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35 Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano V, n. 25 Movimentos religiosos e ideológicos: alienação e consciência humana Luiz João Firmo 1 Introdução A questão da religião no presente trabalho cientifico se põe no terreno da sociedade e da cultura. Não se trata, aqui, de indagar sobre a existência ou não de Deus e sua relação com a religião. Esse, a meu ver, é um problema para os teólogos e não para cientistas das religiões. O que me interessa é tentar compreender melhor a maneira de os seres humanos organizarem sua experiência religiosa a partir do momento em que acreditam na existên- cia da divindade, ou seja, a partir de suas crenças, e qual a consequência disso para suas vidas. Ao que parece, neste início do século XXI as pessoas podem optar pela religião ou crença de sua preferência, para muitos o motivo é o fato de vivermos em uma sociedade onde várias alternativas se apresentam no campo da fé. As crenças, bem como as religi- ões, somente podem existir através de indivíduos que as incorporem, mas é importante destacar que elas somente fazem sentido quando organizadas em sistemas que caracteri- zam a forma de vida dos povos. Em sociedades pequenas, como as tribais, esses sistemas são compartilhados, podemos em certo sentido designá-los sistemas solidários de vida e religião. Em sociedades mais complexas, como a neoliberal, que o mundo vivência, tende a ocorrer uma diferenciação de classes, de tal sorte que grupos dominantes controlam o acesso às formas mais elaboradas do conhecimento organizando formas de vida para os dominados vivenciarem, o que em termos conceituais podemos denominar vida alienada ou oprimida. Isso não significa, contudo, que os indivíduos dominados pela alienação não constru- am seus próprios sistemas religiosos de contestação ao paradigma oficial. Como exem- plo, especialmente na América Latina, tivemos, nas décadas de 1960-1990, a Teologia da Libertação, que se caracterizava pela valorização da ação do divino na história, como fonte de libertação social, e pela valorização da práxis social libertadora, como expressão de fé em um deus libertador. A Teologia da Libertação está inserida nesta última fase do pensamento ocidental: a fase da valorização da história, da cultura e da diversidade de formas de manifestação do encontro do ser humano com o transcendente. É uma teolo- gia propriamente cristã; por isso utiliza os livros sagrados contextualizados com estudos exegéticos e regras da hermenêutica, o que é necessário nos seus discursos. A expressão “teologia da libertação” já mostra o sentido norteador deste logos teológico. Mostra-nos que a libertação é o horizonte regulador do discurso acerca do transcendente e, ao mes- mo tempo, que o deus do discurso é fonte de libertação. Manifesta-se concretamente nos diversos momentos do processo histórico cultural de um povo. Consequentemente, ela, se torna força geradora de ações que viabilizam uma práxis libertadora, segundo as ne- cessidades advindas das diversas circunstâncias sob as quais um povo está submetido. “A teologia da libertação é um movimento teológico que quer mostrar aos cristãos que a fé deve ser vivida numa práxis libertadora e que ela pode contribuir para tornar esta práxis mais autenticamente libertadora” (Mondin, 1980, p. 25). Neste sentido, o cristão é impe- lido a viver a práxis libertadora nas diversas épocas da história. Teologia que incorporei em minha prática de militante das CEBs, pastorais e movimentos eclesiais católicos pro- gressistas. Na minha docência em sala com crianças, adolescentes, adultos e idosos, nas 1 Aluno da especialização em Ciências da Religião da Universidade Regional de Blumenau. Endereço do autor: Rua Antonio da Veiga, 140, Victor Konder, CEP 89012-900, Blumenau-SC. E-mail: [email protected].

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  • 35Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano V, n. 25

    Movimentos religiosos e ideolgicos:

    alienao e conscincia humanaLuiz Joo Firmo1

    IntroduoA questo da religio no presente trabalho cientifico se pe no terreno da sociedade e

    da cultura. No se trata, aqui, de indagar sobre a existncia ou no de Deus e sua relao com a religio. Esse, a meu ver, um problema para os telogos e no para cientistas das religies. O que me interessa tentar compreender melhor a maneira de os seres humanos organizarem sua experincia religiosa a partir do momento em que acreditam na existn-cia da divindade, ou seja, a partir de suas crenas, e qual a consequncia disso para suas vidas. Ao que parece, neste incio do sculo XXI as pessoas podem optar pela religio ou crena de sua preferncia, para muitos o motivo o fato de vivermos em uma sociedade onde vrias alternativas se apresentam no campo da f. As crenas, bem como as religi-es, somente podem existir atravs de indivduos que as incorporem, mas importante destacar que elas somente fazem sentido quando organizadas em sistemas que caracteri-zam a forma de vida dos povos. Em sociedades pequenas, como as tribais, esses sistemas so compartilhados, podemos em certo sentido design-los sistemas solidrios de vida e religio. Em sociedades mais complexas, como a neoliberal, que o mundo vivncia, tende a ocorrer uma diferenciao de classes, de tal sorte que grupos dominantes controlam o acesso s formas mais elaboradas do conhecimento organizando formas de vida para os dominados vivenciarem, o que em termos conceituais podemos denominar vida alienada ou oprimida.

