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DISTORÇÕES DO PODER

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DISTORÇÕES DO PODER

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Djalma Pinto

DISTORÇÕES DO PODER

PROJECTOEDITORIAL

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PINTO, Djalma.Distorções do Poder. Brasília: Projecto Editorial, 2002.

226p.

ISBN 85-88401-02-9

1. Política 2. Poder 3. Corrupção 4. Administração pública 5.Brasil. I. Título

CDD 159.9

© Djalma PintoTodos os direitos desta edição reservados

Projecto Editorial Ltda.Brasília Shopping – SCN – Q. 05 – Bl. A – Sl. 1.304 – Torre Sul

Brasília-DF – Tel.: (0xx61) 328-8010/327-6610 – CEP 70715-900

EDITOR

Reivaldo VinasPREPARAÇÃO E CAPA

Rones LimaREVISÃO

Edelson Rodrigues

PROJECTOEDITORIAL

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SUMÁRIO

CAPÍTULO IENFOQUES SOBRE O PODER .............................................................. 131. Poder e vaidade............................................................................ 132. O tempo e o poder ..................................................................... 193. Amizade e poder ......................................................................... 214. A corrupção e o exercício do poder ......................................... 245. Candidatura do partido ou da Justiça? ..................................... 266. Pedagogia da impunidade........................................................... 327. Violência pelo poder ................................................................... 358. Cautela sobre quem indica ocupantede cargo de confiança ..................................................................... 379. Ações visando apenas a dividendos políticos .......................... 4210. Necessidade e cautela na construçãode maioria parlamentar ................................................................... 44

CAPÍTULO IIPARTILHA DO PODER ......................................................................... 531. Relação entre Administração Pública e Legislativo .................. 532. O exemplo como fator de persuasão ........................................ 603. Receitas do Executivo, do Legislativo e do Judiciário ............. 62

CAPÍTULO IIIO PAPEL DA EDUCAÇÃO ................................................................... 671. A educação na ótica do poder ................................................... 672. O sentido da prioridade da educação ....................................... 683. Cargos de confiança e direção de escola pública:critérios para nomeação .................................................................. 744. Os novos rumos da educação no Brasil ................................... 775. Os veículos de comunicação na formação dos jovens ........... 816. A liberdade de censura à própria informação ......................... 83

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CAPÍTULO IVDIREITO E EDUCAÇÃO ..................................................................... 851. A educação e a eficácia do Direito ........................................... 852. Necessidade de renda imediata aos indigentes ....................... 883. Patriotismo de instituição financeira ........................................ 934. Sociedade aprisionada ................................................................ 955. Polícia: escoadouro final de dramas ......................................... 976. Educação dos filhos dos sem-teto ........................................... 997. A indiferença do povo às ações administrativas .................... 101

CAPÍTULO VPODER DA FAMÍLIA ........................................................................... 1051. A família, o poder e o nome ..................................................... 1052. Os danos do governante ineficiente aos descendentes ......... 108

CAPÍTULO VIATAQUE AOS COFRES PÚBLICOS ....................................................... 1111. Fraude e impunidade no caso dos precatórios ....................... 1112. Acobertamento de crimes pelas maiorias:estímulo à impunidade ................................................................... 1123. Poderes ao Senado para cassar mandato de governador ...... 1144. Incoerência na solidariedade a governos perdulários ............ 1145. Corporativismo em CPI ............................................................ 1176. Narcotráfico apurado em CPI .................................................. 1207. Exemplo de má-fé em CPI ....................................................... 122

CAPÍTULO VA EXPRESSÃO “POLÍTICA”................................................................ 1271. Abrangência da expressão “política” ....................................... 1272. A cronologia das Constituições brasileiras .............................. 1303. As reformas, sem trauma, da Constituição .............................. 1314. O fisiologismo incorporado na Constituição .......................... 133

CAPÍTULO VISALÁRIO E GREVE ............................................................................ 1371. Espetáculo de violência para majoração de salário ................ 1372. Conflito à beira-mar: polícia x polícia ..................................... 1423. Folha de pagamento no orçamento do Estado...................... 145

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CAPÍTULO VIIO HOMEM PÚBLICO E SEU PASSADO ................................................ 1491. Patrimônio suspeito e inocência presumida ............................ 1492. As seqüelas na vida pública ........................................................ 1553. A posição da jurisprudência ....................................................... 1564. O enfoque constitucional da vida pregressa ............................ 1585. Os danos advindos do entendimento jurisprudencial ............ 1596. A interpretação mais compatível com o textoda Constituição no final do século XX ........................................ 1617. A moralidade administrativa como direito do cidadão .......... 163

CAPÍTULO VIIIA QUESTÃO DA TERRA ..................................................................... 1691. Terra para todos .......................................................................... 1692. Sem terra, sem lei e sem paciência ............................................ 1733. Liberdade e abuso de direito ..................................................... 1774. Cooperativas: esperança de emprego no sertão ...................... 1815. Crise econômica: falência e dificuldadespara a sobrevivência das empresas ................................................ 1836. Juventude rica e velhice pobre ................................................... 1887. O crepúsculo de todos ............................................................... 190

CAPÍTULO IXAPLICAÇÃO DO DINHEIRO PÚBLICO ................................................. 1931. Licitações na Administração e controle das fraudes ............... 1932. A questão da Previdência ........................................................... 1993. Déficit e juros .............................................................................. 2034. Moratória e suas conseqüências ................................................ 2115. Juros extorsivos e indigência das nações .................................. 218

CONCLUSÃO

BRASIL: QUESTÃO DE AFETIVIDADE ................................................... 223

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INTRODUÇÃO

Este livro tem a pretensão de ser acessível a qualquer cida-dão. A idéia de produzi-lo surgiu no início do ano 2000, numa manhãem que eu exercia o cargo de procurador-geral do Estado do Cea-rá. Um questionamento súbito ocorreu-me, após despachar dezenasde processos: qual o destino final desse volume excessivo de pa-pel? O arquivo morto, concluí. A constatação de ser esse o final detodo processo, após seu encerramento, por mais relevante que tenhasido o assunto analisado, levou-me a refletir sobre o poder nasociedade brasileira nas últimas décadas do segundo milênio, nabusca de uma efetiva contribuição para o aprimoramento da com-preensão dele, poder, e a redução das distorções, no seu exercício,causadoras de danos irreparáveis à sociedade e de tão extravagantevolume de ações contra a Administração Pública.

O resultado foi este trabalho, baseado na realidade vivenciada noBrasil do final do século XX, com críticas e propostas de solução. Não élivro para academia. Objetiva mostrar a grave situação a que chegou oDireito brasileiro: tem vigência, mas já não tem eficácia. Somente um re-duzido número de pessoas tem condições de compreendê-lo. Sua lingua-gem hermética o torna cada vez mais inacessível ao cidadão comum, que,desinformado sobre a importância da norma legal, passa a afrontá-la, trans-formando a sociedade num mar de insegurança.

O Direito é subestimado tanto pelo homem mediano, que não ocompreende bem, como pelos agentes políticos, que o comprendem emexcesso e têm ciência plena de sua inoperância, o que permite fiquem elessempre liberados das sanções após desviarem as verbas do Estado.

A igualdade e a solidariedade, princípios que inspiraram, na Fran-ça, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, aindanão foram assimilados no Brasil, embora ilustrem nossas normas maisexpressivas.

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É preciso, para a sedimentação desses princípios, consciência his-tórica que estimule a viabilização deles, arrefecendo o egoísmo exagera-do de nossas elites. Falta-nos paixão sincera que envergonhe e iniba afruição dos privilégios ostensivamente afrontadores da noção elemen-tar de igualdade.

A grandeza de um país começa com a atenção que é dispensada,na escola, às suas crianças. As gerações passadas ofereceram lições deoportunismo e indiferença, sem nenhuma atenção à educação dos maiscarentes. Legaram por isso uma sociedade em permanente conflito,em que os ocupantes do poder, em todos os níveis, estão sempre pro-pensos a causar vexame durante o seu exercício. Para não incorrermosnos mesmos erros, necessitamos retificar o equívoco consistente emsupor que exercer função pública é sinônimo de ficar rico desonesta eimpunemente.

Não é isso. Exercer qualquer função pública é apenas uma formade servir à coletividade para melhorar a vida de todos. Simplesmenteisso se busca demonstrar ao longo destas páginas.

O AutorFortaleza, agosto de 2001

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Um agradecimento a Reginaldo Limaverde, pelacolaboração valiosa para a concretização deste trabalho.

Uma homenagem a Tasso Jereissati, pelo exemplode seriedade na aplicação do dinheiro público num País

de tanto desperdício.

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CAPÍTULO I – ENFOQUES SOBRE O PODER

1. PODER E VAIDADE; 2. O TEMPO E O PODER; 3. AMIZADE EPODER; 4. A CORRUPÇÃO E O EXERCÍCIO DO PODER; 5. CANDI-DATURA DO PARTIDO OU DA JUSTIÇA?; 6. PEDAGOGIA DA IM-PUNIDADE; 7. VIOLÊNCIA PELO PODER; 8. CAUTELA SOBREQUEM INDICA OCUPANTE DE CARGO DE CONFIANÇA; 9. AÇÕESVISANDO APENAS A DIVIDENDOS POLÍTICOS; 10. NECESSIDA-DE E CAUTELA NA CONSTRUÇÃO DE MAIORIA PARLAMENTAR.

1. Poder e vaidadePoder, na síntese de Russell, é o conjunto dos meios que permi-

tem alcançar os objetivos desejados ou, na simplicidade de AlexanderHamilton, é a capacidade ou faculdade de fazer algo. O Poder se exte-rioriza, na sociedade, por meio de diversas formas ou classes. Estasclasses – tomando-se como base os mecanismos dos quais se utiliza osujeito ativo para determinar o comportamento do sujeito passivo –são, conforme Norberto Bobbio: o poder econômico, o poder ideoló-gico e o poder político. (Dicionário de Política, 2 v., 4. ed., p. 955.)

Na busca da consolidação da harmonia social, os homens abrirammão da utilização individual da própria força, delegando-a ao Estado,para que pudesse este utilizá-la privativamente. O medo foi o fator pre-ponderante nessa motivação, porquanto o mais forte estava sempre dianteda perspectiva do surgimento de outro mais vigoroso, que viria a subju-gá-lo, da mesma forma como agira ele, anteriormente, em relação aosque lhe foram mais fracos. O poder político é fruto dessa abdicação.Mediante seu exercício, impedem-se a desagregação social e a desobedi-ência dos subordinados, compelindo-os ao respeito às leis para amanutenção da ordem na sociedade, inclusive, se necessário, pela coer-ção viabilizada pela utilização da força atribuída ao Estado.

Apenas o poder político será objeto de nossa reflexão. É o podermais importante no grupo social, porque detém, com exclusividade, a

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força coercitiva para impor-se aos cidadãos. A ele todos estãosubordinados. Seu único titular é o povo. Este, porém, impossibilitadode exercê-lo por meio de cada cidadão, delega-o a representantes paraque o exercitem em seu nome. Aí a essência da soberania popular: osoberano, o dono absoluto do poder, é o povo; não é o monarca, comose verifica na monarquia absolutista.

A diferença entre o poder político e as demais formas deexteriorização do poder reside no fato de que somente o primeiro, pormeio do governo constituído, pode lançar mão da força física para obri-gar o cidadão a fazer aquilo que não deseja, quando legalmente obrigadoa realizá-lo. O povo, reitere-se, na democracia, é o dono do poder. Oparágrafo único do art. 1.° da Constituição brasileira declara de formaexpressa essa titularidade: “Todo o poder emana do povo, que o exercepor meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos destaConstituição”. Por isso, as ações, sem exceção, de quem o exerce devemser sempre voltadas para a satisfação do interesse coletivo.

Impressiona o fascínio que o poder político provoca noshomens. Raramente, porém, quem o busca ou o exerce se preocupaem responder, com sinceridade, a esta indagação: por que almejo opoder? Muitos não se acreditam exercendo função pública relevantee imaginam tocar todos os sinos, ocupar todos os canais de televisãopara que saibam que o fazem. Esquecem que outros exerceram o mesmocargo, sendo, inclusive, ovacionados e depois hostilizados, amargando,enfim, a solidão típica dos que mandaram em tudo e perderam depoiso comando de si próprios. Há muito tem sido difundida esta constata-ção: “se quiseres conhecer verdadeiramente um homem, dê-lheautoridade”.

Em diversas ocasiões, deixam bem à mostra todo o seu potencialde vaidade. Alguns, por exemplo, saem irados, maltratando o própriocoração, com uma dosagem excessiva de ódio sobre quem omitiu suaconvocação para a mesa oficial de determinada solenidade. Delaexcluídos, não poderiam ser olhados pela platéia – em muitos casos,marcantemente hipócrita – cujos aplausos mal conseguem disfarçar avergonha que, na verdade, sente dos aplaudidos.

No exercício da função pública, uns se deliciam em dizer “sim” atudo, outros sentem prazer em tudo negar. Julgam estes que exercer o

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poder é exteriorizar arrogância. Nem o “sim” em excesso, nem o “não”como regra. Qualquer um deles, desde que a satisfação exclusiva dointeresse público seja a única motivação de toda ação administrativa.

Ditadores, magnatas e caudilhos não são imunes à arteriosclerosee a outros males que costumam transformar velhos em crianças antesde emigrarem, compulsoriamente, para lugar desconhecido pela forçainvencível da morte, como genialmente lembrava Erasmo de Roter-dão. (Elogio da Loucura, p. 23.)

Augusto Pinochet, o ditador mais implacável da América Latinado século XX, temido pelos inimigos e pelos próprios amigos peladeterminação em fazer cumprir tudo o que lhe passava pela cabeça, emfevereiro do ano 2000, em Londres, para locomover-se, numa cadeirade rodas, necessitava da ajuda de terceiros.

Ninguém que o visse em tal situação de misericórdia, semblante deexpectativa da morte, poderia imaginar que naquele ser decrépito já se per-sonificara a imagem da arrogância, da vitalidade do militar prepotente, inca-paz de supor que tudo na vida é finito. Da saúde ao poderio militar maissólido, tudo se esfacela pela força inexorável do tempo.

Candidatos a ditadores, adolescentes que percebem, no próprioespírito, uma expectativa de exercício do poder pela força, inspirai-vosno semblante moribundo de Pinochet, incapaz de caminhar peloimpulso dos próprios pés. Conscientizai-vos de que, qualquer que seja,o ditador é um idiota, por supor que somente ele é capaz de resolver osproblemas do seu povo. Todos os tiranos passam; não passam, porém,a memória e a lembrança do sofrimento de suas vítimas.

A história sempre reserva páginas de louvor aos que foram imo-lados, lutando pela liberdade, que todos os ditadores ousam sempresuprimir. Os mártires de Pinochet jamais acreditariam vê-lo semcapacidade de movimentação, exigindo misericórdia para retornar àpátria – a mesma pátria de onde, pela força de suas armas e obscuridadede seus seguidores, partiram muitos, deixando famílias inteiras em pran-to, corações esfacelados de saudade, simplesmente por pensaremdiferente daquele que se julgava o suprassumo do povo chileno. Óvida tão curta! Por que custas tanto para mostrar a alguns homens queeles são rigorosamente iguais aos demais? Por que tanta demora paradeixar o “Imperador do Chile” constatar que ele nada tem de diferente

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do agricultor de Valparaíso? Que ele é infinitamente menor do quePablo Neruda, que, no exílio, viveu ovacionado, jamais hostilizadocomo quem o deportou!

Potenciais ditadores, na América Latina, conscientizai-vos todos:a humanidade abomina quem usurpa o poder e o exerce suprimindo aliberdade, porque sem esta o homem perde a sensação de viver, viveapenas a expectativa de conquistá-la.

“Liberdade” – na síntese feliz de Cecília Meireles – “é essa pala-vra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique eninguém que não entenda”. Num enfoque político, como resumiuGeorge Orwell, seria “a faculdade de dizer ao povo ou ao governoaquilo que ele não deseja ouvir”. E lembrava Helvetius que “os romanospodiam tirar a vida de seus filhos, mas não a liberdade”. Há homenstraumatizados por toda a vida pela prisão injusta, amargada durante umúnico dia, que se transforma em eternidade.

Quem mata para solidificar sua autoridade de governante é indignode viver como gente. Um dia a natureza reage, como está a reagir comPinochet, reduzindo-o à condição de um velho alquebrado. A vocaçãonatural do velho e da criança é serem acariciados. A velhice, para qual-quer ditador, é a represália da natureza à sua presunção de superioridade.A hostilidade dos homens mais esclarecidos do mundo a Pinochet é oalerta aos dominadores do futuro para que reflitam sobre a inutilidadedo ser vocacionado à tirania.

Cada cidadão deve cultivar o respeito pela democracia, para queninguém ouse atentar contra ela. Deve lutar pela sua consolidação epelo aprimoramento da forma de gerir a coisa pública. Sem a plenaconscientização de que a democracia é a melhor opção para todos,jamais ficará a nação a salvo de predadores egoístas e medíocres, quevislumbram no golpe a forma eficaz para se apossar do poder e deleusufruir sem dar satisfação ao povo.

Em novembro de 2000, os peruanos lavaram, nas ruas, a sua bandeiramanchada pelo oportunismo de Fujimori, mais um tirano, na América do Sul,com ar de inocente, a ludibriar a boa-fé do seu povo.

O vaidoso, por sua vez, julga-se o centro do universo. Ninguémse encontra ao seu nível. Sua nocividade, enquanto detentor do poder,reside no fato de priorizar sempre aquilo que convém ao seu ego, ainda

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quando prejudicial à coletividade. Tem a convicção de ser sabedor detudo, desprezando, muitas vezes, observações valiosas de pessoaslúcidas. Apenas os que lhe prestam reverência e chancelam entusiasti-camente suas observações são ouvidos ou a ele têm acesso, quase sem-pre para ratificar o suposto acerto de todas as ações e decisões. Jamaisterá alcance para compreender esta advertência de Spinoza: “Ninguémé mais iludido pela bajulação do que o orgulho”.

Os bajuladores, os oportunistas e os políticos de má-fé encon-tram no vaidoso uma presa fácil para a viabilização de seus objetivosinconfessáveis. Envolvem-no com invulgar habilidade, passando-lhe aconvicção de fidelidade canina. Suas opiniões são acolhidas como dog-ma. A defesa dos seus atos indefensáveis é exibida como prova delealdade e afeição. Acobertam o fisiologismo, que os impulsiona, deforma tal que o detentor do poder sente a convicção de que eles –circunstanciais seguidores – são capazes de gestos extremos para pre-servar-lhe a própria vida. Costumam valer-se da delação, da intrigaentre adversários ou integrantes do mesmo grupo político, para maxi-mizar prestígio pessoal, mediante o qual viabilizam suas ambições, quasesempre nocivas ao interesse público.

Governar é saber detectar as verdadeiras prioridades do gruposocial em determinado tempo e realizá-las, contrariando, sobretudo,aqueles de poucas luzes, incapazes de enxergar além do limite das suasconveniências particulares. A primeira premissa de um governo bem-sucedido é a escolha de bons assessores. Os governantes que substituema busca da eficiência pela conveniência política, pura e simplesmente,na formação da equipe de governo, serão vítimas, no julgamento daHistória, de sua própria mediocridade gerencial. Honestidade, compe-tência e dedicação ao trabalho, estes os requisitos básicos, imprescindí-veis, em cada pessoa indicada para a formação de uma boa assessoria.

Para governar bem é necessário ter firmeza nas deliberaçõesadministrativas e repassá-las com esse sentimento aos governados. Asretificações freqüentes geram desconfiança e comprometem a credi-bilidade dos ocupantes do poder. Somente quando bem pensadas eamadurecidas, as decisões que provocam impacto no grupo social devemser adotadas. De outra parte, o governante que se julga dono absolutoda verdade acaba sendo vítima do seu saber “em excesso”.

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George Soros, o mais controvertido operador do mercadofinanceiro, confessa que a certeza da falibilidade humana, a buscapermanente em detectar os seus próprios erros e os erros dos sistemasem que atuava constituíram-se os pontos essenciais para o seu aclama-do sucesso no mundo dos negócios. (A crise do capitalismo, p. 57.)

Quem exerce o poder e pretende fazê-lo de forma eficiente deve,sempre que possível, renovar ou ampliar o leque de interlocutores. Éfreqüente a medição de forças entre grupos que gravitam em torno dequem governa. Costumam seus integrantes, para não perder espaço, omitiras vozes da rua em relação a determinadas ações de governo. Visam aisolar o governante do contato com aquilo que julgam incomodá-lo. Oisolamento pode levar, entretanto, ao fracasso administrativo.

O bom governante deve dar bastante atenção à opinião de seuscríticos, sejam estes amigos leais, sejam adversários implacáveis, paraefetuar a retificação dos rumos de suas ações quando procedentes asobservações formuladas. Informações do próprio cidadão – repassa-das, em alguns casos, por carta, fax, e-mail ou telegrama – muitas vezescontêm esclarecimentos preciosos que, bem avaliados, podem evitarvexames futuros aos dirigentes da Administração.

O estresse do dia-a-dia, gerado pela permanente sucessão deproblemas graves a exigir soluções urgentes, é capaz de impedir a visuali-zação, pelo ocupante do poder, de erros percebidos por muitos. Aquele,tempo depois, costuma lamentar a falta de percepção do equívoco nãodetectado oportunamente ou em relação ao qual, embora advertido, nãofoi capaz de corrigir os rumos de suas ações para evitá-lo.

O futuro costuma ser implacável com o político que se engana ouerra no desempenho de suas atribuições. Isso se explica porque o povoescolhe seus mandatários para dirigir bem o seu destino. Não os escolhepara agravar os seus males. O nível de exigência, nesse ponto, asseme-lha-se ao do treinador de time de futebol, cuja missão é propiciarsatisfação, alegria e bem-estar aos torcedores, jamais perpetuar seus dra-mas gerados pela derrota. A incompetência do gestor deve, assim, fazê-lo desaparecer da vida pública o mais depressa possível.

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2. O tempo e o poderTodo poder tem seu ocaso. Quem o exerce deve buscar sempre o

melhor para o seu titular, o povo. Somente assim será sempre reverenciado.Quem utiliza o poder para a satisfação dos próprios caprichos jamais serátomado como referencial de qualquer nação. Está fadado ao esquecimen-to, com a agravante de decorrer esse esquecimento da pobreza de espíritocom que gerenciou a coisa pública. Trata-se de governante incapaz de go-vernar para ser lembrado. Seu governo – apenas sua visão obscura não lhepermite perceber – acaba constituindo-se um permanente estímulo aoesquecimento pelos administrados. O término do mandato é ansiosamen-te aguardado por toda a população.

A propósito, numa solenidade muito concorrida, enquanto todosos presentes se cumprimentavam e dialogavam, em tom de voz cres-cente, após os discursos habituais, um homem mantinha-se sentadonuma cadeira, isolado, num canto com pouca luminosidade. A prolon-gada situação de isolamento em que se mantinha, sem nenhum inter-locutor, despertou a curiosidade de alguns jovens. “Quem é aquelecidadão?” – indagou um deles, impaciente, observando há muito a situ-ação desconfortável do convidado. “É um ex-governador de Estado” –respondeu-lhe uma pessoa de mais idade, também estranhando aquelequadro.

O poder, por si mesmo, é fonte de aglutinação. Entretanto, as re-verências prestadas ao seu ocupante decorrem, quase sempre, da cir-cunstância do exercício puro e simples do cargo. Não são tributadas àpessoa em si do titular que o exerce. Esopo, fabulista grego, perceberaisso ao enfatizar: “Os tolos assumem para si o respeito que é dado aocargo que ocupam”.

Por isso mesmo, o afastamento da função costuma surpreendermuitos desavisados que, sem tempo para refletir melhor sobre a dinâ-mica envolvente do poder, julgam haver acrescido como atributos pes-soais as reverências, cordialidades e bajulações que fluem, abundante-mente, durante o exercício dele.

A solidão desconcertante daquele ex-primeiro mandatário sugereque a geração dos seus liderados passou, integralmente, com o tempo.Pior que isso, não governou ele para fazer história. Não teve a motivação

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nem a postura de um George Washington, que fez do exercício do po-der um legado de orgulho e referencial para sua nação. Por certo, terásido vítima da visão de corriola, segundo a qual os interesses dos ami-gos devem ser preservados, mesmo quando conflitantes com o interessepúblico. Ao término do poder, passaram-se os influentes amigos, aoâmbito de cuja convivência se resumiu, melancolicamente, o respeitoque deveria ser de toda a população. Só assim se pode justificar aquelaconstrangedora solidão no meio de tanta gente.

D. Pedro II, imperador do Brasil por quase meio século – foisuperado, em longevidade no trono, apenas pela rainha Vitória, daInglaterra –, no final da vida, exilado na França, vivia da ajuda de ter-ceiros. Um ex-presidente do Brasil confidenciava aos mais próximossua preocupação com o crescimento de capim na porta de entrada desua casa, ironizando o sumiço dos “amigos” que há até bem pouco lheprestavam reverência.

Ao vazio do poder segue-se, para muitos, a depressão, agravadapela sensação de traição, decepção ou outros estigmas que a falta dematuridade e o deslumbramento não permitiram ao seu ocupantevisualizar no momento oportuno.

Ninguém detém, porém, mais poder do que o tempo. Constrói elee nos oferta a mocidade, substituindo-a pela velhice, que simboliza a im-potência de todos e a incapacidade de resistência à sua força devastadora.

Reinados, riquezas e vigor físico, tudo sucumbe ao poder superiordo tempo. Se Hitler tivesse permanecido sempre criança, não teria sidotão nocivo. Tornou-se adulto pela força do mesmo tempo quedemonstrou a monstruosidade que representou sua existência.

A humanidade precisa prevenir-se melhor contra aqueles que otempo comprova serem loucos, para não amargar as conseqüênciasdolorosas de seus equívocos irreparáveis na escolha de governantes.

Não se deve concentrar poder em quem se afirma iluminadopara exercê-lo. Aqueles que se julgam iluminados, na verdade, carecemde luz própria para enxergar as suas fragilidades.

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3. Amizade e poderPessoas há que somente se aproximam de um amigo que detém o

poder para pedir algo. A cada cumprimento ocasional, formulam umasolicitação de cunho particular. São incapazes de apresentar sugestõesou idéias que possam melhorar a qualidade da Administração sob o co-mando de quem lhes tem afetividade.

Somente sabem pedir, e geralmente para si ou seus familiares. Nãopossuem limites nem autocrítica. Incomodam pela insistência e persis-tência para conseguir o que desejam. O atendimento de seus pleitosimplica, quase sempre, a própria desmoralização do administrador quese julga, com freqüência, impossibilitado de dizer-lhes “não”. O poder, épreciso ficar claro, não é instrumento de filantropia nem fonte de benessespara parentes e amigos. Deve servir apenas à satisfação do interessecoletivo. A visão indigente sobre o exercício do poder, a busca de locu-pletação por meio dele precisam ser exterminadas da sociedade brasilei-ra e de qualquer grupo social que almeje o progresso.

Outros supõem que ser amigo de quem exerce o poder é ficar imunea qualquer medida saneadora de amplitude geral. Ao serem eventualmenteatingidos, passam a verbalizar ressentimentos, considerando-se traídos naamizade. Há, porém, em número reduzido, é certo, aqueles que, paralela-mente aos pontos positivos, enumeram as ações equivocadas, comprome-tedoras da credibilidade ou eficiência do governo.

Estes, sim, utilizam a amizade para contribuir com sugestões, visandoao bom desempenho do amigo na função. São pessoas superiores. Porestarem acima dos murmurinhos inerentes aos bastidores do poder, eno-brecem o conceito de amizade, subtraindo de sua abrangência um pernici-oso componente, que se costuma camuflar, levando muitos homens asomente o descobrirem tardiamente: o interesse puro e simples.

A vasta maioria, por sua vez, teme que, ao enumerar os desacer-tos administrativos, seja mal entendida, interpretada como pessimistaou até mesmo tachada, no caso daqueles simpatizantes mais sinceros, deinimigo político. Ao ensejo de preservar a amizade, omite informaçõesvaliosas que, uma vez conhecidas, no devido tempo, poderiam alterarcondutas ou impor novas diretrizes a serem adotadas, no gerenciamen-to da coisa pública, pelo administrador a que tem acesso.

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“Às favas o escrúpulo da consciência”. Com essa expressão, JarbasPassarinho deu seu aval ao presidente Costa e Silva para que este edi-tasse o AI-5, que o tornaria, à luz dos fatos, ditador do Brasil. PedroAleixo, o único a votar contra, seguiu os ditames da consciência, rece-bendo, por isso, a censura de Passarinho. No exercício do poder, hásempre aqueles incapazes, por índole, formação ou apego ao cargo, dedizer “não”. Sempre dizem “sim”. Jamais, sob hipótese alguma, fazemponderação ao governante para retificação ou modificação de qual-quer decisão. Acabam sendo perniciosas essas pessoas, nesse pontoparticular, a si próprias e aos governantes.

De outra parte, infelizmente, pessoas honradas, imbuídas de boa-fé, ao passarem, pessoalmente e em caráter reservado, informações adetentores do poder sobre desvio de dinheiro público ou irregularidadesgraves na Administração, às vezes acabam até percebendo umdistanciamento de quem pretenderam preservar com seu gesto deconfiança. Cabe ao bom governante averiguar as informações e adotaras providências. Se pura e simplesmente afastar-se daquele que, de formadiscreta e pormenorizada, trouxe-lhe tais dados com o propósito de efe-tivamente ajudá-lo, não há dúvida de que mantém cumplicidade comas ilicitudes. Não se pode desconhecer, por outro lado, que pessoas mal-dosas são capazes de apresentar denúncias caluniosas, simplesmente por-que prejudicadas por ação de governo ou por ter interesse contrariado.

Alguns se tornam cegos pelo sentimento da inveja ou da ambição.Incomoda-lhes o êxito de quem gerencia bem a coisa pública. A pobrezade espírito, normalmente bem ocultada, acaba sempre se exteriorizandode forma descontrolada em muitos autores de denúncias gratuitas. Sen-timentos subalternos os levam a distorcer fatos, interpretá-los maldosa-mente, ou a criar situações inexistentes para prejudicar desafetos ou pes-soas com as quais simplesmente não simpatizam.

O potencial de maldade do ser humano, ninguém duvide, é ilimitadoe surpreendente. Deve-se, permanentemente, tê-lo na devida conta epermanecer prevenido para não amargar decepção. A maior parte doshomens é capaz de todas as ações, do gesto mais nobre ao procedimentomais vil. É essencial conhecer a índole de quem nos está bem próximo.

Os predispostos à ilegalidade em detrimento da AdministraçãoPública têm uma característica particular: quanto maior a sua inclinação

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para o crime, maior o seu potencial de ousadia, inclusive para enlamearos que não compartilham de suas ações delituosas. Julgam-se sempreinatingíveis nos seus atos e não aceitam conviver com a idéia de perda dafunção, muito menos da liberdade. Em vez de buscarem explicação paraas sanções decorrentes dos seus atos na própria deformação de caráter,culpam eles sempre terceiros que os tenham denunciado pelo infortúnioque, na verdade, a si próprios causaram em decorrência da prática deseus ilícitos desvendados. Pequena dose de coragem para enfrentá-los,sem qualquer intimidação com suas ameaças, basta para colocá-los nodevido lugar: a condição inconfundível de delinqüentes.

A propósito, advertia Augusto Hare: “Quando quiseres conheceros pontos fracos de um homem, observa quais são os defeitos que elenota nos outros com mais freqüência”. Ninguém tenha ilusão: osdesonestos costumam avaliar os outros sob a ótica do juízo que fazemde si próprios. Como são oportunistas e aproveitadores de todas ascircunstâncias, buscam sempre aniquilar quem os impede de concreti-zar seus objetivos escusos. Simples averiguação, entretanto, permite aconstatação, nesses casos, do dolo na exposição da denúncia ou suaveracidade, a exigir imediata providência.

No caso específico do Brasil, a certeza da impunidade estimula aarrogância e a desenvoltura dos que aplicam mal ou subtraem dinheiropúblico. É incrível como se garimpa, na ordem jurídica, fundamentopara mantê-los no poder. O exemplo da Prefeitura de São Paulo, nofim da década de 90, é emblemático para a nova geração sobre o des-caso na proteção ao dinheiro dos contribuintes. A despeito de umadúzia de processos, inclusive com condenação criminal de seu prefeito,em pleno ano 2000, o Superior Tribunal de Justiça autorizou-lhe oretorno ao cargo. Até ele próprio já se apresentava praticamente con-vencido da impossibilidade de permanecer à frente da Administração,diante de tantos escândalos. A Justiça, porém, baseou-se na presunçãode inocência, que exige o trânsito em julgado da condenação criminalpara alguém deixar de ser considerado inocente.

A exigência, expressamente consagrada na Constituição, de con-denação criminal transitada em julgado para que alguém deixe de serconsiderado inocente acha-se na contramão da realidade brasileira, na qualtodos desconfiam de tudo; em que se furta dos óculos de grau ao revólver

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do próprio delegado. Em relação aos governantes que desviam dinheiropúblico, a invocação dessa presunção apresenta-se apenas como mais umestimulante ingrediente às ações predatórias de administradores totalmenteem descompasso com o princípio da razoabilidade.

4. A corrupção e o exercício do poderUns utilizam-se da subserviência para atingir o poder; outros, até de

traição premeditada. Alguns dele usufruem pessoalmente, prevalecendo-seda relevância de sua autoridade. Raramente alguém pergunta qual a con-tribuição efetiva resultante de sua passagem pelo poder. Pertinente, pois, aobservação de La Rochefoucauld: “Todos nos envergonharíamos damaioria de nossas boas ações se o mundo soubesse os verdadeiros motivospor trás delas”.

A concepção dominante sobre o poder político, na sociedade bra-sileira, é majoritariamente de ser este um instrumento de satisfação pes-soal dos que almejam exercê-lo ou o exercem efetivamente. Todos osmeios lhes parecem aceitáveis para atingi-lo. Não importam os danossuportados pela coletividade em geral para alguém, no Brasil, manter-se no poder, destruir uma liderança emergente ou pavimentar o seuacesso a ele. O interesse público, quando o tema é disputa pelo poder,dificilmente deixa de ficar em segundo plano.

Muitos benefícios concedidos à revelia da disponibilidade doTesouro, aplaudidos pelos diretamente favorecidos, ocultam apenas airresponsabilidade de quem os concede com o intuito nocivo de atin-gir outros objetivos, relacionados com proveito político pessoal. Oelevado custo decorrente desse desvio de finalidade acabará, muitasvezes, no futuro, sendo suportado por aqueles que, sem se aperceberem,exaltaram governantes inconseqüentes pela “dádiva”. É muito fácil dis-tribuir favores com o dinheiro público; não se trata, porém, de genero-sidade oficial, mas de irresponsabilidade no exercício da função.

É imprescindível reformular a mentalidade dominante. Nessesentido, deve-se incutir na formação dos jovens, que no futuro condu-zirão os destinos do País, a idéia de que não deve a sociedade ser ape-nada em conseqüência de artimanhas utilizadas para alcançar o poder.Nenhuma ação, no exercício da função pública, adotada para extrair

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apenas dividendos pessoais é idônea. A má-fé ali ocultada descredenciaa autoridade para continuar como seu ocupante.

O poder, deve-se aprender nos bancos escolares, é um instru-mento para servir à causa coletiva. Nunca pode ser utilizado comomecanismo para benefício do seu titular. No ensino fundamental, essaadvertência deve ser transmitida para, efetivamente, sedimentar-se nasociedade brasileira; inclusive porque, como lembra George BernardShaw, “não há nada que possa ser mudado mais completamente do quea natureza humana, quando se põe mãos à obra bastante cedo”.

Por outro lado, é da essência do poder ser efêmero. Quem buscanele perpetuar-se é nocivo ao seu povo. A rotatividade no poder, asso-ciada a propósitos saudáveis de quem venha a exercê-lo, são os ingre-dientes elementares da harmonia social e da prosperidade.

Quem se apresenta como único salvador de uma nação não tema dimensão exata de sua inutilidade. Os verdadeiros líderes não enga-nam o povo; sabem que, entre os integrantes das diversas gerações,existem muitas pessoas com o perfil recomendado para a condução dodestino das sociedades. Apenas julgam que suas idéias, suas concep-ções de gerenciamento da Administração, em determinado momento,são adequadas e oportunas para aquele grupo social. Colocam, assim,seu nome para avaliação dos cidadãos.

Fundamental, porém, no exame do perfil de quem se propõe a gover-nar, é a avaliação de seu desempenho gerencial anterior, do compromisso quemantém com a probidade, e a aferição, por meio de suas ações, do seu apreçoà causa pública. Na linguagem acessível e sincera do povo, quem já roubouuma vez roubará várias. Com todos os predicados que tiver, ninguém se iluda:ladrão é ladrão. Seus exemplos e postura à frente do Erário aniquilam umanação, não apenas materialmente falando, sobretudo por dizimar os demaisvalores imprescindíveis na formação moral de qualquer povo.

Existem políticos incompetentes, mas honestos. Outros, compe-tentes honestos, mas sem dedicação à causa pública. Alguns, muito com-petentes, mas profundamente desonestos. Entre todos, o mais útil parao grupo social é o honesto, competente e com disposição para trabalharpela coletividade. Em qualquer circunstância, o político ou o juiz deso-nesto é o ser mais nocivo ao seu povo. Daí a veemência de Voltaire: “Amaior política é ser honesto”.

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O grande vexame suportado pela sociedade brasileira, nos seus500 anos, reside na incapacidade desta em aplicar sanção àqueles quedesviam bens públicos e a conivência com uma engrenagem de prote-ção aos que se utilizam, em proveito próprio, do dinheiro do povo.Mais triste é a constatação da generosidade com que distingue pessoascujo trajeto na vida pública é marcado pela corrupção. Até o partidopolítico tem dificuldade para impedir a candidatura de filiado que con-sidera destituído de probidade. Se o próprio partido, fundamentadoem relatório de CPI, considera não recomendável o nome de determi-nado filiado para o comando da Administração Pública, qual será apostura desse cidadão, em lá chegando sob as bênçãos de liminaresque lhe asseguram o uso da legenda?

O senador Pedro Simon, do Rio Grande do Sul, expôs, em pre-ciosa síntese, o grande dilema brasileiro do final do século XX:

“Criou-se uma jurisprudência segundo a qual processoenvolvendo gente rica e importante não é para acabar nunca.Não é para colocar ninguém na cadeia. E não se pode criticarquem tem essa impressão. Basta examinar como andam osprocessos de gente importante e abrir as cadeias para ver quemestá lá dentro”. (Veja, 1.º.11.2000, p. 15.)

5. Candidatura do partido ou da Justiça?O problema da elegibilidade, no Brasil, é visto apenas sob a

ótica da conveniência do candidato. O interesse público, que deve-ria prevalecer sobre o interesse particular de cada postulante aomandato, na aferição de sua eventual inelegibilidade, é quase sem-pre deixado de lado. A invocação exagerada de formalismo paraproteger pessoas cuja atuação no dia-a-dia recomenda distância doexercício de função pública tem prevalecido, em detrimento de umaefetiva depuração no quadro de candidatos. Só agora começa asedimentar-se a idéia de triagem feita pelos próprios partidos naapresentação dos nomes ao eleitorado.

Estes exemplos ilustram melhor o quadro vivenciado até agora.Candidato a deputado estadual indiciado em inquérito policial sofreuprocesso de expulsão pelo seu partido, antes das eleições. Obteve,

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porém, liminar determinando a paralisação do processo. Eleito, saiu daagremiação. Quase um ano depois, a Justiça comum, que lhe concedera aliminar, proclama sua incompetência para interferir no processo de ex-pulsão.

Vereador condenado a vários anos de reclusão por apropriaçãoindevida de verba pública teve sua candidatura recusada pelo própriopartido, constrangido com o fato de abrigar condenado na legendapela qual postulava o aval da população para chegar ao poder.

Novamente convocada, a Justiça assegurou-lhe a sigla partidária,sob o argumento de tratar-se de candidatura nata. A candidatura nata é,porém, incompatível com a condição de condenado criminalmente. Ofato de a condenação não haver transitado em julgado não desobriga opartido, sabedor do potencial criminoso do filiado, de impedir-lhe oacesso ao mandato, inclusive para evitar o desgaste da legenda. Em cir-cunstância tal, o princípio da razoabilidade seguramente inviabiliza ainvocação do direito à candidatura nata.

Uma CPI instalada pela Assembléia Legislativa do Ceará consta-tou desvio de mais de 10 milhões de dólares do Fundef. O PSDB, combase no relatório dessa Comissão Parlamentar de Inquérito, sugerindoa intervenção nos Municípios em que detectada a fraude, expediu reso-lução proibindo a candidatura de seus filiados que estivessem à frentedos Municípios para os quais foi pedida a intervenção.

Liminares da Justiça comum e da própria Justiça Eleitoral socor-reram, de pronto, prefeitos que pretendiam candidatar-se à revelia dopartido. Sob o argumento de que não fora formalizado processo espe-cífico para negação de legenda, os infratores, denunciados na referidaCPI, acabaram beneficiados por cautelares que não levaram na devidaconta o fato de que o mesmo estatuto partidário que prevê a negativade legenda como um procedimento específico também assegura aopartido o direito de estabelecer diretrizes partidárias para nortear aescolha dos seus candidatos.

Impossível não se examinar o porquê daquela diretriz. O fato dea Assembléia Legislativa haver solicitado a intervenção no Município eo Ministério Público ter denunciado o prefeito, requerendo expressa-mente o seu afastamento do cargo em decorrência do desvio de verbado Fundef, tudo isso não pode ser tido como irrelevante. Centrar-se

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apenas na questão da negativa da legenda, sem aferir a razoabilidade ounão dos motivos que levaram o partido à adoção daquela providência, éferir de morte a autonomia partidária assegurada na Constituição.

O constrangimento é total. Se a Assembléia sugere o afastamentodo prefeito do respectivo cargo, mediante o mecanismo constitucio-nal da intervenção; se o Ministério Público denuncia criminalmente ofiliado perante a Justiça, também pedindo o seu afastamento do cargo,como admitir possa o partido apresentá-lo como candidato aos elei-tores? Tal procedimento importaria em desrespeito ao princípio damoralidade administrativa, aliás, expressamente estabelecido na Cons-tituição Federal.

A Justiça, porém, examinando caso específico, inicialmentedesconsiderou aquela motivação e autorizou-lhe a participação naconvenção. O partido, para eximir-se de qualquer responsabilidade emrelação aos atos que viessem a ser praticados por aquele candidato, noeventual exercício de um futuro mandato, apressou-se em esclarecer,publicamente, a todos desta forma: “o candidato é da Justiça, o partido,com base no relatório da CPI, está contra essa candidatura”.

O próprio presidente do TSE, ministro José Néri da Silveira, ementrevista veiculada em jornais de todo o País, conclamara os partidos aescolherem bem os seus candidatos, afirmando de forma enfática: “Eufaço um apelo no sentido de os partidos políticos escolherem bons can-didatos”.

Não pode ficar sem registro, contudo, a concessão de cautelar porministro do Tribunal Superior Eleitoral, mesmo depois de já haver aquelaCorte, por unanimidade, julgado improcedente pedido idêntico de medidacautelar formulado pelo mesmo filiado, que pretendia continuar na disputaeleitoral à revelia do seu partido. Inusitada liminar, deferida na madrugadado dia do pleito, retirou a eficácia de decisão do próprio TSE, que referen-dara posição do TRE-Ceará julgando procedente impugnação de candida-tura feita pelo próprio partido do impugnado, denunciado por desvio dedinheiro do Fundef. (Diário do Nordeste, 10.9.2000, p. 6.)

Sem um efetivo compromisso para combate à improbidade porparte de partidos, juízes e ministros, sempre sobrarão argumentos paramanter intocáveis os que, ostensivamente, dela se utilizam no exercíciodo poder.

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Na verdade, nada menos do que cinco preceitos da ConstituiçãoFederal recriminam, explicitamente, a improbidade, a saber: art. 5.º,LXXIII, art. 14.º, § 9.º, art. 15, V, art. 37, § 4.º, e art. 85, V. No que pesea abundância dessas normas, o Tribunal Superior Eleitoral, no final dosegundo milênio, não encontrou fundamento jurídico para manterdecisão do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará que declarava inelegívelpolítico cujas ações ostensivas de improbidade já se incorporaram aofolclore daquele Estado.

O volume de provas da improbidade do referido gestor, acumuladonos anos em que estivera à frente do Erário municipal, não deixava dúvidaalguma em qualquer cidadão cearense acerca do gravíssimo perigo de serdeixado dinheiro público sob sua guarda. Apenas os julgadores de Brasília,naquele caso, não atentaram para as conseqüências de entregar o comandode um ente público a político comprovadamente desonesto.

Tem prevalecido entre nós um posicionamento jurídico sem sin-tonia com a realidade, como se o Direito não tivesse também compro-misso algum com a solução do grave problema da corrupção nosMunicípios. Na verdade, o Direito, a pretexto de sua aplicação, nãodeve produzir mal-estar, indignação ou ceticismo no grupo social. Afinal,destina-se ele a propiciar a paz, a harmonia e a prosperidade entre oshomens que vivem sob o império de suas normas.

Necessitamos, por outro lado, extrair do conceito de soberaniapopular, consagrado no parágrafo único do art. 1.º da Constituição daRepública, todas as suas conseqüências. Inicialmente, sepultandoqualquer interpretação que vá de encontro ao sentido da expressão“(...) todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos oudiretamente (...)”.

Essa norma emblemática não contém um enunciado banal. Estáa significar que ninguém pode arvorar-se em dono do poder. Pertenceele integralmente ao povo. Como único soberano, pode ele delegá-loexclusivamente para satisfação dos seus interesses. Não pode haverfeudos, nem qualquer irradiação de privilégios que denotem ou pos-sam sugerir um sistema de nobreza incompatível com a essência dasoberania popular.

Quem for eleito para exercer o poder em nome do povo somentepode nele permanecer enquanto suas ações corresponderem à finalidade

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básica daquela delegação: a prática de ações visando ao bem-estar geral.Ocorrendo desvio de verba, improbidade, a permanência no poder doresponsável pela ilicitude significa a supressão da essência da soberaniapopular.

Há mais de 200 anos, Franklin, Jefferson e John Adams compreenderamisso, ao redigirem a Declaração da Independência dos Estados Unidos,publicada em 4.7.1776:

“(...) quando um governo não tende para esses fins, o povoestá no direito em mudá-lo e aboli-lo e de estabelecer um novo,fundado nos princípios que lhe parecerem mais convenientes àsua segurança e à sua felicidade”.

No Brasil, ninguém tem coragem de entregar a direção de sua em-presa ou a posse de sua casa a qualquer pessoa que esteja sendo processada,por exemplo, por furto de dinheiro. Nenhum argumento convencerá umcidadão a entregar a guarda de seu patrimônio a um indiciado por furtode veículo, sobretudo se as provas forem evidentes.

Entretanto, em se tratando de dinheiro público, ninguém dispensaa mesma diligência. Pessoa que o próprio grupo social chega a qualificarde marginal assume, às vezes até com certa pompa, o comando do di-nheiro público, mesmo sabendo todos, de antemão, o estrago que dissoresultará. É preciso mudar tal liberalidade, acabar com esse descaso. ODireito não pode ser invocado para prestigiar essas aberrações. Em ca-sos tais, a pretexto de sua aplicação, deve ficar bem claro: existirá tudo,menos o Direito, que não pode, obviamente, prestar-se a esse distorci-do papel.

Alegar que faltam normas para uma reação contra os devassos daAdministração Pública é excesso de comodismo diante de uma Consti-tuição tão incisivamente contrária à improbidade. No sistema jurídico,em que está bem compreendida a supremacia do interesse público, have-rá solução para todos os dramas da sociedade, maxime em se tratandode uma ordem constitucional que exige até avaliação da vida pregressade quem se propõe ocupar mandato eletivo (art. 14, § 9.º).

Noutro passo, em setembro de 2000, próximo às eleições paraprefeito, a imprensa brasileira veiculou com grande destaque estamatéria:

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“CRESCE ÍNDICE DE CORRUPÇÃO NO BRASIL – O TransparênciaBrasil, representante no país da Transparência Internacional,divulgou ontem Índice de Percepção de Corrupção com aclassificação de 90 países, segundo pesquisas feitas junto aempresários, especialistas do tema e população em geral.

O Brasil piorou este ano em sua posição no ranking da cor-rupção. O País desceu do 45.º lugar para o 49.º, recebendouma nota de 3,9. Em 99, o Brasil teve nota de 4,1.

A renda per capita dos brasileiros aumentaria em R$6 milpor ano se a corrupção no Brasil diminuísse para um nívelsemelhante ao registrado no Canadá. Este é o custo anual dacorrupção para cada habitante do país. O dado foi divulgadopelo presidente da entidade Transparência Brasil, EduardoCapobianco: ‘O pior não é o dinheiro desviado; se fosse sóisso, estaríamos felizes. O problema é que o país fica sem infra-estrutura, educação e saúde, e perde produtividade’, disse.

Para o Presidente da entidade Transparência Brasil, EduardoCapobianco, o brasileiro é muito condescendente com a cor-rupção, mas tem o desejo de mudar essa situação”. (Jornal OPovo, 14.9.2000, p. 11.)

Precisamos avaliar melhor a questão da escolha dos filiados quedesejam disputar mandato eletivo. Se o partido de um ex-deputadoque serrava seus desafetos vivos tivesse sido mais rigoroso na liberaçãode sua legenda, teria evitado o vexame que o obrigou posteriormente aexpulsá-lo. A legenda, contudo, não deve ser negada ao filiado sem quehaja motivação razoável.

Não pode o partido abusar do poder que detém de indicar, comexclusividade, o candidato somente concedendo o direito do uso de suasigla aos filiados simpatizantes da cúpula da agremiação. Todavia, impe-dir uma agremiação partidária de fazer a depuração exigida pela sociedade,interceptando candidatura de pessoas suspeitas da prática de crimes –mesmo em processos não julgados definitivamente, mas com evidênciasaferíveis por qualquer cidadão – é postura incompatível com a essênciada democracia, que confia aos partidos a triagem para um crescenteaprimoramento da qualidade dos ocupantes do poder. Nesse contexto,o veículo de acesso ao poder acabaria não sendo mais o partido político,mas, pura e simplesmente, o Judiciário. A filiação deixaria de ser partidá-ria para transformar-se em “judiciária”.

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Infelizmente, homens que exalam desonestidade até no próprio arque os envolve conseguem receber honrarias de um grupo social inca-paz de avaliar o potencial de sua nocividade. Sentem-se, por isso mes-mo, estimulados à pregação de suas idéias, em cadeia de televisão, comum cinismo patológico, sobretudo por fazerem escola num ambientecaracterizado pela total deformação dos valores. Partidos chegam aoabsurdo de expulsar filiados que se recusam a apoiar candidatos comesse perfil desconfortável.

6. Pedagogia da impunidadeÉ fácil perceber que o pior administrador é o que pratica ou tolera

a corrupção ou não a desestimula de forma eficiente. Nenhum desones-to pratica somente uma única ação nociva ao grupo social. Por isso, ouse radicaliza contra a desonestidade, a partir de exemplos da cúpula dopoder, ou se dissemina esta com todos os seus inconvenientes. A lógicaextraída de situação constatada na intimidade da própria família explicatudo. Como pode o pai que se embriaga com freqüência inibir as incur-sões do filho na seara do álcool?

O governante que não reage com firmeza às denúncias de irregu-laridade na sua gestão é nocivo ao povo que o elegeu. A pedagogia daimpunidade estimula a corrupção e a cumplicidade com ela traduz faltade compromisso com o interesse público em bani-la.

Quem chancela irregularidade, ao manter no cargo subordinadoque a pratica, seguramente não faz o melhor pela educação, não podeter compromisso verdadeiro com a saúde nem com as efetivas priori-dades do grupo social. Algumas vezes, a pessoa indicada para cargo deconfiança nunca teve atuação na Administração Pública; contudo, se jáludibriou terceiros, sendo detentor de má fama, pode-se ter certeza deque provocará algum constrangimento àquele que a nomeou, na mesmalinha que caracteriza seu oportunismo no meio em que vive.

Muitos, entretanto, que assumem o poder em substituição aadversário político costumam visualizar ilicitude em todos os atos doantecessor. Alguns, sem noção alguma de gerenciamento administrativo,chegam a afastar, sem exceção, todos os ocupantes dos cargos de che-fia. Presumem desonestidade coletiva em tudo e em todas as pessoas.

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Os fatos, porém, comprovam que a experiência no cargo é útil aoêxito administrativo. Deve-se apenas averiguar se a pessoa alia à compe-tência seriedade no desempenho da função. Competência, seriedade edisposição para o trabalho são qualidades que suplantam coloração par-tidária e não podem ser desprezadas por quem se propõe a administrarbuscando o melhor para a coletividade.

Não se pode, é certo, imaginar um governo perfeito, porque todogoverno é exercido por homens, e não por deuses; daí serem inevitáveis oserros, as falhas e a sempre noticiada corrupção. Muito contribuem, porém,para contê-la ou desestimulá-la, advertências oportunas das sanções a seremaplicadas aos que a praticarem. A sinceridade passada nessas advertênciasé vital para a não-proliferação dos ilícitos contra o patrimônio público. Opragmatismo de Napoleão, nesse ponto, não pode ser esquecido: “Nosnegócios da vida, não é a fé que salva, mas sim a desconfiança”.

Se o governante, porém, designa para ocupar função pública pes-soa de reputação duvidosa ou reconhecidamente desonesta, não sepode ter ilusão em relação à sua total falta de propósito em inibi-la.Quem tem compromisso com a honestidade não nomeia gente deso-nesta para cargo de confiança.

Basta imaginar alguém indicando para gerente de sua empresapessoa sobre quem paira desconfiança da prática de irregularidade. Emsã consciência, essa hipótese é impraticável no âmbito das relaçõesentre particulares. Realizá-la na atividade pública traduz descaso oufalta de zelo para com o dinheiro dos contribuintes. A ousadia dogovernante em promover essas nomeações advém da própria desin-formação do povo acerca da nocividade do desonesto que ocupa cargopúblico. Sequer se esboça, no grupo social, reação desencorajadoradessa conduta invariavelmente perniciosa.

Quem se dispuser a refletir sobre as freqüentes e, às vezes, estar-recedoras notícias sobre irregularidades com dinheiro público, nosdiversos segmentos da Administração, nos âmbitos federal, estadual emunicipal, constatará, por exemplo, quantidade expressiva de gestores,pelo Brasil afora, envolvidos de forma recorrente em denúncias dedesvio ou de má aplicação de verbas públicas.

Fosse um caso isolado, em determinado Estado ou Município, oproblema não se afigurava tão grave. Todavia, o excessivo volume dos

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denunciados leva à inexorável conclusão de que a sociedade não educaninguém para respeitar os bens ou recursos do Poder Público.

A educação sedimentada parece caminhar no sentido de que não sedeve lutar pelo poder, buscando em seu exercício, como forma de colabo-ração/contribuição, fazer aquilo que se afigure melhor para a população emdeterminada época. O objetivo parece resumir-se em lutar pelo cofre, parater acesso a ele e saqueá-lo, ostensiva ou reservadamente.

Como reagir a essa verdadeira distorção cultural, cuja motivação,em relação aos mais jovens, decorre da ausência de sanção aos que assimprocedem? Essa cumplicidade com os que aplicam mal o dinheiro públicoé histórica e se exterioriza no prestígio que costumam desfrutar os quesabidamente desviaram verbas, fizeram fortuna, favorecendo a si própriosou a familiares no exercício de função pública. A distorção, é sempre im-portante ressaltar, chega ao absurdo de difundir a expressão “rouba,mas faz” para destacar o político desonesto. Como se roubar não devesseter, efetivamente, uma penitenciária como destino.

