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Capa

Reivindicações Sociais durante a ditadura apontam anecessidade de redemocratização

Nasce a Constituição Cidadã em 1988

Educação: direito universal público e gratuito

Do seguro à seguridade social

8ª Conferência Nacional de Saúde: o SUS ganha forma

Saúde tem seção específica na Constituição Cidadã

Os anos seguintes: a onda neoliberal

Entrevista

Gastão Wagner - SUS: 20 anos depois

Livro

Estado, Sociedade e Formação Profissional em Saúde

Outros Destaques

Almanaque

Pra Lembrar

Profissão

ACS: um trabalhador inventado pelo SUS

Dicionário

Politecnia

História recente em nosso país, a criação do SUScompleta, neste ano de 2008, 20 anos de existência. Apesarde suas imensas dificuldades, dentre as quais questõesrelacionadas ao financiamento, assim como à formação dostrabalhadores da saúde, o SUS pode ser considerado umagrande obra societária, uma instituição do homem a favor dasaúde da população.

Há que se comemorar a existência do SUS demaneira coerente com métodos e sentido utilizados,fundamentais à época da sua criação, ou seja, através dedebates e de confrontação crítica envolvendo áreas diversasdo conhecimento. É com esse ‘espírito’ que a EPSJV/Fiocruzcomemora esses 20 anos do SUS, promovendo debates einformações e lançando esta revista jornalística que, no seuprimeiro número, buscar levar aos leitores contribuições àelucidação de questões atuais do sistema de saúde brasileiroe suas inflexões sobre a formação dos trabalhadores da saúde.

O projeto de comunicação da Escola Politécnica, noqual esta revista se insere, tem como marco o fato de tratar-se de uma instituição pública, federal, que, como unidadetécnico-científica da Fundação Oswaldo Cruz, se apresentacomo organização de Estado, capaz de propor e apoiarpolíticas públicas permanentes. Consideramos com isso quea função da comunicação seja, principalmente, a decontribuir para a formação política, ética e técnico-científicados sujeitos que atuam na área.

Entendemos que a comunicação ganha importânciaquando se entende, cada vez mais, que a participação socialprecisa se dar para além dos espaços institucionalizadospelo SUS. Ela se apresenta, portanto, como o caminho quedeve não só ‘informar’ a sociedade sobre o que se passa emdeterminado campo mas também propiciar espaços dedebate e construção coletiva e democrática. Supomos comisso que, se os espaços públicos de construção da democraciase retraem, a comunicação — com suas mediações etecnologias — pode buscar facilitar o debate público. Mas,para isso, é preciso que ela seja assumida como caminho eestratégia por instituições como a EPSJV/Fiocruz que,diferente da grande mídia, sejam capazes de pautar umoutro olhar, contra-hegemônico, sobre o mundo, propiciandoum outro tipo de diálogo com a sociedade.

André MalhãoAndré MalhãoAndré MalhãoAndré MalhãoAndré MalhãoDiretor da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio daFundação Oswaldo Cruz

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Ano I - Nº 01 - set./out. 2008Revista POLI: saúde, educação e trabalho -jornalismo público para o fortalecimento daEducação Profissional em Saúde.E d i t o r aE d i t o r aE d i t o r aE d i t o r aE d i t o r aCátia Guimarães - MTB: 2265/RJRepórter e redatoraRepórter e redatoraRepórter e redatoraRepórter e redatoraRepórter e redatoraJuliana ChagasEstagiárias de jornalismoEstagiárias de jornalismoEstagiárias de jornalismoEstagiárias de jornalismoEstagiárias de jornalismoRaquel TorresMaíra MathiasProjeto Gráf icoProjeto Gráf icoProjeto Gráf icoProjeto Gráf icoProjeto Gráf icoZé Luiz FonsecaDiag ramaçãoDiag ramaçãoDiag ramaçãoDiag ramaçãoDiag ramaçãoMarcelo Paixão

Assistente de ComunicaçãoAssistente de ComunicaçãoAssistente de ComunicaçãoAssistente de ComunicaçãoAssistente de ComunicaçãoAngela MottaAssistente de Gestão EducacionalAssistente de Gestão EducacionalAssistente de Gestão EducacionalAssistente de Gestão EducacionalAssistente de Gestão EducacionalLuciane VicenteTi ragemTiragemTiragemTiragemTiragem10.000 exemplaresPer iodic idadePer iodic idadePer iodic idadePer iodic idadePer iodic idadeBimestralPPPPPresidente da Fresidente da Fresidente da Fresidente da Fresidente da Fundação Oswaldoundação Oswaldoundação Oswaldoundação Oswaldoundação OswaldoC r u zC r u zC r u zC r u zC r u zPaulo Buss

Diretor da Escola PDiretor da Escola PDiretor da Escola PDiretor da Escola PDiretor da Escola Pol itécnica deol i técnica deol i técnica deol i técnica deol i técnica de

Saúde Joaquim VSaúde Joaquim VSaúde Joaquim VSaúde Joaquim VSaúde Joaquim Venâncioenâncioenâncioenâncioenâncio

André Malhão

EndereçoEndereçoEndereçoEndereçoEndereço

Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, sala 305

Av, Brasil, 4.365 - Manguinhos, Rio de Janeiro

CEP.: 21040-360

Tel.: (21) 3865-9718 - Fax: (21) 2560-7484

[email protected]

www.epsjv.fiocruz.br

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No final da década de 70, começaram a se esboçar as mudanças políticas queaconteceriam no Brasil e culminariam, em outubro de 1988, na nova ConstituiçãoFederal. Esse processo faz parte do contexto em que foi criado o Sistema Único

de Saúde (SUS), que em 2008 comemora 20 anos.As transformações começaram a ganhar contorno após o que ficou conhecido como

‘milagre econômico’ – entre 1969 e 1973, houve grande expansão do setor industrial emuitos investimentos internos. Mas, mesmo com a economia indo bem, o país conviviacom a repressão às lideranças sindicais, com o arrocho salarial e com a distribuição desigualdos benefícios da modernização. A partir de 1974, quando as condições internacionaisdeixaram de ser favoráveis, o Brasil entrou numa grande crise, com o aumento da inflação eda dívida externa. Além disso, a população se mostrava cada vez mais descontente com oregime militar instalado em 1964, que se caracterizava pela repressão dos direitos individu-ais, pela censura e pela violência. Foi nesse panorama que, em 1974, o general ErnestoGeisel (1974-1979), ao assumir a presidência da República, afirmou que faria uma aberturapolítica “lenta, gradual e segura”. Ou seja: a democracia viria a passos lentos.