    Isso no significa, contudo, que os indivduos dominados pela alienao no constru-am seus prprios sistemas religiosos de contestao ao paradigma oficial. Como exem-plo, especialmente na Amrica Latina, tivemos, nas dcadas de 1960-1990, a Teologia da Libertao, que se caracterizava pela valorizao da ao do divino na histria, como fonte de libertao social, e pela valorizao da prxis social libertadora, como expresso de f em um deus libertador. A Teologia da Libertao est inserida nesta ltima fase do pensamento ocidental: a fase da valorizao da histria, da cultura e da diversidade de formas de manifestao do encontro do ser humano com o transcendente. uma teolo-gia propriamente crist; por isso utiliza os livros sagrados contextualizados com estudos exegticos e regras da hermenutica, o que necessrio nos seus discursos. A expresso teologia da libertao j mostra o sentido norteador deste logos teolgico. Mostra-nos que a libertao o horizonte regulador do discurso acerca do transcendente e, ao mes-mo tempo, que o deus do discurso fonte de libertao. Manifesta-se concretamente nos diversos momentos do processo histrico cultural de um povo. Consequentemente, ela, se torna fora geradora de aes que viabilizam uma prxis libertadora, segundo as ne-cessidades advindas das diversas circunstncias sob as quais um povo est submetido. A teologia da libertao um movimento teolgico que quer mostrar aos cristos que a f deve ser vivida numa prxis libertadora e que ela pode contribuir para tornar esta prxis mais autenticamente libertadora (Mondin, 1980, p. 25). Neste sentido, o cristo impe-lido a viver a prxis libertadora nas diversas pocas da histria. Teologia que incorporei em minha prtica de militante das CEBs, pastorais e movimentos eclesiais catlicos pro-gressistas. Na minha docncia em sala com crianas, adolescentes, adultos e idosos, nas

    1 Aluno da especializao em Cincias da Religio da Universidade Regional de Blumenau. Endereo do autor: Rua Antonio da Veiga, 140, Victor Konder, CEP 89012-900, Blumenau-SC. E-mail: [email protected].

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    disciplinas que leciono. Nas palestras e seminrios que eu coordenei, na minha atuao comunitria em Associaes de Moradores e na minha militncia poltica em sindicatos. Essa leitura do mundo religioso que se foi construindo em meu ser, tendo como base um olhar mais preferencial pela Teologia da Libertao, possibilitou meu entendimento de que, ao colocar o problema das religies em termos de crena e alienao no terreno cultural, isso implica recolh-lo como um processo social de construo de f motivado pela ao de grupos dominantes e de interesses financeiros. Neste sentido, o interesse pela presente pesquisa partiu do objetivo principal, descrever como se apresenta o movimento alienador de conscincia coletiva intitulado Pentecostal neste incio do sculo XXI e qual seu alcance geogrfico nos municpios de Blumenau e Pomerode, no Vale do Itaja, estado de Santa Catarina.

    Ao mesmo tempo que fiis de determinadas crenas buscam o caminho da solida-riedade, outros acreditam que a fora da natureza usada como um castigo divino para as pessoas que no seguem o caminho traado por Deus. Promovem, neste sentido, um Deus que castiga e pune bons e maus. Essa representao de Deus nada mais que uma forma ideolgica religiosa alienada da realidade construda pelo prprio ser humano, que muitas vezes no respeita o limite da natureza e acaba destruindo e agredindo o meio em que vive. Tal alienao religiosa acaba construindo pessoas submissas e passivas, tendo como base o senso comum e, muitas vezes, crenas infundadas nos mistrios alm mundo imanente. Os fenmenos religiosos, definitivamente, deixaram de ser somente contedo, propriedade desta ou daquela denominao religiosa, desta ou daquela crena, para se constituir, assim, como algo de fato das humanidades, acontecimentos relacionados com a sociologia religiosa e cientfica. neste sentido que queremos que os fatos e fenmenos religiosos sejam lanados como desafios a serem discutidos, refletidos e at constitudos, como novos paradigmas a serem includos nos pressupostos da disciplina do Ensino Reli-gioso. A religio faz parte das sociedades e estas mesmas sociedades so plurais e multir-religiosas, no mais monoculturais. Sim os fatos e os fenmenos religiosos podem dividir e criar tenses na organizao social de um grupo ou comunidade religiosa. neste pen-samento que quero propor na e possibilitar a minha pesquisa. Falar sobre os movimentos religiosos ideolgicos que alienam e confundem a conscincia dos humildes, ou pouco esclarecidos no conhecimento religioso, para no dizer ignorncia religiosa. Penso que o tema pode contribuir significativamente para que a constituio da rea de conhecimento denominada conhecimento religioso se estabelea como nucleadora para as bases da dis-ciplina de Ensino Religioso, que em meu entendimento deve estar nas escolas pblicas desde as sries iniciais, finais do Ensino Fundamental e Ensino Mdio, e que deveria ser incorporado como contedo em todos os cursos da educao superior. Como meio de saber fazer, de ensinar a homens, mulheres, jovens e crianas, aos povos negros, pobres e indgenas, e fazer a ligao entre os mundos religioso e profano, compreendendo um mundo laico introjetado no mundo religioso sem barreiras, para ser um s mundo e no dois mundos completamente diferentes.

    Fao meus os pensamentos de Jack Lang prefaciando o relatrio do acadmico Debray (2002), preocupado com a educao do mundo: Uma escola autntica e serenamente lai-ca deve proporcionar a todos os alunos acesso compreenso do mundo [...] no respeito pela laicidade [...] sem privilegiar, evidentemente, esta ou aquela opo espiritual. De-bray, fazendo a radiografia da situao da educao no seu pas, a Frana, afirmava, nas primeiras pginas do seu relatrio, entregue ao ministro da Educao francs Jack Lang:

    o desvirtuamento, o empobrecimento do quotidiano circundante, a partir do momento em que os dias feriados, as frias da Pscoa e o ano sabtico no passam de um acaso do calendrio. a angstia de um desmembramento comunitrio das solidariedades cvicas, o que contribui bastante para a nossa igno-rncia do passado e das crenas do outro, a transbordar de esteretipos e preconceitos. Ora, as palavras destes dois prestigiados intelectuais franceses aplicam-se, na ntegra, ao caso portugus grifo meu e

