tupis criamnomes de sítios, por essas regiões do interior de nossa pátria. Mas éimportante também lembrar que esta mesma elite intelectual, queassumiu, definitivamente, no século XIX, a Língua Portuguesa, trazdo passado a prática vergonhosa do torpe extermínio de nossosíndios, que correm o risco de serem somente lembrados pela pre-sença dos lexemas e morfemas de sua língua geral introduzidos noportuguês do Brasil.

Notas1 Sem função distintiva (fonológica), com pronúncia da vogal /y/ sem

arredondamento e da vogal /ü/ com arredondamento dos lábios, segundoa Profra. Yonne Leite, do Departamento de Antropologia do Museu Naci-onal, da UFRJ.

2 Cf. DIAS, Gonçalves, Dicionário da língua tupi, chamada línguageral dos indígenas do Brasil, Rio de Janeiro, Liv. São José, 1970, p.69.

3 Em muitos casos essa preferência foi da nossa cultura, a cultura dohomem branco.

4 Sítios banhados pelo rio Paraná e sítios do altiplano do Estado doParaná. Paraná vem do guarani pa’ra e nã, onde pa’ra significa mar e nã,semelhante. Assim, Paraná = semelhante ao mar; rio grande; parente domar, Cf. NASCENTES, DELP, Rio, Vol. 2, p. 233, 1952.

5 Já no século XVI encontramos referência a este pinheiro e a nomesindígenas do atual Estado do Paraná nos textos de Álvar Nuñes Cabeza deVaca, naufrágios & comentários.

6 Do tupi marã’bai, cerco do mar, recife. Nascentes discorda. Recifeé o que não há na Marambaia, o que existe é uma grande língua de areiaseparando o mar aberto da baía de Sepetiba. Prefere mba’ra mbai, cerco domar. Cf. NASCENTES, Opus cit, p.190.

7 Do tupi kai’sara, estacada de proteção em voltas das aldeias; indi-víduo natural de região praiana.

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De início, queremos manifestar a alegria de ver, em discussão,um tema há muito afastado dos debates nos congressos de Letras.Esta rara oportunidade se deve à ampla visão lingüístico-filológicado Prof. Leodegário A. de Azevedo Filho, que, há trinta e um anos,organiza um evento que representa um recorde nos meios acadêmi-cos. É necessário que ocorram outras oportunidades, a fim de quese possa repensar o estudo de Língua Portuguesa no nível escolar eno universitário.

Também queremos lembrar, com grande emoção, a ausênciade Mestres como os professores Sílvio Elia e Olmar Guterres daSilveira, que marcaram suas vidas pela grandeza de espírito e porum domínio incontestável dos estudos lingüístico-filológicos. Jamaispoderão ser esquecidos por todos quantos conviveram com eles.

Neste rápido encontro, nosso propósito é o de expressar a ex-periência didática com um trabalho que vem sendo publicado hávinte e três anos. É uma gramática para o ensino médio, com pe-quenas incursões no ensino superior. Para isso, tivemos de analisarcompêndios escolares utilizados nos últimos trinta anos. Também setornou necessário o acompanhamento de muitos progressos dalingüística geral e da lingüística aplicada à Língua Portuguesa.

Pelo que observamos nos últimos nove anos de nossa tarefaem Cursos de Letras na UERJ e no Centro Universitário AugustoMotta, poderíamos afirmar que a gramática precisa ser implantadaou, quem sabe, reimplantada nos estudos de Língua Portuguesa,pois se observa, nitidamente, que seu estudo tem sido praticamenteabandonado, o que vem causando um afastamento muito compro-metedor da norma culta, não apenas entre os estudantes mas ainda

A Língua Portuguesa no Brasil: papeldos gramáticos na sua implantação

Manoel Pinto Ribeiro,daUERJ, CEUAM e ABF

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entre jornalistas e, até mesmo, professores de nível universitário.Como exemplo desse desleixo, basta ler as matérias divulgadas nosjornais ou nas universidades. Em 26 de julho de 1999, um conhecidojornal estampava um comunicado em que dois advogados participa-vam o reinício de suas atividades, em determinado escritório. De-monstrando dificuldade na expressão verbal, o aviso, depois de umaintrodução, por sinal correta, complementava, sem qualquer pausa:“... .que voltaram a trabalhar juntos no mesmo Escritório deAdvocacia como fizeram seus Pais e Avós, escritório este queestá às vésperas de completar um século de existência e, cujo ende-reço é ...”. O elemento em negrito, além da vírgula que não deviaexistir, mostra a insegurança no redigir o texto. Para o MestreBechara, o falante domina o sistema de uma língua quando está emcondição de criar nela. Como se observa na mensagem, do pontode vista do registro dos autores do texto, a “criação” demonstra umafastamento muito comprometedor do seu nível cultural.

Como se sabe, em Portugal a descrição gramatical começacom a Grammatica da lingoagem portuguesa, de Fernão de Oli-veira, em 1536. Esta obra foi analisada exemplarmente pelo Prof.Olmar, em tese de concurso para o Colégio Pedro II. Em 1540,surge a gramática de João de Barros.

No Brasil, iniciamos os estudos gramaticais com Antônio Al-vares Pereira Correia, o Coruja, com a obra Compêndio de gra-mática da língua nacional, em 1835. Rosa Virgínia Mattos e Sil-va, no livro Contradições no ensino de português, citando Antô-nio Houaiss, diz que Frei Caneca, em Recife, que viveu de 1779 a1825, teria redigido a primeira gramática de brasileiros para brasilei-ros, encampando as regras lusitanas. O segundo trabalho é de Fran-cisco Sotero dos Reis que publicou Postilas de gramática geralaplicada à Língua Portuguesa pela análise dos clássicos, em1862, e Gramática portuguesa em 1886. Na Academia Brasileirade Filologia, o Prof. Antônio Martins de Araújo é um excelente es-pecialista em historiografia das gramáticas e da ortografia, e nosforneceu indicações para que falássemos sobre o assunto da pales-tra, mas infelizmente nosso tempo é limitado e aguardaremos umanova oportunidade para gramáticas e da ortografia, e me forneceuindicações para que falássemos sobre o assunto da palestra, masinfelizmente nosso tempo é limitado e aguardaremos uma nova opor-tunidade para tratarmos da matéria. Outro especialista é o Prof.Ricardo Stavola Cavaliere, que estudou a Gramática portuguesade Júlio Ribeiro, de 1881, além de outros autores, nos aspectos

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fonológicos e morfológicos.Hoje, o ensino de gramática está relegado a um plano de ab-

surdo e inexplicável desprestígio. O estudo de Língua Portuguesapraticamente inexiste, fato que documentamos há vários anos emnossas turmas, nos primeiros anos da faculdade de Letras. Apesarda boa qualidade de nosso alunado, observa-se, ao começarmos ocurso, que não lhe foi passado um conteúdo adequado do funciona-mento da Língua Portuguesa. Além disso, verifica-se também queaté a análise e a interpretação do texto são tratadas com muitainsegurança. O professor universitário tem, praticamente, de iniciaro aluno em um aprendizado de como se estrutura o sistema lingüísticodo português, na variante formal.

Aqui, pretendemos mostrar o caminho que devemos percorrerpara uma visão adequada da gramática portuguesa. Observe-seque não estamos propondo uma cega obediência à norma culta rígi-da, que vem sendo criticada de forma indiscriminada, como se tudoquanto a gramática normativa prescreve fosse um empecilho parao aprendizado. De repente, após o notável trabalho do Prof. Eugê-nio Coseriu, todos descobriram que a língua apresenta variações.Graças a essa lição, em nosso livro abrimos um capítulo para tratardo assunto, com o título de registros lingüísticos. Para EvanildoBechara, “a norma contém o que é tradicional, comum e cons-tante, tudo o que se diz assim e não de outra maneira. O siste-ma contém as oposições funcionais para que uma unidade dalíngua não se confunda com outra”.

O que desejamos documentar é que o aluno não é levado aentender como se estrutura, como funciona uma língua. Não setrata, portanto, de prescrever regrinhas, mas sim de fazê-lo compre-ender as várias oposições que existem em nosso sistema, para queele possa, então, organizar coerentemente suas mensagens.

Parece-nos que muitos aspectos contribuíram para o desprestígiodo ensino de nossa língua. Em primeiro lugar, a necessidade de umarevisão da Nomenclatura Gramatical Brasileira. Aqui, temos a hon-ra de contar com a presença do Prof. Antônio José Chediak, mem-bro da comissão da nomenclatura organizada em 1957. Já em 1970,o professor Celso Cunha sugeria que esse trabalho fosse rediscutido.Por nossa sugestão, a Academia Brasileira de Filologia está inician-do um reexame da questão, que deverá contar com o envolvimentode todos os setores interessados no aprimoramento de um estudomais consentâneo com os avanços da lingüística.

Não se pode negar, porém, a grande utilidade da nomenclatura

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no início de sua implantação, pois os termos empregados eram múl-tiplos para representar um mesmo conceito. Exemplo disso era aclassificação de orações aditivas, também conhecidas como apro-ximativas ou copulativas, nas gramáticas da época.

Não devemos esquecer que a Medicina, em recente congres-so, de acordo com noticiário de jornais, resolveu unificar sua nomen-clatura, em virtude os inumeráveis nomes por que um dado elemen-to era estudado. Assim, o termo rótula foi substituído por patela,que se origina do latim clássico. Cotovelo passa a ser cúbito. Daíestarmos livres da dor de cotovelo, que “passará” a dor de cúbito.Nas escolas de ensino médio, muitos sugerem a omissão do termogramatical, utilizando-se um substituto. Num determinado colégio,em lugar de adjetivo passou-se a usar a expressão “palavra deenfeite” . Imaginem quantas “palavras de enfeite” seriam necessá-rias para elogiar os Mestres Bechara, Walmírio e Chediak.

Em todos os níveis da gramática, há necessidade de uma revi-são, a começar pelos estudos de fonética e fonologia, já que esteúltimo termo, dentre muitos, não se encontra no corpo de nossanomenclatura. Outras conquistas no nível fonológico deverão seragasalhadas, principalmente em virtude do trabalho de MattosoCamara Jr., a partir de sua tese de doutoramento em Letras, em1949, sob o título de Para o estudo da fonêmica portuguesa.Nesta pesquisa, bem como nos livros Problemas de língüísticadescritiva, História e estrutura da Língua Portuguesa e Estru-tura da Língua Portuguesa, a descrição do sistema fonológico doportuguês do Brasil se enriqueceu com lições primorosas que nãopodem ser esquecidas por nossas gramáticas.

Ressaltamos a descrição do sistema de fonemas da LínguaPortuguesa, numa visão estrutural. No sistema vocálico, salienta ogrande Mestre a importância do quadro de vogais orais de acordocom a posição na sílaba. Assim, do quadro de sete vogais na posi-ção tônica, o número de vogais se reduz para cinco na posiçãopretônica, a quatro na postônica medial e a três fonemas apenas naposição postônica final, em virtude do fenômeno da neutralização.

Também põe em xeque a lição sobre vogais nasais, propondoque se descreva o fato como vogal seguida de travamento nasal (oarquifonema nasal: /N/). No estudo das semivogais, a nosso verresolve a questão de que a vogal é uma vogal assilábica, e não umaconsoante como muitos propuseram.

Em outro ponto reduz a importância da descrição dos encon-tros consonantais e vocálicos no português do Brasil. Este assunto

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foi objeto de nosso trabalho de monografia na Universidade FederalFluminense, quando tivemos a honra de ser examinado por SílvioElia e por Walmírio Macedo, com a orientação do extraordinárioMestre Olmar Guterres da Silveira, Mattoso nos mostra, que, noportuguês do Brasil, só existem quatro consoantes pós-vocálicas (/R/, /N/, /S/, /I/), fato que impossibilita a descrição de muitos casoscomo de encontros consonantais, em virtude da epêntese de umavogal, geralmente o /i/, que desfaz o encontro, como no par opositivoapto /’apitU/ e apito /a’pitU/, cuja diferença se manifesta apenaspela posição do acento tônico, um traço fonêmico supra-segmental.Cabe lembrar um fato ocorrido em uma prova de Sociologia em queum aluno escreveu o vocábulo sexo da seguinte forma: sequiço.Indagado pela professora, o aluno pediu-lhe desculpa e disse-lheque “faltava” o acento. Apesar do desconhecimento da ortografiado vocábulo, o aluno, dentro do que preceitua a lição de MattosoCamara, comprova o acerto da teoria do lingüista.

É de lembrar, ainda, a obra Iniciação à fonética e à fonologia,de Dinah Callou e Yonne Leite, dentre outras, como uma excelentecontribuição para a matéria.

Enfim, apesar do abandono do ensino de fonética e de fonologiano ensino médio, cremos ser tarefa de uma boa gramática a descri-ção coerente do sistema fonêmico, ponto fundamental para a com-preensão de como funciona uma língua.

Nossa experiência didática no ensino superior, em fonética efonologia, nos tem trazido gratas surpresas. Antes de iniciar o pro-grama, estabelecemos um teste de diagnose, para ficar comprova-do o que aluno conseguiu aprender no ensino médio. Como era deesperar, o aluno demonstra um sério desconhecimento do nossosistema fonológico. Depois das primeiras lições, com o empregointensivo da transcrição fonológica, o discente passa a perceber adiferença entre a camada fônica e a linguagem escrita. O últimoresultado com uma turma de setenta alunos no Centro UniversitárioAugusto Motta, depois de muito trabalho em sala de aula, trouxe-nos uma satisfação incontida. Todos os alunos foram aprovados,sem necessidade de nenhuma ajuda.

É de se lamentar, portanto, que esta parte essencial do ensinode uma língua tenha sido retirada dos programas dos exames devestibular. Cabe também um protesto para o pouco caso que seobserva na maioria desses exames, com raríssimas questões envol-vendo o conhecimento do sistema lingüístico. Além disso, quasesempre os quesitos sobre gramática são mal formulados.

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Mesmo com alguns obstáculos da nomenclatura gramatical,acreditamos que a contribuição de notáveis trabalhos universitáriosé fundamental para dirimir as divergências em alguns pontos dosestudos gramaticais. Sempre nos preocupamos em estabelecer oconceito mais apropriado ao fato língüístico. Por isso, seguimos,desde a primeira edição de nosso livro, em 1976, a lição de grandesautores, com ênfase nos trabalhos do Professor Bechara, de RochaLima, Celso Cunha, Gladstone Chaves de Melo, Othon M. Garcia,Antônio José Chediak, Leodegário de Azevedo Filho, Castelar deCarvalho e Walmírio Macedo. Também acompanhamos, desde aantiga UEG, as irrepreensíveis lições do Prof. Olmar Guterres daSilveira, que nos trouxe soluções perfeitas com suas teses de con-cursos Prefixos e não-prefixos e Orações subordinadas semconectivo.

A leitura atenta desses dois trabalhos nos possibilitou esclare-cimentos notáveis sobre dois aspectos fundamentais de lingüísticaaplicada ao ensino de Língua Portuguesa. Como discípulo fiel doProf. Olmar, o Mestre Horácio Rolim de Freitas, uma das maisperfeitas vocações para o magistério, pesquisador incansável, nosbrinda com Princípios de morfologia, obra que fornece respostaadequada a muitos pontos da estrutura e formação de vocábulos,principalmente no estudo da parassíntese e dos regressivos(deverbais). Note-se que um artigo do Prof. Olmar nos esclareceque não existem os chamados regressivos nominais, já que a classee a função dos vocábulos não se alteram na frase. Assim, delega edelegado continuam a ser substantivos, desempenhando determi-nada função sintática num contexto.

Na sintaxe, enfatizamos o estudo das orações subordinadassem conectivos, trabalho infelizmente esquecido pela maioria denossas gramáticas, fato que provoca a interpretação inadequadade análise de variadas estruturas sintáticas do português. Doislivros nos servem até hoje de guia: Moderna gramática portu-guesa e Lições de português pela análise sintática, do Prof.Evanildo Bechara. A obra Novas lições de análise sintática, deAdriano da Gama Kury, da Ática, presta também relevante con-tribuição ao bom entendimento da sintaxe portuguesa moderna navariante culta brasileira.

Por isso não entendemos como jornalistas se perdem em fra-ses como “São nesses momentos que devemos...” Em outra or-dem teríamos, dentro do padrão formal, teríamos: “Nesses momen-tos é que devemos...” Cria-se uma regra de concordância afastada

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do registro culto. Também, num informativo de uma faculdade decomunicação (sic) encontramos uma mensagem que dizia: “Apre-sentaram-se, como expositores neste seminário, os professoresA, B e C, sendo que suas palestras foram gravadas em vídeose, nos debates posteriores, interessantes questões sobre con-ceitos, currículos e metodologias de Comunicação foram sus-citadas”. Em linguagem normal, demonstrando domínio da normaculta, diríamos: “Apresentaram-se, como expositores neste semi-nário, os professores A, B e C, cujas palestras foram gravadasem vídeos. Nos debates posteriores, interessantes questões so-bre conceitos, currículos e metodologias de Comunicação fo-ram suscitadas”. Basta comparar os dois textos para se verificarcomo houve uma dificuldade em redigir a mensagem dentro dospadrões necessários à exposição da matéria.

Outro texto“A metodologia a ser aplicada no encontro prevê a apre-

sentação de vídeos e, depois, abrindo-se para debates entredocentes e discentes da unidade; assinalando-se que o eventoserá considerado como atividade curricular e, portanto, compresença obrigatória”. O texto deveria ser: “A metodologia aser aplicada no encontro prevê a apresentação de vídeos. Ha-verá, depois, debates entre docentes e discentes da unidade,assinalando-se que o evento será considerado como atividadecurricular, portanto com presença obrigatória”.

Evidentemente a culpa é da gramática, ou seja, da má formu-lação gramatical, o que revela a “ingnorância” do redator. Por isso,em virtude do terrorismo implantado contra o ensino de gramática,propomos que esqueçamos a origem grega do termo e o substitua-mos por “granática”, que, sem dúvida, é mais “explosivo”.

Modernamente, recebemos a contribuição de Iniciação à sin-taxe do português, que discute admiravelmente o enfoque estrutu-ralista, com soluções coerentes para muitos aspectos controverti-dos. Seu autor é o Prof. José Carlos Azeredo que veio engrandecero corpo docente da UERJ. Da Profa. Flávia de Barros Carone te-mos o livro Subordinação e coordenação.

De Othon M. Garcia, com o imprescindível Comunicação emprosa moderna, obra que todos elogiam mas que tem sido poucoutilizada, destacamos refulgentes lições que nos ensinam a pensar,com apoio principalmente na estrutura sintática, o que nos leva a

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dominar conscientemente o nosso idioma.Com um selecionado número de pesquisadores, julgamos con-

seguir uma descrição gramatical sem complicações, sem precisarapelar para complexas lições da lingüística, como infelizmente temacontecido em alguns setores.

Não poderíamos deixar de mencionar a obra O modernismobrasileiro e a Língua Portuguesa, de Luiz Carlos Lessa, que temservido como base para exemplificação da fase atual do português,visto que o autor fez um levantamento exaustivo da norma culta ecoloquial utilizada pelos autores modernistas. É exemplo sério, dignode louvores pela exaustiva pesquisa, que revela, principalmente, quaissão os padrões frasais mais comuns no português do Brasil.

Com este roteiro aqui exposto, cremos que se realiza um raci-onal curso de lingüística aplicada ao ensino da língua.

No IX Congresso de Língua e Literatura, em 1978, na UERJ,sob o tema Panorama atual do ensino do português do Brasil,o prof. Olmar questiona a preocupação sobre o ensino de nossalíngua em virtude do noticiário alarmante e da atitude exaltada quea esse respeito assumem homens ilustres do país. Por essas opini-ões, o ensino de Português vai mal naturalmente porque os pro-fessores não o ensinam, ou não o ensinam bem. O Mestre rebateuessas afirmações demonstrando que não é apenas a expressãoverbal que se documenta como deficiente, mas principalmente afalta de cultura geral. Conclui mostrando que “a Educação demassa, assentada no princípio de Escola para todos foi entrenós transformada em Educação massificadora, situação quese agrava com o desaparecimento total da Educação que visaà formação das elites dirigentes”.

Uma outra palavra de importância é de Antônio Houaiss, emuma reportagem na revista Prodoctor, em 1995. Ao falar sobre ouso abusivo do coloquialismo na linguagem oral, ele esclarece queisso “revela um relativo empobrecimento no uso da língua e deseu vocabulário. E por uma razão muito simples: nunca noBrasil o ensino primário, que é a base desta linguagem, foi tãotorpe quanto está sendo”. Diz ele que, “naturalmente, para asmeras relações de amor, de comer, de locomover-se, é possívelcomunicar-se com um número reduzido de palavras. Mas, namedida em que os jovens tiverem que entrar no mercado detrabalho e numa função relativamente qualificada, os horizon-tes verbais e gramaticais terão que se ampliar”.

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Iung dizia que achava muito estranho que ninguém veja o queuma educação sem Humanidades está fazendo ao homem. Pensarque o homem nasceu sem uma história dentro de si mesmo é umadoença, concluiu o grande psicólogo. Por isso, é lamentável o pen-samento radical de pessoas que tentam fazer tabula rasa de todauma cultura acumulada em séculos de civilização.

Mesmo em cursos de Letras, há os que consideram o estudode Lingüística, Latim, Filologia Romântica e até mesmo de LínguaPortuguesa como elementos sem qualquer utilidade para o estudan-te. Cabe aos que preservam a dignidade da cultura nacional lutarcontra esse tipo de atitude, pois não se pode calar diante de afirma-ções desprovidas de um mínimo de sensatez.

Concluindo, precisamos deixar claro que não se aprende gra-mática apenas com a finalidade de expor mensagens de carátereminentemente normativo, mas, principalmente, para, com a ajudade uma metodologia adequada, fazer o aluno entender como o nos-so sistema lingüístico funciona. Para o estudante de Letras se torna-rá muito fácil a tarefa de se estudar qualquer outra língua, desde queele compreenda como funciona a nossa.

Brevis esse laboro, obscurus fio ( Esforço-me por ser brevee fico obscuro), como disse Horácio na Arte Poética. Por isso, paraencerrar, façamos nossas as palavras de Clarice Lispector em De-claração de amor à Língua Portuguesa:

Se eu fosse muda, e também não pudesseescrever, e se me perguntassem a que língua euqueria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso ebelo. Mas como não nasci muda e pude escrever,tornou-se absolutamente claro para mim que euqueria mesmo era escrever em português. Eu atéqueria não ter aprendido outras línguas: só paraque a minha abordagem do português fosse vir-gem e límpida.