Mas a sociedade civil não queria esperar e começou a se organizar em diversosmovimentos a favor da democracia. Segundo a historiadora Virgínia Fontes, professora daEscola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e da Universidade FederalFluminense (UFF), alguns grupos foram fundamentais nesse processo. “Um deles foi omovimento sindical, que ressurgiu com dificuldade a partir dos anos 1974 e 1975, enfren-tando mais diretamente a ditadura e marcando o fim da década de 70 com uma grandeonda de greves, reprimidas fortemente. Também foram importantes as comunidadeseclesiais de base, coordenadas pela Igreja Católica, principalmente por grupos ligados àTeologia da Libertação, que faziam reivindicações de direitos humanos mínimos e denun-ciavam casos de tortura e prisões políticas. Ao mesmo tempo, multiplicavam-se as associa-ções de moradores, que lutavam por melhorias nas condições de vida e buscavam solucionarproblemas como saneamento, educação e saúde”, explica.

O próprio movimento sanitarista começou a se configurar nessa época. Era umtempo em que a assistência pública à saúde no Brasil estava restrita a poucos e ancorada noInstituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), criado em 1974para prestar atendimento aos trabalhadores urbanos que possuíam carteira assinada e con-tribuíam com a previdência social. Os não-previdenciários recebiam assistência de institui-

Reivindicações

sociais durante

a ditadura

apontam a

necessidade de

redemocratizaçãoMovimentos da área

da saúde nascem nos

anos 70 e repensam

modelo de assistênciaJuliana Chagas

Raquel Torres

Passeada por uma nova Const i tu ição FederalPasseada por uma nova Const i tu ição FederalPasseada por uma nova Const i tu ição FederalPasseada por uma nova Const i tu ição FederalPasseada por uma nova Const i tu ição Federal

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ções filantrópicas, como as Santas Casas de Misericórdia, ou utilizavam o setor priva-do, se pudessem pagar pelos seus serviços. A atuação do Ministério da Saúde e dassecretarias estaduais e municipais de saúde limitava-se ao campo da prevenção, comona realização de campanhas.

Para o sociólogo Arlindo Gómez, que foi secretário executivo da ComissãoNacional da Reforma Sanitária (CNRS) e hoje é chefe de gabinete da presidência daFundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), todo esse movimento de redemocratização tinha,certamente, que se refletir também na área da saúde. De acordo com ele, vários atorespolíticos do serviço de saúde e das universidades perceberam que o modelo de assis-tência do Brasil não era adequado ao bem-estar da sociedade. “A população tinha queter acesso a um conjunto de serviços que fossem adequados às necessidades daspessoas. Quando, em 1975, a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) passou a organizar cursos descentralizados de pós-graduação em saúde públi-ca, essa discussão foi entrando pelo país. Pessoas e instituições começaram a se juntar,compartilhando suas idéias e reflexões e difundindo a necessidade da reforma donosso sistema de saúde”, comenta.

Diretas Já: população luta por eleições democráticas

A pressão da população brasileira para que a ditadura acabasse ganhou maisforça durante o governo do general João Baptista Figueiredo (1979-1985) – últimopresidente do regime militar – que, seguindo a promessa de abertura política, em1979 promulgou a Lei de Anistia, permitindo que pessoas acusadas ou condenadaspor cometerem crimes políticos pudessem voltar do exílio. No mesmo ano, o governorealizou uma reforma partidária para permitir o pluripartidarismo e enfraquecera oposição.

Ao contrário do que os militares pensaram, essa medida fortaleceu os opositoresà ditadura. Mais tarde, em 1982, as eleições para governadores confirmaram a força daoposição: a situação perdeu o governo de estados importantes, como o Rio de Janeiro,que elegeu Leonel Brizola (PTB), e São Paulo, onde venceu Franco Montoro (PMDB).

Para a sucessão presidencial, a Constituição previa as eleições indiretas em1984 a partir do Colégio Eleitoral, formado por integrantes do Congresso Nacional.Mas, em 1983, o deputado Dante de Oliveira, do PMDB, apresentou uma emendaconstitucional que estabelecia eleições diretas para presidente da República já no anoseguinte, obtendo grande apoio popular. O crescimento da oposição deixava claroque, se a proposta de Dante fosse aprovada, o candidato de situação não seria eleito.

Para pressionar os parlamentares a votarem a favor da emenda, os partidos quese opunham ao governo organizaram a campanha que ficou conhecida por ‘Diretas Já’.O PT, liderado pelo atual presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, foi umdos grandes responsáveis pelo crescimento da manifestação. “O PT apareceu naque-le contexto em que os movimentos sociais perceberam a importância da sua participa-ção, e teve o papel de unir as grandes lutas em torno de objetivos comuns, como foi ocaso das Diretas Já”, comenta Virgínia.

Em janeiro de 1984, um grande comício tomou conta da Praça da Sé, em SãoPaulo. O sucesso foi tamanho que logo levou à organização da Caravana das Dire-tas, elaborada pelas oposições no Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Os comícios, quecontavam com a presença de milhares de manifestantes, tornaram-se o símbolo das‘Diretas Já’.

Apesar da mobilização popular, a emenda Dante de Oliveira foi rejeitada noCongresso Nacional, no mês de abril, com 22 votos a menos que o mínimo necessáriopara a sua aprovação. Nas eleições indiretas de 1984, Tancredo Neves, do PMDB,derrotou o candidato do governo, Paulo Maluf. Mas Tancredo morreu às vésperas detomar posse, e o vice, José Sarney, assumiu o posto, ficando no cargo de 1985 a 1990e tornando-se o primeiro presidente civil em 21 anos. Apenas em 1989 o processo detransição para a democracia se completou, com as eleições diretas para presidente.