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    ao Brasil e Amrica Latina. O desconhecimento atual sobre o mundo das religies alarmante e, aci-ma de tudo, perigoso. Num recente projeto levado a cabo pela rea de Cincia das Religies na Univer-sidade Lusfona, vimos como apenas 21% dos inquiridos sabiam que o Isl uma religio monotesta; ou que Meca a sua principal Cidade Santa (20%). S apenas 42% dos inquiridos souberam identificar o feriado da Pscoa. Neste momento h a noo, generalizada, de que o conhecimento sobre o universo das religies no apenas um manancial de curiosidades que se podem usar em jogo de salo. No, co-nhecer as religies poder participar no mundo onde, como se verifica diariamente, as religies desem-penham um papel da maior importncia. E isto vlido para religiosos e para no religiosos. O mundo em que todos vivem o mesmo. Assim, de no perder a oportunidade nica que se criou neste final de junho em que vimos um grupo de figuras pblicas, comeando pelo Dr. Mrio Soares, presidente da Comisso da Liberdade Religiosa, afirmar a necessidade de colocar contedos sobre religio no Ensino Secundrio. J vrios pases fizeram esse caminho. Muitos dos nossos parceiros europeus, e mesmo o Brasil, j avanaram na criao de uma disciplina nesta rea. Que a coragem poltica decida a favor de uma arma de conhecimento que nos dar, de certo, muito mais coragem cvica (Debray, 2002, p. 2).

    Parafraseando Paulo Freire, importante que nossos(as) alunos(as) saibam aprender a ler o mundo onde vivem, fazer a relao do que veem e ouvem, para intromet-lo na sua vivncia com seus pares cotidianamente. Saber transformar os milhes de informaes que recebem de todos os lados, de todos os meios de comunicao, que veem e ouvem a cada segundo, em conhecimento cientfico. Como fazem os cientistas e os tericos do saber em suas proposies cientficas. Penso que precisamos ler o mundo nas entrelinhas para compreend-lo. Mesmo na rea do conhecimento religioso.

    Assim, a disciplina Ensino Religioso na educao bsica, na escola pblica, no deve estar a para formar cidados mais conscientes, tampouco mais responsveis. Isto a edu-cao de qualidade faz com muita competncia (se no faz outra conversa). Este discur-so nos leva a acreditar que quem no tem religio um cidado de segunda classe. Isto preconceito, discriminao com o ser humano, que tem dentro de si, entre outros genes, o religioso no mapa do Projeto Genoma Humano, segundo a neurocincia.

    Tratar do Sagrado, daquilo que importante para as pessoas, que no vivem sem ele, na sala de aula, para mim, significa enfrentar as grandes questes humanitrias, religiosas ou profanas que afetam as maneiras como homens, mulheres, jovens e crianas, povos negros, pobres e indgenas constroem nesta nossa sociedade suas razes de viver, como eficientes e eficazes para viverem como vivem. Porque vivem para construir sua trajetria de vida, como protagonistas, autores na construo de sua prpria histria.

    Estratgia de alienaoCom a instalao do Frum Permanente do Ensino Religioso em Florianpolis, em

    1995, iniciou-se um processo de nova abordagem da disciplina Ensino Religioso a partir da concepo de relegere, que significa reler o fato, o fenmeno religioso no contexto da realidade sociocultural. A nova redao do artigo 33 da LDBN n. 9.394/96 e da Lei 9.475/97 expressa outra realidade. Neste perodo, o Ensino Religioso entendido como rea do conhecimento da Base Nacional Comum. Conforme o Parecer 04/98 e a Resolu-o 02/98 da Cmara de Educao Bsica do Conselho Nacional de Educao, tem como objeto de estudo o fato, o fenmeno religioso, e o conhecimento veiculado o entendi-mento dos fundamentos desses fatos, fenmenos, que o educando constata a partir do convvio social do seu grupo. A concepo da disciplina Ensino Religioso, na viso do relegere, responde s exigncias da educao para o sculo XXI, na parte que lhe cabe com os Parmetros Curriculares Nacionais para o mesmo.

    Parmetros esses de certa forma gestados, construdos a partir de consultas aos profes-sores de quase todo o pas, a especialistas e instituies de ensino, ao prprio Ministrio de Educao Cultura (MEC), ao Conselho Nacional de Educao (CNE) e a muitos estu-diosos da rea. uma tentativa de construo coletiva e representa o pensamento de uma grande parcela da sociedade civil e religiosa do Brasil, mas no de todas as partes. Por

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    exemplo: na Universidade Regional de Blumenau (FURB) h um grupo de pesquisa que em sua linha de pesquisa aborda a temtica Religio, o Educogitans, coordenado pelo professor Ernesto Jacob Klein. O pesquisador citado defende que o objeto de estudo do Ensino Religioso seria o Sagrado, algo que no pode faltar na vida das pessoas. Muitos debates e reflexes devero ser feitos a respeito do assunto, mas no nosso objeto de pesquisa neste trabalho. O estado de Santa Catarina tambm contribuiu com uma legisla-o especfica, com o Decreto n. 3.882/05, regulamentando a contratao de professores e os contedos mnimos. A Proposta Curricular do nosso estado de Santa Catarina:

    Afirma que o Ensino Religioso como disciplina integrante do currculo escolar, tem como compromisso o estudo do desejo de transcendncia dos educandos, das suas comunidades e da sua historia. [...] O fenmeno religioso nesta perspectiva, uma forma histrica que assume a capacidade de abertura ao Transcendente, inscrita na experincia devida (Santa Catarina, Proposta Curricular, 1988, p. 234).

    O mesmo fez o municpio de Pomerode que sistematizou, normalizou as matriculas e os contedos com o parecer do Conselho Municipal de Educao Resoluo n. 002/07. A normatizao foi feita nos moldes do parecer estadual e nacional em conformidade com a nova redao do artigo 33 da Lei n. 9.475/97 em conformidade com a LDBNER 9.394/96. Em Pomerode, a disciplina Ensino Religioso est presente desde os anos ini-ciais at o nono ano, j h muitos anos, com todos os educadores com formao acad-mica adequada, formados em Cincias da Religio e ps-graduados na rea conforme a LDBN 9.394/96.

    Podemos dizer que religio um forma de produo simblico-cultural, caracterizada por sua autorreferncia a uma realidade transcendental. (Paleari, 1990, p. 57). Dessa for-ma a religio mexe com o transcendente, com o absoluto, e mexe a relao por mediaes humanas ou materiais, porm revestidas de um poder especial, por exemplo: bispos, pas-tores, presbteros, iluminados, ancies, gurus, locais especficos como terreiros e templos diversos. Aqui temos duas questes a ver.