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À Lucia Helena e Roberto Corrêa dos Santos

1. Clarice1 : a arte de escrever palavras e silêncios abico de pena

E se tenho aqui que usar-te palavras, elas tem quefazer um sentido quase que corpóreo, estou emluta com a vibração última (AV, 11)

Em “Declaração de Amor”, Clarice Lispector manifesta aconvicção de “que queria mesmo era escrever em português”,sabendo, no entanto, que a Língua Portuguesa

não é fácil. Não é maleável. E, como não foiprofundamente trabalhada pelo pensamento, a suatendência é de não ter sutilezas e de reagir às vezescom um verdadeiro pontapé contra os quetemeriamente ousam transformá-la numa lingua-gem de sentimento e de alerteza. E de amor. ALíngua Portuguesa é um verdadeiro desafio paraquem escreve. Sobretudo para quem escrevetirando das coisas e das pessoas a primeira capade superficialismo (...). Eu queria que a LínguaPortuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos(DM, 98).

A língua literária de Clarice revela os clichês (os signos esva-ziados), retira a capa que imobiliza o dinamismo da linguagem e a

Clarice Lispector e Maria GabrielaIlansol: tentativas de descrever

sutilezas ou como dobrar a língua

Maria de Lourdes Soares,da UFRJ.

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devolve revitalizada. Na lição do Mestre Caeiro2, a clariceanaaprendizagem de desaprender exige o esquecimento do modo delembrar e de sentir que nos ensinaram.

A epifania revela-se um procedimento capazde despir a primeira capa de superficialismo da lin-guagem pouco trabalhada pelo pensamento. ParaOlga de Sá, a presença do fenômeno epifânico cons-titui o traço básico da escritura de Clarice, traço queguarda algumas semelhanças com o“estranhamento”, na acepção dada ao termo pelosformalistas russos. Trata-se da visão poética quenos liberta do automatismo perceptivo, devolven-do-nos a sensação de deslumbramento de quemvê o mundo pela primeira vez:

Ela é expressão de um momento excepcional,em que se rasga para alguém a casca do cotidia-no, que é rotina, mecanicismo e vazio. Mas étambém defesa contra os desafios das descober-tas interiores, das aventuras com o ser. Por isso aepifania é sempre um momento de perigo à bordado abismo, da sedução que espreita todas as vi-das. A vida protegida representa o domesticado,o dia-a-dia, o casamento, as compras na feira, asvisitas e os aniversários. (...) Enfim, a epifania éum modo de desvendar a vida selvagem que exis-te sob a mansa aparência das coisas, é um pólo detensão metafísica, que perpassa e transpassa aobra de Clarice Lispector3 .

Para as suas “tentativa(s) de descrever sutilezas” (DM, 431),a herança recebida não lhe chega: “um Camões e outros iguaisnão bastaram para nos dar sempre uma herança de língua já fei-ta” (DM, 99). Sem rejeitar a herança recebida, sabe que naassumpção criadora do adquirido há sempre uma margem para aruptura, para a inovação.

Em 1943, no artigo “No raiar de Clarice Lispector”, primeiroestudo de relevo sobre a obra de Clarice, Antonio Candido4 jáassinalava que o compromisso da escritora é com a linguagem enão com a realidade empírica.

O seu grande tema - a busca da palavra, da sua palavra, comuma urgência vital – faz-se através do leal e constante combate

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corpo-a-corpo, da contínua confrontação com a palavra, daí a sen-sação de precariedade, de extrema fragilidade que a sua escritaprovoca no leitor.

Em lugar da plenitude ou do sujeito pleno, grande parte dassuas personagens e narradoras falam-nos da criação do mundo edo sujeito fundados no vazio. Vazio ainda informe, mas expectante.Mundo e sujeito não dados de antemão, mas em processo, semprese-fazendo, “espelhando o vazio existente no centro de cada indi-víduo clariceano, o vazio que Clarice costuma vestir em metáfo-ras, de claridade, de chama, de lucidez”5. A essa experiência doser, transfigurada através da linguagem artística, poderíamos cha-mar talvez de plenitude do vazio:

Para isso são necessários os artifícios da dis-tância, da disponibilidade, do esquecimento, e osartifícios da língua: a escolha e o emprego exatodo vocábulo, a justa construção sintática (...) Osrecursos advindos de uma escolha e de umremanejamento de valores de que se vai tecendoo projeto escritural de Clarice que favorece a pas-sagem da vivência à obra6 .

O que há de original na escrita de Clarice, o que individualizao seu estilo literário7, é ter encontrado, no “encontros deconfrontação”8com a paisagem da língua, a forma adequada paraexpressar a sua visão do mundo, a sua paisagem interior.

Valendo-se da estratégia do viés, Clarice contorna o desafiode atravessar a paisagem agreste (porém não agressiva) da Lín-gua Portuguesa. O esforço de sutilizar a língua, de torná-la dúctil,corresponde à procura da “tessitura de viver”, sempre com “ocoração de esguelha”, à esquerda, “indireto” (DM, 42). “Nós so-mos de soslaio” (AV, 71).

Vários trechos de Água Viva sublinham esse peculiar modode estar na escrita:

É que estou percebendo uma realidadeenviesada. Vista por um corte oblíquo. Só agorapressenti o oblíquo da vida. Antes eu só via atra-vés de cortes retos e paralelos. Não percebia osonso traço enviezado (AV, 70).

E eu vivo de lado – lugar onde a luz centralnão me cresta. E falo bem baixo para que os ouvi-

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dos sejam obrigados a ficar atentos e a me ouvir(AV 72).

Não dirijo nada. Nem as minhas próprias pa-lavras. Mas não é triste: é humildade alegre. Eu,que vivo de lado, sou à esquerda de quem entra. Eestremece em mim o mundo (AV, 34).

Atravessar “essa vida insolitamente enviesada” (AV, 70) é omóvel da escrita que se produz “à medida que”, “à beira de”:“escrevo-te à medida de meu fôlego” (AV, 56); “meus dias sãoum só clímax: vivo à beira” (AV, 12).

A sutilização pressupõe aceitar ou até mesmo preferir adissonância, a “harmonia da desarmonia”: “a dissonância me éharmoniosa. A melodia por vezes me cansa” (AV, 67); “A harmo-nia secreta da desarmonia: quero não o que está feito mas o quetortuosamente ainda se faz” (AV, 12).

O estilo desse canto não será grandiloqüente, nem o som altoe sublimado porque “todas as vidas são vidas heróicas” (AV, 68) e“todo herói é herói de si mesmo. Quem vence está-se vencendo”.Melhor “é cantar uma melodia sem palavras. Espécie de cantilenaextremamente plangente” (AV, 84), um “improviso constante” (AV,95), à beira do silêncio.

Para a “narradora-autora” de Água viva, a escrita surge deum profundo desejo de “querer falar”, embora escrever só lhe dê“a grande medida do silêncio” (AV, 12).

Em Clarice, o silêncio não significa a morte da linguagem,mas, de um modo geral, a contraparte do som, o que o tornaperceptível. De igual modo, também a imobilidade faz parte domovimento, como percebe a autora, na crônica “Tentativa de des-crever sutilezas”, ao contemplar a dança do bailarino hindu, que“faz gestos hieráticos e pára”: “E muitas vezes a sua imobilidadesúbita é a ressonância do salto anterior: o ar parado ainda contémtodo o tremor do gesto” (DM, 431).

Talvez a mais bem sucedida de suas tentativas para descreversutilezas esteja em “Menino a bico de pena”, conto de Felicidadeclandestina também publicado como crônica em A descoberta domundo. “Como conhecer jamais o menino?” (DM, 256) Comoapreendê-lo nas malhas da linguagem sem o aprisionar irremedia-velmente? Como dizer o outro não sendo o outro? Com a delicadezada poeta Cecília9 , Clarice sabe que tentar tocar com a pesada mãohumana as finas asas de uma borboleta é fatalmente condená-la à

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morte. Conhece também – e respeita – a inacessibilidade do outro.Só lhe resta então propor o não-desenho:

Não sei como desenhar o menino. Sei que éimpossível desenhá-lo a carvão, pois até o bico-de-pena mancha o papel para além da finíssimaatualidade em que ele vive. Um dia o domesticare-mos em humano, e poderemos desenhá-lo (FC,256).

Enquanto escritora, como lembra Leila Perrone-Moisés,Clarice “não acreditava nem um pouco na capacidade da lingua-gem para dizer ‘a coisa’, para exprimir o ser, para coincidir com oreal”. Na verdade, o que ela procurava através da escrita, com aseriedade de quem abraça uma missão ou com a resignação dequem acolhe uma condenação, era pescar nas entrelinhas, “a pa-lavra pescando o que não é palavra” (DM, 414):

O que ela buscava não era da ordem da re-presentação ou da expressão. Ela operava emer-gências de real na linguagem, urgências de verda-de. Resta ao leitor receber suas mensagens embranco, e ouvir o que de essencial se diz em seussilêncios. “Você não acha que há um silêncio si-nistro em tudo? Há sim. Enquanto se espera que ocoração atenda”10.

2. Llansol11: a língua impura da escrita

Por acaso tu já provaste a água quimicamen-te pura, a água de laboratório, sem um grão depoeira ou esterco, sem o pequeno excremento deum pássaro, a água feita apenas de oxigênio e dehidrogênio?

Nicolás Guillen

A água que move a ficção de Llansol não é a água pura dasnascentes, mas a que resulta do encontro de diferentes cursos deágua e de materiais diversos:

Todavia tivera um sonho, um sonho de tantapureza que matava a vida (de igual modo, por sertão pura, a água dos lagos, nas grutas, não permi-

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te aos peixes a vida) (DPE, 212).

A água viva da escrita se alimenta da confluência de váriasfontes e cursos de água, conforme a própria ficção se define:“uma ficção não pode ser simples, é o encontro inesperado dodiverso” (CA, 18).

Em Llansol, a língua impura da escrita liga-se sobretudo à coe-xistência de registros discursivos (romanesco, lírico e reflexivo), àcontaminação entre os gêneros (narrativo, lírico), de que resulta oembaraço, por parte da crítica, em classificar seus textos.

A sua trajetória ficcional é a textualização da recusa ao mo-delo da escrita representativa, realista:

À medida que ousei sair da escrita represen-tativa em que me sentia tão mal, como me sentia malna convivência, e em Lisboa, encontrei-me semnormas, sobretudo mentais. Sentia-me infantil emdar vida às personagens da escrita realista, porqueisso significava que lhes devia igualmente dar amorte. Como acontece. O texto iria fatalmente parao experimentalismo inefável e/ou hermético. Nes-sas circunstâncias, identifiquei progressivamente“nós construtivos” do texto a que chamo figuras eque, na realidade, não são necessariamente pesso-as mas módulos, contornos, delineamentos. Umapessoa que historicamente existiu pode ser umafigura, ao mesmo título que uma frase (“este é ojardim que o pensamento permite”), um animal, ouuma quimera. O que mais tarde chamei cenas fulgor(FP, 139-40).

Llansol propõe a potencialização do romance através damutação (conceito apropriado da Biologia), operação capaz deprovocar o deslizamento da desgastada paisagem da narratividadepara a paisagem fértil da textualidade:

É minha convicção que, se se puder deslo-car o centro nevrálgico do romance, descentrá-lodo humano consumidor de social e de poder, ope-rar uma mutação da narratividade e fazê-la deslizarpara a textualidade um acesso ao novo, ao vivo,ao fulgor, nos é possível (LL1, 120).

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Esse deslocamento poderá abrir o “acesso ao dom poético,de que o exemplo longínquo foi a prática mística”:

Sem o dom poético, a liberdade de consciên-cia definhará. O dom poético é, para mim, a imagina-ção criadora própria do corpo de afectos, agindosobre o território das forças virtuais, a que poderí-amos chamar de existentes-não-reais (LL1, 120).

Ainda nas palavras de Llansol,

a textualidade é a geografia dessa criaçãoimprovável e imprevisível; a textualidade tem porórgão a imaginação criadora, sustentada por umafunção de pujança _______ o vaivém da intensi-dade. Ela permite-nos a cada um por sua conta,risco e alegria, abordar a força, o real que há-de virao nosso corpo de afectos (LL1, 120-1).

Ao recusar-se a escrever numa língua de impostura, Llansoldá impulso a um percurso de escrita que se assemelha à trajetóriade Témia, ou “a rapariga que temia a impostura da língua”, figuraque aparece em alguns livros da autora, como Um beijo dado maistarde.

Contrariando os conhecidos protocolos romanescos, o seu “tex-to não avança por desenvolvimentos temáticos, nem por enredo,mas segue o fio que liga as diferentes cenas fulgor” (FP, 140). Se-guindo um dos mais fortes e constantes fios, chegamos a uma fas-cinante cena fulgor, que se liga à procura da língua – a língua comosujeito e objeto dessa escrita. “A língua, como sujeito do ‘olhar’ e da‘meditação-contemplação’ em que essa escrita diz fazer-se”12.

Ao partir de Portugal para ir viver na Bélgica, Llansol acolhe eleva consigo uma herança de língua, bem inalienável:

não possuía do passado senão uma línguadeque nada, nem ninguém, conseguiriam separar-me.

E, hoje, sei que essa língua se tinha tornadoo meu único ponto firme – a minha âncora: o meureal; o nó de certeza do meu corpo com o mundo(LL1, 126).

A potência do texto de Llansol alimenta-se da fecundidadedo encontro: um lugar e uma língua, em sobreimpressão: a língua

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da “ocidental praia lusitana” e as planícies da paisagem belga. Otítulo do texto “O extremo ocidental do Brabante” (LL1, 124) fala-nos admiravelmente desse fértil encontro, constituindo um “aqui”poderosamente sobreimpresso. Paisagem híbrida, compósita,includente, em que os nomes dos sítios geográficos não assinalamfronteiras demarcadas, mas pontos de apoio, a necessária e pre-cária rede para que o texto não se esvaia.

A escrita-viagem põe “aqui” em movimento (vale lembrarque “aqui” é o lugar de inserção da pátria na épica camoniana, eque, na Mensagem de Pessoa, Ulisses “aqui” aportou):

eu vim aqui para me esquecer de como secontam histórias e se constroem narrativas, poisque recorrer sempre a essa escrita enfraquece avigilância da memória e apaga a imaginação doespírito (SS, 68).

Com a sutileza da língua do contorno, o texto de Llansol “cir-cula para romper o que está preso” (FP, 78), procurando desfazernós paradigmáticos ligados à sua cultura de origem: “queria desfa-zer o nó que liga, na literatura portuguesa, a água e os seus maio-res textos. Mas sei que este nó é muito forte, um paradigma fron-talmente inatacável” (FP, 32).

Para trazer à fala o fio de água de si, Llansol sabe que háescolhos a contornar: “Dobra a tua língua, articula, / Dobra a tualíngua, articula (FP, 8). Diferentemente de Clarice, que “querianão ter aprendido outras línguas” só para que a sua “abordagemdo português fosse virgem e límpida” (DM, 99), a escritora portu-guesa gostaria de dobrar “a Língua Portuguesa com o conheci-mento de outra língua” (FP, 20).

Ao enunciar o desejo de escrever em português com o co-nhecimento de outra língua, Llansol talvez se refira ao bilingüismo(o francês e o português), presente sobretudo em Finita (Diário2), ou ainda ao impulso de fazer correr a língua de Camões, Pes-soa e de outros poetas, fontes gotejantes de escrita:

Eu escrevo em língua estrangeira dentro dalíngua de Comuns [um dos nomes de Camões naficção de Llansol] e essa língua não tem um terri-tório já povoado, só para ela (SS, 101).

O meu país não é a minha língua, mas levá-la-ei para aquele que encontrar (FP, 47).

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Em nome de um “poder de língua” (FP, 8), o texto de Llansolexercita-se na lição da desescrita. A travessia de territóriosenclausurados, de formações sistemáticas, pressupõe deslocamen-tos com sentido, lentas mutações. O texto mutante ou romance tex-tualmente abalado afasta-se do “grande romance” e participa dabatalha “por uma literatura menor”, isto é, uma literatura que nãopretende tornar-se maior, mas que, revolucionariamente, afirma asua singularidade no seio da “grande literatura” ou da literaturaestabelecida13.

Tal como a escrita de Clarice, a ficção de Llansol perturba aordem estabelecida, desloca o leitor da inércia do texto previsível oufacilmente “digerível”, do conforto e da segurança do lugar-comum,para a instabilidade de um lugar comum – o da comunidade dosdiferentes.

São João da Cruz, Tomás Müntzer, Pégaso, Coração do Urso,Nietzsche, Eckhart e tantas outras figuras participam da comunida-de instável e instabilizante baseada na diferença dos diferentes, noesquecimento ativo: “um grande crepúsculo inundava a escrita, etodos os factos e acontecimentos se inscreviam num contexto demáxima originalidade” (RV, 44).

A comunidade errante que atravessa o espaço ficcional deLlansol compõe-se não apenas de figuras humanas (históricas, ima-ginárias, míticas, lendárias...), mas também de animais, como o cãoJade, que corre nas cenas fulgor de Amar um cão, e de plantas,como Prunus Triloba, o arbusto que floresce em texto em Finita.

Participar dessa comunidade heteróclita, essencialmenteinacabada, é correr o risco de perder-se, de devir-anônimo. O con-vívio de personagens que, do ponto de vista do referente histórico,remetem para épocas e nacionalidades distintas, configura uma es-pécie de transnacionalidade. De maneira análoga, a sobreimpressãode espaços e tempos diversos constitui o síncrono, a criação de umespaço-tempo sincrônico para o qual convergem fragmentos textu-ais provenientes de diversas ordens e mundos, aproximando-se da-quilo que Foucault denominou “heterotopia”:

As utopias consolam (...) As heterotopias in-quietam, sem dúvida porque solapam secretamentea linguagem, porque impedem de nomear isto eaquilo, porque fracionam os nomes comuns ou osemaranham, porque arruinam de antemão a “sin-taxe” (...); as heterotopias dessecam o propósito,estancam nelas próprias, contestam, desde a raiz,

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toda a possibilidade de gramática; desfazem osmitos (...)14.

Ler Llansol, tal como ler Clarice, é, portanto, aceitar o“pacto do inconforto” (LL1, 12), pois que, para acercar-se damorada do selvagem coração da vida/da língua, é preciso primeiropôr-se a caminho. Travessia sempre arriscada, de um perigo mor-tal, mas apesar disso, ou por isso mesmo, tão fascinante:

a palavra “inconforto” é todavia capciosa,indica incómodo e coração ansioso, à espera deum amigo sereno. Devo reconhecer que o meutexto, ao deixar inseguro o sujeito que enuncia, sedirige, de facto, ao ansiar do coração, e o colocana sombra da dúvida. E, se o coração persiste emler, é porque há nele um fulgor estético que ilumi-na o próximo passo, e o faz apoiar no detalhe justoe irrecusável (LL 1, 12).

Amando através do “coração da inteligência” (CA, 91), aescrita de Llansol deseja a figura do leitor, deseja o seu desejo,causa amante. Com o ansiar do coração pelo texto de Llansol,reencontramos aqui o texto de Clarice, escrita-pulsação do “pen-sar-sentir” (AV, 91) “à espera que o coração atenda”. O laço queas une é o fulgor estético que ambas perseguem, oferecendo àqueleque persistir na leitura de seus textos duas das mais belas traves-sias da Língua Portuguesa literariamente trabalhada. A essa du-pla promessa de felicidade também chamamos literatura.

Referências bibliográficas

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menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.DOUGLASS, Ellen. A busca feminista em Perto do coração selva-

gem. In: GOTLIB, Nádia Batella (org.) A mulher na Literatura. Belo Hori-

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1979.SANTOS, Roberto Corrêa. Artes de Fiandeira. In: LISPECTOR, Clarice.

Laços de família. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991, p. 5-14.

Notas1 Obras de Clarice Lispector referidas neste trabalho e siglas usadas

para as citar: Água Viva. 5.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980 (AV); ADescoberta do mundo. 3.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992 (DM);Felicidade Clandestina. 7.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991 (FC).

2 PESSOA, F., 1977, p. 226. “Procuro despir-me do que aprendi, /Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram / e raspar atinta com que me pintaram os sentidos”.

3 SÁ, Olga de, 1979, p. 106.4 CANDIDO, A., 1977.5 DOUGLASS, E., 1990, p. 77.6 SANTOS, R. C., 1991, p. 6-7.7 CAL, E. G., 1969, p. 51. “O estilo literário vai muito além do meramen-

te verbal. Ter um estilo não é possuir uma técnica de linguagem, masprincipalmente ter uma visão própria do mundo e haver encontrado umaforma adequada para expressar essa paisagem interior”.

8 A expressão foi extraída de Um falcão no punho, de Maria GabrielaLlansol. (cf. Nota 10)

9 MEIRELES, C., 1968, p. 487-8. Poema “Elegia a uma pequena borbo-leta”.

10 PERRONE-MOISÉS, L. ,1990, p. 177.11 Obras de Maria Gabriela Llansol referidas neste trabalho e siglas

usadas para as citar: Depois dos pregos na erva. Porto: Afrontamento,1973 (DPE); A restante vida. Porto: Afrontamento, 1983 (RV); Causaamante. Lisboa: A Regra do Jogo, 1984 (CA); Um falcão no punho. Diário1. Lisboa: Rolim, 1985 (FP); Finita. Diário 2. Lisboa:Rolim, 1987; Da sebeao ser. Lisboa: Rolim, 1987 (SS). Amar um cão. Sintra: Colares, 1990; Umbeijo dado mais tarde. Lisboa: Rolim, 1990 (BDT). Lisboaleipzig 1. Lis-boa: Rolim, 1994 (LL1).

12 ABREU, M. F. , 1993, p. 8.13 DELEUZE, G., & GUATTARI, F., 1977, p. 28.14 FOUCAULT, M. 1987, p. 7-8.

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Cada momento revolucionário impõe a ta-refa de transgredir a história dos vencedores, oudesarticulá-la, de imobilizar o seu fluxo, de ex-trair do seu continuum os passados cativos, dedespertar de suas sepulturas os mortos que de-pendem de cada presente, para que a vitória dosopressores não seja definitiva. 1

O Memorial do convento traz à cena o texto da históriaoficial para desconstruí-lo e reorganizá-lo, sob a luz do realismocrítico-social, fundando o lugar do ubi-sunt, quando faz dialoga-rem na ficção os discursos da história e da literatura.

A ficção corrói a versão hegemônica consagrada pela histó-ria oficial, enquanto discurso do dominador, fazendo da literatura ooutro da história. Se por um lado, a desmistificação instauradapelo texto, desautorizando a versão oficial, se efetiva por meio deuma atitude iconoclasta em relação aos eventos ocorridos no pas-sado, a narrativa, como escombro, não pode deixar de veicular avisão melancólica própria da alegoria histórica. Walter Benjamindiz que “a história é sempre a história do vencedor”2 . Mas a suarecriação pela e na literatura confere à escritura o estatuto deverdade histórica possível. É no entrelugar da história e da litera-tura que se opera a transformação efetivada por Saramago.

No romance, o passado não se faz letra morta e nisto residea revisão crítica da história, já que é com os olhos do presente queo passado se organiza3. O autor subverte a noção de temporalidade.Mas ao se voltar para o passado, os olhos se fixam no futuro e,

Um olhar sobre O memorial doconvento - Saramago, primeiro

Prêmio Nobel da Língua Portuguesa

Marina Machado Rodrigues,da UERJ.