Apesar da derrota das ‘Diretas Já’, a importância dos movimentos sociais pormelhores condições de vida e pelo fim da ditadura foi inegável. “Quase todos eles

retomaram questões que ficaram pen-dentes na agenda política brasileira, in-terrompidas pela ditadura. As questõesde 1964, que eram as grandes reformasde base, como a reforma educacional, ocontrole da remessa de lucros para o ex-terior e a reforma agrária, entre outras,estavam pendentes e, em certa medida,reapareceram nos movimentos sociaiscontra a ditadura”, explica Virgínia.

Segundo ela, na década de 80,esses grupos voltaram fortalecidos e maisespalhados pelo Brasil. “Naquele mo-mento, eles já possuíam alguns anos deexperiência e já haviam enfrentado mui-tas lutas, inclusive internas”, afirma. Essefoi o caso dos militantes da saúde que,em 1986, dois anos após as ‘Diretas Já’,se reuniram em Brasília para a 8ª Confe-rência Nacional de Saúde (CNS), resul-tado da experiência adquirida pelo mo-vimento sanitário, que já via a possibili-dade de uma reforma na saúde. Foi a pri-meira Conferência que contou com a par-ticipação de usuários e foi chamada porSarney de “a pré-Constituinte da Saú-de”. De fato, foi essa Conferência quelançou as bases daquilo que viria a ser otexto sobre saúde na Constituição de1988: O Sistema Único de Saúde.

No início da ditadura militar, o gover-no acabou com todos os partidos polí-ticos existentes e implantou obipartidarismo, com a Aliança Reno-vadora Nacional (Arena) como parti-do de situação e o Movimento Demo-crático Brasileiro (MDB) como oposi-ção. Mas, com o tempo, os estrategis-tas do regime perceberam que con-centrar a oposição em um único parti-do poderia contribuir para deixá-lamais fortalecida. Então, em 1979, opluripartidarismo foi novamente ins-tituído. A Arena e o MDB foram extin-tos e seis novos partidos foram for-mados: o Partido Democrático Social(PDS), que substituiu a Arena; o Par-tido do Movimento Democrático Bra-sileiro (PMDB), substituindo o MDB;o Partido dos Trabalhadores (PT) e oPartido Democrático Trabalhista(PTB), de esquerda; e o Partido Po-pular (PP) e o Partido Trabalhista Bra-sileiro (PTB), de centro-direita.

Adaptação de matéria de mesma autoria publicada na Revista

RET-SUS nº 34.

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Nasce a Constituição Cidadã em 1988Democracia permite a participação social na elaboração do texto

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“Essa será a ‘Constituição Cida-dã’, porque recuperará como cidadãos mi-lhões de brasileiros, vítimas da pior dasdiscriminações: a miséria”. Era assim que,em julho de 1988, o presidente da As-sembléia Nacional Constituinte, UlyssesGuimarães, descrevia a nova Carta brasilei-ra, que seria promulgada em outubro. Ogoverno era de José Sarney, que assumiua presidência três anos antes, após a mortede Tancredo Neves, e marcou o fim de21 anos de ditadura militar no Brasil.

Segundo o jurista Dalmo Dallari,membro do Conselho de Defesa dos Di-reitos da Pessoa Humana da Secretariade Direitos Humanos da Presidência daRepública, foi nesse momento que a idéiade escrever uma nova Constituição pôdese concretizar. “Mas a vontade de fazerisso surgiu ainda durante o período decombate à ditadura”, explica. “Alguns in-telectuais, especialmente advogados, le-vantaram a necessidade de que o país ti-vesse uma Constituição democrática, le-gítima e que garantisse os direitos daspessoas”, diz. Quando a ditadura chegouao fim, essa necessidade se tornou umaobrigação. A transição para o regime de-mocrático exigia que as nossas leis fos-sem revistas: nessa época, ainda estavaem vigor a Constituição de 1967, queinstitucionalizava a ditadura e já não faziasentido numa democracia.

Assim, logo no início de seu man-dato, Sarney facilitou a criação de novospartidos, permitiu a legalização daquelesque estavam clandestinos e enviou aoCongresso uma proposta de emendaconstitucional convocando uma Assem-bléia Constituinte. Para Dalmo Dallari,esse processo constituinte foi bem dife-rente dos anteriores, e teve a participa-ção popular como marca. “Em termos departicipação do povo, a Constituinte de1988 foi muito mais avançada que todasas anteriores. Quando tivemos a Consti-tuinte de 1891, o eleitorado representava1% da população brasileira. Em 1946, naConstituinte seguinte, o eleitorado erade 15%. Já quando tivemos a de 1988, oeleitorado representava mais de 60% dopovo brasileiro. Não era apenas umpercentual mais alto: tratava-se tambémde um eleitorado maduro, com uma cons-ciência política que se desenvolvera in-tensamente nos anos de ditadura. Váriosgrupos – e um grande exemplo disso é o

movimento sanitário – haviam se espa-lhado pelo Brasil discutindo e elaboran-do propostas. Isso significa que a Cons-tituição de 88 não nasceu de cima parabaixo. Ela nasceu do povo”, afirma.

Convocação

Os movimentos populares erama favor de uma Constituinte exclusiva,que se reuniria apenas para escrever onovo texto, sendo dissolvida em segui-da. Mas a proposta aprovada, defendidapelo governo Sarney, foi a de convocaçãode uma Assembléia Congressual, ou seja,os parlamentares eleitos nas eleições de1986 foram considerados membros daConstituinte. A Assembléia foi convocadapor meio da Emenda Constitucional 26– o mesmo documento que concediaanistia a autores de crimes políticos, re-presentantes de organizações sindicaise servidores públicos punidos.

