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A BARATINHA DO PÃO DE SAL E A CADEIA DA OPRESSÃO

(Peça Infanto-juvenil)

PERSONAGENS

NEGUINHO – narrador e comentador

MANINHA – idem

CURUMIM – garoto de uns cinco anos de idade

LUCEMÍLIA – uma baratinha assanhada, alegre e ingênua

MAMÃE BARATA – mãe de Lucemília

PITONGAS – executivo, cargo de chefia, classe média

MILOCA – mulher de classe média alta, com desejos de ascensão social, manda em Pitongas

EURÍPIDES - contínuo da firma de Pitongas, servil ao extremo

JUVENAL – funcionário burocrático da firma de Pitongas

MARIINHA – dona-de-casa de família pobre, tem medo do marido, mas enfrenta-o às vezes

ZEZÉ – adolescente incompreendido, sem ambiente em casa

NILZA - adolescente, estudante, oprimida por todos, só tem Curumim a quem oprimir

SOLDADOS – à vontade. São crianças que brincam de soldados.

DATILÓGRAFAS – para o escritório de Pitongas, à vontade

GRUPO MUSICAL – um cantor e dançarinos à vontade

OBSERVAÇÃO – Tanto a Cena I quanto a Cena VIII podem ser suprimidas, dependendo da plateia a que se destinam. No caso da supressão da Cena I, há que conservar-se a entrada dos soldados tal como está, porque ali se insinua o futuro opressor que o garoto Curumim pode chegar a ser.

CENA I

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Local: Palco vazio. Cenário ao fundo.

Participantes: Neguinho, Maninha e pelotão de soldados

Início – Entram Neguinho e Maninha

NEGUINHO – (tom de apresentador de espetáculos)

- Boa noite, senhoras e senhores. Finalmente aqui estamos para contar a nossa história ...

MANINHA – (cutucando-o, tom informal)

- Que história, Neguinho? Isso aqui é uma peça. Uma peçazinha.

NEGUINHO – (insistindo no tom de apresentador de espetáculos)

- Pois sim, senhoras e senhores, vamos finalmente apresentar a nossa peçazinha. Trata-se de ... (engasga)

MANINHA – (apontando para Neguinho, rindo)

- Tá vendo? Falei pra você ensaiar direitinho e tomar calmante... (muda o tom) Trata-se de uma peçazinha que conta a história de uma baratinha inocente e de um montão de gente infeliz...

NEGUINHO – (falando baixo e de lado)

- Será que é só isso?

MANINHA (cortando)

- É só isso, não complica, Neguinho.

NEGUINHO – (voltando ao tom de apresentador)

- Pois finalmente estamos aqui para apresentar a super peçazinha A BARATINHA DO PÃO DE SAL E A CADEIA DA OPRESSÃO.

MANINHA – (chegando perto de Neguinho, falando ao pé do ouvido)

- Você não acha melhor explicar isso?

NEGUINHO – (imediatamente)

- Acho. Pode explicar.

MANINHA (desconcertada)

- Eu? É que... Você é melhor pra essas coisas.

NEGUINHO – (passando as mãos em seus ombros)

- Já sei: você não sabe o que o título quer dizer e tá com vergonha de confessar, não é?

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MANINHA -

- Bom, baratinha e pão de sal eu sei o que é, cadeia também, mas opressão...

NEGUINHO – (afastando-se e apontando para ela de longe, olhando para o público)

- Aposto que ela não sabe nem o que é cadeia.

MANINHA

- Claro que sei. É o lugar onde prendem gente.

NEGUINHO - (rindo, como se a tivesse apanhado em flagrante)

- Sabia que você não sabia. Tá certo em parte, mas, como você já estudou, uma palavra tem muitos sentidos, não tem?

MANINHA

- Tem. E cadeia também tem?

NEGUINHO

- Tem. Cadeia, além de ser o lugar onde prendem gente, é também... Bom, vai lá e apanha o dicionário. Até é bom que você aprende uma coisa nova hoje.

MANINHA – (espreguiçando-se)

- Tou com preguiça. Vai você.

NEGUINHO – (tom amigo – empurrando-a de leve)]

- Vamos, vai lá pegar o pai dos burros pra você aprender, vai...

MANINHA – (ofendida, chega perto de Neguinho)

- Que nada, Neguinho. Tá pensando que eu sou burra? É, é?

(faz que vai sair)

NEGUINHO – (indo atrás dela, trazendo-a de volta)

- Que isso, Maninha! Tava só brincando. Você até que é uma das gurias mais inteligentes que eu já vi.

MANINHA – (recompondo-se, fazendo cara alegre)

- Verdade?

NEGUINHO - (fazendo gesto de jura)

- Juro.

(consola-a e volta a olhar o público, querendo continuar a apresentação)

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- Daí, minha gente, você veem a peça e, depois, ficam sabendo o que é cadeia e opressão, tá bom?