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tecendo o futuro, o narrador desconstrói o passado. Ao presente sócabem olhos. O devir, no entanto, pode surgir como presente na vozda enunciação que insere comentários ou acontecimentos desloca-dos do contexto narrado, como a alusão aos efeitos da bomba atômica:

ontem se derrubavam muralhas e hoje sedesmoronam cidades, ainda ontem se extermi-navam países e hoje se rebentam mundos, aindaontem morrer era uma tragédia e hoje é banali-dade evaporar-se um milhão, 4

Ideologicamente, o Memorial do convento inscreve a críticae a corrosão de uma estrutura que tem sido responsável pela manu-tenção dos privilégios de poucos e da conseqüente exploração damaioria. Nada passa desapercebido aos olhos do narrador que temsob a mira os poderes institucionalizados e, como um franco atira-dor, dispara em todas as direções. Pela ótica do narrador, por exem-plo, surpreende-se a corrosão da liturgia e, por extensão, da crençano milagre, do alcance da oração, que aliás como quase todo ocampo do sagrado se acha minado pela ironia e pelo deboche:

(...) esse é o mistério das orações, lançamo-las ao ar com uma intenção que é nossa, mas,elas escolhem o seu próprio caminho, às vezesatrasam-se para deixar passar outras que tinhampartido depois, e não é raro que algumas seacasalem, assim nascendo orações arraçadas oumestiças, que não são nem o pai nem a mãe quetiveram, quando calha brigam, param na estra-da a debater contradições e por isso é que sepediu um rapaz e veio uma rapariga (...)5

O processo de desmistificação se opera em todos os níveis,incluindo o discurso ficcional, já que a Literatura, diferentementeda História, não se prende a “um único tipo de verdade”, comose vê adiante:

Este diálogo é falso, apócrifo, calunioso etambém profundamente imoral, não respeita otrono e nem o altar. 6

A propósito do trono, o narrador procede à dessacralização

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em nível metafórico e metonímico: tanto da instituição - quandodenuncia a penúria, a ignorância e a opressão do povo - quanto deseu representante, como nesta passagem do texto em que se refe-rindo aos maus ares que se respiravam no paço devido à morte doirmão da rainha e à má saúde da mesma acrescentou, em lingua-gem ambígua:

os ares não andavam bons no paço, comoainda agora se averiguou ao dar el-rei um flatorijo de que pediu confissão. 7

Ou ainda, de uma só vez, atacando trono e altar:

(...) de el-rei não falemos, que sendo tão moçoainda gosta de brinquedos, por isso protege opadre, por isso se diverte tanto com as freiras nosmosteiros e as vai emprenhando, uma após outra,ou várias ao mesmo tempo, que quando acabar asua história se hão de contar por dezenas os filhosassim arranjados, coitada da rainha, que seriadela se não fosse o seu confessor António Stieff,jesuíta, por lhe ensinar resignação (...)8

Saramago faz do humor um poderoso instrumento de corro-são. Através do riso, como já ensinara Bergson, “a sociedade sevinga dos excessos cometidos contra ela”, e é contra o poder insti-tuído que o autor descarrega suas baterias. Como Blimunda, a dosolhos excessivos, os olhos do narrador tudo vêem e, se essa via doavesso as pessoas, este do avesso podia ver e virar as verdades.

A tessitura do romance se faz da movência dos olhos e dossignificantes dos diversos olhares em movimento. Assim, o narrador,a cuja subjetividade se submetem todos os personagens, cria umanova sintaxe textual. À Blimunda era dado ver por dentro, aonarrador é dada a possibilidade de puxar os cordéis.

O romance privilegia os pequenos, que têm sua ação alargada,em função das relações simbólicas que o texto engendra e, emcontrapartida, o estrato palaciano é vitimado por toda sorte deataques que desfazem a aura forjada pela história9 . Ainda se uti-lizando da metáfora dos olhos, o narrador estabelece a diferençaentre ver e olhar; este último, como tradução da alienação do povo:

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este é o dia de ver, não de olhar, que essepouco é o que os olhos tendo, são outras quali-dades de cegos.10

Aliás, por serem cegos, é que o narrador denuncia asinjustiças sociais:

esta cidade, mais do que todas, é uma bocaque mastiga de sobejo para um lado e de escassopara outros,11

Cabe também por este motivo outra advertência do narradorde que:

usa cada qual os olhos que tem para ver oque pode ou lhe consentem, ou apenas partepequena do que desejava, quando não é porsimples obra do acaso. 12

É a mesma voz que desmistifica a decadência dos costumesnuma sociedade, cujos valores morais se apóiam na ambigüidadedas ações:

é uma terra de ladrões, que olho vê, mãopilha, e sendo a fé tanta, ainda que nem semprerecompensada, maior é o descaro e a impiedadecom que se salteiam as igrejas.13

O olhar do narrador se volta ainda para a justiça dos homens,que, parcial, defende os ricos e pune os pobres, apontando asiniqüidades de que são vítimas os que “são outra qualidade decegos”. Além de vendas nos olhos, adverte os leitores de que ospratos da balança da Justiça podem pender para um dos lados,quando se trata de apadrinhados ou poderosos, apontando a cor-rupção institucional:

a questão é ter padrinhos que desculpem ohomicídio e mil cruzados para pôr na balança,nem é para outra coisa que a justiça a leva namão...14

Também a justiça divina traz os olhos vendados, pois,

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morreu afogado D. Miguel e se salvou D.Francisco, quando honrada a justiça seria ocontrário.15

“O mundo de cada um é os olhos que tem”16, entretanto, odesvio do olhar implica um desvio da intenção. E é deste modoque o narrador parece justificar os excessos a que são submetidoshomens e animais na construção do convento de Mafra. Não sesabe se Deus não está olhando, ou se estará desviando os olhos depropósito, já que “a obra é para a glória e serviço dele mesmo”17eos fins justificam os meios, concluiríamos nós, leitores.

A narrativa constrói a imagem de Deus à semelhança dohomem, atribuindo àquele a natureza deste. Como opera a inver-são da ordem, a narrativa coloca em questão a própria essênciada divindade, segundo a ótica teológica cristã, já que tal procedi-mento se inscrevia somente no âmbito das divindades pagãs. Omesmo recurso serve à corrosão da aura do sagrado, como nodeslocamento herético a que tem lugar entre santos e homens:estes castigam aqueles, que não se querem ver despojados deseus bens materiais.

Em relação à Igreja, à Religião e ao clero, o processo dedessacralização atinge o seu ponto mais crucial, não escolhesse aficção o período negro da história de Portugal em que a Inquisiçãoreinou absoluta. Assim, em referência à Igreja e à Companhia deJesus, o discurso do narrador assume o tom herético que perpas-sa toda a narrativa:

Vem Santo Domingo e Santo Inácio, ambosibéricos e sombrios, logo demoníacos, se isto nãoé ofender o demônio. 18

A paródia19 é outro recurso utilizado, por exemplo, na derru-bada de mitos caros à cultura portuguesa. No romance deSaramago, funciona como metonímia do processo de criação. Éatravés da paródia que o narrador atualiza a dicotomia identidade/diferença entre o Velho do Restelo e um homem do povo, que émorto ao explicitar a forma cruel empregada pelo poder no recru-tamento dos trabalhadores para a construção do conventofranciscano. O autor, ao reler o texto camoniano, insere-o em novacircunstância, deslocando-lhes significante e significado, já modi-ficados pelo olhar que um outro tempo autoriza:

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(...) acompanham-nos até fora da vila asinfelizes, que vão clamando, qual em cabelo, Ódoce e amado esposo, e outra protestando, Ófilho, a quem eu tinha só para refrigério e doceamparo desta cansada já velhice minha, não seacabavam as lamentações, tanto que os montesde mais perto respondiam, quase movidos de altapiedade, enfim já os levados se afastam (...) en-tão uma grande voz se levanta, é um labrego detanta idade já que o não quiseram, e grita subi-do a um valado, que é púlpito de rústicos, Óglória de mandar, ó vã cobiça, ó rei infame, ópátria sem justiça, e tendo assim clamado, veiodar-lhe o quadrilheiro uma cacetada na cabe-ça, que ali mesmo o deixou por morto.20

O trecho explicita a dicotomia sublime/grotesco ao mesmotempo em que traz a oposição passado/presente, afirmada na de-gradação do velho camoniano. Este se vê transformado numlabrego rústico, cujo púlpito é um valado e, ao invés do respeitoque autoriza o “saber só de experiências feito”, inspira o ódiodos homens que estão a serviço do rei. O mito se desfaz em nomeda postura política assumida pelo discurso da enunciação.

É também pela via da paródia que o narrador procede àdessacralização da liturgia, ao tomar a letra da oração ao Pai esubvertê-la em dois níveis -“mãe nossa que na terra estais” 21;ou através do aforismo “Pater noster que non estis in coelis”22

– em que o efeito de corrosão é muito mais significativo, já que ocontraste provocado pela citação latina – que confere maior auto-ridade à sentença – seguida da partícula non, nega e desautorizao seu sentido transcendente.

A narrativa explicita o contraste existente entre a posição desuperioridade de que goza a Europa culta e rica e a subserviênciade Portugal, pobre e analfabeto, que é desnudado aos olhos doleitor segundo a ótica do poder. Assim é o povo português, segun-do a visão de seu rei:

(...) e desta pobre terra de analfabetos, derústicos, de toscos artífices não se podem esperarsupremas artes e ofícios, encomendem-se à Euro-pa, para o meu Convento de Mafra, pagando-secom o ouro de minhas minas e mais fazendas, osrecheios e ornamentos, que deixarão, como dirá

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o frade historiador, ricos os artífices de lá, e a nós,vendo-os, aos ornamentos e recheios, admirados.De Portugal não se requeira mais que pedra, tijo-lo e lenha para queimar, e homens para a forçabruta, ciência pouca23

Neste mesmo tom, denuncia ironicamente a importaçãoindiscriminada de modelos culturais europeus. A crítica àsupervalorização do elemento espúrio na cultura portuguesa sereflete, por exemplo, no pedido de Baltasar a S.Bento:

que mal tem que peça um soldado a S. Ben-to uma inglesa ao menos uma vez, para não mor-rer ignorante.24

Como o fogo prometeico, o saber, fruto proibido, é risco certoem qualquer tempo. Assim, a chama sagrada para Baltasar acabapor implicar sua própria condenação. Saber além, metáfora da cons-ciência não-alienada, é delito não tolerado pela Inquisição ou peloPoder em qualquer tempo. Baltasar queimou na fogueira, no passa-do, como tantos outros; no presente, o narrador sabe que a fogueirapode assumir formas bem mais sofisticadas, e que este tipo de faltacertamente não ficará impune. O tratamento de corrosão dispensa-do à Inquisição se faz também pela via da ironia, em discurso ambí-guo, que acaba por chamuscar as imagens de Deus, a dos santos ea de uma certa prática religiosa, comum ainda hoje:

(...) ao todo cento e trinta e sete pessoas,que o Santo Ofício, podendo, lança as redes aomundo e trá-las cheias, assim peculiarmente,praticando a boa lição de Cristo quando Pedrodisse que o queria pescador de homens.25

Mas nem só de desmistificação se faz um texto. O memorialdo convento também conta a história de amor entre Baltasar eBlimunda que, com Frei Bartolomeu, formam a trindade humana.A tensão criada pelo confronto de posturas destes personagenscom diferentes elementos dentro da narrativa possibilita, além dacrítica do real, a instauração do que o texto constrói como verda-de. É, então, a partir da metáfora das vontades, que a enunciaçãorecusa à religião o papel messiânico que a própria sociedade lheconfere, ao alimentar a cultura do milagre, pois da vontade e

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pertinência dos três personagens depende o vôo, metáfora da li-berdade. À fé se opõe outro mito. Se o corpo de Baltasar seextingue, a vontade sobrevive ainda e se junta à de Blimunda, seucomplemento exato. O texto valoriza a crença no poder dos ho-mens e a possibilidade de construção do futuro, quando recusa aorigem divina aos seres humanos – já que a alma não podia servista por olhos que enxergavam por dentro. Por isso, as vontades,sim, estas existiam tão concretamente que somente a partir delasse poderia construir o sonho de liberdade dos três personagens. Eneste ponto se depreende a visão melancólica do texto, quando sepercebe que o sonho se restringe a três pessoas. As outras nuncao tiveram, ou ainda não o acreditam possível.

Ao milagre da salvação representado pela trindade divina, anarrativa apresenta a opção da trindade humana, como agencia-dora da mudança. Mesmo quando dois dos três esteios são venci-dos, o terceiro resiste, com a vontade redobrada, pois somada à deSete-Luas está a de Sete-Sóis. A esperança subsiste então.

A visão parodística da história pressupõe a criação de umoutro texto em que são construídas novas verdades. Na ficção, ahistória é repensada a partir da crítica ao poder, à sociedade e aseus valores. Os procedimentos utilizados pelo autor – como aparódia, os aforismos, a ironia, o deboche desbragado – corroem aversão oficial, questionando os valores das velhas estruturas res-ponsáveis pela construção de um imaginário de época que, aointrojetar as imagens do passado, deixou o futuro sem perspectiva.

Ao repensar e criticar a história e a cultura portuguesas,Saramago desautoriza o discurso hegemônico e pela via da dife-rença possibilita a busca da identidade de seu povo, deixando-nosentrever o que poderia ter sido mas não foi.

À imagem e semelhança de Blimunda, o autor possui olhosque sobejam. Contudo, a direção de um certo olhar, ao implicar odesvelamento, revela também a “amargura que é o olhar dos vi-dentes”.26

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Notas1ibidem, p.212BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política, p.203 Segundo Nietzsche “o senso histórico exagerado levado ao seu extre-mo lógico erradica o futuro porque destrói as ilusões e priva as coisasexistentes da única atmosfera em que podem viver”. Ao contrário, àLiteratura contemporânea cabe a possibilidade de virar do avesso aHistória, como uma forma de engendrar o futuro.4SARAMAGO, J. O memorial do convento, p.2865 Ibidem, p.71/726ibidem, p.2837ibidem, p.49/508 Ibidem, p.919 Em O Memorial do Convento, o ponto de vista da narrativa parececoincidir em parte com o conceito do historicismo realista, segundo oqual, de acordo com Hayden White, “a tarefa do historiador era menoslembrar aos homens suas obrigações com o passado que impor-lhes umaconsciência da maneira como o passado poderia ser utilizado para efetuaruma transição eticamente responsável do presente para o futuro”, p. 6110SARAMAGO, J. O memorial do convento,p.7911ibidem,p.2712ibidem, p.8413ibidem, p.2014ibidem, p.18915ibidem, p. 19016ibidem, p.27217ibidem, 21718ibidem, 32019 “A paródia se constrói como desmistificadora do discurso realista quecriou a ilusão de refencialidade, a suposta ligação da narrativa com arealidade. A ficção contemporânea liberta-se, assim, da pretensão daverdade e, minando a realidade, torna-se mais próxima dela, afirmandouma cultura e definindo uma identidade.”20 Saramago,idem, p.29321 ibidem, p.16122 ibidem, p.15723 ibidem, p.22824 ibidem, p.4425 ibidem, p.9526 ibidem, p.166

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Muita gente se pergunta como se faz um dicionário. A crençapopular é a de que quem neles trabalha “sabe tudo”. Obviamente,porém, tal coisa nem possível seria. A lexicografia é apenas o traba-lho de lexicógrafos, não necessariamente super-homens intelectu-ais. É técnica desenvolvida em muitos anos de labor humano. Bas-taria referir que o primeiro dicionário conhecido foi produzido emEbla, um dos grandes centros urbanos da cultura proto-síria, há nomínimo 4.300 anos.

Os lexicógrafos são basicamente redatores generalistas quedominam as regras da metalinguagem empregada no fazer de dici-onários, enciclopédias e afins. É por essa razão que, para elabora-rem tais obras de referência, carecem necessariamente da contri-buição de um conjunto de especialistas das mais diversas áreas dosaber e do fazer humanos, contingente capaz de suprir as lacunasde informação técnica que ocorram nas definições.

As enciclopédias, os glossários, os dicionários, tais como exis-tem hoje, são uma atividade de complexa estrutura, não podendomais ser obra de um grupo singelo de redatores auto-suficientes, pormais abarcantes que sejam os seus conhecimentos. Humanistasdesse tipo não mais existem em nosso mundo, um tempo em que arealidade se tornou de tal maneira multímoda no que respeita à suavariedade e extensão, e em que as suas prospecções verticais mul-tiplicaram-se tanto e atingiram tamanhas profundidades, especial-mente no campo das ciências e da tecnologia, que uma visãoconspectiva absoluta é impossível, a não ser, de modo não mais queaproximativo, como fruto de um vigoroso trabalho colegiado.

Por isso, um grande dicionário, como o Third New International

Tupinismos, africanismos,asiaticismos e o Dicionário

Houaiss de Língua Portuguesa

Mauro de Salles Villar,do IAH.

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Webster, lançado nos Estados Unidos em 1961 com 460.000 en-tradas, contou com uma força-tarefa de 1 editor-chefe, 13 redatoresassociados, 58 redatores assistentes, 66 assistentes editoriais, 31assistentes de secretaria e 343 especialistas externos utilizadoscomo consultores. Em outras palavras, o numeroso grupo editorialinterno teve como adjutório forçoso o trabalho conexo de centenasde especialistas, dentro e fora dos Estados Unidos, para levar acabo a sua missão.

Nos dicionários ditos de língua geral, a base das averbaçõesé de pala-vras da língua de “nível zero” – a não científica ou técnica,a língua comum do dia-a-dia e a literária. Nesse campo, a compe-tência básica é dos lexicógrafos – lingüistas, gramáticos e filólogos.Mas o contingente numericamente funda-mental das línguas mo-dernas é composto pela terminologia, sistema de palavras empre-gadas numa disciplina particular (por exemplo, a terminologia bo-tânica, ou da marinharia, ou da matemática). Foi nessa área queexplodiram quantitativamente as línguas de cultura no século XIX eno XX, especialmente aquelas que contam com grande desenvolvi-mento nas tecnologias de ponta. Todavia, como a nomenclatura téc-nica é crescentemente universal, cada neologismo criado por forçade nova tecnologia ou descoberta é também, pelo menos potencial-mente, palavra nova de qualquer outra língua cujos falantes delavenham a se utilizar.

Para se ter uma idéia desse fenômeno de expansão lexical,comparo os números da Língua Portuguesa na medievalidade comaqueles de hoje. Calcula-se que o português medieval contasse comcerca de 15 mil vocábulos. Em meados do século XVI, com a ex-pansão marítima, esse total estaria entre 30 e 40 mil. No final doséculo XIX, o registro em dicionários atingia a casa das 80-90 milunidades léxicas. Saltando daí para o início da década de 1980, ocorpus do Vocabulário Ortográfico da Academia Brasileira deLetras já registra cerca de 360 mil entradas.

Mas a dicionarização ou a vocabularização não representam ocômputo exato do número de palavras de uma língua. Se o OxfordEnglish Dictionary, essa catedral da lexicografia internacional, trazregistradas mais de 615 mil unidades da língua inglesa, não se penseque o seu léxico se esgota em tal quantitativo. Muito longe disto.

Os projetos de lexicografia, para se comporem, fazem umaescolha dentre o extensíssimo material com que conta a língua, sejadeterminando no tempo o período fechado sobre o qual focalizarãoo seu esforço de pesquisa, seja pré-fixando o número de entradas

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sobre as quais irão versar. Os dicionários, especialmente os de lín-gua geral, jamais se utilizam de modo exaustivo das nominatasterminológicas. Nem poderiam fazê-lo. Qualquer língua modernaconta, não com centenas de milhares de vocábulos, mas com mi-lhões de palavras e sintagmas potencialmente dicionarizáveis. Cal-cula-se, por exemplo, que só os vocábulos e locuções ligados à me-dicina girem em torno de um total de 600 mil unidades. A termi-nologia química e farmacológica atinge quase 2 milhões de vocábu-los, total excedido pela zoologia, pois só a entomologia tem 2 milhõesde insetos classificados. Um registro abarcante da botânica uni-versal não seria menos titânico. E se é verdade que a maior partedas espé-cies, gêneros, classes, tribos etc. dessas classificações te-nha denominação ape-nas no latim científico, seus nomes são todosvernacularizáveis e, portanto, registráveis em dicionários, mesmonaqueles de língua geral. E pensar que apenas 13% das espécies dabiodiversidade da Terra foram classificados até agora...

Em resumo, quanto à linguagem especial do tecnoleto, os lexi-cógrafos têm mesmo de se valer do conhecimento de profissionaisde cada área. Quem trabalha em lexicografia saberá padronizar, noestilo do dicionário que estiver fazendo, o material técnico recebido,mas fica dependente da qualidade, exatidão e utilidade das informa-ções prestadas pelo colaborador especialista.

Em línguas bem estudadas, o papel do lexicógrafo é aprofundara pes-quisa; é procurar exceler na definição dos conceitos dasunidades léxicas, tentando levá-las a uma eficácia e precisão cadavez maiores. É também incluir, com critério, neologismos e aneologia ligada às acepções. Se a questão for de etimologia ousobre a história de um vocábulo, é preciso ir além do que anteshavia sido feito.

A lexicografia, como registro da extensão horizontal e verti-cal das vivências e cogitações de um povo através de sua língua, éum processo de agregação, no tempo, de esforços, pesquisas eresultados, um somatório de conquistas que se acumulam umassobre as outras. Um grande dicionário espelha e baliza a expan-são e os limites do pensamento e das conquistas materiais dosseus falantes. Por esta razão, tais obras são tão importantes paraa política cultural dos povos.

A Espanha, por exemplo, cedo adiantou-se às demais línguaseuropéias na intuição da importância dos dicionários com o seuTesoro de la Lengua Castellana y Española, de Sebastián deCovarrubias. Publicado em 1611, ele precedeu de um ano o célebre

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Vocabolario degli Accademici della Crusca, de Florença, edita-do em Veneza. No século seguinte, a Espanha foi além com o pri-meiro Borbón, Filipe IV, monarca esclarecido que em 1723 destinoupor decreto uma renda anual, obtida por um imposto sobre o tabaco,para a publicação do Diccionario de Autoridades da Real Aca-demia Española, monumento da lexicografia desse país.

Na França, a consciência da importância decisiva do idiomacomo uma espécie de “cola social” e ferramenta política de hegemoniacultural é patente tanto historicamente quanto no conjunto de meiose financiamentos postos à disposição de lexicógrafos para a elabo-ração do Trésor de la Langue Française em 16 alentados volu-mes – e isso numa língua que já contava com excelentes dicionários,como os Littré, os Larousse, os Robert e os da editora Hachette,para citar apenas quatro bons filos lexicográficos.

Mas que fazer quando aspectos da língua sobre a qual umdicionário versa se encontram mal estudados, quando houve inter-rupção nos esforços de compreendê-los, pesquisá-los e registrá-los? Que fazer quando as informações especializadas sobre quebasear os esforços do registro lexicográfico são por vezes poucoconfiáveis, confusas, a exigir estudos que as retifiquem?