Para orientar os debates da Cons-tituinte, Sarney havia instituído um anoantes a Comissão Provisória de EstudosConstitucionais. A Comissão, presididapor José Afonso Arino, aceitou sugestõespopulares e concluiu um anteprojeto em1986. O texto final normatizava a iniciati-va popular para legislação complemen-tar, embora não previsse essa iniciativapara o novo texto da Constituição.

Estrutura

A Assembléia Nacional Constitu-inte foi finalmente instalada em 1º defevereiro de 1987, composta por mais de500 parlamentares. Resultado da pres-são dos movimentos, seu Regimento In-terno, aprovado em março daquele ano,regulamentava a admissão e tramitaçãode emendas populares.

Segundo Renato Lessa, profes-sor de Teoria Política do Instituto Uni-versitário de Pesquisas do Rio de Janeiro(Iuperj), a descentralização do processoconstituinte fez com que o texto final setornasse bastante democrático: “Haviamuitas comissões, e isso possibilitou quecada tema fosse exaustivamente discuti-do e elaborado, independentemente dehaver propostas de direita ou esquerda”.O professor também explica que a Cons-tituição não é um livro fechado. “O textofoi produto do trabalho de centenas de

A Constituinte admitia o envio de su-gestões de leis da sociedade, na for-ma de emendas populares. Elas devi-am ser apresentadas com a assinaturade pelo menos 30 mil eleitores. Cadaeleitor podia subscrever até três emen-das, cada uma tratando de um assun-to diferente. Foram apresentadas 122emendas populares, que reuniram 12milhões de assinaturas.

parlamentares, além de sugestões popu-lares. Muitos interesses diferentes forampostos em discussão e incorporados àCarta Constitucional. É natural que nãoseja um livro acabado: o texto está sobconstante interpretação e sofre mudan-ças o tempo todo”, afirma.

Para Lessa, esse não é um defei-to. “Na verdade, a Constituição de 88 nãoé apenas um conjunto de regras neutrasque devem ser seguidas, não é só umpacto de procedimentos. Ela é um con-junto de valores, objetivos e obrigaçõesdo Estado. O seu papel é programático,ou seja, ela indica o tipo de país que que-remos e serve de guia para a orientaçãopolítica que ele deve assumir”, afirma.

Segundo Dalmo Dallari, os gran-des avanços da Constituição de 88 estãono âmbito dos direitos sociais. “Ela falade direitos coletivos, como o direito àsegurança e ao Meio Ambiente. Antes sóse falava em direitos individuais. A partirde 1988, foram criados muitos instrumen-tos de ação social, inclusive responsabili-zando organizações públicas, como o Mi-nistério Público, pela garantia e efetivaçãodos direitos sociais”, diz. A Constituiçãoainda restabeleceu o voto secreto e aber-to a todos os cidadãos com idade acimade 16 anos, qualificou o racismo, a torturae as ações armadas contra o Estado de-mocrático como crimes inafiançáveis, es-tabeleceu eleições diretas para presiden-te da República, governadores e prefei-tos, fixou a jornada de trabalho em nomáximo 44 horas semanais, instituiu oseguro-desemprego, as férias remunera-das, a licença-maternidade e a licença-paternidade e permitiu a organização sin-dical e o uso da greve como instrumentode negociação.

Adaptação de matéria de mesma autoria publicada na Revista

RET-SUS nº 36.

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A idéia de que o Estado é responsável por assegurar direitos sociais perpassa toda a Constituição de 1988 e também está presente na seção que se refere à Educação.O artigo 205 diz que “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, serápromovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desen-volvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificaçãopara o trabalho”.

Para Carlos Jamil Cury, professor da Pontifícia Universidade Católica de MinasGerais (PUC-MG) e ex-membro da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacionalde Educação, esse artigo mostra uma grande diferença conceitual do texto de 1988 emrelação à legislação anterior: o reconhecimento da importância da educação para formarcidadãos. “Essa é uma característica importante e inovadora: a Constituição vê a educaçãocomo um direito social fundador da própria cidadania”, afirma.

E, para assegurar esse direito, a Constituição proclama a gratuidade em todo oensino oficial. “Antes, apenas o ensino fundamental era gratuito nacionalmente. Nãohavia nenhuma imperatividade com relação ao ensino médio ou infantil face à gratuidade.É claro que existiam instituições públicas responsáveis por essas fases do ensino, maselas estavam submetidas às constituições estaduais, que podiam prever a cobrança detaxas ou mensalidades”, explica Cury.

O texto também delega ao Estado o dever de garantir o “ensino fundamental,obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria”. Oprofessor Romualdo Portela, da Universidade de São Paulo (USP), destaca a importânciadisso para a ampliação do acesso. “É inequívoco o papel decisivo da Constituição para aampliação desse direito. Hoje, praticamente temos o ensino fundamental universalizadoem função desses avanços”, analisa.

Quanto ao ensino médio, a carta original promulgada em 1988 dizia que o Estadodeveria promover a “progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade” desse nívelde ensino. Em 1996, a Emenda Constitucional 14 mudou o texto para “progressivauniversalização do ensino médio gratuito”, embora a postulação anterior tenha permane-cido na Lei de Diretrizes e Bases. Para Carlos Cury, essa mudança foi negativa na medidaem que um artigo constitucional tem mais força que uma lei ordinária. “O princípio não foierradicado, já que continuou na LDB, mas tem menos força. Quando se diz ‘extensão daobrigatoriedade’, o direito está necessariamente vinculado ao dever do Estado. Já quandose fala em universalização, entende-se que o poder público deve abrir as escolas necessá-rias”, explica.