MANINHA – (insistindo com Neguinho)

- Fala só o sentido, dá uma ideiazinha pra gente (faz sinal de coisa pequenina com o polegar e o indicador), só uma ideiazinha, vai!

NEGUINHO – (condescendente, voltando a falar para Maninha)

- Tá bom. Como eu ia dizendo, cadeia tem mais de um sentido. Pode ser o lugar onde ficam os chamados "marginais" e "ladrões" etc. Eu digo "chamados", porque aí fora, parecendo gente fina, é capaz de ter mais gente errada que na cadeia. Pois é. Mas cadeia também significa corrente, uma coisa que é ligada a outra. Uma coisa que não se acaba, porque vem uma, vem outra, mais outra... Cadeia é isso também. Uma sequência de coisas, de acontecimentos. Entendeu?

MANINHA

- Entendi. E opressão?

NEGUINHO (agarrando-a com violência, empurrando-a para fora do palco)

- É isso. Vai lá buscar aquele dicionário agora. Vai. Vai.

MANINHA (assustada, tentando se livrar)

- Que isso, Neguinho? Tá ficando maluco? Me solta.

NEGUINHO – (continuando a agarrá-la)

- Só se você for buscar o dicionário. Vai ou não vai?

MANINHA (virando-se para o público)

- Gente, ajuda. Acho que ele ficou doido.

NEGUINHO (soltando-a e rindo)

- Sua boboca. Fiquei doido que nada. Tou só dando uma amostrazinha de opressão.

MANINHA (se recompondo, sentando-se no chão)

- Puxa, que susto. Você tem cada uma!

NEGUINHO (falando ora para ela, ora para o público)

- Opressão, hoje em dia, existe em toda parte. Tá muito misturado com violência. Você tem opressão em casa, na rua, no trabalho, é esse negócio de todo mundo querer mandar em todo mundo. O mais forte aproveita do mais fraco, aí nasce a cadeia da opressão. E ninguém sabe bem onde é que começa, você nunca encontra o princípio. Se fosse fácil encontrar, era fácil acabar. Só cortar o mal pela raiz. E a nossa sociedade é só opressão, menina. Daí o mundo vira

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no que virou, essa loucura, essa guerra. No fim das contas é isso: opressão causa sofrimento e sofrimento causa a guerra.

MANINHA – (levanta-se e dá uma volta pelo palco, pensativa)

- Ah, acho que tou entendendo!... Se não fosse essa tal de opressão, não tinha a guerra entre países nem guerra na casa da gente. E não tinha tanta gente infeliz no mundo, fazendo o que não quer.

NEGUINHO – (rápido, interrompendo)

- Não falei que você é inteligente? (para subitamente) Escuta... (som de vozes fora de cena aumentando – os dois vão procurar as vozes e, na entrada do palco, topam com um grupo de soldados e seu comandante. O comandante é o mesmo que faz o papel de Curumim. Neguinho e Maninha vão para um canto do palco, de onde observam. Soldados entram cantando: "Cabeça de papel", com o Comandante à frente. Param de repente, Comandante se vira)

COMANDANTE

- Sentido! (falando rapidamente) Esquerda, direita, esquerda, direita, esquerda, direita... (soldados viram a cabeça para um lado e para o outro).

SOLDADOS (em coro)

- Comandante Curumim, por que és tão mau assim?

COMANDANTE

- É porque lá em casa todo mundo bate em mim. Agora, sentido! Esquerda, direita, esquerda, direita... (bruscamente) – Todo mundo pra casa, seus vagabundos. (Saem todos marchando, cantando "Cabeça de Papel").

MANINHA – (curiosa)

- Que foi isso?

NEGUINHO – (despreocupado)

- É que estourou mais uma guerrinha por aí. Esses caras todos são meus conhecidos. E as meninas também. Viu que tem até mulher? Já não chegam os homens! Agora até as mulheres estão nessa de guerrear. E eu que conheço essa turma, sei que não tem ninguém querendo ir. Tão indo por obrigação.

MANINHA - (surpresa)

- Verdade?!!

NEGUINHO

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- Verdade pura. Aquilo que a gente tava falando: quanta gente vai na guerra sem querer, quanta gente não mata nem galinha e acaba matando um ser humano que não tem nada a ver com isso, uma pessoa que, na certa, também não queria ir pra guerra.

MANINHA (chegando-se bem perto de Neguinho, tom confidencial)

- O bicho-homem é burro, não é Neguinho?

NEGUINHO – (olhando pro nada, em direção ao público)

- Maninha, do jeito que as coisas vão, chamar o homem de burro é ofender o coitado do animal. (muda de tom, como se voltasse subitamente à realidade) Mas chega de conversa. Ou você acha que esse povo todo aí veio aqui só pra escutar nossa lenga-lenga?

MANINHA - (também voltando à realidade)

- Pode chamar a turma?