    Primeiro, a mediao pode ocorrer a partir de interesses especiais. Segundo, o abso-luto, por ser absoluto, torna-se uma fora inquestionvel enquanto absoluto e, por outro lado, por ser mistrio, pode ser mascarado das mais diversas formas, para os mais diver-sos fins.

    Assim, temos no mundo diversas tradies religiosas e, no Brasil, de uns anos para c, vem proliferando um nmero muito grande de denominaes religiosas, ou seja, Igre-jas que so definidas como grupos dissidentes, fechados em si mesmos, que se colocam radicalmente contra a sociedade e refutam agressivamente a maneira de ser do mundo (Paleari, 1990, p. 58). Em Santa Catarina, nosso estado, e na cidade de Pomerode no diferente do resto do pas. Segue um breve histrico da cidade, para sabermos de onde estamos falando e conhecer um pouco da cultura deste povo to ordeiro e trabalhador.

    Assim como diversas cidades brasileiras, Pomerode surgiu com a imigrao alem no Brasil. Em 1861, com a chegada dos primeiros imigrantes. A criao da colnia, es-trategicamente entre Blumenau e Joinville, foi incentivada pelo grupo do Dr. Otto Her-mann Blumenau, para que fortalecesse o comrcio entre ambas. Os lotes de terra foram divididos entre os imigrantes, que passaram a se dedicar s produes de arroz, batata, fumo, mandioca, feijo e criao de animais. Com a chegada do sculo XX, peque-nas indstrias se instalaram na regio, com destaque para as de porcelana. Grande parte dos imigrantes alemes veio da regio histrica da Pomernia, situada no Sacro Imprio Romano-Germnico, hoje norte da Alemanha e Polnia, e de onde se origina o nome do municpio, Pomerode. Os pomeranos so descendentes de uma mistura de povos germ-nicos e eslavos e, desde o sculo XII, quando passaram a fazer parte do Sacro Imprio Romano-Germnico, sofreram um processo de germanizao de seu idioma e costumes.

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    Quando chegaram ao Brasil, os pomeranos no se identificavam como sendo alemes, pois possuam caractersticas culturais distintas, porm, com o passar do tempo, acaba-ram se incluindo entre os alemes. Dentre os diversos grupos de alemes que imigraram para o Brasil, os pomeranos formaram uma minoria, por isso, quando chegavam ao Bra-sil, mesclavam-se com outros grupos de alemes, o que contribua para perder sua heran-a cultural. Apenas em trs localidades brasileiras os pomeranos formaram a maioria dos imigrantes, contribuindo, assim, para a manuteno dos seus costumes: em Santa Maria de Jetib, no estado do Esprito Santo; So Loureno do Sul, Morro Redondo e Arroio do Padre, no Rio Grande do Sul; e em Pomerode, Santa Catarina.

    Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a maior parte da Pomernia foi anexada Polnia e uma pequena parte ficou na Alemanha, chamada de Mecklemburgo-Pomernia Ocidental. Muitos pomeranos se refugiaram na Alemanha Oriental ou imigraram para outros pases, com isso acabaram por perder grande parte de seus costumes. De fato, o Brasil tem mais falantes da lngua pomerana do que a prpria Alemanha. No Brasil, a Segunda Guerra Mundial tambm foi decisiva para a nacionalizao dos imigrantes alemes: o presidente Getlio Vargas, aps declarar guerra Alemanha, proibiu o uso da lngua alem no pas, alm de proibir a construo de casas sob arquitetura germnica ou a manifestao da cultura alem. Isso afetou Pomerode e todas as colnias alems do Brasil, que passaram a se abrasileirar. Ao todo, 300 mil brasileiros so descendentes de alemes pomeranos.

    A cidade de Pomerode, nos ltimos tempos (fim do sculo XX e incio do sculo XXI), apresenta um considervel aumento de crenas e religies de vertente fundamentalista, ou seja, crem na inspirao literal dos textos sagrados, excluindo toda reflexo e estudo cientfico crtico do texto, sem ao menos uma exegese histrica que adequasse as inter-pretaes para os tempos de hoje.

    No surgimento dessas denominaes religiosas aparecem os movimentos que se auto-denominam filosficos, ou filosofias de vida, como esta em anexo, porm contm quase todos os elementos bsicos de uma cosmoviso, sendo a mais numerosa em Pomerode a Igreja Assemblia de Deus, alm de muitas outras. Para tentar elucidar as origens da pro-liferao das denominaes religiosas, ou seja, tradies religiosas, recorremos ao Rela-trio Rockfeller, de agosto de 1969, elaborado por um grupo comandado por Nelson Ro-ckfeller, por solicitao do ento presidente Nixon, que o utilizaria na formulao do seu plano de governo para a Amrica Latina e o Caribe. A sntese desse relatrio mostra que a Igreja Catlica Apostlica Romana na Amrica Latina e no Caribe tinha aes e atitudes progressistas em vista das mudanas estruturais na sociedade. O tipo da igreja; ento, tornar-se um canal adicional a um nacionalismo intenso e compulsoriamente ao antiame-ricanismo (Lima, 1989, p. 42). Que se nota aqui? A preocupao da Amrica do Norte com a dominao dos pases subdesenvolvidos do chamado Terceiro Mundo nas dcadas de 1960-1980, quando foram executadas, por meio de apoios velados, as negociaes e os golpes militares que impediram a construo de uma ideologia prpria, autnoma nacionalista. A partir do Relatrio Rockfeller aparecem investimentos formidveis no campo evanglico religioso. Vejamos o que nos afirma Dlcio Lima, em seguida: Afirma o relatrio que a direita religiosa chega a manipular recursos superiores aos da prpria Agncia Central de Inteligncia (CIA) em algumas reas, como a Guatemala (1989, p. 47). E no Brasil? O mesmo autor outros dados: S em So Paulo existe um prdio, na rua 24 de Maio, quase inteiramente ocupado por sedes e organizaes americanas que se dedicam a esta ampla ofensiva poltico-missionria. No Brasil esto estabelecidos 59 gru-pos transconfessionais dos Estados Unidos da Amrica do Norte (Lima, 1989, p. 13).