Ladrão, na ótica da sociedade brasileira, é apenas o que subtrai,na rua, o relógio ou o carro de alguém, ou invade um banco. Ninguémusa essa expressão à vontade em relação ao homem público, mesmoquando, nos tribunais, são exibidos, documentalmente, os compro-vantes de apropriação indevida de verba pública.

Para reverter esse quadro, deve-se imediatamente começar aincutir na cabeça de jovens e crianças, nas escolas públicas e particu-lares, a noção de respeito ao dinheiro e aos bens pertencentes aoPoder Público. Deve ser disseminada a conscientização da suprema-cia do interesse coletivo sobre o individual. A propósito, é necessárioter em mente esta lição de Sêneca: “Ninguém é bom por acaso; avirtude precisa ser aprendida”.

É certo que secretários de Educação costumam afirmar que avasta maioria dos governantes brasileiros, em todos os níveis, não passapor escola pública. Isso não os desobriga, entretanto, de propagar einvestir nessa legítima busca de formação para a cidadania, vista sob oângulo do gerenciamento da Administração.

Escolas públicas e privadas, insista-se, devem começar,urgentemente, a passar aos alunos o sentimento de vergonha emapropriar-se de qualquer coisa que pertença a terceiro ou à Administração,

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e uma sensação de desconforto no fato de alguém extrair benefício par-ticular do exercício de cargo público. Deve resultar, inadiavelmente,da noção de educação básica, o constrangimento em tirar proveitoda função pública em detrimento do interesse geral. Essa conscienti-zação acabará útil para prefeitos, governadores, presidentes, médicos,advogados, juízes, promotores, delegados, procuradores, enfim, paratodos os jovens de hoje, que amanhã ocuparão posições-chave nasociedade brasileira.

Qual o sentimento experimentado pela professora dedicada aoler, no jornal, que seu ex-aluno, prefeito municipal, foi flagrado des-viando verba pública? Perceberá, infelizmente tarde demais, que nãolhe transmitira noções de educação para trato com o dinheiro público,porque não constava no currículo escolar. Amargará, como educa-dora, a certeza de que, melhor orientado, nesse aspecto, aquele acu-sado teria lugar de destaque na História, em razão das outras qualidadesque ostentava.

Pois essa “ausência de currículo”, para análise de tema tão vitalnuma sociedade em ruínas, responde por inúmeras de suas seqüelas,entre outras: o desvio de verbas destinadas à educação e à própriamerenda escolar, utilizada para alimentação de alunos carentes. Ensi-naram quase tudo na escola do gestor com aquele perfil, menos aquelalição fundamental que conteria seu ímpeto de investir contra a própriaalimentação de crianças desnutridas, cujos dramas não lhe ensinarama perceber.

7. Violência pelo poderMerece especial registro o fato de que muitos homens de norte a

sul do País matam seus adversários políticos visando à ocupação dopoder. Os que assim agem nunca deveriam ter existido, tamanho ograu de perniciosidade que apresentam.

A pessoa apta a ocupar qualquer fragmento do poder jamais serácapaz de matar alguém para investir-se no exercício dele. Pelo contrário,quem é capaz de tudo fazer para atingir o poder nunca deveria a ele teracesso. Pode-se afirmar categoricamente que irá agir contra o interessedo povo.

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Nos dias que antecedem o pleito eleitoral, o volume de tensãocresce, acentuadamente, entre os postulantes. Alguns, vitimados peloestresse, acabam agindo de maneira tal que, pelo resto da vida, acumulamarrependimento por atos impensados daqueles momentos.

Melhor é ter prudência. Conter os simpatizantes mais exaltados,que enxergam agressividade e má-fé em tudo. Lembrar-se de que todopoder é efêmero, sendo sempre possível ser superior a ele, que é fontegeradora de permanente desgaste.

Quando, enfim, tudo parecer enegrecido, estando o pior, em re-lação à grande expectativa de acesso ao mandato em disputa, prestes acorrer, com a derrota se apresentando como inevitável, relaxe. Afaste,por todas as formas possíveis e imagináveis, a idéia de eliminar o con-corrente que tem a preferência popular. Integre-se na festa cívica emque se deve traduzir cada eleição. Transforme a derrota de hoje noembrião da vitória de amanhã.

Lembre-se de que o amanhecer, em cada dia, é esplendoroso.Apesar disso, poucos se dão conta de que os primeiros raios de sol,que brotam a cada manhã, precisam ser melhor observados para que avida não se torne um fardo muito pesado pelas frustrações, peladepressão ou pelas grades. Muitas grades.

Leia, concentre-se e medite sobre estas observações atribuídas aJorge Luis Borges, que tantas modificações já provocaram no agir depessoas pelo mundo afora:

“(...) se pudesse voltar a viver, trataria de ter somente bonsmomentos.

Porque, se não sabem, disso é feita a vida, só de momentos;não percas o agora.

Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem umtermômetro, uma bolsa de água quente, um guarda-chuva eum pára-quedas;

Se voltasse a viver, viajaria mais leve.Se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço

no começo da primavera e continuaria assim até o fim dooutono. Daria mais voltas na minha rua, contemplaria maisamanheceres e brincaria com mais crianças, se tivesse outravez uma vida pela frente.

Mas, já viram, tenho 85 anos e sei que estou morrendo”(g.n.).

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Muitos, ao completarem 85 anos, puderam perceber a dimensãoda bobagem que fizeram ao longo de disputas pelo poder, cuja conquistaconsideravam infantilmente, questão de vida ou morte.

Em setembro de 2000, o esposo de uma candidata ao cargo deprefeito de um Município do Ceará comemorava efusivamente, na frentedo TRE, a reforma da decisão que indeferira o registro dela. Caso nãotivesse aquele pedido de registro sido negado na primeira instância –argumentava ele –, os adversários já teriam mandado matá-la porR$5.000,00. Com a negativa do registro, na comarca, os interessados noextermínio teriam ficado mais relaxados e sem motivação imediata paraexecutá-la. Na política, o adversário de hoje poderá ser o amigo íntimode amanhã; o extermínio de adversário é opção dos desajustados e imbecis.

8. Cautela sobre quem indica ocupantede cargo de confiança

É freqüente, no Brasil, a indicação de pessoas da confiança dedeputados, vereadores, senadores ou chefes políticos para exercer cargode direção, no Poder Executivo, em virtude da participação doparlamentar no processo eleitoral do qual resultou a vitória do prefeito,governador ou presidente, que detêm o poder de nomear.

Nos casos dessas indicações, cumpre buscar, preliminarmente,informações sobre a vida pregressa da pessoa indicada. Diante daexistência de inquérito, sindicância ou denúncias de prática de ilíci-tos, deve-se evitar a nomeação. A presunção de inocência, neste País,é uma farsa constitucionalizada.

Parece inacreditável, mas a vida pregressa pontilhada de processoscriminais motivados pela prática de ilícitos de toda natureza não seconstitui entrave para a nomeação em cargo de confiança. Muitosdetentores do poder, de posse do currículo e da ficha criminal bemvolumosa e afinada com o Código Penal, tentam justificar, com a maiornaturalidade, a indicação de afilhado político, assegurando que, ao pri-meiro ilícito praticado na função, será exonerado o recém-nomeado,cujo passado tortuoso, previamente conhecido, não recomendavaqualquer contato com o Poder Público.

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A proteção ao patrimônio, tão corriqueira no âmbito das atividadesparticulares de cada um, não é sequer discutida no setor público. Ape-nas porque os bens não pertencem ao responsável pela indicação ounomeação, não se leva em conta o potencial criminoso de quem é desig-nado para dirigir órgãos ou repartições públicas. Isso explica, em gran-de parte, as fraudes geradoras de incalculáveis prejuízos para o Tesouro,mantido pelos contribuintes.

Quem já nomeou pessoa para cargo relevante invocando arqui-vamento de sindicância anteriormente formalizada contra o nomeado,sabe a dor de cabeça que costuma resultar dessas nomeações, ao vir àtona o inevitável rosário de ilegalidades praticadas por aquele, ao que seconstata, apenas processualmente idôneo.

Uma diretriz básica deve manter-se sempre presente na mente dequem deseja administrar com zelo e seriedade a coisa pública. Se apessoa, seja um político ou não, tem propensão à ação ilegal e já foiacusada da prática de irregularidade ou pesa sobre ela suspeição emrelação a ilícitos, é impossível haver dúvida: vai aproveitar-se, ilegalmente,do cargo. Caso apenas venha a indicar eventual ocupante, o indicado,muito provavelmente, guardará esse mesmo perfil. A indicação objeti-vará também o uso indevido da função.

Político sabidamente desonesto não indicará pessoa honrada paracargo público. Essa é a regra ditada pela experiência da vida pública brasileira.Ainda quando consegue superar essa predisposição, prestigiando pessoaidônea em eventual indicação, logo acabará pedindo a sua substituição.

Se o nomeado, por indicação de pessoa com aquela característica,não seguir a orientação, via de regra direcionada para a fraude, logopassará a ter a sua exoneração solicitada pelo próprio padrinho político.Pessoa desonesta não indica gente honrada para função pública, por umarazão elementar: irá atrapalhar a implementação dos seus objetivos es-cusos.

Muitas pessoas honradas, pelo País afora, em cargos de chefia,inclusive, suportam o profundo desconforto de conviver com indivídu-os sabidamente desonestos. São estes mantidos à frente de cargos deconfiança por pressão de políticos ligados aos respectivos chefes doExecutivo aos quais são aqueles subordinados. Bem avaliada, essa situaçãoestá a caracterizar conivência ou cumplicidade indireta com a previsível

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ilicitude da pessoa mantida em cargo de chefia apesar de, no currículo, acu-mular sindicâncias, denúncias, acusações de improbidade, etc.

A experiência do dia-a-dia da vida pública tem demonstrado que sedeve guardar certa reserva em relação a quem tem várias denúncias, objetode sindicâncias administrativas, ainda quando arquivadas por falta de prova.

Nesse passo, é importante assinalar que o ocupante de funçãopública, ainda que honrado, poderá, vez por outra, ser vítima de má-féde denunciantes contrariados pela descoberta de suas ações criminosas.Inconformados, esses delinqüentes lançam-se em retaliações por meiode acusações descabidas.

Não convém, porém, alimentar ilusão. Se todos guardam reservaem relação a determinado servidor, mesmo contra quem nada se tenhaapurado em processo, ou quando as denúncias não chegam sequer aser formalizadas, não pode haver dúvida: o servidor com esse perfilnão deve ocupar função de chefia.

A presunção de inocência, não é demais insistir, levada às últimasconseqüências pela própria Constituição, está em descompasso com arealidade vivenciada na sociedade brasileira no final do segundo milê-nio e início do terceiro. Os constituintes de 1988, ao redigirem o art. 5.º,LVII, da Constituição Federal, recusaram-se a perceber isso.

Exigiram, expressamente, condenação criminal transitada emjulgado para desfazer a presunção de inocência, num País onde homense mulheres desconfiam de tudo – andando estas, aliás, sobretudo nas gran-des cidades, agarradas às suas bolsas para prevenir assalto, por não confi-arem na pessoa que transita ao seu lado. Essa é a realidade à qual devecurvar-se o aplicador da lei, conforme precisa advertência de Carlos Ma-ximiliano:

“Para ser hermeneuta completo, é mister entesourar pro-fundo conhecimento de todo o organismo do Direito e cogniçãosólida, não só da história dos institutos, mas também das con-dições de vida em que as relações jurídicas se formam”.(Hermenêutica e aplicação do Direito, p. 100.)

A propósito, dificilmente um juiz terá manejado bem o Direitoao garantir elegibilidade a prefeito, comprovadamente desonesto, queagrava a desgraça do sertão apropriando-se da verba da merenda

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escolar. Seguramente, não terá ele levado, na devida conta, “as condiçõesde vida” ignoradas por aquele predador, tampouco a idéia da solidarie-dade social que o Direito deve buscar consolidar.

De outra parte, é preciso atentar sempre para o fato de que, umavez praticada eventual ilegalidade por quem ocupa função de confiança,a ninguém interessa saber que a nomeação fora fruto da indicaçãodesse ou daquele político. O desgaste é exclusivo de quem assinou o atode nomeação. A este será reconhecida, publicamente, a incapacidade deescolher, para a chefia dos órgãos da Administração, pessoas sérias. Oassédio da imprensa, cobrando-lhe explicação, agrava a situação de tensãoconstatada nesses casos.

Uma nação paga muito caro por assegurar o poder, em qualquernível, a quem devia passar algum tempo em penitenciária. Pior do que aperniciosidade dos crimes, sempre ocultados pelos que exercem o poderde má-fé, é a imponência, a arrogância com que se apresentam no gruposocial e o modo com que interceptam o acesso aos cargos daqueles quenão comungam com a forma maligna de gerenciar a coisa pública. Sealguém se dispusesse a filmar todos os momentos do seu dia-a-dia, mui-tas autoridades, inclusive até reverenciadas, não resistiriam, por certo,aos primeiros impactos dessa utilíssima providência.

Governantes com mais escrúpulo chegam a passar mal, intima-mente, diante da renitência de correligionários cobrando nomeação depessoa literalmente desqualificada. É inacreditável e deplorável a for-ma como muitos, valendo-se da amizade, do vínculo político ou familiar,postulam para si ou para outrem a nomeação para cargos de provimentosem concurso. Pessoas com essa visão compõem a chamada “velha guarda”,que ainda infesta a Administração Pública brasileira. São incapazes depensar no melhor para toda a coletividade.

Se o responsável pela formalização da nomeação não for pessoabem-intencionada e de pulso firme, comprometida com a supremaciado interesse público, o prejuízo para a coletividade será inevitável. Teráela de suportar, por anos a fio, a incompetência, a falta de zelo e decompromisso com o serviço público. Tudo porque não atentou para ofato grave de que a função pública existe para ser exercida em favor doscidadãos, não como meio de favorecimento ou de premiação à incom-petência de quem politicamente prestigia o eventual ocupante do poder.

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É igualmente nocivo à coletividade quem nomeia para cargo deconfiança pessoa sem qualquer aptidão para o ofício, assim como quempatrocina a nomeação. Mais difícil do que a nomeação de pessoa semaptidão para o exercício da função é a exoneração dela. É preciso aten-tar para a perniciosidade e os prejuízos decorrentes da nomeação deafilhado político ou parente reconhecidamente incompetente para car-go com o qual não possui a menor afinidade.

Rui Barbosa recebeu sério questionamento pelo excesso denomeações, sem critério algum, para cargos públicos. O exemplo doinsuspeito Rui comprova nossa predisposição ao clientelismo aindanão banido da vida pública brasileira.

O historiador José Murilo de Carvalho localizou bilhete datadode 25 de agosto de 1890, de Floriano Peixoto a Rui Barbosa, com oseguinte teor:

“Exmo. Amigo e Colega Dr. Ruy Barbosa,Recebi a comunicação que me fez o colega de estar nomeado

Juiz Municipal de Monte Santo, na Bahia, o Dr. Uzedo. São muitosos meus pedidos, por isso não me recordo ter intercedido afavor desse doutor, no entanto vos agradeço.

Sou, com toda consideração, vosso colega e amigo,Floriano Peixoto”.

Nesse bilhete, a observação de Rui: “Floriano confessando queseus pedidos são muitos”. A gravidade de ontem e de hoje é que pedi-dos dessa natureza foram e continuam sendo atendidos, a despeito davisível inaptidão do nomeado.

A revista Veja, baseando-se no ensaio Rui Barbosa e a razão cliente-lista, daquele historiador, noticiou:

“No breve período em que esteve no governo, entre 15 denovembro de 1889 e 21 de janeiro de 1891, no cargo de ministroda Fazenda de Deodoro da Fonseca, Rui Barbosa fez nada menosdo que 1.251 nomeações de próprio punho. Foi um dos homenspúblicos brasileiros que mais distribuíra sinecuras, é possível dizerque, enquanto a vaca estatal esteve sob sua guarda, ele colocouà disposição de mamões e mamadores uma média de três úberespor dia”. (Edição de 6 de setembro de 2000, p. 154.)

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Provavelmente, o nepotismo e o clientelismo, que a Repúblicabrasileira exibe como incurável anomalia, tenha sua origem na visãodistorcida do marechal Deodoro da Fonseca, primeiro presidente aconceber o Poder Público como balcão de favores. Este bilhete de suaautoria, endereçado a Rui, também localizado por José Murilo deCarvalho, explicita melhor:

“Compadre e amigo.Há muito que procuro empregar um bom e fiel amigo, inteli-

gente e trabalhador – o Dr. Antônio Caetano Seve Navarro – e atéhoje nada se tem feito; e como consta que se dará uma vaga defiscal no banco dos E.U. do Brasil, venho apresentá-lo para isso.

Passei a noite sem maior novidade. Respeito à comadre, aquem abraço pela brilhante festa. O compadre e amigo.

Deodoro.R. J. junho”. (Veja, 6.9.2000, p. 155.)

Presidentes, governadores e prefeitos do Brasil poderiam refletir,por um instante, para responder a esta indagação: Durante o meu governo,quantas nomeações de pessoas incompetentes ou desonestas fiz, sim-plesmente porque algum parente solicitou ou para atender a exigênciade amigo? Quanto perde, em todos os sentidos, a Administração Públi-ca com nomeações baseadas em tais critérios?

Aos parentes e amigos dos ocupantes do poder, por sua vez,cabe a conscientização de que este não pode ser fonte de empreguismo.Para que o Brasil se desenvolva, respeite o princípio da igualdade e sejamais justo, é necessário retirá-lo da condição de nação onde algunspoucos pretendem e conseguem tudo para si, para seus amigos e famili-ares. É preciso que cada um pense menos em si e mais, ou exclusivamen-te, no melhor para todo o grupo social.

9. Ações visando apenas a dividendos políticosMuitos não se dão conta da nocividade que representam ao esta-

belecerem as prioridades administrativas apenas visando ao lucropolítico. Por exemplo, um vilarejo necessita de duas obras do governo:a instalação de uma escola e o asfaltamento de sua única rua. Caso,

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porém, a disponibilidade financeira da Administração só permita a edi-ficação de uma dessas obras, a vasta maioria dos nossos governantesoptaria pela melhoria da rua. Passaria aos moradores a imagem de gran-de administrador, de homem empreendedor, imagem essa que a ausên-cia de cultura e a incapacidade de discernimento daquela populaçãolevariam à exaltação de seu nome.

Infelizmente, poucos avaliariam os fatos pela ótica da lucidez e dobom senso. Uma rua asfaltada poderá gerar, no habitante do barraconela localizado, a sensação de urbanidade, mas jamais garantirá aos seusfilhos qualquer perspectiva de que trocarão o casebre por uma moradiamelhor. Serão eles como seus pais, se algo excepcional e improvável nãolhes ocorrer, habitantes da mesma moradia ou de outra pior.

Tivesse, entretanto, o governante o menor sentimento de solida-riedade para com aqueles habitantes do vilarejo – que, por ironia dodestino, às vezes até o idolatram – teria edificado a escola e estimuladoas crianças do lugar a freqüentá-la. Com isso, embora privassemomentaneamente o dono do barraco dos benefícios imediatos doasfalto, deixaria, de fato, assegurada a perspectiva de elevação do padrãode vida de seus filhos por meio do acesso à educação. O asfalto, amelhoria pura e simples da moradia, nada disso assegura aos filhos daspessoas que ali residem a garantia de que não serão menos afortunadosdo que seus genitores.

O ideal seria, se houvesse disponibilidade financeira, que se edifi-casse a escola e fosse a rua asfaltada; entretanto, diante da impossibilidadede realização das duas ações simultaneamente, o chefe do Executivo semvisão e apreço efetivo aos seus eleitores sempre optará pelo asfalto, porgerar este maior impacto na população “beneficiada”.

Por outro lado, em muitos Estados, faltam servidores na polícia enas áreas de saúde e educação. Todavia, as pessoas lotadas nesses órgãossão freqüentemente cedidas para assembléias legislativas, câmaras muni-cipais, tribunais de Justiça, etc. A convocação de todos para retornaremà repartição de origem, embora motivada pelo interesse superior daAdministração, é tarefa dificílima. Para cumpri-la, o governante não deveabrir nenhuma exceção. Ao ceder à pressão, por qualquer razão, de umdos interessados em manter-se distante do local em que deveria estarprestando serviço, não conseguirá atingir seu objetivo, prejudicando a

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coletividade que paga e necessita da presença do servidor naqueles locaisem que são desempenhadas atividades essenciais.

O bom gestor precisa saber resistir às pressões contrárias ao inte-resse coletivo. A exceção aberta para favorecer o eventual correligionárioacaba inviabilizando a regra saneadora que se pretendia implantar. Quemnão for capaz de dizer “não” ao amigo leal, para manter respeitado oprincípio da impessoalidade, definitivamente não será um bom adminis-trador público. Será, quando muito, um fisiologista. E todo fisiologista éinjusto. Costuma sempre favorecer seus apadrinhados e prejudicar ter-ceiros pela simples condição de adversário político. O mais grave, porém,é que, muito provavelmente, não designará pessoa para ocupar funçãopública pelo critério da competência.

No início do ano 2000, os moradores do Distrito de Bandeira, noMunicípio de Itatira-CE, queixavam-se de que, no único posto de saúdedo lugar, nenhum dos quatro servidores sabia sequer aplicar uma injeção.

Por fim, desrespeito ao contribuinte representa a criação de minis-tério, secretaria de Estado ou outro órgão qualquer apenas para abrigarsimpatizante político. O desperdício de despesa com pagamento de salá-rio desnecessário, nesse caso, demonstra que o governante sobrepõe assuas conveniências políticas aos interesses dos administrados. Dificil-mente fará governo exitoso. Sua preocupação fundamental é com políticos,e não com o povo. Essa é a leitura correta de seu ato. Pagará, no final, opreço pela incompetência de gerenciar, da qual é indício seguro aquelalinha de critério para a composição da equipe de governo.

10. Necessidade e cautela na construçãode maioria parlamentar

Sobre a utilidade da formação de maiorias, no regime democrático,observou Barbosa Lima Sobrinho:

“Mas a representação das minorias não é o único interesseda democracia; há que pensar também na força dos governos,ou na solidez das maiorias. A exagerada fragmentação dospartidos políticos e o enfraquecimento das maiorias parlamen-tares tornam quase impossível a tarefa da Administração.

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(...) A excessiva divisão e subdivisão das forças políticascria assembléias tão fragmentárias, que só se consegue chegarà formação de maiorias e, conseqüentemente, à organizaçãode governos, mediante coligações aleatórias, precárias e nãoraro imorais.

O excesso de grupos enleia e esteriliza a ação governamental.Convém não esquecer que a democracia não se reduz a umcenário para a luta dos partidos; tem que ser, antes de tudo,uma fórmula de organização para o governo de uma pátria”.(Questões de Direito Eleitoral, Recife, 1949, p. 265-266.)

Se impossível ao chefe do Executivo governar com leis defasadasque se mantêm em vigor, a solução lógica seria constituir maioria, no PoderLegislativo, para que fossem processadas as alterações, ou, o que seria maisesperado numa Casa Legislativa comprometida com o progresso e o bem-estar geral, sensibilizá-lo, sem qualquer concessão, para proceder às modi-ficações reclamadas pelo interesse público. As ações de todos os homenspúblicos devem convergir para a satisfação do interesse coletivo. A harmo-nia, recomendada pela Constituição, no relacionamento entre os poderes daUnião tem por objetivo exclusivamente a realização daquilo que se apresen-ta melhor para a nação. Cícero recorria à Lei das XII Tábuas para enfatizar:“Que o bem-estar do povo seja a lei suprema”.

Nessa ordem de idéias, se todos os especialistas em determinadoassunto recomendam, ao ensejo de evitar, por exemplo, o caos nasfinanças públicas, a adoção de determinada providência, cuja imple-mentação dependa de deliberação legislativa, a omissão em adotá-laatenta contra a harmonia recomendada, prejudicando os interesses doPaís. Guardadas as proporções, ter-se-á, em última análise, hipótesesemelhante à de um cavalo cujas patas dianteiras tendem a dispararpara a frente, em busca do pódio, e as traseiras para trás, em sentidooposto. Essa desarmonia provocará sempre insucesso, em qualquerdisputa, com irreparáveis prejuízos para todos. Uma vez detectado oproblema, pela avaliação isenta da sociedade, os seus segmentos, semexceção, devem convergir na busca da melhor solução. Sem isso, o lucroserá sempre dos concorrentes do País, que continuarão exaltando nossadecantada incapacidade gerencial.

Na construção e preservação da maioria, contudo, reside o ver-dadeiro câncer da vida pública brasileira. Falta-nos a consciência básica

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de que o dever da maioria é fazer sempre o melhor para a coletividade.Não deve existir apenas para atender às conveniências pessoais ou aoscaprichos particulares dos que a compõem.

É comum, na vida pública brasileira, o exemplo legado por um Estadoda Região Sul do Brasil, em 1998. A pretexto de fazer oposição ao futurogoverno, cujo titular acabara de eleger-se, a Assembléia aprovou lei deaumento salarial dos servidores, comprometendo totalmente as finançasdaquela unidade federativa. Cada deputado que votou favoravelmente aoprojeto desse aumento o fez porque não seria ele o gestor naquela gravesituação de insolvência – que, conscientemente, contribuiu para agravar.Num regime em que há noção do verdadeiro sentido da democracia,todos os que participam da formulação de lei destinada a inviabilizar ogerenciamento da Administração, deixando em apuros o gestor do qual,divirjam, deveriam ser cassados, pelo desvio de finalidade que empresta-ram ao exercício do mandato. “É mais fácil ditar leis que executá-las” –constatara, há muito, Napoleão.

A necessidade de maioria parlamentar, a dificuldade ou o medode administrar sem ela, leva muitos governos desavisados a tornarem-sepresa fácil dos políticos, muitos dos quais preocupados apenas com ofisiologismo ou com as suas conveniências particulares. A capitulaçãodo chefe do Executivo às exigências dos integrantes do Legislativo, emqualquer nível (estadual, federal ou municipal) é fatal para provocardesastre administrativo.

Aliás, é freqüente dizer que o ministério ou a secretaria tal é desse oudaquele partido, ficando o seu titular refém dos dirigentes da agremiaçãoque o indicou. Em muitos casos, é este obrigado, inclusive, a atender asolicitações de cunho politiqueiro, com graves prejuízos para a Adminis-tração e desgaste para o chefe do Executivo, por haver sucumbido, nanomeação, a pressão danosa ao interesse público. E esse quadro mais seagrava, maculando irremediavelmente a imagem do governante perante aHistória, quando mantém, no poder sob seu comando, pessoa que todosafirmam desonesta. A desonestidade do subordinado é a extensão da pró-pria má-fé ou o desapreço para com a coisa pública de quem o nomeou,sem falar nos casos em que os líderes de partidos exigem os cargos semnenhum constrangimento, como se fossem os escolhidos pela popula-ção para governar.

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Na verdade, faz-se necessário conscientização no sentido de queaos partidos vitoriosos nas eleições majoritárias é assegurada apenas agarantia de que o programa de governo apresentado ao eleitor deveráser executado pelo vencedor do pleito – o governante eleito –, que elesindicaram. Apenas isso.

O resultado das urnas não assegura aos partidos a prerrogativade impor nomes para essa ou aquela função específica, menos aindapara apresentar indicação de pessoa sobre quem pesa suspeição oudenúncia de toda sorte.

O Parlamento foi concebido para produzir leis e fiscalizar os atosdo Executivo; não foi concebido para servir de instrumento de favore-cimento dos parlamentares, nem para, pura e simplesmente, criar obstá-culos, entraves ou dificuldades para o bom gerenciamento daAdministração Pública.

Um respeitado líder de oposição, no Brasil, durante o recessoparlamentar de julho de 1999, deliciava-se ao afirmar: “Não há climanem entendimento na base governista para priorizar a Lei de Respon-sabilidade Fiscal e a regulamentação da Previdência Social” (Jornal doBrasil, 30.7.1999).

O interesse superior da população deve sobrepor-se às divergênciaspartidárias, porque, como reiterava Napoleão: “A primeira de todas asvirtudes é a abnegação pela pátria”. As conveniências partidárias jamaispodem sobrepor-se ao interesse superior do País.

Em agosto de 1999, direita e esquerda uniram-se tentando apro-var uma lei para liberar os produtores rurais do pagamento de débitos.Em conseqüência dessa articulação, seria repassada aos contribuintesuma dívida, em grande parte atribuída aos produtores de soja, superiora 20 bilhões de reais, justamente no momento em que mais o Paísnecessitava de equilíbrio, nas suas contas, para ter crédito e dinheiromais barato no mercado internacional. A sociedade brasileira pagarásempre muito caro enquanto, por razões diversas, políticos de correntesideológicas diferentes atuarem unidos contra a busca de maior eficiênciapara o gerenciamento do Brasil.

No final de 1999, porém, após testemunharem as graves dificuldadesvivenciadas pelos governadores de sua facção partidária, os mais proemi-nentes líderes do maior partido de oposição no Brasil compreenderam

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que não basta a situação cômoda de dizer “não” a tudo. É imprescindívelsugerir e propor soluções concretas aos angustiantes problemas com quese depara a Administração, para manter-se aos olhos do eleitor como al-ternativa para o exercício do poder. Por isso, advertiu José Genoíno, odeputado mais votado do País no pleito de 1998: “O PT tem de dar umsalto de qualidade, e para isso estão faltando três coisas: um projeto clarode administração para o País, a abertura para o diálogo com a sociedade,eliminando a defesa de interesses corporativos, e a superação de brigasinternas” (Veja, 17.11.97, p. 38).

É preciso ficar bem nítida esta constatação: sem equilíbrio nascontas públicas, qualquer que seja o partido no poder, continuará o Paísna dependência de financiamento pelo capital externo. Quem gasta maisdo que recebe não pode ter moral com seus credores, e no caso de pessoafísica, a bem da verdade, acaba não sendo respeitada nem no âmbito darelação conjugal. Sem integral observância da Lei de ResponsabilidadeFiscal, torna-se quase impossível a governador de qualquer Estado, inte-grante de esquerda, direita ou centro, gerenciar bem a coisa pública, por-quanto continuaria sem ter noção prévia dos gastos do Legislativo e doJudiciário. Gastar sem preocupação alguma com a disponibilidade de di-nheiro no caixa é caminho certo e curto para a insolvência.

Um deputado assumidamente fisiologista, insensível a qualquer crí-tica da imprensa em relação a sua postura de político preocupado consigomesmo e, em menor escala, com os interesses dos correligionários direta-mente envolvidos na sua eleição, costuma traduzir a sua longa experiênciaservindo a vários governos: o político sabe se conformar com qualquertratamento. Se o chefe do Executivo diz “não” a tudo o que determinadodeputado pede, este acha ruim no começo, mas, como sabe que a regra épara todos, acostuma-se e passa a respeitar o titular do poder.

Na simplicidade da explicação está a causa do desastre administra-tivo que o Brasil tem testemunhado ao longo do tempo: a negociaçãopara chegar ao poder, projetada no curso do seu exercício, por meio deconcessões até conflitantes com o interesse público. As lições autoriza-das de Hely Lopes Meirelles sobre o papel do gestor público estão areclamar especial atenção da sociedade brasileira, para serem assimiladasa partir dos bancos escolares: “A legalidade, como princípio de adminis-tração, significa que o administrador público está, em toda a sua atividade

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funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum,e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválidoe expor-se à responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme ocaso”. (Direito Administrativo brasileiro, 16. ed., p. 78.)

O chefe do Poder Executivo é eleito para governar bem, parafazê-lo rigorosamente em sintonia com os anseios dos que o elegeram.Deve, para tanto, permanentemente pôr em prática uma regra básica ede consenso geral: ele, apenas ele, eleito para isso, manda, e todas assuas ações devem buscar a satisfação do interesse coletivo. Ninguémdeve ousar pensar o contrário. Se esse princípio não prevalecer e ficaro chefe do Executivo a reboque das conveniências subalternas dos quefreqüentam os corredores palacianos, sua autoridade resultará esface-lada e nunca mais se recomporá. Será mais um governante marcadopela ineficiência, vítima das pressões fisiológicas.

A grande maioria dos políticos pede tudo. Do possível aoimpossível. Não se pode, entretanto, desconhecer a legitimidade daspostulações destinadas a atender a reivindicações justas de suas bases.O problema reside nas postulações de cunho pessoal, tais como:indicação do filho para tal cargo; aumento de salário; pagamento integralde gratificação; exigência, sob pena de rompimento, da nomeação depessoa desonesta e sem competência alguma para certa função; pedi-do de exoneração de quem não se curvou às ordens prejudiciais aoscofres públicos; pagamento de crédito sem existência de precatório; eoutras postulações análogas, sem qualquer sintonia com o interessepúblico.

O apoio para alguém chegar ao poder não pressupõe, em hipótesealguma, o leilão dos cargos. Os compromissos de apoio são espúrios einaceitáveis quando tomam por base o loteamento da Administração.Cada eleitor, que detém um fragmento da soberania popular, sentir-se-á,em última análise, vendido ou mercantilizado em relação àquilo que sim-boliza a essência da democracia: a delegação para o exercício do poderem seu nome, visando sempre ao melhor para todos, nunca a sua parti-lha para satisfazer a conveniências subalternas de quem contribuiu paraa vitória eleitoral.

Ao abdicar o chefe do Executivo da prerrogativa, que recebeudos eleitores, para indicação e nomeação dos que vão colaborar com

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ele na condução da Administração, delegando a escolha aos segmentospartidários que o ajudaram a atingir o poder, sem qualquer triagem ele-mentar recomendada pelas normas de assepsia gerencial, acaba conde-nando sua liderança a inevitável fracasso. O mais triste de tudo é quejustamente os políticos que mais contribuem para a nomeação de inca-pazes e desonestos são os primeiros a se distanciar do governante queseguiu suas sugestões fisiológicas, proclamando, pouco depois, cominacreditável cinismo, a sua imprestabilidade. Parece mesmo que sempreexpressaram contestação àquele que tudo lhes ofereceu, até sucumbirpelo conseqüente esfacelamento de sua autoridade.

A Administração Pública se ramifica em diversos tentáculos, mui-tos dos quais não respondem aos comandos emanados da chefia. Porisso, se o poder, nos diversos segmentos da sua hierarquização, não forbalizado a partir de critérios rigorosos (que levem em consideração acapacidade, a honradez e o dinamismo dos escolhidos para os cargosde chefia), o governo acaba sendo mais um no rol daqueles cuja tônica éa mediocridade. A ausência freqüente de comando ou sua fragilidadetambém acaba desestimulando os subordinados, na medida em que asensação de vazio e descaso contagia-lhes o espírito negativamente.

Para qualquer eleitor saber o potencial de fisiologismo de seuvereador, deputado ou senador, basta indagar o posicionamento sobrematéria envolvendo o interesse pessoal de seu representante. Porexemplo, previdência do Legislativo, fixação do próprio salário,nomeação de assessores, etc. Impressiona a incapacidade de muitos po-líticos se libertarem da idéia de pensar apenas nos seus interesses imedi-atos. Aliás, a preocupação consigo mesmo é típica da elite brasileira emtodos os seus segmentos.

Uma reformulação nos parâmetros da educação, a partir da escolade primeiro grau, enfatizando a necessidade do respeito a tudo o quese relaciona com o interesse coletivo, deve ser buscada para a melhoriado perfil dos homens que ocuparão função pública no âmbito do Po-der Executivo, do Legislativo e do Judiciário. As mazelas emanadas des-ses poderes, noticiadas com freqüente alarde na mídia e que provocamconstrangimento na nação, serão, por certo, significativamente reduzidas.As confissões de um presidente de que ficaria refém do Congresso refle-tem a tradicional invocação da política no estilo São Francisco: “é dando

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que se recebe”. Trata-se de estilo mesquinho de conduzir-se na vida pú-blica. Postura da velha guarda, literalmente cancerosa, que precisa servencida com a maior urgência possível pelos jovens bem-intencionadose de mentalidade mais arejada, que haverão de inspirar-se nesta lição deNelson Mandela, grande líder do final do século XX: “Todas as con-quistas devem levar ao bem comum”. Essa lição precisa ser aprendidadesde a infância, na escola de primeiro grau.

O presidente Bill Clinton, responsável pelo governo de maiorprosperidade nos Estados Unidos, governou sem maioria na Câmara eno Senado. No ano 2000, seu Partido Democrata tinha 211 deputados,contra 222 do Partido Republicano. No Senado, os republicanos ocu-pavam 55 cadeiras, enquanto os democratas, 45. Mesmo sem maioria,Clinton superou um processo de impeachement a que foi submetido porquestões relacionadas com a sua intimidade, questionada naquela socie-dade reconhecidamente conservadora. No Brasil, isso seria quaseimpossível, como mostra o prof. José Carlos Cardozo:

“Ao se analisar a base de cada governo na Câmara e se esta-belecer um paralelo com a queda presidencial, constata-se oseguinte:

Eurico Gaspar Dutra, do PSD, com 52% de apoio doscongressistas, chegou normalmente ao fim de seu man-dato; Getúlio Vargas, do PTB, quando ficou com 16,8%de apoio, em virtude de o PSD, que lhe dava sustenta-ção, ter-se retirado do governo, suicidou-se; JuscelinoKubitschek, do PSD, que juntamente com o PTB obteve amaioria, governou com razoável estabilidade; Jânio Qua-dros, do pequeno PDC, que nunca alcançou a maioria eperdeu rapidamente o apoio dos partidos que o sustenta-vam, renunciou sete meses após a posse; José Sarney,do PMDB, com a maioria de 53,6%, embora sem forçapolítica ao final do governo, concluiu o seu mandato, eFernando Collor de Melo, do PRN, que elegeu 8% daCâmara, ficou na dependência do PFL e do PTB paragovernar: quando começou o movimento pelo impeache-ment, foi dissolvida a sua base política e o presidentecaiu em 1992” (A Fidelidade Partidária, fls. 56-57).

O fato de um governo não possuir maioria não significa,necessariamente, que não possa chegar ao final do mandato sem trauma.

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Jânio foi levado à renúncia não porque governava com minoria, masporque pretendia governar sem Parlamento algum. Renunciou na ex-pectativa de que seria convocado a voltar para governar sem limitaçãoao exercício do poder.

Collor, ao lançar-se candidato, protocolou, no Ministério da Jus-tiça, em Brasília, dossiê enumerando diversas irregularidades quedetectara no governo do presidente José Sarney, cuja maioriaparlamentar impediu-lhe a decretação do impeachement. O presidenteCollor, porém, que já denunciara os ilícitos do governo Sarney, não de-veria ter praticado atos idênticos, muito menos invocar a falta de maio-ria para justificar a apuração de ilicitudes e sua conseqüente destituiçãodo poder.

Maioria não deve significar certeza de acobertamento de ilícito.O governo pautado na corrupção deve ser destituído, tenha ou nãomaioria no Parlamento. Qualquer governo sério, comprometido coma supremacia do interesse coletivo, deve ser preservado com ou semmaioria parlamentar. Se não tiver o aval da maioria e simplesmenteisso for fator determinante para não chegar ao seu final, significaráapenas falta de maturidade da nação. Traduzirá simples indigência desua elite, visualizada na incapacidade de ensinar aos seus filhos que opoder não deve ser fonte de fruição pessoal de quem quer que seja.Deve ser, exclusivamente, instrumento de realização do bem comum.Sem essa consciência, a ameaça de golpe será constante, e a pobreza dapopulação, cada vez mais acentuada, caso esteja o País sob o comandode homens públicos que sempre invocarão, no exercício da função,diferentes motivações para justificar seus erros. James Madison, o grandementor da Constituição americana, já advertia, no Federalist 57: “O obje-tivo de toda organização política é, ou deveria ser, em primeiro lugar,obter como governantes os homens dotados da maior sabedoria paradiscernir o bem comum e da maior virtude para promovê-lo”.

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CAPÍTULO II – PARTILHA DO PODER

1. RELAÇÃO ENTRE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E LEGISLATIVO;2. O EXEMPLO COMO FATOR DE PERSUASÃO; 3. RECEITAS DOEXECUTIVO, DO LEGISLATIVO E DO JUDICIÁRIO.

1. Relação entre Administração Pública e LegislativoA Constituição da República proclama, solenemente, serem

independentes e harmônicos entre si os poderes Legislativo, Executivoe Judiciário. Os poderes, entretanto, são exercidos por homens cujaformação, sobretudo moral, projeta-se no exercício do mando.

Muito embora o comando da Administração pertença ao chefedo Executivo, eleito pelo povo para cumprir programa de governoexposto durante o período de campanha, a liberdade de ação do gestorfica circunscrita ao campo que lhe foi delimitado pelo texto constitucionale pelas leis produzidas no Legislativo.

Se o Parlamento, elabora leis equivocadas em relação à Adminis-tração Pública, onerando-a sobremodo ou não lhe permitindo reduzirgastos, a despeito das necessidades, em face da escassez de receita, quemsofrerá as primeiras conseqüências decorrentes da ineficiência gerencial– inevitável nos casos de deficit exagerado – será o titular do Poder Exe-cutivo. Isso porque fica este impossibilitado de agir em desacordo comaquelas normas, ainda que se saiba, previamente, do seu potencial preju-ízo em relação ao interesse público.

Torna-se cômoda, assim, a posição do Parlamento no sistemapresidencialista brasileiro. Pode elaborar leis, inclusive desastrosas paraa atuação da Administração, inviabilizando o seu funcionamento, enenhuma responsabilidade tem o Legislativo em relação ao insucessodo governo.

Tome-se como exemplo a lei anistiadora de débitos dos agricul-tores, exigida pela bancada ruralista, e as leis que costumavam ser

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produzidas em final de mandato majorando irresponsavelmente os salá-rios com o propósito de criar embaraço ao próximo governante. Muitosparlamentares ficavam até exultantes com o desastre do governo, para oqual podiam contribuir as normas “generosas” daquele teor, que, muitasvezes, engessavam o Poder Público ou desequilibravam seu caixa. A Leide Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar n.º 101, de 4.5.2000, emboa hora veio conter a prática desses abusos. Cumpre enfatizar que a utili-dade pública deve sempre servir de motivação para a edição de qualquerlei, sob pena de prevalecer a conclusão de Bismark: “As leis são comosalsichas. É melhor não ver como elas são feitas”.

Ninguém duvida de que a Constituição de 1988, a despeito dosaspectos positivos que contém, exibe pontos explícitos de fisiologismoque dificultam o bom desempenho da Administração. Por exemplo, aogarantir, no art. 19 do ADCT, estabilidade a professor de escola públicanomeado sem concurso, destituído de vocação e sem aptidão algumapara transmitir o saber aos alunos carentes, prejudicou o ensino.

Obrigou-se o Poder Público a manter, nos seus quadros, servi-dores sem qualificação, tornando necessária a contratação de outrosmais capacitados para exercerem a mesma função. Majorou-se a des-pesa, sem qualquer preocupação com a qualidade do ensino, agravandoas dificuldades para o pagamento de melhores salários aos educadoresmais competentes e comprometidos com a causa da educação.

Aliás, nas palavras textuais de um deputado constituinte daqueleano, o ambiente do Congresso Nacional em que fora ela produzida“assemelhava-se ao de um mercado persa: tudo se negociava; até aduração do mandato do presidente”. Quando se colocam no mercadoos interesses superiores de uma nação, todos sempre suportam danosirreparáveis.

Embora certo que ao Executivo cabe o comando da Adminis-tração Pública, não menos certo é que as deliberações emanadas doLegislativo e do Judiciário interferem, de forma decisiva, nessegerenciamento.

Os integrantes de todos os poderes não podem, por isso, deixarde ter presente, nas suas manifestações em relação à AdministraçãoPública, a exata noção da supremacia do interesse coletivo em relaçãoao individual.

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Por exemplo, quando o Judiciário determina o pagamento de remu-neração a servidores, tomando como base o salário mínimo – emboraexpressamente vedado pelo art. 7.º, IV, da Constituição –, sem qualquerpreocupação com a disponibilidade financeira do Tesouro, poderá, mesmoque involuntariamente, inviabilizar o gerenciamento da Administração.

No ano 2000, apenas para efeito de ilustração, grande parte dadívida do Estado do Ceará, formalizada em precatórios oriundos daJustiça do Trabalho, decorria de condenação em flagrante afronta aoart. 7.º, IV, da Constituição, que proíbe a utilização do salário mínimopara fixação de piso salarial. Sem verba disponível no caixa, não hácomo saldar dívida, por maior que seja a boa-vontade do administrador.

Jamais se deve restringir a atuação do Judiciário no controle dalegalidade de todos os atos da Administração. Mas, na abrangênciadesse controle, não parece razoável incluir a prerrogativa de onerar afolha de pagamento, sem qualquer avaliação sobre a efetiva capacidadedo Tesouro em suportar a majoração.

Sem essa preocupação, acabará o gestor obrigado a entregar a cha-ve do cofre ao julgador, para que este gerencie os recursos de forma agarantir o cumprimento da ordem de elevação da despesa. A indiferençaem relação ao volume da receita disponível torna difícil o pagamento dosdébitos imputados ao Poder Público, e acabará por ensejar uma espéciede intervenção inusitada, a pedido do próprio administrador, para parti-lha do seu drama.

O bom gerenciamento da Administração é exigência de interessepúblico; por isso, todos devem contribuir, num esforço comum e cons-tante, para alcançá-lo.

Não se pode admitir que o Judiciário, o Legislativo ou o Executi-vo deixem de adotar as providências, sempre que se fizerem necessárias,para atingir esse objetivo.

Ou, por outra, não se pode conceber que o Poder Judiciário ou oLegislativo aumentem as despesas da Administração Pública sem qual-quer atenção à quantidade de recurso existente nos cofres públicospara custeá-las.

Mandar pagar valores ou criar despesa sem nenhum exame domontante de verba necessária para suportá-la é posição cômoda queacaba se transformando em pesadelo para todos.

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Dizer apenas “pague-se”, sem qualquer questionamento sobre“como” ou “com o quê?” é postura flagrantemente incompatível comos princípios constitucionais da eficiência e da razoabilidade, que vin-culam os três poderes. A gestão da coisa pública, portanto, é tarefa aser compartilhada por todos os ocupantes de qualquer segmento dopoder.

A busca do êxito da Administração não é atribuição privativa doExecutivo. Aliás, por isso mesmo, os atos administrativos são passíveisde retificação ou a desfazimento pelo Judiciário e de fiscalização peloLegislativo. O fim – inatingível sem permanente aprimoramento daeficiência – é a integral satisfação do interesse coletivo.

É preciso ficar claro que a prerrogativa para intervir na Adminis-tração, reconhecida ao Legislativo e ao Judiciário, não se destina a criarembaraço ou a dificultar a realização das atribuições daquela. Visa,exclusivamente, a garantir a efetiva realização do bem comum.

Há, nesse passo, desvio de finalidade na atuação do Legislativoquando, por exemplo, aprova lei de iniciativa do chefe do Executivoprestes a deixar o cargo, onerando a folha de pagamento acima dacapacidade do Tesouro. A propósito, a Lei de Responsabilidade Fiscalconsidera postura criminosa a majoração de folha no final do mandato.Bem assim, afigura-se nociva a decisão judicial que determina seja man-tida no cargo de diretora de escola pública pessoa que desviou verba,conforme apurado em processo disciplinar com garantia da ampladefesa. Quem desvia verba pública, em qualquer esfera de poder, deveter a penitenciária como destino.

Um juiz, mediante permanentes liminares, ordenando aumentode salários, reintegração de servidores demitidos com base em provacolhida em processo inequivocamente regular, ou determinando sus-pensão de licitação para contratação de serviços, acaba, em última aná-lise, transformando-se no administrador de fato.

O papel do magistrado, como se constata, é fundamental nasociedade contemporânea. Suas decisões interferem na vida de todos.Do patrimônio particular das pessoas a somas gigantescas de recursospúblicos, tudo fica ao sabor do convencimento de magistrados, a quemcabe a última palavra sobre todas as relações que se travam na sociedade.Bem pertinente, por isso, a observação de um jovem integrante do Poder

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Judiciário no Rio de Janeiro, consciente do grande papel reservado à ma-gistratura brasileira: “Ser juiz é ter a chance de mudar este País”.

O escritor cubano, radicado em Madri, Carlos Alberto Montaner,resumiu aquela constatação ao enfatizar:

“A função mais importante do Estado é promover a justiça.A chave de um Estado moderno está no Poder Judiciário. Senão houver uma Justiça rápida e justa, as pessoas nunca vãoconfiar nas instituições do Estado. Depois, em um patamarinferior, vêm outras coisas, como saúde e educação” (Veja,23.8.2000, p. 14).

Às atribuições outorgadas pelo grupo social aos magistrados devecorresponder, obviamente, a mais absoluta confiabilidade nos seusintegrantes. Nenhuma sociedade conviverá sob o signo da paz e empermanente progresso se não mantiver total confiança na suamagistratura. Juízes que, por qualquer desvio de conduta, provocamdesconfiança nos jurisdicionados são profundamente danosos, por com-prometerem a própria reputação, que é fundamental para os membrosde instituição cuja atribuição é fazer justiça.

Pode-se desconfiar de qualquer integrante do grupo social, menosde um juiz. A sociedade que, por qualquer razão, deixa de confiar nosseus próprios magistrados passa a vivenciar o caos. A Justiça deixa deser cega e de responder ao seu papel de transcendental importância. Aruína dos valores é inevitável. Justiça sem confiabilidade é a exteriori-zação de um Judiciário enfermo, a reclamar mudanças radicais paracumprir bem a grande missão que lhe é reservada no mundo civilizado.

Não há alternativa. Ou o Judiciário exclui todos os juízes com-provadamente desonestos de suas fileiras ou estes, por mais reduzidoque seja o seu número – e são poucos, efetivamente –, aniquilarão o seuconceito no grupo social. Todos os juízes sérios, competentes e dedica-dos, juntos, não são capazes de amenizar os prejuízos à imagem do Po-der Judiciário causados por um magistrado que não prima pelahonestidade no desempenho de suas funções.

Um juiz é para ser reverenciado, respeitado e exaltado onde estiver,jamais para ser olhado com reserva, sob ar de desconfiança. Sociedadeque mantém suspeição sobre sua magistratura é sociedade falida, pobre

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de valores morais e, por via de conseqüência, materiais. Todos devemconfiar na Justiça; e esta, por seu turno, deve ter como grandepreocupação nunca perder a credibilidade dos seus jurisdicionados.

O espaço de prestígio e poder assegurado, durante longo tempo,ao juiz Nicolau dos Santos, responsável, na década de 90, pelo fórumtrabalhista de São Paulo, em que restaram desviados mais de cemmilhões de reais, somente se explica pela ausência de corregedoriaeficiente, despida de corporativismo. Todo juiz comprovadamentedesonesto deve ser excluído da magistratura – esse o lema dos magistra-dos novos, comprometidos com o engrandecimento do Judiciário. Aprevalecer essa diretriz, largamente disseminada entre os juízesconscientes do seu grande papel, será possível edificar uma sociedadejusta, mais abastada – e, portanto, capaz de remunerá-los de forma dig-na e compatível com a magnitude do seu ofício.

Por outro lado, é oportuno enfatizar, muita cautela deve ser adotadano exame da legalidade do ato administrativo, para não transformaressa necessidade de controle judicial em efetivo entrave ao bom desem-penho do Poder Público.

Ações ilegais da Administração devem, efetivamente, ser repri-midas com a respectiva sanção ao administrador responsável pela ediçãodo ato ofensivo à lei. O Judiciário não pode ser condescendente comações ilícitas do Poder Público, notadamente quando nelas se vislum-bra fraude. Também sobre os atos discricionários do Poder Públicodeve o Judiciário manter vigilância, sobretudo para sustar qualquerdesvio de finalidade na sua edição. Por exemplo, o caso da contrataçãode serviço flagrantemente desnecessário apenas para favorecer o con-tratado; a compra de bens em quantidade acima do necessário, parabeneficiar o fornecedor de tais produtos; etc.

Nesse particular, as ponderações de Celso Antônio Bandeira deMello merecem especial atenção:

“Assim como ao Judiciário compete fulminar todo compor-tamento ilegítimo da Administração que apareça como frontalviolação da ordem jurídica, compete-lhe igualmente fulminarqualquer comportamento administrativo que, a pretexto deexercer apreciação ou decisão discricionária, ultrapassar as fron-teiras dela, isto é, desbordar dos limites da liberdade que lhes

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assistiam, violando, por tal modo, os ditames normativos queassinalam os confins da liberdade discricionária” (Curso deDireito Administrativo, 9. ed., Malheiros, 1997, p. 591).

A liberdade assegurada ao administrador público para agir discri-cionariamente tem por finalidade permitir-lhe que atue, diante da mul-tiplicidade de situações que compõem o dia-a-dia da Administração,sempre, permanentemente, na busca do melhor para a coletividade.Nunca para, específica e exclusivamente, favorecer este ou aqueleadministrado. O princípio da impessoalidade, por isso, deve semprenortear os atos do administrador.

Quando os atos da Administração Pública visam a proteger apenasinteresses pontuais de determinados administrados, todos perdem.Primeiramente, porque os gastos que custearão as suas realizações,nesses casos, são desnecessários. Depois, porque o exemplo dissemi-nado faz escola, consolidando a mediocridade no gerenciamento dacoisa pública.

Todavia, insista-se, aquelas intervenções devem ser bemavaliadas, inclusive com a convocação do administrador para prestaresclarecimentos sobre a ação impugnada. Com isso, será possíveldesmascarar o gestor cujo ato apresenta-se danoso ao interessepúblico. Preserva-se ainda, o Judiciário, de críticas da sociedade, namedida em que se evita posicionamento incompatível com os princí-pios que devem nortear a sua atuação na busca de realização do idealde justiça. O afastamento do cargo, quando comprovada efetivamentea ilicitude grave do servidor de qualquer poder, é providência inadiável,ainda não assimilada, sem embargo da previsão em lei e da lógica ele-mentar contida nessa recomendação.

Enfim, não é demais insistir, determinar ao Poder Públicopagamento de condenações manifestamente incompatíveis com aordem jurídica ou, nos casos de desapropriação, de indenizações aber-rantes, com valores sem qualquer sintonia com a realidade do mercadoonde esteja situado o imóvel, é postura que gera intranqüilidade nasociedade da qual sairão os recursos utilizados para o respectivopagamento.

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2. O exemplo como fator de persuasãoExtraiu-se do caso específico da Previdência Social um exemplo

a ser evitado pelos governantes. O então ministro da área, responsávelpela proposta inicial da reforma que aumentava a idade de aposenta-doria, havia-se aposentado com menos de 45 anos. É evidente que, adespeito de todos os seus méritos, achava-se ele sem autoridade oucapacidade de persuasão para demonstrar a necessidade de elevaçãoda idade para aposentar-se o servidor público.

Toda a procedência dos seus argumentos era fragilizada pela faltade coerência. Mesmo recebendo, a título de aposentadoria, quantiairrisória, a população não encontrava motivação para sensibilizar-seou, o que ainda se afigurava pior, simplesmente recusava-se a refletirsobre os fundamentos da proposta de quem, pela própria situaçãoparticular, inviabilizava o convencimento sobre a necessidade de apro-vação daquelas medidas saneadoras. Fazer o que eu digo, e não o queeu faço, não é método apropriado para educar nem para governar bemqualquer povo. Aliás, assinalava Madame de Sabié: “Nada é mais peri-goso que um bom conselho acompanhado de um mau exemplo”.

Por outro lado, muitos economistas costumam provocarimensa perplexidade, sobretudo nos mais jovens. Ao fazerem suasexplanações, notadamente em épocas de crise, quando aparecem maisintensamente na mídia, exibem tamanha precisão e clareza sobre assoluções para a economia do País que encantam a todos. Dentre osouvintes impressionados, surgem muitos lamentando não se encon-trar aquele expositor no comando das finanças do Brasil. Logo, po-rém, esse quadro de lamentação é contido pela explicação dos maisvelhos de que aquele especialista festejado já comandou a Economia,sem que o sucesso de suas lições fosse concretizado quando esteveno poder.