Os dicionários e enciclopédias congeminam em si duas nature-zas: são produtos culturais e bens de comércio. Por esse segundomotivo, sobre eles in-cidem as ubíquas pressões por produção, pra-zos, contenção de custos, redução de grupos de trabalho, modera-ção de pesquisa. Em outras palavras, acaba por faltar tempo para areflexão mais aprofundada, para as verificações mais minuciosas,para as leituras superpostas do material trabalhado, a fim de queocorra uma filtragem dos deslizes advenientes do forte ritmo daprodução. Os dicionários, gravados por tais exigências alheias aoseu processo, passam en-tão a se apressar, repetindo-se, copiandodefinições, reproduzindo velhas soluções propostas para etimologias,replicando tradicionais procedimentos técnicos, sem ânimo ou pos-sibilidade de sugerir avanços, estabelecer características mais pes-soais, pesquisar desenvolvimentos. O perigo disso é o de se acabarfazendo sempre o mesmo dicionário, apenas cosmeticamente alte-rado, com permanência de equívocos definitórios e reinclusão dasnefastas palavras de papel, que é como chamamos aquelas quese encontram em vocabulários, léxicos e em outros livros de autori-dade similar, mas sem curso real na língua – palavras originárias deerros ortográficos, tipográficos, ou resultantes de má leitura de origi-nais ou de pronúncia incorreta.

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Dentro desse quadro, vejamos a situação dos tupinismos,africanismos e asiaticismos no Dicionário Houaiss da LínguaPortuguesa, obra em trabalhamos há nove anos (mais uma inter-rupção de cinco por motivos financeiros) e que será entregue aoeditor para produção no Brasil em agosto do ano 2000.

Inicio pelo relato do que entendem por tupi algumas obras dereferência e dicionários que tratam da questão no Brasil.

O Tupi é um tronco lingüístico que faz parte do Macro-FiloAndino-Equatorial. Na década de 1970, para a antropologia brasi-leira, ele incluía sete famílias: a Família Tupi-Guarani, a famíliaMundurukú, a família Jurúna, a família Arikêm, a família Tuparí, afamília Ramarâma e a família Mondé – cada uma destas com suaslínguas e dialetos específicos.

A palavra tupi denota, igualmente, uma língua específica dafamília lingüística Tupi-Guarani. A constituição desta era, no citadoperíodo, descrita como incluindo: o tupi (subdividido em tupi antigoou tupinambá e o tupi moderno ou nheengatu); o guarani (subdivi-dido em guarani antigo e guarani moderno, o qual englobava o Kaiwá,o Nhandéva, o Mbiá); o Xetá; o Tenetehára (que incluía o Guajajárae o Tembé); o Asurini e o Suruí do Tocantins (Mudjeretíre); oApiaká do Tapajós; o Tapirapé; o Kamayurá; o Kawahib (queabarcava o Parintintin, o Paranawát [Pawaté, Takwatép, Ipotewat],o Wiraféd, o Tukumanféd, o Diahói, o Tenharín [boca negra], oJúma, o Kayabí; o Urubu-Kaapór (que compreendia o Manajé[Amanajé], o Anambé, o Turiwára); o Oyampi, o Emeriõ (Émerillon)e o Karipúna do Uaçá; o Awetí; e o Mawé (Sataré).

O dicionário em que trabalhamos hoje registra o Tronco Tupicomo compreendendo, no Brasil, dez famílias vivas distribuídas por14 estados. Nosso texto descreve o Tupi-Guarani como a famílialingüística do Tronco Tupi com a maior distribuição geográfica noBrasil, estendendo-se por 13 estados e compreendendo 20 línguasvivas que se caracterizam por pequena diferenciação interna.

O Guarani é uma língua da família lingüística tupi-guarani fala-da pelo grupo indígena que habita Mato Grosso do Sul, e do Rio deJaneiro ao Rio Grande do Sul, onde atualmente se divide nossubgrupos kaiwá, mbiá e nhandéva.

Vejamos, porém, o que deixaram registrado alguns tupinólogosbrasileiros sobre a questão.

Para o celebrado professor sul-rio-grandense Frederico G.Edelweiss, no ensaio denominado “O Indianismo ao Tempo do Im-pério” (janeiro de 1955), constante da abertura da 4ª edição de O

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Tupi na Geografia Nacional, de Teodoro Sampaio, o tupi é a“língua fixada pelos jesuítas no primeiro século da catequese” – otupi dos séculos XVI e XVII, ouvido diretamente dos indígenas des-se grupo étnico. A língua geral ou nheengatu colonial, que elechama também de brasiliano, é o “desenvolvimento do tupi entreos mestiços e no intercâmbio, sob a influência da Língua Portuguesae da colonização”. “É um tupi na primeira fase da sua progressivadecadência, da qual nem textos possuímos.” Nheengatu ele classi-ficava de “língua geral moderna, no estado em que ficou reduzida nabacia amazônica”. Em Tupis e Guaranis (1947, p. 32), registrouque tal dialeto “nunca foi falado por qualquer tribo não aculturada.”

Teodoro Sampaio chamava de tupi da costa ao tupi conside-rado genuíno, tupi amazônico ao nheengatu e tupi-guarani aoguarani. Registra Edelweiss (ob.cit.) que Sampaio abeberou-se noDicionário Português-Brasiliano e Brasiliano-Português, léxi-co compilado por jesuítas que, no seu ponto de vista, versa nãosobre o tupi, mas sobre um estádio intermediário do tupi, modifican-do-se em direção ao nheengatu (embora contenha também peculia-ridades guaranis isoladas). As etimologias de Teodoro Sampaiomesclam formas tupis, guaranis e nheengatus “sem a mínima distin-ção”, diz Edelweiss.

Reproduzo a seguir um excerto do texto desse autor no citadoensaio “O Indianismo”, a respeito de discrepâncias de conceito atri-buídas às citadas palavras em diversos autores:

Desde 1823, Martius havia adotado o genéri-co tupi para a família hoje designada por tupi-guarani. Porto Seguro seguiu-lhe as pegadas, che-gando mesmo a declarar nas obras guaranis deMontoya por ele editadas que, ao invés de línguaguarani, fora preferível dizer língua tupi. Para Coutode Magalhães, tupi e nheengatu eram sinônimos eo guarani, um simples dialeto deles. Batista Caeta-no só admitia a existência de um único idioma: oguarani – e, a par de alguns termos locais, atribuíaas diferenças fonéticas marcantes ao tupi antigo,quase exclusivamente à deturpação dos portugue-ses. Para Barbosa Rodrigues, ao contrário, onheengatu, a despeito de corrompido, continuavasendo, ainda em fins do século dezenove, o dialetomais próximo da língua-mãe e mais puro do que otupi de Anchieta e o guarani de Montoya. Declaraele em Poranduba Amazonense (1887): “Venho

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apresentar-te [a Batista Caetano, a quem dedicou olivro] o resultado de alguns estudos que confir-mam até certo ponto (....) que o nheengatu (....) émais puro que o tupi do Sul e que o guarani (....).”

No ano passado, Eduardo de Almeida Navarro publicou o seuMétodo Moderno de Tupi Antigo: a Língua dos Primeiros Sé-culos, em cuja introdução esclarece:

O tupi só era falado na capitania de SãoVicente, aí incluindo-se o planalto de Piratininga,em trechos do atual estado de São Paulo.

– Assim, chamar a língua brasílica de tupi outupinambá não é absolutamente preciso, poisambas eram variantes dialetais e não línguas pro-priamente ditas. Por que a chamamos, então,neste Método, de “tupi antigo”, se o tupi era umavariante dialetal de menor uso que o tupinambá?Isso só se justifica pelas seguintes razões Essedesignativo teve larga difusão, muita aceitação pelopovo em geral, apresentando o caráter de um deno-minador comum, sendo um termo que entra nacomposição de outros, todos nomes de povos fa-lantes da língua brasílica: tupinambá, tupiniquim,tupinaé.

– Embora as gramáticas de Anchieta (1595) ede Figueira (1621) descrevam principalmente a vari-ante tupinambá, a poesia lírica e o teatro queAnchieta nos deixou (...) está, em grande parte, emtupi, que ele aprendeu primeiro, quando viveu emSão Paulo de Piratininga, de 1554 a 1562. Por muitasvezes, Anchieta empregou as duas variantesdialetais num mesmo texto, como que consideran-do irrelevantes suas diferenças.

– A própria variante tupinambá apresentavaaspectos diferenciados na costa brasileira: otupinambá da gramática de Anchieta e o descritopela gramática de Luís Figueira, em Pernambuco,tinham diferenças entre si, podendo-se dizer queFigueira descreveu uma outra variante dialetal, otupinambá do norte.”

Em outras palavras, neste texto, entende-se tupi antigo peloque é chamado por outros de guarani antigo – enquanto o “tupi

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moderno”, vale dizer, o nheengatu moderno, é aquele “ainda faladoem certas partes do Norte e do Nordeste do Brasil.”

O quadro das línguas indígenas do Brasil apresenta ainda hojede 120 a 150 línguas, ou seja, aproximadamente a metade do totalfalado na época do descobrimento. Teodoro Sampaio, no que foireproduzido por alguns dicionários, qualificou por vezes de tupi oque era guarani ou nheengatu, reduzindo o que não chamava detupi freqüentemente ao termo tapuia, denominação genérica atri-buída pelos portugueses a indígenas dos grupos que não falavamlín-guas do tronco tupi e habitavam no interior do país. Veja-seeste trecho do capítulo 1 do seu livro O Tupi na Geografia Naci-onal, intitulado “Da expansão da língua tupi e do seu predomíniona geografia nacional”:

Transpondo-se o São Francisco em direçãoao sul, penetra-se de novo numa região ingratapela inclemência do céu e se vai atravessando abacia elevada do Vaza-Barris, antes de ganharos trechos esparsos e mais deprimidos daschapadas baianas que, depois do salto de PauloAfonso, depois de Canudos e de Monte Santo,levam a Itiúba, ao Tombador e ao Açuruá. Aí,nesse trecho do pátrio território, aliás dos maisingratos, onde outrora se refugiaram os perse-guidos destroços dos Orizes, Procás e Cariris, denovo aparecem, designando os lugares, os no-mes bárbaros de procedência tapuia que nem oportuguês, nem o tupi logrou suplantar. Lêem-se, então, no mapa da região, com a mesmafreqüência dos acidentes topográficos, nomescomo Pambu, Patamoté, Xingó, Bendegó,Propriá, Cumbe, Massacará, Cocorobó,Tragogó, Canché, Chorrochó, Quicunca, Cochó,Centocé, Açuruá, Xique-Xique, Jiquié, Sincorá,Catulé ou Catolé, Mucujê, Juciape, Gagau,Orobó, Procá, Cocobocó e outros igualmentebárbaros e estranhos.

(Toda essa toponímia grafada em negrito, no original.)

Sob a denominação comum de tupi ou vagamente detupinismo, entram em nossos dicionários, do mesmo modo, o tupiantigo, o guarani, o nheengatu (também dito neotupi) eeventualmente vocábulos cujos étimos pertenceriam a outros troncos

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e a outras famílias lingüísticas. Em outras palavras, além de osestudos etimológicos estarem consideravelmente atrasados quantoà lingüística indigenista, a utilização do rótulo tupi num sentidohiperonímico de ‘empréstimo de alguma vaga língua indígena docontinente americano’ continua a ocorrer e está longe de ser ideal,mas os dicionários persistem em tal simplificação por falta de fontessobre que debruçar os seus levantamentos.

O grupo de lexicógrafos do Dicionário Houaiss também serecente dessa limitação endêmica de fontes. Empenhou-se ferrea-mente, porém, em levar o mais longe possível as pesquisas que sepodem fazer e as sugestões que se podem oferecer sobre a etimologiade tais empréstimos.

No que respeita à lingüística e à etnologia indigenista nacional,preferimos fazer tábua rasa do que os outros léxicos e enciclopédiasregistravam, por confuso, desatualizado e por vezes errôneo, e lan-çar-nos a um levantamento próprio, contemporâneo e histórico, degrupos e línguas indígenas baseado na documentação mais recentedessa área. Disto resultaram cerca de 650 verbetes que inclueminformações sobre o indivíduo, o grupo com sua localização geográ-fica e a língua ou dialeto por eles falado, além do registro de seuetnônimo brasílico, vale dizer, a denominação de cada grupo doterritório brasileiro, extinto ou existente, com sua transcrição segun-do regras estabelecidas por antropólogos e lingüistas brasileiros.

No que concerne à quantificação dos indigenismoslingüísticos no português, ou seja, das palavra, construções oulocuções de qualquer língua indígena americana tomadas de em-préstimo por nossa língua, o cômputo existente é caótico, pois nun-ca foi levado a efeito com método. As opiniões divergem de meros4.500 vocábulos aos 50 a 100 mil estimados por Silveira Bueno.Não creio haver dúvida de que as vozes amerindigenistas superamem número as dicções árabes conservadas no léxico português.Afinal, é patente a quantidade de topônimos (especialmenteorônimos, corônimos, limnônimos, eremônimos, potamônimos enesônimos), os numerosíssimos fitônimos e zoônimos (entre estesespecialmente os ornitônimos e os ictiônimos), mas também diversosetnônimos, litônimos, nosônimos, melônimos, mitônimos,meteorônimos, demonônimos, alguns antropônimos etc. – quecolorem a nossa língua, especialmente a falada no Brasil, de belossons e visões ameríndias.

Todavia, no que respeita à sua quantificação real, não há rigo-rosamente mais que meras opiniões.

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No Dicionário Houaiss, os topônimos só se encontram refe-ridos na etimologia dos gentílicos, uma vez que não se dá entrada anomes próprios de cidades na nominata. No que respeita a nomesde animais e especialmente a plantas brasileiras é que é bastanteconsiderável o número de empréstimos indígenas, dos quais seregistram também grande número de formas e variantes. Dou comoexemplo o verbete guapuruvu, uma leguminosa que chega a atin-gir 30 metros de altura. Entre os 51 sinônimos e variantes que odicionário refere, estão: baageiro, bacumbu, bacuparu, bacurubu,bacurubu-ficheira, bacuruvu, bacuva, bageiro, bagiro, baquerubu,baqueruvu, beri, bucurubu, gabiruvu, gapuvuru, garapivu, garapuva,garapuvu, garipuvu, grapibu, guaburuvu, guaparuva, guaperubu,guaperuvu, guapiruva, guapiruvi, guapiruvu, guapivuçu, guaporuba,guapurubu, guapuruva, guarapuvu, guarupuvu, guavirova, guavirovo,paricá, paricá-grande etc. – grande número dos quais, indigenismos.

O cômputo dos empréstimos de línguas ameríndias abrangidospelo Dicionário Houaiss ainda está em aberto, pois o grupoeditorial está a 13 meses de sua finalização e não desejo aquiavançar hipóteses. Mas, na medida que tal registro é tão expressivona obra, a fixação de suas etimologias constitui-se num ordáliopara os especialistas, já pela divergência de opiniões sobre étimos,já pela infirmidade do conceito do que é o tupi nas obras dereferência utilizáveis, já por serem o tronco Aruák e as famíliasKaríb, Tukâno, Makú, Pâno etc. pouco estudadas, já – e pior quetudo – pela inexistência de estudos sobre grande parte dosempréstimos, exigindo que nosso grupo de etimologistas tenha deir além do que se costumava pedir à sua classe nos dicionários deLíngua Portuguesa dita geral até agora realizados.

Outra questão espinhosa para a lexicografia é a discussão arespeito da fixação da grafia dos nomes indígenas. O item IV,sobre a hifenação, do “Formulário Ortográfico da Academia Bra-sileira de Letras”, aprovado em agosto de 1943, estatui, no inciso4º, que ele deve ser empregado “nos vocábulos formados por su-fixos que representam formas adjetivas como açu, guaçu e mirim,quando o exige a pronúncia e quando o primeiro elemento acabaem vogal acentuada graficamente”. Exemplificando tal regra, osvocábulos andá-açu, amoré-guaçu, anajá-mirim e capim-açu.Mas que dizer de baiacumirim, em que o u é semitônico ou decarapicupeba, onde o mesmo ocorre? O Vocabulário Ortográ-fico registra-as sem hífen.

O problema está em que gwa’su (>açu, uçu e guaçu) e mi’rï

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não passam de exemplos de elementos de composição tupis quesincretizam palavras no português. Há grande número de outrosformantes com extensa representação em nossa língua, por exem-plo, pinima ‘listrado, manchado’, ‘pewa ou bewa ‘achatado, liso’,gwa’yã ‘caranguejo’, ‘taya ou ‘aya ‘que arde, picante, ácido, aze-do’, pi’xuna ‘negro, preto, escuro’ e diversos outros. As palavrascompostas com tais elementos não são regidas por regras clarasquanto ao modo de serem grafadas, o que gera considerável insta-bilidade ortográfica, que aliás se espelha na própria nominata doVocabulário Ortográfico. Eis aqui um pequeno grupo, meramenteexemplificativo, de palavras formadas com elementos de composi-ção pospositivos de origem tupi onde tal problema se torna patente:escrevem-se sem hífen (embora sempre o primeiro elemento for-mador seja oxítono e o segundo, adjetivante): acaripixuna, acarapeba,aratupinima, acarauçu, amborepinima, amborepixuna, acaraaia,carapicupeba, ipecupinima, ituipinima, acaricuiara etc. Embacabamirim, entende-se a inutilidade do hífen, mas baiacumirim,que não tem hífen, poderia ser lido baiàcumirim.

Aliás, um bom exemplo conjunto da instabilidade observa-seem palavras compostas com esse ictiônimo baiacu. Escrevem-sesem hífen baiacuguaíma, baiacuguima, baiacuguimbá, baiacumirim,mas grafam-se com hífen baiacu-guaiama, baiacu-guaimá, baiacu-guarajuba, baiacu-arará, baiacu-ará. Quanto a baiacuarara, o Voca-bulário Ortográfico registra-o com e sem hífen.

Em línguas de grafia estabilizada, o trabalho da lexicografiaé reproduzir, na nominata de suas entradas, o adrede estabelecido.Na nossa, em casos como esse, o dicionário tem com freqüênciade absorver o papel, que não é realmente seu, de normatizadorortográfico, por se ver forçado a tomar um partido por necessidadede padronização. Mesmo nesse caso, porém, a instabilidadeocorre nos registros, pois, não havendo uma regra una, oficial,ocorrem flutuações.

No que respeita aos africanismos – compreendidos nestes osempréstimos de línguas e dialetos africanos integrados no sistemade nossa língua e também vocábulos e expressões dessas línguas edialetos registrados in natura em livros de literatura africana escri-tos em português – o Dicionário Houaiss conta com um levanta-mento próprio, realizado no Brasil, a partir de glossários apensos aobras literárias de e sobre a África lusofônica. Foram também utili-zados alguns dicionários específicos publicados em Portugal e emoutros países, como é o caso do Dictionaire bilingue portugais-

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français des particularités de la langue portugaise en Guinée-Bissau, do Prof. Jean-Michel Massa.

A flora e a fauna da região foram arroladas e pesquisadasatravés de manuais locais, entre eles, por exemplo, o excelente Agro-nomia Angolana, edição da Repartição Central dos Serviços deAgricultura de Angola, Luanda, n.7, 1953 (que é uma publicaçãopóstuma do último trabalho do botânico John Gossweiler). Notávelé também Plantas Úteis da Flora de S. Tomé e Príncipe – medi-cinais, industriais e ornamentais, de Luís Lopes Roseira, de 1984.Isso gerou um número tão expressivo de averbações que nos vi-mos forçados a guardar material para outras edições ou outras obras,de modo a possibilitar que a massa de informações que constarãodo dicionário nesta primeira edição pudesse ser processada pelosbotânicos, redatores, datadores e etimologistas do nosso grupo den-tro do tempo de trabalho que lhes resta.

Enquanto isso, um grupo de africanos de Moçambique, Ango-la, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde trabalha emLisboa, sob a supervisão do Prof. João Malaca Casteleiro, reco-lhendo material para outros verbetes regionais a serem introduzidosno Dicionário Houaiss. A parte inicial desses textos estará noBrasil no mês de setembro deste ano, para ser processada eincorporada ao corpus de nosso banco de dados.

No caso de africanismos de registro neológico em dicionarizaçãoe mesmo de palavras já dicionarizadas, ocorre duplicidade ou mes-mo multiplicidade de grafias entre as de cunho aportuguesado eaquelas usadas nos países de África, ocasionando, também aqui,instabilidade de padrão ortográfico no registro. Os países africanoslusófonos, mergulhados em problemas sociais e econômicos, quan-do não em guerra, não tiveram tempo nem disponibilidades paraencetar seus levantamentos lingüísticos e estabelecer dicionários evocabulários ortográficos com o seu padrão ideal, donde a existên-cia de uma flutuação de soluções, por vezes dentro de um mesmopaís, flutuação essa que necessariamente se reflete em qualquerdicionário que pretenda integrar a sua contribuição vocabular semimpor-lhes regras. É o que ocorre com o Dicionário Houaiss.

Grande número de línguas e povos africanos da costa,contracosta e centro continental, especialmente os ligados à área deinfluência da expansão e colonização portuguesas, encontra-seregistrado no dicionário com as informações mais atualizadas dispo-níveis sobre sua caracterização, localização, língua falada e eventu-almente os seus traços culturais mais importantes.

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Relato, por fim, o que vimos fazendo a respeito da inclusão deasiaticismos no Dicionário Houaiss. Não é comum que dicionárioselaborados no Brasil preocupem-se em averbar empréstimos delínguas orientais ao português. Basicamente eles são da Índia e deMacau, e em menor escala, por exemplo, de Timor, do cristang deMalaca, na Maláisia etc. A vocação do Dicionário Houaiss, porém,era ir tão longe no registro lusofônico quanto o possível, razão porque, assim como foram registrados regionalismos portugueses ebrasileirismos e algumas palavras das línguas e crioulos africanos daárea lusófona, fizemo-lo também com parte do material arroladopor monsenhor Sebastião Rodolfo Dalgado, professor de sânscritona Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em seu Glos-sário Luso-Asiático. Todavia, por ser histórica a maior parte desseregistro, preocupamo-nos em completá-lo com informação coeva,viva. Entre as fontes com que contamos para tanto, cito dois preci-osos levantamentos.

Um, o do professor Raul Gaião, licenciado em Filosofia queviveu em Macau por nove anos e fez seu mestrado de LingüísticaPortuguesa na Universidade de Macau, onde também lecionou por-tuguês. Tal inventário foi por ele mesmo extraído e refeito para nósa partir de sua tese de mestrado, um minucioso glossário de pala-vras e locuções ainda vivas nos falares locais e/ou utilizadas emobras literárias de expressão portuguesa que integram elementosdo chinês e do crioulo macaísta. Contém igualmente vocábulos delínguas timorenses na mesma perspectiva

O outro, foi feito por Luís Filipe Tomás, especialista em His-tória da Ásia fluente em diversas línguas orientais, que foi profes-sor assistente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboae é atualmente professor-associado convidado da UniversidadeNova, também em Lisboa. Seu precioso levantamento é comple-mentar ao do professor Gaião e mergulha sobre asiaticismos deoutra ordem e origem.