NEGUINHO

- Calma, vou anunciar. (voltando ao tom de apresentador de espetáculos)

Senhoras e senhores, neste instante, passamos a apresentar a super peça A BARATINHA DO PÃO DE SAL E A CADEIA DA OPRESSÃO. (Entra música. Neguinho e Maninha saem do palco)

CENA II

Local – Palco vazio, com cenário ao fundo, à escolha do grupo. Participantes da cena: - Mamãe Barata e a filha, a baratinha Lucemília.

Início – Palco vazio. Mamãe Barata grita, fora de cena.

MAMÃE BARATA – (fora de cena – grito musical)

-Lucemíiiiiiiilia! -Lucemíiiiiiiilia!

LUCEMÍLIA – (fora de cena)

- Já vou, mãe. Tou indo. (chega contente em cena, cantarolando e saltitando)

- Sim, mãe. O que?

MAMÃE BARATA – (entrando ao mesmo tempo que Lucemília, com uma sacola de compras na mão)

- É pra você comprar o pão. (tenta passar-lhe a sacola de compras, mas Lucemília está muito agitada)

LUCEMÍLIA (surpresa)

- Ué, eu?

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MAMÃE BARATA – (tentando o tempo todo passar-lhe a sacola de compras)

- É que não tem ninguém em casa. Você vai com cuidado, vai debaixo dos móveis... (nervosa pela agitação da filha) - Fica quieta, menina!

LUCEMÍLIA – (saltitante, inquieta, excitada, virando-se para o público)

- Que bom, tem um tempão que não saio de casa... (voltando-se para o Mamãe Barata) – Dá o dinheiro, vai.

MAMÃE BARATA – (tentando passar-lhe a sacola de compras)

- É pra botar na conta. A gente paga no fim do mês. O padeiro já sabe.

LUCEMÍLIA – (saltitante, inquieta)

- Tou indo. Volto logo.

MAMÃE BARATA – (tom bastante preocupado, ao mesmo tempo em que consegue passar a Lucemília a sacola de compras)

- Mas muito cuidado. Cuidando quando atravessar as salas, quartos, cozinhas... O Bicho-Homem é muito mau. Ele briga, faz guerra e a gente é que acaba pagando o pato. Fica o mais que puder debaixo dos móveis. Cuidado, menina!

LUCEMÍLIA – (aproxima-se da mãe, dá-lhe um beijo)

- Calma, mãe! Tou sabendo... (sai cantarolando e dançando) – Bênção, mãe!

MAMÃE BARATA – (acompanhando-a até a porta)

- Deus te abençoe, filha. (falando alto, para a rua). Traz pão de sal, que o de doce estraga os dentes. (voltando-se para o público) – Essa menina é tão descabeceada! Mas é o jeito, não tem mais ninguém em casa...

CENA III

Local – Casa de Pitongas e Miloca. Classe média alta, certo luxo.

Participantes – Miloca e Pitongas. Pitongas é chefe em repartição pública. Miloca não trabalha fora. Está sempre de mau-humor. Início da cena – Miloca está nervosa, andando de um lado para outro. Senta-se, às vezes, em um cadeira que está do lado de Pitongas. Pitongas lê um jornal e não faz caso do nervosismo da mulher.

MILOCA – (quase explodindo)

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- De uma vez por todas: você vai ou não vai me dar o dinheiro pros tapetes? Não é todo dia que a gente uma chance de comprar tapetes como esses, tão baratos. E se você não sabe, todas as minhas amigas têm tapetes dessa qualidade, por que é que eu não tenho?

PITONGAS – (distraído)

- Tapete, pra que tapete? A casa tem carpete. Pra que tapete? Não sei pra que.

MILOCA – (para o público, tom entre o raivoso e o irônico)

- Não sei pra que... Não sei pra que... (voltando-se para Pitongas) E quem fica humilhada na frente dos outros? Quem é? Diz... Diz... Eu quero esses tapetes. E tem mais: quero mobília nova, quero cortina nova e tem que trocar essa tevê... Não vou passar mais humilhação na minha vida. Ou você resolve tudo isso até o fim da semana ou eu...

PITONGAS – (interessando-se subitamente pelas palavras de Miloca, deixando o jornal e levantando-se) – Ou você...

MILOCA – (choramingando)

- Ou eu volto pra casa da mamãe.

PITONGAS – (tentando consolá-la, andando com ela com as mãos nos seus ombros)

- Miloca, calma. A gente vê isso, calma. Que ideia é essa de ficar chorando? Só que pro fim da semana não dá. Tenho que vender umas apólices, trocar uns dólares aí num bom preço... Tou sem dinheiro vivo.

MILOCA – (interrompendo, subitamente esperançosa, deixando de chorar)

- E o crediário? Compra a prestação?

PITONGAS – (tentando acalmá-la)

- A gente paga os juros, fica no dobro do preço. Calma, isso não se faz de um dia pro outro.