Para Romualdo Portela, a alteração não trouxe mudanças significativas em termospráticos, já que a universalização do ensino médio não é propriamente uma decorrênciado texto constitucional, mas da ampliação do ensino fundamental. “O texto original era

Educação:

direito universal,

público e

gratuitoConstituição Federal

prevê a formação de

sociedade

preparada para o

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Foi em 1937, na Constituiçãodo Estado Novo, que a educação pro-fissional apareceu com força na le-gislação brasileira. O artigo 129 dizia:“O ensino pré-vocacional profissio-nal destinado às classes menosfavorecidas é em matéria de educa-ção o primeiro dever de Estado.Cumpre-lhe dar execução a esse de-ver, fundando institutos de ensinoprofissional e subsidiando os de ini-ciativa dos Estados, dos Municípiose dos indivíduos ou associações par-ticulares e profissionais”. Para o pro-fessor Romualdo, essa é uma defini-ção que estigmatiza o ensino profis-sional. “O texto define claramenteesse tipo de educação como ensinopara pobres, um estigma que o Brasilsempre carregou. Tanto que em 1971usou-se o termo ‘profissionalizante’,para retirar essa carga”, comenta.

A Constituição de 1988 tema educação profissional posta comoprincípio em seu artigo 205, quandodiz que a educação deve eleger comoum dos seus pilares a qualificação parao trabalho. “A partir disso, a Lei deDiretrizes e Bases, de 1996, distin-gue a formação profissional inicial, denível médio e de nível superior, en-quanto o Conselho Nacional estabe-lece as diretrizes”, diz Carlos Cury.

mais enfático mas, de toda maneira, elese tornou letra morta na medida em queo grande ampliador do direito à educa-ção foi a própria ampliação do acesso econclusão do ensino fundamental.Daí decorreu a notável expansão doensino médio nas últimas duas déca-das”, explica.

Outro avanço é a constitucio-nalização da universidade, que apareceno artigo 207: “As universidades gozamde autonomia didático-científica, admi-nistrativa e de gestão financeira epatrimonial, e obedecerão ao princípiode indissociabilidade entre ensino,pesquisa e extensão”. A Constituiçãoainda estabelece a possibilidade deessas instituições receberem apoiofinanceiro do poder público para as ati-vidades de pesquisa e extensão. De acor-do com Cury, antes de 1988 havia leisordinárias que mencionavam as univer-sidades, mas elas nunca haviam apareci-do em nenhuma Constituição.

Público e privado

Também foi em 1988 que, pelaprimeira vez, uma Constituição brasilei-ra reconheceu a existência de escolasparticulares com fins lucrativos. O textoreconhece que o ensino é livre ao setorprivado, desde que sejam cumpridas asnormas gerais da educação nacional eque o poder público autorize o funcio-namento e avalie a qualidade das insti-tuições privadas. “Isso consolida umasituação que, de fato, já existia. Até 1988,a legislação não permitia a existênciadessas instituições mas, na prática, elasjá estavam presentes no nosso sistemade educação e apenas burlavam a conta-bilidade para esconder o lucro”, comen-ta Romualdo Portela.

Cury explica que, apesar de aConstituição de 88 em geral privilegiaro poder do Estado, essa é uma caracte-rística relativa aos sistemas públicos.“A Constituição foi fruto de uma nego-ciação que incluía grupos represen-tantes do sistema privado. Assim,enquanto garante a gratuidade da edu-cação em todos os níveis, ela diminui,em contrapartida, o poder de contro-

le do Estado sobre as escolas particula-res”, diz.

Uma das conseqüências disso é,segundo o professor, a mudança do re-gime de vigência desse tipo de institui-ção. “Até 1988, o setor privado atuavasob concessão. A partir dessa data, a vi-gência passou a se dar mediante autori-zação. Antes, o concedente era o Esta-do, que era o titular, e o concedido de-pendia dele para seu funcionamento.Hoje, ainda existe uma hierarquia base-ada no estatuto de avaliação e autoriza-ção, mas ela é menos forte”, explica.

De acordo com Cury, essaflexibilização traz alguns problemas.“Há um confronto de princípios. Por umlado, essas instituições só podem con-ceder diplomas com valor oficial medi-ante autorização de funcionamento pelopoder público e mediante uma avaliaçãoda qualidade. O problema é que essaavaliação é feita, mas suas conseqüên-cias não são efetivadas. Com isso, te-mos uma expansão absurda e descon-trolada de escolas com baixa qualidadee que, no caso das universidades, lan-çam no mercado profissionais mal pre-parados”, analisa.

Para Cury, o ideal é que, na Cons-tituinte, se tivesse votado um sistemanacional de educação, como a saúde con-seguiu. “Mas, na negociação entre par-tidos de esquerda e de direita, não con-seguimos fazer isso. A idéia votada foi ade um sistema público feito pela cola-boração entre União, estados e municí-pios, com áreas de atuação definidas”.O professor afirma que o governo atualtem feito esforços para pôr esse temaem pauta novamente, mas lembra todamudança na Constituição deve ser feitaatravés de emendas constitucionais, quedependem de aprovação na Câmara eno Senado. “A formação de um sistemanacional significaria maior presença daUnião, de modo que os estados e muni-cípios perderiam poder. Assim, nem to-das as bancadas estaduais estão de acor-do. Além disso, os sistemas privados,que desejam manter sua flexibilidade,também podem acionar suas bancadaspara conservar a situação atual. Com aunião dessas bancadas, torna-se quase

impossível aprovar uma emenda quealtere o sistema”, analisa.

Ele afirma que a divisão por áre-as de atuação gera complicações. “A edu-cação infantil, por exemplo, é respon-sabilidade do estado, enquanto o ensi-no fundamental pertence ao municípioe ao estado, o ensino médio pertenceprioritariamente ao estado e o ensinouniversitário pertence à União. Ocorreque, em alguns casos, há instituições pri-vadas que trabalham desde a educaçãoinfantil até a superior, e precisam, por-tanto, prestar contas ao município, aoestado e à União. Essa é uma dificulda-de operacional muito grande”, conta.

Educação Profissional

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Quando a Constituição de 1988 introduziu pela primeira vez na legislação otermo ‘Seguridade Social’, a intenção era reformular o sistema brasileiro de políticassociais e criar um conjunto de ações integradas entre previdência, saúde e assistência,baseado na universalidade e na eqüidade. O que se pretendia era superar a idéia deseguro social e introduzir a noção de que certos benefícios não precisavam dependerde contribuições dos cidadãos. “A Seguridade Social considera que os riscos são soci-ais e propõe um pacto em que todos, com ou sem vínculos de trabalho, são incluídosmediante o financiamento público”, explica Ligia Bahia, vice-presidente do CentroBrasileiro de Estudos em Saúde (Cebes).