ConclusãoA inexistência de estudos mais precisos sobre que fundamen-

tar a proveniência dos vocábulos de origem ameríndia é problemapenoso para a etimologia dos dicionários de Língua Portuguesa. Afalta de informação sobre a origem dos empréstimos e das unidadesléxicas das línguas africanas in natura registradas é igualmentegrave e extensa. Etimologizar e datar tais vocábulos e sintagmas étarefa árdua, especialmente em dicionários que pretendam impor

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um padrão mais metódico de aprofundamento de tais questões, comoé o caso do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Aortografia de tupinismos e dos indigenismos em geral é outro motivode preocupação para o estabelecimento de uma nominatalexicográfica. Vimos apoiando-nos na bibliografia existente em LínguaPortuguesa e não só, e utilizando os saberes de especialistas nacionaise estrangeiros para superar ou, pelo menos, aventar hipóteses sobretais pendências. Um esforço especial está sendo feito para averbarafricanismos e asiaticismos de toda a área lusófona, com o auxíliode colaboradores locais. As dificuldades conjuntas de tais tarefasobviamente crescem na medida exata da extensão da nominatasobre que se propõe trabalhar.

Se quiseres enviar um condenado ao suplí-cio, não o mandes às minas de ouro nem ao verdu-go; antes obriga-o a compilar um dicionário.”Quando o filólogo e historiador Joseph JustusScaliger, nascido na França e falecido em Leydenem 1609, enunciou esta sua famosa considera-ção, referia-se aos dicionários de menos de 10 milpalavras que se faziam no seu tempo, o séculoXVI. Imagino o que diria de um com mais de 250mil entradas, como o que fazemos.

Concluo, lembrando o verso do poeta português Manuel Ale-gre que diz: “Na minha língua... cada verso é uma outra geogra-fia.” Com certa liberdade, atrevo-me a afinar tal pensamento como que buscava Antônio Houaiss em seu dicionário, que sempre foiintegrar o labor coletivo de gentes brasileiras e do resto do mundolusofônico numa nominata comum, em pós da harmonia que asdiversas realizações da Língua Portuguesa geram em seu vigoro-so e variado conjunto.

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Nosso objetivo aqui é de fazer a descrição de alguns aspectosdo tupi antigo e da Língua Portuguesa, tais como: a ordem oracionale a ordem sintagmática.

1. Informações Sobre o Tupi Antigo

O tupi antigo, ou tupinambá, pertencia à família tupi-guarani.Essa família se destaca entre as outras sul-americanas, devido àsua extensão. As línguas desta família eram faladas em pratica-mente todo o litoral brasileiro e na bacia do rio Paraná no séculoXVI. Na atualidade, esta família é encontrada na Região Norte,nos estados do Maranhão, Pará, Amapá e Amazonas; na RegiãoCentro-Oeste, em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás; naRegião Sudeste, no Rio de Janeiro, São Paulo e no Espírito Santo, enos três estados da Região Sul, além de ser encontrada fora do país,na Guiana Francesa, na Venezuela, na Colômbia, no Peru, na Bolí-via, no Paraguai e na Argentina.

Os primeiros registros são do início do século XVI, sendo osprimeiros textos produzidos em 1575. Estes textos eram de caráterreligioso, traduzidos por jesuítas a partir dos dados de um índiocatequizado.

Em seguida, surgem documentos que tinham o objetivo de re-produzir conversas entre os índios e os europeus.

Acredita-se que praticamente todos os europeus que vinhampara cá acabavam aprendendo o tupinambá. E com o tempo osmissionários passaram também a produzir textos não-religiosos, comoJosé de Anchieta, que produziu mais de 4000 versos na língua e

Confrontos entre o Tupiantigo e a Língua Portuguesa

Nataniel dos Santos Gomes,da UFRJ / SUAM.

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ainda elaborou a primeira gramática indígena. As gramáticas quesurgem depois também têm origem em religiosos jesuítas. É interes-sante notar que na metade do século XVII, muitos jesuítas que ha-viam nascido no Brasil eram totalmente bilíngües, mas poucos índiosaprenderam a escrever na sua própria língua. E mesmo assim o usodo tupinambá se tornou tão comum pela população que o governochegou a proibi-lo. Mas, mesmo assim, deixou sua marca no portu-guês, em topônimos, em nomes de aves e outros.

O tupinambá foi a língua natural mais conhecida em nosso paísfoi o tupinambá, sendo predominante nos contatos entre portugue-ses e índios, e ainda se tornando a língua da expansão bandeiranteno sul e da ocupação de parte da Amazônia.

Segundo Edelweiss (1969:74), não se falava o tupinambá, maso tupiniquim. Daí ele conclui que o padre Anchieta em sua gramáti-ca não estava se referindo ao léxico geral, mas um determinadoemprego do tupinambá, para diferenciar o tupi de São Vicente e otamoio do Rio de Janeiro.

Informações Sobre a Língua PortuguesaA Língua Portuguesa pertence ao grupo denominado de lín-

guas neolatinas ou românicas, que têm sua origem no latim vulgar.Resultantes da evolução e dialetação do latim, que era implantadonas regiões conquistadas pelos romanos.

No caso da Língua Portuguesa, tem-se a origem a partir dolatim introduzido pelos romanos na Lusitânia, na Península Ibérica.De certa forma, a história da nossa língua está ligada a fatos perten-centes à história da península.

Hoje, as línguas românicas estão espalhadas por todo o mun-do. E no caso do português, que é falado no Brasil, em algunspontos da Ásia, na Guiné-Bissau, Angola, Moçambique, CaboVerde, Ilha da Madeira e São Tomé e Príncipe; o espanhol, alíngua oficial de praticamente toda a América do Sul e Central; ofrancês, falado em parte do Canadá, Guiana Francesa, Haiti,Senegal e Madagáscar; além do italiano, romeno, catalão, galego,franco-provençal, rético e sardo.

2. A sintaxe

2.1 - A ordem das orações independentes

No tupi antigo, entendemos que a ordem dos constituintes

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oracionais é livre, isto nas orações independentes, ao contrário daLíngua Portuguesa, que tem a preferência pela ordem sujeito-ver-bo-objeto (SVO). E conforme dissemos num outro trabalho (Go-mes, 1999:8A), “Tanto o sintagma nominal referente ao sujeito quantoo referente ao objeto podem ocorrer antes ou depois verbo. A or-dem parece servir para funções pragmáticas e não gramaticais.”

Vejamos os exemplos1 abaixo, que podem ajudar a esclarecerum pouco a nossa discussão.

(Lemos Barbosa, 1957:67)

Percebemos que as ordens SVO, SOV, OSV e VOS, são pos-síveis nestas orações. É óbvio que os verbos apresentam prefixosde pessoa, que se referem tanto ao sujeito como ao objeto.

Como já dissemos, a preferência da Língua Portuguesa é pelaordem SVO:

2. a) João comprou uma bola SVO b) Eu li o livro. SVO

Existe a possibilidade de outras ordens. Mas acreditamos quenão fazem parte do cotidiano da língua e seriam orações muitomarcadas.

No tupi antigo as orações independentes podem trazer osintagma nominal em qualquer posição, sempre com o prefixo objetivoexpresso no verbo, como veremos nos exemplos abaixo. Quando oprefixo de objeto de 3ª pessoa aparece na frase, libera o sintagmanominal de objeto, que não ocupa posição fixa na oração.

1. Pindobu u viu o mar1.

1 Pindobusu o-s-ep ak paranª . SVO b. Pindobusu paranª o-s-ep ak. SOVPindobu u 3-3-ver mar2 Pindobu u mar 3-3-ver

c. paranª Pindobusu o-s-ep ak. OSV d. o-s-ep ak paranª Pindobusu. VOS mar Pindobu u 3-3-ver 3-3-ver mar Pindobu u

3. a) a- -pysyk y 1sg.-3-apanha r machado Eu a pa nhe i o machado

b) y a- -pysyk Mac hado 1sg-3-apa nha r Eu a pa nhe i o machado.

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Nos exemplos abaixo, percebemos que o uso do nome e dopronome de 3ª pessoa em casos de incorporação nominal, faz comque o mesmo lugar ocupado pelo nome possa ser ocupado pelopronome de 3ª pessoa.

2.2 - A ordem nas orações dependentes

No tupi antigo as orações dependentes apresentam a ordem éSOV:

6. a) Koriteî kunhã pitanga mo-mbak-i SOV Depressa mulher criança acordar-dep. “A mulher acor-

dou a criança depressa.” b) Koriteî pitanga kunhã mo-mbak-i SOV Depressa criança mulher acordar-dep. ‘A criança

acordou a mulher depressa.’

Podemos perceber que o objeto é um sintagma nominal, quan-do vem antes do verbo. Mas se o pronome objeto de 3ª pessoaocorre junto ao verbo, o objeto aparece localizado à esquerda dosujeito. Vejamos:

7) Koriteî pitanga kunhã i-mombak-i OSVDepressa criança mulher 3-acordar-dep.‘Depressa, a

mulher acordou a criança’.8) Koriteî kunhã pitanga i-mombak-i OSVDepressa mulher criança 3-acordar-dep4. ‘Depressa, a

criança acordou a mulher’.

4. a) o- -pysyk y 5. a) itÆ a- -potar

b) o- y-pysyk b) a- -potar itÆ

y o- -pysyk a-itÆ-potar

Apanhou um machado. Quero pedras.

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2.3 - A ordem no nível sintagmático

A ordem nas construções genitivasNo tupi antigo a ordem nas construções sintagmáticas genitivas

apresenta a ordem genitivo-nome. Vejamos os exemplos abaixo:

Na Língua Portuguesa notamos que a ordem é bem diferentese comparada com o tupinambá. Ela é nome-genitivo. Vejamos:

10. a) Sorvete de chocolate N.Gen b) Casa de madeira N. Gen.

A ordem adjetivo-nomeOutra observação interessante do tupinambá tem a ver com a

ordem dos adjetivos e dos nomes nos sintagmas nominais. O adjetivovem após o nome, gerando a ordem NA, exatamente como naLíngua Portuguesa, conforme os exemplos abaixo:

11) itá tinga N A12) y puku N A Pedra branca rio comprido ‘pedra branca’ ‘rio comprido’

A ordem nome-adposiçãoHá posposições em tupinambá, portanto a ordem é N Po:

13) a-sem taba suí N Po 1-sair aldeia da ‘saí da aldeia’

Conforme dissemos num outro trabalho, “Com exceção dosintagma envolvendo nome e adjetivo, os sintagmas do tupinambásão de núcleo final: OV (nas dependentes); N Po e Gen N”. (Go-mes, 1999: 12)

Na Língua Portuguesa há preposições. A ordem é Pre N.

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14) Todos saíram de casa. Pre N

2.4 - Sobre as classes de palavrasPara a identificação das classes de palavras numa língua exis-

tem alguns critérios a serem seguidos: o morfológico, o sintático e osemântico (ou nocional).

Vejamos a definição de Margarida Basílio (1998:52) para ocritério morfológico “Entendemos por critério morfológico a atribui-ção de palavras a diferentes classes, a partir das categorias grama-ticais que apresentem, assim como das características de variaçãode forma que se mostrem em conjunção com tais categorias”.

Na definição do critério sintático, ela faz um acréscimo(1998:53); “atribuímos palavras a classes a partir de propriedadesdistribucionais (em que posições estruturais as palavras podem ocor-rer) e/ou funcionais (que funções podem exercer na estruturasintática)”.

A professora Margarida Basílio neste mesmo texto propõeque, além dos critérios morfológicos e sintáticos para se identificaras classes de palavras, é importante o uso do critério semântico.Segundo ela, há uma ligação muito estreita entre estes critérios.Como exemplo, ela diz que só as palavras que designam seres apre-sentam flexão de número e gênero.

Em Radford (1990:57) vemos que ele só utiliza os critériosmorfológicos e sintáticos para classificar as palavras. Para ele, ocritério semântico apresenta diversas contradições. Estas seriamexpressas, por exemplo, através de verbos que denotam ação, denomes que designam entidades ou de adjetivos que expressam es-tado. A contradição aparece em palavras como “assassinato” queexpressa ação, são nomes e não verbos, a palavra “doença” denotaestado, mas é um nome (substantivo). Esta última seria um adjetivode acordo com o critério semântico.

Ele ainda comenta que os critérios morfológicos e sintáticossão mais fidedignos na defesa das categorias lexicais (1990:57).

Num outro livro Radford (1998) afirma que esta evidênciamorfológica para se identificar as classes de palavras está relacio-nada à morfologia derivacional e flexional.

Na Língua Portuguesa, de um modo geral, “os morfemasderivacionais se agregam a palavras de uma determinada catego-ria. Em Português, o sufixo agentivo e instrumental –(d)or, como emo cantor, o ventilador, só se agregam a verbos.” (Gomes, 1999A:13)

É interessante notar que esta mesma restrição ocorre com

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morfemas flexionais que se unem às palavras de certas categorias.Vemos esta ocorrência no “s” do plural que só ocorrem comnomes.

Dizemos tudo isto para demonstrar porque entendemos que oscritérios morfológicos e sintáticos são melhores para o nosso traba-lho, usamos como base os argumentos de Radford.

Sobre os nomesNo tupi antigo os nomes, chamaremos de nomes os substanti-

vos, não possuem flexão de número, gênero ou grau, mas apresen-tam flexão de tempo e prefixos possessivos.

Para formar o plural usa-se o sufixo etá, que pode ser traduzi-do por “muitos”. Na verdade, esse sufixo é o verbo “ter muitos”.

Outra observação curiosa é que os nomes possuem uma mar-ca para futuro, rama, e outra para passado, pûera.

15. a) ybá ‘fruta’ b) ybá-rama ‘futura fruta’c) ybá-puêra ‘ex-fruta’

fruta-fut. fruta-pass.

Pode-se formar ainda dois tempos compostos: o passado-futu-ro (ram-bûera) e o futuro-passado (pûer-ama).

16. a) t-atá ‘fogo’ b) t-atá-ram-bûera ‘ex-futuro fogo’. Fogo-fut.-pass.

c) t-atá-pûer-ama ‘o futuro ex-fogo’ Fogo-pass.-fut.

Eles ainda possuem morfemas negativos específicos. Por exem-plo, o sufixo eym(a), que pode ocorrer antes da partícula de tempo.E quando isso ocorre ela se posiciona antes desta.

17. a) xe r-eymbagßama b) xe r-eymbab-ey-gßama

1 poss.-cria ª o-fut. 1 poss.-cria ª o-neg.-fut.

minha futura cria ª o a que nª o serÆ nossa cria ª o

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Apresentam prefixos de posse:

Tanto os nomes como as palavras que sofrem nominalizaçãofuncionam como núcleos de sintagmas nominais, e assim podemexercer o papel de sujeito ou objeto:

Vejamos uma coisa curiosa, no exemplo 26 b o verbo “dormir”está em sua forma nominalizada. Portanto é o núcleo do sintagmaobjetivo da posposição.

Façamos alguma observações sobre os nomes na Língua Por-tuguesa.

Os nomes podem variar em número e gênero.Quanto à flexão de número, os substantivos podem estar no

singular ou no plural.Para formar o plural dos substantivos terminados em vogal ou

ditongo acrescenta-se um –s ao singular.· Mesa – mesas; boné – bonés; herói – heróis; mãe – mães.

Os nomes terminados em –ão formam plural substituindo –ãopor – ões, na maioria das vezes. Outra forma, menos comum, seriasubstituir a terminação por –ães.

· Balão – balões; leão – leões; alemão – alemães; escrivão– escrivães.

Os nomes terminados em –r, -z e –n formam plural com oacréscimo de –es ao singular.

· Mar – mares; cruz – cruzes.

18) xe-k minha ro a 19) nde-ruba seu pai

1 poss.-ro a 2 poss.-pai

20) Kunhª o-man A mulher morreu

Mulher 3-morrer

21. a) a-ker eu dormi b) xe-ker pe no me u dormir

1-dormir 1 poss- dormir e m

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Os substantivos terminados em –s, quando oxítonos, formam oplural acrescentando-se –es ao singular, e são invariáveis quandosão paroxítonos.

· Português – portugueses; país – países; o lápis – os lá-pis; o ônibus – os ônibus.

Quando terminados em –al, -el, -ol, -ul, substituem o –lpor –is.

· Animal – animais; lençol – lençóis.

Paroxítonos terminados em –il mudam esta terminaçãopor –eis.

· Fóssil – fósseis; réptil – répteis.

Nos nomes formados com o sufixo –zinho, tanto o substantivoprimitivo como o sufixo vão para o plural, desaparecendo o –s doplural do substantivo primitivo.

· Papelzinho – papéi(s) + zinhos > papeizinhos

A formação do plural dos compostos é um pouco diferente,possuindo uma certa complexidade que não trataremos aqui.

O gênero na Língua Portuguesa pode ser masculino ou femini-no para os nomes. Não é nosso objetivo demonstrar a formação dogênero, apenas mostrar diferenças com o tupinambá.

Mas não apresentam flexão de tempo e prefixos possessivos,como no tupi antigo.

Sobre os verbosNo tupi antigo o verbo vem sempre acompanhado por um ou

mais elementos pronominais, possuindo um morfema de negaçãoespecífico e sem apresentar marcas de tempo, bem diferente daLíngua Portuguesa, que apresenta as marcas de tempo, e não trazmarcas de negação em sua morfologia.

ConclusãoFizemos a descrição do tupinambá e da Língua Portuguesa,

principalmente na sintaxe. Pudemos perceber inúmeras diferençasentre as línguas, sobretudo na ordem dos constituintes oracionais.

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Bibliografia

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tuguês contemporâneo. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.EDELWEISS, Frederico G. Estudos tupi e tupi-guaranis: confrontos

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Tupinambá. Monografia final do curso de especialização em Línguas Indí-genas Brasileiras. Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1999.

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ILARI, Rodolfo. Lingüística românica. São Paulo: Ática, 1992.LEITE, Yonne; VIEIRA, Marcia Damaso. Línguas tupi-guarani: es-

trutura ativa e suas cisões. [mss, s.d.]LEMOS BARBOSA, A. Curso de Tupi antigo. Rio de Janeiro: Livra-

ria São José, 1957.RADFORD. A. Syntactic theory and the structure of English: a

minimalist approach. Cambridge: Cambridge University Press, 1998._____. Transformational gramar: a first course. New York:

Cambridge University Press, 1990.RODRIGUES, Aryon Dall’Igna. Análise morfológica de um texto

Tupi. Separata da Revista “Logos”, ano VII, nº 15, Curitiba: Tip. João Haupt& Cia, 1952.

_____. Descripción del tupinambá en el período colonial: el artede José de Anchieta.Colóquio sobre a descrição das línguas ameríndias noperíodo colonial. Ibero-amerikanisches Institut, Berlim,.

_____. Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas indí-genas. 2.ed. Loyola. São Paulo, 1994.

_____. Morfologia do verbo tupi. Separata de “Letras”. [s.e.] Curitiba,1953, nº 1.

Notas1 Os dados lingüísticos do tupi antigo apresentados neste trabalho

foram tirados de Lemos Barbosa (1956).2 Os exemplos do tupi antigo também foram utilizados no trabalho

Algumas observações sobre a língua Tupinambá.3 Temos aqui a tradução interlinear. Os números representam as pes-

soas dos pronomes sujeito ou objeto.4 Podemos perceber que se o verbo aparece marcado com o pronome

objeto, o sintagma objeto pode aparecer deslocado. A marca de objetofunciona como um clítico pronominal. Seria o caso do objeto na forma

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pronominal. Mas ainda temos sintagmas nominais de objeto que ocorremcom os clíticos que podem ser classificados como elementos topicalizados.Entendemos, portanto, que são construções com deslocamento à esquer-da da sentença e em seu lugar fica um elemento pronominal. Vejamos:

‘Depressa, a criançai, a mulher a

iacordou.’

‘Depressa, a mulheri, a criança a

iacordou.’

Esse “i” subscrito representa o deslocamento da palavra. Uma pala-vra passa a ocupar o lugar da outra, conforme o exemplo acima.

É óbvio que poderemos encontrar estruturas a do exemplo abaixo,aonde o sintagma nominal objetivo foi omitido. O que parece indicar que omarcador objetivo de 3ª pessoa é o argumento objeto, afinal sua presençaé o suficiente para indicar a existência de um objeto de 3ª.

Koriteî kunhã imombak iDepressa mulher 3-acordar-dep. ‘Depressa, a mulher a acordou.’

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Nossa altitude em língua literária no século a finar-se é porten-tosa. Inúmeros alinham-se os magos nacionais do estilo. Oxalá pu-desse indicá-los todos. Mui limitado pelo regime das Comunica-ções, ofereço ao leitor apenas títulos de composições e autores, empálida revista da copiosa língua literária vernácula. Asseguro que oíndice recomendado se faz de ouro no melhor quilate. Prouvera,outrossim, que me fora acessível reproduzir sob as epígrafes osexcertos correspondentes e as fontes amiudadas. Noutra oportuni-dade o será. Em livro.

Por enquanto, só escritores mortos recenseio.Prosadores: 52 Títulos: 100

Poetas: 37 Títulos: 100Registei mais prosadores que poetas a fim de tornar visibilíssimo:

na prosa, bem mais difícil de compor em língua literária em face dopoema, nossa Pátria excele. Dos conterrâneos vivos dados a letras,muitos haverá escritores com a mencionada teia lingüística.

Quem – retórico perguntar – não cingiria com o diadema nitenteda língua literária o mérito colosso destes fúlgidos artistas abaixo?!

A CavalgadaA lua banha a solitária estrada...Silêncio... Mas além, confuso e brando,O som longínquo vem-se aproximandoDo galopar de estranha cavalgada...

São fidalgos que voltam da caçada;Vêm alegres, vêm rindo, vêm cantando:

A língua literária do Brasilno século XX e sua formação

Paulo Silva de Araújo,da ABF e UNESA.

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E as trompas a soar vão agitandoO remanso da noite embalsamada...

E o bosque estala, move-se, estremece...Da cavalgada o estrépito que aumentaPerde-se após no centro da montanha...

E o silêncio outra vez soturno desce...E límpida, sem mácula, alvacenta,A lua a estrada solitária banha.