Os mais pessimistas chegam até à suprema injustiça, decorrenteda generalização da conclusão de que economista só é bom quandoestá fora do governo. Qual, porém, a explicação para esse fato intrigante?

Os economistas não costumam falar explicitamente das cau-sas de seu fracasso à frente de qualquer pasta. Recorrem sempre avariáveis, desestimulando a continuação dos questionamentos, para

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justificar sempre a exatidão de suas medidas, ainda quando visivel-mente desastrosas para todos. O tempo e a distância do poderacabam fazendo com que sejam esquecidos os seus desacertos,passando todos, surpreendentemente, a ouvi-los, às vezes até comose fossem oráculos.

Talvez para os bons e bem-intencionados economistas quetransitaram pelo poder tenha faltado chancela política para o imple-mento das ações que julgavam necessárias em determinado momento.A repercussão na popularidade do chefe do governo, os prejuízoscausados a segmentos de influência na sociedade, enfim, fatores diver-sos, aflorados na intimidade do poder, prevalecentes sobre o bem-estar geral, a impedirem a concretização de proposições necessárias,situam-se na raiz do insucesso de políticas econômicas gerenciadaspor pessoas “reconhecidamente iluminadas”.

Quase não há, entretanto, informações sobre pedido de exoneraçãomotivado pelo fato de não poder o gestor adotar as providências porele recomendadas para melhorar o perfil da economia em determinadaépoca. Pode ocorrer de sair do cargo por divergência de diretrizes dogoverno, mas não porque a diretriz recomendada como essencial dei-xou de ser adotada. Parece prevalecer como regra a acomodação com aconveniência política da direção do poder, ainda que com prejuízosfuturos para o grupo social.

Na verdade, sequer tem a população a idéia de que grande partedos males que a afligem hoje foram gerados pela falta de adoção dedeterminada providência no passado. Providência, aliás, muitas vezesaté pensada e avaliada, porém não realizada por resistência do gover-nante à orientação de seu economista de confiança – o qual, infelizmen-te, naquele instante, não se afastou do poder, sem embargo da consciên-cia dos danos que adviriam daquela posição. Fragilizou, assim, a suaautoridade de crítico.

Não foi à toa que o vice-presidente do Banco Central americanoobservou, no início do ano 2000: democracia e economia de mercadodevem conviver juntas. Em alguns países, os políticos podem desafiara política econômica; é o caso do Brasil.

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3. Receitas do Executivo, do Legislativo e do JudiciárioEmbora seja apenas a Fazenda a única responsável pela injeção de

receita nos cofres públicos, deles podem retirar dinheiro o Executivo, oLegislativo e o Judiciário.

Trata-se, por assim dizer, de uma espécie de conta conjunta emque todos sacam, mas apenas um tem o encargo de efetuar depósitos.O problema surge pelo fato de que os que sacam não querem saber qualo montante disponível para isso.

Além dos responsáveis pela área financeira – que, freqüentemente,passam noites em claro preocupados com os gastos acima das dispo-nibilidades –, apenas alguns governantes se preocupam efetivamente coma gravidade desse problema. Legislativo e Judiciário nem de leve costu-mam ter qualquer preocupação com a quantidade de receita disponívelnos cofres do Tesouro.

É preciso integração mais ampla entre os poderes, para quetodos assumam maior conscientização em relação aos gastos como dinheiro do contribuinte, sob pena de todos serem prejudicados.Isso fica evidente, por exemplo, em Estados como o de Alagoas.Gastaram-se tão desordenadamente as receitas que, em determinadomomento, no governo Divaldo Suruagy, nem os integrantes doExecutivo, do Legislativo ou do Judiciário puderam receber o pró-prio salário.

Quando inexiste o numerário no cofre, não adianta decretarintervenção ou jogar praga no gestor. Despesa permanentementesuperior à receita significa falência. Dos seus efeitos danosos ninguémescapa. Por isso, é dever de todos, indistintamente, contribuir para evi-tar situação de insolvência. A ação popular, prevista na Constituição,precisa ser mais utilizada, inclusive sem fins políticos, para retificar pos-turas de administradores danosas ao Erário.

A despeito do vexame a que se viu exposto o Estado de Alagoas,sem dinheiro para pagar nada (tendo, inclusive, afastado seu governa-dor por incompetência gerencial), vereadores e deputados estaduais deMaceió instituíram e receberam, em fevereiro de 1999, respectivamente,R$4.500,00 e R$6 mil, a título de ajuda de custo para comprar roupa,denominada pela imprensa de “verba de enxoval”.

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O gasto para embelezamento daqueles parlamentares coincidiucom o auge da crise brasileira, em que se buscava, por todos os meios,equilibrar o orçamento para evitar o colapso total. Sob a alegação deque a verba foi respaldada em lei, que eles próprios votaram, os parla-mentares alagoanos pareciam encontrar-se legislando em outro planeta,inacessível ao caos.

Na verdade, a prerrogativa para elaboração das leis, asseguradaaos parlamentares, não inclui a outorga de privilégios para favoreci-mento específico pelo desempenho desse ofício. São eles eleitos paralegislar para todos, não para si. A lei imoral é nula por serinconstitucional. Ofende o art. 37 da Constituição. Tácito, orador ehistoriador romano, tinha lá suas razões para concluir: “Em repúblicascorrompidas fazem-se muitas leis”.

Nos jornais, o governador daquele Estado expressava a sua difi-culdade em governar sem a compreensão dos chefes dos demaispoderes:

“A Assembléia acumula uma dívida de R$11,4 milhões como governo estadual, já que não vem pagando o Imposto deRenda dos Servidores e as transferências para o Ipaseal(Instituto de Previdência e Assistência Social do Estado). OTribunal de Justiça de Alagoas não só resiste em cortar os gas-tos, como quer aumentar seu orçamento mensal de R$5 milhõespara R$6,5 milhões. O presidente diz não poder reduzir os gas-tos. Mas mantém um teto salarial de R$9.800,00, contra o doExecutivo, que é de R$6.300, que é o meu salário” (O Povo,12.3.99. fl. 11).

A pouca noção demonstrada no trato da coisa pública resulta,em parte, do paternalismo com que o governo federal costuma socor-rer estados que não gerenciam bem os seus recursos. Amargasse cadaum deles as conseqüências de suas mazelas no manuseio do dinheiropúblico, sem auxílio algum da União, acabariam seus políticos obriga-dos a perceber a necessidade de maior zelo para com as finanças,sobretudo se lhes faltasse salário por insuficiência de caixa. O própriopovo talvez avaliasse melhor a escolha dos seus representantes.

A propósito, São Paulo, o maior Estado da Federação, teve, emdeterminado momento, duas opções para entregar o comando de suas

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finanças: Antônio Ermírio de Moraes ou Orestes Quércia. Optou porQuércia, a quem Fleury sucedeu.

Dez anos depois, como assinalado, São Paulo devia vários bilhõesde dólares. Pagou o seu desacerto gerencial? Não. Renegociou a dívidacom a União, sendo assim repassadas aos contribuintes dos outrosEstados todas as conseqüências da incompetência e má-fé dos gestoresdaquele disparadamente mais próspero e rico integrante da Federação.

Os gastos do Poder Público precisam ser cuidadosamente moni-torados pela sociedade. Quando o Legislativo aumenta suas despesas,com a contratação de assessores parlamentares como forma de produzirrenda para os correligionários, esse gasto contribui para desequilibrar oorçamento.

Do mesmo modo, quando o Judiciário determina o pagamento deelevados salários, de indenizações por desapropriação de terra em montan-te muito acima dos valores de mercado, também concorre para inviabilizaro gerenciamento financeiro do Poder Público. Sem falar, é claro, nos casosde licitações fraudulentas, em que a Administração é levada a pagar preçosuperior àquele que pagaria o particular pela mesma obra ou serviço.

Legislativo, Executivo e Judiciário devem ter sempre presente anecessidade de manter-se equilibrado o orçamento. Infelizmente, a reu-nião desses poderes, para exame das finanças públicas, costuma resultarapenas em maior reivindicação para aumento de gastos, agravamentode encargos e outros comprometimentos da receita.

O salário, cumpre repetir, não deve ser miserável. Quem exercefunção pública relevante deve ser bem remunerado. Todavia, é paradoxal,por exemplo, exigir, em tempo de crise aguda, de deficit crescente,majoração de salário e elevação do número de servidores. É cômoda,nesse sentido, a postura de alguns que exigem a realização de concursopara admissão de mais servidores, mas viram as costas para qualqueranálise sobre a situação de caixa do órgão público responsável pela con-tratação exigida. Pior que isso: recusam-se a participar de qualquer soluçãovisando a equacionar os problemas financeiros da Administração. Na suaótica, cuja tônica é o comodismo e a superficialidade, o fardo deve sersuportado apenas pelo administrador, que deve atuar como malabaristadiante das exigências incompatíveis com a realidade financeira do PoderPúblico.

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Ninguém procura saber quantas noites de sono perderam algunssecretários de Fazenda, no final do século passado, em muitos Estados,buscando solução para não atrasar o pagamento de salários, principal-mente do décimo terceiro.

O fato é que todos os cidadãos devem dedicar especial atenção aosgastos públicos. Os servidores, de um modo geral, costumam preocupar-seapenas com o aumento dos seus próprios vencimentos. Mantêm-se indi-ferentes aos gastos absurdos e irresponsáveis do administrador, esque-cendo-se de que exatamente essas ações perdulárias poderão inviabilizar,futuramente, eventual pretensão de majoração dos seus salários.

Poucos se preocupam com as condenações impostas à FazendaPública. A defesa desta, julgam muitos ser obrigação apenas dos seusadvogados. O Estado é tido como o algoz e deve suportar toda sortede condenação. Esquecem, todavia, que os pagamentos, sem exceção,serão suportados justamente por cada cidadão, pois é com a soma dosrecursos dos contribuintes que são abastecidos os cofres públicos.

A bem da verdade, o Estado é mera ficção; não tem cheiro enada sente. Todas as suas ações são realizadas por homens. Estes, sim,agem em seu nome, acertam e erram, muitas vezes até de má-fé. Évisível a predisposição, na sociedade brasileira, de punir o Estado portudo, com a paradoxal liberação dos que agiram em seu nome paraprovocar dano. Rarissimamente, porém, ocorre condenação dos queagiram de má-fé ou daqueles que conduziram as ações em nome doEstado de forma indevida. Chega a ser inacreditável a tolerância emrelação a quem desvia verba pública.

Quem se dispuser, entretanto, a observar o volume de liminaresconcedidas contra Estados e Municípios, ordenando que façam oudeixem de fazer alguma coisa, quase sempre com majoração de despesa,perceberá a necessidade de uma maior compreensão da razão da exis-tência do Poder Público. Origina-se este, na verdade, da necessidade deassegurar a paz e a harmonia na sociedade, por meio de um ente superior.Não pode ele ser concebido como fonte de privilégios e discriminaçõescomprometedoras da supremacia do interesse coletivo, que se deve sem-pre buscar atingir.

Da inclusão, no serviço público, de candidato reprovado emexames físico ou psicotécnico à proibição de fiscais da Fazenda ingressarem

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em estabelecimento comercial, tudo se resolve na Administração, numadilatação de tal sorte do princípio da legalidade, que se torna, às vezes,quase impossível o bom gerenciamento do Poder Público pelos admi-nistradores bem-intencionados. É urgente a necessidade de sedimen-tação da idéia, que resume o postulado básico da democracia, de quetodas as ações de quem exerce qualquer segmento do poder devemvisar permanentemente à satisfação dos interesses da coletividade.

Apenas para ilustrar e melhor avaliar a interferência no PoderPúblico, uma eventual ordem judicial mandando promover a coronel,com supremacia hierárquica sobre a quase totalidade da tropa, policialenvolvido em diversos processos criminais terá que tipo de repercus-são no desempenho da Administração, de que a polícia é parte funda-mental? Ou, por outra, a liminar obrigando partido político a garantirlegenda a filiado acusado em CPI por desvio de verba da educação edenunciado criminalmente pelo Ministério Público sinaliza algum rumopromissor para o Direito e para o País no alvorecer do terceiro milênio?

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CAPÍTULO III – O PAPEL DA EDUCAÇÃO

1. A EDUCAÇÃO NA ÓTICA DO PODER; 2. O SENTIDO DAPRIORIDADE DA EDUCAÇÃO; 3. CARGO DE CONFIANÇA E DIRE-ÇÃO DE ESCOLA PÚBLICA: CRITÉRIOS PARA NOMEAÇÃO; 4. OSNOVOS RUMOS DA EDUCAÇÃO NO BRASIL; 5. OS VEÍCULOS DECOMUNICAÇÃO NA FORMAÇÃO DOS JOVENS; 6. A LIBERDADEDE CENSURA À PRÓPRIA INFORMAÇÃO.

1. A educação na ótica do poderOs detentores do poder que nomeiam professores sem aptidão para

o magistério, os que desviam dinheiro destinado à educação ou a dificul-tam às camadas mais pobres da sociedade são piores do que alguns crimi-nosos de guerra. A brutalidade destes acarreta sofrimentos que cessamapenas com a consumação da morte de suas vítimas. Os administradores,em qualquer esfera de poder, que inviabilizam a educação causam prejuízosàs pessoas, soterrando-lhes as perspectivas de melhoria de vida, que oensino bem ministrado poderia assegurar. Aqueles praticam seus atos cons-cientes do que desejam; estes o fazem, na maioria das vezes, por falta deacuidade para compreender o alcance de suas ações ou omissões em rela-ção à qualificação do povo que governam.

A propósito, o próprio Thomas Robbes, em um lampejo dehumanitarismo, no seu Leviatã, advertia:

“O soberano deve garantir aos súditos a igualdade peran-te a lei e os cargos públicos, a instrução e a educação queos formem nas doutrinas verdadeiras, a prosperidade material”(apud: Jean-Jacques Chevallier, As grandes obras políticas,de Maquiavel a nossos dias, p. 77).

A História demonstra haver andado na contramão aquelesgovernantes – quase sem exceção entre os que tivemos – que não capta-ram o valor da educação para a população como um todo. Pagarambons colégios para seus filhos, deixando de lado qualquer preocupação

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com a educação dos filhos dos mais carentes. Sequer tiveram discernimentosuficiente para compreender que seus descendentes continuariam a viverneste mesmo País, por isso mesmo bem próximos daqueles aos quais dei-xaram de garantir o acesso ao saber. O resultado dessa omissão está nasruas de qualquer ponto do Brasil: alguém lutando e até matando pararetirar do outro o relógio, o carro ou o tênis, coisas que, pelo simplesacesso à escola, poderia conseguir por meio idôneo.

Aristóteles, em A política, advertia: “Em suas diversas fases, a educaçãodas crianças se revela um dos primeiros cuidados do legislador. A negligên-cia das cidades sobre este ponto é-lhes infinitamente nociva” (p. 65).

O ensino é o instrumento mais seguro e eficaz para garantirmelhoria na condição de vida de um povo. Não convive, porém, como fisiologismo nem com o corporativismo. Professor sem compro-misso com a causa do saber ou sem aptidão para ministrá-lo deve serdispensado, após formalização do devido processo.

De outra parte, o radicalismo, a intransigência e a frustração nãosão compatíveis com o perfil do bom educador. Educar pressupõe,acima de tudo, amor ao magistério. Por isso, a sociedade brasileira pre-cisa distinguir melhor os seus educadores, reconhecer-lhes os méritos epartilhar com eles o grande desafio de aprimorar a educação, a fim deque todos, indistintamente, possam dela usufruir para viver melhor,sob o signo da paz, e não o do ódio.

Nessa área, não pode haver condescendência com desvio de verba ouincapacidade para o desempenho da função. Quem desvia recurso destina-do a esse setor, além da pena privativa de liberdade, deveria ficar impossibi-litado de exercer qualquer função pública pelo resto da vida. Quando a Jus-tiça reintegra diretor de escola pública exonerado por desvio de dinheiropúblico documentalmente comprovado e apurado em processo regular,contribui para estimular a corrupção e desmotivar aqueles que diligenciam ezelam pelos valores destinados ao aprimoramento da educação. Ocorre,dessa forma, desserviço, sob todos os ângulos, à causa do saber.

2. O sentido da prioridade da educaçãoHá um consenso, na sociedade brasileira, no sentido de que a edu-

cação é o único instrumento disponível para extinguir as desigualdades

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e viabilizar o progresso. Políticos de norte a sul, sociólogos e economis-tas pregam a necessidade de dar prioridade à educação. Ninguém, noentanto, procura fazer esta indagação: qual a minha efetiva contribuiçãopara melhorar a qualidade do ensino público em minha cidade? Quandomuito, alguns se limitam a esclarecer que esse é um problema do Estado.Não é. É um problema de todos. Se no passado todos tivessem se pre-ocupado com a garantia de escola de qualidade aos moradores da peri-feria, seguramente não viveríamos o clima de absoluta falta de seguran-ça que caracteriza este limiar de século.

Muitos políticos que se dizem comprometidos com a causa doensino público julgam que contribuem para o aprimoramento daeducação simplesmente liberando verbas do orçamento federal para edi-ficação de escolas nos Municípios onde receberam votação. Muitas vezes,porém, essas “contribuições” refletem apenas o elevado grau de insen-sibilidade para tão grave problema.

Um exemplo dessas distorções reside na liberação de verba paraedificação de escola com capacidade para 15 mil alunos em distritoou Município cuja carência escolar é de apenas 500 vagas. Em con-trapartida, nos locais onde aquelas vagas seriam necessárias, amar-gam todos a inexistência de qualquer grupo escolar, porque o políticode prestígio, na manipulação das verbas do orçamento, ali não recebeuvoto. Essa visão paroquiana e limitada jamais contribuirá para o efetivoresgate da educação.

Uma reformulação geral de concepção em relação ao problemado ensino no País se impõe com urgência. O político de direita proclama-se seu defensor pelo fato de liberar verba do orçamento para edificaçãode escola nos seus redutos eleitorais. Não lhe interessa, por irrelevante àsatisfação dos seus caprichos, a quantidade de vagas necessárias numalocalidade, nem a carência delas nos outros lugares.

Alguns integrantes da esquerda, por seu turno, defendem agarantia do emprego do professor, na escola pública, mesmo que nadatenha ele a ensinar, sem qualquer preocupação com o aprendizado desua “vítima”: o aluno. Utilizam um discurso justificador, comovente pelaênfase aos efeitos dos danos a serem suportados pelo professor desa-lojado da função por incompetência. Só não avaliam, e até silenciam, sobreo resultado da manutenção de um péssimo professor em sala de aula.

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Direita, esquerda, centro, na sociedade brasileira, todas as pessoas de-ploram a situação da educação, como se ninguém tivesse culpa algumapelo seu elevado grau de precariedade.

Governantes de direita, num passado recente, nomearam inúmerosprofessores sem qualquer aptidão pedagógica, apenas para preservaçãodo poder de mando nos seus redutos eleitorais. Alguns líderes de es-querda, no presente, constatam a incapacidade de muitos daqueles edu-cadores, mas defendem sua permanência em sala de aula para não traíremsua bandeira de luta pela defesa da manutenção do emprego. Pouco têminteressado as conseqüências nocivas ao filho do operário, usuário daescola pública, de ser educado por quem nada tem a lhe ensinar. Nãopode, porém, persistir a indiferença em relação aos problemasvivenciados pelos que freqüentam a escola pública. Sublinhava, a pro-pósito, Bernard Shaw: “O pior pecado contra nossos semelhantes não éodiá-los, mas sermos indiferentes com eles”.

Quem terá sido mais nocivo às gerações que viram dizimado seupotencial de crescimento pela total ausência de capacidade dos educa-dores que lhes forneceram? Como pode alguém assumir publicamentea postura de defensor da classe trabalhadora e lutar pela manutençãoem sala de aula de professor incompetente para transmitir saber aosfilhos dos operários, cuja defesa apregoa patrocinar?

Como poderá o trabalhador propiciar condição de vida mais dignaao seu descendente, se o educador deste não tem aptidão alguma paraeducá-lo e seus líderes não se apercebem do dano que lhe causam aodefenderem a manutenção de professor com esse perfil na escolapública? É preciso, parece claro, mudança radical de mentalidade paraefetivamente alcançarmos a prosperidade.

Aliás, os elaboradores da Constituição causaram dano sem pre-cedente aos menos favorecidos, que se utilizam das escolas públicas, aoassegurarem estabilidade, no art. 19 do ADCT, aos professores de pri-meiro grau, mesmo que sem aptidão para o magistério. Professoradmitido sem concurso ou outro critério racional para seleção, semnada saber, lecionará o quê? Basta qualquer pessoa colocar-se no lugardo aluno para melhor avaliar a gravidade da situação.

A falta de preocupação dos constituintes em avaliar a aptidão doprofessor, para garantir-lhe de logo a estabilidade na escola pública,

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deve-se ao fato de seus filhos privilegiados estudarem, quase sem exceção,em escolas particulares. Em outras circunstâncias, com professores maisqualificados, teriam os menos favorecidos plena condição de disputar,com êxito, vagas nas universidades públicas.

Os mestres mais capacitados das escolas privadas são cuidado-samente selecionados pelos proprietários daquelas, ficando, assim,liberados os constituintes de qualquer preocupação com o nível doprofessor do ensino público, não utilizado por seus filhos.

Por isso, independentemente da habilidade para esse mister,garantiram aquela estabilidade, deixando patente o descompromissocom a causa da educação. Verdadeiramente, nenhuma preocupaçãotiveram com os únicos destinatários da escola pública: os alunos menosabastados.

O jornal Folha de São Paulo, edição do dia 13 de julho de 1997,publicou pesquisa Datafolha segundo a qual 86% dos brasileiros nãopassavam do primeiro grau e 97% teriam renda familiar inferior a dezsalários mínimos. Segundo ainda a pesquisa, 59 % dos brasileiros amar-gavam, naquele momento, a exclusão social.

Com professores desqualificados, nomeados com base em crité-rios exclusivamente políticos e mantidos na função pela estabilidade con-cedida sem nenhum critério, jamais se poderia esperar outro quadro. Sónão perceberam os nossos homens públicos que eles próprios, seus fi-lhos e netos também amargarão as conseqüências dessa situação des-confortável, que provocaram ou não souberam, por razões diversifica-das, evitar.

Os excluídos socialmente por certo não terão sensibilidade paramandar flores a ninguém. Disseminarão, sim, anônima e permanente-mente, ódio, rancor e violência, se não em relação aos governantesresponsáveis por aquela anomalia, com certeza em relação aos que, diretaou indiretamente, contribuíram para o ingresso ou permanência deles navida pública.

Nesse contexto, por exemplo, o Estado do Ceará deparava-se, em1996, com um contingente de quase 50 mil servidores lotados na Secre-taria de Educação. Para mantê-los, mensalmente desembolsava em tornode 22 milhões de dólares, com a agravante de que, a despeito do vulto dadespesa, nenhuma escola pública, numa descrição realisticamente dolorosa,

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motivava a matrícula de qualquer criança filha de pai mais abastado. Ou,mais precisamente: nenhum Constituinte tinha coragem de garantir aoseu filho o aprendizado da escola pública.

No que pese a extrema boa vontade para melhorar a qualidade doensino nas escolas públicas, a falta de compromisso do Constituinte cons-pira a cada instante contra esse objetivo. Por exemplo: professor, mesmosem qualquer aptidão ou compromisso com a causa da educação, pelosimples fato de estar lotado como tal, nomeado sem concurso, deve recebera mesma remuneração daquele que faz do magistério profissão de fé, dedi-cando a ele os melhores momentos de sua vida?

Muitos daqueles sem vocação ou aptidão para o ensino, é certo,aposentaram-se ao completar 25 ou 30 anos de serviço, respectiva-mente, no caso de mulheres ou homens, afastando-se da escola. Aaposentadoria se deu, porém, com vencimento integral, provocandouma duplicação da despesa, diante da necessidade de contratação dosubstituto concursado e mais qualificado. Isso acaba reduzindo a receitade que se necessita para remunerar, de forma digna, a categoria dosbons professores, de vital importância ao grupo social.

Uma melhoria salarial, mediante um aumento de R$1.000,00 (Um milreais) para os servidores comprometidos com a causa do ensino, por exem-plo, resultaria para o Ceará, naquele momento, numa majoração na folha,impraticável, da ordem de aproximadamente 50 milhões de reais mensais.

Como pode alguém se dizer defensor da população, da classetrabalhadora, e não questionar a qualidade do ensino ministrado aosfilhos desta? Ou, mais objetivamente, como pode alguém defender apermanência no serviço público, invocando estabilidade, de professornomeado sem concurso e sem aptidão para o exercício da função?

Qual o futuro do filho do trabalhador educado por professordesqualificado? É justo comprometer o futuro do filho de um operá-rio, que freqüenta a escola pública, assegurando o emprego de profes-sor desqualificado simplesmente porque a garantia do emprego foradogma dos líderes das classes trabalhadoras do final do século XX?

Mais curioso, entretanto, é o argumento, lançado com freqüência, deque a contratação dos professores desqualificados foi feita por políticos ir-responsáveis do passado, sem nenhuma interferência dos líderes obreiros.Ora, apenas porque um político arcaico nomeou, no passado, professor

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desqualificado os jovens do presente deverão pagar o preço dessa anomalia,suportando o despreparo e a falta de dedicação à escola, em homenagemà estabilidade defendida por lideranças classistas retrógradas?

A obscuridade projetada nessa postura só encontra correlaçãocom o absurdo de uma “reserva de mercado” para proteger a indústrianacional de informática, que o regime militar criou ao tempo em queadministrava o País. Uma geração de analfabetos tecnológicos, semfamiliaridade alguma com a informática, espalha-se por todo o Brasil –geralmente pessoas com mais de 40 anos. São vítimas daqueles “ilumi-nados”. A História ainda está por demonstrar se erraram, nesse parti-cular, por excesso de inocência ou má-fé mesmo, num conluio comempresários preocupados apenas com a lucratividade desse setor.

Professor de escola pública – aliás, de qualquer escola – que não sabedar aula deve ficar distante dela, em toda parte do mundo, sob pena deinviabilizarem-se as gerações submetidas ao seu desastroso “magistério”.A garantia daquele emprego não pode representar perspectiva de falta deemprego, no futuro, para o aluno inocentemente punido com a ausênciade saber, que haverá de amargar pelo resto de sua vida.

A sociedade brasileira precisa acordar para a magnitude da expres-são “educar”. Necessita, com a máxima urgência, compreender que, semeducação acessível a todos os seus membros, os excluídos se brutaliza-rão. O animal contido no homem tornar-se-á preponderante, levando-oà irracionalidade, que acaba por inviabilizar a vida em comunidade.

Educar significa sobretudo transmitir os valores básicos para umaconvivência respeitosa no grupo social. Não pode se restringir apenasao repasse de informações técnicas, tais como ensinar a ler, a contar, acompreender fórmulas, etc.

É urgentíssimo que se ensine a criança, nas escolas públicas e pri-vadas, a partir do início do primeiro grau, a respeitar o direito e o patri-mônio alheio; a conscientizá-la de que o interesse coletivo deve sobre-por-se aos interesses pessoais, que as ações de cada um não podem gerarprejuízo para o todo, enfim, que os bens públicos precisam ser cuidadose preservados por cada um de nós. No segundo grau, deve iniciar-se oexame da Constituição brasileira para solidificar a idéia de respeito àssuas normas. Isso inibirá, no futuro, os golpes de Estado, cujo embriãoreside nos nossos exemplos deploráveis do passado.

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A solidariedade e o princípio da igualdade necessitam ser efetiva-mente praticados, para abrandamento da injustiça social insuportávelque vivenciamos. Se as crianças não forem educadas para se insurgircontra a desigualdade, as ruas deste País continuarão se transformandoem campo de batalha, em que muitos morrem sem sequer saber acausa de tanta predisposição à violência.

A palavra “virtude” precisa entrar na pauta de reflexão dasescolas, para uma melhor formação moral dos homens que compo-rão a sociedade brasileira de amanhã. Como lembrava Denis: “Umapalavra dita a tempo vale mais do que um discurso tardio”.

Os meios de comunicação, por sua vez, precisam contribuirpara que o propagadíssimo “bumbum” permaneça no local que lhereservou a natureza, e não seja deslocado para a cabeça das pessoasem formação de caráter. Essa preocupação deve centrar-se, sobretu-do, em relação às crianças, para que, uma vez adultas, não acabemsem rumo e sem rota.

Ruas repletas de crianças vagando sem destino projetam cidadeinviabilizada, no futuro, pelo excesso de insegurança, que poderia serevitada se houvesse maior empenho do governo e dos homens lúcidos,que também serão incluídos entre as suas futuras vítimas.

3. Cargos de confiança e direção de escolapública: critérios para nomeação

Embora a nomeação para certos cargos da Administração fiqueao sabor do livre arbítrio de quem a Constituição dotou da competênciapara fazê-lo, as escolhas devem ser feitas levando em conta o interessedo Poder Público. Entretanto, nesse particular a degeneração é total.Aquele que detém o poder de nomear julga-se com a faculdade paradesignar quem bem entender, independentemente de qualquer questio-namento em relação à competência, à aptidão para o exercício da funçãoou, muito menos, à honradez do nomeado.

Mais intrigante, porém, é a visão do pretendente dessa nomeaçãoou do seu padrinho político. A respeito do cargo, o pretendente sabeapenas que o deseja a fim de auferir dele o salário. Não há o menor

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constrangimento nesse particular. O agrônomo e seu protetor políticose sentem à vontade para postular cargo de confiança mais compatívelcom a profissão de dentista. Advogado visivelmente sem aptidão parao exercício de qualquer função na Administração, incapaz até de distin-guir uma Constituição de um código de processo, julga-se ofendido einjuriado ao ser preterido por amigo detentor do poder na nomeaçãopara cargo de grande relevância.

É compreensível que a pessoa ávida por ocupar um cargo, movi-da pela necessidade financeira, não tenha autocensura para percebersua inaptidão para o exercício de determinada função. Todavia, ao seu“protetor político” não pode faltar o discernimento para perceber edesaconselhar aquela pretensão descabida.

Os diretores das escolas públicas, por sua vez, devem ser eleitoscom a participação de alunos, pais de alunos, professores, enfim, dacomunidade interessada. Entretanto, para terem seus nomes levados àvotação para a chefia da escola, devem submeter-se a exame prévio deavaliação pedagógica.

Para candidatar-se, o interessado deve, inicialmente, submeter-sea uma prova para avaliação dos seus conhecimentos pedagógicos. Umavez aprovado, torna-se elegível, podendo, então, apresentar seu nomeaos eleitores aos quais compete a escolha. O candidato mais votadodeve, então, ser nomeado pelo chefe do Executivo para um mandatopor tempo determinado.

A prova exigida para atestar a qualificação afasta os menos preparadostecnicamente; e a eleição propriamente dita evita o fisiologismo. O resultadoé extraordinário. Pessoas capacitadas e comprometidas com a causa doensino reformulam, em pouco tempo, o perfil da escola pública.

A comunidade, que participou da escolha, integra-se na vida daescola. Os muros e a fachada passam a ser respeitados pelos pichadores,conforme o grau de liderança do diretor e sua capacidade de envolvera comunidade nos assuntos de interesse da escola.

O resultado para o grupo social é excelente, na medida em queos escolhidos reúnem, a um só tempo, aptidão e compromisso com acausa da educação.

Pouco útil afigura-se para a escola, porém – isso é fácil perceber –a eleição de pessoa que detém apenas a simpatia dos alunos e de seus

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pais, sem, contudo, possuir competência para o exercício do magistério.A escola acaba emperrada pela falta de criatividade, pela inaptidão paraadotar solução eficiente para os problemas do dia-a-dia. Daí a necessi-dade de prévia avaliação.

Quem observar a mudança radical sofrida nas escolas públicasa partir da escolha dos diretores em eleição precedida de prova paraaferição da qualificação intelectual passará a questionar a falta de exameprévio, para comprovação de não ser analfabeto, ao candidato a exer-cício de mandato político. Vereadores, prefeitos, deputados e qual-quer outro ocupante de cargo eletivo que apenas saibam assinar jamaispoderão cumprir bem o seu papel, por faltar-lhes um mínimo deescolaridade.

Infelizmente, em pleno ano 2000, alguns candidatos que com-provaram saber apenas escrever o próprio nome tiveram ainda assegu-rado o registro da candidatura, sob o argumento de estarem exercendomandato, tendo, assim, um suposto direito adquirido à reeleição.

A Constituição, porém, proíbe expressamente a candidatura doanalfabeto, ao considerá-lo inelegível (art. 14, § 4.º). Quem não sabe lere escrever é analfabeto. Não existe direito adquirido nem prevalece acoisa julgada contra a Constituição, conforme pacífico entendimentodo Supremo Tribunal Federal.

A despeito de todos os argumentos passíveis de invocação,sobretudo os de ordem sentimental, sendo analfabeto um vereador,como haverá de cumprir bem o seu papel? Permanecerá quase sempreretraído ou será mesmo ridicularizado quando ousar contestar os errosdos governantes, cujos atos lhe compete fiscalizar. O acesso ao man-dato, nesse caso, importa em verdadeiro estímulo para a persistênciada condição de analfabeto de muitos adultos, que acabariam motiva-dos à busca pelo aprendizado caso viessem a experimentar as restriçõesque a falta de escolaridade acarreta.

Invocam outros o argumento de não ser o analfabeto desonesto,devendo preocupar-se o aplicador do Direito em impedir o registro dacandidatura de pessoas portadoras desse estigma. A ponderação éinconsistente. Na verdade, o cidadão comprovadamente desonestojamais deve ter acesso ao mandato, assim como o analfabeto. Em relaçãoa ambos, há norma constitucional proibitiva.

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A propósito, quando interrogado em 1999, por um magistrado,sobre o destino da verba repassada ao Município, por intermédio doFundef, que, segundo denúncia do Ministério Público, havia sido des-viada, o prefeito acusado declarou, textualmente, no seu depoimento:“Tudo foi aplicado em riba da educação”.

No museu da Secretaria de Educação do Ceará encontra-se umvidro contendo cinzas. Não são cinzas de nenhum benfeitor da educa-ção. São as cinzas das cédulas da primeira eleição para escolha dosdiretores da escola José Jucá, no Município de Quixadá. Esse processopara escolha dos dirigentes das escolas públicas, adotado no Ceará nofinal da década de 90, trouxe grande contribuição para fomentar amelhoria do ensino público.

A comunidade compreendeu a magnitude daquele evento e oregistrou de forma comovente perante a História. Poderia parecerexagero ao observador letrado, da cidade grande, mas aquela simpleseleição representava a libertação da escola do jugo de diretoresdesqualificados, sem compromisso com o saber e indicados por cri-térios meramente políticos para lidar com assunto tão delicado comoa formação de jovens.

Na simbologia daquelas cinzas, também a prova deconscientização da comunidade sobre a dimensão dos danos quediretores ou professores sem aptidão para o cargo – apenas bemapadrinhados – podem causar aos que necessitam da escola pública.

É preciso ficar claro, todavia, que o fato de ter sido eleito odiretor para dirigir a escola pública, após submeter-se a exame de ava-liação, não o exime de exoneração nos casos em que resulte compro-vado, mediante auditoria, desvio de verba ou má aplicação de recur-sos públicos. A eleição não confere a nenhuma pessoa poder para des-viar recursos públicos ou deles apropriar-se. Isso precisa ficar muitobem compreendido pela sociedade brasileira, notadamente pelosaplicadores da lei.

4. Os novos rumos da educação no BrasilInegavelmente, no início do terceiro milênio, o Brasil apresenta um

pequeno sinal de haver captado a importância da educação para melhorar

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a vida do seu povo. Seu ídolo mais festejado – o jogador Pelé – fazia anún-cios, na televisão, conclamando as crianças a freqüentar a escola. O PoderPúblico instituiu o Fundo de Desenvolvimento do Ensino e Valorização doMagistério – Fundef. A falta de emprego em todas as áreas acabou contri-buindo para aumentar a conscientização de que sem educação não há com-petitividade. O País, caso persista em não prestigiar a educação, continuarápobre, e a violência tenderá a crescer sempre mais.

A despeito desse esforço em favor do ensino, muitos prefeitosnão relutaram em criar alunos-fantasmas para receber e desviar maisrecursos destinados à educação. Entretanto, mais grave e vergonhosafoi a comprovação das centenas de denúncias de que receberam, efeti-vamente, verbas para melhorar o salário dos professores e ampliar arede escolar e nada fizeram, porém, nesse sentido. Além de nenhum au-mento ser concedido ao magistério, deixaram o salário atrasar por vári-os meses, apropriando-se criminosamente do dinheiro repassado, numilícito sem precedente, pela nocividade.

Na contramão da necessidade de melhor aprimoramento nessesetor, prefeitos, inclusive de grandes capitais, delegaram a vereadoresque lhe dão sustentação política o poder de indicar professores paraserem contratados temporariamente. Trata-se de procedimento abo-minável, a exigir imediata interferência do Ministério Público e do PoderJudiciário para retificação desse proceder, em face do patente desviode finalidade que ostenta e dos prejuízos dele decorrentes.

Não bastasse isso, em pleno ano 2000, mesmo nas grandes capi-tais, afloravam denúncias de perseguição de servidores públicos emdecorrência de opção política divergente daquela do prefeito, candidatoà reeleição. Não existe abuso do poder político mais grave, no âmbitodo Direito Eleitoral, do que o uso da máquina administrativa para opri-mir e extrair dividendos políticos. Alguns juízes eleitorais, sem se darconta de sua nocividade ao grupo social, tornavam-se cúmplices des-sas ilicitudes, na medida em que deixavam de aplicar aos infratores, numapostura de flagrante suspeição, as sanções previstas na lei.

Refletem aquelas ações a índole ditatorial do candidato, em detri-mento do direito de opção política. A História de qualquer povo ésempre marcada pela sua crescente luta pela liberdade. Todos os queatentam contra o seu pleno exercício, por meio de ações que caracterizam

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abuso, devem receber imediatamente a sanção prevista para sua condutainaceitável.

A liberdade é a porta de acesso à felicidade. Sem ela floresce aopressão. O homem oprimido, em qualquer circunstância, é triste einfeliz. Por isso, todos devem indignar-se e repudiar quem perseguedesafeto político ou concorre para ameaçar a liberdade, cuja existênciadeve ser preservada e diligentemente vigiada.

Por outro lado, relatos de diretores de escola sobre os dramasvivenciados no dia-a-dia por pessoas que lidam com a educação atestama grave enfermidade por que passa a sociedade brasileira, a exigir umesforço concentrado de todos os seus segmentos para rever o quadro,até certo ponto desesperador.

Professora traumatizada, após assistir ao assassinato de alunopelo próprio colega, nas dependências do colégio; conflitos de ganguesrivais dentro da sala de aula; tentativa de estupro de diretora por aluno,no interior da diretoria; ameaças de morte feitas por alunos traficantespara não serem denunciados; exibição ostensiva de arma de fogo, dei-xando o educador sem coragem para pedi-la ou chamar a polícia; cons-tatação de não ter a quem se queixar sobre o comportamento de alunocujos pais vivem permanentemente drogados... Esse, em resumo, o qua-dro desolador, constatado em muitas escolas, a desafiar os educadores eas pessoas lúcidas que compõem nossa sociedade para tentar revertê-lo.

O restabelecimento da autoridade dos pais, professores, enfim,dos mais velhos, como se dizia no passado, parece ser inadiável.Professores ameaçados e espancados por alunos transformam-se emreféns destes, subvertendo-se, em conseqüência, o conceito de auto-ridade, imprescindível na educação de qualquer povo. As crianças daescola particular ou pública, do morro, dos bairros nobres e das favelasprecisam cultivar um referencial que contemple, por exemplo, a idéiade solidariedade, de amor a Deus e respeito aos valores que dignificamo homem.

É preciso desestimular, efetivamente, a opção pelo crime. Reservarna televisão espaço destinado à educação dos jovens. Em linhas gerais,segundo os educadores, a televisão brasileira mais deseduca. Menos de5% da sua programação se destina à educação. A falência da sociedadetem a ver com as distorções anteriormente enumeradas. Para reverter

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esse quadro, todos os segmentos devem assumir a bandeira daeducação, formando uma autêntica cruzada cívica. Afinal, como cons-tatou Spinoza, “os homens não nascem para a cidadania, mas devemser preparados para ela”.

Urge que se perca o preconceito e se assumam todos os equívo-cos em relação à educação de nossa juventude. Todos faliram. Asociedade chegou ao fundo do poço. Chegou a hora de todos se daremas mãos e buscarem, juntos, as soluções para evitar o pior.

Sem histerismo, discursos metafóricos, reuniões improdutivas eintermináveis, com base nos dados estampados na realidade de nossascidades, comprovando que tudo deu errado, sendo por isso necessárioretificar a postura dominante em relação à educação de nossas crian-ças, somente dessa forma será possível resgatar a auto-estima da juven-tude brasileira. Sem isso, será difícil desfrutar a paz, sobretudo na velhi-ce, quando se voltam os efeitos daquilo que foi semeado durante os anosmais vigorosos do existir.

Ministério Público, juizados da infância e juventude, conselhostutelares, assistência social, polícia, corpo de bombeiros, secretarias deEducação, de Segurança Pública e guarda municipal, todos, de formaintegrada, devem criar mecanismo de atuação em conjunto para inibiras ações delituosas nas escolas. O aluno, na ótica dos educadores voca-cionados, é uma vítima de si ou do seu meio. Não se pode, a esta alturados acontecimentos, observá-lo apenas com ar contemplativo, semnada fazer para evitar que venha a compor as estatísticas de nossaspenitenciárias infamantes.

É preciso restabelecer a autoridade do educador. O aluno tem,necessariamente, de respeitar o professor. A força coercitiva da lei deveser percebida por ele para desestimulá-lo da prática de ações perniciosasao grupo. Quem não respeita o pai, não respeita o professor, haverá derespeitar alguém? Jamais conseguirá respeitar sequer o soldado, do qual,aliás, todos exigem moderação, sem nada lhe ensinar durante o apren-dizado na escola pública.

Não adianta juízes, advogados, empresários, promotores, médi-cos e engenheiros, enfim, toda a sociedade deixar apenas na mão doseducadores o problema da educação. Todos os organismos da sociedadedevem, sem perda de tempo, envolver-se na busca de restabelecer a

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autoridade do educador. Oferecer-lhe salário digno e todas as condi-ções para bem cumprir o seu ofício, sob pena de não se poder usufruir oDireito, pela falta de ambiente propício à sua frutificação.

Não é demais insistir: quando o grupo social, pela indigência naformação dos seus membros, repele o Direito, tornando-se incapaz decaptar a sua finalidade, o caos se instala. Assaltos, seqüestros, agres-sões e medo passam a ser a tônica de uma realidade que não excluiuninguém do vexame e da ansiedade de viver sob grades, em permanenteespera pela visita indesejada.

5. Os veículos de comunicaçãona formação dos jovens

Não pode passar sem registro a indignação de um diretor deescola pública, eleito com a participação da comunidade, em reuniãocom a presença do secretário da Educação, procurador-geral da Justiça,promotores e comandantes militares em que se discutia a formaliza-ção de um plano para garantia de segurança nas escolas. Em tom derevolta, pediu a palavra para relatar o conteúdo de programa de tele-visão a que assistira, de baixíssimo nível, com expressões indecorosas,reproduzidas na ocasião, expressando a sua preocupação com crian-ças e jovens, vítimas em potencial desse instrumento de deseducação.Confessou, sem cerimônia, a sua vontade de dirigir-se à torre da emis-sora, durante aquela transmissão, para retirá-la do ar. Após seu como-vente relato, indagou aos representantes do Ministério Público ali pre-sentes sobre qual a providência a ser tomada. Teve como resposta aexplicação de que, diante da proibição de censura, o Ministério Públi-co ficava impedido de interceptar a veiculação de programas, aindaque manifestamente nocivos à formação de crianças e adolescentes.Foi advertido também de que, se danificasse a torre da emissora, seriaresponsabilizado pelo dano.

Esse surpreendente desabafo daquele educador, prejudicado nodesempenho do seu papel devido à interferência nociva de forças des-comprometidas com a causa do ensino, está a exigir uma reflexão maisautêntica da sociedade sobre o tema. Aliás, adormecidos se encontram

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todos diante da força da mídia. Aquela corajosa manifestação nos remeteà célebre advertência de Rousseau: “A força constituiu os primeiros es-cravos; a covardia perpetuou a escravidão”.

A censura, ninguém duvide, é profundamente nociva. Implantadaentre nós nos anos da ditadura, demonstrou todo o seu potencial deatraso, de cumplicidade com a corrupção e com a tortura, provocandoum justificado sentimento de repúdio em todos os segmentos dasociedade brasileira.

Em contrapartida, como que em represália à sua existência, tudo,literalmente tudo, passou a ser veiculado a qualquer hora do dia ou danoite, em rádio e televisão, sob o fundamento do exercício da liberdadede expressão. É irrelevante se a programação levada ao ar causa ou nãodanos a ouvintes ou telespectadores em idade escolar. Interessamexclusivamente a audiência e os frutos materiais de sua comprovaçãopelos institutos especializados.

Entre os danos irremediáveis e indiscutíveis causados pelaimplantação da censura e os danos advindos do uso inconseqüente daliberdade de expressão, deve a sociedade encontrar uma solução quenão sacrifique o direito de cada um se expressar livremente.

Uma primeira reflexão sugere distinguir “liberdade de expressão”de “libertinagem”, no enfoque de programas em horários acessíveis amenores. A então deputada Martha Suplicy, debruçando-se sobre o tema,sugeriu um controle social – não censura – para conter a agressividadeexibida em muitos programas de televisão, deplorando não ensinarem àcriança negociar, mas agredir.

A lógica e o bom senso mostram que os educadores respeitadose autorizados não podem ficar sem voz na análise desse problema.Sobre seus ombros recai a formação dos integrantes da sociedade.Eles anunciam sua perplexidade com a subversão dos valores, agravadapelos mecanismos abusivos e distorcidos de comunicação. Não se devefazer ouvido de mercador em relação às suas advertências.

As conseqüências serão suportadas por todos: sociedade maisagressiva, indigência mais profunda de seus valores e crescente necessidadede intervenção da polícia.

A polícia, já se comprovou, não é solução para nossos angustiantesdramas; tende até a agravá-los. É preciso lutar para reduzir a necessidade

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de sua intervenção. Mais respeito às ponderações dos educadores e, porcerto, menor será a necessidade da atuação policial.

6. A liberdade de censura à própria informaçãoA liberdade de expressão, ainda quando expressamente assegurada

e garantida pela Constituição, amparada pela franquia irrestrita ao Judi-ciário, muitas vezes não é exercida na amplitude compreendida no deverde informar atribuído aos veículos de comunicação.

A censura, institucionalizada pelos governos militares, tornou-seum capítulo negro de nossa história, vergonha perene para aqueles queatuaram como censores e fonte de indignação dos censurados. Foiabolida do País com a redemocratização.

Entretanto, a censura a si próprio – imposta por motivação eco-nômica, afetiva, religiosa ou política –, à qual se submete pela própriaconveniência o detentor da informação, esta subsiste em quase todosos lugares.

Quantas matérias pautadas deixaram de ser editadas por con-trariar interesses do veículo de comunicação que a noticiaria? Quantasinformações da maior relevância para o interesse da coletividade dei-xaram de ser levadas ao público porque seu protagonistasimplesmente mantinha relações de cordialidade ou econômica comaquele veículo?

A “autocensura” acoberta a informação, privando o grande públicode acesso a ela. É fruto puro e simples da conveniência de quem é titulardo direito-dever de repassá-la aos leitores, ouvintes ou telespectadores.

Muito interessante, nesse ponto, é a versão atribuída ao fato emfunção da motivação que o transforma em notícia. O furo mais mar-cante, privativo de alguém, pode restar completamente desconhecidode todos se sobre ele aplicar-se a autocensura.

Motivações escusas costumam provocar injustiça, na formulaçãoda notícia, por ser o fato repassado ao público com versão convenienteao veículo noticiador, sem integral respaldo na verdade pura e simples.

Nesse caso, a ofensa à ética, no manuseio da informação, é patente.Todos perdem em circunstâncias tais. O leitor, porque recebe a notíciacom a versão distorcida, em decorrência do desvio de finalidade, que

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prevaleceu sobre o dever de informar com total isenção. Perde, porigual, o veículo de informação, por emprestar ao fato uma conotaçãoque jamais teria, não fora aquela motivação subalterna.

O cultivo da imparcialidade no manuseio da informação torna oveículo de comunicação referencial de sua época. Aumenta-lhe a credi-bilidade, legitimando-o no papel de indutor dos fatos relevantes a se-rem captados pela História. A isenção com que a realidade é retratada,sem espaço para retaliação por razões inconfessáveis, transforma oórgão noticioso em símbolo de sua área, cujo exemplo obriga simpati-zantes e não simpatizantes a renderem-lhe homenagem.

Conforme as suas razões determinantes, a autocensura é tãonociva ou pior do que a censura institucionalizada. Nesta, todos sabemo porquê da falta de informação: a ausência de liberdade de expressão.Naquela, essa liberdade é espontaneamente soterrada, em flagrantetraição a todos os que arcaram com a própria vida para conquistá-la.

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CAPÍTULO IV – DIREITO E EDUCAÇÃO

1. A EDUCAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE SEDIMENTAÇÃO EEFICÁCIA DO DIREITO; 2. NECESSIDADE DE RENDA IMEDIATAAOS INDIGENTES; 3. PATRIOTISMO DE INSTITUIÇÃOFINANCEIRA; 4. SOCIEDADE APRISIONADA; 5. POLÍCIA: ES-COADOURO FINAL DE DRAMAS; 6. EDUCAÇÃO DOS FILHOSDOS SEM-TERRA; 7. A INDIFERENÇA DO POVO ÀS AÇÕESADMINISTRATIVAS.

1. A educação e a eficácia do DireitoPouco adiantam a elaboração das leis mais bem escritas e a ordem

jurídica mais completa se o povo, destinatário por excelência do Direito,não tiver alcance para compreender a sua importância ou não se dispusera respeitá-las. Qual o sentido do Direito para o homem marginalizado,sem escola, sem comida e sem certidão de nascimento? Parecer-lhe-áum monstro inútil a concorrer, na sua ótica, para o insuportável estadode pobreza em que vive.

Por que muitos jovens, em escala crescente, têm optado pordesafiar o Direito, repelindo qualquer submissão às suas regras? Sim-plesmente porque não tiveram acesso a qualquer tipo de educação.Sem formação alguma, sem perspectiva de vida digna, o homem acabatransformando-se num predador do Direito.

Se, no espaço territorial em que o Direito tem vigência, não forassegurado aos seus ocupantes o mínimo de educação para compreendê-lo,todas as leis publicadas entrarão em vigor, mas isso se tornará irrelevante,pois acabarão eles tendo por inexistente o seu conteúdo normativo.

Os juristas costumam construir as teorias e sistemas mais bem har-monizados com a lógica e com os princípios do Direito. Não lhesocorre, porém, reagir contra a sua mutilação ou avaliar com profundi-dade as causas da crescente resistência à submissão a ele pelo gruposocial. Cultivando um linguajar hermético, tornam-se cada vez mais

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distanciados do povo, como se não fosse este o único destinatário doDireito. Limitam-se a reafirmar ser a educação “direito de todos e deverdo Estado”, como se o enunciado puro e simples dessa exortação, notexto constitucional, fosse suficiente para sua observância, desobri-gando-os dos graves encargos a serem suportados por cada cidadãopara tornar o saber efetivamente acessível a todos.

Ao proibir a Justiça a realização de provas para avaliação dacapacidade de professores de escola pública, ao impedir a intervençãoem Município cujo prefeito, além de não aplicar no ensino o percentualmínimo exigido na Constituição, ainda desvia o dinheiro repassadopelo Fundef, enfim, ao garantir a manutenção de pagamento de inde-nizações absurdamente incompatíveis com as disponibilidades finan-ceiras dos cofres públicos, desfalcando-os de verbas que poderiam seraplicadas naquele setor, acaba deixando de contribuir para o aprimora-mento da educação.

É fundamental que cada um mostre concretamente qual a suaefetiva contribuição para a melhoria da educação no seu grupo social.Aliás, é bom insistir, cada cidadão deveria indagar-se por um instante:qual a minha contribuição à educação dos menos favorecidos? A res-posta cômoda de que esta questão pertence ao Poder Público precisaser evitada.

Exatamente essa falta de engajamento da sociedade na soluçãodo problema é uma das causas da insegurança reinante em nossas cida-des. Todos são obrigados a gastar com segurança. Mais polícia e maispresídios serão necessários para conter a fúria dos predadores do Direitoenquanto o grupo social não compreender que a ausência de escola nafavela distante é certeza de intranqüilidade geral.

Sem educação disponível para todos, o Direito continuaráineficaz, complemente esfacelado. A força da sua sanção acaba tor-nando-se inútil diante do excessivo volume dos seus violadores.Num país em que o cidadão, a qualquer hora do dia ou da noite,sente-se permanentemente ameaçado da subtração dos seus bensou de perder a própria vida, não convém disfarçar com eufemis-mos: tem-se por configurado verdadeiro estado de guerra. Apenasnão se conhece previamente o inimigo, diferentemente do que ocorre nosconflitos convencionais.

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Urge repassar, a partir das escolas de primeiro grau, a noção ele-mentar de justiça, estimulando o respeito pelo Direito, com base nesteenunciado básico: aquilo que não quero para mim, não devo desejarpara os outros. A bem da verdade, também as nossas elites devem com-preender, com urgência, a necessidade de observância desse princípio,se pretenderem resgatar a verdadeira paz em nosso grupo social. A po-breza excessiva das sociedades decorre quase sempre do mau gerencia-mento dos governos.

A flagrante falta daquela noção pode explicar a destinação, nofinal do segundo milênio, de quase 100 bilhões de reais – 100 bilhões!– para saneamento de bancos estaduais, matematicamente inviáveis, enão serem alocados recursos para acabar com a seca do Nordeste e,muito menos, para garantir educação em cada favela, para onde sãolançados os menos afortunados.

Nessa linha de subversão de prioridade, mais estarrecedora porémé a constatação de serem destinados 2 bilhões de reais para socorrer oBanco do Estado de Santa Catarina, conforme autorização do Senadoaprovada em 9.12.99, oito vezes maior do que o valor estimado, doisanos antes, pelo Banco Central, para saneamento daquela mesma ins-tituição.

É difícil sedimentar um combate eficiente ao deficit público,necessário para gerar credibilidade, sem eliminação dessas distorções.A imprensa registrou a cronologia desse desperdício:

“Em outubro de 97, a estimativa era que fossem necessáriosR$252 milhões. Revisão feita pelo BC, em dezembro de 98,elevou o socorro a R$819 milhões. Seis meses depois, em junhopassado, os recursos necessários já haviam atingido o total deR$2,129 bilhões.

(…)O socorro poderá financiar, de forma indireta, títulos emitidos

irregularmente por Alagoas para pagar precatórios (dívidasresultantes de decisão judicial).

A CPI dos Precatórios concluiu, em 1997, que Alagoas emitiutítulos irregularmente e, por isso, uma resolução do Senado proi-biu que os papéis fossem refinanciados com condições favoráveis.

Em 1997, o Besc possuía R$39 milhões em títulos vencidosde Alagoas. O socorro, então avaliado em R$252 milhões, previa

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que Santa Catarina cobrisse integralmente o prejuízo de R$39milhões” (Folha de São Paulo, 10.12.99, p. 10).

A solução do problema da seca, causa imediata do empobrecimentode milhões de pessoas no Nordeste, poderá ocorrer por meio da transpo-sição das águas do Rio Tocantins – diante da inviabilidade da transposiçãodo São Francisco em face da resistência dos Estados de Alagoas, de Ser-gipe e da Bahia –, cujo valor corresponderia a montante muito menor doque aquele destinado ao saneamento de alguns bancos. A sociedade comoum todo paga a conta e não se preocupa sequer em saber por que nãoforam adotadas as medidas para saneamento daquele banco em 1997.