O início da Previdência Social no Brasil foi marcado pelo surgimento dasCaixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs), nos anos 20. O professor Elias Jorge,diretor do Programa da Área de Economia da Saúde e Desenvolvimento do Ministérioda Saúde, lembra que, nos anos 30, surgiram os Institutos de Aposentadorias e Pen-sões (IAPs), que davam cobertura a trabalhadores de diversos segmentos e absorve-ram a maior parte das CAPs. Em 1966, os IAPs foram unidos no Instituto Nacional dePrevidência Social (INPS), que ainda mantinha a idéia de seguro social: os benefíciosestavam restritos aos trabalhadores do mercado formal que fossem contribuintes.

Essa configuração, segundo Elias Jorge, deixava clara a separação entre umaassistência médica integral para os trabalhadores formais e um atendimento filantró-pico para pobres e indigentes. “Eles sofriam uma dupla punição: além de excluídos daatividade econômica, eram também excluídos da cobertura do Estado”, afirma.

Gestão integrada

A Constituição Federal (CF) de 1988 estabelece, em seu artigo 194, que “aseguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dosPoderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde,à previdência e à assistência social”. O professor Marcus Orione, da Faculdade deDireito da Universidade de São Paulo, lembra que, apesar de a legislação anterior à CFtrazer disposições sobre previdência, assistência e saúde, a idéia de integração entreesses setores nunca havia sido posta. “Constitucionalmente, a idéia de segurançaatrelada a essa integração e à perspectiva de políticas públicas ligadas a direitos sociaissurgiu apenas em 1998”, explica.

Para Maria Lúcia Vianna, professora do Instituto de Economia Industrial daUniversidade Federal do Rio de Janeiro, um dos problemas do texto foi não terimplementado uma gestão integrada, com orçamento e ministério únicos. “Se issofosse feito, os recursos poderiam ser utilizados na área que precisasse mais”, explica.

De acordo com Marcus Orione, a iniciativa de formar um sistema integradopartiu de uma movimentação intensa da esquerda brasileira na época da promulgação.O professor também explica que a Constituição reconhece a participação do setorprivado no sistema de Seguridade ao considerar as ações de seguridade como inicia-tiva dos poderes públicos e da sociedade. “Isso significa que tanto o poder públicoquanto o privado estão em uma dimensão de Seguridade Social. Assim, quando sepensa em previdência complementar ou saúde suplementar, áreas em que é comuma atuação do setor privado, isso não está divorciado de um projeto de SeguridadeSocial. O problema é quando os interesses da iniciativa privada se sobrepõem ao

Do seguro à se guridade socialConstituição Federal de 88 integra saúde, previdência e assistência

interesse geral da coletividade. Buscan-do evitar isso, a Constituição criou umalegislação intensa em torno desses ne-gócios”, afirma Marcus.

Mas, para Ligia Bahia, a Consti-tuição é ambígua no que diz respeito aosetor privado assistencial e omissa quan-to às empresas de planos e seguros pri-vados de saúde. “Os preceitos constitu-cionais de complementaridade do priva-do, desde que observadas a lógica públi-ca e a não transferência de recursos pú-blicos para o privado, não foram cumpri-dos. Na realidade, as despesas públicasenvolvidas com o financiamento de esta-belecimentos privados e empresas deplanos e seguros de saúde têm sido am-pliadas”, alerta, ressaltando inconstitucio-nalidades como a dupla porta de entradade hospitais estatais. “Já há quem digaque esse acinte à Constituição represen-ta um aprimoramento do SUS, como se,com o passar do tempo, se houvesse des-coberto uma fórmula para que pela portada frente entrem, sem fila, os que ‘pa-gam’, e, pela dos fundos, após longostempos de espera, o ‘público’”, afirma.

Princípios

A Seguridade Social é, de acordocom Marcus Orione, um sistema baseadona solidariedade. “Esse é o princípio fun-damental. O sistema é custeado para quese tente fazer uma redistribuição socialde renda entre as diversas gerações. Aidéia é estabelecer, entre as gerações pre-sentes, passadas e futuras, um eixo decontribuição de tal forma que isso se alar-gue no tempo, para que as populaçõesnão fiquem desatendidas”, explica.

Maria Lúcia Vianna destaca umprincípio que nem sempre é entendidocom clareza: o da “universalidade da co-bertura e do atendimento”, posto naConstituição como um dos objetivos daseguridade. “O sistema é, por definição,

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Do seguro à se guridade socialConstituição Federal de 88 integra saúde, previdência e assistência

universal, o que não quer dizer que não haja critérios para o recebimento do bene-fício. O caso da previdência é exemplar: para ter direito ao recebimento, é precisoestar inscrito em uma determinada categoria de contribuintes. Mas isso não significaque ela não seja universal, porque qualquer pessoa pode se filiar ao sistema de previ-dência. Essa é uma situação estruturalmente diferente daqueles sistemas não-univer-sais, como o da previdência do servidor público, que é restrita apenas a servidores”.

Atrelada à universalidade, está a idéia de eqüidade, tanto no atendimentocomo no custeio. “A Constituição busca a igualdade de tratamento entre as pessoas,mas sempre observando que as diferenças de alguns devem ser atendidas”, lembraMarcus. Para ele, universalidade e eqüidade são princípios interessantes, porque, nosanos 80, grande parte dos países estava migrando para políticas públicas focalizadas,enquanto o Brasil optou pela “seletividade e distributividade na prestação dos bene-fícios e serviços”, o que está expresso no artigo 194. “Fala-se muito em escassez derecursos financeiros. Por conta disso, em geral o mundo tendeu a escolher um ououtro serviço e uma ou outra população para ser beneficiada. A Constituição de 88 nãodesejou isso, a priori. Ela se pautou na universalização e, quando há serviços específi-cos para pessoas específicas, como o salário mínimo para pessoas com deficiência,isso é indicado pela própria carta constitucional. A idéia é que o sistema de Seguridadeseja para todos, indistintamente, e que se alcance o maior número de pessoas possí-vel no maior número de situações adversas possível”, explica Orione.