Raimundo CorreiaLuar na PraiaNascia a lua. O mar clareava aos poucos. Na crista arrugada

das ondas vagarosas a luz joeirava cisalhas de prata. A praia clararecurvava-se entre duas finas e avançadas pontas, arenosa, semrochas, onde as vagas adormeciam, gemendo, num grandeespreguiçamento branco. Para o poente, vultos de coqueirais, bati-dos do vento, destacavam-se negros no céu estrelado. Nas dunasdesertas e tristes, apontoavam a brancura da areia mirradas moitasde pinhão bravo; de quando a quando coleavam salsas rasteiras,como serpentes enormes. Ao norte, uma das pontas de terra quelongamente enfiava pelo oceano terminava em rochedos escuros,aqui dispersos, ali quase igualmente intervalados à guisa de gigânteasalpondras: e por sobre eles, flava, fulgurante, bocejava aintercadências a lanterna benéfica dum farol. Todos os rumores dosmatos, das águas e dos bichos notívagos diluíam-se na noite enluarada.Um eflúvio dormente desprendia-se dos cajueiros floridos e erravana face da terra uma canseira, um quê de sutil que impelia à modor-ra, ao sono e à preguiça. Depois a lua resplandeceu alta e umarefulgência prateada, com uns raros tons de azinhavre, derramou-se por sobre as cousas.

Gustavo Barroso· · · ·A Filologia, que, pelo exame fundo das obras de um povo com-

postas em língua literária, procura conhecer-lhe a realidade civilizatóriae o respectivo grau, tem, no caso do Brasil, de conferir-lhe venerade garbosa classe.

· · · ·Quanto à formação da língua literária no século, a responsabi-

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lidade maior – cristalino – se confere ao engenho poderoso e tropi-cal dos nossos brilhantes homens e mulheres devotos à Literatura.Norteou-os, onde mais, onde menos, a influência dos cânones pro-pagados na Europa, recebidos com mão espalmada entre nós e aquiagrupantes de luzidos nomes. Do influxo interno, sobressaia comorgulho que o gênio espantoso de Vieira se fixou na parede ante aqual se veneram os ícones sacratíssimos dos pais das letras, e foi,indubitável, como bússola de extremo fascínio.

PROSA· Coelho Neto: Noturno, A flauta e o sabiá, A partilha, Luz e

calor, Estio, Outubro, A mata virgem, Na mata, Penegírico de RuiBarbosa. · Gustavo Barroso: Luar na praia, Paisagem sertaneja,Incêndio, O cavalo sertanejo, A grandeza do pequenino Portugal. ·Euclides da Cunha: Manhãs sertanejas, O sertanejo, O estouroda boiada, Recordações cruéis, O canhoneio, Canudos não se ren-deu. · Graça Aranha: Os pirilampos, A dança dos colonos ale-mães, A floresta tropical, Música sertaneja. · Machado de Assis:Triste mas curto, O delírio, O sineiro da Glória, Quincas Borba, AAgulha e a linha, O defunto, Olhos de ressaca I e II. · GastãoCruls: O templo do sol, Os passarões, A dança dos selvagens. ·Canto e Melo: A baía de Botafogo. · Domício da Gama: Maria-sem-Tempo. · Aluísio Azevedo: O acordar do cortiço, O chora-do. · Amadeu Amaral: Boa fama. · Olavo Bilac: A gruta depedra, O velho rei, A pátria, Manifestação Rio Branco, Oração àBandeira. · Magalhães de Azeredo: Luar de maio. · VirgílioVárzea: Manhã na roça, No outeiro. · Joaquim Nabuco: Camões,Massangana. · Graciliano Ramos: Baleia, Libório, Vida de sururu.· Brasílio Machado: Carlos Gomes. · Humberto de Campos:O que fizeres a Teu Pai, Teu Filho te fará, As violetas de NossaSenhora. · Raimundo de Morais: O vale amazônico. · XavierMarques: Os vagalhões, Dança africana. · Mário Sete: Minhaterra tem palmeiras... · Afonso Celso: A baía do Rio de Janeiro. ·Plínio Salgado: A minha terra é linda. · Monteiro Lobato: OsFaroleiros, Negrinha. · José Veríssimo: O despertar dos Camposna Amazônia. · Salvador de Mendonça: O salto de Itu. · JoséAmérico de Almeida: Os centauros. · Martins Fontes: A dan-ça. · Afonso Arinos: Buriti perdido, O mar. · Carlos de Laet: Ofrade estrangeiro, A catedral do arcebispo. · Afrânio Peixoto: Apobre escrava. · Alcides Maia: Paisagem gaúcha. · RaulPompéia: O Ateneu, O incêndio do Ateneu. · Aurélio Pinheiro:

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A morte de Rosa. · Viana Moog: Fim de primavera. · AgripinoGrieco: Mãe, Ânsia eterna, Crepúsculo de ouro. · CecíliaMeireles: Um cão, Apenas. · Érico Veríssimo: A viagem. ·JoãoGuimarães Rosa: Minha gente. · Álvaro Moreira: Eu querouma estrela. · Austregésilo de Ataíde: A grande noite, Olindados meus amores, Meio século depois, O disco dos meus sonhos. ·Cornélio Pena: Reminiscências. · Clarice Lispector: Macabéa.· Paulo Setúbal: Dinheiro... · Marques Rebelo: Carnaval. ·JoséLins do Rego: Sol e Grécia. · Ciro dos Anjos: Perdoa-me, Carlota!· Raimundo de Morais: O vale amazônico. · Simões Lopes:Trezentas onças. · Henrique Pongetti: Cristina. · João Nevesde Fontoura: Brasil. · Lima Barreto: A casa do Rio Comprido. ·Leo Vaz: O cão vadio.

POESIA· Olavo Bilac: Profissão da fé, Sonata ao crepúsculo, Ouvir

estrelas, Língua portuguesa, A um poeta, O sol, Anoitecer, Asárvores, Pátria, Tercetos, Perfeição, Nel mezzo del camin. · Ma-chado de Assis: A mosca azul, À Carolina, A flor do Embiruçu,Última jangada, Círculo vicioso, Soneto de Natal, Versos a Corina,Fé. · Raimundo Correia: Anoitecer, A cavalgada, O monge, Malsecreto, Plenilúnio, Banzo, Peregrino, Cítera. · Francisco Karam:Quando anoitece. · Vinícius de Morais: Soneto da separação,Poema de Natal. · Augusto dos Anjos: O lamento das coisas,Monólogo de uma sombra, A idéia. · Pedro Nava: O defunto. ·Augusto Frederico Schmidt: Paz dos túmulos, Senhor, A noiteVem descendo, Poema. · Luís Carlos: Chafariz secular, Leão, Omineiro. · Manuel Bandeira: Desalento, A Camões, Os sinos,Desencanto, Estrela da manhã, Vou-me embora pra Pasárgada, Aonda, Ao crepúsculo, Renúncia. · Jorge de Lima: O acendedorde lampiões, Distribuição da poesia, Espírito paráclito. · Alphonsusde Guimaraens: As mãos da Virgem, Ismália, Lua nova. · LuísDelfino: As naus. · Raul de Leôni: Melancolia. · Hermes Fon-tes: Dezembro. · Emílio de Meneses: O Salto do Guaíra, Sone-to, Anunciação. · Martins Fontes: Religião. · Mário de Andrade:Poemas da amiga. · Cecília Meireles: Ventania, Anunciação,Destino. · Guilherme de Almeida: Dor oculta. · CarlosDrummond de Andrade: A máquina do mundo, Como um pre-sente. · Jônatas Serrano: Saudade. · Vicente de Carvalho: Cairdas folhas, A felicidade, Velho tema. · Murilo Mendes: Jandira.· Alberto de Oliveira: O bater da cancela, Ode cívica, A torren-

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te, O ninho, O vagalume, Alma em flor, Por amor de uma lágrima.· Luís Murat: Imortalidade. · Mário Pederneiras: Pelo caminhoda vida, Suave caminho. · Humberto de Campos: Na serra deMaranguape. · Joaquim Nabuco: Nada. · Afonso Celso: Anjoenfermo, Alegrias. · Francisca Júlia: Os Argonautas. · AmadeuAmaral: Voz íntima. ·Bernardino Lopes: Berço. · GuimarãesPassos: Teu lenço, A casa branca da serra, Soneto. · OlegárioMariano: As duas sombras, Recife de coral, O enterro da cigana. ·D. Aquino Correia: O cerrado. · Lindolfo Gomes: Língua Pátria.

Semântica da expressão: o superior e o maisautorizado de nossos escritores de língua literária

O superior vai ser o que haja escrito com a mais desenvolvidaextensão e com teor o mais variado e profundo, alheio em geral àestese, isso tudo em linguagem culta e de rigor bela, portanto emlíngua literária. Ainda mais, quando chegue ao Sublime.

O mais autorizado fora quem evidenciasse, em teoria e naprática, o mais volumoso conhecimento da riqueza e do potencialinacreditáveis do passado e do presente lingüísticos.

RUI BARBOSA: A IMPRENSA E A TRIBUNA EMMOLDES ESTÉTICOS

Imprensa: jornalismo. E esse: atividade que se expressa pelojornal, publicação em geral diária, noticiadora de fatos a cotio suce-didos, ou até há muito passados, de informes alusivos a todos osramos do conhecimento, e manifestante de opiniões específicas.Nele se exara o editorial, artigo básico onde se entalha o pensardistintivo do órgão, nomeadamente o de gênero político. Consoantese infere, não se presta, de regra, o jornalismo a redações de índoleestética.

Pois bem. Não se afastando da essência jornalística, Rui, otalento, insere no artigo principal o fluido da beleza. Tudo correto ebelo quanto se ventilou no primeiro item da Comunicação, acha-sepresente na coluna famosa do iluminado. Inclusive, de quando aquando, o Sublime oratório, como no “Surrexit!”. É a digna impren-sa continuamente em língua literária. Haja-se em vista:

SurrexitRessurgir! Toda a doçura e todo o vigor da fé se resumem

nesta palavra. É a flor do calvário, a flor da cruz. O tremendo horrordaquele martírio tenebroso desabotoa neste sorriso, e a humanidade

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renasce todos os anos a esse raio de bondade, como a formosura daterra à alegria indizível da manhã, o prelúdio do sol, o grande benfei-tor das coisas. O homem, cercado pela morte de todos os lados,não podia conceber este ideal de eternidade, se não fosse por umaréstia do seu mistério radiante, divinamente revelado às criaturas.Nossos sonhos não inventam: variam apenas os elementos da ex-periência, as formas da natureza. Tem a fantasia dos viventes ape-nas uma palheta: a das tintas, que o espetáculo do universo lhesimprime na retina. E, no universo, tudo cai, tudo passa, tudo seesvai, tudo finda. Nesse desbotar, nesse perecer de tudo, não haviao matiz, de que se debuxou um dia, na consciência humana, o hori-zonte da ressurreição.

Ressurgir! Deus nosso, tu só poderias ser o poeta desse cântico,mais maravilhoso que a criação inteira: só tu poderias extrair naangústia de Getsêmani e das torturas do Gólgota a placidez, a trans-parência, a segurança deste consolo, dos teus espinhos esta suavi-dade, dos teus cravos esta carícia, da mirra amarga este favo, doteu abandono este amparo supremo, do teu sangue vertido a recon-ciliação com o sofrimento, a intuição das virtudes benfazejas da dor,o prazer inefável da clemência, divino sabor da caridade, a prelibaçãoda tua presença nesta alvorada, o paraíso da ressurreição.

...................................................................................................................................................................................Ressurgir! Tu ressurges todos os dias, com a mesma periodici-

dade, com que se renovam os teus benefícios e as magnificênciasda tua obra. Nega-te a nossa maldade. Nega-te a nossa presunção.Nega-te a nossa ignorância. Nega-te o nosso saber. Mas de cadanegação te reergues, deixando vazios os argumentos, que te nega-vam, como o túmulo, onde dormiste outrora um momento, parareviver dentre os finados.

................................................................................................................................................Assim, Senhor, quisessem ressurgir em ti os povos, que te não

crêem. A esses em vão procuramos dar com o aparato dos códigoshumanos a lei, a ordem, a liberdade. Sua sorte é extinguirem-se,porque não tiveram fé, e não sentem a religião do Ressurgido, quenão é só o evangelho das almas regeneradas, mas a boa nova dasnações fortes. Essas absorverão a terra a bem do gênero humano,enquanto as outras acabarão como raças de passagem. E por sobreo futuro, que há de ser a tua glorificação na voz das criaturas e doscéus se ouvirão para sempre os hosanas do teu triunfo: Ressurgiu!

A tribuna! Eis Rui Zeus! Se borda de língua literária a impren-

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sa, conjecture-se a obra de ourives ciclópico na candência da fráguatribunícia. Aí, a magniloqüência ruiana transporta a língua literáriapara os cumes do Sublime.

A “Oração aos Moços” é a nossa “Oração à Coroa”, aosrefletores da celebridade. Perceba-se, com imaginativa vibrátil, oarroubo que nos invade o músculo apaixonável ao irmos lendo aperoração do insigne baiano em seu discurso “Visita à Terra Natal”:

A Oração do FilhoEspírito supremo daquele que me ensinou a sentir o direito, e

querer a liberdade; daquele cuja presença íntima respira em mimnas horas do dever e do perigo; daquele a quem pertence, nasminhas ações, o merecimento da coerência e da sinceridade; ema-nação da honra, da veracidade e da justiça, espírito severo de meupai...; imagem da bondade e da pureza, que verteste em minhaalma a felicidade do sofrer e do perdoar, que me educaste noespetáculo divino do sacrifício coroado pelo sacrifício, carícia docéu na manhã dos meus dias, aceno do céu no horizonte da minhatarde, anjo da abnegação e da esperança, que me sorris no sorrisode meus filhos, espírito sideral de minha mãe...; se o bem desabotoaalguma vez à superfície agreste de minha vida, vós sois a mão dosemeador, que o semeou..., vós, cuja energia me criou o coração ea consciência, cuja benção derramou a fecundidade sobre as urzesde minha natureza. Quando, na minha existência, alguma coisa possainspirar gratidão, ou simpatia, não me tomem senão como o frutoem que se mitiga a sede, e que se esquece. Vós, autores benignosdo meu ser, vós sois a árvore dadivosa cujos benefícios sobrevivemno reconhecimento, que não murcha. Estas flores, magia de umjardim instantâneo, onda esparsa de uma alvorada balsâmica, estasflores em que se desentranha, ao contacto da Bahia, o berço, queme afofastes com a vossa ternura, que me guardastes com as vos-sas vigílias, que me perfumastes com as vossas virtudes, estas flo-res são vossas: recebei-as. Que elas envolvam no seu aroma avossa memória, reabram, em cada geração de vossos netos, aospés da vossa cruz, e deixem cair o refrigério de seu orvalho sobre aspaixões corrosivas, que ulceram a pátria, amofinando-lhe o presen-te, ameaçando-lhe o futuro.

Rui: o idioma nacional no vértice do monumentobrasileiro de língua literária.

Patenteia-se edificado por vastíssimo elenco de escritores, in-

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cluindo-se os vivos, o monumento brasileiro de língua literária, noséculo expirante. Só nesta Comunicação, retrolistam-se oitenta enove, dos idos.

Da plêiade, a “Águia de Haia” cumpre, à severa, o interpreta-do em Semântica de o Maior e o mais Autorizado Escritor.Efetivamente: adnomina-se o superior a Rui Barbosa. A “Casa deSão Clemente”, ao fácil, testemunha a imensidão de sua obra.

O mais autorizado? Diáfano: Rui Barbosa! Seu estilo, puro,clássico, responde. E o duelo com o sapientíssimo Carneiro Ribei-ro?!

A “Replica” é o baluarte da sabedoria lingüística de Rui contraquem, afoito, duvide um instante da sua autoridade máxima entreos literatos brasileiros.

Rui, ao cabo, é o superior e o mais autorizado de nossos escri-tores mortos e vivos.

Pela herança de encantos supremos que as letras de belezaruianas ensejam a todos, o idioma nacional, com certeza indelével,chegou, para regozijo nosso, ao vértice do monumento brasileiro delíngua literária.

Leiam-se, com amor, esta páginas imorredouras:As Andorinhas de CampinasPelo límpido azul já sem sol, antes que se lhe esvaia de todo o

oiro dos seus átomos de luz, mas quando o crepúsculo entra a des-maiar do seu brilho a safira celeste, um ponto retinto, perdido noslonges mais remotos, se acentua em negro na cúpula do firmamento,lá, bem no alto, bem de cima, como se a ponta de uma seta, desfe-chada perpendicularmente de além, varasse ali a redondeza anilada.

Era um; e, logo após, já são muitos, já vêm surdindo inumerá-veis, já parecem infinitos; já se cruzam; se recruzam; já se encon-tram e circulam; já se condensam e escurecem. Eram um grupo; ejá formam um bando, já vêm crescendo em longas revoadas, járefervem em enxames e enxames, já se estendem numa vasta nu-vem agitada. Toldaram o céu, encheram o ar, vêm-nos ondeandosobre as cabeças. Agora, afinal, com os movimentos de uma gran-de vaga sombria, ponteada de branco, a librar-se entre a terra e aimensidade, baixa a massa inquieta, rumorejando, oscilando, flutu-ando, rasga-se na coroa das palmeiras, açoita os fios telegráficos,resvala pelos tetos do casario, e, ao cabo, arfando e remoinhando,turbilhoando e restrugindo, com o estrépito de uma cascata argenti-na, de uma cachoeira de cristais que se despedaçam, chilreadaimensa de vozes e grasnidos às dezenas e dezenas de milhares,

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pende, mergulha e desaparece, numa imensa curva borbolhante,por sobre o largo telheiro abandonado, que esta aérea multidão erradiaelegeu entre vós para abrigo do seu descanso nas cálidas noites deverão.

O Terremoto de LisboaTodas as notas da elegia das aflições humanas soluçam no

quadro de suprema angústia, que, num dia inolvidável, apavorou, hácento e vinte e sete anos, essa gloriosa extrema européia de Oslusíadas,

“Onde a terra se acaba, e o mar começa”.Esse largo sorriso, azul como a onda jônia, da Europa ao Oce-

ano, deslizado em curvas graciosas à foz sussurrante do Tejo, anegra-se e contrai-se numa expressão de inenarrável desespero.

Era a manhã de todos os santos em 1755. Uma convulsãoatroz agita a soberba cidade em violentas contorções.

O solo desloca-se, gemendo, nos espasmos de um fenômenoassombroso, cujo círculo de oscilações estende-se de Dantzig aMarrocos, da Inglaterra a Madri, enturgesce as caldas de Poplitzna Boêmia, turva, na Escócia, as águas do lago Lhomond, revolveo Mediterrâneo, nas costas da Berbéria, encapela as meigas en-seadas da Madeira, e, transpondo, numa repercussão espantosa,o Atlântico, vem, do outro lado, ecoar nas Antilhas o ulular longínquoda catástrofe.

Dir-se-ia que “essa trombeta de horrendas maldições, em quefala Shakespeare, estrugindo das colinas desvairadas do glorioso riodo Gama, convoca os dois continentes ao sagrado horror do inaudi-to cataclismo.

A cabeça da grande Lusitânia vacila, como se a embriaguezda misticismo devoto a sacudisse no delírio de uma visão deApocalipse. As abóbadas dos templos confundem sob as mesmasruínas as imagens e os crentes, a hóstia e os levitas, o sangue dosfiéis e o da vítima incruenta; as ruas sulcam-se em abismos; ospalácios desabam trovejando; a casaria, esboroando-se numa su-cessão infinita de fragores indizíveis, desaparece na voragem, naconfusão e no incêndio, que açoita com as asas rutilantes as trevasdesse círculo dantesco.

De um lado, as chamas parecem destinadas a fundir a antigacapital do Ocidente, como o fogo mecedônio amalgamara outroranum metal único o oiro, a prata e o bronze das estátuas de Corinto;do outro, quinze metros acima das mais altas marés, a enchente,

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instantânea, minaz, caótica, infernal, abisma navios e navios emrepentinos sorvedouros, engole em cada assalto milhares e milharesde homens.

Quatro vezes a alucinada vaga humana desaparece entre avaga marinha e a vaga terrestre, que nalguns minutos devoramdoze mil almas, enquanto a viuvez, a orfandade, a miséria e o crimese levantam por entre esqueletos hirtos das casas aluídas; enquantoo infortúnio universal liberta os forçados e os escravos, criaturas evítimas de uma ordem social gangrenada até ao coração; enquantoo assassínio, a prostituição e o roubo laceram as entranhas e dispu-tam os restos da cidade violada e delirante. No meio desse conflitogigantesco de todos os elementos e de todos os terrores; entre essaluta de todas as tempestades da natureza com todas as desgraçasdo destino humano; sob um céu que a tormenta forrou do chumbode suas nuvens contra as lágrimas da terra; quando o dia foge e ochão falta debaixo dos pés; quando a opulência desaparece, esmi-galhada, enlameada, calcinada, pelas fendas do solo; quando a ra-zão se apaga em todos os espíritos; quando a loucura do medoenche o vazio deixado pela inteligência ausente, - de sobre essaimensa superfície devastada uma individualidade se levanta, expri-mindo a luz, a calma, a força, a soberania da consciência do ho-mem, ereta, augusta, salvadora.

Tal imperturbavelmente imóvel, através da noite, sobre a cra-tera acesa do Hecla solitário, quando a lava entornada queima deredor os campos, e destrói ao longe os últimos vestígios da vida, aincomensurável coluna de fogo que se alonga para os céus, indife-rente aos mais ríspidos ventos, enquanto o bramido formidável dofenômeno subterrâneo parece ameaçar a subversão do mundo.

(Homenagem do comunicador à Língua Portuguesano Brasil)

O idioma nacional

A Língua Portuguesa não é apenas idioma. É órgão de cate-drais nas horas dos grandes concertos.

Língua suave, fácil, que possui o vocábulo mãe, entre nós semrima; que tem a palavra sozinho, única intérprete da solidão extre-ma; que abrange o termo saudade, de sentido ímpar no mundolingüístico.

Língua rica, seleta, cheia de bondades. Veio de longe em

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caravelas e naus, e deve ter sido um milagre de maravilhas o pri-meiro nome português exclamado ao romper o Brasil.

Língua plangente para chorar os mortos! Língua risonhapara celebrar a vida! Afeto e impulso do coração, que todopatriota venera!

És o metal dos nossos segredos, a nave bendita de nossaspreces e a poderosa magia de nossos cânticos!

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Diante da impossibilidade da vinda do ilustre conferencista destahora, a organização do Congresso solicitou-me que, no espaço quea mim caberia nesta mesa de debate, usasse da paciência dos se-nhores para falar da minha visão de gramática, dos procedimentose/ou conteúdo que me levaram a determinadas posições.

Estou aqui entre dois gramáticos ilustres –Evanildo Bechara eManoel Pinto Ribeiro- cada com seu ideário gramatical do maiornível e do maior respeito.

O objetivo de minha fala é exclusivamente expor o que penso,ou melhor, o meu enfoque, indicando os que me iluminaram e aindame iluminam.

Na verdade, não haverá tempo para dizer tudo, ou falar sobretudo, mas espero ser claro e sucinto para dizer o necessário e sufi-ciente. Entendam o que vou dizer como meras reflexões sobre agramática. Alguns lingüistas têm asseverado que a gramática deveser lógica (Coseriu).

É claro que não se trata de uma simples adesão a um logicismogramatical. Crê-se que o objetivo na afirmação é ressaltar a distin-ção que deve haver entre logicismo e antilogicismo, que, no fundo,são igualmente errôneos.