MILOCA – (afastando-se bruscamente, tom decidido)

- Ou até o fim da semana ou nunca. Seja homem, você vai deixar sua mulher ser humilhada pelas mulheres de seus amigos? Sabe o que elas falam pros maridos? Eles também vão apontar a gente aí nas recepções, nas festas. (tom irônico) – "Olha lá, olha lá o casal passa-fome?" E se você não acha que isso te prejudica no emprego, tá muito enganado... Olha, é preciso charme, é preciso aparecer, senão você vai ser sempre um joão-ninguém, nunca vai subir na vida...

PITONGAS – (tentando interrompê-la, em tom implorativo, meio desesperado)

- Mas, Miloca...

MILOCA – (interrompendo-o e afastando-o)

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- Não tem Miloca coisa nenhuma. Não me casei pra ficar sofrendo humilhação. Quero conforto, quero o melhor. E não tem mais conversa: ou até o fim da semana ou nunca mais vai me ver. (vai saindo sem olhar para trás, batendo o pé)

PITONGAS (correndo atrás de Miloca)

- Miloca, queridinha, espera, mulher, espera ... (ao ver que ela sai sem ouvi-lo, mudando para tom raivoso) – Diabo, espera, desgraça, espera... (volta à sua cadeira, tenta retomar a leitura, levanta-se, anda de um lado para outro, descontrolado e fala para o público) – E depois ainda dizem que o homem é quem manda...

CENA IV

Local – Escritório

Participantes – Pitongas, o chefe; Eurípides, contínuo; Juvenal, funcionário auxiliar de Pitongas; uma datilógrafa; outros funcionários à vontade.

Início da cena – Mesa do chefe vazia. Os funcionários estão concentrados em seus trabalhos. Entra Pitongas, todos se levantam. O chefe dá um bom-dia entredentes, mal humorado. Assenta-se, os funcionários também. Pitongas começa imediatamente a trabalhar. Após algum tempo...

PITONGAS (gritando))

- "Sêo" Eurípides... "Sêo" Eurípides... Faça o favor.

EURÍPIDES – (vindo de fora, apressado e servil)

- Sim, senhor Doutor, pois não, pois não, pois não, senhor Doutor...

PITONGAS – (rispidamente)

- Me traga um café. É urgente. E veja se não se esquece que sou diabólico, quer dizer, diabético, hein? Não me bote açúcar como da última vez. Tá querendo matar o seu chefe?

EURÍPIDES – (desconcertado e amedrontado)

- Sim, senhor Doutor, mas é claro, é pra já... Pra já. (sai rápido)

PITONGAS – (olhando para o público)

- Essa raça... Não querem nada com a dureza. Se deixar, vêm aqui só pra apanhar o pagamento. E olha lá; se a gente afrouxar, vão querer receber o pagamento pelo correio... Essa raça! (apanhando o telefone) – Dona Emiliana, Dona Emiliana... (impaciente pela demora da telefonista) – Ai, meu Deus... Já deve estar de papo com o namorado... Sim, Dona Emiliana, me faça uma ligação pra São Paulo, pro Doutor Arnaldo, uma pra Pindamonhangaba, pro gerente daquela fábrica de ontem, uma pro Espírito Santo, você sabe pra quem, uma pra Fortaleza e não se esqueça de confirmar aquela reunião no Rio. E as passagens, Emiliana, já reservou?

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Manda o Eurípides apanhar os bilhetes hoje mesmo. Não quero nem posso perder o avião. E pede pra Telebrasília me acordar amanhã às sete e meia. Não se esqueça, entendeu? Sim, o quê? (muda de tom, surpreso com o que ouve) – Ah, sim seu nome não é Emiliana, é Ana Emília, tá bom, tá bom... Mas é que eu lido com tanta gente... A senhora também é nova na firma, ainda não deu pra guardar o nome... (bate o telefone. Continua a examinar papéis. De repente, grita sem olhar para os funcionários) – Senhor Juvenal, Senhor Juvenal... Depressa, por favor...

JUVENAL – (deixando imediatamente o que estava fazendo)

- Pois não, Seu Pitongas.

PITONGAS - (nervoso)

- Seu, não, Nem seu nem teu. SENHOR Pitongas.

JUVENAL

- Sim, sim, "Seu" Pitongas... Quer dizer: Sim, SENHOR PITONGAS.

PITONGAS - (EXASPERADO)

- SENHOR PITONGAS, vamos aprender de uma vez por todas.

JUVENAL

- Sim sim, SENHOR PITONGAS.

PITONGAS (mostrando um papel a Juvenal, em pé ao lado da mesa)

- Pois bem, SENHOR JUVENAL. Estou vendo aqui o seu último relatório sobre as atividades do Departamento o ano passado e confesso que não estou muito satisfeito com o seu trabalho. Há mais erros do que acertos.

JUVENAL – (esforçando-se por ver os documentos, nervoso, mãos cruzadas às costas)

- Senhor Pitongas, é que eu fiz o serviço de três pessoas e...