Financiamento

O capítulo da Seguridade na Constituição estabelece três fontes de receitaspara o setor: contribuições dos trabalhadores, dos empregadores (incidentes sobre afolha de salário, sobre o faturamento e o lucro) e ainda sobre a receita de concursos deprognósticos (loterias). Mais tarde, foi criada ainda a Contribuição Provisória sobreMovimentação Financeira (CPMF), voltada especificamente para a saúde.

Para Elias Jorge, o maior problema no financiamento da Seguridade é adesvinculação de recursos feita sistematicamente desde o governo de FernandoHenrique Cardoso (1995-2002). Com a DRU (Desvinculação de Recursos da União),20% da arrecadação da União podem ser usados com liberdade pelo governo, nãonecessariamente para os setores a que deveriam atender. “Por isso, acho que temosmuito pouco a comemorar e muito com que nos preocuparmos nesse 20º aniversárioda Constituição e do SUS. Temos que comemorar a sobrevivência a todos os solavan-cos até agora, mas devemos nos preocupar com a manutenção dessa rede de proteçãosocial, duramente construída e arduamente mantida, sempre com ameaças de crise apartir do desfinanciamento”, diz. Ele garante ainda que o conjunto de contribuiçõesoriginalmente previstas para a Seguridade seria suficiente para manter um superávitno setor. “Hoje, a arrecadação proveniente dessas contribuições é superior às despe-sas do governo com Seguridade”, afirma, completando que a desvinculação dessesrecursos, por meio da DRU, é o que atrapalha o financiamento.

Recentemente, o senado aprovou o fim da DRU para os recursos da educação.De acordo com Ligia Bahia, é preciso lutar para que isso aconteça também naSeguridade, embora ela ache que isso só será possível quando a Seguridade estiverentre as prioridades do governo e de empresas. “A desvinculação é, evidentemente,uma política macroeconômica fortemente voltada para as exigências de ajuste fiscal, enão dos requerimentos do bem-estar social. A educação é uma prioridade do governoe começa a se tornar também um ponto importante na agenda das grandes entidades

de representação dos empresários: como crescimento do mercado formal de tra-balho, a noção de que o Brasil precisa con-tar com mão-de-obra qualificada ganhadestaque. Nosso problema é que aSeguridade ainda não adquiriu essestatus”, opina.

Previsões

O sistema de Seguridade, talcomo a Constituição previa, não chegou ase instaurar. Segundo Ligia Bahia, logoapós a promulgação já se dizia que o tex-to era inviável. “O próprio Sarney, presi-dente da República na época, fez corocom quem afirmava que havíamos apro-vado um conjunto de direitos sem garan-tias de financiamento. Mas, na verdade,as diretrizes constitucionais que diziamrespeito ao financiamento para aSeguridade foram desrespeitadas”, diz,lembrando que a Seguridade perdeu par-te dos recursos inicialmente previstos.

Além disso, a reforma adminis-trativa do governo Collor criou o Minis-tério do Trabalho e Previdência Social, oque consolidou a permanência da frag-mentação. Isso preserva o distanciamentoentre contribuintes e não-pagantes e,para Ligia, essa é uma grande derrota.“É um problema que a Constituição pre-tendeu superar. Nos anos 70 e 80, o quese debateu foi a necessidade de adotarum sistema baseado em critérios de realparticipação da sociedade, porque nãofaz sentido supor que quem não traba-lha com carteira assinada não contribui.Daí a necessidade de um sistema únicoe integrado cujos benefícios atinjamtoda a população. No entanto, não con-seguimos fazer isso. Continua a idéiade que é natural que os ‘pobres’ sejamtratados por um sistema diferente daque-le organizado para atender a quem temvínculo formal com o mercado de tra-balho”, lamenta.

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Cinco dias de debates, mais de quatro mil participantes, 135 grupos de traba-lho e objetivos muito claros: contribuir para a formulação de um novo sistema de saúdee subsidiar as discussões sobre o setor na futura Constituinte. A 8ª Conferência Naci-onal de Saúde (CNS), realizada entre 17 e 21 de março de 1986, foi um dos momen-tos mais importantes na definição do Sistema Único de Saúde (SUS) e debateu trêstemas principais: ‘A saúde como dever do Estado e direito do cidadão’, ‘A reformulaçãodo Sistema Nacional de Saúde’ e ‘O financiamento setorial’. O rela-tório final apontaa importante conclusão de que as mudanças necessárias para a melhoria do sistema desaúde brasileiro não seriam alcançadas apenas com uma reforma administrativa e fi-nanceira. Era preciso que se ampliasse o conceito de saúde e se fizesse uma revisãoda legislação. Em outras palavras, era preciso implantar uma Reforma Sanitária.

O crescimento do movimento sanitário, organizado desde os anos 70, foicrucial para o amplo debate dessas questões. Enquanto o país passava pelo processode redemocratização, o movimento ganhou consistência e avançou na produção deconhecimento, com a criação de órgãos como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde(Cebes), em 1976, e a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva(Abrasco), em 1979. Em meados dos anos 80, alguns dos integrantes do movimentoconquistaram cargos importantes para a condução da política setorial: Sergio Aroucaassumiu a Secretaria de Estado da Saúde do Rio de Janeiro e Hésio Cordeiro, apresidência do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência (Inamps).

De acordo com Arlindo Gómez, militante do movimento sanitário e atual chefede gabinete da presidência da Fiocruz, a experiência acumulada pelo movimento foiresponsável pelo sucesso da 8ª CNS. “O que tivemos em 1986 não aconteceu derepente, nem foi coisa de uma ou duas cabeças geniais. Foi o amadurecimento de todoesse processo de pesquisa, prática, reflexão e ensino que se fez por mais de dez anos.Quando chegamos à Conferência, isso já estava maduro. E a proposta de uma novaConstituição, que já estava em pauta, era um espaço para que novas idéias em relaçãoà saúde fossem colocadas. O país estava aberto para se redefinir, para decidir qual eraa função do Estado e o que cabia à sociedade”, analisa.