2. Necessidade de renda imediata aos indigentesA educação, quando estimulada nas camadas mais carentes, como

se sabe, somente começa a surtir os seus efeitos a médio e longo prazo.Entretanto, os aproximadamente 24 milhões de indigentes do Brasilnecessitam de renda para comer hoje. Necessitaram, aliás, ontem, mastodos lhes viraram as costas.

Sequer lhes asseguraram o acesso a um planejamento familiar, desorte a permitir que a multiplicidade de filhos gerados, sem condiçõesmateriais para o sustento, acabasse por agravar o seu drama também naórbita emocional. Em relação a este tema, percebe-se uma hipocrisiageral e o atraso de um século na concepção dominante sobre o assunto.

Mulheres grávidas, com vários filhos menores, passando as noitesao relento, transitam nas esquinas movimentadas das grandes cidades.Todos julgam que o problema é apenas delas, por terem concebido aque-las crianças, deixando sob seu exclusivo encargo a educação delas. Quandose tornam eles adolescentes e começam a assaltar, então surge a posiçãocômoda de culpar a decantada ineficiência da polícia.

A elite nacional é injusta e obscura. As mulheres, no Brasil, com poderaquisitivo mais elevado, dão à luz, em média, dois ou três filhos. Recorrem aoprocesso de ligadura de trompa para não procriar além dos limites de suasdisponibilidades materiais, para bem educá-los. Isso é ponto pacífico nasuniversidades, empresas, repartições, enfim, em todos os locais em que seencontram os segmentos mais bem remunerados da sociedade brasileira.

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Todavia, simplesmente porque a mulher é pobre, sem disponibili-dade financeira para custear a ligação das trompas nem para comprar,todos os meses, anticoncepcional, acaba procriando filhos em quanti-dade muito acima de sua capacidade econômica. Além da ausênciatotal de recursos para mantê-los, verifica-se algo muito mais grave, queé a concepção indesejada, na grande maioria desses casos.

Mais inacreditável, porém, é o problema das mulheres pobresque são vítimas de estupro. Existe no mercado um anticoncepcionalque impede a gravidez mesmo se tomado no dia seguinte ao da relaçãosexual. Entretanto, para ter acesso àquele medicamento, deve a vítimaregistrar a ocorrência do crime, na polícia, submeter-se a exame decorpo de delito e outras providências burocráticas. Resultado prático:o remédio só é colocado ao seu alcance 10 ou 15 dias após a data doestupro, ocasião em que já se tornou ineficaz. A revolta e o dramapessoal da paciente é indiferente a todos.

As pessoas que lidam diretamente com os desassistidos nasperiferias e favelas não escondem a imensa preocupação com os cres-centes casos de procriação indesejada cujos pais não têm as mínimascondições para a criação digna dos filhos.

O número crescente de crianças desamparadas, sem qualquer tipode abrigo, levam quase às raias do desespero as pessoas – entre elasfreiras generosas – envolvidas na busca de solução para tão grave pro-blema.

Por covardia, omissão ou obscurantismo, todos os segmentosda sociedade se omitem no enfrentamento dessa questão. Preferemdebater sobre os mecanismos de aprimoramento da adoção, refor-mulação da Febem e ampliação dos juizados da infância para atendi-mento de menores abandonados. A televisão, noticiando diariamenteas rebeliões de menores que se agridem e se matam nas casas de recu-peração, nos mais diversos pontos do País, confirma a dimensão doproblema.

Nesse contexto, a sociedade, além da necessidade de atentar parao drama das mulheres paupérrimas que geram filhos a contragosto,lançando-os na rua pela carência absoluta de meios para mantê-los,deve encontrar mecanismos para assegurar transferência mínima derenda às famílias indigentes. Há muito, pregava Dom Helder Câmara:

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“A fome dos outros condena a civilização dos que não têm fome”. O regime mili-tar, instalado em 1964, exigiu que ele se calasse, sem calar, porém, ogrito dos que ficaram sem comida.

A geração de renda deve ser objeto da preocupação de toda asociedade: dos ocupantes do poder, em todos os seus segmentos, defiscais do trabalho, integrantes do Ministério Público, líderes sindicais,pastorais, clero, jovens e velhos, todos, enfim.

Todos devem convergir na busca de solução para criar empregoe gerar renda, nunca para destruir ou desestimular a sua multiplicação.Ampliar a geração de emprego não é problema apenas do governo; asolução interessa e deve ser buscada por cada um. A burocracia estatalnão pode se manter cega, dificultando providências que visem a minimi-zar esse quadro aflitivo.

Na linha dessa contribuição, o economista Idalvo Toscano,por exemplo, sugere, como medidas para inserção de parcela dapopulação carente no mercado de consumo, entre outras: a)fomentar o desenvolvimento de tecnologias locais, geradoras deemprego e pautadas nas especificidades culturais, de recursos natu-rais e organização social da comunidade; b) instituir mecanismosde retenção de pequenas poupanças nos locais em que são geradas,repassando-as às entidades criadas com a finalidade de fomentar omicrocrédito; c) estimular, utilizando se necessário créditos subsi-diados, a geração de empregos por intermédio da implantação denúcleos industriais intensivos em mão-de-obra; d) promover umintenso programa de assentamento agrário sob uma nova ordemjurídica que permita desapropriações ágeis e menos onerosas”(Gazeta Mercantil, 10.12.99, p. A-2).

O programa (elogiado internacionalmente) intitulado “ComprasGovernamentais” – mediante o qual o Sebrae adquiria de pequenos pro-dutores, nos respectivos Municípios, entre outros produtos, carteiras es-colares com verbas repassadas pelo Estado para equipar as escolas pú-blicas daquelas localidades – foi extinto por imposição do Tribunal deContas. O Sebrae não poderia receber verba pública porque não é inte-grante da Administração.

Em conseqüência dessa medida, dezenas de microempresas quefloresciam no sertão do Ceará, garantindo emprego aos homens do

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interior no seu próprio domicílio, foram fechadas. Desempregados, re-tornaram eles à condição secular de migrantes sem rumo, sem comida esem esperança de um amanhã com um mínimo de dignidade.

É inútil sancionar lei afirmando, por exemplo, “ficam criados100 mil empregos para os jovens”. Na verdade, é difícil criar empregoapenas por lei. Todavia, acabar com o emprego invocando a legislaçãovigente, por incrível que pareça, tem sido missão estimulante para algunsque ocupam função pública.

Não se compreendeu ainda, no Brasil, que o Direito é instru-mento de harmonia social, de busca para a realização do bem-estargeral, não devendo jamais ser invocado para provocar ou agravar ocaos social. O Direito deve ser fonte de solução, nunca de agravamentode crise. Ao intérprete, pois, compete fazer com que ele cumpra o seugrande papel no grupo social: aprimorar as condições de vida dos seusdestinatários; jamais fazer o grupo prejudicar-se sob a obscura justifica-tiva de que isso é exigência de norma jurídica. Inclusive, para não darrazão a Amós, que afirmou “As autoridades e os juízes transformam oDireito em veneno e atiram a justiça por terra”.

No que diz respeito à desapropriação de imóveis, por outro lado,a primeira providência para a solução do problema fundiário no Paísconsiste em retirar o Incra e todos os órgãos vinculados a essa área detoda e qualquer ingerência política. É vergonhoso o noticiário sobre irre-gularidades relacionadas com imóveis destinados à reforma agrária,vital para o drama da pobreza que aflige os sem-terra e os “sem-nada”.

No final do século XX, foi sugerida a criação de um fundo paraacabar com a pobreza no Brasil. Instituiu-se, para tanto, uma comissãoespecial de 38 deputados e senadores para sua formalização.

O tema relacionado com a pobreza despertou maior atenção damídia após a advertência do então ministro da Fazenda de que nãopode ela ser extinta com uma simples canetada. Recebeu ele, em contra-partida, censura por nunca haver recebido um pobre em seu gabinete.

Na verdade, não se acaba a pobreza com simples canetada. Entretanto,há décadas que a pobreza se agrava e não se estabeleceu, até agora, umaprioridade específica para reduzi-la a um nível menos chocante.

A própria Bíblia faz alusão à existência de pobres no mundo. Apobreza parece, assim, inerente à raça humana. Todavia, políticas públicas

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bem conduzidas, respaldadas em propósitos sérios, podem abrandar odrama dos menos afortunados.

O problema é que nenhum governante se imagina na condiçãode pessoa carente. As suas prioridades se voltam sempre para os maisafortunados, cujos grupos detêm maior poder de pressão. Até mesmoas ações direcionadas para as áreas sociais, pela sua multiplicidade, acabamtendo suas verbas desviadas.

Por exemplo, inúmeros políticos costumavam manter fundaçõespara receber verbas do orçamento destinadas ao custeio de açõesfilantrópicas. Na vasta maioria dos casos, isso representa desperdíciopuro e simples de recursos.

Aliás, vários bilhões são destinados, no orçamento, para a áreasocial. É imprescindível e urgente uma auditoria permanente, com aparticipação da sociedade, para acompanhar a aplicação dessas verbas.Até porque as entidades efetivamente comprometidas com a assistên-cia, com o ensino e o acompanhamento de pessoas carentes cujosdirigentes são vocacionados para servir ao próximo dificilmente con-seguem receber dinheiro do Poder Público para realização de suas ações.

O Nordeste figura entre as regiões com maior número de pessoascarentes. Não adianta ter ilusão; sem combate eficaz à seca, o dinheiropúblico será sempre volumoso, mas insuficiente para fazer face àpobreza, que sempre se agravará.

Sem água, não há comida; nem pode haver emprego. Nesse con-texto, todas as políticas governamentais constituem simples paliativo.A União, os Estados e os Municípios necessitam criar uma políticaeficiente, séria e definitiva de combate à seca.

É deplorável que este País entre no século XXI sem ter soluciona-do o problema da falta de água no Nordeste, que já inquietava D. PedroII ao tempo do Império. Sem solução definitiva, os governos continua-rão mandando cestas básicas para muitos nordestinos vitimados pelafalta de água. O dinheiro repassado pelo provável Fundo de Combate àPobreza aumentará o volume dos produtos fornecidos, mas não resolveráo problema da miséria.

É oportuno registrar, a propósito, que, entre junho de 1998 edezembro de 1999, as ações de combate à seca no Nordeste consumiramdois bilhões de reais, conforme informação prestada pelo

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superintendente da Sudene, Marcos Formiga, na Comissão de Ciência eTecnologia da Câmara (jornal O Povo, 6.12.99).

O valor gasto em pouco mais de um ano, como se observa, pra-ticamente daria para resolver, em caráter definitivo, esse grave problemadecorrente da estiagem, se efetivada a transposição das águas do RioTocantins para as regiões mais atingidas. Sem falar nos seis bilhões dereais consumidos na fraude dos precatórios apenas no que tange à Pre-feitura de São Paulo. Com quantia muito menor, seria possível fazer aque-la transposição de água, providência que acabaria definitivamente como drama da seca no Nordeste.

O esforço de governadores e prefeitos bem-intencionados,levando empresas ao sertão sem chuva, gerando emprego e renda paraos excluídos, será sempre insuficiente para atender à demanda se nãosolucionado, de uma vez por todas, o problema da falta de água.

Sem água para consumo e para garantir a produção agrícola, consta-taremos a passagem de mais um século sem solução para a fome em algunspontos do Nordeste. Formar-se-ão comissões e mais comissões, mas a so-lução do problema nunca chegará, porque sempre será mais cômodo alocarbilhões de reais para atender às pressões e ao clamor mais sensível de ban-queiro do que destiná-los a resolver o drama da pobreza, esta sem acessoalgum aos gabinetes dos responsáveis pelos cofres da nação.

Apenas mandar dinheiro para edificação das obras necessárias aocombate à seca também não é suficiente. É preciso, paralelamente a isso,instituir um sistema de auditoria e acompanhamento com a participaçãoda sociedade. Obras inacabadas pelo Brasil afora são exemplo da preo-cupação de políticos medíocres apenas com a conveniência dos seusinteresses pecuniários.

3. Patriotismo de instituição financeiraQuando o assunto é fome, poucos ousam tratá-lo publicamente

ou sugerir soluções objetivas. Pobre não tem porta-voz. Todavia, quandoo tema é dinheiro, fala-se até em patriotismo de banco. Banqueiros queapostaram todas as fichas contra o real, no auge da crise de janeiro de1999, passaram a invocar interesses nacionais para a aquisição doBanespa, meses antes de sua privatização.

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De repente, ao iniciar-se o ano 2000, a palavra patriotismo –literalmente abolida do linguajar puro e espontâneo do povo – foitrazida à tona para defender os interesses pecuniários de alguns“nacionalistas”. Para tanto, o dinheiro do contribuinte, via BNDES,deveria – para a defesa da soberania nacional – ser repassado aosbanqueiros para que o Banespa, no qual foram consumidos dezenas debilhões de reais dos contribuintes, continuasse brasileiro. O povo, úni-co titular da soberania, daria seu dinheiro para preservá-la. Em no-vembro, porém, um banco espanhol adquiriu aquela instituição, exem-plo portentoso de todas as inconveniências de o Poder Público atuarcomo mutuante.

Não deixou de ser curiosa a fórmula proposta por alguns paraque o Banespa permanecesse brasileiro. O povo, faminto e marginali-zado, deveria transferir o seu dinheiro para o banqueiro manter a sobe-rania, cuja titularidade lhe pertence na democracia.

Restou claro: dinheiro, capital e aplicações financeiras somentetêm pátria quando é para o povo transferir dinheiro para o banco.Nessa circunstância, o banqueiro transforma-se em patriota, exaltado,inclusive, pela eloqüência de muitos.

É dura, realmente, a vida de um povo sem acesso à comida.Humilhado permanentemente com a situação de pedinte, ainda é lem-brado, de forma estranha, para exercer a soberania que lhe pertence,dando dinheiro a quem mais o detém no território de seu habitat. Osoberano faminto seria convocado a defender seu nacionalismo, peloconsentimento para que o dinheiro arrecadado de cada cidadão fossetransferido a banqueiro, para auxiliá-lo na compra de um banco queconsumira recursos em quantia pelo menos três vezes maior do que asuficiente para acabar com a pobreza existente no País.

Dinheiro, banco e pobreza. A pauta em debate simultâneo des-ses temas significa: aumento do número de pobres. Pior mesmo só osargumentos dos que pretendiam dar dinheiro do povo para banqueirocomprar banco. É preciso ter em mente que um argumento bem dosadoconvence o comprador a adquirir vermelho para luto. Existe, porém,nesse caso, má-fé do vendedor.

Os nacionalistas precisam ficar atentos, pois muitos se valem doestado passional da população para extrair proveito pessoal. Durante

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muitos anos, por exemplo, convém relembrar, foi proibida a importaçãode computador, no Brasil, para proteger a indústria de informática. Umageração inteira foi condenada ao atraso tecnológico para satisfazer osinteresses pecuniários de industriais do ramo.

A expressão “interesse nacional” precisa ser mais bem explicitadaem cada caso. Muitos oportunistas, aproveitadores de má-fé, ocultam-senela para obter benefícios, causando prejuízos irreparáveis ao País, emcujos interesses superiores jamais pensaram.

Nessa linha de retrospectiva, o brasileiro sente mesmo a sensaçãode que o Banco do Brasil lhe pertence quando aparece prejuízo na suacontabilidade e o dinheiro dos seus tributos é levado para cobri-lo. Essasensação de titularidade de banco estatal, caracterizada na solidariedadeapenas no rateio das despesas, é velhíssima.

Na época de Getúlio Vargas, o contribuinte foi convocado a dar signi-ficativa verba ao Banco do Brasil por haver este doado dinheiro de seu caixapara implantação de jornal de correligionário daquele governante, conformeapurado em CPI daquela época. Recentemente, todos os bancos privadosrecusaram os títulos relacionados com o escândalo dos precatórios; apenaso Banco do Brasil os acolheu, e o contribuinte pagou a generosidade.

Tudo, enfim, se dá e se defende, neste País, desde que os cofresdo Tesouro paguem a conta. Ninguém na sociedade brasileira pareceatentar para o fato de que o dinheiro do Estado não brota de pé demandacaru; provém do bolso do povo. Do bolso quase vazio do povo.O dinheiro gasto para sanear o Banespa foi muito maior do que oarrecadado com a sua venda. Essa “engenharia financeira” é mecanismoseguro para transformar qualquer país em usina permanente de pobreza.

4. Sociedade aprisionada

A farsa com que o Brasil sempre conviveu com o princípio daigualdade, exaltando-o apenas formalmente, nos textos de suas normas,resultou na impossibilidade de usufruir efetivamente da liberdadeassegurada a cada um de seus membros.

O respeito à dignidade da pessoa humana e à solidariedade emrelação aos menos afortunados nunca foi o forte da sociedade brasileira.

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A preocupação exagerada de todos os segmentos de suas elites com ospróprios interesses tornou-a vítima de sua visão obscura, agravada pelareconhecida indigência de seus valores; enfim, refém da estruturamarcantemente pontilhada pela desigualdade que semeou. O egoísmoostensivo responde pelos seus crescentes dramas.

Formalmente assegurada a cada pessoa, a liberdade de ir-e-vir écontraditada diante da necessidade de conviver com fortalezas e siste-mas de segurança, de tal maneira necessários, que o próprio cidadão,cumpridor da lei, assume a condição de prisioneiro. Livres mesmoacabam sendo os marginais em potencial, que transitam com desenvolturana busca de suas vítimas.

Os imóveis da Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, cujo metroquadrado é dos mais caros no País, estão todos, com exceção dos hotéis,circundados por grades de ferro. Na periferia de nossas metrópoles, oscomerciantes vendem seus produtos enclausurados, devido ao medode muitos “clientes” indesejáveis.

Os moradores de quase todas as cidades, no Brasil, são obrigadosa viver sob proteção de grades e cadeados, por medida de segurança.Remuneração de vigias, gastos com uma parafernália de câmeras e equi-pamentos de segurança sofisticados, para garantir uma maior proteçãoaos moradores, elevaram o preço dos condomínios.

Em muitos lugares do mundo, casas e edifícios não necessitam degrades para que seus moradores se sintam seguros. As cercas são de plan-tas, que ornamentam a paisagem em que estão inseridas aquelas moradias.

A diferença fundamental entre as cidades nas quais a populaçãonão vive sob grades e as nossas é que, naquelas, a educação com quali-dade há muito tornou-se acessível a todos. Os governantes foram maissensatos e perceberam, desde cedo, que o custo com a manutenção deescola acessível a toda a população é bem menor do que a soma dosgastos suportados individualmente pelos cidadãos para garantir a pró-pria segurança – ainda assim sempre precária. Muito menor, enfim, doque o gasto com penitenciária, delegacias e batalhões de polícia, sem-pre em quantidade insuficiente para conter os impulsos daqueles que,no curso da vida, receberam apenas lições de marginalidade. “A educaçãoé cara, mas a ignorância é muito mais”, têm advertido, com inteirapropriedade, os educadores mais experientes.

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As muralhas que a nossa população se vê obrigada a colocar emseus imóveis nada mais traduzem do que a incapacidade de colocar nacadeia os que se apropriam das verbas destinadas à educação e à áreasocial. A sociedade não prende, nem jamais prendeu, os personagensmais nocivos. Sente-se, por isso, obrigada a ir espontaneamente paratrás das suas próprias grades. Triste paisagem e lição amarga do equí-voco de suas classes dominantes, cujos efeitos se projetaram com maisnitidez no final do segundo milênio, justamente a época de nós todos.

5. Polícia: escoadouro final de dramasNenhuma instituição, no Brasil, é mais questionada do que a polí-

cia. Diariamente, jornal, rádio e televisão dedicam grande espaço aosassuntos relacionados com a atividade policial. Muito freqüentemente éela execrada devido a uma série de distorções que tem acumulado aolongo do tempo.

Infantilmente, porém, a sociedade brasileira parece esperar dapolícia a solução dos seus crescentes dramas. Não se dá conta de que aexagerada dependência dessa instituição é simples conseqüência de umaindisfarçável cumplicidade com a impunidade.

Fácil a visualização disso tudo. Um acusado foragido, no caso dehomicídio doloso, não pode ser julgado. A conclusão do processo fica,assim, a depender de sua conveniência para apresentar-se à Justiça. AConstituição da República, de forma expressa, manda presumir ino-cente todo criminoso cuja condenação não haja transitado em julgado.Sabe-se, é imperioso ressaltar, que, em média, um processo leva maisde dez anos entre o seu início e sua conclusão, após a manifestação doSupremo Tribunal Federal, quando, então, transita em julgado.

O autor de qualquer crime que esteja aguardando o julgamentoem liberdade pode candidatar-se a cargo eletivo no Brasil do séculoXXI. A sociedade assegura-lhe não apenas o acesso ao comando desuas verbas, como lhe outorga até o poder para dirigir o destino deseus filhos. Isso é uma aberração inadmissível onde se conheça a pala-vra bom senso.

Gestores que desviam verbas da educação e da própria merendaescolar são mantidos no poder, estimulando seguidores, exibindo uma

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inacreditável supremacia sobre a lei penal, subestimando suas sanções etornando, nesse contexto de contradições, atuais estas observações deAnacársis, feitas no século VI a.C: “As leis escritas são como teias dearanha. Pegarão os fracos e os pobres, mas serão despedaçadas pelosricos e poderosos”.

Mulheres sem recursos e sem acesso aos anticoncepcionais pro-criam filhos, que confessam não desejarem, lançando-os nas ruas paraserem absorvidos com os seus traumas e carências por uma sociedademuda e indiferente a esse megadrama.

A Igreja, com toda a sua inegável contribuição ao País, não admitediscussão nessa área. É forçoso reconhecer, porém, que já pediu publi-camente desculpas por muitos equívocos que cometeu. Não se leva emconsideração a perspectiva de também achar-se equivocada no tratodesta questão. É temida e ninguém ousa questioná-la quanto à liberdadepara a procriação. Apenas intramuros todos se chocam com o absurdoconstatado nos sinais e avenidas das grandes cidades: filhos lançadosao destino para o Estado (o Estado!) criar.

Não bastasse o drama de concepções indesejáveis, de pessoassem acesso aos meios anticonceptivos, crianças de todas as idades e detodas as camadas sociais crescem sem noção alguma de respeito à lei,aos pais e aos superiores, estimuladas por veículos de comunicaçãoque julgam ser responsabilidade apenas do desprestigiado professor afunção de educar. Pichações de muros, casas e tudo o que for sólido,sem esboço de qualquer reação eficaz, estimulam o desrespeito ao direitodos outros. Perdem os jovens, com isso, e bem cedo, a noção de boaconvivência no grupo social.

Com todos esses ingredientes disseminados no seu seio, a socie-dade brasileira persiste indiferente aos dramas que ela própria produz,assumindo uma posição cômoda e absurda de limitar-se a mandar con-vocar a polícia para resolvê-los.

O mais grave, porém, é a crescente cobrança a esse órgão daAdministração Pública sem a menor consciência da impossibilidade deresponder ele, de forma satisfatória, pelas mazelas galopantes de umgrupo social cuja tônica é a hipocrisia. Tudo em decorrência da falta decoragem e determinação para enfrentar, sem subterfúgio, o âmago dosseus verdadeiros problemas, gerados a partir do descaso para com os

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princípios da igualdade e da solidariedade, permanentementetangenciados pelas mais surpreendentes razões.

A necessidade sempre crescente, no grupo social, de intervençãoda polícia estampa apenas o desfecho final dos dramas do dia-a-dia,previsíveis, só que ninguém cuidou de evitá-los tempos atrás. Força, gra-de e polícia, tudo pode ser minimizado e até evitado. Basta ter visão delongo prazo para enfrentar as questões da área social com boa-fé e semfisiologismo. Deve-se, para tanto, levar mais a sério esta observaçãoprecisa de Victor Hugo: “Quem abre uma escola fecha uma prisão”.Escola de qualidade, obviamente.

6. Educação dos filhos dos sem-tetoSão freqüentes, na periferia das cidades, as invasões de terrenos

desocupados. Em pouco tempo, centenas de barracos são montados ea favela ali implantada assume sua feição amarga decorrente da carên-cia de tudo e da desilusão em relação ao futuro. Ultimado o barraco,cada um empresta à sua vida o destino que lhe convém.

Os invasores são homens, mulheres e crianças de todas as ida-des. Aos olhos dos demais habitantes da cidade, são violadores dodireito de propriedade e alvo certo da Justiça, após a provocação destapelo proprietário esbulhado.

Um fato, entretanto, precisa ser melhor avaliado e tentada umasolução com a maior brevidade. Mesmo sob o rótulo de invasores, ascrianças que integram aqueles contingentes precisam de escola. Paraser mais exato, é necessário assegurar-lhes um local de acesso ao saberenquanto permanecerem ali.

São crianças de extrema afetividade que, estimuladas pela merendaescolar, disputam, com determinação, uma vaga em qualquer escola.Deploravelmente, os governantes municipais, de modo geral, viram-lhesas costas, quer não lhes fornecendo local específico para o ensino deprimeiro grau, quer porque nenhum incentivo, nenhuma contrapartidapropiciam aos poucos cidadãos abnegados que se dispõem a instalarescola nas imediações daquelas áreas invadidas.

Em visita a uma dessas raras escolas, com 284 alunos e prestes afechar por falta de recurso para pagamento da folha de pessoal, no valor

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mensal de R$2.500,00, percebe-se o senso de solidariedade dessascrianças. Com um sorriso contagiante de pureza, fazem fila para apertara mão do visitante.

A lição do tempo tem, porém, ensinado que, se nada for feitopor elas, amanhã, em vez do cumprimento afetuoso, exibirão armas,exigindo os pertences de quem encontrarem pela frente. Se houverbom senso e determinação, muita coisa desagradável pode ser evitadaem relação ao futuro desses menores. Basta assegurar-lhes educaçãoque lhes garanta capacidade de competir e suavizar seu interior, poten-cialmente amargo, sem qualquer referencial de afetividade. Cumpre re-lembrar Santo Agostinho: “A necessidade não tem lei”.

O autorizado professor Geraldo Ataliba, ao recomendar acobrança da contribuição de melhoria dos proprietários de imóveis va-lorizados em decorrência da edificação de obra pública, destacava, na-quela exigência fiscal, um desestímulo aos proprietários em deixar seusimóveis sem qualquer utilização econômica, apenas aguardando valori-zação, sujeitando-os à invasão, com a conseqüente instalação de favelas.

Assiste-lhe integral razão. Muitos especuladores mantêm imóveiscom vasta extensão de área sem qualquer destinação específica, inclusivesem muro ou cerca.

Estimuladas pelas razões mais diferentes possíveis, algumas pessoas– umas, por necessidade; outras, por puro oportunismo – ocupam aque-les terrenos. O problema social que será gerado com a convocação dapolícia, para cumprir ordem judicial de desocupação, acaba estimulandoo Poder Público a desapropriar o imóvel.

Sucede que, em vez de ser calculado o preço do bem com base narealidade da favela ali instalada, tomando-se o valor efetivo de merca-do, a avaliação costuma dar-se como se não existissem os barracosdepreciadores da área. O eventual proprietário, que não deu à áreanenhuma destinação econômica, mantendo-se inerte à espera de valo-rização, acaba beneficiado com o recebimento de montante elevadopela perda do imóvel ocupado por terceiros em conseqüência de suainércia, causa determinante da invasão. O preço desses bens, semprecalculado acima do valor efetivo de mercado, impossibilita o PoderPúblico de desapropriá-los para evitar o drama de pessoas sem lugarpara morar, após a desocupação determinada pelo Judiciário.

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7. A indiferença do povo às ações administrativasMesmo sendo o povo o único detentor do poder, exercendo-o por

meio daqueles que elege periodicamente, forçoso é reconhecer a indiferençada maioria da população em relação ao gerenciamento da Administração.A falta de interesse nas ações diariamente praticadas pelos que ocupam fun-ção pública decorre, por certo, da ausência de qualquer participação doscidadãos nas decisões, ainda quando afetam a vida de todos.

A cidadania se limita ao exercício do direito de votar no dia daeleição. Após isso, o eleito perde por completo o contato com os seusrepresentados, os quais permanecem sem qualquer informação sobrea atuação daquele, durante todo o exercício do mandato.

Para despertar o interesse do povo nas ações do Poder Público,deve-se iniciar um processo de politização a partir da própria escola.Para tanto, poder-se-ia realizar consulta aos alunos relacionada com temasvivenciados pela Administração em determinado momento. A exigênciada manifestação de cada estudante a respeito da questão apresentada aca-baria despertando maior conscientização sobre o problema da suprema-cia do interesse coletivo, o qual jamais lhe passara pela mente.

Entre outras questões, poderia ser indagado: quem desvioudinheiro público pode candidatar-se para obter mandato eletivo? Deveser ampliada a escola existente ou edificada uma praça no bairro? Asensação do cidadão, sentindo-se distanciado desses temas, acabafavorecendo o administrador desonesto, cada vez mais liberado deprestar contas de suas ações.

É necessário passar a cada pessoa, a partir da escola de primeirograu, convém insistir, a conscientização de que o dinheiro públicoutilizado por Estados e Municípios provém do bolso de cada cidadão.

Cada um, por isso, rico ou pobre, servidor público ou não, indi-vidualmente, é responsável por guardar bem tudo aquilo que pertenceà Administração Pública. Infelizmente, a cada dia tem-se agravado adistorção segundo a qual tudo o que pertence ao Poder Público deveser tratado com descaso, servir de favorecimento de quem se acha à suafrente ou ser simplesmente saqueado.

Entretanto, ninguém tenha dúvida: tudo o que o Estado possuiprovém do povo. O carro que transporta qualquer autoridade e a

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gasolina que consome são pagos com o dinheiro dos contribuintes, assimchamadas as pessoas que pagam os tributos com os quais o Poder Públicosalda as suas despesas.

Para melhor compreender a participação de cada pessoa no custeiode tudo o que é consumido pela Administração Pública, imaginemosuma cédula de R$50,00 (cinqüenta reais), dada por determinado cida-dão para pagamento do ICMS embutido no preço pago pela compra deum relógio, que contivesse um minúsculo equipamento para visualizaçãodo seu percurso; dessa forma saberíamos a destinação que lhe seria dadapelo agente do Poder Público ao qual fosse repassada.

Poderia constatar, assim, aquele que pagou o tributo com aquelacédula, que ela se destinaria à compra de viaturas policiais,ambulâncias, pagamento de combustível para levar autoridade àpraia, superfaturamento na compra de bens, salários elevados paraquem não trabalha, etc.

Se o dinheiro público não pertence ao servidor ou agente políticoque o manuseia, mas pertence ao povo, devem todos, sem exceção, zelarpor sua boa aplicação. Não é atribuição apenas dos servidores do Exe-cutivo cuidar da boa aplicação do dinheiro pago pelos contribuintes. Édever de todos os cidadãos, sejam eles vinculados ou não ao PoderPúblico.

Isso, teoricamente, parece até simples de ser compreendido. Naprática, entretanto, a distorção é geral. Ninguém se preocupa em cultivarrespeito pela coisa pública. Os que, até mesmo por dever de ofício,defendem o Erário acabam hostilizados diante da falsa concepção deque aquilo que pertence ao Estado não tem dono, devendo ser instru-mento de satisfação pessoal de qualquer interessado na priorizaçãodos seus interesses particulares.

O Estado, porém, é preciso reiterar, é um ente abstrato. Mani-festa-se exclusivamente por meio dos seus agentes. Por isso mesmonão erra. Estes, sim, às vezes até mesmo por má-fé, equivocam-se; maspunir os agentes do Estado quando agem erradamente em seu nome,isso nem pensar. O prejuízo causado pelos agentes políticos ou servi-dores é, na prática, sempre suportado pela população.

Os exemplos a seguir narrados ilustram melhor. O terreno peloqual um particular cobraria de outro R$40.000,00, simplesmente por

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ser o Poder Público o eventual comprador, dele deve exige-se a impor-tância de R$400.000,00.

Se para a realização de um serviço exige-se normalmente a parti-cipação de 10 pessoas, se couber ao Estado o pagamento da contratação,serão contratados, no mínimo, 30 servidores.

Por outro lado, se um cidadão não entender nada sobre determi-nada área, nenhum particular o contratará para a chefia dos seusnegócios relacionados com tal setor. Todavia, porque quem pagará pelacontratação desastrosa será o Estado, não há nenhum constrangimentona designação daquele para o exercício de função pública. Os absurdos,nesse particular, sucedem-se pacificamente entre nomeantes, nomeadose contribuintes pagadores do desperdício.

Quando um soldado embriagado saca a arma e atinge alguém noestádio de futebol, mesmo estando de folga, todos sugerem logo que oEstado pague a indenização por lhe haver entregue a arma. Ninguémprocura saber as circunstâncias da nomeação daquele policial. Se foi,por exemplo, reprovado no psicotécnico e obteve, no entanto, ordemjudicial assegurando-lhe a nomeação.

Nessa ordem de idéias, todos investindo, a todo instante, contrao Poder Público, pelos mais diversificados modos e fundamentos, masninguém sendo responsabilizado pelos danos que lhe cause, inclusivepara desestimular seguidores, dissemina-se, cada vez mais intensamente,a idéia de que cada agente do Poder Público é dono absoluto da funçãoque ocupa e não deve satisfação nem indenização pelos seus atos, aindaquando prejudiciais a terceiros.

É imperiosa a reformulação total de mentalidade em relação àAdministração Pública. O Estado, ente abstrato, efetivamente não erra.Podem errar seus agentes, que, por isso mesmo, devem-se acautelar emtodas as suas ações para não produzir danos que, em última análise, aca-barão suportados por cada cidadão.

Enfim, todas as escolas devem, com urgência, passar aos alunosa conscientização de que, quando alguém causa dano ao Poder Públi-co, é o próprio aluno quem paga pelo prejuízo sofrido. Por exemplo,quando ele compra a sua bola de futebol, o dinheiro do imposto pagojuntar-se-á ao pago por outras pessoas para restauração do banco dapraça quebrado propositadamente. A partir dessas informações, quando,

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no futuro, vier ele a exercer função pública, ou mesmo como simplescidadão, zelará pela coisa pública. Jamais será seu predador.

Embora subdividida a Administração em ministérios, secretariasde Estado ou de Município, as suas ações devem guardar a mais absolutaharmonia e integração entre si para bem cumprir suas atribuições.

Pouco adianta ser o administrador moderno e dinâmico, emrelação a determinado setor do poder sob sua chefia, se adota posturaretrógrada ou mesmo pusilânime em relação a outro, acabando porneutralizar os frutos de eficiência em qualquer deles.

Ninguém desconhece serem elevados os gastos com a folha depagamento dos servidores da União, dos Estados e Municípios. AUnião, de forma mais contundente, tem buscado reduzir as despesasnessa rubrica, incentivando demissão voluntária, aferindo o desempe-nho dos servidores, além de outras providências justificadas, porquantogastos com pessoal acima de 50% da arrecadação são elevados para ofuncionamento da máquina administrativa, diante de uma populaçãocuja média salarial, em muitos Estados, é inferior a R$100,00.

Os servidores públicos devem ser remunerados condignamentepara bem desempenhar suas funções. Para tanto, dois pressupostosprecisam ser observados. Não devem supor que são os únicos destina-tários de tudo o que o Estado arrecada; devem, por sua vez, todos –com lotação em quaisquer dos poderes – zelar pela boa aplicação dosrecursos públicos, evitando gastá-los ou autorizar que gastemperdulariamente, como se caíssem do céu. Os gastos desordenadostambém concorrem para esvaziamento dos cofres dos quais dependea garantia de remuneração digna, imprescindível para o bom funciona-mento da Administração Pública.

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CAPÍTULO V – PODER DA FAMÍLIA

1. A FAMÍLIA, O PODER E O NOME. 2. OS DANOS DO GOVER-NANTE INEFICIENTE AOS DESCENDENTES;

1. A família, o poder e o nomeQuem na vida não consegue encaminhar bem os filhos dificilmente

conseguirá sentir-se plenamente feliz. Nada no mundo pode ser tãoamargo quanto desgosto de filho. Tudo, por isso, deve ser feito preven-tivamente para evitar esse desconforto.

É atribuição dos pais zelar pela boa formação do caráter dosfilhos. Se o filho, na escola, subtrai a borracha do colega, e a mãe nãoo manda devolver, perdendo a oportunidade de ensinar-lhe que não sedeve retirar nada de ninguém, estará, inconscientemente, contribuindopara a sua deformação.

Não podem os pais, abastados ou não, aguardar apenas da escolaa formação dos filhos. O respeito à lei e ao poder constituído se aprendeem casa. A primeira lição de poder é absorvida dos pais. Se o filho nãoencontra limite algum em casa, tudo ficando ao alcance do seu arbítrio,até a própria polícia poderá, no futuro, ter dificuldade para contê-lo.

Um jovem advogado recém-formado, na saída do TribunalRegional Eleitoral do Ceará, exibia este texto, que lhe forneceram eque exprime a prioridade dada pelos seus pais na sua educação:

“Um consultor, especialista em gestão de tempo, quis sur-preender a assistência numa conferência. Tirou debaixo da mesaum frasco grande, de boca larga. Colocou-o em cima da mesa,junto a uma bandeja com pedras do tamanho de um punho, eperguntou: Quantas pedras pensam que cabem neste frasco?

Depois de os presentes fazerem suas conjecturas, começoua meter pedras até que encheu o frasco.

Então, indagou: Está cheio?

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Toda a gente olhou para o frasco e assentiu que sim.Então ele tirou debaixo da mesa um saco com gravilha

(pedrinhas pequenas, menores que a “brita”). Meteu parte dagravilha dentro do frasco e o agitou. As pedrinhas penetrarampelos espaços que deixavam as pedras grandes. O consultorsorriu com ironia e repetiu: Está cheio?

Desta vez os presentes duvidaram: Talvez não.Muito bem! E pousou na mesa um saco com areia, que

começou a despejar no frasco.A areia filtrava-se nos pequenos buracos deixados pelas

pedras e pela gravilha.Está cheio? – perguntou de novo.Não! Exclamaram os presentes.Então o consultor pegou uma jarra de água e começou a

derramar para dentro do frasco. O frasco absorvia a água semtransbordar.

Bom, o que acabamos de demonstrar?, perguntou.Um ouvinte respondeu: – Que não importa o quão cheia

está a nossa agenda; se quisermos, sempre conseguimos fazercom que caibam mais coisas.

Não!, concluiu o especialista – o que esta lição nos ensina éque, se não colocarem as pedras grandes primeiro, nuncapoderão colocá-las depois. E quais são as grandes pedras nasnossas vidas? A pessoa amada, nossos filhos, os amigos, osnossos sonhos e desejos, a nossa saúde. Lembrem-se: ponham-nos sempre primeiro. O resto encontrará o seu lugar!”.

De outra parte, aqueles que exercem função pública devem, comurgência, libertar-se da cultura de protecionismo à própria família,materializada por meio da destinação de cargos ou outorga de privilé-gios a parentes, em detrimento da Administração Pública. Nomeaçõesmotivadas apenas pelo vínculo familiar prejudicam o nomeante e opróprio nomeado, na medida em que desestimulam este de qualquercompetição que o levaria a crescer pelos seus méritos próprios.

A história demonstra, com riqueza de detalhes, serem, quandomuito, lembrados pelo reduzidíssimo grupo dos favorecidos, aquelesque se servem do poder para garantia da estabilidade, no futuro, dedescendentes ou colaterais. Assumem o risco de serem socialmentehostilizados apenas para assegurar aparente tranqüilidade aos entesmais caros.

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Urge solidificar a idéia de que ao homem público não importaapenas a lembrança sempre suspeita da própria família. Deve buscar oreconhecimento de sua utilidade pela sociedade que, em determinadomomento, conferiu a ele uma parcela do poder para ser bem utilizadoem proveito do grupo social.

O respeito circunscrito à família é muito pouco ou nada repre-senta para o homem que exerceu funções relevantes na vida. Traduz,sim, o âmbito de sua visão ao tempo em que detinha o poder: limitadaao protecionismo do próprio clã.

Na medida, porém, em que o tempo e o parentesco se distanciam, osuposto respeito desaparece, emergindo a sensação de vergonha nos des-cendentes mais lúcidos e mais distantes. Ou será motivo de glória para oneto de alguém que teve como ação marcante, na vida pública, a garantiado emprego de parente em cargo para o qual não detinha mérito algum?

Basta uma reflexão isenta para concluir que a quase totalidadedaqueles que detiveram o poder no passado recente ou distante sãoresponsáveis pelas amarguras vivenciadas atualmente pela sociedadebrasileira. Construíram eles uma nação que prima pela desigualdade,um abismo entre ricos e pobres, em que a estes não é assegurado qual-quer direito a uma perspectiva de vida digna.

Anualmente, os jornais de todo o Brasil repetem esta manchete:“Crianças estão fora da escola por falta de vagas”. A matéria veiculadaesclarece serem crianças com idade para cursar séries do pré-escolar eprimeiro grau. Nenhuma alusão, entretanto, fazem ao fato de ser oMunicípio, no caso, o responsável pela edificação de escolas para abrigaressas crianças. Pior ainda, ninguém se lembra de que o Município acha-se edificando outras obras menos prioritárias, inclusive com denúnciasde superfaturamento comprovado. Não ocorre reação da sociedade àaltura dos danos decorrentes dessa subversão de valores. O protesto serestringe aos pais cujos filhos acabam mesmo sem escola.

Em qualquer país do mundo cujo governante tivesse inteligência eboa-fé, em tal circunstância, aquela obra somente seria construída de-pois que tivesse ele fornecido matrícula para todas as crianças em idadeescolar.

Mas uma praça ou um viaduto, por exemplo, sedimentará, semdúvida com mais intensidade, na mente dos munícipes, a lembrança

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do governante que a executou. Os próprios pais dos alunos excluídos,organizadores do protesto pelas vagas, sequer se lembram de questio-nar a inversão de prioridade. A passagem pela escola levaria aquelescarentes para muito além da praça que a substituiu. No mínimo, paraum existir mais digno.

A subversão de prioridade geralmente não acontece à toa. Sempreconvive em harmonia com a corrupção. As obras supérfluas costu-mam servir de instrumento para enriquecimento ilícito ou para favorecerdestinatários específicos em detrimento da coletividade.

Não se decreta prisão de quem desvia dinheiro da educação, noque pesem a gravidade e os prejuízos decorrentes desse gesto. Ninguémse dá conta de sua participação, às vezes até decisiva, na grave cumplici-dade consistente em manter no gerenciamento do Poder Público pessoacomprovadamente sem probidade.

2. Os danos do governante ineficienteaos descendentes

Há outro enfoque a merecer meditação dos detentores do podernos seus diversos segmentos. Se alguém se dispusesse a levantar a árvoregenealógica de muitos dos mendigos e desabrigados, que vivem emcondições subumanas em nossas cidades, provavelmente acabariadetectando, entre alguns de seus ascendentes, pessoas com poder decomando no grupo social de sua época.

Nessa ordem de idéias, o governante do passado, com sua arro-gância, ação clientelista e limitada noção de interesse público jamais sepreocupou em legar um mundo melhor para todos. Sua preocupação,por certo, restringia-se aos parentes próximos e aos correligionários,esquecido de que suas ações se refletiriam, futuramente, na sociedadeintegrada por seus netos, bisnetos, etc., cujo destino melancólico jamaisfora capaz de imaginar.

Uma consciência crítica ou uma avaliação a partir dos exemplosrepassados acabam levando, por exemplo, o jovem adolescente assaltadoà indagação de não ter o seu infortúnio como causa eventuais ações deseu avô ou bisavô, que, durante o tempo em que exerceu função pública,

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deixou de aplicar corretamente dinheiro na educação, para favorecerparentes e amigos, visando a assegurar sua sobrevivência política, emdetrimento do interesse da coletividade da qual era, então, porta-voz.

As seqüelas que exibimos não caíram do céu como castigo nemvieram do inferno. Foram geradas, muitas vezes, pelos próprios ascen-dentes das vítimas indefesas dos malfeitores que hoje assaltam, matame intranqüilizam a sociedade. Muitos, ao exercerem o poder no passado,esqueceram completamente que os seus descendentes poderiam amar-gar, no futuro, o mau exemplo ou a ostensiva falta de compromissocom o interesse público no seu agir, sobretudo no desempenho dasmúltiplas atividades que compunham o dia-a-dia do exercício da funçãoque detiveram.

O presente, em qualquer nação, é uma síntese da boa ou mácondução daqueles que no passado estiveram à frente de seu comando.O caos de hoje é uma conseqüência das distorções de ontem, quereclamam correções para não persistirem no amanhã.

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CAPÍTULO VI – ATAQUE AOS COFRES PÚBLICOS

1. FRAUDE E IMPUNIDADE NOS TÍTULOS EMITIDOS PARAPAGAMENTO DE PRECATÓRIOS; 2. ACOBERTAMENTO DOS CRI-MES, PELAS MAIORIAS, COM ESTÍMULO À IMPUNIDADE; 3. PO-DERES AO SENADO PARA CASSAR MANDATO DE GOVERNADO-RES; 4. INCOERÊNCIA NA SOLIDARIEDADE A GOVERNO PER-DULÁRIO; 5. CPI E CORPORATIVISMO; 6. NARCOTRÁFICO APU-RADO EM CPI; 7. EXEMPLO DE MÁ-FÉ EM CPI.

1. Fraude e impunidade no caso dos precatóriosUtilizando-se do disposto no art. 32 do Ato das Disposições Cons-

titucionais Transitórias, diversos Estados e Municípios brasileiros emitiramtítulos públicos para pagamento de precatórios – ordens para pagamentode débitos decorrentes de condenações judiciais irrecorríveis –, protago-nizando uma sucessão de fraude, farsa e impunidade inaceitáveis em qual-quer país que almeje o progresso.

Lê-se no dispositivo de que se utilizaram algumas autoridades paraa consumação do ilícito que chocou a nação:

“Ressalvados os créditos de natureza alimentar, o valor dosprecatórios judiciais pendentes de pagamento na data dapromulgação da Constituição, incluído o remanescente de jurose correção monetária, poderá ser pago em moeda corrente,com atualização, em prestações anuais, iguais e sucessivas,no prazo máximo de oito anos, a partir de 1.º de julho de 1989,por decisão editada pelo Poder Executivo até cento e oitentadias da promulgação da Constituição.

Parágrafo único. Poderão as entidades devedoras, para cum-primento do disposto neste artigo, emitir, em cada ano, noexato montante do dispêndio, títulos de dívida pública não com-putáveis para efeito do limite global de endividamento”.

Mantendo velha tradição, na Administração Pública, de deturpara finalidade das normas, prefeitos e governadores passaram a elevarartificialmente o valor de seus débitos decorrentes de condenações

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judiciais, ao ensejo de justificar a emissão de títulos da dívida pública,para saldá-los nos termos autorizados pelo parágrafo único daquele ar-tigo da Constituição transcrito. Uma sucessão inacreditável de crimesfoi perpetrada graças à má-fé desses gestores, que contaram, para tanto,com a omissão do Banco Central e a cumplicidade do Senado daRepública para obtenção da autorização para emissão daqueles papéis.Tudo isso motivado pela certeza da impunidade.

Uma CPI foi instalada no Senado, comprovando documentalmentea série de crimes contra o Erário. A elucidação dos ilícitos e a constataçãodas respectivas autorias, ao invés de gerar otimismo na sociedade, desesti-mulando futuras práticas de delitos contra a Administração, acabou porgerar frustração, desesperança e motivação para novas fraudes.

2. Acobertamento de crimes pelas maiorias:estímulo à impunidade

Descobertos os crimes e os criminosos, entre governadores e pre-feitos, nenhum deles foi destituído do mandato. Continuaram, sobretudoos governadores, a apresentar-se com toda a desenvoltura perante osadministrados, sem nenhum constrangimento, prestigiados pela maioriaparlamentar que detinham nas respectivas assembléias legislativas.

O exemplo legado não poderia ser mais grotesco. O crime deresponsabilidade deixa de existir pelo simples fato de o governantedeter eventual maioria na casa legislativa competente para processá-lo.A cumplicidade, no caso, ampliou o universo dos delinqüentes aosolhos do cidadão perplexo, para nele incluir também aqueles omissosjulgadores que se subtraíram ao dever de aplicar a sanção prevista nalei, sob o fundamento vergonhoso do vínculo partidário comum aosinfratores. O descaso em relação ao eleitor foi total, confirmando aobservação de Goethe: “Não nos preocupamos sobre se o povo temdireito de nos depor: apenas nos precavemos contra (a possibilidade)de ele cair na tentação de o fazer”.

Para ser mais preciso, o único chefe de governo envolvido no“Escândalo dos Precatórios”, que consumiu longas horas de veiculaçãona mídia, a ser submetido a processo político foi o governador de Santa

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Catarina. Seu crime não fora, segundo as conclusões da CPI do Senado,nem maior nem menor do que os praticados pelos demais governantesenvolvidos. Sua única desgraça foi não contar, ao contrário dos compa-nheiros de delito, com uma maioria na Assembléia Legislativa do seuEstado. Exclusivamente esse fato serviu para manter viva, apenas ali,durante mais tempo, a perspectiva de aplicação das sanções previstas nanorma que restou infringida por todos. A discriminação em relação aum único réu provocou, entretanto, retrocesso maior.

Em vez de exigir a sociedade a aplicação da sanção a todos osgovernantes infratores, indignou-se com a restrição das possíveispenalidades apenas ao então governador de Santa Catarina. Editoriaisavolumaram-se nos jornais, em diversos pontos do território nacional,insurgindo-se contra a discriminação. De réu encalacrado por docu-mentos irrefutáveis, coletados no curso da apuração da CPI dos preca-tórios, passou à condição de vítima de uma assembléia “ávida pelocumprimento da lei”. Mais uma vez, por fundamentos diversos, leialguma foi cumprida. Os envolvidos ficaram mais ricos e a conta foipassada à sociedade, mediante rolagem da dívida frente à União Federal.

Os prefeitos, por sua vez, são julgados, nos crimes comuns e de res-ponsabilidade, pelo Tribunal de Justiça. Não há necessidade de autorizaçãoda Câmara para tais processos. Não se tem, porém, notícia de qualquercondenação em decorrência daqueles ilícitos relacionados a precatórios.

Percebe-se, não é demais reiterar, que, na compreensão da socie-dade brasileira, “ladrão” é apenas aquele que subtrai a bolsa de alguémno centro da cidade. Este, sim, merece discriminação. Quem, porém,subtrai dinheiro público no desempenho da função, na ótica tendenciosaconstruída pela elite dominante, não é ladrão, é ímprobo. Pode tomarconta dos cofres públicos, inclusive por via de reeleição.

O diagnóstico de Montesquieu, para solução desse drama, nãoadmite complacência:

“Quando uma república está corrompida, só se pode reme-diar aos males que nascem extirpando a corrupção e trazendode volta os princípios: qualquer outra correção ou é inútil ouconstitui um novo mal”. (O Espírito das Leis, Martins Fontes,1996, p. 129.)

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3. Poderes ao Senado para cassar mandato de governadorNo episódio dos precatórios de Santa Catarina, perderam, enfim,

os contribuintes, como sempre lesados por gestores espertalhões.Abrigados pela chancela da impunidade, assegurada em crime contraa Administração Pública por parlamentares sem qualquer compro-misso com os seus representados, todos os envolvidos encerraramcom pompa e circunstância o mandato. Parecia não haver existidoirregularidade alguma.

Perdeu, sobretudo, a geração dos novos militantes na política,por assistir ao exemplo frustrante de exaltação a um governador infra-tor, motivada pela simples falta de instauração de processo contra osdemais autores protagonistas do mesmo delito.

Tamanho constrangimento poder-se-ia evitar, no futuro, por meiode emenda à Constituição, atribuindo poderes ao Senado Federal para,assegurada a ampla defesa, cassar o mandato de governadores ou pre-feitos envolvidos em crimes lesivos ao Tesouro Nacional apuradosnaquela Casa, como no caso do Escândalo dos Precatórios.

Afinal, seus membros representam não o povo propriamente,mas os Estados-membros e o Distrito Federal. Tal emenda acresceria,por exemplo, à competência privativa do Senado, prevista no art. 52 daConstituição da República, o seguinte inciso: “processar e julgar gover-nadores e prefeitos nos crimes de responsabilidade cuja prática resulteem prejuízo para a União”.

4. Incoerência na solidariedade a governos perduláriosParalelamente à adoção de providências visando ao equilíbrio das

contas públicas, para preservação da estabilidade econômica, seguiu-se,entretanto, a federalização de dívidas de governos estaduais ou municipaisperdulários. Essa postura apresentava-se na contramão das medidas desaneamento administrativo adotadas, como se existissem dois comandosno governo central: um, com ações voltadas para a compatibilizaçãoentre receita e despesa; outro, muito distante, assumindo dívidas deterceiros irresponsáveis, sem qualquer preocupação com o equilíbriobuscado pelo primeiro.

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Na década passada, governadores do Estado de São Paulo, para bemilustrar a exposição do problema, desviaram ou comprometeram, irrespon-savelmente, bilhões de reias do Banespa – Banco do Estado de São Paulo.Somados esses montantes a outros débitos decorrentes de má gestão, a dívidadaquele Estado ultrapassou dezenas de bilhões de reais.

Em vez de aqueles que elegeram, livre e soberanamente, seusgovernantes arcarem com os efeitos da má escolha, acabaram recebendoum prêmio: a transferência do débito para a União, sob a denominaçãode “rolagem da dívida”. Seguramente, as ponderações de Anaxágoras,filósofo grego, sobre o excesso de confiança em pessoas sem probidadenão foram ainda bem assimiladas pelo nosso grupo social: “Se me enga-nas uma vez, tua é a culpa. Se me enganas duas vezes, minha é a culpa”.

Os contribuintes dos demais Estados brasileiros acabaram, assim,convocados, sem direito à recusa, a suportar o gigantesco desperdíciode dinheiro de alguns governantes irresponsáveis de São Paulo.

Não bastasse aquele valor exagerado produzido pelo governoestadual, a Prefeitura de São Paulo, na mesma linha de certeza daimpunidade, fraudou, na década de 90, a emissão de precatórios, pro-vocando um desvio de aproximadamente seis bilhões de reais.

O poder municipal paulista daquela época, porém, não hesitouem buscar solidariedade para pagamento dos danos gerados por ver-dadeiras pragas que tiveram acesso aos seus cofres. O Banco do Brasilvoltou a ser lembrado para ficar com os créditos dos precatórios, queforem recusados por todos os bancos particulares.

Resultado prático: o Banco do Brasil, reiterando jargão típicoda velha guarda, “não pode quebrar”. A União, então, outra vez assu-miu o mais recente e acintoso rombo dos políticos da velha guardapaulistana e, invocando a rubrica técnica “Refinanciamento da dívidado Município de São Paulo”, diluiu o encargo de seu pagamentoentre todos os brasileiros.

Não que falte solidariedade àquele Estado tão rico e progressista. Éque dói na alma do contribuinte constatar o encaminhamento do seu dinhei-ro para pagamento de fraude criminosa, exageradamente elevada, sem quenada, absolutamente nada, se faça para interceptar o acesso ao poder dosresponsáveis pela sua prática. Melhor seria suportar o próprio eleitor osefeitos de sua má escolha. Somente assim sentiria motivação para retificá-la.

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Paralelamente, não se visualizou, no desperdício acentuado do di-nheiro público, a causa determinante de empresários não desejarem per-manecer com suas empresas onde se lida mal com os tributos por elespagos. Alguns políticos elegeram os incentivos fiscais dos outros Esta-dos como fonte geradora de suas mazelas.

Encontraram, de forma muito cômoda, uma causa simples demaispara deixar, sem um só dia de cadeia, aqueles que se excederam noesvaziamento dos cofres em que foram armazenados os bilhões detributos pagos por seu vibrante povo. Ninguém se sente motivado apagar tributo que será desviado sem qualquer punição.