    Catacho Rolim tambm nos diz neste sentido, numa entrevista dada ao Mundo Jovem (agosto 1993, p. 7):

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    preciso destacar as trs Igrejas mais recentes, que so a Igreja da Graa, Deus Amor e a Igreja Universal do Reino de Deus. Elas comearam no Brasil na dcada de 1970, poca em que chegaram para trabalhar a populao brasileira as religies orientais. Nessa poca a religio sai da tutela jurdica e passa a ocupar o espao pblico.

    Se a origem da maior parte dessas denominaes religiosas tem as suas origens nos Estados Unidos da Amrica do Norte e no exterior, na estratgia de implantao de suas razes sabemos que elas se identificam com as classes dominantes de cada pas e que, no Brasil, receberam tratamento especial. Como evidencia Paleari: Durante o perodo de represso militar, aps 1964, muitas facilidades foram dadas para a entrada de missio-nrios. No mesmo perodo a Igreja Catlica Romana teve dificuldades para obter vistos (1990, p. 91).

    Aparecem at aqui dois elementos bsicos para esta pesquisa. Em primeiro lugar, a preocupao dos Estados Unidos da Amrica do Norte com instituies que apontavam planos progressistas, ou seja, com grupos de movimentos libertrios, como os de Paulo Freire, Dom Helder Cmara, Dom Paulo Evaristo Arns e muitos outros annimos, como o caso da Renovao Carismtica Catlica dentro da Igreja Catlica Apostlica Romana. Segundo o grande financiamento das mais diversas denominaes, porm que atuassem a partir dos dogmas do fundamentalismo fanatismo religioso, para aqui tambm entrar. Ocorre a intromisso estadunidense, no perodo do presidente Reagan, para fortalecer os grupos, ou melhor, os movimentos que assumiram conotao fundamentalista, fantica. Os movimentos filosficos de matriz japonesa so identificados por alguns elementos comuns que na prtica se associam para produzir os mesmos efeitos. Que objetivos se escondem por trs de toda esta articulao, para no dizer maracutaia? Vejamos o que diz Prandi: Nenhuma dessas religies se prope transformar o mundo. O pentecostalismo e a cura divina repem a importncia da magia e querem a transformao moral do indivduo isolado no interior da comunidade religiosa onde ele vigia e vigiado (1991, p. 81).

    No se transforma o mundo, mas se mexe na economia como um culto ao deus capital/mercado, revestido de mscara religiosa. Diz-nos (CORTEZ, 1979, p. 115): Pergunto-me se nas empresas de cura divina no estamos diante de uma nova fronteira promissora que se abre para a economia, o comrcio dos bens espirituais.

    Os donos do capital necessitam de fronteiras liberadas para exercer seu poder sem barreiras e obstculos. Nada melhor, ento, do que uma religio para romper todas as amarras, mascarando-se com o falso intuito de levar o Evangelho e a salvao. Assim nos fala (ROLIM, 1993, p. 6): O pentecostalismo da Igreja Universal do Reino de Deus, Deus Amor, Igreja da Graa e outras tipicamente um movimento poltico conservador, aliado poltica econmica neoliberal.

    Pelos dados colhidos, percebe-se que o objetivo deste montante de financiamento e da investida no sucesso desta proliferao desenfreada do fundamentalismo religioso no especificamente religioso e sim econmico. Se for econmico, interesse do capital, e o capital internacional sempre se expandiu em cima da dominao dos pases subdesen-volvidos, com nfase especial para a Amrica Latina e o Caribe. E o Brasil, por ser uma potncia econmica e um grande produtor de matrias-primas.

    O fundamentalismo fanatismo religioso, agindo como empresa muito bem equipada, planejada e organizada, com suas matrizes no exterior superabastadas, com dinheiro e material humano disponvel, comprado pelo dinheiro sujo, oferece os bens sagrados, que seriam a soluo para todos os problemas, fazendo com que as pessoas deixem de buscar solues numa possvel prtica histrica libertadora nacionalista.

    Com tantas denominaes, divididos, subjugados por elementos que articulam com as circunstncias. Nos momentos histricos de um espao e tempo de indefinies, de ques-tionamentos dos paradigmas tradicionais, nosso miservel povo se torna cada vez mais

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    vtima das foras de dominao do capital, que, por veredas muitas, fortalecem e aper-feioam o sistema de explorao absoluta sobre os seres humanos indefesos, subjugados por opressores cada vez mais fortes, especializados em alienar e confundir cada vez mais as conscincias dos menos favorecidos, anestesiando o poder de reflexo, agindo sobre a dignidade de cada ser humano, que tem no seu ntimo algo como que sagrado, que no tem preo. O preo o valor da vida. Muitos o pagaram, deram a vida pela liberdade do povo, como o libertador da Amrica Latina, Simon Bolvar, e muitos outros annimos. O filsofo Kant (1997, p. 30), aos 57 anos, ao publicar a Critica da razo pura, em maio de 1781, j admoestava neste sentido:

    S a crtica pode cortar pela raiz o materialismo, o fatalismo, o atesmo, a incredulidade dos espri-tos fortes, o fanatismo e a superstio, que se podem tornar nocivos a todos e, por ltimo, tambm o idealismo e o cepticismo, que so sobretudo perigosos para as escolas e dificilmente se propagam no pblico.