PITONGAS - (taxativo)

- Não interessa. O trabalho está horrível. (levantando a voz) – HORRÍVEL. Vai ter que ser refeito todo. (aumentando a voz, destacando as sílabas) TO – DO. Entendeu? TO-DO. (mudando para tom brando, embora ainda ameaçador) – O senhor teria algo a dizer em sua defesa?

JUVENAL – (engasgando, voz sumindo)

- Seu Pi Pi...

PITONGAS (interrompendo-o, levantando-se e intimidando Juvenal)

- Nem Pi Pi e nem seu... Senhor Pitongas. Claro, eu sabia. O senhor não tem nada a dizer em sua defesa. Como é que explica a confusão que me aprontou? Mas lembre-se que o senhor

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tem todo o direito de se defender. Use-o. Afinal isto aqui é um escritório democrático. Ou o senhor tem alguma dúvida sobre isto?

JUVENAL – (apavorado, perdendo a fala)

- Nenhuma, senhor Pitongas, nenhuma.

PITONGAS – (para os outros funcionários)

- Todos ouviram? Ele não tem nenhuma dúvida. Pois bem. (virando-se para Juvenal) O senhor pode ir então. (Juvenal procura escapulir, mas é contido por Pitongas) Uma última informação: o relatório tem de estar pronto amanhã sem falta. Ouviu: SEM FALTA, ou considere-se despedido. Pode ir.

JUVENAL – (recompondo-se do susto e saindo de costas de cena, tropeçando, esbarrando em mesas etc.)

- Sim, senhor, sim, senhor (o restante do pessoal assiste à cena amedrontado, fazendo menção de se proteger toda vez que o chefe levanta a voz e ameaça Juvenal)

PITONGAS – (voltando a assentar-se e olhando para o público)

- Essa raça!

CENA V

Local – Casa pobre com cadeiras e mesas na sala de visitas.

Participantes: Juvenal, o chefe da família; Mariinha, a dona-de-casa; Zezé, filho adolescente; Nilza, filha adolescente; Curumim, garoto de uns 5 anos de idade (o mesmo que aparece no princípio, como Comandante do batalhão que canta o "Cabeça de Papel").

Início da cena – Toca a campainha, Mariinha vem de fora da cena, atravessa a sala.

MARIINHA – (de avental, pano na cabeça, vem enxugando as mãos)

- Calma, calma, homem de Deus! (atravessa o palco e vai abrir a porta)

JUVENAL – (fora de cena)

- Tô aqui há uma hora e ninguém pra atender... Cadê o povo dessa casa? Que ideia é essa de trancar tudo quanto é porta? (entra, joga o paletó)

MARIINHA – (acabando de fechar a porta)

- Não, não tranca não... Com esse tanto de ladrão por aí... (mudando de tom, irônica) – Uma hora esperando... (para o público) – Eita exagero!

JUVENAL – (entrando sem olhá-la, meio bêbado, senta-se, afrouxa a gravata)

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- É só chegar em casa e a gente tem contrariedade...

MARIINHA –

- Contrariedade... Com coisa que você sabe o que é isso... Você já teve, por acaso, marido que chega em casa todo dia mais bêbado que um gambá? Todo o dia a mesma coisa. (para o público)

- Contrariedade...

JUVENAL – (espreguiçando-se)

- Já vai começar, é?

MARIINHA

- Começar? Tô querendo é terminar, isso sim.

JUVENAL

- Não amola.

MARIINHA – (desafiando-o)

- Quem amola sou eu, quem tem contrariedade é você... sempre assim!

JUVENAL – (levanta-se de repente)

- Chega de conversa mole. Afinal, quem é que manda nesta casa? Quem é que sustenta vocês todos? Quem é? Acha que a vida é só se aporrinhar no trabalho, se aporrinhar em casa? A gente nem pode parar num boteco desses pra tomar uma cervejinha pra passar o tempo? Será que eu não posso ter gosto na vida? Ao menos na minha casa? MINHA casa!

MARIINHA – (lacrimosa)

- Gosto na vida... E eu? Como é que eu fico? Você pensa que é só você que trabalha? Acha que eu passo o dia todo de perna pro ar?

JUVENAL - (interrompendo-a bruscamente e avançando ameaçadoramente)

- Sabe duma coisa? Vamos parar com essa discussão. Cadê a comida? Vamos, é pra já. Sem conversa. (vai para fora de cena, puxando-a pelo braço)

MARIINHA – (subitamente amedrontada)

- Calma, homem de Deus. Seu prato tá feito, é só esquentar. (sai arrastada, levada por Juvenal, ele notoriamente bêbado)

Dentro de segundos, entra Zezé. Dá uma espiada na sala, como se tivesse ouvido o final da discussão e vai até a porta da cozinha como se quisesse escutar o resto. Topa com a mãe que vem saindo.