Na verdade, quer-se possivelmente falar no que Coseriu cha-ma de ‘normas de coerência’. Indubitavelmente, a linguagem tem asua própria lógica, a sua lógica interior. Qualquer discussão que en-volva o tema ‘gramática’ cairá sem dúvida no tópico que aqui deno-mino de ‘enfoques’.E há muitos sobre os quais poderíamos discor-rer indefinidamente.

Dois deles – o estrutural e o funcional – têm sido objeto de

A Língua Portuguesa no Brasil: papeldos gramáticos na sua implantação

Walmírio Macedo,da ABF e USU

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aplicação de muitos estudiososNo momento em que esses enfoques começavam a ter o seu

lugar surge a chamada gramática gerativa de Chomsky.O conteúdo dessas teorias lingüísticas, como não poderia dei-

xar de ser, interferiu de muitas formas no ensino da Língua Portu-guesa no Brasil e nos textos gramaticais.

Nossos livros didáticos chegaram ao ponto de parecer livrosde lingüística e não compêndios que deveriam ensinar a línguavernácula. Crê-se que, a partir daí, é que surgiu uma aversão aoensino gramatical, como uma coisa inteiramente inútil.

Mas as coisas no Brasil parecem ser cíclicas, pois já tivemosum ensino exclusivamente gramatical, depois um ensino lingüistificado,sem gramática de qualquer natureza, depois uma sadia discussãosobre se deve ensinar gramática ou não, e agora parece voltar-se auma supervalorização de uma gramática utilitarista, como demons-tram as colunas de Língua Portuguesa em dezenas de jornais erevistas do Brasil inteiro.

Creio que tudo isso merece uma reflexão. Uma reflexão denatureza metodológica, uma vez que, no que tange ao conteúdo,temos excelentes gramáticas.

Voltamos assim à palavra chave do nosso início ‘enfoques’.Quando digo ‘enfoque’, penso em Pottier quando, no prefácio desua Lingüística Geral –Teoria e descrição, tradução e adaptaçãoque fizemos para o Português, diz que “o que importa são os con-ceitos e seu funcionamento; a coerência do todo é mais rele-vante do que qualquer rótulo de escola ou teoria”.

Para construir uma interpretação lingüística, faz-se necessárioque o fato lingüístico se baste a si mesmo, ou seja, sem recurso afatores extrínsecos. Esse é o enfoque da imanência. Não se deverecorrer a elemento extrínseco para explicar elemento do sistema.

Diante de um fato lingüístico, o estudioso tem diante de si trêscaminhos: o semântico, o formal ou estrutural e o funcional.

No primeiro, a primazia é do significado. No segundo, a prima-zia é da forma e no terceiro, procura-se conjugar forma e significa-do. Trata-se de opção que há de ser feita.

Mattoso Câmara, no cap. ‘A classificação dos vocábulos for-mais’, in Estrutura da Língua Portuguesa, ressalta que há 3 crité-rios para classificar os vocábulos formais de uma língua. Um é ocritério semântico, outro é de natureza formal e um terceiro, o fun-cional, ou seja, a função ou papel que cabe ao vocábulo na senten-ça. (p.67, 1970)

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Sua opção é pelo terceiro critério. É o nosso também.O problema da distribuição das palavras em classes – a cha-

mada classificação das palavras sempre me preocupou pela razãoda dificuldade de ‘engessar’ num grupo coisas tão diferentes eheteróclitas. Foi em Georges Galichet, em seus dois livrosMéthodologie gramaticale e essais de grammairepsychologique, que encontrei a melhor solução que passei a seguirna minha gramática. Galichet estabelece grupos gerais comcaracteres comuns e dentro deles coloca as classes. Assim, classesprincipais, classes adjuntas, classes de relação ou conectivas e mar-co de classe. Além de outras vantagens, a classificação de Galichetnos dá uma visão morfossintática, ressaltando que as chamadaspartes da gramática, ou planos como prefere chamar, são nítidosvasos comunicantes.

Outro francês também marcou muito a minha visão gramati-cal, o prof. Bernard Pottier. Com ele, aprendi de início colocar oponto de equilíbrio entre sincronia e diacronia. Aquela ojeriza quealguns nutrem pela diacronia nos estudos gramaticais fica diluída oucolocada na justa medida numa belíssima página de Pottier.

O que mais me chamou atenção em Pottier, ao contrário doque muitos imaginam e dizem, é o seu espírito didático. A sua visãoparece estar voltada para uma apresentação didática do assuntotratado. É bem verdade que tem, às vezes, uma preocupação cons-tante com o significado, uma exagerada preocupação semânticasegundo dizem os negativistas que não o leram e não gostaram.Digo isso a respeito do termo ‘exagerada’.

Mas é essa preocupação semântica que nos faz compreendermelhor a visão sintática de um texto.

Assim, quando comenta (LGTD, p. 135) :Um fuzil escondidoé pela relvaé com relvaé na relva,

em que indica pela relva como causa, com relva como instru-mento e na relva como locativo espacial, a visão semântica claraleva à identificação também clara do adjunto adverbial.

Seu enfoque sobre vozes verbais também semântico é único,porque é abrangente, não deixando de fora nenhum tipo de verbo. Oenfoque tradicional –ativa, passiva e reflexiva- é ineficaz. Para Pottier,temos sete tipos de vozes: atributiva (Pedro é bom), equativa (Pedro

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é um trabalhador), situativa (Pedro está no quintal), possessiva (Oleão tem cor amarela), além da ativa, passiva e reflexiva.

Sua visão sobre aquilo que ele chama de ‘eixos modais’ lançauma luz sobre um problema controvertido na combinatória de doisverbos, estabelecendo assim a compreensão sobre locução verbalou não. Assim, os verbos poder (ou semelhantes) e querer, seguidosde infinitivo, do tipo ‘eu posso estudar’ e ‘eu quero estudar’..

Compara , por exemplo, ‘João quer partir’ e ‘João vaipartir’(LGTD, 178 e 263).

Interpreta ‘João quer partir’ em dois segmentos semânticos:‘João quer’ e ‘João vai partir’, ao passo que em ‘João vai partir’ sóse pode achar um segmento semântico: ‘João parte’.

Quer partir decididamente não é um bloco. Partir é o objetode quer. Mas ‘vai partir’ é um bloco.

O enfoque sobre as preposições de Pottier acaba aquela no-ção tradicional como classes vazias. Em ‘uma xícara de chá’ e‘xícara para chá’, fica, segundo ele, caracterizada a importânciasemântica da preposição.

As preposições têm um significado, não um significado comotêm os substantivos que evocam uma imagem ou idéia, mas indu-zem um significado. Temos preposições que ligam um objeto indi-reto a um verbo e um complemento nominal ao nome que nãoinduzem a nenhum significado, a não ser o papel sintático. A essetipo de preposição chamei de vazia em minha gramática. Masnem a essas Pottier considera vazias, pois reconhece nelas umsignificado sintático.

Nos demais casos, as preposições são cheias, indicando espa-ço, tempo e, não sendo espaço nem tempo, noção. Nesse termoincluem-se todos os significados, como causa, fim, limitação, meioetc.. Esse enfoque das preposições leva à compreensão do adjuntoadverbial e favorece uma nítida oposição entre objeto indireto eadjunto adverbial.

Na sua metodologia, muitos procedimentos usados por Pottiersão muito interessantes. O esquema de substituição e equivalênciaé empregado de forma muito esclarecedora.

Há muitos outros enfoques que aproveitei na minha teoria gra-matical, como o da estrutura de compreensão que apliquei paraexplicar o adjunto adnominal /v/complemento nominal,

o conceito de potência, a hierarquização no adjunto adnominalcontribuíram para muitos de meus enfoques gramaticais.

Entre os nacionais, não posso deixar de mencionar o meu pro-

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fessor Mattoso Câmara com sua contribuição na fonologia emorfologia.

Na verdade, não há ninguém que tenha escrito sobre assuntosgramaticais que não tenha sido influenciado pelos diferentesgramáticos brasileiros e portugueses dos dois últimos séculos. Hámuita coisa boa – e porque não dizer moderna –em José VenturaBóscoli (Gramática 1898), em Júlio Barbuda (Gram. 1926) e maispróximos Mario Barreto, Júlio Nogueira, Nascentes, Candido Jucá,Macambira, Celso Cunha, Rocha Lima e dos que estão entra nósAntonio José Chediak e Evanildo Bechara.

A esses todos presto, neste momento, a minha homenagem egratidão, ressaltando, como já disse alguém, a verdadeira originali-dade está na capacidade de saber usufruir da sabedoria dos que nosantecederam.

Bibliografia

BARBUDA, Julio - Gramática da Língua Portuguesa, 1926.BÓSCOLI, José Ventura - Gramatica da Lingua Portuguesa, 1898.MATTOSO, Câmara - Estrutura da Língua Portuguesa.POTTIER, Bernard - Lingüística Geral – Teoria e descrição –Trad. eadaptação de Walmirio Macedo . Presença Editora, Rio.

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Não raro, surgem as expressões do título com emprego ina-dequado. Atenda-se vestibularmente a que tudo desta fase préviada Comunicação se requer, para se aquilatarem de modo integralos pareceres adiante lavrados.

Que há de entender-se por língua culta? De logo, o exatoadjetivo da nomeação pronto se encarrega de a insular, por cheio,do período analfabético, deformado ou incorreto do vulgo.

Culto (adj.) provém de cultus (adj.), já de si oriundo decultum, supino ativo de colere (da 3a conj.), cultivar. Donde, cultoigualiza a cultivado, e este iguala, no ramo do saber, a desenvolvi-do e formado pelo estudo, a cujas normas obedece nas atuações.

Língua culta chama-se à que se estrutura conforme as disposi-ções vigorantes da gramática normativa. Trata-se da linguagemcorreta. Nela, os utentes se acomodam, benévolos e constantes,aos referidos preceitos. Serve, de aparelho comunicador, às pesso-as instruídas, membros do grupo social pertencentes a ofícios e ca-madas, os mais diversos. Individualizam-se pelo cuidado na matériafrásica, ou até esmero, e pela riqueza vocabular.

Linguagem corrente máxime nas secções mais bem afortu-nadas do corpo social, ora sucede em modo formal, ora informal.Formal, quando cerimônia domine o evento: no quase total dosdiscursos, conferências e exposições outras de idéias; nas corres-pondências oficiais, nos requerimentos, contratos, relatórios equejandos. Informal, se não existe protocolo na circunstância.Aplica-se nas cartas entre familiares ou amigos, nos diálogos co-tidianos, bilhetes, notinhas e que tais.

Advirta-se que a língua culta opera nas manifestações orais e

Língua culta e língua literária

Walmírio Macedo,da ABF e USU

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gráficas, bem como em toda exibição da ciência. Ao demais, nesseaspecto lingüístico prepondera com mui subido grau a denotaçãoou, em nomenclatura do eminente Coseriu, designação real. A lín-gua culta envolve, para em verdade o ser, a mais do atributo decorreta, no mínimo os de clara, precisa, coerente e concisa. Paraexemplos de língua culta prestam-se as composições: · LeonelFranca: Dignidade da pessoa. · Alceu Amoroso Lima: Meusmestres. · Farias Brito: O momento mais feliz de minha vida.

Expande-se a língua escrita para surtir a literária.Como definem língua literária?Uns: a linguagem dos escritores. Outros: é a mais elevada

expressão da língua escrita.Em Lógica, tais afirmações não produzem definição, como

tal. De trânsito: a especulação da natureza, métodos, espécies eleis das definições, estas enquanto tais, é exclusivo assunto demanuseio filosófico.

Estão completas ambas aquelas simples declarações? Julgonão.

Literário flui de littera, letra; depois, no plural, litterae, comsignificação transcendente no próprio latim clássico: boas-letras.

Língua literária, então, designa-se a que revela de maneiraartística a mensagem.

Ora, arte implica beleza. Se, quando se ventilem proposiçõesestéticas, da palavra se utilize sem o referido importe, ela, na re-flexão, tem lugar por absurdo equívoco. O estudo volvido à essên-cia da beleza é privativo da inquirição filosófica, no ramal Estética,para onde convergem abundantes contributos da Psicologia e daMetafísica, unidos àquela qüididade.

Belo provém de bellus (adj.), contração de benulus, diminu-tivo de benus, arcaico de bonus. Na origem, assim, encontramosa idéia de bom, de senhor das qualidades convenientes à sua natu-reza ou função, e oposta à de mau.

Aprofundando, aliás, benulus eqüipola-se a bonzinho, dimi-nutivo, idéio, com significado já romano arcaico intensivo ou desuperlativo absoluto sintético. Similarmente à qualidade em: rostolindinho (muito lindo). Belo, por alcance, de longe carreia o signi-ficado, não só de bom, porém até de muito bom, boníssimo, ótimo.Elo, para vincular-se benulus a bellus.

Abstratamente aferido, melhor o belo se sente que se define.Antes se intui do que se entende. Não se lhe negue, porém, serobjeto de inteligência, visto sê-lo de intuição. “A beleza é o esplen-

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dor da ordem e da perfeição.” (Estevão Cruz.) Se algo for real-mente belo, a todos, quando normais e não desviem o sentimentode espontaneidade, a todos agradará, em qualquer parte e a cadahora, porquanto, incansável, a beleza delicia, reluz e conquista.Verdade: para o julgamento exemplar a respeito do belo, exige-seadquirir, desenvolver e aprimorar o bom gosto.

O antônimo de belo quem no desconhece? Aliás, mais fácilde compreender que seu inverso.

Brota o vocábulo feio de foedus (adj.), da mesma origem defoetere (da 2a), raiz foet, em português fet ou fed, exalar maucheiro. Por esse motivo, linguagem feia, mirando-se o étimo, im-porta o conceito de fétida, e no figurado: que desperta aversão ou,pelo menos, desprazer, desgosto, desinteresse. Essa porventura élíngua literária?!

Visa, em epílogo, a língua literária a escopo esteticizante. Suanatural essência jamais se contém – óbvio – em exteriorizações dopensar e do sentir vácuas do belo. A Estética enumera os efeitos dabeleza no homem. O belo provoca alegria ou, no menos, grandesatisfação ao contemplador. Ocasiona-lhe admiração, conjunto depasmo e respeito. Gera-lhe impulso de transferir aos mais o deleitegozado, de partilhar com os semelhantes a comoção que o invadiu.Corolário: obra que deseje retratar língua literária tem de munir-secom as virtualidades promotoras dos efeitos do belo.

Eis o que mais remoto houve e existe na energia vital dalíngua literária e lhe afiança a perpetuidade. Concentra-se aí o queaos beneficiários da leitura nas obras genuinamente artísticas pro-mete e cumpre o nosso e o de todos idioma literário. Avulta acadeia metafísica: a língua literária causa o estilo literário, e este aobra literária.

Caso faleça à obra que enlistaram por literária a dita espéciede língua, o trabalho, admitido embora como otimamente elabora-do, em rigor não é obra literária. Será culta.

Neste aparecer da Literatura, predomina soberana com amaior amplitude a conotação, pois a subjetividade governa comimpério os atos do compor mental e do externo. Baila nas folhasgrafadas o termo em significado alegórico, multívoco. Positiva-secom relevo a individualidade por necessitar o expositor de ofere-cer ao público a sua mundivisão, criatividade, o entendimento par-ticular do concreto e do abstrato, do real e do imaginário. Nessecampo de flores, a cultura depara festiva ao mágico do verbo osáureos processos da figurística. A linguagem translata propor-

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ciona-lhe fugir das raias denotativas, pouco fecundas, e pene-trar aceso as regiões ilímites abertas ao poder cosmogônico dainteligência humana.

Pelo ângulo da Psicologia, nota-se: para a língua literária muitomais se inclinam e apelam os escritores de temperamento coléricoou sangüíneo, que os de melancólico ou flegmático, pensos bemantes para a culta.

Procura quem redige à literária suscitar no âmago dos leito-res abalo estético, prazer mental; pretende enunciar estilisticamentea beleza e, se escritor, fatos da existência própria ou social, dorese júbilos, tudo enfim quanto possa comparecer na ribalta da vida.

A linguagem deveras literária encerra no tronco a doce almapoética. Dá-se-nos em prosa e verso. Ninguém desconheça: notecido prosaico ideal ritma-se. Para alguém reverter em consu-mado prosador, urge, por conseguinte, saber e exercitar com per-severança a métrica, e seguir, até que se automatize no ritmo afaculdade criadora. Assenta a língua literária na de figurino culto.Por isso, abrange-lhe os itens já cotados. Aqui, entretanto, se jun-tam novas: acima do restante, harmonia (a música do estilo), co-lorido e elegância; acompanhados de originalidade, pureza, vigore nobreza, se menos.

Adite-se que pode a linguagem na qual se compôs uma obrade índole instrutiva, uma narração da vida particular de alguém,ser literária, contanto em si reúna as condições enxutas do culto edo belo. Exemplos: “Brasil – Minha Terra”, História do Brasil(fatos admirandos), de Mário Sete; “Geografia Sentimental”,Geografia do Brasil (notabilidades), de Plínio Salgado.

Nesta área, de língua, permite-se aos mui sabedores perma-nente liberdade para, cônscios, violarem ordenanças gramaticais,a fim de obter mais efeitos expressivos.

À busca de, no exame das elevadas manifestações gráficasem língua literária de um povo, na empresa de bem conhecê-las,para, em final, dizer o estado e o grau de civilização descoberto,move-se árdega e prestante a Filologia – ensinam os doutos nalinda ciência.

Ocorre vaga referência ao uso quase correto da fórmula aven-tada língua literária ao sustentar-se: é a linguagem dos escritores.

Convenha-se: muitos deles se provêem de nenhumas bele-zas ou, até, de feiúras inumeráveis, principalmente em verso.Aparecem, todavia, arrolados como escritores, sem mais, no sen-tido fidalgo de literatos ou de quem traça por língua literária. Gran-

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de massa de outros, acentue-se, não escreve com o belo, porémcom o certo. Devem, com que de fato devam, enfileirar-se comoescritores mas de língua culta, preço dignificante, suposta a molegigantéia dos escrevedores.

Aqueloutros (praticamente a soma dos tratadistas) reduzema língua literária à mais alta representação apenas da língua escri-ta. Dessarte, consideram-na o mais loução feitio só desta últimalinguagem. Em termos paralelos: a manifestação oral, de cunhoapesar de artístico, não merece classificada de língua literária,enquanto fora de documento.

Ora, pertence à Literatura o complexo das obras indumentadasem linguagem estética. Cogitemos: um orador, o perfeito, assomaà tribuna. Do exórdio à peroração, discorre firme e sem papelacerca de leve ou substancioso conteúdo, por mando da conjuntu-ra, em linguagem amoldada aos estatutos da exposição enfunadade beleza. A tribuna, mais que a caneta do prosador na escrita,usa a linguagem figurada, ao maior a tropológica: metafórica,metonímica, perifrásica, e a de pensamentos. Não discursou emlíngua literária?! Tanto ainda quanto, orador, pode ascender aoOlimpo reservado à sua atividade específica: o Sublime, que é oesplendor do belo. E até: “a expressão sensível do infinito.” (Kant.)Não fala o tribuno em língua literária?!

Há, por isso, de o eloqüente senhorear-se dos arcanos daforma escrita. O orador pressupõe o escritor.

Cuido, em resultado, que a língua literária repousa na lingua-gem não só dos escritores senão também dos oradores, contanto,reitere-se, exprimam estes os elementos da notícia em plano debeleza. Contem-se – logo – duas línguas literárias: escrita e oral.

Nada custoso perceber a linguagem gráfica estética. A deeloqüência apenas verbal, entretanto, unicamente os peritos noidioma e nas virtudes estilísticas a identificam, se a manifestaçãode rostro evolve no modelo por excelência, que extrema o autên-tico orador: o improviso.

Se a oração já vem nas laudas, ou se taquigrafa ou, em maisatualidade, se falada, de repente, se gravou e, após, se transcre-veu, o reconhecimento de proferida em língua, à risca, literária senivela ao de página de escritor fundida nessa linguagem.

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Parte III

Resumos de comunicações

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Isoglossas do portuguêsAfrânio da Silva Garcia, da UERJ/FFP.

Partindo do conceito de isoglossa, faz-se um levantamento dostraços característicos que diferenciam tanto a modalidade brasi-leira da modalidade européia da Língua Portuguesa, quanto osdialetos e falares do português do Brasil e de Portugal entre si.Num segundo momento, estende-se esse levantamento aos tra-ços característicos mais evidentes das variações lingüísticas doportuguês, como a diferença entre português culto e inculto; entreportuguês formal e informal, assim como suas subdivisões; entreportuguês escrito e falado, etc. Ao final, apresentam-se as conclu-sões decorrentes da pesquisa.

O contorno semântico-sintático dos adjetivos em “Ocoruja” de Aluísio de AzevedoAfrânio da Silva Garcia, da UERJ/FFP

Apresentação dos adjetivos encomiásticos e pejorativos em“O Coruja” de Aluísio de Azevedo, como parte da pesquisa sobreRelativismo Lingüístico: relações entre semântica, cultura esociedade. A significação dos adjetivos encomiásticos e pejorati-vos na obra em questão. Sua significação

própria e sua significação

deslocada: conotação e uso estilístico dos adjetivos. Suas relaçõesparadigmáticas e sintagmáticas a partir do método de comutação,preconizado por Saussure. Sua colocação (de acordo com a defini-ção

de Lyons) e sua contextualização.

Intertextualidade como característica da língua literáriamachadianaAlexandre Marcelo Matos, da UFJF

Este trabalho tem por objetivo mostrar a relação intertextualque há entre a obra machadiana Esaú e Jacó e a Bíblia Sagradaa partir dos Salmos de Davi, valorizando as diferenciações exis-

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tentes entre estas duas obras. Concluiremos o quanto é original aobra machadiana nesta relação intertextual. E que Machado deAssis, ao manter um diálogo entre a sua obra e o texto bíblico,modifica-o para o contexto oitocentos do Rio de Janeiro, havendodeste modo, uma atualização do texto bíblico.

A cidade na obra de Lima Barreto e de Almada NegreirosÂngela Maria Thereza Lopes, da UniverCidade e da Universida-de Estácio de Sá

Lima Barreto e Almada Negreiros são escritores do início doséculo XX, da literatura brasileira e portuguesa, respectivamente.Suas produções, ainda que separadas pela distância geográfica, le-vantam questões culturais profundas, que revelam espíritos críticose atentos para a modernidade de seu tempo. A leitura dos romancesRecordações do Escrivão Isaías Caminha de Lima Barrreto eNome de Guerra de Almada Negreiros vai enfocar o espaço urba-no, signo da modernidade nesse período, procurando levantar ques-tões que permitam reconstruir a sociedade brasileira e a portuguesae analisar como a cidade desse período foi pensada e representa-da por dois intelectuais de culturas diversas, mas contemporâneos.