    Manipulao da conscincia humanaCada movimento ou denominao tem sua caracterstica prpria, seu modo de atuao,

    sua matriz especfica, seu jeito de pregar ou de coordenar seus crentes, porm o que cha-ma a ateno que ningum orienta, em absoluto, uma palavra, uma ideia critica sobre a realidade social que se est vivendo. Nessas coincidncias vai aparecendo o real interesse de toda articulao intencional. Vejamos diversos elementos-chave usados pelas diversas denominaes para alienar e confundir intencionalmente: valorizao do indivduo, usa-se o emocional para atrair fiis, o espao profundamente espiritualista, os textos sagra-dos servem como uma base de alienao, as curas so usadas frequentemente, a figura do Diabo muito presente nas reunies e cultos, o uso do Livro do Apocalipse enquanto ferramenta de terror.

    Podemos perceber e constatar que estamos conseguindo atingir alguns objetivos das estratgias propostas planejadas. Diferentemente da dcada de 1980, quando facilmente se chamava as pessoas para as preocupaes e participaes sociais, mesmo a partir do campo religioso, era fcil fazer a relao da mensagem bblico-teolgica com a realidade desvelada, facilmente se mobilizava um grande nmero de pessoas para reivindicaes de ordem econmica, o que demonstrava um interesse acentuado por tais questes e pela organizao popular.

    Olhando, experimentalmente, a partir de Pomerode, cidade de muitas fbricas txteis, de malharias, o que rene grande quantidade de homens, mulheres, jovens e crianas, hoje, com certa facilidade? So os movimentos espirituais religiosos, at mesmo dentro da Igreja Catlica Apostlica Romana, e as Igrejas do protestantismo histricas.

    Observando este fenmeno apenas por um momento, pode-se imaginar que algo natural, inerente ao processo histrico. No entanto, quem acompanhou cotidianamente, e agora olhando, pesquisando e analisando, observa com facilidade a razo de to grande investimento dos senhores do capital internacional em conluio com a classe dominante opressora, alienante, aqui do nosso pas. A continuidade e o fortalecimento do domnio sobre as massas dos pases pobres, por que no dizer miserveis?, de uma forma nova e mais sutil do que o financiamento de golpes militares ou inovaes abertas e assassinatos de lderes polticos da Amrica Latina (em 120 dias desapareceram quatro grandes lderes polticos nacionalistas, como o ex-presidente Jango Goulart).

    A manipulao atravs do religioso a forma mais acabada de domnio porque mexe com o absoluto ou com o falso absoluto, mas para a maioria do povo formado numa re-ligiosidade de subservincia, que caracterizou por muito e muitos anos o papel da Igreja Catlica Apostlica Romana, absolutamente majoritria no mundo. O divino, Deus fala,

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    no se questiona e assim os prprios deuses so multiplicados ou criados para absolutizar o domnio alienante sobre as conscincias dos menos favorecidos e humildes. Vejamos o resultado disso em diversos campos, em diversos setores, e seus aspectos e caracters-ticas.

    No espao da educaoDificilmente se encontra hoje uma sala de aula, desde a educao bsica at a educao

    superior, esta com menos incidncia, que no tenha, entres seus alunos, membros de v-rias Igrejas ou mesmo religies ou filosofias de vida. Basta ter algum evanglico para se perceber como em qualquer discusso sobre qualquer assunto ele j tem respostas pron-tas, definitivas, absolutas, opressoras e alienantes. Um professor da Escola Bsica Muni-cipal Hermann Guenther, de Pomerode, Santa Catarina, convidou um sacerdote da Igreja Catlica Apostlica Romana para proferir uma palestra sobre religio para os jovens e crianas porque tem alguns(mas) alunos(as) evanglicos(as) que so bastante inquietos e que trazem muitas perguntas prontas e at perguntam quantos crentes h na sala. Alm de outras perguntas prontas e com respostas decoradas na sua denominao religiosa. Tudo gira em torno das mesmas questes. Por que o presbtero no casa, se a Bblia diz que ele deve ter uma s mulher? Por que na Igreja Catlica Apostlica Romana se adora imagens, se a Bblia probe? Nos versculos X e Y do salmo tal est a resposta, pronta para tudo. S no respondem nem perguntam porque moram na rua de terra, sem asfalto ou calamen-to, com ruas esburacadas e cheias de lama, poas de gua sujas de barro, sem energia, e, quando h energia, no h lmpadas ou h lmpadas queimadas nos postes. Tudo muito bvio, muito tranquilo, no fosse trgico na medida em que diariamente mais clientes so cooptados e embarcam ingenuamente nesta estratgia de opresso e alienao. Aqui em nossa regio, com certeza, se comprova esta realidade facilmente, conversando com qualquer educador formado em Cincias da Religio ou alguma rea do conhecimento similar em alguma sala de aula.

    H, certamente, neste como nos outros espaos, uma diferena perceptvel, comparan-do a realidade de agora com a mesma de uns dez anos atrs. No mudou muita coisa. Com mais um perodo assim, o campo educacional estar muito mais fechado nas suas possi-bilidades dialticas, de confronto de ideias abertas, de direcionamento de contedo para causas sociais emergentes, porque em vrios lugares mais pessoas estaro bem prepara-das, com respostas prontas e acabadas e com um convencimento interior muito definido para impedir que se avance ou se aprofunde qualquer discusso reflexiva e progressista li-bertadora. D para perceber, na rea educacional, o ponto de chegada desta grande aliana dominadora, opressiva e alienante, como produz um produto refinado para garantir seus objetivos. Nesse sentido, enquadra-se na perspectiva da histria da educao, cujo objeto de discusso est focalizado nas intervenes norte-americanas no interior das estruturas do ensino superior brasileiro, mais precisamente aps o golpe militar de 1964 at 1971, ltimo ano de vigncia dos acordos MEC/USAID. Os chamados acordos MEC/USAID foram acordos firmados entre o governo brasileiro e o governo norte-americano atravs da USAID (Agncia Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional), aparen-temente voltados para a cooperao entre os dois pases, visando a modernizao do sistema educacional do Brasil.