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ZEZÉ - (afastando-se pra dar passagem, assustado por sido apanhado bisbilhotando)

- Oi, mãe!

MARIINHA – (vem buscar algo e nem responde a Zezé. Cara amarrada)

ZEZÉ – (para o público)

- É, tá ruim. Parece que todo mundo ficou surdo de repente nesta casa. (continua andando de um lado para outro, pensativo)

MARIINHA – (voltando da cozinha com uma vassoura na mão)

- Que isso, menino? Tá ficando doido? Falando sozinho e nessa andação dentro de casa? Já tô ficando nervosa...

ZEZÉ – Ué, nem pensei que você estivesse me vendo.

MARIINHA – (varrendo, sem olhar pra Zezé)

- Não, não tou não. Com coisa que você é bem pequenininho, que nem o Curumim.

ZEZÉ –

- Ih, mãe. Que isso? O que é que eu fiz? Você briga com o pai e aí...

MARIINHA – (para de varrer)

- Que briga o que, menino? Tô é nervosa com essa andação aí. Não tem nada pra fazer? (volta a varrer) – Vai estudar, vai.

ZEZÉ – (tom implorativo)

- Mãe, o que...

MARIINHA – (interrompendo-o)

- Já sei, já sei. Tá querendo alguma coisa. Só pode. Desembucha.

ZEZÉ – (encorajado)

- Cinema, mãe. Quinhentas pratas. Tem condução também, né?

MARIINHA – (deixa a vassoura, chegando perto de Zezé, nervosa)

- Você tá achando que eu sou banco? Se eu tivesse 500 pratas não tava aqui não... (pausa, suspira, abranda um pouco o tom, arrependida da dureza com o filho) – Vai arranjar trabalho, menino. Já tá na hora de você tomar responsabilidade, já tá homem. (empurrando-o) – Vai, vai.

ZEZÉ – (falando enquanto empurrado)

- Trabalho, mãe? E a escola?

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MARIINHA – (contendo a raiva)

- Ah, deixa de estudar, faz o que quiser, mas não fica me enchendo, não. Já tou por aqui (sinal com a mão à altura do queixo) com você, oh. Por aqui (repete o sinal) – É seu pai de um lado, você de outro, a Nilza, o Curumim... Vou ficar doida...

ZEZÉ - (falando de longe, intimidado)

- Só pedi porque você disse que imprensava o velho.

MARIINHA – (voltando a varrer, disposta a terminar a conversa)

- Não prometi nada. Agora, me deixa em paz. Vai amolar o boi. Vai. (olhando para Zezé) – Some ou ainda te dou uma coça, rapaz. E nessa idade tua não fica bem, né? (virando-se para o público) O que é que eu fiz, meu Deus? O que é que eu fiz? (sai de cena repetindo a frase, voltando de onde entrou).

ZEZÉ – (anda de um lado para o outro, meio desconsolado, sem saber o que fazer. Afinal, senta-se e começa a pensar "alto", falando para o público).

- É um filme tão bom! A turma toda vai: Bolão, Marreco, Beto, Nelmira, Lucinha... Lucinha! (fecha os olhos, enquanto repete o nome, de maneira sonhadora) É um filme de aventuras, uma expedição ao Polo Sul. Todo mundo vai, só eu nessa droga de casa, esse povo todo me lotando a paciência. Que desgraça! (levanta-se e continua falando para o público) – Eu não sei o que fazer. Qualquer dia, sumo de casa, vou andar pelo mundo. Fujo com o circo, com os ciganos... Acabo indo parar no Polo Sul, no meio dos pinguins, do gelo... Vou sair por aí, vou conhecer gente legal, gente que me entende.

Entra grupo de música jovem. Cantam primeiro para o público, pois vêm para perto de Zezé e cantam em volta dele, que permanece todo o tempo alheio ao grupo.

MÚSICA (ver partitura)

LETRA –

Cada qual no seu caminho

Já não é possível mamãe segurar

Sei que vou ficar sozinho

Mas comigo mesmo hei de me encontrar

Por isso vou, por isso vou

Vou me mandar ...

Grupo sai de cena. (Zezé se levanta, subitamente decidido)

ZEZÉ (para o público)

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- É isso, vou me mandar. Qualquer dia, qualquer hora. Não conto pra ninguém o endereço. Não escrevo, não telefono. Aí eu quero ver essa gente sentir falta de mim. Mas vai ser muito tarde... (Zezé volta a sentar-se, pensativo, olhando o vazio, até entrar Nilza, esbaforida).

NILZA – (cadernos na mão)

- Zezé, Zezé. Você tem que me ajudar. Tô num sufoco incrível com esse trabalho pra amanhã. (vai botando os cadernos na mesa e separando um que pretende mostrar a Zezé)

ZEZÉ – (levantando-se bruscamente, nervoso com a interrupção dos seus sonhos)

- Calma, Nilza! Tá pensando que sou palmatória do mundo? Já não vou ao cinema e ainda tenho que fazer seus trabalhinhos de escola?