Santa Catarina, por sua vez, também participou da “farra dosprecatórios”. Sem recursos, apressou-se em obter da União ofinanciamento de sua carteira previdenciária. Em meados de 1999, ser-lhe-iam repassados cerca de 700 milhões de reias, cujo trunfo para obtê-lo foi justamente deixar sem punição exemplar os que se locupletaramcom a emissão fraudulenta daqueles títulos.

Nessa ordem de constatação, será quase impossível obter o Paísequilíbrio nas suas contas. É imperioso difundir a conscientização deque a Federação não pressupõe solidariedade na reparação dos danoscausados aos Estados por seus governantes incompetentes, corrup-tos ou perdulários. Exclusivamente quem escolhe seus gestores devesuportar as conseqüências prazerosas ou desafortunadas dessa opção.

Enquanto persistir esse paternalismo incestuoso, autêntica cum-plicidade indireta com patrocinadores das fraudes, constatar-se-á umaestimulante repetição de ilícitos. Afinal, tudo o que se pratica no exer-cício do poder é exemplo positivo ou negativo para as gerações futuras.

É imperioso um endurecimento em relação às reivindicações paracobertura de dinheiro desperdiçado por mau gerenciamento. Sem isso, seráinútil ou pouco eficaz a reestruturação dos outros segmentos da Administra-ção Pública. O governo federal continuará deficitário, e o mercadointernacional descrente na capacidade de o Brasil honrar os compromissos.Fecha-se o vazamento do canal de escoamento do dinheiro num ponto –pagamento de salário, por exemplo – e abre-se outro maior: pagamento derombos sem qualquer sanção aos infratores.

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5. Corporativismo em CPIHá, porém, muitas pedras no caminho do contribuinte brasileiro

a serem retiradas para que ele possa ter esperança. Depois de apuradostodos os crimes atribuídos à “máfia dos precatórios”, os senadoresvotaram o relatório do senador Roberto Requião, incriminando gover-nadores e prefeitos pela prática de crime de responsabilidade.

Imediatamente após essa votação, um grupo de senadores,liderados por Jáder Barbalho, propôs a votação de outro relatório,retirando o nome de todos os integrantes do Executivo estadual e muni-cipal envolvidos naqueles crimes. Indignado com seus pares e particu-larmente frustrado com Barbalho, Requião qualificou o Senado daRepública de “casa de tolerância”. Em 2001, Jader Barbalho, após ver-gonhoso debate com o então senador Antônio Carlos Magalhães, foipremiado com a Presidência daquela Casa.

Indagado se apenas a tolerância teria levado os senadores a acolheroutro relatório, Requião foi enfático:

“Tolerância e vinculação a interesses. Não foram emendas,mas encomendas. É só ver a origem de cada. Em algumas, acoisa passa de amizade. É cumplicidade com os interesses quelevaram à redação das emendas”. (Diário do Nordeste, ediçãode 27.7.97, p. 6.)

Sob o título “Desmoralização política”, a Revista Veja, ediçãode 30.7.97, expressou o sentimento de indignação do povo brasi-leiro em relação ao episódio. Contestou os políticos que atribuemsua má fama à imprensa, esclarecendo haver publicado 76 páginassobre o assunto, indagando, enfaticamente, “para quê?” e explici-tando a resposta:

“Para, na semana passada, os senadores providenciaremum amplo cambalacho, produzindo um relatório em que todosos políticos são inocentados. Inocentados por conveniênciados partidos, e não porque a Justiça tenha prevalecido. É umacinte que contribui mais para a desmoralização dos políticosque qualquer reportagem”.

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Não convém ter ilusão. Nenhuma democracia sobrevive por muitotempo quando tem, na sua cúpula, políticos com o perfil daqueles “ino-centadores”. Além da falta de apreço pelo próprio nome, tais políticosdeixam bem patente seu desapreço para com o interesse público. Jamaisoptarão pela causa coletiva se, na análise do fato, algo de pessoalmenteproveitoso puderem extrair.

Apostam, para assim agir, na incapacidade de avaliação dos seuspróprios eleitores. É que, via de regra, já lhes outorgaram outros man-datos, a despeito da linha de nocividade comum nas ações durante oexercício de todos eles. Para quê dispensar atenção ao eleitor distante,se lhe convence a simples alegação de falta de prova para chancelar a“inocência” do político cuja própria face estampa a simbologia da cor-rupção, ratificada pelo patrimônio avolumado em decorrência do simplesexercício do poder?

Após contundente reação da sociedade, deliberou o Senado pelaprevalência do relatório da CPI, em que apontados os nomes dos res-ponsáveis pelos ilícitos apurados. Nenhum cidadão tem a ilusão desupor que eles sofrerão qualquer sanção.

Aliás, tem provocado mal-estar, na sociedade brasileira, as infin-dáveis explicações de ausência de prova para condenar acusados dedesviarem dinheiro público ou a invocação de omissão da lei para libe-rá-los de qualquer punição. A cada dia, de forma angustiante, percebe-seque somente pobres e principalmente negros são, de fato, os destinatáriosdas sanções penais. Em relação a estes, a ordem jurídica parece completa,sem lacuna ou omissão. As provas sempre são satisfatórias para gerar oconvencimento necessário à elaboração de sentença, impondo-lhes pe-nalidades.

A cultura da impunidade se acha estimulada na própria Consti-tuição da República, ao proclamar, no art. 5.º, LVII, que “ninguémserá considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penalcondenatória”.

Fácil compreender serem quase sempre “inocentes” os que prati-cam crimes contra a Administração Pública. Com efeito, ou sãoabsolvidos por falta de prova, beneficiados com a prescrição da pena,nos respectivos processos, ou, finalmente, quando inevitável a conde-nação, esta acaba não ocorrendo, devido à morte do acusado.

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Em junho de 1999, o Senado aprovou uma resolução exigindoque os títulos emitidos para pagamento de precatórios somente fossempagos após manifestação do Poder Judiciário sobre sua regularidade.Aprovada a norma, o presidente do Banco do Brasil compareceu àquelaCasa, em pânico, assegurando que os senadores quebrariam aquelainstituição financeira, porquanto os títulos decorrentes da fraude aliforam parar.

Sensibilizados, os senadores concordaram em transferir para oscontribuintes o pagamento daqueles papéis fraudulentos, evitando as-sim que o Banco do Brasil suportasse as conseqüências da sua recorrente“inocência”. Diante de tais fatos, pergunta-se: Qual a razão de o Bancodo Brasil ser o destinatário final daqueles papéis fraudulentos? Por quenenhum banco particular aceitou ficar com os tais precatórios?

A Prefeitura de São Paulo, maior emissora daqueles títulos nadécada de 90, após locupletar-se da fraude, acabou favorecida, repas-sando aos contribuintes dos outros Estados brasileiros os encargos dopagamento da farsa comprovada, apurada e sem sanção nenhuma.

Aliás, Miguel Arraes, ex-governador de Pernambuco – Estadotambém envolvido na emissão dos títulos fraudulentos –, derrotadonas eleições de 1998, deslocou-se, pouco depois, a Minas Gerais parafazer pregações cívicas ao lado do governador Itamar Franco, quandoeste decretou uma impensada e inoportuna moratória “à mineira”. Afraude dos precatórios era coisa do passado; o sepultamento puro esimples do assunto estimulava o aplauso ao calote mineiro.

Este, o Brasil que está a ingressar no novo milênio. Seus diri-gentes, como ficou bem patenteado na CPI dos Precatórios, cultivama mentalidade dos políticos do início do século passado. Fazem qual-quer coisa para preservar o poder. Toda ilicitude é sempre privativade membro de partido contrário, e a maioria parlamentar só perce-be irregularidade em conduta de adversário. Mesmo após sucessivosmandatos, políticos com esse perfil acabam, porém, literalmente es-quecidos. Aliás, esquecidos não, porquanto eles próprios e seus pa-rentes amargarão a má fama que a minoria esclarecida silenciosamentedissemina nos seus redutos eleitorais. A angústia de ter sido o quefoi, infelizmente, chega tarde demais, quando os danos causados poreles, inclusive a si próprios, já são irreparáveis.

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Em março do ano 2000, a ex-esposa do então prefeito de SãoPaulo, em entrevista pela televisão, informou à nação sobre negociaçõesque teriam ocorrido com políticos integrantes da CPI dos Precatóriospara excluir o Município de São Paulo do relatório daquela comissão. Apopulação acabou submetida a duplo desapontamento: pagou a contada fraude e o preço da “ïnocentação” dos mentores da farsa.

6. Narcotráfico apurado em CPIAcostumada com freqüentes encenações em comissões parlamen-

tares de inquérito, como a CPI dos Precatórios e a do Orçamento – asquais, após toda a comprovação dos crimes denunciados, tiveram assuas conclusões arquivadas e esquecidas, sem que os acusados sofressemnenhuma sanção penal –, a sociedade brasileira não deu, inicialmente,nenhuma atenção para a CPI do Narcotráfico.

Composta por muitos parlamentares recém-chegados aoCongresso, angustiados com a inquietação da sociedade brasileira dianteda indisfarçável tolerância com a ilicitude, seus integrantes passaram aagir sem muita visibilidade, porquanto a mídia encontrava-se maisvoltada para outras apurações realizadas pelas CPIs do Judiciário e doBanco Central.

À medida que deputados, policiais e empresários envolvidos comcrimes de diversos tipos começaram a ser denunciados, cassados e le-vados à prisão, toda a sociedade passou a ter a sensação de que o Paíscomeçava a reagir contra infratores enquistados no poder.

Estrelismo, excessos, até mesmo abusos foram objeto de denún-cias e críticas de alguns à atuação daquela CPI. Entretanto, neste Paísjamais havia se consumdo, de forma efetiva, uma reação simultâneacontra diversos setores da elite envolvida com o crime.

Políticos que aterrorizavam a todos, policiais que faziam do tra-balho um meio para acobertamento de seus crimes, enfim, diversas egraves distorções na cúpula da sociedade brasileira, tudo isso veio àtona com a simples determinação de alguns em apurar ilícitos envol-vendo drogas. No combate ao crime não há empate. Ou se vence ou seperde. Neste caso, surgem as corporações assemelhadas à máfia e tudose degenera. A Colômbia é o exemplo mais próximo e ilustrativo.

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Restou claro, após as apurações daquela CPI, que nenhum criminosobem sucedido age sozinho. Necessariamente, terá a chancela da polícia ede algum juiz sem compromisso com a magistratura. A prisão de dele-gados e denúncias contra magistrados, inclusive desembargadores,deixou bem nítido o organograma das organizações criminosas. Sem omínimo de cumplicidade com integrantes do Poder Público que têmatribuição específica de combatê-las, jamais conseguiriam agir por longotempo.

Os especialistas em matéria de segurança pública são categóricos nosentido de admitir a conivência de autoridades para a propagação do crimeorganizado. Policiais, juízes, desembargadores, prefeitos, governadores,deputados, procuradores ou qualquer ocupante de função pública que pra-tique ilicitude grave no desempenho do seu ofício deve ser, efetivamente,daquela afastado, após observado o direito à ampla defesa.

No Paraná, de uma só vez, em fevereiro do ano 2000, foramafastados mais de 30 policiais civis, inclusive o delegado-geral da polí-cia, após uma simples audiência promovida por integrantes da CPI naAssembléia Legislativa daquele Estado.

Ficou bem patenteado, após a expedição de mandado de prisãocontra o ex-delegado-geral, que tudo decorre da inoperância das cor-regedorias. Na instituição em que a corregedoria é atuante, isenta efirme, não há tempo para a corrupção nem para a criminalidade con-solidar-se. A permanente aplicação de sanção àqueles que infringem asnormas de conduta serve de advertência e desestímulo aos demais.Nessa corporação tende a florescer, em conseqüência, mais seriedade,fruto da certeza da aplicação da lei.

Paralelamente, onde a corregedoria não atua de forma eficiente,seja no Ministério Público, no Judiciário ou na polícia, os abusos eilícitos de toda ordem tendem a multiplicar-se, aniquilando a instituiçãomais cedo ou mais tarde, por submetê-la irremediavelmente ao vexamea que se viu exposta a polícia do Estado do Paraná, no início do ano2000, quando toda a sua cúpula acabou denunciada.

A tarefa da polícia, de combater o crime, é profundamente difícil.Caso nesta se encontrarem infiltrados policiais vinculados a qualquerorganização delituosa, a sociedade estará derrotada. Pagará seus saláriospara ter serviço contra si própria.

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Não pode haver a mínima condescendência em relação à práticade ilicitude em atividade essencial. Ou atua o servidor público, em todasas sua ações, em sintonia com o Direito, para satisfazer os anseios dapopulação, que lhe paga o salário, ou deve ser afastado do cargo aopraticar qualquer ilegalidade de maior gravidade. Nesse particular, atolerância com os ilícitos graves deve ser sempre zero. Isso previne edesestimula sua propagação.

7. Exemplo de má-fé em CPIA Constituição Federal prevê, no art. 58, § 3.º, a instalação de

CPI, nestes termos:

“As comissões parlamentares de inquérito, que terão pode-res de investigação próprios das autoridades judiciais, além deoutros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serãocriadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, emconjunto ou separadamente, mediante requerimento de umterço de seus membros, para apuração de fato determinado epor prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encami-nhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabi-lidade civil ou criminal dos infratores”.

As comissões de inquérito formadas no Parlamento destinam-seà apuração de fato determinado, com a observância de todas as nor-mas tendentes à garantia da ampla defesa assegurada na Constituiçãoaos acusados em processo judicial ou administrativo.

Atuam essas comissões por delegação da respectiva Casa Legis-lativa, prevalecendo, na conclusão das apurações, a posição da maioriados integrantes desse colegiado. O fato de o Parlamento autorizar aconstituição de qualquer CPI não legitima os seus integrantes aodescumprimento das normas elementares que disciplinam toda e qual-quer relação processual, notadamente as relacionadas com a suspeição.

O objetivo de qualquer CPI não é a satisfação dos caprichospessoais daqueles que propõem a sua instalação, mas a busca da verdaderelacionada com o fato objeto de apuração, para posterior aplicação,pelo Judiciário, se for o caso, das sanções pertinentes. É necessário cautela

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para não comprometer a utilidade desse notável instrumento à disposiçãodo Legislativo para apuração de ilícitos.

Um exemplo típico de má-fé, abuso do poder e desvio de finali-dade, em CPI, merece ser aqui exposto para demonstração da utilizaçãodistorcida desse mecanismo de investigação, de inegável valor nademocracia.

Provocada pelo sindicato dos empregados da Companhia de Águae Esgoto do Ceará (Cagece) –, a Câmara de Vereadores de Fortalezainstalou, em 1998, uma CPI para apurar supostas irregularidades numcontrato celebrado entre uma empresa e aquela estatal. Como relator daCPI foi designado um vereador integrante do sindicato interessado, cujojornal destacava o seu nome como membro da diretoria daquela insti-tuição classista.

A presidente da empresa investigada argüiu a suspeição daquelerelator, tendo em vista o seu indisfarçável interesse na conclusão dorelatório – este, aliás, favorável às conveniências do sindicato, o qualrepresentara categoria profissional em que estava instalada toda a suabase eleitoral. Em qualquer democracia, o princípio da ampla defesaobsta que alguém interessado no resultado de um processo participedo seu julgamento, sobretudo como relator.

Reeditando os tempos de total parcialidade da ditadura, em querelator e julgador eram escolhidos em função do interesse na condena-ção, a suspeição foi rejeitada, permanecendo o líder sindical como relatorda CPI instalada por iniciativa de sua corporação classista.

Colhidos todos os depoimentos, antes mesmo de submeter o rela-tório à apreciação dos integrantes daquela comissão, o relator o entre-gou à imprensa. Em manchete de primeira página, davam os jornaisdestaque para as suas conclusões, entre as quais um suposto prejuízo aser suportado pela estatal com a contratação da empresa sob averiguação.

Levado a exame dos demais integrantes da CPI, ficou constata-da a total inconsistência do relatório, a má-fé que motivou suaelaboração e divulgação, com a conseqüente execração de pessoasinocentes. Perceberam, então, os próprios integrantes daquela co-missão, ainda que tardiamente, a falta de isenção do relator. Delibe-raram que ele retificasse o relatório para excluir de seu conteúdo aquiloque não fora apurado.

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Entretanto, desapareceu aquele, com o seu relatório. Enquanto isso,o sindicato, em nota de meia página, exaltava sua atuação. Ao ensejo depromovê-lo politicamente, elogiava sua postura na CPI, destacando suasconclusões sabidamente inverídicas.

Os diretores da empresa estatal, diante da demora na exibição dorelatório, foram obrigados a contratar advogado para compelir o rela-tor e a própria CPI a apresentarem a conclusão dos trabalhos.

Após ameaça de intervenção judicial, o relatório foi, finalmen-te, apresentado, com as conclusões totalmente diferentes daquelasmostradas à imprensa. Uma agravante inusitada chamou ainda maisa atenção: o mesmo relator elaborou e subscreveu os dois relatórioscontraditórios.

Dois processos, um para reparação de danos morais e outro,criminal, para apuração do crime de calúnia, resultaram em decorrên-cia da flagrante má-fé daquele vereador, cuja suspeição jamais poderiaser recusada. O abuso de poder e o desvio de finalidade, na sua atua-ção, comprometeram totalmente a credibilidade daquela apuração.

A injustiça, no caso ilustrativo dessa CPI, levando à execração pes-soas inocentes, constitui-se um dos exemplos deploráveis de má utilizaçãodesses inquéritos parlamentares. O seu uso puramente político depõecontra os que se servem de tal mecanismo para promoção pessoal. Pro-jeta imaturidade e deformação do próprio caráter, que, por certo, já seprojetara em ações anteriores desses cidadãos descredenciados para oParlamento.

Uma coisa, porém, é certa. Ao administrador zeloso nocumprimento do seu dever, em contrapartida ao desconforto dessassituações momentâneas, provocadas por pessoas inconseqüentes, res-tará sempre a prevalência da justiça. O respeito final do grupo social,cuja serenidade é restabelecida com o tempo, é sempre uma constanteaos que se portam com dignidade no trato da coisa pública. A hones-tidade sempre prevalece, por maiores e mais hostis que sejam os meiosutilizados para desmoralizar os que a exercitam como dogma. Até por-que, como constatou Aldous Huxley, “os fatos não deixam de existirsimplesmente por serem ignorados”.

O interesse político é capaz de distorcer a verdade, conforme aconveniência de denunciantes, muitos dos quais sem nenhum escrúpulo.

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Cegos pelo ânimo de destruir, desmoralizar desafetos, alguns nãorelutam em socorrer-se da mídia para infernizar a vida de pessoas debem, lançando-as no descrédito, sem que as acusações resistam ao mí-nimo de confiabilidade. São os sádicos na militância política, que sedestroem, vitimados pelo excesso do seu próprio veneno.

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CAPÍTULO V – A EXPRESSÃO “POLÍTICA”

1. ABRAGÊNCIA DA EXPRESSÃO “POLÍTICA”; 2. A CRONOLOGIADAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS; 3. AS REFORMAS, SEM TRAU-MA, DA CONSTITUIÇÃO; 4. O FISIOLOGISMO INCORPORADO NACONSTITUIÇÃO.

1. Abrangência da expressão “política”

A palavra “política” contém uma amplitude que precisa ser melhordelimitada na sociedade brasileira. Origina-se tal expressão do subs-tantivo grego polis, significando tudo o que se refere à cidade; a própriaarte de governá-la. Nela se resume o conjunto de ações do Estado paracumprimento de suas atribuições. Por exemplo, quando se fala em“política econômica”, compreende-se a totalidade das diretrizes gover-namentais formuladas para maximização das riquezas do país. No casode “política de saúde”, o conjunto das ações visando à preservação dobem-estar da população diante da ameaça freqüente de doenças.

Como ficou assinalado, o poder político distingue-se dos demaispoderes porque possui o monopólio da força. Os políticos devem exer-citá-lo, como lembra Norberto Bobbio, para alcançar aquelas situaçõesconsideradas prioritárias para o grupo social em determinado momento.Em épocas de lutas sociais, lembra aquele festejado cientista político:

“...será a unidade do Estado, a concórdia, a paz, a ordem pública;em tempos de paz interna e externa, será o bem-estar, a prosperi-dade ou a potência; em tempo de opressão por parte de um gover-no despótico, será a conquista dos direitos civis e políticos. Istoquer dizer que a Política não tem fins perpetuamente estabelecidos,e muito menos um fim que os compreenda a todos e que possa serconsiderado como o seu verdadeiro fim: os fins da Política sãotantos quantas são as metas a que um grupo organizado se pro-põe, de acordo com os tempos e circunstâncias”. (Norberto Bobbio,Dicionário de política, 4. ed., v. 2.)

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Uma coisa porém é certa: todos os objetivos da política, todas asações que consubstanciam o seu exercício devem permanentemente con-vergir para o bem-estar coletivo. Nunca para proveito daquele que aexercita. Essa noção elementar precisa ser disseminada a partir dos ban-cos das escolas públicas e particulares.

Por exemplo, quando alguém desvia verba pública em proveitopessoal e, a despeito desse fato, invoca conveniência política para dei-xá-lo sem apuração, essa liberalidade não se acha inserida na abrangênciada expressão “política”. Trata-se, na verdade, de caso típico de con-descendência com ação criminosa, procedimento desabonador do ca-ráter de quem a invoca, demonstrando não apenas a sua cumplicidadeindireta com o delito, mas também o mau uso do poder que lhe foiconferido.

A arte de governar pressupõe liberdade plena para atuação política.É dizer, opção para escolha das ações a serem implementadas pelaAdministração por iniciativa e sob o comando do titular do poder.

Entretanto, reitere-se, qualquer que seja a ação a ser efetivadapelo Poder Público deverá sempre ter por objetivo a satisfação de inte-resse da coletividade.

Por isso, não pode o governante invocar “questão política” paraa edificação de um açude na propriedade de determinado chefe político.Tal procedimento não se acha compreendido na amplitude daquelaexpressão, por ser alheio ou repugnante ao interesse público. Afinal, aprópria existência do Estado somente se justifica pela sua permanentebusca de realização do bem comum.

Fácil, pois, compreender que o limite da atuação política dohomem público reside na compatibilidade ou não do seu ato com osanseios da população. Nesse passo, lembrava Aristóteles:

“Não é apenas para viver juntos, mas sim para bem viverjuntos que se fez o Estado. (...) O fim da sociedade civil é,portanto, viver bem; todas as suas instituições não são se-não meios para isso (...)”. (A política, p. 47.)

Assim, quando se exclui uma pessoa de processo em CPIexclusivamente por conta do seu vínculo político com os integrantesdessa comissão, no que pese a exuberância das provas incriminadoras,

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tem-se por configurado o uso indevido da política. Há, aí, flagrantedistorção na sua utilização.

Para evitar situação de constrangimento, o grande e verdadeirolíder político deve permanentemente reiterar aos seus liderados aadvertência de achar-se impossibilitado de afrontar a sociedade comações que lhe sejam danosas.

Uma vez praticadas ações ilegais, a preocupação com o seu efetivoacobertamento transformará o líder partidário em cúmplice do ilícito.Sua sorte acabará ficando a reboque do destino do fraudador. Se nadapuder vir à tona, em decorrência dos conchavos políticos, todos, aindaassim, perderão. Perderá, sobretudo, o grupo social, por haver confiadoem alguém incapaz de desvencilhar-se de quem causara danos ao pró-prio grupo, com a agravante de acobertá-los.

Outros, porém, sob a alegativa de estarem a fazer política, saema acusar irresponsavelmente seus desafetos. São destituídos de qual-quer sentimento de justiça. Para aparecer e captar votos, são capazesde sacrificar a própria mãe. Não lhes interessa a ciência prévia dosfatos, a comprovar a inocência ou a ausência de culpa do acusado.Interessam-lhes apenas os dividendos políticos da denúncia.

O tempo, entretanto, não costuma ser generoso para com estes.A má-fé, aflorada na própria exposição dos fatos, acaba provocando-lheso descrédito inerente aos medíocres. Assemelham-se aos cães, que,por morderem tudo, acabam mordendo o próprio dono, deixando-oimpossibilitado de fornecer-lhes a comida, imprescindível à sua sobre-vivência.

Por fim, na abrangência daquela expressão, pode-se inserir tudoo que não seja incompatível com a moral e com o interesse público.Em contrapartida, aquilo que for incompatível com a ética ou com asupremacia do interesse coletivo, uma vez implementado pelogovernante, deve-se compreender como degeneração no exercício daatividade política.

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2. A cronologia das Constituições brasileirasAs Constituições produzidas no Brasil após a Proclamação da

República não têm logrado a durabilidade que se espera de documen-tos dessa magnitude.

A Constituição de 1891 teve a primeira investida contra si lançadapelo marechal Deodoro, que rejeitou algumas emendas efetuadas pelaAssembléia a um projeto de lei, de sua autoria, decretando a dissoluçãodo Legislativo. Devido à resistência dos militares, comandados peloalmirante Custódio de Melo, foi ele compelido a renunciar, entregandoo cargo ao vice-presidente, marechal Floriano Peixoto. Essa resistênciagarantiu a duração daquela Constituição por 35 anos.

Todavia, exemplo mesquinho de prepotência no exercício dopoder acabaria por fazer escola no constitucionalismo brasileiro, mar-cado pela falta de compreensão do valor de uma Constituição.

Em setembro de 1926, o presidente Arthur Bernardes, sob vigênciade estado de sítio, violentou a Constituição, a pretexto de reformá-la.

Em outubro de 1930, outra agressão sofreu a Constituição. Umarevolução impôs ao País nova ordem constitucional emanada da força.

A Constituição promulgada em 1934 não resistiu mais do que trêsanos. Em 1937, Getúlio Vargas dissolveu o Congresso e revogou-a,impondo ao País a Carta Constitucional do Estado Novo.

Em 1945, nova violência à Constituição foi consumada. As ForçasArmadas depuseram o Chefe do Executivo, entregando o Poder ao Presi-dente do Supremo Tribunal Federal. Em 1946, outra Carta foi promulgada.

Em 1964, mais um golpe militar rompeu a normalidade constitu-cional. Em 1967, nova Constituição foi outorgada, mantendo-se em vi-gor até 1988, após várias dezenas de emendas.

Violência à Constituição de um país ocorre toda vez que suareforma, modificação ou substituição verificam-se por meios outrosnão previstos por ela própria para sua alteração.

No caso brasileiro, a força das armas tem sido utilizada, compreocupante freqüência, para substituição da ordem constitucional.Falta-nos – um breve exame da História está a atestar isso – uma maiorconscientização do sentido de uma Constituição e efetiva maturidadepara construir uma democracia duradoura.

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A Constituição de 1988, produzida num clima de plena liberdade,constitucionalizou tudo, na suposição de que a eficácia de uma normadepende apenas da sua localização no texto constitucional. Até jurorecebeu tabelamento na Lei Superior. Em conseqüência dessegigantismo, mais de 30 emendas já foram produzidas para a adequaçãode seu texto.

3. As reformas, sem trauma, da Constituição

Uma Constituição deve ser feita para durar. Para tanto, as situa-ções particulares devem ceder aos princípios gerais, sem qualquer pro-tecionismo específico a segmentos individualizados. O compromissodeve ser, exclusivamente, com o bem-estar geral.

É forçoso reconhecer, por outro lado, que os prédios, os livrosenvelhecem, o homem envelhece e o próprio Direito também se tornaobsoleto.

Quando a elaboração das normas integrantes da Constituiçãoficam à mercê de grupos ou corporações preocupados com a proteçãode seus interesses específicos, esta envelhece muito mais rapidamente.Os interesses pontuais das classes econômicas ou sindicais mudam apartir da ótica dos novos dirigentes, que, nelas, vão-se sucedendoperiodicamente. No que se refere à estrutura do Estado, devem inte-grar a Constituição apenas as normas que assegurem o seu melhorgerenciamento possível, qualquer que seja o ocupante do poder.

Uma constituição fica envelhecida ou torna-se ineficaz quandonão consegue responder satisfatoriamente à dinâmica da vida deum povo em determinado momento. Não se pode desconhecer,por outro lado, que todo governante tem a inclinação para modifi-car a Constituição, visando a dar respaldo à realização de tudo aquiloque imagina.

Entretanto, quando as ações de governo ficam exageradamenteengessadas, tornando-se impossível administrar e, conseqüentemente,atingir o progresso, a mudança da ordem constitucional é inevitável.Ou ocorrerá pelos mecanismos institucionais, nela expressamenteprevistos, ou seu envelhecimento, muitas vezes até precoce, impedirá a

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Nação de modernizar-se, de crescer e evoluir. Caso as maiorias constituídasmantenham-se insensíveis à necessidade de mudança, paulatinamente sepoderá fomentar um ambiente propício ao golpe, para edificação denova ordem constitucional.

Para envelhecer pouco ou perdurar muito, a constituição não deveser quilométrica. Deve, em cada uma de suas normas, dedicar,exclusivamente, atenção ao interesse coletivo. Nunca se deveconstitucionalizar aquilo que convém apenas ao corporativismo de gru-pos bem representados. Tudo nela deve convergir apenas para o bem-estar coletivo.

Uma das reformas constitucionais exigidas por João Goulart,antes do golpe de 1964, visava a permitir a desapropriação de imóvelpor interesse social, com possibilidade de pagamento da indenizaçãocom títulos da dívida pública. As indenizações, até então, eram pagasapenas em dinheiro. Pregava ele abertamente, como ainda hoje se faz,a necessidade de uma reforma agrária urgente.

O Congresso daquela época, porém, resistiu em reformar a Cons-tituição então vigente, e o presidente tentou buscar apoio do povo, nasruas, para pressioná-lo. Houve reação das facções conservadoras. Doconflito, a principal vítima foi a própria Constituição que o Parlamentorecusou-se a emendar.

A democracia sucumbiu, vítima da imaturidade para usufruí-la.Os militares tomaram o poder e ditaram nova Carta. Os parlamentaresque se recusaram a exercer o direito de simplesmente reformar a Cons-tituição acabaram, em determinado momento, perdendo o direito deexercer a própria função. Foram obrigados a dizer que fizeram a Cons-tituição que os militares efetivamente elaboraram e mandaram que elesvotassem.

Daí a necessidade de muito equilíbrio, bom senso e maturidade notrato dessa questão. Se, efetivamente, cada congressista assumir, perantea sua própria consciência, o compromisso de exercer sua atribuição vi-sando apenas à preservação do interesse geral, e não de segmentos indi-vidualizados do povo que representa, a constituição e as reformas cons-titucionais que se seguirem, produzidas em ambiente assim arejado, im-pedirão, naturalmente, o florescimento de tentações golpistas, perdu-rando longa e indefinidamente.

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Por outro lado, se o País é atrasado, não consegue progredir nemresolver o drama da pobreza de seu povo, deve identificar suas amarrase, se estas tiverem os alicerces erigidos pela própria Constituição, alterá-la,por meio dos mecanismos nela previstos, nos pontos desfavoráveis. UmaConstituição não deve brigar diariamente com a realidade do povo cujavida objetiva disciplinar, apenas para preservação das premissas de umconstitucionalismo ideal, que pressupõe a durabilidade de suas normas.As normas constitucionais devem mostrar-se aptas a responder às exi-gências do grupo social, sob pena de acabarem estimulando a desagre-gação da sociedade em que têm vigência.

Os conservadores, sobretudo os beneficiários de preceitos que pro-piciam situações de indisfarçável privilégio e conseqüente atraso, brada-rão com todas as suas forças contra qualquer modificação na Constitui-ção. Detectarão o caos, a insegurança e a instabilidade da ordem jurídica,às vezes até para ocultar seu inconformismo com a simples supressão denormas destituídas de razoabilidade, que jamais deveriam integrar seu texto.

Entretanto, se há pobreza no grupo social, permanente incompe-tência e desvio na condução da Administração, se o povo é excessiva-mente marginalizado, é evidente a necessidade de mudanças não somentena ordem jurídica, mas também de mentalidade na concepção de geren-ciamento do dinheiro público. O Direito fica necrosado quando não écapaz de perceber que, na rua, ninguém o respeita, nem se sente estímulopara propagá-lo, ou quando sua aplicação serve de entrave à prevalênciado bom senso.

4. O fisiologismo incorporado na ConstituiçãoO Brasil é vítima do fisiologismo constitucional. Ao contrário da

Constituição americana, cujos elaboradores tiveram como propósitoúnico garantir a prosperidade e o bem-estar das gerações futuras, aosnossos constituintes falta grandeza para excluir de nossas constitui-ções aquilo que convém apenas aos grupos de que são porta-vozes noCongresso Nacional.

A preocupação maior não tem sido, seguramente, construir normaperene e garantidora do melhor para a estabilidade da sociedade. A tônicaé preservar privilégios, dilatando o corpo da Constituição para inserir

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preceitos de cunho paternalista, que a fragilizam, impedindo-lhe umamaior durabilidade.

Sobre a produção da Constituição, enumerou o então ministro daJustiça, Paulo Brossard, em abril de 1987, o que detectara no ambientedo Poder Constituinte pós-ditatura – sem cultura, pois, de constitucio-nalismo, porquanto o autoritarismo nunca permite sedimentá-la:

“Fantasias, desordem mental, irrealismo exacerbado (...),ausência de uma reflexão mínima (...), total ausência de cri-térios, de seriedade”. (Esse inusitado Congresso... Léo daSilva Álves, p.156.)

Observe-se, nesse passo, para melhor ilustração, a cláusula doart. 7.º, XIX, da Constituição em vigor, que enumera, entre os direitosdos trabalhadores urbanos e rurais, “licença paternidade, nos termosfixados em lei”.

Um país em que a miséria é percebida em todos os pontos,necessitando de trabalho incessante para garantir condições melhoresde vida a seus habitantes, não pode demonstrar compromisso sérioperante as gerações futuras quando sua norma suprema se presta a abri-gar preceito incompatível com o conteúdo de qualquer Constituição comcaracterística de durabilidade.

O vigor fisiológico, entretanto, fica ainda mais nítido no enunciado do§ 1.º do art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: “Atéque a lei venha a disciplinar o disposto no art. 7.º, XIX, da Constituição, oprazo da licença-paternidade, a que se refere o inciso, é de cinco dias”.

Essa norma integra o texto constitucional, como as demais de cunhopaternalista, não por traduzir anseio dos vigorosos trabalhadores, que pro-duzem riqueza neste País, mas por uma imposição de parlamentares quetiveram voz altiva na Constituinte de 1988 e supunham, de forma equivoca-da, que melhores dias para o operariado adviriam de repouso asseguradonão em simples lei ordinária, mas na própria Constituição da República.

O repouso decorrente da paternidade foi constitucionalizado. Porcerto, a própria constitucionalização desse descanso explicará a exage-rada inércia legislativa, responsável pela manutenção da Consolidaçãodas Leis do Trabalhado, editada em 1.5.1943, totalmente defasada emrelação à realidade do século XXI.

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Sequer o crescente estímulo à informalidade – cerca de 60% domercado de trabalho – tem motivado uma reflexão para ajustá-la aostempos atuais, cujas peculiaridades são totalmente diversas daquelasconstatadas na época em que a CLT foi produzida.

Não convém cultivar lirismo inconseqüente se em determinadomomento, em uma sociedade, a vasta maioria dos seus integrantes des-cumpre ou não observa determinada norma; isso ocorre porque a con-duta nela prescrita se acha em descompasso com a realidade. A únicasolução possível é adaptá-la ao contexto da vida real, pela razão simplesde que, na briga com os fatos, a norma, por sua abstração e generalidade,leva sempre a pior.

Direito excessivamente descumprido é direito sepultado, porinsensibilidade do legislador ou falta de coragem para atualizá-lo àsexigências de determinada época. Tem vigência, mas não tem eficácia,fragilizando gravemente a ordem jurídica

Não bastasse isso, o próprio calote recebeu a chancela daConstituição. Por imposição da bancada ruralista, aglutinada no “cen-trão”, o art. 47 do Ato das Disposições Constitucionais Transitóriasafastou a incidência de correção monetária das dívidas de micros epequenos empresários, mínis, pequenos e médios produtores rurais. Agarantia constitucional da inadimplência – assegurada pelos constituintesaos seus próprios débitos – deixa bem nítida a escala de valores prio-rizados no texto. Mais que isso, exibe a dificuldade com quepermanentemente se depara esta nação para editar uma norma consti-tucional duradoura, livre do corporativismo e das conveniênciassubalternas que comprometem, inexoravelmente, a sua durabilidade,reclamando permanente reforma.

Direita e esquerda se digladiaram no Congresso, buscando inserirna Constituição de 1988, que elaboravam, não aquilo que efetivamente ga-rantisse a paz e a harmonia do povo brasileiro, mas o que julgavam conveni-ente para os interesses particulares dos seus respectivos grupos. Legaram,por isso, uma Constituição sem durabilidade, fadada ao descumprimento egeradora de gravíssimos e irreparáveis prejuízos às gerações futuras.

Ou haverá falta de respeito maior para uma geração do que pri-vá-la de professores capacitados para ministrar o saber? Pois o art. 19do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, como já se disse

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e não é demais repetir, assegurou estabilidade a todos os professores deprimeiro grau, mesmo aos contratados sem aptidão para o magistério,sem concurso público e sem observância de qualquer outro critério sériopara seleção de educadores. Bastava apenas contar com mais de cincoanos no exercício daquela função para ter assegurada a estabilidade.

É imperioso reafirmar que o fisiologismo, nesse particular, atingiuo ápice da nocividade. Professores contratados exclusivamente pelo res-paldo da indicação política, sem nenhuma aptidão para o exercício detão delicada função, transformaram-se em titulares intocáveis dos car-gos, os quais, em muitos casos, comprovadamente não tinham capacidadepara exercer. Em alguns Municípios, constatou-se a existência de profes-sores que utilizavam as impressões digitais em documentos, por nãosaberem assinar sequer o próprio nome.

Equívoco maior, porém, a ser observado para não se repetir nafeitura de outras Constituições – a retrospectiva da História indica queacabaremos por elaborá-las –, residiu na suposição de que a simplesinclusão de um preceito no corpo da Constituição garante eficácia aesta. Essa ilusão resultou na formulação de 245 dispositivosconstitucionais e 70 preceitos transitórios. Pretendeu-se, portanto, cons-titucionalizar tudo, na ilusão de que a observância de uma norma temrelação apenas com o local em que se encontra ela inserida.

Sem grandeza para repelir as normas que satisfazem apenas a inte-resses específicos de segmentos com representação ativa no Parlamento,a Constituição jamais será duradoura, tendo em vista a pobreza estam-pada na motivação dos seus preceitos. Sobre isso, Aristóteles enfatizava:

“Aqueles, pelo contrário, que se propõem dar aos Estados umaboa Constituição prestam atenção principalmente nas virtudes enos vícios que interessam à sociedade civil, e não há nenhumadúvida de que a verdadeira cidade deve estimar, acima de tudo, avirtude. Sem isso, não será mais do que uma liga ou associação dearmas, diferindo das outras ligas apenas pelo lugar, isto é, pelacircunstância indiferente da proximidade ou do afastamento res-pectivo dos membros. Sua lei não é senão uma simples convençãode garantia, capaz, diz o sofista Licefron, de mantê-los no deverrecíproco, mas incapaz de torná-los bons e honestos cidadãos”.(A política, Martins, 1991, p. 46 – g.n.)

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CAPÍTULO VI – SALÁRIO E GREVE

1. ESPETÁCULO DE VIOLÊNCIA PARA MAJORAÇÃO DE SALÁ-RIO; 2. CONFLITO À BEIRA MAR – POLÍCIA X POLÍCIA; 3. FOLHADE PAGAMENTO NO ORÇAMENTO DO ESTADO.

1. Espetáculo de violência paramajoração de salário

Um dos pontos mais delicados no gerenciamento da Adminis-tração Pública diz respeito à fixação de salários dos servidores. Chegaa ser dramática a discussão envolvendo esse tema.

Pela ótica de quem governa, nunca pode deixar de ser levada emconsideração a repercussão do aumento salarial de uma categoria emrelação às demais. O “efeito dominó”, nesses casos, é inevitável. Ascategorias não favorecidas passam a alegar discriminação, desprestígio,e começam a hostilizar o titular do poder.

Na luta pelos salários, princípios e valores costumam ser coloca-dos de lado. O amigo pode virar inimigo, os favores reiteradas vezesreconhecidos ou a solidariedade do passado, nada disso conta quandoo assunto é remuneração. Exaltado mesmo, naquele momento, é ogovernante que agraciou o servidor, atendendo-lhe a reivindicação.Depois disso, a certeza do esquecimento é inevitável, sobretudo se oTesouro não dispuser de meios para suportar aquela majoração.

Na discussão salarial pode residir a inviabilização de uma gestãoadministrativa. Os servidores, na verdade, representam uma parcelado contingente a ser atendido pelo Estado. Se toda a receita arrecadadase destinar ao pagamento de vencimentos, o Estado ou o Municípioacabará restringindo-se a Estado ou Município dos servidores.

Por outro lado, pelas funções relevantes que desempenham, osfuncionários não devem ser remunerados de forma miserável. Devem

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receber salários dignos para bem cumprir suas atribuições. É deplorávela constatação de baixa remuneração de diversas categorias de servido-res que desempenham atividades essenciais. Os baixos salários, nessecaso, representam permanente ameaça à qualidade, dedicação e inde-pendência exigidas para o desempenho da função. O servidor público,não é demais enfatizar, deve ser bem remunerado e devotar especialzelo pelo cargo que ocupa.

Infelizmente, aqueles que detêm maior poder de barganha, nos qua-dros da Administração Pública, tendem sempre a elastecer sua remunera-ção, sem nenhuma preocupação com o todo. Sua ótica de argumentação éesta: “Não interessam as outras categorias, interessa apenas a nossa”.

Curiosamente, são essas classes – sempre favorecidas – as quemais estimulam a majoração das despesas do Estado; despesas estasque contribuem para inviabilizar a capacidade deste para o pagamentode melhores salários. Ninguém costuma atentar para o fato de que,quando se provoca, por qualquer razão, um acréscimo na despesa daAdministração, reduzem-se os recursos que farão falta na hora deatualização dos valores do salário.

Ao gastar a Administração, por exemplo, R$300.000,00, quandopoderia gastar apenas R$30.000,00; ao contratar cem servidores, necessi-tando apenas de dez deles, provoca-se uma desnecessária elevação da des-pesa. A partir dessa linha de desperdício, que se dissemina em todos ossegmentos, surgem conseqüências desagradáveis a serem suportadas pe-los que são remunerados pelo Poder Público. Todos, por isso, devem manterpermanente vigilância em relação aos gastos. A despesa exagerada e des-necessária de hoje será a receita que não existirá amanhã para custeio deatividade essencial, inclusive pagamento de remuneração digna.

Em fevereiro do ano 2000, pela primeira vez a sociedade brasileirapassou a confrontar os maiores salários pagos pelo Poder Público com osalário mínimo. O constrangimento foi geral. Diversos parlamentarespassaram a defender um mínimo equivalente a 200 dólares, ressaltando aaberração consistente na existência de salários, nos Estados, superiores aR$20.000,00. Quem ocupa função pública deve ter remuneração digna,mas não pode supor que tudo o que o Estado arrecada deve destinar-sea remunerá-lo. Menos ainda que seus parentes devem ter regalias, emrazão do vínculo sangüíneo, para preenchimento de cargos.

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Muitos gestores, por sua vez, são envolvidos por pressões e acabamprejudicando sua administração. A discussão salarial deve sempre levar emconsideração o custo com a folha de pagamento como um todo e a repercussãodos aumentos no orçamento, preservando-se o seu equilíbrio.

Não adianta o bom governante tentar agradar apenas aos servi-dores públicos, dando-lhes aumentos incompatíveis com a disponibi-lidade do Tesouro. Acabará não agradando a estes e, o que é maisgrave, desagradará irremediavelmente ao grande público destinatáriodos serviços da Administração. Por igual, se todos ganharem muito mal,o sentimento de indignação será elevado com crescente estímulo paraações distorcidas no exercício da função.

A atuação de todos os servidores deve sempre convergir para oobjetivo de evitar desperdício na Administração Pública. Todos têminteresse direto no bom gerenciamento do dinheiro público. O des-perdício comprometerá futuramente as reivindicações por melhoriasalarial.

Observa-se, entretanto, que somente na hora de reivindicaraumento nos seus vencimentos as categorias funcionais se mobilizam,por intermédio de sua representação legalmente constituída, para exigirmelhores salários, sem nenhuma atenção ao respectivo aumento dadespesa. Aumentar a despesa é a coisa mais fácil de se imaginar, noâmbito de qualquer administração, seja pública ou privada.

Elevar a receita, gastá-la da melhor maneira para o grupo social e,sobretudo, evitar desperdício causado por aplicação incorreta dos recursospúblicos – seja decorrente de incompetência, seja por má-fé –, essa tam-bém deve ser uma preocupação não apenas de governantes, mas de todos,e particularmente dos que são remunerados pelos cofres públicos.

Sem um bom gerenciamento das finanças, com monitoramentoe fiscalização por todos, as reivindicações salariais acabarão sendodesastrosas para as partes envolvidas. O Estado dificilmente terá, nofinal das contas, condição de pagar remuneração digna e compatívelcom a magnitude das funções exercidas por seus servidores.

O pagamento de bons salários decorre da boa aplicação dosrecursos disponíveis para o gerenciamento da Administração. Éultrapassada, por isso, a postura adotada por alguns sindicatos denão-preocupação com a majoração da despesa.

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Em junho de 1997, soldados, cabos e sargentos da Polícia Militarde Minas Gerais foram às ruas protestar por melhores salários. Encur-ralaram o governador no seu próprio palácio, enquanto a população,incrédula, assistia ao espetáculo de insubordinação, imprevisível quantoao seu desfecho.

O Exército, convocado naquela emergência, postou-se na guardado palácio sitiado. O assassinato de um PM, não grevista, arrefeceu oânimo belicoso dos militares insubordinados, os quais, entretanto,somente retornaram às atividades normais quando o governo curvou-se às suas exigências, concedendo-lhes o aumento exigido; comprome-tendo totalmente, em conseqüência, os cofres do Estado.

Pior, entretanto, foi a disseminação dos movimentos reivindica-tórios nos demais Estados. Policiais armados frente a frente com sol-dados do Exército, também armados – estes legitimados pela posturade defesa da ordem –, tudo convergindo para o caos. Um tiro, aindaque para cima, teria provocado um descontrole completo da situação,sem a menor possibilidade de previsão sobre o seu desenlace.

Evidentemente que o direito de greve, previsto no art. 37, VII, daConstituição Federal, não é extensivo aos policiais civis e militares. Pelocontrário, o § 5.º do seu art. 42 proíbe, expressamente, aos militares a sindi-calização e a greve. Greve em polícia é guerra, sendo como tal incompatívelcom o Estado de Direito que a Lei Maior objetiva preservar. O descumpri-mento da lei, nesse caso, importa em ameaça à própria liberdade diante dadesordem que se instala na tropa surda ao seu próprio comando. “É neces-sário que sejamos escravos da lei para que possamos ser livres”, concluíaCícero, incentivando o respeito ao Direito vigente.

A guerra, como se sabe, é conseqüência da falência da lei e daordem. A arma fornecida pelo Estado ao integrante de sua forçaobjetiva exclusivamente servir de instrumento para a preservação dapaz na sociedade, jamais para servir de mecanismo de barganha efomento de desordem. A exclusão dos líderes desses movimentos,lamentavelmente, é a única saída para sedimentação de liçãopedagógica inibidora de situações análogas no futuro. Entre os direi-tos e prerrogativas assegurados aos servidores responsáveis pelasegurança pública não se pode incluir o de promover greve, vistoisso implicar risco à própria democracia.

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Minas, nesse ponto, legou exemplo desconfortável ao País. Nofundo, faltou pulso, visão gerencial e determinação ao governador, co-mandante supremo da corporação. Os fatos que antecederam a greveconfirmam isso e reclamam maior reflexão de todos os segmentos dasociedade envolvidos.

O Poder Judiciário de Minas Gerais deferiu aos delegados equi-paração de vencimentos aos dos integrantes do Ministério Públicodaquele Estado. Os coronéis da Polícia Militar, por sua vez, “fincarampé”, exigindo do governador a extensão do proveito. Para não contra-riá-los, aquiesceu ele com essa reivindicação, sem embargo do esface-lamento de seu caixa.

Comemoravam, então, os coronéis a significativa conquista, quandoas patentes inferiores manifestaram indignação pela não-extensão dosbenefícios a elas. Daí para o descontrole, tumulto e morte pouco tempose passou. Para restabelecer a ordem na sua polícia, Minas Gerais preju-dicou suas finanças. A despesa apenas com o desembolso da folha depessoal saltou para aproximadamente 85%.

O pagamento do custeio da máquina administrativa, das dívidase demais encargos tornou aquele Estado deficitário. Com receita inferi-or à despesa e exigência de aumento salarial das demais categorias deservidores públicos, é fácil compreender a situação caótica aliestabelecida.

A causa remota da desordem mineira foi, portanto, a sentençaque assegurou a equiparação dos vencimentos de promotores e dele-gados. Na verdade, nesse caso, a posição do Judiciário é por demaiscômoda ao expedir ordens para majoração de remuneração ou vanta-gens de servidores. É irrelevante, na sua ótica, qualquer avaliação acercada disponibilidade financeira do Estado. A ordem é expedida com adeterminação de ser executada, sob as penas da lei. Dane-se o administra-dor para cumpri-la, sem dinheiro e sem competência para emiti-lo.

O princípio da razoabilidade, se levado na devida conta, naaferição de muitos dos pleitos de servidores, por certo teria evitadodiversas aberrações ou situações constrangedoras, como a vivenci-ada em Minas. No Ceará, por exemplo, a Justiça do Trabalho, noauge da desordem mineira, expedia mandado para implantação dopiso salarial para servidores, cujo débito atrasado aproximava-se

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da inacreditável cifra de um bilhão de reais. Sim, quase um bilhão dereais! Mais realisticamente falando: o equivalente a um ano de arreca-dação dos tributos pagos ao Estado por todos os seus contribuintes.

2. Conflito à beira-mar: polícia x políciaEm 1997, no que pese a proibição expressa contida no art. 42, §

5.º, da Constituição Federal, as greves de policiais se sucediam emdiversos Estados brasileiros. Sob a mira das armas, governadoresacuados aceitavam as reivindicações impostas pelos grevistas, aumen-tando, mesmo sem condições financeiras, a folha de pagamento;inviabilizando com isso suas administrações.

Um desses governadores, após aceitar as imposições dosgrevistas intransigentes, confidenciou, angustiado, haver naquelemomento acabado seu governo, deplorando a função de merogerente de folha de pessoal a que se sentiu relegado. Toda suaatuação resumir-se-ia, doravante, em evitar o atraso no pagamen-to dos salários.

Diante dos exemplos de Minas, Pernambuco, Rio Grande do Sule outros Estados, o governo do Ceará cuidou em examinar as reivindi-cações para formulação de propostas concretas, visando a evitar grevena sua corporação militar.

Tudo parecia transcorrer normalmente. No dia 28 de julho de1997, os comandantes da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros, osuperintendente da Polícia Civil e o secretário da Segurança Pública eDefesa da Cidadania, ao qual se achavam todos vinculados, estiveramreunidos para a conclusão dos detalhes da proposta do governo a serrepassada aos seus subordinados.

A receptividade da proposta era imensa, segundo a avaliação doscomandantes, após contato direto com os seus comandados. Tudoparecia tranqüilo, e o Ceará esperava não conviver com a crise expostanos outros Estados.

Entretanto, na manhã do dia 29 de julho de 1997, a greve foideflagrada. Policiais fardados, empunhando armas, saíram em passeatapelas ruas em direção aos quartéis da corporação. Alguns militares,sem ordem, abolindo a hierarquia e sem responder a comando algum,

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caminhavam exibindo armas, estimulados pelo êxito obtido por policiaismilitares em outros Estados, em idênticas reivindicações.

Após percorrerem os grevistas diversas avenidas de Fortaleza,envolveram-se num tiroteio em plena beira-mar, que teve uma únicavítima: o comandante da Polícia Militar, atingido por um tiro. Testemu-nhas atribuem a um verdadeiro milagre a inexistência de outros feridos,tamanha a falta de responsabilidade de se participar de greve empu-nhando arma, com o propósito deliberado de coagir autoridade legiti-mamente constituída a aceitar reivindicações salariais.

No deplorável episódio, exitoso em outros Estados e com pers-pectiva de proliferação por todo o Brasil, restava visível a ameaça àprópria democracia. Sem respeito aos poderes constituídos, sem pre-valência da hierarquia e disciplina nos quartéis, não há Estado de Direitoque resista por muito tempo.

Todos acabam se sentindo estimulados ao descumprimento daConstituição, sendo importante ressaltar que a crescente violação destaesvazia o sentimento emblemático de respeito à lei, florescendo emseu lugar o arbítrio ditado pelo mais forte. É que, sem muito esforço,por dispor de armas, acaba o Exército subindo ao poder diante dafragilidade das instituições, inclusive sob o argumento de restabeleci-mento da ordem pública.

Os fatos usados como justificativa para o golpe de 1964 guarda-vam semelhança com a desordem na hierarquia militar das políciasestaduais ocorrida em 1997, que coube ao Ceará estancar. A propósito,relembra o professor Luiz Roberto Barroso:

“(...) o golpe militar deflagrado em 31 de março de 1964tinha como causas imediatas o clima de instabilidade política eeconômica, marcado por greves sucessivas e generalizadas, e asubversão da hierarquia militar, detectada em movimentos depraças, sargentos e oficiais de baixa patente”. (O Direito Consti-tucional e a efetividade de suas normas, fls. 30-31 – g.n.)

Contidos na pretensão de avanço em direção ao prédio da Secre-taria de Segurança, diante das barreiras erigidas nas ruas que davam acessoàquele orgão, os grevistas puderam constatar que a Constituiçãoefetivamente tinha vigência no Estado do Ceará, e que a proibição degreve aos policiais armados não era vã.

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O episódio deplorável confirmou, mais uma vez, que greve depoliciais armados é motim, guerra, perspectiva de sangue; por isso,intolerável sob qualquer fundamento.

Encerrado o tiroteio, os rebelados saíram a vagar, sem rumo esem comando definido, pelas ruas, parando na Praça do Ferreira, deonde se dispersaram, sob a promessa de reencontro no dia seguinte,quando, felizmente, todos se deram conta da gravidade dos seus atos,e os ânimos se arrefeceram.

Um exame nos escudos de proteção dos policiais do Gate – Gru-po de Ações Táticas Especiais, que foram alvejados impiedosamentepelos rebelados, ao interceptá-los nas imediações da Avenida Beira-Mar, mostrou nada menos do que 25 tiros em um deles, disparadospelas armas que o Estado confiou àqueles policiais.

A fúria dos manifestantes, externada por intermédio dos tirosdisparados contra os próprios colegas de farda, dá mostra de comoseria a “negociação”, no dizer dos deputados ali presentes, que tencio-navam “negociar” com o governo aumento dos salários sem indicar,contudo, a fonte dos recursos para bancá-los. O oportunismo de algunspolíticos, nesses casos, deixa bem patente a visão obscura que possuemsobre administração de recursos do Poder Público. Pretendem apenaso aplauso. Não lhes interessa o saldo disponível nas contas para custeara reivindicação daqueles que os exaltam.

O grupo de choque da Polícia Militar do Ceará surpreendeu peloextremo profissionalismo demonstrado. Receberam seus integrantesmais de cem tiros. Tiveram o seu próprio comandante ferido pelosrevoltosos e não lhes retribuíram uma única bala. Evitaram, com isso,um banho de sangue naquela melancólica tarde de julho. O coman-dante daquele pelotão resumiu o segredo da pacificação posterior:“Embora atirando, não tinham eles proteção alguma. Eram alvos fací-limos, se quiséssemos revidar; não atiramos”.