    Segundo Marinho (2001), as intervenes norte-americanas no ensino superior bra-sileiro remontam ao incio do sculo XX, especialmente com a Fundao Rockefeller e suas relaes filantrpicas com a Universidade de So Paulo (USP) entre as dcadas de 1930 e 1950. Houve nesse perodo uma redefinio da hegemonia econmica mundial aps a Segunda Guerra Mundial, com a ascenso dos Estados Unidos da Amrica do Norte e a decadncia da Europa. O mesmo ocorre no interior da educao brasileira, a he-

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    gemonia cultural francesa se mantm nas humanidades, mas d lugar norte-americana nas exatas e biolgicas. Nesse sentido, os ideais empresariais do american way of life, em sua fase expansionista mais voraz, vo criando caminhos mais eficientes para a inter-veno norte-americana na educao dos pases perifricos. Acreditamos na importncia de relembrar as teses do assessor da USAID, Rudolph Atcon, convidado da Diretoria de Ensino Superior do MEC para ser um dos principais idealizadores da reformulao da universidade brasileira e do CRUB (Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras). Atcon defendia que a universidade deveria se libertar de todas as malhas do Estado, ter to-tal autonomia para se desenvolver enquanto empresa privada. Sua administrao deveria acompanhar o modelo industrial de gesto. Nesse aspecto, as reformas educacionais s podem ser entendidas atravs da articulao dialtica entre a mundializao do capital e a luta pela hegemonia poltica (luta de classes). Assim sendo, a anlise dos contedos dos programas e propostas do assistente Rudolph Atcon (o primeiro secretrio executivo do CRUB USAID) parte importante para estabelecer as relaes devidas entre os interesses das classes dominantes brasileiras e os interesses do capital estadunidense.

    O uso poltico e econmico da fA partir de 1969, o governo americano de Richard Nixon, preocupado com o trabalho

    de transformao social da Igreja Catlica, viu no Catolicismo uma ameaa ao capitalis-mo liberal, e procurou, com apoio de recursos e pessoas, difundir um pentecostalismo que se contentasse mais com a salvao da alma e deixasse o resto a cargo do governo.

    O regime militar brasileiro (1964-1984) restringiu a entrada de missionrios catlicos estrangeiros e facilitou a de pastores evanglicos americanos. Desse modo, as comu-nidades eclesiais de base das periferias e dos interiores pobres se defrontaram com um concorrente que oferecia uma salvao mais rpida e superior: o pastor evanglico, com as Igrejas eletrnicas.

    O mesmo desafio encontram as Igrejas protestantes histricas (luterana, presbiteriana, calvinista, anglicana), pois h uma preferncia pelas Igrejas que oferecem conforto espi-ritual e humano e possuem um mnimo de organizao: basta a Bblia ou alguns textos dela. Mas muitos crentes, motivados pelo vizinho militante e catlico, tambm esto se empenhando nos movimentos populares. No dia da posse do governador do Rio de Ja-neiro Anthony Garotinho, presbiteriano, no houve uma Missa solene com o Cardeal, mas um animado culto evanglico na praa. H pouco tempo ningum imaginaria isso no Brasil catlico.

    A questo econmica no se altera porque este o objetivo. Manter o sistema de explo-rao inalterado e fortalecido. Acrescenta-se aqui a questo das empresas de cura divina. Parece-me que a empresa de cura divina apenas uma dentre as vrias tendncias da economia para comercializar bens espirituais (Monteiro, 1979, p. 116). Vai aparecendo aqui o carter econmico desses empreendimentos, que aos poucos acabam se identifi-cando com qualquer empresa que comercializa a sade do povo. E Monteiro ainda diz: Pergunto-me: de que maneira esses fenmenos se distinguem da respeitvel indstria da sade, que rene indstrias farmacuticas, mdicos e hospitais? (p. 113). Aos pou-cos estas denominaes religiosas vo participando do sistema econmico, justificando o dinheiro como obra de Deus. Essas denominaes pentecostais vm tendo proliferao vertiginosa por todo o pas e Amrica Latina e Caribe, criando uma nova relao com o dinheiro que passa a ser visto como instrumento para a obra de Deus (Prandi, 1991, p. 88).

    No momento em que so os valores fechados da religiosidade que vo legitimando os valores sociais, quando no campo religioso as pessoas no so levadas a pedir conta de

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    suas ofertas, de suas doaes, tambm no campo econmico os seguidores de todos esses movimentos so passivos. Eles no conseguem ver no seu salrio, na sua remunerao, no seu desgaste de produo, na insalubridade, nenhum tipo de explorao. Essa passividade de submisso na questo do trabalho percebida claramente em todos esses crentes.

    Em muitas famlias de baixa renda percebe-se o caos criado a partir do momento em que um membro passa para outra denominao religiosa. Normalmente, o radicalismo do convertido contesta quase todos os valores religiosos que por muitos anos foram refe-rncia de unidade naquela casa. Principalmente para pessoas de idade, isto se torna uma agresso ao que existe de mais sagrado na vida. Agredindo o que mais sagrado, todo o resto se despedaa ou se torna facilmente desmontvel, porque se perde a base de refern-cia dos valores religiosos que so absolutos. Ento, a ruptura que se d a partir da prpria famlia vai criando tenses, insegurana e medo.

    Visitando uma famlia no distrito do Garcia, dentre os diversos problemas colocados estava o da irm que virou crente. Enfrentava tambm mais alguns problemas, alm do medo da inveja, do mau-olhado, da doena sem uma causa bem definida. Com todos esses problemas, enfraquecido, com medo, com estresse e a irm com dio dele. Assim vem o desespero, o caos dentro de um lar. Cito este exemplo, mas me deparo quase que dia-riamente, diferentemente de uns dez anos para trs, com casos e mais casos relacionados com tal questo. Fico analisando como esta estratgia vai fundo nas bases dos valores e das estruturas sociais. Quebrando as referncias de unidade ali, as pessoas ficam ao sabor das foras que se articulam para a dominao, alienao, e o esplio dessas relaes rom-pidas com o sagrado da mesma.