NILZA – (meio surpresa com a agressividade do irmão)

- Cinema? Palmatória do mundo? Que isso? Não tô sacando nada, cara!

ZEZÉ - (chega perto de Nilza)

- Não tá sacando nada, né? E vai sacar muito menos de agora em diante. Olha, você acha que vou cooperar com a sua malandragem? Por que é que você não namora menos e estuda mais? Fica aí na porta da rua, no escurinho até tarde da noite com o seu gordinho e vem pedir pra teu te salvar na última hora, né?

NILZA - (passando da surpresa à agressividade)

- Eu, hein! Que bicho foi que te mordeu, Zezé? Olha uma coisa: gordinho é a vovozinha.

ZEZÉ – (interrompendo)

- Minha avó é a mesma sua.

NILZA

- O Paulinho não é gordo coisa nenhuma, tá? E você não tem nada com a minha vida. Vai cuidar da tua, tá bom?

ZEZÉ – (nervosismo crescente)

- Tá me ameaçando, é? (para o público) – A bonequinha tá braba, viram? (para Nilza) – Tá ficando saliente, hein? Mas comigo não, viu? Comigo não tem esse negócio de mulher botar banca comigo, não. E sabe de uma coisa? (dedo em riste para Nilza) – Eu vou é sumir dessa casa. Aí vocês vão sentir minha falta. Mas aí já vai ser muito tarde, tá? Eu vou é pro Polo Sul, falô? (sai de casa nervoso)

NILZA – (fala olhando para o lugar por onde Zézé saiu, como se quisesse segui-lo) – É melhor sumir mesmo. Quem é que vai sentir falta de um cavalo desses? Um cara que nem pode ajudar sua irmã a fazer um trabalhinho de escola. Sentir falta... Sentir falta de que? (caminha para a mesa onde tinha deixa os cadernos e livros, para subitamente e fala em direção à plateia) – Polo Sul? (olha para o vazio, subitamente interessada) – Ué, que coincidência! Se o Zezé já

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estivesse lá, até que ficava mais fácil eu fazer meu trabalho, porque é sobre o Polo Sul mesmo. (ajeita os cadernos para estudar, senta-se) Polo Sul... Polo Sul... Que coincidência! Será que ele não manda mesmo o endereço, será? (Dentro de alguns segundos) – Tomara que o Curumim não apareça. Aquele menino é uma peste, e eu tenho que estudar pra burro!

CENA VI

Local – Mesmo da Cena V

Participantes – Nilza, Curumim e a baratinha Lucemília

Início da cena – Nilza está estudando atentamente, da mesma maneira como terminou a cena anterior.

Entra a baratinha Lucemília. Música adequada de fundo. Lucemília observa primeiramente o teto do palco, as luzes etc. Depois, dá com os olhos em Nilza e se aproxima dela, com passo lento, cuidadoso. Está vendo aquelas coisas pela primeira vez. Após andar em volta de Nilza, observando-a, passa a olhar com interesse para o público, admirada do que está vendo. Atravessa a frente do palco, vai e vem, observando tudo. Quando Nilza arrasta a cadeira, ajeitando-se para continuar a estudar, Lucemília assusta-se. Nilza permanece o tempo todo concentrada em seus estudos. Por umas duas vezes, ajeita a cadeira onde está sentada e assusta Lucemília novamente. Depois que Lucemília sai, Nilza descansa por uns momentos. Para de ler.)

NILZA

- Que milagre, a casa tá tão quietinha! Tomara que o Curumim não me apareça. (volta a se concentrar nos estudos)

Entra Curumim. Vem brincando com um carrinho estragado. Tropeça na entrada e Nilza dá-se conta de sua presença. Demonstra irritação, mas volta aos estudos sem dizer nada. Curumim tenta consertar o carrinho, até que consegue e começa a brincar de novo com ele no chão, imitando ruídos de carro em funcionamento, com buzinas, freadas etc. Pouco a pouco aproxima-se da mesa onde Nilza está sentada e começa a dar-lhe esbarrões. Depois de uns três esbarrões, Nilza perde a paciência, levanta-se de uma vez e sai correndo atrás de Curumim, sem dizer nada. Saem os dois de cena.

Ruídos e xingamentos fora de cena, mostrando que a briga continua. Logo volta Nilza e apanha os cadernos visivelmente irritada

NILZA – (para o público)

- Não dá mesmo pra estudar nessa droga de casa! Sabe duma coisa? Eu também vou me mandar pro Polo Sul.

CENA VII

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Local – palco vazio, cenário ao fundo.

Participantes – Curumim e a baratinha Lucemília.

Início da cena – Entra Lucemília do mesmo lado por onde saiu na cena anterior. Música.

O palco está dividido em dois ambientes. Num dos ambientes, chega Lucemília com a sacola de compras e um pão dentro. Vai direto observar a plateia até o outro extremo do palco. Nesse instante, no outro ambiente, entra Curumim chorando. Vem de mãos vazias. Caminha para um lado e outro.