Como reconhecimento do trabalho em defesa da ordem públicae pela postura de passividade assumida no incidente, os integrantes doGate foram condecorados, no Palácio do Governo, sob o aplausocomovente da população, que ali lhes prestava reverência.

Na única homenagem, com a efetiva participação da população,prestada à polícia, o reconhecimento de que, pela coragem dos

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agraciados, a democracia brasileira acabou estimulada a uma vida maislonga.

É fácil perceber isso. Persistindo o ânimo, nas corporações policiais,de formular reivindicações com a utilização de suas armas, o êxito napostulação contagiaria os servidores não armados, produzindo um con-glomerado de greves sucessivas em setores essenciais, que tornariam semcontrole a ordem pública. Além disso, a permanente e estimulante que-bra da hierarquia nos quartéis estaduais obrigaria o Exército a ir às ruaspara o restabelecimento da normalidade.

Sob esse pretexto (de ameaça à segurança), o risco não residiriapropriamente no fato de saírem as tropas federais de seus alojamentos,mas em não mais retornarem aos quartéis, inclusive por exigência daprópria população brasileira, que, como historicamente demonstrado,não aceita indisciplina nem desordem continuada.

O restabelecimento da ordem costuma ser invocado como moti-vação nas investidas militares para tomada do poder, com todas asconseqüências, gravemente nefastas, decorrentes da supressão doEstado de Direito, que se verifica depois disso.

A ilicitude dessa greve ficou bem nítida na consciência de cada cida-dão. O Brasil todo rendeu homenagem à reação do Ceará, contrária àque-le movimento, que pretendia inviabilizar o País – inicialmente, pela desor-dem implantada sob a invocação de exigência de melhoria salarial; depois,por impor aos Estados o pagamento de salários incompatíveis com assuas disponibilidades. Enfim, pela abertura de perspectiva de que a Cons-tituição existe para ser cumprida, não podendo ser pisoteada, comopretendiam alguns, com a agravante de apresentarem-se de arma em punho.

Dois anos depois, os Estados que reajustaram salários por imposiçãodas armas não apenas deixaram de pagá-los, atrasando os vencimentos detodos os servidores, como se desorganizaram totalmente. Nenhum dosseus governadores conseguiu reeleger-se no pleito de 1998.

3. Folha de pagamento no orçamento do EstadoQualquer pessoa que pretenda celebrar negócios com outra, prin-

cipalmente em se tratando de empréstimo em dinheiro (mútuo), sabeque quem vai emprestar procura obter informações sobre a sua situação

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financeira (por exemplo, quanto ganha, quantos imóveis possui, etc.).No caso de pessoa jurídica, a radiografia para uma avaliação patrimonialse dá por meio do balanço.

Para empréstimo de verba ao Poder Público, que dela necessita paraa realização de obras essenciais, a primeira providência de quem se dispõea fornecê-la é um exame da situação financeira da entidade solicitante. Aanálise de gastos com pessoal, custeio, amortizações, contrapartidas e en-cargos financeiros é imprescindível para a constatação da capacidade ouincapacidade de o Estado honrar seus compromissos.

A folha de pagamento, no mundo globalizado do presente, cos-tuma ser um ponto de relevância na análise para aferição da solvênciaou insolvência de Estados e Municípios. A vasta maioria, com mais de70% de suas receitas comprometidas apenas com pessoal, achava-se,até bem pouco tempo, irremediavelmente quebrada.

Mais curioso é constatar que a folha sobe mesmo que não hajaadmissão de funcionário ou aumento de salário. Os qüinqüênios,anuênios e, sobretudo, as condenações judiciais, determinando majo-ração de salários, pagamento de gratificações, liberação do teto salarial,etc. acabam elevando, de forma espantosa, os gastos com pessoal.

Inúmeras condenações judiciais, de grande vulto, decorrentes,por exemplo, da fixação de piso salarial com base no salário mínimo,ofendem a Constituição. Mais precisamente o inciso IV do seu art. 7.ºconflita com a jurisprudência dominante no STF. Sobretudo na Justiçado Trabalho, o efeito vinculante só funciona contra o Poder Público. Éque, quando o Supremo Tribunal Federal ou o Tribunal Superior doTrabalho decidem contra a Administração, todos os juízes invocam oprecedente para também condená-la nas instâncias inferiores. Todavia,quando decidem aqueles tribunais favoravelmente àquela, os mesmosjuízes costumam invocar sua autonomia para persistir com os argu-mentos utilizados na condenação.

A despesa com a folha de pagamento tem uma característicaparticular. Após a admissão do servidor, ela não diminui mais. Ten-de sempre a aumentar. Os gastos com a compra de móveis ou aquisi-ção de imóvel, por exemplo, uma vez efetuado o pagamento, nãomais deverão se repetir. No caso da contratação de pessoal, após 35anos de serviço, aposenta-se o servidor, recebendo integralmente seus

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salários dos cofres públicos. Se deixar viúva, filho menor ou inválido, opagamento da pensão se prorrogará por anos a fio. Em alguns casos, ovalor integral da remuneração é deixado para netos.

Não é fácil imaginar o que se passa na cabeça do administradorpúblico à frente de um grupo de pessoas reivindicando aumento de sa-lário, tendo, porém, sob sua mesa, notificação do locador do prédio emque funciona a sua repartição, ameaçando ingressar com ação de despe-jo por falta de pagamento dos aluguéis, além de diversas ordens judici-ais de seqüestro por não-pagamento de precatórios.

Os servidores públicos, como assinalado, não devem ter remu-neração indigente. Entretanto, para ganharem bem, insista-se, todosdevem manter vigilância na aplicação do dinheiro público para impedirdesperdício, inclusive monitorando o crescimento exagerado e, muitasvezes, desnecessário da folha de pessoal, porquanto isso esvazia acapacidade remuneratória da Administração.

O dinheiro do Poder Público, é preciso reiterar, sai do bolso docontribuinte. Por isso, todos os envolvidos, direta ou indiretamente, coma Administração devem manter essa consciência para bem aplicá-lo.

Os peritos com atuação no Poder Judiciário, por isso, e como exem-plo, precisam ser mais questionados – inclusive pelos seus órgãos declasse – quando fixam, em laudos de avaliação de terras desapropriadas,valores absurdamente altos, que chocam toda a população.

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CAPÍTULO VII – O HOMEM PÚBLICOE SEU PASSADO

1. PATRIMÔNIO SUSPEITO E INOCÊNCIA PRESUMIDA; 2. ASSEQÜELAS NA VIDA PÚBLICA; 3. A POSIÇÃO DA JURISPRUDÊN-CIA; 4. O ENFOQUE CONSTITUCIONAL DA VIDA PREGRESSA; 5.OS DANOS ADVINDOS À COLETIVIDADE DO POSICIONAMENTOJURISPRUDENCIAL; 6. A INTERPRETAÇÃO MAIS COMPATÍVELCOM O TEXTO DA CONSTITUIÇÃO NO FINAL DO SÉCULO XX; 7.A MORALIDADE ADMINISTRATIVA COMO DIREITO DO CIDADÃO.

1. Patrimônio suspeito e inocência presumidaIntriga o contribuinte brasileiro o fato de muitos gestores da coisa

pública aumentarem, de forma exagerada, o seu patrimônio pessoalapós o simples ingresso na função. Mudam da forma de vestir ao lugarde morar. Não decorrendo aquele acréscimo patrimonial de herança,do exercício de outra atividade lícita ou de pura sorte em loteria insus-peita, torna-se patente e irrefutável a presunção de ilicitude no exercíciodo cargo. Essa constatação, por si só, atesta o favorecimento indevido,legitimando a aplicação de sanções sobre o gestor. Infelizmente, aAdministração Pública não paga bons salários no Brasil; mas isso nãoautoriza qualquer ocupante de cargo a majorar sua receita utilizando-sedele para esse fim.

Uma mudança radical de mentalidade, a partir da conscientizaçãojá na escola de primeiro grau, precisa ser buscada para exterminar a idéiade que cargo público importante é sinônimo de riqueza abundante.

É comum, nos Municípios, jovens sonharem em se tornarvereador e depois prefeito. Para auxiliar a sua comunidade? Não. Jamaisreceberam informações sobre a supremacia do interesse coletivo. Con-fessam muitos deles, após se libertarem dessa cultura distorcida, ter vi-sado apenas a enriquecer no desempenho da função.

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No imaginário de crianças e adolescentes, pelo interior do Brasil,todo prefeito fica rico, compra logo fazenda, carros, cavalos de raça;enfim, esbanja dinheiro e não vai preso. Logo, na sua concepção, extraídada realidade, não é errado enriquecer a partir da ocupação do cargo maiscobiçado no Município. Não se disputa cargo; disputa-se cofre. E isso,no Brasil, ocorre há muito tempo, inclusive com alternância de constitui-ções democráticas e autoritárias. Nos tempos de autoritarismo, rouba-semais, porque a baioneta impõe silêncio aos potenciais denunciantes.

Não é redundância advertir que há cumplicidade até, às vezes,inconsciente do grupo social com quem se apropria de verba públicaneste País. Cadeia, mesmo, é ilusão. Melhor é conscientizar, paradesestimular o desvio de verba pública. O eleitor, até aquele comcerta instrução, não faz cerimônia em confessar sua simpatia porcandidato que “rouba, mas faz”. Não se consegue, numa linguagemacessível ao grande público, mostrar-lhe a sua condição de inocenteque consente em ser roubado e ainda aplaude o assaltante, cujo destinotambém deveria ser o Carandiru, se houvesse maior compromissocom a aplicação precisa da lei.

A propósito de majoração do patrimônio sem respaldo no ren-dimento, o art. 9.º, VII, da Lei n.º 8.429, de 2.6.1992, estabeleceexpressamente a presunção legal de improbidade nos casos de aumentopatrimonial no exercício de cargo, mandato, emprego ou função cujovalor seja “desproporcional à evolução do patrimônio ou renda doagente público”.

Infelizmente, toda sorte de dificuldade é lançada para a comprova-ção dos delitos contra a Administração Pública. Não raro, o agente cujopatrimônio avolumou-se vergonhosamente após o ingresso no cargodesafia a todos, exigindo prova fotográfica de suas ações delituosas.

Evidentemente, não dispõe o contribuinte de filmadora instaladaem cada sala de ministério ou repartição pública para registrar todas asações dos que agem em seu nome. Entretanto, em qualquer país queconviva em harmonia com o bom senso, o simples aumento patrimo-nial não justificado, durante o exercício de cargo público, constitui, porsi só, motivo para o afastamento, do agente, da função que exerce.

A ausência de explicação para a origem do ostensivo e muitas vezesaté exagerado acréscimo patrimonial de quem ocupa cargo público

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já deveria constituir dado suficiente para ensejar o afastamento. Se é certoque apenas isso não enseja a condenação criminal do agente, não menoscerta é a conclusão de que ele se utilizou da função para locupletar-seilicitamente. Se assim não fosse, teria explicação para a origem do patri-mônio, cujo volume acaba provocando espanto.

A presunção constitucional de absoluta inocência, porém, éinvocada com ênfase, acabando por transformar, assim, muitos frau-dadores da Administração em autoridades imponentes, no que pese aconstatação de haverem quadruplicado o patrimônio em decorrênciado exercício puro e simples de função pública.

A exigência de trânsito em julgado da condenação para sim-plesmente considerar culpado o acusado, num País cujos tribunais semostram abarrotados de processos, é incompatível com a realidadeem que governantes dos mais variados escalões desviam dinheirodos contribuintes, policiais assaltam e torturam suas vítimas, magis-trados são acusados de fraude, enfim, há desconfiança de tudo. Ainsegurança é tanta que ninguém ousa percorrer a pé, durante a noite,o seu próprio quarteirão.

Presumir inocente, para garantia de elegibilidade – por exemplo,como o fez a Justiça Eleitoral em relação a ex-prefeito municipal con-denado em primeira instância por crime de peculato, com todas ascontas de sua gestão desaprovadas pelo respectivo Tribunal de Contas,garantindo-lhe o retorno ao cargo –, pode até caracterizar aplicaçãoliteral do texto constitucional (que consagra a presunção de inocência);mas significa, também, desapreço para com a realidade, na medida emque se assegura trânsito livre para que novos saques ao Tesouro sejampraticados. É também sinal de exagerada inocência para um períodode mudança de milênio cuja tônica é a desconfiança.

E no caso, efetivamente, diversos outros desvios se sucederamna nova Administração daquele gestor. Desta feita, contra a merendaescolar e o Fundef, conforme ficou comprovado em CPI instaladaem 1999 para apurar desvio de verbas destinadas à educação emalgumas prefeituras. A comprovação dos ilícitos resultou, por suavez, no pedido de intervenção em Município dirigido por prefeitoconsiderado elegível mesmo após ter sido condenado a 8 anos dereclusão.

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Nem se argumente com a tese, vencedora naquele acórdão, de quea Constituição favorecia o candidato com a presunção de inocência pelofato de não existir coisa julgada em sua condenação. É que a improbidadeadministrativa, inerente ao crime de peculato, independe da própria con-denação criminal. A ausência da coisa julgada autoriza presumir inocênciapara fins penais. Não tem, no entanto, o condão de fazer desaparecer anota de improbidade atestada no fato, documentalmente comprovado,que lhe ensejou a condenação.

Demais disso, a mesma Constituição que estabelece presunçãode inocência até o trânsito em julgado da decisão penal condenatóriaexige, paralelamente, que se examine o passado de quem se dispõe adisputar mandato eletivo (art. 14, § 9.º).

As duas normas têm o mesmo potencial de eficácia, não se justi-ficando a preponderância da presunção de inocência sobre a exigênciade aferição da vida pregressa.

Quem armazena, no seu passado, a mácula por desvio de verbapública, mesmo sem trânsito em julgado da condenação, não estácredenciado para o exercício de função pública enquanto não forabsolvido. Esse princípio elementar, escudado na razoabilidade, só nãoconsegue ser captado no Brasil. Aqui a cautela com o patrimônio éprivativa dos particulares nas relações entre si. Naquele caso anterior-mente reportado, o retorno de pessoa reconhecidamente desonesta aocomando do cofre municipal, em conseqüência da garantia de elegibi-lidade assegurada pelo Tribunal Superior Eleitoral, surpreendeu a todosno Estado, disseminando pessimismo e desesperança quanto ao futurodo País. Afinal, não há Tesouro que suporte tantos “inocentes’’ porpresunção legal. Aliás, é descredenciada essa presunção pelos fatosdeploráveis da realidade vivenciada no dia-a-dia.

Na verdade, nunca se deve perder de vista que a aplicação doDireito não pode resultar em desconforto para o grupo social. Pelocontrário, existe ele justamente para satisfazer os interesses da sociedade.Nunca para constrangê-la ou amargurá-la, a pretexto da aplicação desuas normas. O Direito cuja aplicação gera indignação nos seusdestinatários ou está mal interpretado ou nunca existiu como norma;simplesmente, foi inventado pelo intérprete, ao manusear seus preceitos,com total distorção em relação aos objetivos por ele visados.

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Nesse passo, pertinentemente afigura-se esta indagação: é legítima ainterpretação da lei pelos que detêm atribuição formal para expressá-la,em nome do Estado, diante de cada caso concreto, quando tal “aplicaçãoda lei” apresenta-se chocante ao grupo social? Ou, por outra, é aceitávelque subestime o intérprete toda a expectativa da sociedade, oferecendo-lhe interpretação que gere indignação?

No valioso trabalho do professor alemão Peter Häberle, sob osugestivo nome de A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: con-tribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição, aven-tam-se mudanças radicais nessa forma conservadora de indiferençado intérprete oficial aos anseios dos cidadãos, destinatários de toda equalquer norma. Observa, a propósito, aquele autor, com muitaprecisão:

“Todo aquele que vive no contexto regulado por uma normae que vive com este contexto é, indireta, ou até mesmodiretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário danorma é participante ativo, muito mais ativo do que se podesupor tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como nãosão apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivema norma, não detêm eles o monopólio da interpretação daConstituição.

(…)Para uma pesquisa ou investigação realista do desenvol-

vimento da interpretação constitucional, pode ser exigívelum conceito mais amplo de hermenêutica: cidadãos e gru-pos, órgãos estatais, o sistema público e a opinião públicarepresentam forças produtivas de interpretação; eles sãointérpretes constitucionais em sentido lato, atuando nitida-mente, pelo menos, como pré-intérpretes. Subsiste semprea responsabilidade da jurisdição constitucional, que fornece,em geral, a última palavra sobre a interpretação. Se se qui-ser, tem-se aqui uma democratização da interpretação cons-titucional. Isso significa que a teoria da interpretação deveser garantida sob a influência da teoria democrática. Portanto,é impensável uma interpretação da Constituição sem ocidadão ativo e sem as potências públicas mencionadas”. (Tra-dução de Gilmar Ferreira Mendes, Sérgio Antônio Fabris Editor,1997, p. 14-15 – g.n.)

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Fácil perceber, assim, nas decisões judiciais que ordenaram, porexemplo, o pagamento, a um único servidor da Secretaria da Fazendado Ceará, de salário mensal superior a R$40.000,00 (quarenta mil re-ais), a ausência de qualquer avaliação sobre a disponibilidade do Te-souro, ou mesmo em relação à opinião pública, na interpretação danorma constitucional pertinente. O contribuinte, responsável por taispagamentos, nunca deve ser esquecido; afinal, suportará ele o exageronas condenações impostas ao Poder Público.

Entretanto, a distância entre julgador e realidade, pela sua exces-siva dimensão, no caso, mostra a necessidade inadiável de ampliaçãodo círculo dos intérpretes credenciados da Constituição, para inclusãopermanente da opinião pública.

Ainda neste ponto, é pertinente a lição do mestre alemão acimareportado:

“A ampliação do círculo dos intérpretes aqui sustentada éapenas a conseqüência da necessidade, por todos defendida,de integração da realidade no processo de interpretação. É queos intérpretes em sentido amplo compõem essa realidadepluralista. Se se reconhece que a norma não é uma decisãoprévia, simples e acabada, há de se indagar sobre os partici-pantes no seu desenvolvimento funcional, sobre as forçasativas da law in public action.

(…)Seria errôneo reconhecer as influências, as expectativas, as

obrigações sociais a que estão submetidos os juízes, apenassob o aspecto de uma ameaça à sua independência. Essasinfluências contêm também uma parte de legitimação e evitamo livre arbítrio da interpretação judicial”. (Op. cit., p. 30-32.)

Justamente essas “obrigações sociais”, de que não podem se furtaros juízes, visto que são integrantes do grupo social, impõem-lhes sereni-dade e prudência na interpretação do Direito que, por dever de ofício,devem aplicar. As interpretações geradoras de indignação social, comoassinalado, precisam ser evitadas a todo custo. Não terão, por certo,levado na devida conta a norma do art. 5.º da Lei de Introdução aoCódigo Civil, que dispõe: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos finssociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”(grifo nosso).

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Se é certo que o juiz não pode sentir-se refém da opinião pública,também não pode ele afrontá-la, a pretexto de aplicar a lei disciplinadorado fato submetido ao seu exame. Embora não tenha a opinião pública,por si só, força para desconstituir decisão judicial, a carga de rejeição que,via de regra, empresta ela sobre o teor de sentença que lhe gera repugnân-cia, e sobre a própria pessoa do seu prolator, demonstra a inconveniênciade afrontá-la. O prejuízo causado à sociedade, em casos tais, é grande, maso desprezo ou desapreço silencioso aos que assim agem é muito maior.

Todos os magistrados que subestimaram a opinião pública, afron-tando-a nas suas decisões ou por meio da própria conduta, sempreacabaram pagando um preço elevado. Não se pretende com isso exi-gir submissão cega a ela, em absoluto. O problema reside em chocá-lacom decisões aberrantes, que acabam desacreditando o Direito peranteos leigos, perplexos pela irracionalidade ostentada, inclusive, aos olhosmenos letrados.

O gênio criativo de Carlos Maximiliano não pode deixar de ser,mais uma vez, invocado:

“O juiz, embora não se deixe arrastar pelo sentimento, adaptao texto à vida real e faz do Direito o que ele deve ser, umacondição de coexistência humana, um auxiliar da idéia, hojevitoriosa, da solidariedade social”. (Hermenêutica e aplicaçãodo Direito, p. 101.)

2. As seqüelas na vida públicaDeterminado partido tentou introduzir no seu estatuto norma

vedando a utilização de sua legenda por pessoas acusadas, pelo Tribunalde Contas, de desvio de dinheiro público. Diante da recusa em liberar asigla, muitos líderes municipais ameaçaram procurar outras agremiações.Realizada uma pesquisa, constatou-se serem aquelas pessoas estigmatiza-das pelo Tribunal de Contas pela má aplicação dos recursos públicos jus-tamente as preferidas pelos eleitores dos seus respectivos Municípios. Adistribuição irresponsável de bens e serviços por esses líderes inconse-qüentes e sem probidade soa, infelizmente, como generosidade ao cidadãodesinformado.

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É ilusão supor que o povo, sem escolaridade, por si só, excluida vida pública os governantes que lhe são nocivos. A má-fé e asartimanhas de que se utilizam tais políticos para ludibriar o imaginá-rio coletivo transformam o eleitorado em presa fácil aos seus objeti-vos inconfessáveis. Para contê-los, é imprescindível uma ação enérgi-ca, isenta, destemida, do Judiciário e dos órgãos de fiscalização dasverbas públicas. Não há prejuízo mais irreparável para uma sociedadedo que conviver com a diretriz “rouba, mas faz”. O problema nãoestá no que o governante com tal seqüela efetivamente faz; mas exa-tamente naquilo que deixa ele de fazer, embora vital para o interessecoletivo.

Por que muitos homens bem-intencionados não têm coragemde disputar eleição? Qual a razão de pessoas perdulárias na administra-ção da coisa pública – que, inclusive, comprovadamente desviaramdinheiro para si ou para os que os cercam – terem, com espantosafreqüência, a simpatia do eleitor menos esclarecido? Parece residir afalha não apenas na lei disciplinadora das inelegibilidades, mas sobre-tudo na aplicação das normas que disciplinam o acesso ao poder.

3. A posição da jurisprudênciaUma reflexão urgente se impõe, neste início de milênio, para

superarmos o vexame, diante das gerações futuras, decorrente do fatode entregarmos dinheiro público para ser gerido por pessoas sabida-mente desonestas. A solução imediata para esse vergonhoso dramapode ser extraída da própria ordem jurídica vigente. Basta conscienti-zação sobre a gravidade do problema e determinação para resolvê-lo.

A propósito, dispõe a Constituição, no art. 14, § 9.º:

“Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibili-dade e prazos para sua cessação, a fim de proteger a probidadeadministrativa, a moralidade para o exercício do mandato,considerada a vida pregressa do candidato (...)” (g.n.).

Esse princípio constitucional, que manda considerar a vida pre-gressa na aferição da elegibilidade, teve, entretanto, sua vigência

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interceptada pelo TSE, como se constata do Acórdão n.º 13.031-MG,da lavra do ministro Francisco Rezek, com esta ementa:

“Recurso especial. Inelegibilidade. Contas rejeitadas. Pro-positura de ação anulatória. Vida pregressa do candidato.Art. 14, § 9.º, CF.

Proposta ação para desconstituir a decisão que rejeitou ascontas, anteriormente à impugnação, fica suspensa a inelegi-bilidade (Súmula-TSE n.º 1).

A vida pregressa do candidato só pode ser considerada paraefeito de inelegibilidade quando lei complementar assim oestabelecer. Recurso provido”. (Jurisp. do TSE, v. 8, n. 2,abr.-jun. 97, fl. 282 – g.n.)

O relatório assim expõe a decisão do TRE de Minas submetida aexame da Corte Superior:

“Trata-se de recurso especial de Edson Megaço contra decisãodo TRE/MG, que, confirmando sentença monocrática, indeferiuo registro de sua candidatura à Prefeitura do Município de TrêsMarias. O acórdão foi assim ementado:

‘Registro de candidatura. Indeferimento. Ações penais e civilpública em curso. Contas rejeitadas. Propositura de ação anu-latória. Manobra para fugir à inelegibilidade prevista no art.1.º, I, g, da LC n.º 64/90. Inelegibilidade não afastada.

Precedente jurisprudencial do colendo TSE.Recurso desprovido’”. (Op. cit., p. 283.)

Em seu voto, acolhido para reformar o julgado da Corte mineira,destacou o eminente relator:

“Como acentua o Procurador-Geral Eleitoral, não há como afas-tar a aplicação do enunciado da Súmula n.º 1 do TSE à espécie:

‘Proposta a ação para desconstituir a decisão que rejeitouas contas, anteriormente à impugnação, fica suspensa a inele-gibilidade (Lei Complementar n.º 64/90, art. 1.º, I, g).

A restrição à capacidade eleitoral passiva do cidadão pres-supõe o trânsito em julgado de decisões condenatórias, e jádecidiu o STF que o art. 14, § 9.º, da CF não cria hipótese deinelegibil idade por falta de probidade e moralidadeadministrativa transparente na vida pregressa do candidato,

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mas determina que lei complementar o faça, integrando oregime de inelegibilidades da ordem constitucional (Agravode Instrumento n.º 165.332, relator o ministro Ilmar Galvão).Tais as circunstâncias, provejo o recurso para determinar oregistro da candidatura do recorrente”. (Op. cit., p. 283.)

Desde 1994, aguarda-se a definição de “vida pregressa” para dareficácia à norma do art. 14, § 9.º, da Constituição. A propósito, lembraWill Durant:

“Existem apenas três coisas que valem neste mundo: justiça,beleza e verdade; talvez nenhuma delas possa ser definida.Quatrocentos anos depois de Platão, um procurador romano daJudéia perguntou, desorientado: ‘O que é a verdade?’ – e osfilósofos ainda não responderam, e tampouco nos disseram oque é a beleza”. (A história da filosofia, p. 60.)

4. O enfoque constitucional da vida pregressaNum País que pretenda efetivamente livrar-se da corrupção,

é impossível aplaudir a conclusão daquele aresto, pelas conseqüên-cias danosas que está a produzir na coletividade. A exigência dedefinição legal de vida pregressa para aferição de seus efeitos, naórbita eleitoral, é doloroso que se diga, além de juridicamente des-necessária, acabou por permitir o acesso ao poder de inúmerosprefeitos cujo passado não recomenda qualquer contato com odinheiro público. Menos ainda para o exercício da função de pri-meiro mandatário de Município já deploravelmente mutilado porsuas ações criminosas.

A exigência de lei para definir vida pregressa, traçando os con-tornos dos seus efeitos na órbita eleitoral, parece excessiva. Tenha-sepresente que a Constituição, em diversos artigos, exige probidade parao exercício de qualquer função pública, recomendando, inclusive, a cas-sação dos direitos políticos e o afastamento do cargo nos casos decorrupção. O repúdio à improbidade pode ser aferido pela ênfaseemprestada ao tema por nossa Lei Maior. Como já sublinhado, nadamenos do que cinco dispositivos lhe foram reservados: art. 5.º, LXXIII;art. 14, § 9.º; art. 15, V; art. 37, § 4.º; e art. 85, V.

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Fácil concluir, nesse contexto, que qualquer pessoa condenada porcrime relacionado com desvio de dinheiro público, ainda que nãotransitada em julgado essa decisão, não preenche o requisito constitucionalque manda considerar a vida pregressa na aferição dos casos de inelegi-bilidade. A edição de mais uma lei para ratificar e assegurar eficácia àquiloque a Constituição erigiu à categoria de princípio importa, em últimaanálise, em subtrair-lhe vigência.

Pertinente, outrossim, a advertência da professora Carmen LúciaRocha:

“A história do Direito dos povos tem comprovado que quantomaior o número de leis votadas e promulgadas, mais corrup-ção se tem. É que o número demasiadamente elevado de leisnão demonstra senão a falta de respeito a elas, pois menos seas conhecem, mais se as descumprem. Aliás, a elaboraçãoexcessiva de leis, sob o falso argumento de que serviria feituratão constante ao refreamento de costumes administrativos eprivados desconexos com o princípio da moralidade, mais nãoserve que à demonstração cabal de que nem mesmo quem aselabora respeita-as”. (Princípios constitucionais daAdministração Pública, p. 196-197.)

Também Canotilho, com a sua lucidez inexcedível de mestre,adverte:

“(...) além de constituírem princípios e regras definidorasde diretrizes para o legislador e a Administração, as ‘normasprogramáticas’ vinculam também os tribunais, pois os juízes‘tem acesso à Constituição’, com o conseqüente dever deaplicar as normas em referência (por mais geral e indetermi-nado que seja o seu conteúdo) e de suscitar o incidente deinconstitucionalidade, nos feitos submetidos a julgamento dosatos normativos contrários às mesmas normas”. (DireitoConstitucional, p. 193.)

5. Os danos advindos do entendimento jurisprudencialA propósito, o Jornal do Brasil, edição de 11 de março de 1998,

seção de política, destaca a seguinte matéria: “Saída de diretores sobsuspeita acaba com crise no Tribunal”. De sua leitura, fica patenteada

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não só a importância de levar em conta a vida pregressa dos ocupantesde função pública, como sobretudo o fato de efetivamente levá-la emconsideração a Justiça Eleitoral no preenchimento dos cargos de suaestrutura administrativa, cuja atuação do ocupante e perspectivas dosdanos que possa causar é significativamente menor do que aquelaatribuída aos responsáveis pelos cofres em que são depositadas todasas finanças de Estados e Municípios. A matéria ali veiculada ilustra anecessidade de reformulação das deliberações jurisdicionais em que éenfocado o tema: vida pregressa do candidato com nota de improbi-dade em suas ações. É oportuno, por isso, transcrever integralmenteaquele texto:

“Marco Túlio Galvão Bueno e Jorge Prates Paul, os dois fun-cionários que o desembargador Martinho Campos, presidentedo Tribunal Regional Eleitoral do Rio, não queria exonerar,entregaram suas cartas de demissão na tarde de ontem.

Os dois têm ficha criminal, mas Martinho Campos não quisatender aos pedidos do colegiado do TRE para que fossem afas-tados, o que provocou uma crise no Tribunal na semana passada.

Ontem, o colegiado do TRE do Rio retirou da pauta amudança de regimento que iria tirar poderes de Martinho Cam-pos. Os juízes vão apresentar outra proposta em que os po-deres do presidente são mantidos.

Se Marco Túlio Galvão Bueno e Jorge Prates Paul não tives-sem deixado seus cargos, a mudança do regimento interno doTribunal daria poderes ao colegiado para exonerá-los.

Desde sexta-feira, quando Martinho Campos se reuniu como presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ilmar Galvão, já seimaginava que os dois pediriam demissão.

‘Vamos achar uma solução, ainda que isso implique o sa-crifício de alguns’, disse o presidente do TSE depois do en-contro em Brasília.

As folhas criminais de Bueno e de Paul registram processosvariados, que vão desde estelionato à agressão, passando porfurto e disparo em via pública.

Até ontem Bueno era diretor-geral do TRE, Prates Paul erasecretário administrativo, cargo a quem competia a realizaçãodas licitações de compras para o Tribunal.

Martinho Campos chegou a defender os dois funcionários.De Prates Paul, disse que era um dos maiores entendidos emlicitações do País.

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Segundo o desembargador, como não foram condenadosem nenhum dos processos, os dois deveriam ser consideradosinocentes. Para os outros juízes, os antecedentes criminaisdos dois já seriam suficientes para que a moralidade fossequestionável.

(...)Se a mudança do regimento tivesse sido votada, o colegiado

do TRE passaria a nomear o diretor e os cinco secretários doTribunal, além de ter de autorizar as compras e as cláusulasdos concursos públicos para funcionários do Tribunal” (g.n.).

Na verdade, o TRE do Rio de Janeiro experimentou na própriapele a angústia vivenciada pelos contribuintes que têm o comando desuas cidades entregue a pessoas comprovadamente sem probidade, massem condenação criminal ou com esta não transitada em julgado. Évisível o pânico que tomou conta daquela Corte diante da perspectivade serem suas licitações comandadas por pessoas cuja vida pregressaregistrava acusações de furto. A ação disponível foi acionada de imediato:uma proposta de modificação do regimento para restringir as açõesdos servidores tidos por inidôneos.

No sertão distante, sem poder algum para reagir aos atos deimprobidade dos seus governantes, ao cidadão só resta deplorar a indife-rença da Justiça Eleitoral em relação aos postulantes de cargo eletivo como perfil daqueles diretores do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro,que ensejaram a revolta da respeitada Corte. Os danos causados ao gruposocial por gestor comprovadamente sem probidade são inestimáveis.

6. A interpretação mais compatível com o texto daConstituição, no final do século XX

Em primoroso estudo sobre a repercussão dos princípios cons-titucionais na Administração, a festejada professora Carmen LúciaAntunes Rocha destaca o fato de que a sociedade não é composta deanjos. Daí a necessidade não apenas de normas hipoteticamente descritas,mas sobretudo efetivamente aplicadas pelos que detêm essa atribuição,objetivando a preservação e a efetivação da moralidade administrativa.Suas ponderações são irrefutáveis:

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“A moralidade administrativa não é uma questão que começae termina na qualidade dos homens, mas na qualidade dossistemas jurídico, político e administrativo vigentes emdeterminada sociedade estatal. Afinal, sabe-se que o Estadonão é uma organização de santos. E por que não o é,cogita-se dos sistemas jurídico, político, econômico e ad-ministrativo para se aperfeiçoarem as formas de convivênciasocial. Fosse o Estado uma sociedade de santos, não pre-cisaria ele destes sistemas. Fosse, por outro lado, umasociedade de demônios, não adiantaria considerar aquelessistemas. No exercício da liberdade humana, não se pro-movem milagres, menos ainda o da transformação daessência do homem; produz-se apenas o Direito, suficientepara que, no exercício daquela liberdade, se concretize oideal de justiça pensado e buscado em determinadasociedade de homens, dotados do bem e do mal. Homenssão os mesmos em todos os lugares: têm as mesmas ne-cessidades, as mesmas aspirações, o mesmo ideal de serfeliz. O que muda de um para outro lugar é o sistema denormas de convivência por eles concebido e praticado parao atingimento de seus objetivos”. (Princípios constitucionaisda Administração Pública, fl. 185.)

Não se pode afirmar que o nosso sistema jurídico não se acheequipado com normas aptas a repelir o acesso, aos cargos públicos, depessoas comprovadamente sem probidade. Em absoluto. Há até excessodessas normas. Falta apenas colocá-las em prática com a determinaçãoe a firmeza com que agiram os juízes eleitorais do Rio de Janeiro quandovisualizaram o problema sob o ângulo de possíveis vítimas das açõesdaqueles servidores. Basta simplesmente emprestar eficácia aos princípiosconstitucionais que repudiam a improbidade.

Reitere-se que o poder pertence ao povo e em seu nome deve serexercido. É evidente que esse exercício não é para favorecer aquele querecebe a delegação. Por isso, a comprovação pura e simples de desviode verba ou locupletação indevida deve ensejar o afastamento da fun-ção de quem delinqüiu. A soberania popular, consagrada no art. 1.º daConstituição, não pode transformar-se em instrumento de ficção,assegurando o acesso ou a permanência no poder aos responsáveis porações contrárias ao seu único titular: o povo, transformado em soberanotraído, lesado e impotente.

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7. A moralidade administrativa comodireito do cidadão

Se o candidato, antes de sua eleição, já demonstrou falta de com-promisso com a boa aplicação das verbas públicas, é evidente que,enquanto gestor, não terá compromisso nenhum com a moralidade,elevada pela Constituição de 1988 à condição de direito de todo cida-dão. Ainda aqui é oportuna a lição da professora Carmen Lúcia:

“A moralidade administrativa tornou-se não apenas umdireito, mas direito público subjetivo do cidadão: todo cidadãotem direito ao governo honesto.

(...) A moralidade administrativa é, pois, princípio jurídicoque se espraia num conjunto de normas definidoras dos com-portamentos éticos do agente público cuja atuação se volta aum fim legalmente delimitado, em conformidade com a razãode direito exposta no sistema normativo. Note-se que a razãoética que fundamenta o sistema jurídico não é uma ‘razão deEstado’. Na perspectiva democrática, o direito de que se cui-da é o direito legitimamente elaborado pelo próprio povo,diretamente ou por meio de seus representantes. A ética daqual se extraem os valores a serem absorvidos pelo sistemajurídico na elaboração do princípio da moralidade administra-tiva é aquela afirmada pela própria sociedade segundo assuas razões de crença e confiança em determinado ideal dejustiça, que ela busca realizar por meio do Estado”. (Ob. cit.,fls. 190-191.)

Todo cidadão tem direito ao governo honesto – esse, efetivamente,o reconhecimento do constituinte ao atribuir foro constitucional aoprincípio da moralidade, que precisa ser melhor avaliado entre nós.

Por exemplo, certo político, cuja improbidade no exercícioda função já se incorporou ao folclore da política no Ceará, pelas formasinacreditáveis com que a exercita, foi impedido de disputar a eleição paraprefeito, em 1996, pela Corte Eleitoral cearense. Esta, para preservar suaelevada reputação perante a população – que há anos convive com asnotícias de investidas daquele gestor contra os cofres do Município –,invocou a condenação criminal do político em questão, em primeira ins-tância, por crime contra a Administração Pública.

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A ementa do acórdão regional, lavrado pelo desembargador StênioLeite Linhares, deu a devida resposta à indignação da sociedade ante orosário de ilicitudes do candidato:

“A suspensão dos direitos políticos estipulada pelo art. 37, §4.º, da Constituição Federal, independe do trânsito em julgadoda sentença condenatória por crime de improbidadeadministrativa. Recurso provido. Sentença reformada com a con-seqüente cassação do registro da candidatura do condenado”.

O voto do relator aponta o mecanismo jurídico para conter osadministradores desonestos, impedi-los de persistir com suas ilicitu-des, criando, enfim, óbice efetivo à prática nefasta da corrupção:

“(...) No entanto, a 13 de fevereiro passado, o recorridosofreu condenação criminal, por atos de gravíssima improbi-dade administrativa, sendo condenado a 8 (oito) anos dereclusão pela MM. Juíza da Comarca de Pacajus.

No preciso dizer do emérito constitucionalista José Afonso daSilva, ‘a improbidade diz respeito à prática de ato que gere preju-ízo ao Erário Público (sic) em proveito do agente. Cuida-se deuma imoralidade administrativa qualificada pelo dano ao Erário ecorrespondente vantagem ao ímprobo. O ímprobo é o devassoda Administração Pública. (...) (In Curso de Direito Constitucionalpositivo. 9. ed., São Paulo: Malheiros, 1992. p. 337.)

O recorrido, repete-se, sofreu condenação criminal porimprobidade administrativa.

Conforme o art. 37, § 4.º, da Constituição Federal, ‘os atosde improbidade administrativa importarão a suspensão dosdireitos políticos’.

Essa sanção política decorre do processo criminal. Não temnatureza de pena acessória, é de efeito automático e independedo trânsito em julgado da sentença condenatória, por ter origemem norma auto-aplicável, consoante já salientou o eg. TSE noacórdão unânime proferido em 6.12.90, no Mandado de Segurançan.º 1.114, do Paraná, de que foi relator o min. Bueno de Souza.

Não se diga que semelhante entendimento atrita com oinciso III do art. 15 da Constituição Federal. Ao se referir àimprobidade administrativa, no inciso V do mesmo dispositivo,a Carta Magna não faz menção a ‘trânsito em julgado’, o quereforça a idéia de autonomia da sanção política sub examine”.

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Entretanto, o colendo TSE reformou a decisão do TRE-CE e ga-rantiu a elegibilidade do referido candidato, por intermédio do Acórdãon.º 13.825, da lavra do eminente ministro Eduardo Ribeiro, com aseguinte ementa:

“Inelegibilidade. Ato de improbidade.A condenação criminal, por delito contra a Administração

Pública, não importa inelegibilidade enquanto não se verificaro trânsito em julgado.

A disposição contida no art. 37, § 4.º, da Constituiçãoaplica-se nos termos da Lei n.º 8.429/92”. (Jurisp. do TSE, v.8, n. 2, abr./jun., fls. 375-376.)

No voto proferido nesse julgamento, acolhido pela Corte, anotouo relator:

“(...) A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral era firmeno sentido de que a sentença condenatória importava inelegi-bilidade, mesmo antes de haver coisa julgada, nos termos daLC n.º 5/70. E assim continuou a entender, após a Constituiçãode 1988, quando se tratasse de delito envolvendo a moralidadeadministrativa. Veja-se, a propósito, o REspe. n.º 7.217, rela-tor: ministro Vilas Boas Teixeira.

Com a edição da LC n.º 64, essa orientação não mais sepoderia sustentar. A condenação por crime contra a Adminis-tração Pública só acarreta inelegibilidade quando houver ocor-rido o trânsito em julgado, como expresso na letra e, item I, doart. 1.º daquela lei.

A disposição contida no § 4.º do art. 37 da Constituição nãobasta para amparar a conclusão do julgado. Ali se consigna queas sanções cominadas serão aplicáveis na forma e gradaçãoprevistas em lei. E nenhuma estabelece que da condenaçãocriminal, por sentença sujeita a recurso, resulte suspensão dedireitos políticos. A matéria está regulada na Lei n.º 8.429/92,onde se explicitam as hipóteses que acarretam as punições deque cuida a Constituição, graduam-se as sanções e se estabe-lece o procedimento a ser observado”. (Ob. cit., fl. 377.)

Na prática, o acórdão em alusão, concessa venia, prestigiou aimprobidade, estimulando ainda mais a sua proliferação entre os gesto-res públicos. O dever de retratação da realidade obriga registrar que

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nenhuma manifestação da Justiça Eleitoral – cujas posições costumamreceber aplausos da população – provocou tanto ceticismo e desilusão,no Estado do Ceará, como esta. Em todos os lugares, o sentimento deindignação aliava-se ao pessimismo e à falta de esperança em ver che-gar o dia em que este País, já sobrecarregado de tantas normas, repeliráefetivamente da vida pública os que vivem de rapina, que fazem dodinheiro público instrumento insaciável de ambição.

No dia 12 de março de 1999, o jornal O Povo, na página 3, trouxeesta manchete: “Prefeito de Pacajus é acusado de desviar dinheiro doFundef ”. Ninguém poderia duvidar disso. Se já fora até denunciado,antes do registro da candidatura, era rigorosamente previsível que vol-taria às manchetes sobre o mesmo tema, relatado no corpo da matéria:

“Vereadores denunciam fraudes no uso dos recurso do Fundode Manutenção e Desenvolvimento do Ensino e Valorização doMagistério (Fundef) em Pacajus (a 49 quilômetros de Fortaleza).As denúncias tratam de superfaturamento de serviços e usoindevido de dinheiro, que deveria ser investido no ensino fun-damental”.

Sabedor dessa realidade, o julgador, que com ela convive, concessavenia, não pode alegar o seu desconhecimento para exigir trânsito emjulgado de condenações criminais para comprovação de improbidade.Não se conhece, no Ceará, trânsito em julgado de decisão penal con-denatória contra gestor de dinheiro público que o tenha desviado.

São centenas de denúncias criminais em tramitação no Tribunalde Justiça do Ceará contra prefeitos que desviaram dinheiro público.Apenas um único caso, iniciado em 1990, foi julgado, oito anos depois,sendo o acusado condenado à pena de reclusão. No entanto, este recor-reu, e a nenhum brasileiro é dado saber quando ocorrerá o trânsito emjulgado da condenação naquele processo.

Aliás, desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,que integra a Constituição francesa, a presunção de inocência, no mun-do civilizado, deixou de ter a amplitude extravagante prevalecente entrenós, capaz de credenciar um apenado por crime de peculato ao exercí-cio da função mais relevante no grupo social: a guarda do dinheiro dapopulação. Lê-se, a propósito, no art. 9.º daquele texto de 1789:

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“Todo acusado se presume inocente até ser declaradoculpado, todo o rigor não necessário à guarda da sua pessoadeverá ser severamente reprimido pela lei”.

No ano 2000, o TRE-CE voltou a indeferir, por unanimidade, opedido de registro daquele prefeito de Pacajus, candidato à reeleição. OTSE, porém, outra vez reformou a decisão da Corte Regional,determinando o registro de sua candidatura. Eleito novamente em seuMunicípio, ninguém duvida sobre a continuação da prática de ilícitos,cujo pleno conhecimento impossibilitou o deferimento do seu registrocomo candidato pelos integrantes do Tribunal cearense. A maior pro-ximidade da Corte local com a realidade impediu a invocação de norma,dela totalmente divorciada, para chancelar aquilo que estava a provocarestarrecimento na população do Estado.

A exigência de trânsito em julgado de condenação para simplesaferição de improbidade, em última análise, significa prestigiá-la, esti-mulando os governantes desonestos a persistirem na sua sina, tornandoimpotente a ordem jurídica para enfrentá-los, como se o Direito pátrio,no limiar do terceiro milênio, não dispusesse de mecanismo para darsatisfação aos seus legítimos destinatários: o povo brasileiro. Este povo,é constrangedor registrar, acha-se desiludido e desencantado com assoluções propostas, sempre tendentes à preservação dos direitos polí-ticos dos comprovadamente desonestos.

Por exemplo, o jornal O Povo, de Fortaleza, edição do dia 6 deabril de 1998, estampou, na sua primeira página: “50 dos 184 prefeitosdo Ceará já estão denunciados no TCM”. Com espantosa freqüência,as manchetes se sucedem, denunciando desvio de dinheiro por gesto-res que já o fizeram em mandato anterior. A indiferença da JustiçaEleitoral, quando chamada a manifestar-se sobre a elegibilidade de pes-soas com tal perfil, infelizmente tem concorrido para a proliferação des-sa situação desconfortável.

A verdade é que a lei não pode inviabilizar as diretrizes fixadas naConstituição. Afirmar que um gestor condenado criminalmente pordesvio de dinheiro público, apenas porque não transitou em julgado adecisão, reúne os requisitos de vida pregressa e probidade administrativaque a Constituição exige para o exercício de função pública, é neutralizar

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ou inviabilizar todas as exigências constitucionais tendentes a impedir oacesso ao poder dos devassos da Administração Pública.

Pior e mais grave que isso é desconhecer a realidade dolorosa eangustiante, sedimentada neste País, segundo a qual “até prova emcontrário, não se deve confiar em ninguém”, tamanho o índice decriminalidade que exibe a sociedade brasileira neste início do terceiromilênio. Basta simples contato com o povo desiludido para a com-provação da assertiva, cuja causa reside, sobretudo, na ausência de sançãopara os que fazem fortuna valendo-se do exercício de cargos públicos.Patrimônio incompatível com a receita, denúncia criminal em processosem conclusão, após longos e longos anos de tramitação – esse quadroestigmatizante faz do cidadão brasileiro eterno descrente das sançõesprevistas para os seus governantes desonestos, os quais, absurda e ver-gonhosamente, são poupados da prisão.

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CAPÍTULO VIII – A QUESTÃO DA TERRA

1. TERRA PARA TODOS; 2. SEM TERRA, SEM LEI E SEM PACIÊN-CIA; 3. LIBERDADE E ABUSO DE DIREITO; 4. COOPERATIVAS EEMPREGO NO SERTÃO; 5. CRISE ECONÔMICA: FALÊNCIA E DIFI-CULDADES PARA A SOBREVIVÊNCIA DAS EMPRESAS; 6. JUVEN-TUDE RICA E VELHICE POBRE; 7. O CREPÚSCULO DE TODOS.

1. Terra para todosDeve-se buscar, a todo custo, solução para o drama de milhares

de pessoas sem terra e sem referencial algum para qualquer operaçãofinanceira. Nenhum país conseguirá efetiva paz social se a maioria doseu povo não tiver motivação para, espontaneamente, dar seu apoioà defesa do direito de propriedade. À medida que mais pessoas setornam proprietárias de terra, mais o respeito a esse direito seconsolida.

A razão é óbvia. Se alguém nunca possuiu terra alguma nem tema expectativa de possuí-la, como haverá de assimilar a essência do direitode propriedade, que impõe a todos o respeito, a intocabilidade no bempertencente a outrem? Numa conclusão lógica, somente por extremamá-fé, quem já é titular de propriedade invadirá o imóvel de outro, nacondição de “sem-terra”.

Tarda, com graves prejuízos para todos, a solução do problemada terra. Na verdade, à luz dos fatos comprovados pela História, osúnicos proprietários das terras, no Brasil, eram os índios. Foram elesexpulsos de suas glebas e obrigados, inclusive, a viver distante do litoral.A primeira lição, pois, em que se inspiraram os sem-terra lhes foi dadapelos portugueses. Os índios, não se pode desconhecer, foram as pri-meiras vítimas da inconveniência da prática de esbulho, cujo embriãopode ali ser detectado. Resignado, um deles, integrante de tribo dointerior do Mato Grosso, exteriorizou a sua pureza:

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“Deus, ao criar a terra, não disse que pertencia aofazendeiro nem ao índio. Ele criou a terra para todos. Atépara os passarinhos”. (Apud, Esse Congresso, Léo da SilvaAlves.)

A distribuição efetiva do solo, a disponibilização de meioseficientes para o seu cultivo e produção são ingredientes da paz socialno campo. O Brasil, diferentemente dos Estados Unidos, sempre esti-mulou a concentração de terra. Quem nada possui além da própriavida torna-se presa fácil à absorção da idéia de que é mais nobre mor-rer lutando pelo seu bem-estar do que morrer à míngua.

A eloqüência e a radicalização de alguns líderes geralmente aca-bam provocando a aproximação incendiária de componentes sociais al-tamente explosivos: a carência excessiva de tudo e o vazio, nas classesdominantes, de lideranças comprometidas com o bem-estar coletivo.

Terras públicas são griladas com freqüência, e títulos são forjadospara transferi-las a latifundiários, com a cumplicidade, muitas vezes, decartórios e autoridades, inclusive do Judiciário. Uma providência salutarfoi adotada pelo Ministério da Reforma Agrária, no início do ano 2000,mandando cancelar dezenas de títulos sem origem.

Uma correição nos cartórios em que foram registrados os títulosde propriedade dos grandes latifúndios brasileiros, ou uma auditoriabem elaborada sobre eles, seguramente produzirá efeito mais eficaz doque as invasões patrocinadas pelo MST, tamanha a fragilidade de muitadocumentação relativa à terra no Brasil. A auditoria nos títulos, acom-panhada por todos os segmentos da sociedade brasileira, desnudará asirregularidades que acarretam tanta injustiça no campo.

A cronologia dos fatos não permite erro. Todas as terras no Bra-sil, após o descobrimento, pertenciam a Portugal. Eram, portanto, ter-ras públicas que passaram sucessivamente à titularidade do Império eda República.

A transferência desses bens aos particulares se deu gradativa-mente, por meio de concessões de sesmaria, concessão de data, per-muta, doação, compra e venda ou aforamento; por isso, pacificou-se oentendimento de que toda terra sem título de propriedade particularpertence ao domínio público.

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A Lei Imperial n.º 601, de 18.9.1850, além de definir as terras de-volutas, proibiu sua aquisição por outro meio que não a compra. A Cons-tituição de 1891 afirmou pertencerem aos Estados-membros as terrasdevolutas situadas nos respectivos territórios, cabendo à União somentea porção de território indispensável para defesa das fronteiras, fortifica-ções, construções militares e estradas federais (art. 64).

O Decreto Federal n.º 19.924, de 27.4.1931, além de reafirmar odireito dos Estados-membros sobre as terras devolutas cuja propriedadelhes foi transferida pela Constituição de 1891, determinou expressa-mente, no art. 1.º, a exclusão de usucapião sobre elas.

As Constituições de 1946 e 1969 mantiveram no domínio dos Es-tados-membros todas as terras devolutas não compreendidas no patri-mônio da União. A Constituição de 1988 preservou essa diretriz, reite-rando, no art. 26, IV, pertencerem aos Estados as terras devolutas nãocompreendidas entre as terras da União, recomendando a priorizaçãode sua utilização para a reforma agrária (art. 188).

Terras devolutas, ensina Hely Lopes Meirelles, “são todas aquelasque, pertencentes ao domínio de qualquer das entidades estatais, nãose acham utilizadas pelo Poder Público, nem destinadas a fins adminis-trativos específicos”. Adverte ele ainda, com a sua autoridade exaltadade mestre, serem aquelas terras públicas não suscetíveis de usucapião.(Direito Administrativo brasileiro, 17. ed., p. 456-457.)

Assim, ao apresentar-se alguém como proprietário de um distritoou Município, a causa dessa aberração, por certo, estará na inidoneidadeda cadeia dominial, não no Direito, que disciplina as relações sociais.

Bastará, para a constatação da anomalia, ter em mente que asterras não pertencentes ao particular são, em princípio, devolutas; valedizer, terras públicas. Se, no exame da cadeia sucessória do imóvel nãofoi ele adquirido, doado ou cedido pelo ente público competente, odocumento em que está respaldado eventual domínio, ainda que sen-tença em processo de usucapião, é inidôneo. Qualquer pesquisa maisprofunda exibirá a ilicitude de sua constituição. O simples zelo doscartórios de imóveis e maior rigor dos juízes no exame de documenta-ção referente a latifúndio evitarão a aflição de milhares de pessoas, víti-mas da sagacidade de alguns que sempre apostaram, com êxito, na im-punidade e na supremacia de suas conveniências e ambições.

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Na verdade, as terras particulares, no País, como ficou assinalado,foram fruto de doação, cessão ou alienação pela Coroa, pelos gover-nos da República ou poderes locais. As sesmarias, por exemplo, sãotítulos de doação da Coroa; as capitanias hereditárias idem; etc.

Se, porém, a gleba não é terra ocupada por índios nem é terrenode marinha – de propriedade da União –, tampouco se encontravalidamente registrada no nome de um particular, é terra devoluta. Per-tence ao Estado em cujo território se localiza (art. 26, IV, CF).

Terra devoluta não pode ser objeto de usucapião. Essa proibiçãoestá expressamente contida no parágrafo único do art. 191 da Consti-tuição da República. O usucapião de terra pública é a anti-reformaagrária, cuja ausência tanto desconforto tem provocado.

De outra parte, seria muito proveitoso um programa com finan-ciamento federal para auxiliar os Estados a discriminar todas as terrasdevolutas de sua propriedade indevidamente ocupadas. Essa providên-cia por certo traria várias surpresas. Talvez pudesse detectar eventualpagamento pela desapropriação de imóveis pertencentes ao próprio PoderPúblico para assentamento dos sem-terra.

É preciso ficar bastante claro, na sociedade brasileira, que todos,indistintamente, têm direito a um pedaço de terra neste País de mais de oitomilhões de quilômetros quadrados. É irracional, e até patológico, que algunspoucos tenham a pretensão de ser donos de quase todas as glebas.

Cuida-se de postura duplamente obscura. Primeiro, porque arealidade deste limiar de século, pontilhada de total insegurança, jádeixou bem claro que riqueza demais onde a pobreza é exagerada éatração fatal para seqüestro e outros inconvenientes. Segundo, por-que, verdadeiramente mesmo, depois de todas as lutas, bravuras econdecorações, o maior de todos os latifundiários necessitará,quando encerrar a vida, de um diminuto espaço no chão pararepousar eternamente. Nada mais racional, portanto, do que usu-fruir a riqueza com suavidade, filantropia e crescente espírito desolidariedade. Com essa visão pragmática, nenhum governo conse-guirá atrapalhar este País de vivenciar o seu destino de ser efetiva-mente justo em relação a todos os seus filhos.

Em julho de 2000, em Ocara, interior do Ceará, uma senhora de78 anos contratou pistoleiros para defender sua fazenda, ameaçada de

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invasão pelos sem-terra. Alguns invasores morreram no conflito ali tra-vado. Os assassinos fugiram, e aquela anciã foi presa em flagrante.

Esse episódio mais uma vez trouxe à tona o grave problema daterra. A paz, para fruição plena de sua gleba, buscada por aquela senhoraquase octogenária por meio das armas de pistoleiros, não será desfru-tada por ela nem por sua família. Suas doenças se agravaram após aprisão e muito provavelmente não terá vida melhor após o incidente.