    Os novos grupos sociais em formaoAs pessoas aqui na nossa regio so atingidas continuamente por um bombardeio de

    visitas, pela abordagem, por panfletos, por convites, por propostas dos mais diversos gru-pos religiosos. uma carga contnua jogada na realidade de homens, mulheres, jovens e crianas que normalmente no tm preparo suficiente para perceber o interesse por trs das visitas. Daqueles livros que so oferecidos para compra. Daquelas palavras atenciosas e benditas, daquele desejo de volta a conversar, de continuar a pregao. uma interfe-rncia direta e disputada na vida de homens, mulheres, jovens e crianas, e, como usado o aspecto religioso como porta de entrada e como o elemento religioso inquestionvel e absoluto, a maioria acolhe tal interferncia sem imaginar suas causas e suas conse-quncias.

    A vo acontecendo rupturas nos valores e homens, mulheres, jovens e crianas aca-bam migrando para novos grupos que no se restringem somente ao religioso, podem situar-se em diversos espaos. Um exemplo: uma pessoa que gosta de futebol. Atravs do esporte ela muitas vezes tem um relacionamento com o grupo que vai alm da prtica do esporte. Mudando de religio, para de jogar futebol porque algumas denominaes religiosas dizem que o esporte do Diabo. Acontece a uma migrao e a participao em um novo grupo. Esse fenmeno, em grande escala, tem consequncias na composio dos grupos sociais, de suas foras e de suas interferncias dentro do processo histrico.

    Na disputa por clientes, agrava-se a situao de conflitos dentro dos grupos sociais e entre os grupos novos. So diversas denominaes religiosas com ideias fundamentalistas que, com ardor missionrio, vo tentando conquistar adeptos proslitos. Para o fanti-co, o que est fora de suas estreitas concepes fruto do mal e deve ser combatido. E na medida em que se fanatizam homens, mulheres, jovens e crianas com concepes o mais divergentes, facilmente o combate se torna mais agressivo. Vejamos esta notcia no Di-rio Catarinense de 1o de julho de 1994: Adeptos das religies afro-brasileiras pedem ao

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    candidato a presidente para que os evanglicos no os tratem como agentes diablicos.Esses conflitos se situam ainda mais em disputas verbais, mas j houve violncia e at

    morte entre os grupos religiosos, e uma anlise mais profunda aponta para o recrudes-cimento de confrontos a partir de grupos religiosos e por motivaes religiosas. J so comuns diversas exaltaes nas casas ou nas ruas, quando passa uma procisso da Igreja Catlica Apostlica Romana com a imagem de algum cone sagrado ou santo(a). Se os conflitos preocupam, preocupa tambm a ateno que se vai dando a essas questes, a essas divergncias que aos poucos se vo tornando questo bsica da discusso, e s pre-ocupaes cotidianas de muita gente. Na conduo desses conflitos ou na conduo da produo desses conflitos percebe-se uma orientao muito definida e com isto se sabe que outros passos so projetados pelas foras que manipulam o fenmeno.

    Finalizando este captulo, percebe-se que hoje existem dois polos muito distintos den-tro da sociedade no que concerne a esta realidade. De um lado, a grande massa sem nenhuma concepo crtica social, muito menos religiosa, que um campo de mistrio e que acaba assimilando qualquer ideia que parta da simbologia religiosa. Mesmo que sejam antagnicas entre si. Por outro lado, os intelectuais apegados razo e cincia e as prprias universidades regionais, que, em geral, parecem ter certa averso questo re-ligiosa. Fica o campo totalmente livre para a atuao dessas empresas que comercializam a misria, a alienao, oprimindo, valendo-se da ignorncia de conhecimento religioso e da desesperana do povo menos favorecido, ofuscando sua conscincia de sagrado.

    Consideraes finaisA tarefa de anlise da realidade atual j bastante complicada e complexa, mais difcil

    ainda tentar uma leitura de mundo do dia seguinte. A economia de expropriao busca sua justificativa no religioso. Essa aliana aproveita a instabilidade em todos os campos para se sedimentar na sociedade, porque tal estabilidade uma caracterstica dos tempos atuais.

    Esse quadro de instabilidade favorece o ingresso de homens, mulheres, jovens e crian-as, da grande massa principalmente, nas instituies fechadas, que, num quadro restrito de verdades forjadas, oferecem um mnimo de segurana e tranquilidade, mesmo que em troca de todas as outras alienaes. Pela dinmica do processo, so percebidos alguns aspectos da nova conjuntura que se vai formando, onde as experincias de organizao popular baseadas na solidariedade e na compreenso crtica da realidade vo sendo em-purradas para o isolamento, sem espaos e meios para se expandir. Aumentam os con-flitos por motivaes religiosas bem coordenados e incentivados por foras eternas, o fanatismo cresce favorecendo a intolerncia e a violncia.. Estamos ingressando, assim, no domnio absoluto do mercado, do capital, que determina a cada povo o que obrigado a produzir e consumir, mesmo no mbito de bens sagrados, porque o deus mercado o patrocinador e o financiador de todas essas denominaes religiosas e de suas sofisticadas alianas alienantes e opressoras.

    Entretanto, no se pode compreender um processo histrico que vise a melhorar a vida de homens, mulheres, jovens e crianas sem um mnimo de qualidade da conscincia do prprio processo e da realidade que envolve cada uma e todas as gentes. Aqui, certamente, cada um pode dar a sua contribuio, por menor que seja. No seu lugar, no seu espao de atuao, ai que todos somos educadores ou deseducadores. A que devemos construir a histria da educao ou nos tornar cmplices da histria da alienao. Precisamos plan-tar novos fundamentos de uma conscincia de cidados, sujeitos de sua prpria historia, como autores e protagonistas, ou ser aliados, talvez pela prpria neutralidade, das foras que abafam qualquer possibilidade de organizao que possibilite uma mudana signifi-

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    cativa em nossa sociedade da solidariedade e do amor verdadeiro ao nosso prximo.

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