Rostos femininos em A geração da utopia, de PepetelaAssunção de Maria Sousa e Silva, mestranda em Poética/UFRJ

As figuras femininas no romance A geração da utopia dePepetela, no contexto ficcional da história angolana, representam,por um lado, a força de resistência revolucionária que revigora ossonhos dos agentes sociais e, por outro, os modelos estereotipadosque compõem o seguimento dos indiferentes às causas políticas.Pepetela trata as questões individuais como desdobramentos docoletivo, redimensionando o caráter da luta angolana. Vemos a figu-ra de Sara contemplada na noção de sujeito de que fala Hutcheon,no sentido de abarcar novas maneiras de ser e intervir no processohistórico e na narrativa, descentralizando o sujeito tradicional / patri-arcal. Por outro lado, compartilhamos das idéias de Padilha ao cons-tatar que A geração da utopia é uma narrativa com técnicas con-servadoras, embora “tematicamente” se aproxime de modelos pós-modernos com uso inovador da ironia e da paródia.

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O “sociolingüista” Mário de Andrade e o problema daLíngua BrasileiraCarlos Alexandre V. Gonçalves, da UFRJ

É fato conhecido por todos aqueles que se dedicam ao estudodas obras de Mário de Andrade seu aguçado interesse pela descri-ção da fala viva e pela realização do oral como fonte de dadoscaracterizadores do português do Brasil. Desde a publicação doPrefácio interessantíssimo, de 1921 - obra em que pela primeiravez utiliza a expressão “língua brasileira” - até suas produções maisrecentes, como O empalhador de passarinhos, de 1944, sãomarcantes as investidas marioandradinas nos terrenos da Lingüística,de uma forma geral, e da Sociolingüística, mais especificamente.Tomando como ponto de partida a obra literária de Mário de Andradee os trabalhos por ele realizados à frente do Departamento de Cul-tura do Estado de São Paulo, entre 1936 e 1938, busco apresentar ediscutir, nesta comunicação dados que evidenciam a profunda sen-sibilidade sociolingüística do autor, que pode se inserir perfeitamenteno contexto dos estudos dialectológicos inaugurados por AmadeuAmaral, com O Dialeto Caipira. Mais especificamente procuromostrar que as estratégias usadas por Mário de Andrade inovado-ras para seu momento refletem preocupações teórico-metodológicasda pesquisa sociolingüística atual, ressaltando-se, ainda, o carátercientífico do projeto que originou o Primeiro Congresso de LínguaNacional Cantada (1937), evidenciado na explicitação e na funda-mentação de cada passo de sua pesquisa e de sua obra literária.

História externa do português do BrasilCastelar de Carvalho, da UFRJ e ABF

Implantação e evolução da Língua Portuguesa no Brasil sobos pontos de vista da História e da Sociolingüística. A visãoetnolingüística de Serafim da Silva Neto. A contribuição de filólogosbrasileiros e portugueses.

Diálogo entre tradições: uma leitura de “A cartoman-te”, de Machado de AssisCecília de Macedo Garcez, da UFJF

Nesta comunicação, dedicar-nos-emos a uma análise do conto

“A cartomante”, de Machado de Assis, a partir da intertextualidade

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neste realizada pelo escritor. Tal abordagem nos permitirá subli-nhar a posição importante de tal artista na literatura brasileira, in-clusive pela possibilidade que sua escritura nos proporciona delevantar discussões sobre dependência cultural, identidade nacio-nal, sobre relação países colonizadores/países colonizados e tradi-ção local e importada.

O fim de Arsenio Godard, de João do Rio: o destino deum voluntariosoCláudio de Sá Capuano, mestrando em Poética/UFRJ

O conto O fim de Arsenio Godard, de João do Rio, publica-do no volume Dentro da noite, de 1910, trata da prisão de umtraidor, um estrangeiro, francês de nascimento, que expionavamarinheiros revoltosos. Capturado e levado ao navio, Arsenio re-cebe a mais dura das penas: o silêncio. Nenhum dos revoltososestava autorizado a tratá-lo mal, mas, da mesma forma, estavamproibidos de lhe dirigir a palavra ou lhe responder qualquer indaga-ção. O que se percebe é que toda a tensão dos revoltosos é ca-nalizada para a figura de Godard. Isto se dá pelo fato de o estran-geiro ter violado um tabu de um determinado grupo, pondo emrisco a vida de todos. A palavra, arma do delito, a delação, é opróprio instrumento da punição. Se a palavra seria a perdição dosdelatados, a sua interdição se transformou na perdição ao delator.

Os caminhos da memória: esquecer e lembrar. Uma lei-tura de Baú de ossos, de Pedro NavaCristina Ribeiro Villaça, da UFJF

Nesta comunicação faremos uma leitura de Baú de ossos,abordando o diálogo entre ficção e realidade. Privilegiando o papelda memória como possibilidade de reconstrução do passado, aescrita naveana insere-se no corpus literário do século XX, con-ferindo ao gênero memorialístico, o status de literatura. A partir dopacto esquecer/lembrar, enfoque do caráter fragmentário de talconstrução discursiva.

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Texturas da narrativa de Autran DouradoIrene Jeanete Lemos Gilberto, da Universidade Católica de Santos

O presente trabalho analisa o conto de Autran Dourado “Asduas vezes que Afonso Arinos esteve em Duas Pontes”, da obraVioletas e caracóis, discutindo os procedimentos narrativos quecaracterizam a pluralidade de gêneros do discurso e a técnicadiscursiva do autor que resgata, na ficção, o traçado da biografia.

Neologismos formados por empréstimo na Língua Por-tuguesa escrita contemporânea do BrasilIsabel Aparecida de Souza Stamato, da PG/FCL-UNESP -Araraquara)

Este trabalho pretende estudar os neologismos formados porempréstimo na Língua Portuguesa escrita contemporânea do Brasilcom base em um corpus extraído de revistas e jornais brasileiros degrande circulação nacional e internacional. Apresentamos uma aná-lise dos neologismos por empréstimo lexical segundo GUILBERT(1975), que considera três critérios para que um item lexical estran-geiro esteja em vias de se integrar a uma língua: (i) critériomorfossintático; (ii) critério fonológico; e (iii) critério semântico.

O português do Brasil: a língua de AlencarJorge Marques, mestre em Literatura Brasileira / UFRJ

O aspecto estilístico do trabalho com a língua promovido porJosé de Alencar revela o caráter dúbio de seu projeto romanesco e,por extensão, de todo o movimento romântico brasileiro. É assimque as propostas teóricas de Alencar, se por um lado, refletem já umcerto amadurecimento do sistema literário brasileiro, por outro lado,não são levadas até às últimas conseqüências na prática, havendo,por assim dizer, uma abertura de concessão por parte do escritor.Este descompasso que perpassa toda a obra de Alencar e que ca-racteriza, no final das contas, certa dose de artificialismo por partedo projeto do escritor, deve, porém, merecer compreensão: sendoum pioneiro na reivindicação de um estilo brasileiro de escrever,assunto tão polêmico em época de gramatiquice caturra, não sepode exigir de Alencar total coerência entre teoria e praxis, massomente louvá-lo por, com suas propostas, ter ajudado a impulsionare a efetivar um sistema literário caracteristicamente brasileiro.

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A trajetória da Língua Portuguesa na Amazônia colonial José Ribamar Bessa Freire, da UERJ

Quando o Estado do Grão-Pará aderiu à Independência doBrasil em agosto de 1823, uma parte expressiva de sua populaçãonão falava o português como língua materna, situação que se pro-longaria ainda por algumas décadas. Coube, portanto, ao estadoneo-brasileiro a tarefa de completar o processo de portugalizaçãoda Amazônia. Esta comunicação pretende fazer uma síntese daviagem - atribulada, tortuosa e demorada - da Língua Portuguesapelos rios da bacia amazônica, no período colonial, destacando asdiferentes formas de contato com as línguas indígenas. Duranteesse processo, o português e as línguas indígenas desempenharaamdiferentes funções seja como meios de comunicação corrente,familiar e técnico-prática, seja como veículos de transmissão deexperiências históricas ou como instrumentos de criação literáriatanto oral, quanto escrita. Despertaram em seus falantes compor-tamentos, sentimentos e atitudes de identificação ou deestranhamento e funcionaram, aqui e ali, como fatores de identi-dade étnica e de coesão social. Alguns desses aspectos serãoabordados, numa perspectiva histórica, com destaque para a rela-ção, ás vezes dramática, de interculturalidade, criada com o contatoentre as diferentes línguas.

A produtividade de alguns dos processos formadoresde palavra na constituição do vocabulário de pescado-res artesanaisKatia Carlos Alves /Nelson Carlos Tavares Junior /VanessaSant’Anna Tavares, da UFRJ

Esta pesquisa foi realizada a partir dos dados eliciados do corpusdo Projeto APERJ (“Atlas Etnolingúistico dos Pescadores do Esta-do do Rio de Janeiro”). Esse inventário foi extraído de entrevistasrealizadas com pescadores artesanais, analfabetos ou de pouca es-colaridade, cuja atividade profissional se dá em ambiências lacustre,marítima ou fluvial. Para a composição do corpus desta comunica-ção, analisou-se o falar dos informantes inerentes às ambiênciaslacustre, marítima ou fluvial com o objetivo de se fazer o levanta-mento de signos - considerando os seus significantes - , cuja realiza-ção nos inquéritos analisados não figuram no Dicionário Aurélio.Além disso, foram levados em conta vocábulos dicionarizados cujos

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significados são utilizado pelos informantes de maneira diferente doemprego usual. Como processo de reflexão sobre a ocorrência detais significantes elegeram-se os processos morfológicos de forma-ção de palavras para depreender o emprego de tais lexias. Quantoaos significados não usuais, procurar-se-ão elucidá-los com baseem processos metafóricos, analógicos e outros. As lexias ora anali-sadas serão dispostas cartograficamente, lançando-se mão dos re-cursos propiciados pela Dialectologia e pela Geografia Lingüística.

Murilo Mendes e as rasuras na religiosodadeMara Conceição Vieira de Oliveira, daUFJF

Considerando Murilo Mendes um poeta multifacetado queexibe temáticas como: o eterno feminino, a irreverência, a buscado conhecimento e aspectos estilísticos pertinentes à modernidade,optou-se pelo discurso religioso para uma análise mais elaborada,de vez que é um aspecto fortemente marcado na obra de MuriloMendes.

A defesa da Língua Portuguesa e do Império Lusitanonos primeiros gramáticos e em António FerreiraMárcia Maria de Arruda Franco, da UFOP/CNPq

Quando, em fins do século XV, os portugueses obtiveram êxitona descoberta da nova rota para a Índia e de terras desconhecidasno Novo Mundo, a cultura portuguesa não divulgada apenas emportuguês, pois, para os homens dessa época, língua e pátria nãoformavam uma aliança como elementos determinantes da naciona-lidade. Na poesia, imperava o primado do castelhano, nos relatossobre as novas descobertas, a língua latina. Foi ao longo século XVIque a necessidade de difundir a língua do colonizador por todo oimpério lusitano gerou o movimento, num primeiro momento restritoaos primeiros gramáticos e António Ferreira de defesa e de codificaçãoda Língua Portuguesa. Esta deixaria de ser apenas mais um dosdialetos ibéricos, elevando-se a idioma imperial.

“Jeitinho brasileiro” - a expressão idiomática no portu-guês do Brasil: uma contribuição para o léxico da línguaMaria Auxiliadora da Fonseca Leal, da FALE/UFMG

Desde Saussure, sabe-se que a língua é um sistema rigorosa-

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mente conexo, de meios de expressão comuns a um conjunto depessoas. Esse sistema, que por sua vez, só existe nos indivíduosfalantes, tem de um lado, existência independente deles, porqueassim como outras instituições sociais lhes é imposto. De outrolado, cada pessoa tem o seu jeito de falar a própria língua, de modoque tantas há quantos são os indivíduos. Na presente comunica-ção pretende-se apresentar algumas expressões idiomáticas doportuguês do Brasil que atuam como um importante fenômenolingüístico de criação lexical. Sabe-se que a língua nacional compronúncia brasileira, com vocabulário enriquecido por elementosindígenas e africanos é também composta por criações e adoçõesrealizadas na própria língua. Gonçalves Dias com sua linguagemprópria já dizia: “A minha opinião é que, ainda sem querer, havemosde modificar altamente o português. O que é brasileiro é brasileiro,e que “cuia” virá a ser tão clássico como “porcelana”, ainda quenão a achem tão bonita”. A numerosa ocorrência de expressõesidiomáticas em português comprova a importância e a necessida-de de uma análise mais apurada do fenômeno que comporta as-pectos culturais, sociais e políticos bastante evidentes. Espera-seque, no presente trabalho, alguns aspectos que envolvem as ex-pressões idiomáticas, no português do Brasil, sejam elucidados.

As duas faces da cidade na prosa ficcional de João do RioMariângela Monsores Furtado Capuano, mestranda em Literatu-ra Brasileira/UERJ

No início deste século, o Rio de Janeiro, repercutindo os ecosda modernização dos grandes centros da Europa, passou por umasérie de modificações, preparando-se para a vida urbana nos mol-des modernos, como já era fato em capitais européias.

Na cidade, agora modernizada e higienizada, não havia lugar,ao menos no entender de certos cidadãos da época, para os popula-res que se aglomeravam em antigas construções. Como observaRenato Cordeiro Gomes, “esta cidade real, por onde circulava umarica tradição popular, não cabia na visão da ‘ordem’. Era vista comoobscena, ou seja, deveria estar fora de cena, para não manchar ocenário...”. É o convívio entre os homens e seu livre trânsito entreos dois lados da mesma cidade que o cronista João do Rio fixa emseus textos, especialmente nos contos publicados em Dentro danoite (1910), contos que aqui analisamos com o intuito de destacaros contrastes sociais que se misturam, num ambiente que ora se

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recobre de requinte, ora se ‘acanalha’ nos becos da cidade.

A reinvenção do infinito: mundos imaginados e imagi-nários em A idade do serrote, de Murilo Mendes MariaPerla Araújo Morais, da UFMG

Leitura do livro A idade do serrote enfocando o eumemorialístico enquanto construtor/desconstrutor de limites re-ais e imaginados. Abordagem das questões de origem, do tempoe do espaço a partir da constatação da tendência à ruptura delimites. Ênfase no caráter performático através do qual o discur-so literário de Murilo Mendes subverte o real imaginado, o quepor vezes ocasiona uma aprendizagem, por outras, demostra odesejo de desterritorialização (ruptura dos limites espaciais) eainda nos possibilita observar a proposição de uma refiliação ouuma revisão da origem.

A onomástica indígena no português do Brasil: confron-tos lingüísticos e interétnicosMaria Vicentina de Paula do Amaral Dick, da USP

A diversidade lingüística entre o português europeu (PE) e oportuguês brasileiro (PB) remete a considerações históricas eetnográficas, que ultrapassam a questão vocabular, nos discursos eatos comunicativos. No território americano, por exemplo, a presen-ça de etnias diferentes entre si imprimiu valores e traços semânticosespeciais às unidades da língua receptora (PB), tornando-a bifásica,pelo menos na época da conquista. O cruzamento de diversos siste-mas, geradores de adstratos socioculturais, evidencia a dificuldadeem recortar os significados de termos e designativos, onerados pelasegmentação por vezes imprecisa dos constituintes lexicais ou pelasfalhas do próprio registro ou da coleta das formas orais, oriundasdos modelos ágrafos. Partindo dessas considerações, apresentare-mos dados preliminares do tratamento lexicográfico conferido aomaterial toponímico coletado em várias fontes (documentais ecartográficas), com vistas a elaboração do Atlas toponímico doBrasil, na variante regional paulista, e sua inclusão em domínios deexperiência específicos.

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A linguagem do poder e o poder da linguagem - LimaBarreto e a Língua PortuguesaMauricio Pedro da Silva, da USP

O presente trabalho aborda a ideologia lingüística presentena produção literária de Lima Barreto, por meio de um discursometalingüístico. Com efeito, a perspectiva lingüística adotada porLima Barreto revela o poder absoluto da linguagem, que é utiliza-do pelo romancista na luta contra os preconceitos sociais elingüísticos. Tendo como fundamento metodológico conceitos reti-rados tanto da Análise do Discurso quanto da HistoriografiaLingüística, nosso trabalho trata ainda da presença do estiloacademicista, do purismo lingüístico e do preciosismo gramaticalna linguagem pré-modernista brasileira.

O (não) lugar de Portugal na formação de Murilo MendesPatrícia Riberto Lopes, da UFJF

Neste trabalho, que se filia a uma pesquisa maior sobre a pre-sença do repertório cultural português na obra de Murilo Mendes,busca-se estabelecer o papel de Portugal na formação primeira dopoeta. Pela análise deste livro autobiográfico, busca-se na infânciaos primeiros contatos com a cultura portuguesa, a fim de delimitar,através do olhar do adulto, ensaísta presente em toda obra, a impor-tância de Portugal em sua formação. Dois fortes laços podem serpercebidos entre esse poeta brasileiro do século XX e a nação por-tuguesa: um de ordem sócio-cultural devido às marcas deixadaspela ex-metrópole na sociedade brasileira, outro de ordem pessoal,o qual resultou em fortes contatos, inclusive em diversas viagens aesse país. A hipótese que se levanta é a de que, marcado peladesterritorialização, Murilo Mendes não se tenha relacionado comPortugal como terra mãe, nação origem, mas como um ponto emseus intermináveis roteiros de viagem, superando a tendência àreterritorialização e situando Portugal como um entre-lugar cultural.

O duplo destronizador e a devoração simbólica – a antropofa-gia como revisão canônica em um conto de Rubem FonsecaPetra Cristina Augusto, da UFJF

Análise da questão: herança colonial literária e formação doacervo literário brasileiro e da linguagem nacional como elementos

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edificadores de uma literatura própria com suas peculiaridades nãosó formais mas também temáticas. Discussão da formação da lin-guagem nacional a partir da questão da herança cultural portugue-sa. Ênfase no recorte histórico/ideológico do cânone literário portu-guês abordando um diálogo entre canibalismo, episódio da “NauCatrineta”, retomada em paralelo ao dado cultural de povos nãocristãos. Abordagem do conceito de antropofagia como dado fun-damental para a construção de uma linguagem literária nacional.

Fatores externos na formação do léxico português daAmérica: os elementos indígenas e afro-negrosRuy Magalhães de Araújo, da UERJ / FFP

O acervo lexical brasileiro é constituído em quase sua totalida-de de elementos do léxico português europeu. Deste, razoável nú-mero de vocábulos é proveniente do português arcaico (havendoinclusive abonações de escritores da época), que veio para o Brasilcom os colonizadores do norte e do sul de Portugal, e também dosAçores. Somam-se a seguir os elementos indígenas, afro-negros, osde procedência variada e os que possuem formação interna pró-pria, isto é, os brasileirismos. Interessa-nos neste trabalho, sobrema-neira, os de origem indígena e afro-negra.

Entre o segredo da Jurema e a perdida muiraquitã: embusca da identidade nacionalTatiana Alves Soares, da UFRJ

O Romantismo e o Modernismo são considerados as estéti-cas literárias que mais contribuíram na proposta de uma literaturanacional. Dentro dessas escolas encontramos José de Alencar eMário de Andrade, respectivamente, como dois de seus maioresexpoentes. Símbolos de suas gerações, sua produção literária apre-senta inúmeras reflexões acerca do estabelecimento de uma iden-tidade nacional. A partir do pensamento crítico dos autores cita-dos, nosso estudo propõe uma análise comparativa de suas postu-ras estético-ideológicas. Com base em textos críticos e prefáciosdas obras alencariana e andradina, nossa leitura pensa o diálogoentre ambas as poéticas, a partir de aspectos como o papel daliteratura ou a identidade nacional.

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A linguagem literária machadiana e a reescritura da tradiçãoTerezinha V. Zimbrão da Silva, da UFJF

Neste trabalho, consideraremos a reescritura da tradição comouma característica da linguagem literária de Machado de Assis.Ora, sabemos que o narrador machadiano está sempre citando osclássicos da literatura ocidental - ou em outros termos reescreven-do-os. É esta importante característica que explicitaremos ao anali-sarmos em seguida o diálogo deste escritor brasileiro com a tradiçãoclássico-pagã. Confirmaremos que esta tradição tem os seus textosem maior menor grau modificados quando reescritos por Machadode Assis. Interpretaremos tais modificações como sendo conse-qüentes do processo de atualização destes textos, escritos original-mente no centro do mundo clássico, para o contexto muito distinto -tanto temporalmente quanto espacialmente - da periferia do mundomoderno. Mais precisamente, tomaremos os dois primeiros capítu-los de Esaú e Jacó e a partir destes faremos uma descrição decomo a tradição oracular grega, tão bem registrada em um clássicouniversal como As Eumênides de Ésquilo veio a ser atualizada parao contexto oitocentista de um moderno romance folhetinesco.

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Parte IVMinicursos

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1) Edição crítica da lírica de Camões, sob a presidênciade Leodegário A. de Azevedo Filho (ABF e UERJ), com aparticipação de Álvaro de Sá (ABF), Marina Machado Rodrigues(ABF e UERJ) e Xosé Manuel Dasilva Fernández (Universidadede Vigo, Espanha)

A dificuldade de estabelecimento do corpus lírico camonianono séc.XVI, conforme já atestam as duas edições quinhentistasdas rimas de Luís de Camões, em face da dispersão a que ostextos andaram sujeitos, gerou, ao longo de quatro séculos,equívocos gritantes, no tocante à autoria e reprodução dos textosdo Poeta. As conferências proferidas neste minicurso sepropuseram historiar os obstáculos encontrados pelos inúmeroseditores da lírica camoniana frente ao problema, bem assim, mostraras soluções encontradas por Emmanuel Pereira Filho e LeodegárioA. de Azevedo Filho para tentar solucionar a questão. Foramabordados os seguintes pontos: a) A lírica de Camões inscrevedois problemas: o autoral e o textual. Tentativas anteriores. Ametodologia proposta por Emmanuel Pereira Filho. O corpuscamoniano, de acordo com a metodologia aplicada por LeodegárioA. de Azevedo Filho; b) Divisão do universo lírico de Camões emtrês corpora: o mínimo, o addititium e o possibile; c) Critériosadotados para o estabelecimento de cada um deles.

2) Unidade do Português literário no mundo lusofônicode Portugal, Brasil e nações africanas de Língua Portuguesa,sob a presidência de Domício Proença Filho (ABF e UFF), com asparticipações de Carmen Lúcia Tindó Secco (UFF), Nadiá FerreiraPaulo (UERJ) e Pedro Lyra (UFRJ).

Considerando-se que há unidade da Língua Portuguesa

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em todo o mundo lusofônico e dentro dessa unidade a naturalvariedade para exprimir as diferentes culturas, o curso teve como oobjetivo: a) Demonstrar que, do ponto de vista do sistema, a língua,sendo a mesma, comporta a diversidade de normas e usosidiomáticos; b) Demonstrar que, embora haja unidade lingüística nãohá unidade literária, exatamente porque a língua é expressão decultura de cada povo que a fala; c) O estudo das expressõesportuguesa, brasileira e de nações africanas em Língua Portuguesa.

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