A solução seria, então, entregar a fazenda aos invasores, semreação? Ninguém pode mais ser proprietário neste País? Nessa linhade aberração, existe já uma obrigação de entregar dinheiro ao ladrão,quando ele o exige das suas vítimas cada dia mais intranqüilas?

Na verdade, o absurdo consumou-se em nossa sociedade. Decorreisso da falta de conscientização de que, se num grupo social a vasta mai-oria dos seus integrantes não tiver acesso à propriedade da terra, todosos proprietários viverão sob permanente ameaça.

Quem nada tem não tem motivação alguma para respeitar o direitode propriedade dos que podem dele usufruir. Proprietários e autorida-des, todos devem ter consciência da dimensão do problema, que não seresolverá com tiros isolados deste ou daquele pistoleiro ou policial.

A questão é de excesso de egoísmo e visão obscura na constru-ção de um Direito que somente prestigia quem já dispõe de muito,deixando de se preocupar com os muitos que nada têm. É imprescin-dível que haja distribuição de terras para todos. Sem isso será inútilexaltar o direito de propriedade no texto constitucional. Nem a velhicepoderá ser fruída com a tranqüilidade que o peso dos anos reclamam.

Morte de sem-terra, prisão de proprietários, grileiros, insuflado-res e policiais despreparados, tudo isso se resume em duas palavras:egoísmo e burrice. Talvez burrice por excesso de egoísmo em suporque o acesso à terra é um privilégio para poucos.

2. Sem terra, sem lei e sem paciênciaEm 1997, um grupo de pessoas recebeu, do Estado do Ceará,

títulos de propriedade de imóveis localizados na zona rural. Na ocasião,ficou acertado que o governo liberaria verba para a implantação da infra-estrutura no local do assentamento.

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O Banco Mundial e a Secretaria de Planejamento, até o mês dedezembro daquele ano, não puderam liberar o dinheiro prometido. Emconseqüência disso, diversas pessoas se postaram em frente à Secretariade Agricultura, na avenida Bezerra de Menezes. Ali instalaram um acam-pamento onde permaneciam sem se afastar, salvo para tentar invadir oprédio público em frente.

A primeira vítima dessa ocupação da rua foi uma churrascaria,cuja clientela desapareceu após a instalação do acampamento. Depois,um posto de gasolina, cujos clientes ficaram sem acesso ao local paraabastecimento. Vizinhos, estudantes e moradores da redondeza passa-ram a cobrar da polícia e das autoridades uma postura de preservaçãoda ordem pública.

Pessoas dos mais diversificados segmentos sociais diariamenteacusavam as autoridades de omissas, de estimularem o descumprimentoda lei, na medida em que nenhuma providência adotavam contra quemse apossara da via pública.

Os dias se passavam, reuniões se sucediam e nenhuma soluçãoamigável era encontrada no sentido de que fosse o acampamentolevantado. O Ministério Público, ante a situação de indigência de inú-meras crianças expostas ao sol e à chuva, determinou a sua locomoçãopara abrigo menos constrangedor. Inútil a providência, porquantoestavam elas a emprestar força ao poder de barganha dos acampados,muitos dos quais chegavam a confessar não poder retornar ao domicílio,diante das ameaças de perda do lote onde residiam.

Vez por outra, estimulados por facções políticas, uma parte dosacampados saía em passeatas a prestar solidariedade a protestos deoutros grupos organizados. Numa dessas investidas, diante daimpossibilidade de ingresso de todos no prédio do Poder Legislativo,ocorreram conflitos com a polícia. Bombas de gás lacrimogêneo eferimentos leves em manifestantes e policiais computavam-se no finaldo conflito.

No dia 12 de dezembro de 1997, dia da inauguração do novoprédio do fórum da cidade de Fortaleza, programaram os acampados,para aquele local, uma manifestação estilo “invasão Kandir”, que con-sistiu na inusitada ocupação do gabinete do ministro do Planejamento,Antônio Kandir, marcada pelo deboche, esfacelamento da autoridade

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constituída, culminando com a colocação de um peru sobre a mesa detrabalho do ministro. Segundo alguns, o plano seria ocupar as novasinstalações do fórum, inviabilizando sua inauguração e criando umimpasse de solução imprevisível para a desocupação.

Sob fundamento de preservar a ordem, a Polícia Militar, namadrugada daquele dia, cercou a parte da via pública utilizada pelossem-terra como acampamento. Ninguém lá entrava nem de lá saía.

A reação da sociedade foi imediata: de infratores da lei por ocu-parem indevidamente a via pública, obstruindo a passagem dos demaiscidadãos, os sem-terra tornaram-se vítimas de abuso policial. Procura-dores, advogados, políticos, líderes sindicais, padres e outros segmen-tos de expressão no grupo social formularam veementes restrições àação da polícia.

No final daquele dia, concordaram os sem-terra com a desocu-pação. Rebateu a polícia as críticas, enfatizando que não ocorreu ainvasão do fórum, não se verificou nenhuma morte e a rua foi desobs-truída. Na capital da República, governos de direita ou de esquerdanão têm conseguido desocupar área muito menor sem morte.

Alguns parlamentares vislumbraram naquele episódio o retornoda ditadura e o sepultamento da liberdade. A polícia, de sua parte,indagava como evitar, sem sangue, a ocupação do fórum ou comoretirar, do interior dele, invasores sem qualquer apreço pela lei ou res-peito pela autoridade constituída.

Em pleno ano 2000, o então governador de São Paulo, Mário Co-vas, tentou ingressar no prédio da Secretaria de Educação, ocupado háalgum tempo por professores grevistas. Foi, porém, esmurrado e agre-dido de outras formas, tudo documentado pela televisão, num cenáriode constrangimento geral.

Professores que não permitem o próprio governador de seuEstado ingressar na Secretaria de Educação necessitam, com urgên-cia, de maior formação para a convivência democrática. Ninguémtenha dúvida de que estão embrutecendo seus alunos pelo cultivo daintolerância. Formarão gerações violentas, no futuro, agressivas tantodentro como fora do poder.

Os especialistas em segurança qualificaram de imprudente a açãodaquele governador ao ingressar na secretaria sitiada sem auxílio da força

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policial. Se tivesse levado o aparato policial, e este fosse obrigado a desalojaros manifestantes que acaso resistissem, seria tachado de truculento.

Nos países de primeiro mundo, os prédios e locais públicos sãodesocupados com a utilização da força necessária para o restabelecimentoda ordem. Os telejornais não exibem imagens de cordialidade do aparatopolicial com aqueles manifestantes alienígenas. No Brasil, porém, asorganizações com sede naqueles países costumam mandar emissáriospara questionar pessoalmente autoridades nos procedimentos de deso-cupação de prédio público. Esses estabelecimentos destinam-se ao acessode todos. Qualquer grupo que ousar ocupá-los deve ter a consciência deque de lá vai sair, espontaneamente ou pela força. Reclamar da açãopolicial depois do crime de dano provocado em invasão de estabeleci-mento público, algumas vezes necessária diante da resistência, é expedienteque não deve ofuscar a ilicitude da ocupação.

A questão precisa ser enfocada de forma isenta e lúcida. Pressu-põe, para sua precisa avaliação, a exata noção de liberdade, inclusivepara a preservação desta, cujo sentido não pode ser irresponsavelmentebanalizado, sob pena de se tornar inviabilizada a sua fruição pelos abu-sos cometidos a pretexto do seu exercício.

Nesse passo, é oportuna a lição de William Penn, um dos funda-dores da Pensilvânia, em 1682:

“(...) dar força ao poder em relação ao povo, e preservar opovo de todo abuso de poder, a fim de que seja livre pela obe-diência legal; porque a liberdade sem obediência é confusão, eobediência sem liberdade é escravidão”. (Apud, Bibliotecade História. Grandes personagens de todos os tempos, Lin-coln, 3, fl. 20 – g.n.)

Nos episódios do Ministério do Planejamento, em Brasília, emque transformaram a mesa de um ministro da República em passarelapara desfile de peru, e na ocupação de rua no Ceará, os sem-terradeixaram patente que pretendiam sobrepor-se ao poder constituído, apretexto de exercerem sua liberdade de ir-e-vir.

A argumentação de tratar-se de simples exercício da liberdade deprotesto, ingenuamente lançada, acabou propagada por algumas lide-ranças desavisadas, sem o discernimento necessário para perceber queinexiste liberdade assentada sobre abuso de direito. A mesma democracia

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que assegura o exercício da liberdade repudia, para preservação de suaprópria sobrevivência, o descumprimento abusivo da lei, invocado comopressuposto para exercê-la.

Um dedicado líder sindical, então presidente da CUT, ao subirnas cadeiras da Câmara dos Deputados para protestar contra a reformada Previdência, não estava exercitando liberdade alguma. Estava, sim,expondo uma postura infeliz, não recomendada para a convivência nademocracia, que pressupõe divergências, pluralismo, discussão e vota-ção, com prevalência porém da deliberação da maioria.

Sobre o Parlamento podem recair todas as críticas; mas, inega-velmente, nele se concentra a síntese da sociedade brasileira, com todasas suas virtudes e suas inúmeras mazelas. Deve-se buscar a utilizaçãode todos os meios legítimos para impedir o ingresso, ali, dos que nãotêm compromisso com o interesse da coletividade. Não se pode tole-rar, sob hipótese alguma, a sua desmoralização, parta esta de lideran-ças sindicais, de militares, do clero, dos ex-combatentes ou de quemquer que seja.

A aceitação pacífica daquela postura desagradável do operoso lí-der sindical muito contribuirá para que alguns mais inconseqüentes ad-voguem a extinção daquela Casa, por não se darem conta de que, sem apermanente presença do Congresso aberto, é impossível existir liberda-de. Sem esta, a felicidade, buscada incessantemente pelos homens nor-mais, torna-se simples quimera.

3. Liberdade e abuso de direitoSe o País não alcança a prosperidade desejada, se o desemprego

aflige as famílias e há indisfarçável crise social, é óbvio que o status quoprecisa ser urgentemente modificado. A sua permanência importa napersistência desse quadro desconfortável. Daí a necessidade de refor-mas, não só urgentes como radicais.

Ora, se o próprio sindicalismo, diante da realidade indesejada, acontesta, exigindo soluções para os problemas que enumera, comopode, respeitando-se o mínimo de racionalidade, ser contra reformasque a maioria dos representantes da população percebeu seremimprescindíveis para a solução dos problemas básicos da sociedade?

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Para não serem necessárias reformas profundas na Constituiçãobrasileira, seria mister que o País respondesse a todos os seus comandosnormativos em vigor, de forma satisfatória. Se, porém, cresce a miséria,os gastos com a manutenção do Estado, a ineficiência da Administração,enfim, os desvios de finalidade na atuação do Poder Público, sem que osmecanismos disponíveis apresentem soluções para conter essa adversi-dade, é imprescindível, evidentemente, uma reforma de tudo, inclusivede mentalidade dos governantes, parlamentares e, sobretudo, dos diver-sos segmentos da sociedade brasileira preocupados apenas com os seusinteresses pontuais.

Talvez se tentarmos compreender, com realismo, as causas efetivasdo desemprego, da remuneração miserável, sem preconceito, obscuri-dade ou radicalismo inútil, seja mais fácil melhorar o padrão de vida dotrabalhador no Brasil, inclusive buscando subsídios no Direito compa-rado, onde desfrute ele de remuneração mais satisfatória.

Em vez da radicalização permanente contra o empregador, de suahostilização pura e simples, sem resultado prático ou expressivo ao lon-go do tempo, parece mais racional buscar uma maior conscientizaçãodo empregador, para deixá-lo em condições de visualizar no empregadoum colaborador indispensável à fruição do lucro, do seu sucessoempresarial, etc. Aliás, o empresário moderno já não usa a expressão“meu empregado”, mas sim “nosso colaborador”.

Até porque a destruição do empresário significa, por igual, oesfacelamento do próprio empregado. É inconveniente para ambos.Deve-se, por isso, buscar o melhor para o empregado e para oempregador. Para tanto, nada mais eficiente do que este imaginar-se nacondição daquele, e vice-versa. Ou, mais precisamente, responder cadaempregador a esta indagação: o tratamento que dispenso aos meusempregados é aquele que eu gostaria de receber se estivesse no lugar dele?

O princípio elementar de justiça não é acessível apenas aos juízes,mas a toda e qualquer pessoa de bom senso, e se resume em não desejaraos outros aquilo que não desejamos a nós mesmos. A partir da práticadessa idéia, todos os códigos são revigorados e a concretização daharmonia social buscada pelo Direito torna-se mais fácil de ser atingida.

Não parece solução eficiente a postura de representantes dascategorias de empregados e empregadores buscarem reciprocamente a

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fragilização de um perante o outro. A parceria sem subterfúgios, visandosempre a um proveito melhor para ambos, afigura-se o caminho maiseficiente para a melhor fruição de todos.

De sua parte, deve o empresário desempenhar a contento suafunção, dentro do contexto social, de gerar emprego, promover a cir-culação de bens, captando lucros, sem abusos ou ilícitos não toleradosna sociedade da qual ele participa. É inadmissível pretender o empre-gador tudo para si, oferecendo aos seus empregados condição desobrevivência sem nenhuma dignidade. Todos vivem no mesmo corposocial, e o desnível exagerado das rendas provoca, nele, a inviabilizaçãoda convivência pacífica, sem lucratividade para ninguém.

Jovens e lúcidos empresários começam a compreender que odesempenho do empregado na empresa está intimamente ligado à suacondição de vida saudável fora dela. A empresa começa a ser vistacomo uma grande comunidade. A boa educação dos filhos dosfuncionários passa a ser também tema de discussão na empresa. Prê-mios de produtividade, criação de fundos para empréstimos sem jurosaos funcionários e estímulos pela assiduidade são práticas que fazemos empregados vestirem a camisa da empresa, que cresce muito mais àmedida que todos crescem juntos. “A empresa não é minha, é nossa” –enfatizavam já alguns patrões, efetivamente bem-sucedidos, no finaldo século XX, em reunião com os seus funcionários.

O tempo do empresário mesquinho, explorador daqueles queo ajudam a aumentar o patrimônio sem nenhum reconhecimento,é incompatível com a era da globalização e com o terceiro milê-nio. A solidariedade deve ser o indutor da produção. A família dooperário deve ser levada em conta, para que ele se mantenha en-tusiasmado durante o trabalho. Todos pela empresa e a empresapor todos. O respeito estimulado retorna com muito mais lucrati-vidade do que a rispidez da subordinação estéril, ditada pela hie-rarquia do economicamente mais forte. O egoísmo exagerado, emque poucos ganham sempre tudo, responde pela sociedade caóticaexibida no Brasil do final do século XX. Urge mudar a mentalidadesempre baseada na vantagem pessoal de cada um, para que todospossam viver em segurança e harmonia, usufruindo o melhor quea vida pode propiciar.

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Ao empregado, como agente viabilizador da produção e da circulaçãode riqueza, cabe despir-se de preconceito e hostilidade. Deve reivindicar aquiloque julga justo e legítimo, sem jamais se afastar da racionalidade e do bomsenso. O mundo e as necessidades do grupo social não são direcionados aosabor das conveniências de categorias específicas. Deve, com lucidez, tentarmodificar a legislação que julgue prejudicial aos seus interesses; jamais sesobrepor a ela, desafiando-a pela insubordinação. Acabará, na linha dessapostura, vítima de sua própria ação pontilhada de equívocos.

Nesse passo, é preciso ter em mente que um dos objetivos básicosda República Federativa do Brasil, expresso na Constituição, é cons-truir uma sociedade livre, justa e solidária.

Sociedade livre é aquela que assegura e garante a liberdade para todosos seus membros indistintamente. O que é liberdade? Há limites para o seuexercício? Quando a liberdade se transforma em abuso de direito? A respostasegura para essas indagações encontra-se na declaração dos Direitos do Ho-mem e do Cidadão, que integra a Constituição francesa, nestes termos:

“A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não pre-judique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cadahomem não tem por limites senão os que asseguram aos outrosmembros da sociedade o gozo dos mesmos direitos” (art. 4.º).

Logo, se, a pretexto de alguém exercer seu direito, sua liberdade,a ordem pública restar perturbada ou outros vierem a ser prejudicadosem decorrência disso, resultará configurado abuso de direito, não aco-lhido no ordenamento jurídico. O art. 10 daquela Declaração, exaltadapor todos os povos civilizados, é, a propósito, esclarecedor:

“Ninguém pode ser inquietado pelas suas opiniões, incluindoopiniões religiosas, contanto que as manifestações delas nãoperturbem a ordem pública estabelecida pela lei”.

Cumpre registrar que a democracia sucumbe ora quando a forçainviabiliza o exercício da liberdade, ora pelo excesso de tolerância para comos descumpridores da lei, por propiciar a instalação de desordem insuportável.

Fácil, assim, perceber inexistir direito ou liberdade de um grupo depessoas acampar, por tempo indefinido, na porta da casa de alguém ou de

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uma repartição pública, impedindo o acesso dos outros. A configuração doprejuízo, em caso tal, reflete a inexistência de qualquer direito ou liberdade,legitimando o uso da força pública para restabelecimento da ordem jurídicae garantia do exercício do direito dos prejudicados. Qual o limite da açãopolicial em tal caso? Ação discreta, de sorte a não incomodar os acampados,violadores do direito de ir-e-vir dos afetados pela ilicitude? Ação mais enér-gica, para desalojamento imediato dos infratores?

Cabe à sociedade refletir, com isenção, sobre o tema, tendo em mentea dificuldade de conquista da liberdade, que também tem perecido pelafalta de reação eficaz à desordem instalada a pretexto do seu exercício.

Numa nação que armazena traumas oriundos de episódiosrecorrentes provocados por ditadores sem escrúpulo – os quais, a pre-texto de preservação da ordem, acabaram por suprimir as mais elemen-tares formas de exteriorização da liberdade –, é compreensível a apreen-são diante da presença da força pública para desobstrução de prédios ouruas. É necessária a criação de grupos para gerenciamento de crises, comtreinamento permanente para enfrentar essas adversidades sem perdado controle, situação em que sempre ocorre prejuízo para todos.

Entretanto, o império da lei deve prevalecer, sem abuso, buscan-do-se sempre a dosimetria correta na utilização da força, para nãoestimular os excessos que também acabam por inviabilizar a democracia.Nenhum povo tolera o abuso da força policial, qualquer que seja amotivação para justificar o exagero no uso dessas ações. O governante,ao qual é atribuído poder de comando, poderá até amargar atestado deóbito político em conseqüência dos excessos praticados, sobretudoquando, em decorrência deles, surge eventual cadáver.

4. Cooperativas: esperança de emprego no sertãoNa época da seca, é difícil encontrar até mesmo urubu nos Municípios

atingidos. A população, sem esperança, aguarda ansiosa a hora de partir paralugar incerto, distante, na ilusão de conseguir vida melhor. Durante séculos,esta tem sido a sina dos nordestinos vitimados pela estiagem.

Impossível, com esse quadro desolador, imaginar alguém deslo-car-se para o sertão do Nordeste a fim de instalar empresas geradorasde emprego e de renda para aqueles habitantes desafortunados.

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A solução encontrada – aliás, criativa – subitamente trouxe a pers-pectiva de viabilidade econômica também aos lugares inóspitos. Esti-mulou o Estado do Ceará a criação de cooperativas, bancando a instru-ção do homem rude do campo para nelas se associarem, podendo as-sim confeccionar os produtos adquiridos pelas empresas que se dispu-sessem a levar para aquelas localidades suas unidades produtoras.

A inovação residia na ausência de vínculo empregatício entre oscooperativados e a empresa adquirente dos produtos produzidos nascooperativas. Com um custo menor de produção, recebimento do terrenoe isenção de ICMS, algumas empresas se dispuseram a incrementar econo-micamente o sertão árido, pela primeira vez, no final do século XX.

Vaqueiros e agricultores, mãos calejadas, abandonaram a foi-ce improdutiva e passaram a se dedicar, com entusiasmo, à novaatividade. As cidades do sertão passaram, pela primeira vez na suahistória, a abrigar seus filhos adolescentes sem a certeza da partidaem breve.

Mas a vida do sertanejo não foi feita para conviver com flores. Àmedida que o entusiasmo tomava conta do sertão, muitos para lá dire-cionaram sua atenção, passando a atuar com o propósito manifesto deinviabilizar a idéia de prosperidade e mantê-lo na miséria secular queinfelicita a todos.

Fiscais do trabalho, pastoral operária, sindicatos e órgãos congê-neres, diante do florescimento de empresas, passaram a questionar todosos passos dos cooperativados. Queriam, a todo custo, estabelecer vín-culo empregatício entre aqueles e as empresas instaladas com base nessanova fórmula de viabilização econômica do sertão, pela única maneirapossível naquele momento. Reclamavam pela carteira assinada dos coope-rativados, sem se aperceberem de que essa exigência desestimularia adisseminação de empresas naquelas localidades distantes, pela razão óbviade que, se fosse para ter o mesmo custo de produção, por que a instalaçãoali, onde o frete mais caro desequilibraria e inviabilizaria oempreendimento? Tanto questionamento acabou impedindo a instalaçãode dezenas de empresas que poderiam levar emprego ao sertão, minimi-zando o drama de seu povo. Desistiram elas diante da reação.

Prefeitos, jovens entusiasmados, em vão suplicavam às autoridadespara que não fosse interceptada aquela trajetória de revitalização das

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zonas mais áridas. Julgando-se donos da verdade, autoridades dissemi-navam multas nas empresas, contestando com veemência a ação das co-operativas, sem qualquer compromisso em garantir trabalho onde antesproliferava o desespero.

A Secretaria da Indústria e Comércio, em vão, lutava parademonstrar a singularidade do caso, preocupada apenas com a neces-sidade do progresso e do efetivo bem-estar do homem inculto dospontos mais áridos do Nordeste.

Tudo isso afigurava-se irrelevante. A preocupação única seria como Direito do Trabalho vigente, ainda que para aplicá-lo fosse necessárioextinguir a perspectiva efetiva de qualquer emprego. É evidente que ine-xiste tal direito sem trabalho algum no sertão feroz, onde os séculos têmreservado sempre angústia, dor, aflição e miséria. Acentuada miséria.

Numa decisão em que é posta em relevo a preocupação com oaspecto social, para evitar prejuízo à população a pretexto da aplicaçãodo Direito, o Tribunal Regional do Trabalho do Ceará destacou, emvoto do Juiz Manoel Arísio de Castro:

“(...) talvez porque eu saiba que os rincões isolados e flage-lados dos sertões se esvaziam, e que muitas casas campesinasde lá são hoje habitáculos de fantasmas; talvez porque eu saibaque o êxodo do sertanejo sem trabalho, muito mais pelaausência de mercado local do que pela força das estiagenscíclicas, está a engordar os bolsões de miséria na periferia dascidades; talvez porque eu veja que as mãos calejadas delesestão a esmolar nas ruas e avenidas das capitais do Nordeste,no mais supremo gesto de humilhação e vergonha (...) douprovimento ao recurso para julgar a ação improcedente”. (Aação, no caso, fora movida pelo Ministério Público, objetivandoa declaração da ilegalidade das cooperativas.)

5. Crise econômica: falência e dificuldades para asobrevivência das empresas

A incompetência e o descaso de políticos, ao longo dos anos,quanto a assegurar rumos estáveis ao gerenciamento das finanças públicas,acabou atormentando a vida da elite econômica brasileira, responsável,em grande escala, pela sua perenização no poder.

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Em conseqüência dessa desordem na Administração Pública, sem-pre motivada a gastar mais do que arrecada, por melhor que seja o em-presário, mais dedicado e controlado, necessitando ele de dinheiro paratocar seus negócios, ao socorrer-se dos juros proibitivos do mercado,acaba, inapelavelmente, quebrando.

No final da década de 90, quando o dólar americano guardavaparidade com o real, moeda circulante, alguns mais cosmopolitas fugiramdos juros extorsivos praticados no País e conseguiram captar dólares noexterior a juros muito mais convidativos. Esqueceram de, porém, esti-mular o surgimento de uma classe política com visão mais abrangentede coletividade. O resultado não foi favorável. Uma súbita desvaloriza-ção, negada permanentemente pelo governo, lançou magnatas em as-censão no rol infindável dos empreendedores prejudicados pela instabi-lidade econômica.

Parece assistir razão aos que só consideram estável, no Brasil, onegócio financiado com recursos próprios. Mesmo assim, se faltarcriatividade, a família crescer e todos os filhos, noras e afins torna-rem-se diretores no empreendimento, o seu tempo de duração acabasendo efêmero.

A despeito da difusão da máxima de que se deve levar semprevantagem, a realidade demonstra ser desconfortável a situação daquelesque, no exercício dos seus negócios, não costumam honrar seus com-promissos financeiros. Devedor que não paga o que deve tem semprea sua má fama posta em relevo nos círculos da própria intimidade.Parentes próximos e distantes, amigos e inimigos, todos, por mais queresistam, são incomodados pelas seqüelas do mau pagador.

No passado, é verdade, o empresário falido era execrado deforma muito ostensiva no seu grupo social. Todavia, diante dasucessão de reveses experimentados por pessoas de inquestioná-vel reputação, nos diferentes segmentos de atuação profissional,há uma maior compreensão da sociedade em relação aos que nãolograram sucesso nos seus empreendimentos, mesmo agindo comboa-fé.

A crise econômica afetou toda a sociedade, deixando inúmeraspessoas sem condições de honrar seus compromissos. É certo existi-rem aqueles que não se incomodam em não pagar o que devem.

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Boa parte dos que faliram, porém, numa constatação insuspeita,foi vítima de uma estrutura econômica instável, em que o gerenciamen-to seguro da atividade empresarial torna-se quase impossível.

Qualquer país necessita de homens ousados, destemidos e talen-tosos para gerar riqueza e promover a circulação de bens e serviços.Todavia, essa tarefa é dificílima e bastante penosa num quadro deinstabilidade econômica, em que o custo do dinheiro inviabiliza qual-quer empréstimo para investimento.

Muitos, portadores de extrema boa-fé, estimulados pelo impulsointerior de expandir seus negócios, gerando emprego e aumentando olucro, acabaram sucumbindo diante de uma realidade dolorosa e frus-trante. Os juros, pagos pelo empréstimo do dinheiro para mantê-los,eram superiores ao lucro auferido.

Em circunstância tal, de juro elevado e ausência de capital paradinamizar os negócios, a falência é quase inevitável, por mais precaução,criatividade, controle de gastos e outros mecanismos de bom gerencia-mento que venham a ser utilizados pelo titular do empreendimento.

O longo período de inflação sedimentou, no País, uma culturaespecífica de gerenciamento dos negócios. Com o desaparecimentodaquela, centenas de empresários sucumbiram. Quase uma geraçãointeira. Não por má-fé, mas por serem vítimas de um contexto dedifícil assimilação, diante da ausência de paradigma gerencial acessívelpara conviver no novo formato da economia. A reciclagem deve serquase diária, para não haver surpresas diante do quadro de instabilidadevivenciado por nós.

Para manutenção da inflação baixa, com o Estado brasileiro gas-tando muito mais do que arrecadava, os condutores da política econô-mica mantiveram taxas elevadas de juros, sob os mais diversificadosfundamentos e com múltiplos objetivos. O brasileiro mediano jamaisconseguiu compreender, satisfatoriamente, o mecanismo de fixaçãodas taxas de juros. Acostumou-se apenas às sucessivas informações deque a empresa A, B, ou C pediu concordata ou falência, tendo suas açõesgeradoras dessa situação perdoadas ou minimizadas à conta dos juroselevados.

Por outro lado, é curioso constatar que homens detentores depatrimônio invejável, responsáveis por recolhimento de parcela

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expressiva dos tributos, exemplo de contribuintes, reverenciados e dis-tinguidos por todos no grupo social, tempo depois experimentem situ-ação de ostracismo, de indiferença e constrangimento social amargo.Acabam lançados na vala comum dos falidos, sem vez e sem voz.

O Brasil é um País excêntrico. Sua sorte e redenção sempreestiveram por um fio para serem atingidas. Durante muito tempo,acreditou-se que as “diretas já” seriam a grande solução para todosos nossos problemas. Deu Sarney, e conseguimos ficar um pouqui-nho pior.

A Constituinte então passou a ser tida como a tábua de salvação.Resolveria todas as nossas seqüelas. Passou-se a sensação de que, apósUlisses Guimarães empunhar um exemplar da Constituição de 1988,no dia da sua promulgação, todas as adversidades seriam superadas.Logo se percebeu o profundo fisiologismo inserido naquela MagnaCarta, recomendando alguns, em vão, a sua reforma como garantia debom gerenciamento do Estado.

Promover reforma profunda numa Constituição que mal permi-tira a fruição das generosidades ofertadas era um absurdo inadmissívelnum constitucionalismo assentado em alicerce sem sintonia na realidade.A inflação já galopante, após a proclamação da Constituição de 1988,passou a dizimar tudo, assumindo, de pronto, a condição de responsávelexclusiva pelos infortúnios da nação. A prosperidade de todos foi adiadapara depois da vitória contra a inflação.

Após uma troca incessante de moedas, planos, quebradeira geral,transformação de rico em pobre e permanência do pobre na mesmasituação indesejável de eternamente carente, surgiu o Plano Real, queefetivamente aboliu a inflação de nossa longa convivência.

Sucede que não se apaga a inflação com borracha, como se pro-cede em relação a qualquer palavra indesejável. Ela tem causas a exigircombate eficiente, sob pena de retomar seu curso nocivo para todos.Dentre essas causas, foi apontado, pela quase unanimidade dos espe-cialistas, o custo da Administração Pública e da Previdência, muitosuperior à receita arrecadada com os tributos.

A solução proposta pelos especialistas da área econômica, dentroe fora do governo, compreendia três reformas: a administrativa, a pre-videnciária e a tributária. Independentemente de servirem tais reformas

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para impedir a eclosão da inflação, algumas distorções inaceitáveisestavam a comprovar a necessidade de mudanças.

Mais de três anos se passaram sem que nenhuma reforma fosseefetivada. Uma sucessão de fatores concorreu para essa estagnação: aresistência contra a perda de privilégios, a falta de espírito público demuitos congressistas comprometidos apenas com a defesa de suasconveniências e dos grupos com os quais mantêm afinidade, e até umaindiscutível incompetência do governo, em determinado momento,no encaminhamento de questões essenciais.

Para manter adormecido o monstro aterrorizador da inflaçãodurante todo esse longo período, o anestésico utilizado consistiu namanutenção dos juros elevados. Quando se esboçava, no seio dasociedade, um ar de otimismo em relação à pequena queda da inflaçãono final de 1998, as bolsas de valores dos chamados Tigres Asiáticossimplesmente despencaram, desmistificando um festejado “milagreeconômico”, exaltado como modelo durante vários anos.

O efeito dominó das bolsas repercutiu no País imediatamente.Chegou-se a apostar, no início de 1999, não nos dias, mas nas horasde duração do Plano Real. O pesadelo da inflação retomou o imagi-nário coletivo. Para contê-la e preservar o real, medidas mais durasforam imediatamente editadas, entre outras o aumento dos impostose dos juros.

Empresas que, com extremo esforço, vinham conseguindosobreviver, cortando custos, aprimorando qualidade, mesmo sem pers-pectiva de expansão, não suportaram o novo choque imposto ao mer-cado e foram à bancarrota.

Trata-se de circunstância deplorável, porquanto, ainda que todasas recomendações dos manuais de bom gerenciamento fossem aplica-das, os fatores exógenos, aflorados no mercado em decorrência decrises geradas fora do País, acabaram por inviabilizar inúmeros negócios,cujos titulares, inclusive pessoas honradas, acabaram compelidas aengrossar a fileira dos falidos ou concordatários. Foram vítimas, em úl-tima análise, de uma sociedade imatura para detectar e enfrentar comceleridade as raízes do flagelo de sua economia.

Sem efetiva correção das causas geradoras dos problemas quetornam a economia brasileira excessivamente sensível a qualquer mudança

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no cenário internacional, a perspectiva de falência, concordata, pobrezae miséria do povo será uma constante.

Para vencer essa permanente situação de adversidade é preciso,inicialmente, um diagnóstico seguro e isento de suas causas, comalternativa viável de solução. De posse disso, urge explicar à sociedade,didaticamente, e ter coragem, muita coragem, para implementá-las. Ne-nhum político com visão paroquial, preocupado em não prejudicar in-teresses pontuais de segmentos influentes ou em apenas garantir asua permanência no poder, será capaz de fazê-las. O político útil aoseu grupo social preocupa-se somente em fazer o melhor para o seupovo, não para si. Seu compromisso é com o povo, com o futuro danação, não com o seu em particular. Nem com a sua manutenção nopoder ou com a satisfação da corriola com acesso aos corredores pala-cianos. O resto é reconhecimento gratificante por gerações a fio.

A propósito, no dia 28 de julho de 2000, o IBGE divulgou os dadosda Pesquisa Nacional de Domicílio (PNAD), que realizou em 1999, mos-trando a média de renda mensal da população ocupada, em cada Estado,com idade acima de dez anos: Maranhão, R$144,00; Piauí, R$145,00; Bahia,R$170,00; Alagoas, R$170,00; Ceará, R$172,00; Pernambuco, R$189,00;São Paulo, R$438,00; e Distrito Federal – o maior rendimento médio –,R$609,00 (Diário do Nordeste, 29.7.2000, p. 2, Negócios). Fechou, assim, oBrasil mais um século sem vencer o drama da pobreza do seu povo. Aindiferença a esse estigma, porém, sugere a sua persistência no novo século,em decorrência do excesso de egoísmo na sociedade.

6. Juventude rica e velhice pobreHá aproximadamente trinta anos um grupo de dez jovens, com

idade entre 17 e 18 anos, reuniu-se em determinada festa e foifotografado pelo pai de um deles.

O exame da fotografia, após três décadas, mostrou umasurpreendente mutabilidade no patrimônio de cada um e a total impre-visibilidade na vida de qualquer pessoa neste País. Os três jovens maispobres daquela época transformaram-se nas pessoas de maior prestí-gio social. Porém, os sete restantes decresceram na escala social, sendoque, dos quatro mais ricos, apenas um conseguiu tocar os negócios da

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família, ainda assim em proporção significativamente menor. Três outrosse tornaram literalmente pobres.

Tudo bem que os menos abastados tivessem crescido vertiginosamentena escala social. Todavia, os mais ricos ficarem todos imediatamente pobres –dois deles, inclusive, em situação de penúria – é situação a exigir profundareflexão. Os gastos excessivos de hoje costumam fazer falta amanhã, sobretu-do num País de riqueza individual marcada pela instabilidade.

Na verdade, a grande maioria da população brasileira é pobre.Há, porém, uma agravante: é muito mais fácil um rico empobrecer doque um pobre enriquecer licitamente.

Uma questão inicial se impõe à sociedade, diante da freqüente edesagradável situação de um bem-sucedido empresário tornar-se, em pou-co tempo, pessoa materialmente desprovida, desacreditada e sem perspec-tiva. A elite econômica é vítima das distorções que ela própria produz.Parte significativa do empresariado não é capaz de libertar-se da idéia depensar, agir e exigir tudo em função apenas dos seus interesses imediatos.

Se algum jovem, por exemplo, apresentar-se como candidato aum cargo eletivo propondo a realização de licitações limpas, tratamentoigualitário a todos em relação aos créditos oficiais e outras ações digni-ficantes no gerenciamento da Administração Pública, dificilmente con-seguirá sensibilizar parte dos empresários de seu Município para ajudá-lo no custeio da campanha.

Todavia, se transmitir certeza de abrir as portas dos órgãosgovernamentais, liberando créditos para seus negócios, pagandodesapropriações por valor superior ao de mercado ou assegurar-lhesprivilégio nas contratações com o Poder Público, etc., aí a atração pelocandidato assemelha-se à da abelha pelo mel; nele, muitos farão autên-tico “investimento”. Sem falar no caso específico de alguns comer-ciantes que se lançam na busca de um mandato apenas para maximizaros lucros dos seus próprios negócios.

No caso daqueles jovens mais abastados da foto, seus pais – ri-cos empresários na época – jamais se preocuparam em questionar asituação da educação nas escolas dos menos favorecidos. Sua preocu-pação consistia em não perder o contato com o político responsávelpela liberação de financiamentos nos bancos oficiais, que lhes garantiaacesso ao poder, para que não fossem incomodados pelo fisco,

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independentemente de qualquer questionamento sobre a inconveniência,daquela forma de governar, para o grupo social como um todo.

Estimularam, assim, um círculo vicioso em que o empresário aju-dava o político e o político ajudava o empresário, sem qualquerpreocupação social, deixando este, inclusive, de aplicar corretamente,na sua empresa, os recursos a que tinha acesso nos bancos pertencentesao Poder Público. Não houve preocupação com a formação de umamentalidade nova, arejada, voltada para a solução dos problemas geraisdo grupo social. A conseqüência não poderia ser outra.

Contribuíram para o surgimento de políticos incompetentes, que, porgerenciarem mal o poder ao qual foram guindados, acabaram inviabilizan-do os próprios negócios de quem os apoiava. Hoje, falidos, velhos e semexpressão alguma no meio social, só lhes resta amargar a insensibilidade,atestada pelo fato de deixarem de utilizar o tempo em que o dinheiro e o seuprestígio despertavam a atenção de todos, então interessados em ouvi-los,para lançar os fundamentos de uma sociedade igualitária, capaz de formularcritérios idôneos para a escolha de seus dirigentes.

A generosidade que a vida lhes dispensou não foi bem aproveitada.Amargam, por isso, na velhice, a consciência de que todo o infortúniofora plantado pelo seu próprio egoísmo e pela visão obscura de suporque conviver com o poder resumia-se em extrair dele tudo o que fossepossível em benefício próprio. Justamente essa visão contribuiu para aproliferação da gama de políticos incompetentes e paternalistas, que nes-ses quase 500 anos não se mostraram capazes de garantir situação está-vel para a preservação do patrimônio de muitos cidadãos, amealhadoem longos anos de intenso trabalho. A lição do passado deve ser bemavaliada, para que sejam evitados os mesmos erros no futuro.

7. O crepúsculo de todosA velhice, mesmo quando se dispõe de meios materiais para um sus-

tento com dignidade, é sempre pontilhada de incerteza em relação ao diaseguinte. O tempo é célere demais em relação a todos. Ninguém o recupera,sobretudo quando utilizado para produzir agressões a si próprio.

Pessoas que, no esplendor da mocidade, encantam, despertandotoda sorte de inveja, pelo talento, pela beleza, pela desenvoltura no poder

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ou pela riqueza ostentada, muitas vezes, pela força do tempo, transformam-se em velhos que se assemelham a crianças, sem noção alguma do quefazem.

Muitos idosos não têm qualquer idéia de tempo: dia e noite seconfundem. Não se dão conta se estão vestidos ou sem roupa. Banham-se sem se despir. Invertem-se, como se vê, os papéis. O carinho e aatenção que o velho dispensou ao filho, no início da vida, quando estenão tinha discernimento algum sobre seus atos, retornarão, como quepor uma via de mão dupla, quando o peso da idade subtrair-lhe total-mente a lucidez.

É sempre bom lembrar que alguns anciãos pagam preço carodemais por nunca terem levado a sério esta advertência antiga, contidana Bíblia: “Aquele que estraga seus filhos com mimos terá que lhespensar as feridas: a cada palavra suas entranhas se comoverão. Umcavalo indômito torna-se intratável; a criança entregue a si mesma tor-na-se temerária”. (Eclesiático 29.30.)

Por outro lado, se, pela realidade viva dos fatos, todos não sãoiguais perante a lei – isso se confirma, no Brasil, por recaírem as san-ções quase sempre sobre o pobre –, todos são, efetivamente, iguaisperante o tempo.

O tempo que está a passar, provocando o envelhecimento dopríncipe Charles, é o mesmo que está a envelhecer a todos. Questiona-rão os mais céticos que alguns resistem mais para exibirem as seqüelasda velhice. As causas disso, porém, não estão no passar do tempo –sempre comum para todos. Residem, além das condições genéticas decada um, na opção pelo estilo de vida.

O pensador, o sofredor, os que não se libertam da tensão, do senti-mento de culpa, tendem a acusar, no próprio corpo e no espírito, os gol-pes que o tempo, ao passar despercebidamente, vai deixando. Esses gol-pes, nos atletas e nas pessoas de vida leve, sem remorso e sem angústia,são assimilados com mais suavidade, ficando ao observador menos aten-to a impressão de que o tempo não passa da mesma forma para todos.

Bem avaliado, o tempo desfaz todas as ilusões, sobretudo a idéiade que alguém lhe possa resistir. O sol que brilha para o amanhecer dojovem de 15 anos é o mesmo que propicia a primeira luminosidade no

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quarto em que se acha recluso o ancião de 90. O amanhecer e o anoitecerincessantes, na simplicidade e celeridade com que ocorrem, são respon-sáveis pela metamorfose de tudo. A vida se resume a um passar do tem-po. Uns conseguem, pelas realizações ou pela força das idéias que difun-dem, perpetuar-se. Desaparecem fisicamente, mantendo, porém, vivosos exemplos edificantes e as lições de grandeza que legaram em sua pas-sagem pela vida. Os simplesmente medíocres usam o tempo para mor-rer antecipadamente.

Na linha dessas ponderações, a diferença básica está em que oamanhecer, na juventude, é carregado de sonhos, quase todos comgrande potencial de se converterem em realidade. Na velhice, todos ossonhos se resumem em sofrer pouco. Às vezes, até de fraldas, com oúnico objetivo de não padecer como os amigos que já partiram, ovelho sofre pela incapacidade de sonhar. Por isso, é muito perigosodeixar de ter sonhos. Quando isso ocorre, o viver se resume em aguar-dar a morte.

A morte, em si, não é sonho. É advertência, aos que permanecemvivos, de que todos são inegavelmente iguais. O túmulo é o destino natu-ral da arrogância, da prepotência e da vaidade excessiva, que se cultivamna busca de emprestar ao corpo uma supremacia, que ele não tem, emrelação aos outros homens. Basta ver que todos somos destinatários domesmo depósito final de cada ser: a cova. Pura e simplesmente, a cova.

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CAPÍTULO IX – APLICAÇÃO DODINHEIRO PÚBLICO

1. LICITAÇÕES NA ADMINISTRAÇÃO E CONTROLE DAS FRAU-DES; 2. A QUESTÃO DA PREVIDÊNCIA; 3. DÉFICIT E JUROS; 4.MORATÓRIA E SUAS CONSEQÜÊNCIAS; 5. JUROS EXTORSIVOSE INDIGÊNCIA DAS NAÇÕES.

1. Licitações na Administração e controle das fraudesDiante da dificuldade de entender que o dinheiro público deve

ser sempre bem aplicado e da constatação de fraudes recorrentesnas contratações de obras, compras e serviços e nas alienações feitaspela Administração, a Constituição Federal estabeleceu, como pré-requisito para celebração de contrato com o Poder Público, oprocesso de licitação, dispensado apenas em casos excepcionais,especificados pelo legislador.

A premissa de que, até prova em contrário, não existirá seriedadenas contratações feitas pelo Poder Público terá, por certo, motivado olegislador a um disciplinamento tão rígido, minucioso e, muitas vezes,danoso à própria Administração, para a aquisição de bens ou serviços.

A despeito de toda precaução e formalismo, muitas fraudes sãopraticadas sem qualquer punição para os infratores. Para os ocupantesde função predispostos ao crime contra o patrimônio público, nãoexistirá lei que os impeça de praticá-lo. A única solução é afastá-los dequalquer contato com dinheiro ou bens públicos.

A presunção de inocência até o trânsito em julgado da decisãopenal condenatória é trágica para a Administração. Deve prevalecerapenas na órbita do Direito Penal. No caso de denúncia criminal pro-movida contra alguém, pelo Ministério Público, por crime contra aAdministração Pública, o mais racional, diante da realidade brasileira,seria que o denunciado somente pudesse exercer o mandato depois de

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julgada ela improcedente pelo órgão jurisdicional competente ou quandoobtivesse autorização judicial específica para esse fim, deferida por meiode medida cautelar.

A guarda do dinheiro público, durante uma única semana, a cargode alguém denunciado por crime daquela natureza produz, na prática,conseqüências profundamente danosas à população. Ninguém pareceatentar para isso no Brasil, salvo quando em jogo o próprio patrimô-nio. Aí, sim, a precaução é redobrada e dificilmente se celebra negóciocom denunciado pela prática de crime relacionado com a possível tran-sação. Basta, aliás, simples indiciamento em inquérito!

É curiosa a rota do desperdício. Qualquer pessoa, ao adquirir umproduto ou serviço, leva em consideração dois aspectos: a qualidade eo preço. Embora simples e eficaz a aplicação desse binômio na relaçãoentre particulares, é inacreditável a dificuldade erigida – em muitos casos,até de boa-fé – para aplicá-lo nas operações com o Poder Público. Orase paga muito caro pela qualidade do produto, ora se paga barato demaispor produto sem qualidade alguma ou, não raro, se paga preço eleva-díssimo por produto imprestável.

Há reclamações, na sociedade brasileira, de pessoas que se dizemobrigadas a pagar propina para receber crédito por serviço prestado aoPoder Público. Estariam pagando para ter acesso àquilo que lhes é justoe legitimamente devido. Empreiteiros sérios chegaram até a amargarfalência por se recusarem a participar de ilicitudes coordenadas por ser-vidores desonestos.

Por sua vez, a incerteza quanto ao recebimento, no prazo previstopelos licitantes, do valor contratado estimula a majoração do preçoofertado. Por isso, o Poder Público deve buscar honrar seus compro-missos no prazo estabelecido, sepultando a desconfiança do contratado.

Parece inquestionável bastar um único membro sem probidadeintegrando comissão de licitação para provocar gravíssimos danos aoErário, mesmo que não se detecte, de plano, vício algum no certame.Não menos certo, porém, é que, se todos os membros dessa comissãotiverem efetivamente compromisso com a defesa do patrimôniopúblico, dificilmente o Erário suportará danos. A seriedade dosmembros da comissão de licitação acha-se umbilicalmente associadaao governante que a nomeia. Se este, por sua vez, não for sério,

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evidentemente sua nocividade nela se projetará, ainda que revestida dosmais variados disfarces.

Por meio das licitações, busca-se a proposta mais vantajosa para aAdministração. O rigor formalístico adotado para inibir as fraudes nãodeve, porém, ser invocado para apontar como melhor aquela oferta quejamais seria sequer imaginada por um particular de bom senso em tran-sação análoga.

A pretexto de aplicar o edital, que tem força de lei no processolicitatório, o Erário é algumas vezes obrigado a desembolsar quantiamuito superior à praticada no mercado. Isso poderia ser evitado com asimples invocação do bom senso, considerando rigorismo inútil asprevisões que, por conterem exigências desnecessárias, poderiam serrelevadas à luz da preponderância do interesse público. Basta para tantoapenas que essa desconsideração não prejudique a aferição da propostamais vantajosa, nem o exame da idoneidade financeira, da capacidadetécnica ou do menor preço, objeto da oferta.

O fato de se atribuir força de lei ao edital da licitação não otransforma em dogma insuperável, a punir, em última análise, oscontribuintes responsáveis pelo pagamento da contratação resul-tante, muitas vezes, de sua aplicação absurda. O princípio da razo-abilidade, exteriorização do substantive due process of law, ampara oprocedimento da comissão de licitação no sentido de deixar deaplicar, excepcionalmente, norma do edital a resultar em descabi-da elevação de preço da contratação. A irracionalidade, no caso, épatente. Se um dos objetivos de toda licitação é a contratação pelomenor preço, não se justifica que, a pretexto de cumprir, com todoo rigor, o edital, o Poder Público acabe contratando pelo preçomais elevado.

Em muitos Municípios, além de exibirem os editais vícios tendentesao favorecimento de terceiros, é freqüente a tentativa de sua ocultação. Osinteressados se dirigem ao local em que foi instalada a comissão licitante,na repartição, sendo, porém, surpreendidos com a informação de que aque-le documento não se encontra concluído, ou não pode ser entregue, emface da ausência do presidente da comissão.

Alguns desistem diante das dificuldades apresentadas. Outros, maispersistentes, são obrigados a impetrar mandado de segurança para obter

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o edital, cuja publicação, contendo o resumo do seu conteúdo, pressupõenaturalmente a sua existência (Lei n.º 8.666/93, art. 21, § 1.º).

Em Municípios pequenos, cobra-se, às vezes, preço elevado pelavenda de edital com o objetivo de afastar licitantes. Em casos mais aber-rantes, a maioria dos concorrentes é declarada inabilitada, permanecendono certame apenas aqueles que convêm à comissão julgadora.

É preciso ter em mente que a licitação não existe para favorecer ouassegurar dinheiro mais fácil aos licitantes, sejam eles quais forem; objetiva,como afirmado, a escolha de proposta mais vantajosa para a Administra-ção. Proposta mais vantajosa, em qualquer circunstância, é aquela em quese acham presentes o menor preço e a boa qualidade. Nesse sentido, senenhum particular pagaria determinado montante pela contratação de certobem ou serviço, por que o Poder Público deve fazê-lo? Simplesmenteporque seu formalismo para compra de bens ou contratação de serviço émais ineficiente? Para garantir a igualdade entre os licitantes?

Ora, tudo isso é irrelevante diante do fato de que o dinheiropúblico não pode ser desperdiçado irracionalmente, pela extrema difi-culdade para arrecadá-lo e sobretudo em face do sacrifício dos contri-buintes para levá-lo aos cofres do Estado. Deve-se, por isso, no examede todo e qualquer processo licitatório, levar sempre em consideraçãoa perspectiva do pagador de tributo, responsável, em última análise,pelo custeio de tudo, cuja indignação se torna incontida diante de des-perdício inaceitável.

No entanto, é forçoso reconhecer que, diante das incontáveisdenúncias de irregularidade em licitação, a opinião pública insurge-secontra a escolha da proposta que não representa o menor preço. Osprecedentes em que, de fato, a ilicitude exibia contornos inconfundíveisacabaram por ensejar a suspeição total nas licitações em que o menorpreço é afastado, e a Administração contrata por montante mais caro.Em poucas hipóteses, é preciso reconhecer, o menor preço é desastrosopara o Poder Público. Isso ocorre nos casos em que é flagrante a falta dequalidade do produto.

Porém, não é comum o fato de, por exemplo, um organismointernacional, quando financiador da compra, condicionar a liberaçãodo recurso à contratação do menor preço. O prejuízo, em tal caso,para a Administração é duplo. Deverá pagar o financiamento e comprar

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novos produtos, diante da imprestabilidade dos adquiridos. A deman-da judicial para ressarcimento dos prejuízos será, como sempre, penosae incerta. Penosa, pela demora; e incerta porque, à época do desfecho, ofornecedor ou terá desaparecido ou não terá como pagar.

A solução mais racional, para tanto, seria a comprovação da inu-tilidade do produto oferecido. Em caso de dúvida do organismo inter-nacional financiador, deveria este designar especialista para comprova-ção das alegações da Administração e, uma vez comprovada a ineficiênciado produto, autorizar a contratação do segundo colocado ou, sendo opreço deste muito acima do mercado, a realização de nova licitação.Absurdo, intolerável mesmo, é condicionar o financiamento de produtoà contratação do detentor de menor preço, cuja má qualidade já se achacomprovada antes mesmo do recebimento do produto.

Indagar-se-á, então, no caso de obra: como detectar antecipada-mente a qualidade? O critério deve ser o mesmo utilizado pelos parti-culares na defesa do seu patrimônio: o exame das obras já realizadaspelo licitante. Alguém, por exemplo, teria coragem de contratar umaconstrutora que houvesse erguido um prédio que veio a desabar paraconstruir seu edifício ou uma simples casa? Deve assim o Poder Públi-co também capacitar-se para aferir a qualidade técnica daqueles a quemdelega a execução de suas obras. Tudo, é evidente, com observância dodevido processo legal.

Noutro enfoque, as pessoas mais íntimas de quem ocupa cargoem qualquer esfera de poder julgam ser possível beneficiar-se com ex-trema facilidade. Em casos de licitação, torna-se mais veemente essaexigência. Fixam-se na idéia de que devem suas propostas ser aceitas,independentemente de qualquer vantagem para o Estado. E, o que épior, passam a cultivar ressentimento ou inimizade quando elas nãosão atendidas.

Muitos, mais familiarizados com as normas licitatórias, exigemo cumprimento rigoroso do edital, “fincando pé” na observância detodas as suas exigências, inclusive extravagantes. Alguns desavisados,até mesmo sem segundas intenções, outros por indisfarçável má-fé,sob o pretexto comum de cumprir o edital, acabam desclassificandosete, oito ou nove empresas, proclamando vitoriosa a detentora demaior preço.

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As desclassificações, quando em grande escala, decorrem da adoçãode critério no julgamento – quase sempre rigorismo inútil – em relaçãoa um licitante aplicável a todos os demais. Nesse passo, quando o gover-nante é pressionado por um licitante para que determine o cumprimen-to rigoroso do edital e ordena à comissão de licitação que cumpra àrisca o edital, a conseqüência poderá ser a desclassificação em massa dosconcorrentes com menor preço, para eleger a única proposta que se-guiu, milimetricamente, todos os passos do edital do certame. O resul-tado poderá importar em grave prejuízo ao Erário, condenado a de-sembolso de maior quantia de dinheiro, como também em perda dacredibilidade do governante e, por via oblíqua, da comissão de licita-ção. Desclassificar várias propostas para contratar eventual detentorade maior preço gera sempre desconfiança.

Por outro lado, não se pode negar que o Judiciário tem feitointervenções oportunas em licitações, evitando graves prejuízos paraos cofres públicos. Em alguns casos, porém, a ausência de liminar –quando efetivamente a fraude era a tônica do certame – ou a sua con-cessão seguindo-se uma prolongada demora no julgamento do méritopodem significar prejuízo monetário para o Poder Público.

Por exemplo, se o licitante desclassificado comprova, documen-talmente, achar-se apto a fornecer o mesmo produto com a mesmaqualidade e garantia daquele mais caro oferecido pelo concorrente, emvia de aquisição pela Administração, afigura-se pertinente o deferimentode liminar sustando a aquisição, até o julgamento do mérito, em casode mandado de segurança ou de ação cautelar. Evidentemente, se essejulgamento vier a ocorrer dois ou três anos após a proclamação doresultado do certame, ensejará prejuízo ao contribuinte, qualquer queseja o desfecho.

A contratação de mão-de-obra necessita, por sua vez, de atençãoespecial. Empresas de fundo de quintal, com capital irrisório, freqüen-temente obtêm liminar para participar de licitação. Oferecem o menorpreço, saindo, por isso, vitoriosas do certame. Durante três ou quatromeses, prestam o serviço, sem, contudo, pagar um único mês de salá-rio aos seus empregados. Diante da pressão para o cumprimento dosencargos, desaparecem os seus dirigentes ou rescindem o contrato. AAdministração Pública é, então, obrigada a pagar o salário dos empregados,

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sem que haja qualquer questionamento sobre a ordem judicial que provocouaquela contratação desastrosa. Ocorrida a rescisão, a segunda colocada échamada para formalização de novo contrato. Por força de lei, o valor destedeve ser o mesmo contido na proposta daquela que foi classificada em pri-meiro lugar.

O ciclo do calote, então, se repete. A empresa prestadora doserviço recebe o dinheiro, mas não paga os empregados. Delegacia eMinistério Público do Trabalho entram em cena, exigindo que aAdministração pague diretamente aos empregados contratados o valormensal dos respectivos salários. O contrato é rescindido novamentee a seqüência de problemas recomeça.

Para a solução desse impasse, basta ao juiz, antes de deferir limi-nar autorizando empresa desclassificada a participar de licitação, man-dar fazer, por exemplo, inspeção na sede da referida corporação. Asurpresa de situar-se aquele “grupo empresarial” no quintal da casa deeventual sócio deixará de existir e o drama de muitos operários seráevitado, deixando a Administração liberada para ocupar-se com ques-tões mais relevantes para a coletividade.