CURUMIM - (para o público)

- Quando eu crescer, vocês vão ver!

De repente, algo no chão chama a sua atenção. Ele fixa os olhos e vai caminhando lentamente em direção ao ponto de interesse, preparando-se para pisar com força. No outro ambiente, a partir do momento em que Curumim descobre a baratinha, Lucemília passa a olhar para cima como se estivesse vendo o pé de Curumim. Do teto desce uma bota enorme, lentamente, até cair sobre Lucemília. Ela cai no chão e a sacola de compras é abandonada, deixando-se ver o pão que ela havia comprado. CURUMIM permanece com o pé preso ao chão, esmagando Lucemília.

Observação: a cena VIII ou cena final pode ser suprimida, bem como a cena inicial, salvo a entrada dos soldados)

CENA VIII

Local – Palco vazio. Cenário ao fundo.

Início – Entram Neguinho e Maninha. Vêm como se estivessem continuando uma conversa.

MANINHA

- Nossa! Coitadinha da baratinha. Não tinha nada que ver com as brigas dos outros.

NEGUINHO

- Pois é. E pagou o pato. E assim é na vida da gente. Repara só pra você ver, daqui pra frente.

MANINHA - (pensativa)

- Sabe duma coisa? Quem matou a baratinha Lucemília não foi o Curumim.

NEGUINHO

- Quem foi?

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MANINHA

- Foi todo mundo. Cada um de nós. (apontando o público) – Vocês aí também. Nós todos somos culpados, porque achamos que podemos obrigar as pessoas a fazerem o que queremos. Todo mundo quer achar alguém pra Cristo. É bom pensar muito sobre essas coisas. Isso não é só teatro, é a vida da gente.

NEGUINHO

- Isso mesmo.

MANINHA

- E é por causa disse que nascem as grandes guerras. A guerra entre os países é a guerra que nasce no coração de cada um de nós.

Nesse instante entra o elenco. Traz Lucemília morta. Mamãe Barata vem por último, chorando. Lucemília é colocada no centro. Todos se colocam de maneira a ressaltar Lucemília.

CURUMIM – (vindo à frente)

- Vocês todos tenham cuidado comigo. E com todas crianças do mundo. Se a gente apanha quando é pequeno e fraco, vai querer bater quando for grande e forte. Isso é a tal da cadeia da opressão.

MAMÃE BARATA

- E olhem por onde pisam.

LUCEMÍLIA – (até aquele momento morta, senta-se)

- Eu tava tão contente! Tava tudo tão bonito! Pena que a briga de vocês foi estourar, literalmente, logo em cima da minha cabeça. (volta a "morrer")

CURUMIM – (apontando Nilza)

- A culpa foi dessa aí.

NILZA – (apontando Zezé)

- Minha não. Foi dele, esse burro aí.

ZEZÉ – (apontando Mariinha)

- A culpa é de minha mãe.

MARIINHA

- Minha? Quem esquentou minha cabeça foi seu pai.

JUVENAL

- Negativo. A culpa é do meu chefe.

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PITONGAS

- Minha é que não é. Quem é que aguenta o que eu aguento? Eu tenho é que desabafar.

JUVENAL - (dirigindo-se ao público)

- Desabafar? Mas logo em cima de mim?

PITONGAS - (apontando Milocas)

- Quem matou a baratinha foi ela.

MILOCAS - (surpresa)

- Eu? Logo eu que tenho tanto nojo de barata? (gesto de repulsa) – Arre! Nem pisar eu tenho coragem.

MANINHA - (apaziguando)

- Calma. Não vamos começar tudo de novo. A culpa é de nós todos e acabou. Mas agora já é tarde, Lucemília já é morta. (indo para perto de Lucemília, acariciando-a) – Ela era um barato!

NEGUINHO

- Uma barata.

MANINHA - (distraída)

- Pois é, mas já morreu. Agora é enterrar, o que está feito não está por fazer. A gente tem é que não descontar nossos problemas nas costas dos outros.

LUCEMÍLIA – (levantando-se)

- E nem na cabeça. (deita-se novamente)

CURUMIM – (para o público)

- Se todo mundo resolvesse seus problemas sem jogar a culpa nos outros, o mundo seria bem melhor.

MAMÃE BARATA – (chorando perto de Lucemília)

- O que adianta essa falação agora? Ninguém vai trazer minha filha de volta.

MANINHA

- Eu sei, Mamãe Barata, a gente entende seu sofrimento. Mas, pelo menos, todos que viram essa história vão pensar melhor daqui pra frente. Vamos desfazer a CADEIA DA OPRESSÃO

MAMÃE BARATA – (chorando junto de Lucemília)

- Tadinha da Lucemília!

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(elenco sai, leva Lucemília carregada)

FIM

(Gama, DF/1984)