Nos casos de ordem judicial para paralisação de licitação de obrapública, a demora excessiva no julgamento é gravemente nociva a todaa sociedade. Primeiramente, por que a obra encarece, o dinheiro sedesvaloriza e acaba não sendo ela realizada. A solução prática, eficientee proveitosa para o contribuinte, em caso de denúncia de irregularidadenessas contratações, é convocar denunciante e denunciado, colocá-losfrente a frente e ouvir o relato minucioso de cada um. Dificilmente,após quarenta minutos, deixar-se-á de saber quem é o vilão na história.

Reitere-se, por fim, caracterizar um grave desrespeito ao contri-buinte suspender, por meio de simples liminar, por dois anos, umalicitação. Qualquer explicação esbarrará sempre na falta de atençãoelementar aos impostos pagos, cujo valor é desperdiçado com a demorasob todos os aspectos injustificada.

2. A questão da PrevidênciaO exemplo previdenciário ilustra bem a particularidade de ser a

gestão administrativa formalmente compartilhada entre os poderes

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Executivo e Legislativo, sem, entretanto, qualquer conseqüência para esteem relação às suas deliberações.

Há muito se soube que um dos pontos críticos a contribuir como déficit das contas públicas, no Brasil, era e continua sendo a Previ-dência Social. O sistema obsoleto implantado, preocupado apenas comos benefícios do segurado, sem qualquer atenção à captação dos recur-sos a serem utilizados no seu pagamento, desde alguns anos estava areclamar retificação. O Executivo, percebendo, em dado momento, aexistência dessa autêntica bomba de efeito retardado, mostrava-seimpotente para desativá-la, embora ciente dos graves danos geradosao País pela insolvência desse setor.

Posta em debate no Congresso, em dezembro de 1998, a primeira pro-posta de reforma do sistema previdenciário – sem majoração para ativos einativos – foi literalmente derrotada. Déficit elevado, porém, não propicia cré-dito, que é, na verdade, confiança. Quando se perde esta, tudo passa a ostentara mácula do descrédito. Tomar empréstimo, rolar dívida, captar recursos emambiente de intranqüilidade econômica é tarefa amarga. A fata de perspectiva deo credor não receber o que emprestou dificulta e onera tudo.

Somente quando o Brasil experimentou a angústia da grave crisede janeiro de 1999, o Congresso sentiu-se motivado a alterar o capítuloda Constituição relativo ao sistema previdenciário. O ambiente, porém,já se apresentava totalmente desfavorável. Até o aumento das contribui-ções – inexistente nos projetos anteriores –, que os congressistas vieram aautorizar, mostrou-se inútil, tamanho o clima de insegurança gerado peladesordem atuarial decorrente da falta de normas saneadoras que deixa-ram de ser adotadas no momento oportuno.

Depois de o País suportar prejuízos incalculáveis em decorrênciado desequilíbrio de suas contas, a reforma da Previdência foi votada eaprovada, majorando-se a contribuição dos servidores públicos ativose estabelecendo-se uma contribuição para os inativos.

Entretanto, o Supremo Tribunal Federal interpretou comoincompatível com a Constituição a cobrança exigida dos aposentados,sem considerar qualquer aferição sobre a disponibilidade de recursospara pagamento de aposentadorias e pensões.

Urge, a propósito, uma reflexão sobre o sentido do exercício dopoder em nosso País. Parece que a esfera de atuação do Executivo, do

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Legislativo e do Judiciário nada tem a ver com a unicidade. Ressalte-seque todo o poder emana do povo, titular absoluto e único da soberania,conforme proclama enfaticamente, como já afirmado, o parágrafo úni-co do art. 1.º da Constituição da República.

Os Poderes da União são independentes, mas também devem serobrigatoriamente harmônicos (art. 2.º, CF). A independência de um de-les não pode acarretar, sem ofensa à exigência da harmonia, a inviabiliza-ção gerencial do outro. Assim, nem pode o Executivo deixar de repas-sar os recursos necessários ao bom funcionamento do Legislativo e doJudiciário, como não podem estes gastar desordenadamente recursossem qualquer preocupação com as disponibilidades financeiras queabastecem a todos.

No caso específico da Previdência Social, ao imunizar os apo-sentados do setor público da contribuição, sem norma constitucionalexpressa autorizando essa imunização e, sobretudo, sem qualquerpreocupação com a efetiva inexistência de recursos para custeio daquelesencargos, o Judiciário acabou contribuindo, sem perceber, para agra-var as dificuldades no gerenciamento administrativo desse setor.

Na verdade, a posição, até certo ponto privilegiada, do PoderJudiciário, de apenas mandar pagar ou liberar o pagamento da contri-buição previdenciária, sem qualquer consideração sobre a realidadefinanceira efetivamente disponível para suportar esses encargos, está areclamar uma meditação mais profunda sobre esses pontos. Sem umexame abrangente dessa questão delicada, a sociedade como um todoacabará pagando um elevadíssimo custo no futuro. A insolvência,matematicamente configurada, não se desfaz sem ingresso efetivo dereceita no cofre. A explicação é simples: não se pode retirar verba paraefetuar pagamentos de onde não existe recurso.

Este exemplo, a partir de caso concreto, comprova a urgência deuma reflexão sobre o problema e a necessidade de emprestar integraleficácia aos princípios da solidariedade e da preservação do equilíbriofinanceiro, também contidos na Constituição, com igual carga deeficácia, sem os quais nenhum sistema previdenciário, no mundo, al-cançará a estabilidade imprescindível para a sua sobrevivência.

Em setembro de 1999, um único servidor aposentado daSecretaria da Fazenda do Ceará percebia, mensalmente, R$42.000,00

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(quarenta e dois mil reais), o equivalente, na época, a 21 mil dólares. Pelosimples fato de ser aposentado, nenhuma contribuição pagava ele à Pre-vidência para receber esse valor. Tampouco no passado contribuiu paraperceber aquele salário extravagante.

Para poder o Estado, todo mês, pagar aquela única aposentado-ria, arrecadava e destinava mensalmente o total da soma das contribui-ções de mais de 720 servidores ativos com salário mensal de R$500,00(quinhentos reais), que as recolhiam com base na alíquota de 11%.

Qual o fundamento dessa imunidade ostensivamente ofensivaaos princípios da eqüidade e da solidariedade, expressamente consa-grados na Constituição e alicerce do sistema previdenciário vigente?Estes princípios apresentam o mesmo vigor e a mesma força de obri-gatoriedade detectada em qualquer outro princípio passivo de invoca-ção, como o do direito adquirido.

Privilégios que constrangem os contribuintes, responsáveis peloseu custeio, usufruídos por poucos em detrimento de muitos, sãoincompatíveis com o enunciado constitucional de exigência da igual-dade em que se alicerça a própria democracia. Ofendem o princípio dasolidariedade e o do equilíbrio financeiro, em que se sustenta o sistemaprevidenciário. Tais princípios, como ficou assinalado, têm o mesmopotencial de eficácia do direito adquirido porque, como este, emanamda própria Constituição, mais precisamente do seu art. 201.

A contribuição previdenciária é um tributo. Por sua vez, a imu-nidade tributária ou a isenção pode ter o seu campo existencialdemarcado, respectivamente, pelo constituinte ou pelo próprio legis-lador titular do poder de tributar. No caso em exame, imunizou-sepor analogia, porquanto nenhuma norma da Constituição proíbeexpressamente a cobrança de inativos vinculados ao setor público.Proíbe, sim, qualquer exigência em relação aos aposentados vincula-dos à previdência do setor privado.

Mesmo admitindo-se que aquela contribuição estivesse acober-tada pela imunidade, se a Constituição, nos casos em que imuniza detributação qualquer bem ou pessoa, quiser extingui-la, pode fazê-losem que isso implique afronta a direito adquirido do beneficiário. Aeternização da imunidade gera o engessamento ou a asfixia do poderconstituinte derivado, impedindo-o de exercer a plenitude de sua

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competência tributária na forma que a sociedade julgue apropriada emdeterminado tempo. A imunidade não se acha incluída nas matériasinacessíveis à modificação pelo poder constituinte derivado; essas maté-rias encontram-se abrigadas nas cláusulas pétreas, exaustivamente enu-meradas no art. 60, § 4.º, da Constituição.

Restrição desse porte significa inibi-lo, subtraindo-lhe o exercí-cio de suas próprias atribuições – inerentes à função legislativa – deadaptar o direito à realidade social de determinada época. Quem podeimunizar ou isentar pode retirar a imunidade ou a isenção, observadoo rito constitucional previsto e, nos casos em que o prazo forpreviamente estabelecido, após o seu término. Afinal, como perce-beu Rousseau, “é contra a natureza do corpo social impor leis que elenão possa revogar”.

Aumentar tributo, porém, sem conter o desperdício do dinheiropúblico e sem mandar para a cadeia quem o desvia com flagrante má-fétem sido a rotina pela qual o Brasil vem testemunhando a crescentepobreza de seu povo.

3. Déficit e jurosA solidez e a eficiência do sistema previdenciário de qualquer país

não é assunto de interesse apenas do Poder Executivo, mas também doLegislativo e do próprio Judiciário. A todos, no âmbito de suas atribui-ções, compete concorrer para buscar o melhor desempenho desse se-tor, corrigindo-lhe as distorções, punindo desmandos, enfim, preservan-do-lhe a capacidade para suportar os seus encargos, sempre levando emconta a eqüidade.

Deve-se buscar a viabilização do sistema, jamais a sua destruição,que resultará, fatalmente, da injustificada ausência de um efetivoconfronto entre os valores referentes à despesa e à receita para man-tê-lo solvente. O Direito deve adequar-se à Matemática para proce-der às correções possíveis, nunca, pura e simplesmente, brigar comela. Esta é ciência exata, enquanto aquele depende sempre da visãodo seu intérprete, sendo, porém, incapaz de alterar a realidade friados números.

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O direito que se mantém distante da realidade causa dano aos seusdestinatários. Tomem-se, para ilustrar o raciocínio, estes fatos, noticia-dos pelo Jornal O Globo, edição de 15.8.99, na p. 11:

“Déficit da Previdência supera gastos sociais. Desequilíbrioé de 5% do PIB.

O déficit da Previdência, este ano, considerando aposenta-dos e pensionistas da União, Estados, Municípios e INSS, deveser quase 30% maior do que todo o gasto do Tesouro comsaúde, educação e investimento. Esse déficit, que deve ser deR$45 bilhões, segundo o governo, pode piorar, ano que vem,na análise de especialistas, chegando a R$55 bilhões”.

Conversou-se e debateu-se muito sobre a gravidade desse déficit,mas nenhuma solução foi encontrada. Não se teve maturidade sufi-ciente para perceber que a persistência dessa anomalia prejudicariatodos.

No dia 10 de dezembro de 1999, os jornais do mundo todopublicaram a classificação de risco dada por agências especializadas,situando o Brasil com credibilidade muito abaixo da de países comoColômbia, Guatemala, Peru, Argentina, México, Panamá, Costa Rica,Malásia, Tunísia, El Salvador, Marrocos, Filipinas, Tailândia, Coréiado Sul, Turquia e Hungria, entre outros. Em conseqüência disso, ostítulos da dívida do governo brasileiro pagavam juros maiores do queos desses países.

A imprensa nacional deu amplo destaque àquela classificação emmanchetes como esta: “Rating força Brasil a pagar juro alto no exterior”.A palavra rating significa simplesmente a nota dada ao crédito, em moe-da estrangeira, no Brasil, pelas agências de classificação de risco, como aMoody’s e a Standard & Poor’s.

A Gazeta Mercantil dedicou mais de uma página ao assunto:

“Um título da dívida brasileira negociado no mercadosecundário, de vencimento em 4 anos, pagava, ontem, porexemplo, 12,28% ao ano, enquanto o da dívida de El Salva-dor, de vencimento em 6 anos, pagava 9,49%; do México,com vencimento em 7 anos, 8,87%; e da dívida da Argentina,com vencimento em 6 anos, 11,49%.

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A principal razão: a nota mais baixa dada ao crédito emmoeda estrangeira no Brasil. O País precisa pagar juro maiorpara compensar o risco maior”. (P. B-1.)

Por que o Brasil teve nota mais baixa do que a Bolívia? Procurousaber, aquele jornal, de Lisa Schineller, de Nova Iorque, especialista emrating de países da Standard & Poor’s, obtendo a seguinte resposta:

“O Brasil tem economia maior do que a da Bolívia ou a daArgentina, por exemplo, mas tem um déficit público maior emrelação ao Produto Interno Bruto. A relação, no caso do Brasil,é estimada pela Moody’s em 10,5% neste ano, ante os 1,6%da Argentina e 4% da Bolívia, por exemplo. A dívida interna doPaís ainda é cara e de curto prazo. Há incerteza para os inves-tidores” (Gazeta Mercantil).

Todo e qualquer político deve ter noção elementar de economiapara não prejudicar involuntariamente seu Município, seu Estado ou opróprio País. A tendência dominante é dar tudo a todos, principalmenteaos seus eleitores. Como as suas ações não afetam diretamente o patri-mônio particular do político, as generosidades se excedem.

Oportuna, nesse passo, a advertência de Olavo Setúbal:

“Toda vez que um político, um candidato à Presidência daRepública, fala em moratória, faz o Brasil pagar juros maisaltos no mercado internacional. É bom que todos eles tenhamconsciência disso. O País tem de evitar todos os pacotes delegalidade duvidosa, se quiser melhorar o seu rating. Temosde acabar com as tablitas, confiscos e moratórias” (GazetaMercantil).

Está correta sua observação, como comprovou a reportagem alienfocada:

“As agências deixaram claro que a moratória decretada peloBrasil em 1988 não foi esquecida. O comportamento passadodo País é sempre levado em consideração, explica Schineller.‘Avaliamos a habilidade e também a vontade de o País pagarsua dívida ao investidor’, disse Ernesto Martinez Alas, especia-lista em rating para países da América Latina da Moody’s”.

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O notável e sempre saudoso Geraldo Ataliba trouxe sua contri-buição ao tema, assinalando:

“É, portanto, uma das características essenciais do emprés-timo em dinheiro o contrato livre, que supõe, da parte doemprestador ou mutuante, confiança no mutuário; portanto,supõe a existência da qualidade de confiável no mutuário; querdizer, é preciso que o mutuário tenha crédito.

(…)Esta é a teoria do crédito, inserida na teoria geral do Direito,

com as características fundamentais e princípios que a gover-nam inteiramente aplicáveis ao direito público como ao direitoprivado”. (Empréstimos públicos e seu regime jurídico, Ed.Revista dos Tribunais, 1973, p. 10.)

É preciso ficar bem evidente para todos os integrantes do gruposocial a gravidade do problema de gastar, de forma inconseqüente, muitomais do que se arrecada. Todo Município, Estado ou país dispõe de duasalternativas: ou faz poupança – para, então, aplicá-la nos investimentos deque precisa – ou será obrigado a tomar dinheiro emprestado de terceiros.

Em qualquer dessas situações, necessitará de radiografias da suasituação econômico-financeira a todo momento. A visualização dessafotografia do patrimônio é fornecida pelos balanços ou balancetes,dos quais são peças essenciais as despesas e as receitas.

Se do exame dessa radiografia constata-se eventual desequilíbrionegativo entre o que entra como receita e o que sai como despesa, fica aperspectiva de obtenção de crédito automaticamente reduzida, porquenão há confiança em relação ao efetivo retorno do dinheiro desembolsado.

Uma coisa é ter um país todo o potencial para ser efetivamente rico,outra é ser materialmente pobre por incompetência ou má-fé nogerenciamento de sua riqueza. Uma nação é pobre quando a vasta maioriados seus integrantes vive de forma indigente. A existência de riquezas ina-cessíveis ao povo não altera essa condição desconfortável. Necessitamosde bons gerentes, na Administração Pública, para sepultarmos a indigna-ção externada pelo festejado escritor João Ubaldo Ribeiro:

“Uma das coisas que mais me irritam é ver o Brasil, aimprensa brasileira, a causar comoção porque uma empresa

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qualquer especializada deu uma nota baixa ao país em nívelde risco e não sei o que lá. A gente se esquece de que oBrasil está entre o sexto e o oitavo países em população domundo e é provavelmente o maior país em extensão territorialem terras utilizáveis”. (Veja, 16.2.2000, p. 14.)

Na verdade, o mercado – ente abstrato, do qual, consciente ouinconscientemente, todos participam, cada um com o ânimo empotencial de ganhar mais do que ganha, aplica ou possui – é movido,fundamentalmente, pela confiança. Sem confiança, não há crédito nemestabilidade, mas desordem e falência. Por isso, cada um, individual-mente, deve buscar contribuir para que seu país, sua empresa ou suaprópria casa mantenham-se em situação de confiança, de credibilidadeno mercado, a fim de poderem usufruir de crédito, de estabilidadefinanceira, enfim, da própria felicidade, objetivo final de todos oshomens normais.

Ainda aqui é elucidativa a lição do professor Geraldo Ataliba:

“Crédito é a qualidade de quem é fidedigno; é a qualidadede quem merece confiança, de uma pessoa na qual se podeconfiar.

Diz-se que ‘tem crédito’ uma pessoa que é acreditada. Dadaa amplitude dessa palavra, ela pode se estender a diversoscampos: moral, intelectual, técnico, científico e, no que nosinteressa, econômico (ou financeiro)”. (Empréstimos públicos,p. 14-15.)

Como se sabe, contas desequilibradas refletem quase sempre maumonitoramento administrativo, incompetência, falta de visão ou, emúltima análise, irresponsabilidade gerencial estimuladora de pobreza. Essequadro exibe como conseqüência a incapacidade de saldar compromis-sos assumidos e desestímulo para investimento dos que têm recursospara emprestar.

Fácil, assim, compreender que tanto o político que propõe gastosinsuportáveis ao Tesouro, em determinado momento, como o adminis-trador que resiste à adoção de providências saneadoras das finançaspodem, inconscientemente, ser nocivos à população cujo interesse, aténa maior boa-fé, julgam defender. Aliás, o escritor inglês Gilbert Keith

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Chesterton era implacável na sua avaliação: “Políticos honestos, porémdespreparados, deixam de ser honestos. Eles não passam de uma grandefraude”.

A propósito, alguns políticos levam horas falando sobre temas arespeito dos quais não têm conhecimento profundo ou autoridade téc-nica. Passam, assim, à população noções equivocadas sobre tais assuntoscom uma convicção particular de certeza, que acabam por prejudicá-lagravemente. Outros se insurgem contra medidas amargas, mas necessá-rias, à semelhança do pai bem-intencionado, do passado, que proibia ofilho de tomar penicilina para sífilis, penalizado com a dor que a injeçãocausava, convicto de que medicamento menos doloroso garantiria a cura,sem se dar conta da ineficácia de tal medicação.

No caso específico da Previdência, o seu déficit, por exemplo,pelo volume acentuado, recebia, no final do século XX, especial desta-que na fotografia patrimonial do País, sendo ressaltado a todo instantepelos analistas financeiros, que atribuem notas à capacidade de resti-tuição dos créditos de investidores. Teriam ou não contribuído melhoros que sempre resistiram à sua reforma se tivessem proposto soluçãopara minimizar as distorções naquelas contas largamente divulgadas?

À medida que aquele déficit for se avolumando, como ficará asituação dos aposentados de amanhã? Como terão os aposentados dehoje a certeza de que receberão seus proventos, no futuro, se apenasaumenta a despesa com esse dispêndio, sem qualquer majoração dereceita? Até que ponto será possível suportar a comodidade em afir-mar que a Previdência faliu, sem atentar para o fato de que falimos to-dos em relação a esse sistema, tendo em vista que ninguém se dispõe aconcorrer para a solução do problema?

As notas das agências especializadas em classificação de créditosão tão relevantes – por isso, os dados de cada país levados em contapara sua fixação devem ser permanentemente vigiados pelos gover-nantes – que, em 17.12.99, após divulgação, no Brasil, de tendência dequeda na inflação, contrariando as expectativas do mercado, a agênciaMoody’s decidiu melhorar a nota de classificação do País. Em conseqü-ência dessa simples divulgação, o dólar teve uma queda de 1,58%.

As páginas de Economia dos jornais, não percorridas pelo grandepúblico, retrataram a euforia:

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“O mercado ficou otimista porque a decisão foi vista comoum indicador de que a classificação dos títulos em moedaestrangeira poderá ser elevada em breve, o que provocará umanova redução do risco Brasil, facilitando as captações externasrealizadas pelo País e por empresas brasileiras”. (Diário doNordeste, 18.12.99, p. 4, Negócios.)

Em agosto do ano 2000, a agência internacional de risco Moody’sanunciou outra revisão da classificação do Brasil. A simples notíciade revisão do rating “reduziu o preço do dólar, puxou a cotação do C-Bond, tornou o título da dívida externa brasileira mais líquido e cau-sou nova onda de entusiasmo na Bolsa de Valores de São Paulo(Bovespa)”. (Diário do Nordeste, 18.8.2000, p. 7. – Negócios.)

Essas informações estão a demonstrar que o homem públicobrasileiro necessita modernizar-se, precisa ter noções elementaressobre Administração, economia e orçamento. Não basta apenas falarbonito, sair distribuindo chaveiro, na companhia de gente caridosa,ou jogar praga na globalização, sem nenhuma proposta de solução.Enfim, não basta ser o deus da crítica e a expressão apática do silên-cio em relação à solução das dificuldades vivenciadas por sua gera-ção. Perde-se tempo demais para identificar um problema e maistempo ainda para equacioná-lo.

O resultado dessa mistura de incompetência e fisiologismo genera-lizado e, para alguns mais radicais, má-fé, resume-se nos gastos com jurosde R$37 bilhões, no semestre correspondente a dezembro/99-junho/2000.O Jornal do Comércio (RJ), O Globo e O Estado de São Paulo, edição de 20.7.2000,explicitaram com detalhe essa distorção:

“Os gastos com juros para a rolagem da dívida mobiliária dogoverno federal atingiram R$37,3 bilhões de dezembro de 1999a junho deste ano. Esse montante corresponde ao valor previstono Orçamento da União de 2000 destinado a custeio e investi-mento do Executivo federal, excluindo gastos com pessoal ebenefícios da Previdência. As despesas com juros contribuí-ram para que o estoque da dívida pulasse de R$440 bilhões,em dezembro, para R$491 bilhões em junho, o maior montan-te em termos nominais, segundo dados divulgados ontem peloTesouro Nacional e Banco Central”. (SecrelNet News –20.7.2000.)

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Não precisa ser economista para perceber que uma sociedade queretira de seu caixa mais de 30 bilhões de reais apenas para pagar juros dedívida, correspondentes a um semestre, é fatalmente mal gerenciada pelosseus segmentos, indistintamente considerados, tendo como resultado oempobrecimento de sua população.

Todos, com maior ou menor parcela de culpa, respondemsolidariamente por esse quadro, que, na imagem vulgar do futebol ou nalinguagem pura e acessível do povo, é designado pelos mais simplistascomo “lambança”. Respondem por essa aberração diversos fatores, quevão da incapacidade inacreditável de afastar, de pronto, do poder quemcomprovadamente desvia verba pública, à preocupação de manter, cadaum, sempre bem preservado aquilo que particularmente lhe convém.

Para melhor se perceber a estupidez que isso representa, bastaavaliar que o Parlamento alemão, no dia 6 de julho de 2000, aprovouuma indenização de 5 bilhões de dólares aos escravos do regime nazista,que correspondiam a 10 milhões de prisioneiros obrigados a trabalhar,no curso da II Guerra, nas fábricas sob o comando do III Reich.

No que pesem todas as atrocidades suportadas pelas vítimas dosalemães a serem favorecidas com a referida indenização, correspondeesta a aproximadamente quatro vezes menos do que o povo brasileiro,que não aprisionou nem matou ninguém, pagou, em apenas um semestre(dez./99 a jun./2000), de juros, para rolagem de sua dívida mobiliária.Que há também um crime, uma discriminação, algo muito errado contrao povo brasileiro, visualizável pelo confronto desses números, pareceóbvio. Cabe, porém, aos economistas, em linguagem acessível, sem his-terismo ou subserviência, mostrá-lo, propondo solução consistente.

Em conseqüência dessas distorções, no dia 10 de outubro de2000, a mídia voltou a dar ênfase a esse tema desconfortável:

“Cresce a miséria no Brasil. Em um ano, o número de pobresno Brasil aumentou em 3,1 milhões. Pesquisa do IPEA aponta:57,2 milhões de pessoas terminaram 1999 sem renda suficientepara se alimentar, se vestir e garantir as necessidades míni-mas de educação e saúde”. (Jornal O Povo, primeira página.)

Na semana anterior, as manchetes davam conta do preço doaluguel mensal do prédio em que está instalada a embaixada do Brasil

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na Alemanha: R$242.000 (duzentos e quarenta e dois mil reais), valorrigorosamente em descompasso com a situação de um País em que umagama de indigentes se avoluma nas suas ruas, sem comida e sem teto.

Todas as forças da nação devem convergir para assegurar maiordignidade ao seu povo. E o desperdício injustificado, em qualquer área,é incompatível com isso. Somente se justifica pela falta de noção ele-mentar de solidariedade.

O eleitor, por sua vez, deve avaliar, com maior cautela e profun-didade, todos os que lhe suplicam o voto mas nada propõem para asolução concreta de seus dramas. Não pode perder de vista os quepropõem soluções miraculosas ou absurdas para resolvê-los e tambémos que conhecem tudo, sob o ponto de vista teórico, mas não conse-guem descer à realidade, onde fervilham as crises, para efetivamente so-lucioná-las. Só o drama da morte não tem solução no mundo material.O resto depende da vontade efetiva para solucioná-lo e da escolha depessoas certas para resolvê-lo.

A propósito, J. F. Kennedy demonstrava sua visão clara sobreAdministração Pública ao assegurar: “Eu não sei o caminho para o sucesso,mas, com certeza, o caminho para o fracasso é agradar a todo mundo”.

O caos econômico, estampado no pagamento de um volume dejuros tão elevado, está a exigir, de pronto, uma radical mudança dementalidade dos que militam em todas as esferas do poder. É claro quenão seria necessária tal modificação se o quadro não fosse tão desola-dor. Sem essa mudança radical, haverá sempre o risco de trocar apenaso nome do governante, permanecendo os problemas com a sua mag-nitude preocupante. A palavra de ordem para o terceiro milênio haveráde ser: mentalidade diferente, sobretudo para consolidar a idéia desupremacia do interesse coletivo.

4. Moratória e suas conseqüências

Em janeiro de 1999, a despesa com pessoal, em Minas Gerais, com-prometia aproximadamente 94% de sua receita. O governador recém-empossado, diante da constatação da insuficiência da receita arrecadadapara pagamento dos gastos, num gesto impensado, decretou moratória.

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É certo que herdou um Estado falido; entretanto, foi eleito paraconsertar os erros administrativos existentes.

A credibilidade do Brasil, no cenário internacional, era objeto dedesconfiança em todos os quadrantes. As contas públicas, apresentandopermanente desequilíbrio, decorrente da despesa superior à receita, pro-vocavam, em todos os credores e investidores, um sentimento de des-confiança máxima. A decretação da moratória em Minas foi a peça quefaltava para que os demais países do mundo proclamassem a perda daconfiança na capacidade do Brasil de saldar suas dívidas.

Uma coisa é alguém ter débitos e transmitir aos seus credores asensação de que honrará seus compromissos, passando a convicção deque se acha diligenciando para obter meios para saldá-los; outra é pro-clamar solenemente que não pagará o que deve. O pânico se instala e osentimento de retaliação é inevitável, qualquer que seja o credor.

Lamentavelmente, no episódio mineiro não se percebeu que,estando todos os holofotes de investidores, especuladores e credoresvoltados para o Brasil – situado por eles, naquele início de 1999, noolho do furacão em que se transformou a crise mundial entãovivenciada –, a simples utilização de palavra estigmatizada, comomoratória, por um ex-presidente da República e ex-embaixador, pas-saria ao mundo a verdadeira situação de insolvência vivenciada porMinas e pelo próprio País. Uma coisa é sentir-se falido; outra, muitomais grave, é ser considerado e tratado como tal pelo mercado.

Os danos advindos da decretação de moratória são incalculáveis.Primeiramente, sob a ótica do credor, fica sempre a convicção de quequem dá um calote dará dois ou mais. Depois, enquanto não sair damente de todos a lembrança da inadimplência confessada, só outropotencial caloteiro tem coragem de realizar negócio com quem nãohonrou seus compromissos.

Mais de um ano depois, em 29 de junho de 2000, noticiou ojornal O Estado de São Paulo:

“Decisões políticas, como o rompimento do acordo com aFord, para instalação de uma montadora no Rio Grande do Sul,e a disputa travada pelo governo Itamar Franco com os sóciosestrangeiros da Cemig – aliada à polêmica decretação damoratória mineira – interromperam a entrada de capital

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estrangeiro nos dois Estados. Minas perdeu, no ano passado,quase 30% das intenções de investimentos anunciadas em1998, e o Rio Grande do Sul, 72%.

(…)Houve uma quebra na condição de confiança, de negociação,

diz Denize Andrade Rodrigues, chefe do escritório do BNDES emSão Paulo e autora do estudo Os investimentos no Brasil nosanos 90: cenários setorial e regional (...)”.

É fácil imaginar o drama do credor, certo de que em tal dia rece-berá seu crédito, sendo surpreendido com a declaração de moratóriaou concordata do devedor. Terá coragem de celebrar novos negócioscom quem já o enganou? Qual a motivação para alguém investir ourealizar operação com devedor, seja Estado, seja pessoa física, sejaempresa, que confessa incapacidade de honrar suas obrigações? Paraavaliar a dimensão das conseqüências dessa insegurança, basta colo-car-se no lugar do credor lesado.

A propósito, observou Geraldo Ataliba:

“Merece confiança, do ponto de vista econômico, a pessoaque tem condições objetivas de arcar com o pagamento.

O crédito, nesse sentido específico – em que o toma oDireito, para regular relações econômicas – requer tambémque se leve em consideração a perspectiva subjetiva queconsidera os aspectos morais da pessoa cujo crédito se ques-tiona.

Em outras palavras, o empréstimo em dinheiro, como insti-tuto jurídico, leva em consideração, objetiva e subjetivamente,a confiança que pode merecer uma determinada pessoa, paracumprimento de uma determinada obrigação.

(…)Assim se vê que é condição essencial, preliminar e funda-

mental para o crédito público, a confiança que o Estado even-tualmente inspire nas pessoas que estejam dispostas aemprestar-lhe dinheiro. É que o Estado é pessoa que se põe naposição de sujeito de relação jurídica comutativa.

(…)Não se ignora, entretanto, quantas vezes o Estado tem sido

faltoso no cumprimento de suas obrigações, mesmo obriga-ções de pagar dinheiro.

Como os bens públicos são impenhoráveis, e, portanto, nãohá possibilidade de execução forçada contra a Fazenda Pública,

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todas as vezes que o Estado tem deixado de pagar os seusdébitos, ou tem retardado esse pagamento, a conseqüênciadesastrosa tem sido fantástica retração dos emprestadorespotenciais e, portanto, uma diminuição do crédito público”.(Ob. cit., p. 14-22.)

No último trimestre de 2000, o ex-presidente da Argentina RaulAlfonsin sugeriu que aquele país decretasse moratória para livrar-se dopagamento de sua dívida. O estrago em seu país foi imenso.Imediatamente, em conseqüência daquela ponderação, o dólar subiuno Brasil. Para uma geração de governantes, a moratória continua sendouma palavra de ordem. Traduz, porém, dupla incompetência: uma,visualizada na incapacidade de conter o crescimento da dívida, e a outra,mais grave, na inaptidão para saldá-la ou reduzi-la sem traumas.

As desculpas para a inadimplência da União, de Estados eMunicípios são irrelevantes e se resumem na fragilidade de gerenciamen-to, atestada no fato de admitir-se, com exagerada freqüência e sem rea-ção eficaz, receita inferior à despesa. Essa situação só persiste pela faltade determinação de legisladores e administradores, agravada pelo fisio-logismo recorrente, vivenciado em todos os poderes, historicamenteresistentes à adoção de corretivos visando a sanear o quadro de insol-vência constatado.

É inacreditável a falta de maturidade do País, a despeito dos seus 500anos, para equilibrar o próprio orçamento. Embora todos constatem, emdeterminado momento, a existência de déficit inadmissível, os integrantesdos poderes constituídos não são capazes – mesmo diante da contundênciados números desfavoráveis – de encontrar solução satisfatória para o pro-blema. Ninguém quer perder nada. Resistem todos. Afunda-se o País. Massolução negociada para o bem-estar geral, isso jamais.

A crise surgida no início de 1999 com a desvalorização do real – que,segundo alguns, fez cada cidadão ficar em média 40% mais pobre – retratabem o perfil de uma nação imatura, em que proliferam egoísmo, vaidade,corporativismo e nenhum compromisso efetivo com o interesse coletivo.

Durante mais de quatro anos, falava-se que o País teria de equili-brar o seu orçamento. Todos sabiam que se gastava muito mais do queera arrecadado. Por fundamentos diversos, dos quais o mais irrefutávelfoi a falta de espírito público, não se conseguiu equilibrar as finanças.

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Quem gasta mais do que arrecada, sem demonstrar fundamentosgerenciais convincentes, não pode ter credibilidade. Nenhum segmentoda sociedade quis perder nada para contribuir para o equilíbrio entrereceita e despesa. Introduziu-se até mesmo a reeleição, no sistema jurí-dico brasileiro, mas não se conseguiu abrandar o impacto negativo dodéficit público, gerador de desconfiança quanto à solvência das obriga-ções contraídas pelo País.

O resultado não poderia ser outro. Todos perderam muito, e oPaís amargou uma de suas crises mais agudas. A sociedade pagou tribu-tos como nunca pagara; o dinheiro das estatais vendidas foi destinado aopagamento de juros decorrentes de débitos não saldados. A despeito detodo o excessivo desembolso, a dívida brasileira cresceu, em conseqüên-cia dos elevados encargos financeiros provocados, em última análise,pela incapacidade de compatibilização entre receita e despesa.

Mesmo consciente da necessidade de reformas para maioreficiência da Administração e combate ao déficit público – tido, durantevários anos, por todos, como a causa de descrédito no País, bem assimda elevação dos juros e outros males –, os segmentos mais conscientesda sociedade têm-se mostrado incapazes de qualquer mobilização paraa operacionalização das modificações tidas como inadiáveis.

Deixam tudo a cargo do Executivo, na suposição de que este,sozinho, seja capaz de corrigir as distorções gravemente prejudiciais atodos. Os governadores que se dispuseram a travar lutas contra saláriosaberrantes pagos nos seus Estados testemunharam, em relação àsociedade organizada, somente manifestações dos sindicatos; ainda as-sim – por incrível que pareça – repudiando as providências saneadoras.

O Ceará, em vão, tentou reduzir, tão logo detectados em 1996, salá-rios que iam de 18 mil a 42 mil reais. Num primeiro momento, foi vencidono Supremo Tribunal Federal, e nenhum contribuinte – que, efetivamente,arca com aqueles pagamentos – saiu em defesa da Fazenda Pública paracontrapor-se à hostilidade dos favorecidos com aquelas remunerações. So-mente no início do ano 2000 logrou estancar aquelas distorções, na SupremaCorte, sob a total indiferença de sua elite.

Os empresários, embora compondo um dos segmentos maisesclarecidos, sobretudo em temas econômicos, de um modo geral sãoincapazes de ações para estimular reformas de interesse geral.

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Entretanto, são as primeiras vítimas do colapso econômico. Talvezpor receio de retaliação, não se envolvem em campanhas para maiorconscientização da população sobre a necessidade de correção de rumos.Restringem suas observações a um pequeno círculo ou a temas em quepontificam os seus interesses específicos e imediatos.

Fora disso, deixam tudo na mão dos políticos. Não havendo,porém, retificação de trajeto, muitos deles acabam se deparando comcrises terríveis, que os levam, não raro, à falência.

Todos os integrantes da sociedade devem, por isso, lutar com maiordeterminação para a correção de distorções. A não-retificação, por meiode medidas oportunamente adotadas, pode gerar danos irreparáveis paratodos, sobretudo aos empresários, as primeiras vítimas do caos econô-mico. Ao falirem ou deixarem de crescer, extinguem ou reduzem o númerode empregos, comprometendo a prosperidade do grupo social.

A sociedade não é predisposta a mudanças. A pobreza do povo éuma conseqüência da postura ineficiente dos seus dirigentes, no cursodos séculos. A modificação de qualquer situação vivenciada ao longodo tempo provoca ressentimento, revolta e retaliação, sobretudo daelite eventualmente atingida. Shakespeare tinha razão ao advertir que“transformação é uma porta que só se abre para dentro”.

Todas as armas são utilizadas por quem se sente prejudicado dianteda perspectiva de reformulação, mesmo que visivelmente necessária, paraque não seja ela implementada. Se o próprio idealizador das mudançasexibe, porém, vulnerabilidade em relação a eventual providência que pre-tende exigir dos outros, jamais conseguirá convencer satisfatoriamentesobre a utilidade ou imprescindibilidade daquilo que propõe. Se alguémafirma, por exemplos, que o melhor guaraná é este e, no entanto, tomasempre outro, nenhum consumidor leva a sério sua afirmação.

Não menos constrangedora é a situação do administrador públicoque vivencia as dificuldades do Erário, ao ter de implantar, em folha,cumprindo ordem judicial, pensões e aposentadorias com cifrasincompatíveis com a realidade financeira do Tesouro.

As freqüentes ameaças de prisão de servidores que, diante daimpossibilidade material de cumprirem as ordens judiciais, não podemimplementar, de pronto, os comandos inseridos nas sentenças, longede traduzir, em muitos casos, deliberada insubordinação, estão a sugerir

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profunda reflexão, no sentido de que tenha o Poder Judiciário, na devidaconta, o binômio receita–despesa no orçamento do Estado. Inclusivepara não incorrer no absurdo de inviabilizar, ele próprio, o descumpri-mento de suas decisões, por absoluta ausência de recursos, em face dadesproporcionalidade entre os valores ali fixados e a disponibilidadeefetivamente existente no Erário.

O princípio da razoabilidade, cumpre reiterar, se aplicado noexame dessas questões, poderia compatibilizar as manifestaçõesjurisdicionais com o ideal de justiça, literalmente afastado à medidaque se punem os contribuintes com condenações do Poder Públicoem pagamentos astronômicos, em detrimento de outras prioridades.

Os casos de desapropriação com condenações em valores acimada realidade do mercado ou de ações movidas por grupos de servido-res que, muitas vezes, sequer se submeteram a concurso público paraingresso na Administração necessitam de maior atenção. Afinal, é sem-pre oportuno insistir, o Tesouro, em nenhum lugar do mundo, podesuportar investidas diárias para majoração da folha de pagamento semque seja levado em consideração o volume de sua receita.

A generosidade irresponsável de muitos legisladores estaduais jánão pode ser usada como argumento para condenações judiciaisincompatíveis com as disponibilidades financeiras da Fazenda Pública,sacrificada com essa “festa”. O princípio da razoabilidade também deveser aplicado em favor do Poder Público.

Em última análise, tem prevalecido, inconscientemente, a idéiaequivocada de estar sempre o Erário abarrotado de dinheiro para ban-car tudo o que lhe é apresentado. Minas demonstrou as perigosas con-seqüências dessa concepção. A inexistência das receitas financeirasgeradas em tempos de inflação galopante representou um duro golpenos Estados, envolvidos com permanentes demandas trabalhistas queinviabilizam qualquer gerenciamento eficiente.

Por fim, é oportuno ter presentes as ponderações geniais de Ataliba:

“(...) do ponto de vista subjetivo, não é só a pessoa doEstado que tem crédito, mas sim determinada administra-ção, determinado governo, determinada equipe que – pelasua maneira de conduzir, pela sua filosofia, pela sua política,e sobretudo pelos fatores que em geral podem inspirar

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confiança – empresta ao Estado, durante determinado perío-do, aquelas condições que exatamente configuram o que sequer expressar pela palavra crédito, tomada nesta acepção.

O crédito público tem o mesmo fundamento que o privado.Só empresta ao Poder Público quem nele tem confiança. Sósabendo que o Estado pode cumprir seus compromissos e ‘quer’fazê-lo é que as pessoas lhe emprestam dinheiro”. (Ob. cit., p.23 – g.n.)

5. Juros extorsivos e indigência das naçõesConforme o jurista italiano Pino-Branca, “o empréstimo voluntá-

rio ou ordinário é baseado no crédito pessoal do Estado e no princípiode que este não desaparece jamais: oferece os juros correntes no merca-do e não diminui as riquezas necessárias à produção. É, portanto, a for-ma mais moderna, correta e comum que oferece ao subscritor um inves-timento seguro dos próprios capitais (...)”. (Nuovo digesto italiano, v. 4, p.562 a 579, verbete “débito público”.)

Os juros, como se sabe, correspondem à remuneração do capitalemprestado. Refletem a ânsia do credor, proprietário de recursos emabundância, e a necessidade do devedor carente deles.

O devedor, seja o indivíduo, seja o próprio Estado, deveorganizar o seu patrimônio para evitar a dependência do capitalalheio, com o conseqüente pagamento de juros. Quem tomadinheiro emprestado deve ter a consciência de que terá de pagá-lo.Os segmentos mais esclarecidos de uma nação devem mantervigilância quanto ao seu excessivo endividamento. Devem todosreagir e questionar a tomada de empréstimo excessivo. A entradado dinheiro é suave e festiva. O povo raramente percebe de pron-to. A sua saída, por envolver toda a sociedade responsável pelodesembolso, é sempre traumática, sobretudo quando em volumeexcessivo. O quadro mais se agrava quando o dinheiro emprestadoé mal aplicado ou desviado.

É comodismo ficar apenas a praguejar o credor, sem questiona-mento algum sobre os legisladores, auditores, administradores,sobretudo em relação aos que receberam o dinheiro emprestado, apli-caram-no de forma incorreta ou deixaram de adotar as providências

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necessárias para evitar a situação de insolvência, ocasião em que se torna ocrédito sempre mais escasso.

Por outro lado, o princípio da solidariedade, que deve presidir asrelações entre os povos, impede que a ganância dos habitantes dos paí-ses mais opulentos leve à indigência ou mesmo à miséria a população depaíses devedores, evitando que subtraiam quase todos os recursos da-queles, a pretexto de saldar seus créditos. No próprio tempo de domi-nação dos romanos, César era advertido para “encarar os povos con-quistados como parceiros, em vez de inimigos subjugados”.

Juros exageradamente elevados, que chocam o próprio mercado,refletem a indigência gerencial do devedor na administração do seu pa-trimônio, mas também explicitam abominável disposição para aextorsão dos credores.

É falsa, falaciosa, a apologia da igualdade, da fraternidade e daprópria democracia, apregoada em alguns países abastados, na medidaem que exigem dos povos mais pobres cifras astronômicas, a título dejuros, sem redução expressiva do capital emprestado.

A necessidade da preservação de um sentimento de justiça entreos homens que habitam a Terra impõe a redução do principal da dívidaapós o pagamento de parcela significativa a título de juros, com a con-seqüente redução destes. Até porque constitui verdadeiro acinte contrao sentimento do ser, enquanto integrante da humanidade, extrair deuma nação, sacrificando irremediavelmente suas gerações, cifras vulto-sas para pagamento de juros.

Na verdade, os juros extorsivos decorrem da insegurança quantoao recebimento do principal. Nos países mais desenvolvidos, os jurossão relativamente baixos, porque não há desconfiança de inadimplência.O fator confiança interfere, pois, na estipulação do patamar dos juros.

Entretanto, uma vez paga, na rubrica “juros”, parcela acentuadado principal, dissipando-se de fato o receio da inadimplência, deveesse principal ser reduzido ou alongado o prazo de seu vencimentopor iniciativa dos países credores que cultivam algum sentimento dejustiça, fundamental nas relações entre os homens.

Na guerra, o vencedor sente-se legitimado a retirar do povo vencidotodos os bens, para pagamento de seus gastos. Qualquer que tenha sido acausa do conflito, o perdedor é espoliado. Perde a soberania e o comando

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dos seus cidadãos. Daí concluíram os romanos: “Dois sentimentos gover-nam o mundo e o homem comum: o medo e a ganância”.

No caso dos juros extorsivos, a situação do país devedor asseme-lha-se à do vencido na guerra. Os credores, a pretexto do recebimentode seus créditos, diante da magnitude do volume destes, exigem quasetodas as receitas geradas. Provocam, em conseqüência, miséria,desemprego, fome e sofrimento nos habitantes de país devedor, em de-corrência da impossibilidade de satisfação de suas necessidades bá-sicas, pela falta do dinheiro levado para pagamento de cifras abusivas.

Quando o dinheiro destinado à geração de emprego, construçãode hospitais, escolas, aquisição de medicamentos, etc. é retirado decirculação em um país para pagamento de juros cobrados a taxas muitoacima do normal, o credor assemelha-se ao general que domina as na-ções subjugadas pela força das armas.

A dominação, no caso de juros extorsivos, decorre da força docapital emprestado. Os efeitos porém são análogos: redução dosdominados à indigência, nos casos de guerra perdida, e majoração abu-siva do valor das dívidas, no caso de asfixia sem arma.

Da mesma forma como a humanidade evoluiu, passando avislumbrar injustiça no fato de um povo subjugar outro pela forçadas armas, repudiando a dominação pela violência, assim tambémnecessita, com urgência, insurgir-se contra o abuso silencioso, masigualmente nocivo e aberrante, da exigência de juros extorsivos depaíses pobres.

A mesma insensatez e ganância visualizadas nos arrogantes quepretendem, em determinada época, dominar o mundo pela força desuas armas, está presente, também, naqueles que subtraem tudo de umpovo, a título de pagamento de juros flagrantemente extorsivos.

A insensibilidade e a ambição desmedida são semelhantes em ambosos casos. Morram de fome os habitantes dos países devedores, mas osjuros devem ser pagos a todo custo – raciocinam os donos dos créditos.

Exigir de um país inteiro trabalho permanente de seu povo ape-nas para pagar juros aos seus credores não é situação compatível com osentimento de justiça, que deve ser compartilhado entre os povos, pelarazão elementar de que todos os homens nascem da mesma forma, têmas mesmas necessidades ao longo da vida e, fatalmente, morrem. Com

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efeito, cada homem morre necessitando apenas de um pequeno espaçode terra para armazenamento dos seus despojos, a despeito de todo oacervo de bens materiais e cultura que conseguiu amealhar.

Os juros exageradamente elevados traduzem distorção, insensibi-lidade e obscuridade do credor. Decorrem de tensão gerada pelaexpectativa do não-recebimento do crédito. Todavia, com o transcor-rer do tempo e com a adoção de providências, pelo devedor, tendentesao bom gerenciamento do seu patrimônio, a insegurança que motivoua elevação desaparece, permanecendo apenas a obscuridade a justificarsua elevada taxação.

Sugado e empobrecido, o país devedor – em decorrência da excessi-va retirada dos recursos que produziu, mas foram destinados ao pagamentodos juros extorsivos – não terá como fornecer à sua população condição devida com o mínimo de dignidade. Apesar do esforço empreendido e dosrecursos que logrou produzir, permanecerá pobre, com desigualdades soci-ais agudas e sempre na perspectiva de inadimplência, pela falta de recursospara crescer, gerar mais receita e, conseqüentemente, garantir o pagamentointegral do seu sempre crescente débito.

Quando o credor, a pretexto de receber o que lhe é devido, esfolaou asfixia o devedor, acaba sempre perdendo, mesmo que venha areceber tudo o que emprestou. Ao levar uma nação à miséria parapagá-lo, acaba reduzindo o mercado de consumo – que, bem estimulado,poderia render-lhe receitas até mais abundantes –, sem falar do estigmada injustiça e da ambição desmedida, que a história recriminará. Acaba-rá também sucumbindo, vítima do excesso de ganância.

Os países devedores não podem, porém, permanecer nocomodismo de tomar dinheiro emprestado, gastar mal, não prenderos que desviam verba pública em proveito próprio e depois sair compalavras de ordem como “moratória já!” para liberar-se da obrigaçãode pagar.

Calote é calote. E ninguém cresce, em nenhuma parte do mundo,com fama de caloteiro. Devem, por isso, os formadores de opinião com-preender que insolvência é fruto de gerenciamento ineficiente. Para en-frentá-la, basta acabar com o corporativismo e o fisiologismo, adotan-do as medidas corretas e sérias exigidas pela situação eventualmente vi-venciada.

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Bill Clinton não teria levado o seu País à prosperidade, na décadade 90, se antes não houvesse realizado ajustes por meio da redução degastos, sendo por isso duramente criticado.

Um grande estadista tem visão de longo prazo e receio doaplauso fácil, por ser este excessivamente efêmero. O medo de tomara decisão exigida em determinado momento, para não desagradar asegmentos que gravitam em torno do poder, leva o governante aofracasso inevitável.

Ressalvados os casos de má-fé, que impedem a realização de umbom governo, o medo e a opção por não desagradar simpatizantes apre-sentam-se como causa determinante do fracasso administrativo da grandemaioria dos homens públicos. A idéia dominante é fazer concessões,agradar, por intermédio de liberalidades descabidas e prejudiciais aointeresse público. Por isso, lembrava com propriedade Montesquieu: “Opolítico deve buscar sempre a aprovação, porém jamais o aplauso”.

O FMI é acusado, com freqüência, de provocar o massacre, semarmas, dos povos habitantes de países que a ele recorrem, diante desuas recomendações sempre duras para as situações de crise nas res-pectivas economias. Não se preocupa aquela instituição em fomentardebates entre os segmentos da população interessada, visando ao apri-moramento do gerenciamento da Administração. Parece ser a opçãosempre pela receita amarga ao paciente, nunca pela prevenção, capazde evitar a enfermidade.

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CONCLUSÃO – BRASIL: QUESTÃO DE AFETIVIDADE

Muitas explicações têm sido apresentadas para justificar a perma-nente disposição de os homens, públicos ou não, no Brasil, agirem con-tra tudo o que pertence à coletividade.

As verbas e os bens da União, dos Estados e dos Municípios sãoobjeto de permanente cobiça dos próprios brasileiros. Não há respeito sequerpelo dinheiro da merenda escolar. Da verba destinada, no orçamento, àconstrução de moradia para pessoas carentes àquela destinada à compra deremédio para enfermos, tudo, literalmente tudo, é objeto de subtração.

Pertenceu algo ao Poder Público, todos se sentem como queinvestidos num suposto direito de subtrair dele todo e qualquer proveito.

Ama-se mesmo o Brasil? A propósito, qual o sentido da expres-são “amar o Brasil”?

Parece inacreditável, mas a demonstração de amor ao País seresume em cantar o hino nacional antes do jogo da seleção, na Copado Mundo.

Amar o Brasil é aproveitar-se de função pública para extrairproveito pessoal? Desviar verba do orçamento, dos precatórios oude licitações? Nomear filhos, genros, noras e amigos, apenas pelaforça do vínculo sanguíneo e da amizade, para receberem saláriosdos cofres públicos? Pode isso traduzir algum indício de amor àpátria?

Na década de 70, os militares, que disseminavam ódio e rancorpor meio das armas com as quais se mantinham no poder, longe decompreenderem que “amor pela força” é estupro, proclamavam, emtom pedagógico: “Brasil, ame-o ou deixe-o”.

Haverá demonstração maior de desamor por um país do queusurpar o poder e nele permanecer pela força? Tentar, por qualquer for-ma, perpetuar-se no poder? Modificar leis para nele permanecer pormais tempo? Manter em função pública pessoa que, comprovadamente,

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já desviou recursos? Enfim, chancelar a corrupção, omitindo-se de qual-quer reação eficaz para combatê-la?

Talvez, no fundo, o grande drama do Brasil decorra do fato de nin-guém se preocupar em ensinar seus filhos a amá-lo, por meio de exemplosdignificantes, que estimulem seguidores a perpetuá-los. É tão simples! Ali-ás, como tudo o que tem a ver com um verdadeiro amor. “O amor àpátria tudo corrige” – ponderava Montesquieu. Os jovens advertidos nes-se sentido poderão dar essa lição às gerações subseqüentes. Pelo menos,evitarão as lições de desamor ministradas no curso de nossa história.

Ou se rompe com essas ações mesquinhas, ou acabaremosaumentando as gerações falidas, que nos legaram um País onde ninguémconfia em ninguém, onde as grades “ornamentam” a paisagem de todasas cidades, onde ninguém se dispõe a defender aquilo que pertence àcoletividade. Esta, a amarga lição que se extrai observando-se atenta-mente o exercício do poder no Brasil do final do segundo milênio.

Cada um deve, por isso, comprometer-se, perante seu coração esua consciência, a mudar essas lições ácidas que lhe foram passadas nocurso destes séculos. O exercício do poder só se justifica pela buscapermanente de fazer o melhor pela coletividade. Esta, a verdadeira liçãoa ser captada de quem o exerce com altivez.

Na verdade, falta-nos, enquanto nação, para combater a cor-rupção, o arrojo de uma juventude intrépida, a determinação e aousadia que sobraram nas mulheres francesas que, após exigirem econseguirem a ratificação da declaração dos direitos do homem pelorei, apoderam-se da família real, conduzindo-a, juntamente com osintegrantes do Parlamento, de Versalhes para Paris, numa manhã inu-sitada de outubro.

Arrojo, ousadia e coragem típica de nação ávida pela guerra? Não.A guerra, a solução pelas armas, é opção exclusiva dos arrogantes,neuróticos e mercenários. Arrojo para tornar eficaz o Direito,afastando dos respectivos cargos ministros, juízes, desembargado-res, promotores, procuradores, prefeitos, governadores, presidentes,enfim, todo e qualquer cidadão investido em função pública quedela se utilize para servir-se. Deve-se dar um basta à locupletação,que se instala em detrimento da supremacia do interesse público,pisoteado e sempre posto de lado para que prevaleça e se dissemine

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uma cultura de prestígio à impunidade, como se o Direito vigentese resumisse a gotículas de tinta que se desbotam ao sabor da con-veniência de alguns.

É inadiável maior ousadia para questionar e modificar a mentali-dade de cada brasileiro. A função pública não pode continuar abrigandoquem age em detrimento dela, em qualquer área, seja no âmbito doExecutivo, seja no do Legislativo, seja, sobretudo, no do Judiciário.

O poder, em qualquer esfera em que é exercido, pertence ao povo.E o povo, enquanto seu titular, não pode assistir passivamente à traiçãopraticada de forma ostensiva por aqueles que se valem do cargo em queforam investidos em proveito pessoal, a beneficiar-se dele, diante dacomplacência patológica de uma nação inerte, imobilizada por ummarasmo com o qual a juventude brasileira do terceiro milênio não podepactuar – sob pena de envelhecer precocemente, ao som do comodis-mo e da indiferença que tornaram os anciãos de hoje vítimas de seupróprio descaso diante da recorrente fruição ilícita do poder, a qualtestemunharam, mas nunca ousaram contestar de forma eficiente.

O medo, o receio de desagradar e a conveniência pura e simplesda amizade já não podem ser invocados como óbice para a prevalên-cia do cumprimento da lei, com a conseqüente disseminação de suassanções, para que a pedagogia de sua efetiva aplicação contra a ilici-tude retire da passividade uma nação que, apesar dos seus 500 anos,cultiva a ingenuidade de sempre invocar fundamentos distintos paradeixar, no alto da abstração das normas existentes na ordem jurídica, aspenalidades previstas nela.

Deve-se romper o traçado e a arrogância dos predadores da lei,tornando-a eficaz para reprimi-los, transformando o princípio da igual-dade em norma vigente, sem espaço para privilégios, que transformamas sanções do Direito em quimera – exceto para pobres e negros, alvoinevitável do amargor de suas reprimendas.

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Djalma Pinto é advogado.Atua na área do Direito Eleitoral.

Foi procurador-geral do Estado do Ceará