A convocação da 8ª CNS se deu durante um conflito entre o Ministério daSaúde e o Ministério da Previdência e Assistência Social. Uma das propostas domovimento sanitário era levar o Inamps para dentro do Ministério da Saúde, de formaque a assistência à saúde, restrita aos previdenciários, pudesse ser estendida. Deacordo com a professora da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) SarahEscorel, o impasse foi uma das razões para a convocação da 8ª: “Na hora de fazer aunificação, os dois ministérios vestiram a sua camisa e começaram uma grande discus-são a esse respeito. A 8ª Conferência foi feita na tentativa de resolver o problema”.

8ª Conferência

Nacional de

Saúde: o SUS

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diretrizes para a

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descentralizado e

único. Saúde é

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A 8ª foi a primeira conferência quecontou com a participação de usuários.Antes dela, os debates se restringiam àpresença de deputados, senadores e au-toridades do setor. “As conferências eramintraministério. O Ministério da Saúdeconvidava pessoas das secretarias e inte-lectuais, mas os eventos não tinham essadimensão nem essa estrutura a queestamos acostumados”, conta Arlindo.

Arouca, que estava no núcleo domovimento sanitário e na época era pre-sidente da Fiocruz, foi convidado a presi-dir a 8ª. “A atuação dele é incontestávelna decisão de fazer uma assembléia mai-or. Partiu dele a percepção do quanto eraimportante ouvir os usuários”, diz Sarah.

Os temas foram divulgados e pos-tos em discussão através das pré-confe-rências estaduais e municipais. SegundoSarah, o interesse da sociedade levou auma imensa participação popular. “As pré-conferências ativaram a mobilização emtorno dos temas, que extrapolavam oambiente técnico. A inclusão do Inampsno Ministério da Saúde era de interessedo cidadão brasileiro, não era uma coisaapenas do técnico ocupante de um car-go, na saúde ou na previdência. Então,no ginásio em que foi realizada a 8ª, reu-niram-se, além dos delegados da socie-dade civil que representavam formalmen-te seus grupos, vários outros grupos quecomeçaram a fazer passeatas exigindoparticipar. Houve uma grande assembléiadurante a Conferência para discutir apossibilidade de incorporação dessaspessoas, e elas acabaram sendo admiti-das, como observadores”, conta.

Conclusões

Segundo Sarah, “o desenho doSUS foi todo formulado na 8ª Conferên-cia, assim como todo o seu funcionamen-to”. O relatório final apontava o consen-so em relação à formação de um sistemaúnico de saúde, separado da previdên-cia, e coordenado, em nível federal, porum único ministério. O financiamento sedaria por impostos gerais e incidentessobre produtos e atividades nocivas à saú-de. Também foram aprovadas na 8ª aspropostas de integralização das ações, deregionalização e hierarquização das uni-dades prestadoras de serviço e de forta-lecimento do município. “Nós tínhamos

que passar a responsabilidade das açõesde saúde para os municípios”, explicaArlindo. O relatório aponta ainda a ne-cessidade de participação popular, atra-vés de entidades representativas, na for-mulação da política, no planejamento, nagestão e na avaliação do sistema.

Outra grande resolução diz res-peito a um conceito mais abrangente desaúde, que é descrita no relatório finalcomo uma resultante das condições dealimentação, habitação, educação, renda,meio-ambiente, trabalho, transporte,lazer, liberdade, acesso à posse de terra ea serviços de saúde. “Até então, o concei-to de saúde mais amplo e avançado eraaquele formulado pela Organização Mun-dial da Saúde, nos anos 40, que tambémnão era desprezível: dizia que saúde nãoé apenas ausência de doença, mas o maiscompleto estado de bem-estar físico, so-cial e mental. Isso já era um grande avan-ço”, comenta Arlindo. Os delegados da8ª atribuíram ao Estado o dever de garan-tir condições dignas de vida e de acessouniversal à saúde, e apontaram a necessi-dade de integrar a política de saúde àsdemais políticas econômicas e sociais.

A 8ª ainda discutiu o papel do se-tor privado, apesar de ele não estar pre-sente. “A idéia era ter um sistema exclu-sivamente público, com o setor privadosubordinado às normas do SUS. Por isso,apesar de convidados, os representan-tes do setor privado não compareceram,pois consideravam que sua participaçãona 8ª seria pequena diante da sua impor-tância na prestação de serviços de saú-de”, explica Sarah.

Rumo à Constituinte

Para que as resoluções da 8ª CNSpudessem se estruturar melhor e chegarà nova Constituição, foi criada a Comis-são Nacional da Reforma Sanitária(CNRS), que funcionou de agosto de1986 a maio de 1987. “A Comissão tinha afunção de trabalhar tecnicamente em umdocumento para ser entregue à Assem-bléia Nacional Constituinte”, explicaSarah, completando: “A 8ª deu oarcabouço político e a CNRS deu oarcabouço técnico”.

A CNRS era composta por repre-sentantes de segmentos importantes, in-clusive do setor privado. “Havia a Con-federação Nacional do Comércio, daIndústria, a Sociedade Brasileira de Hos-

pitais, gestores públicos, membrosda Academia, integrantes da Abrasco”,lembra Arlindo, que foi secretário exe-cutivo da Comissão.

O documento final produzido foienviado para a aprovação da Subcomissãode Saúde, Seguridade e Meio Ambienteda Assembléia Constituinte.

O setor privado também chegou aapresentar, separadamente, o seu proje-to. “Eles estavam na CNRS, mas nuncafecharam um acordo com os membros domovimento sanitário, porque não aceita-vam a idéia de existirem apenas em cará-ter complementar. Então, eles sempretentaram manter seus interesses especí-ficos e foram para a Constituinte bata-lhando por isso”, conta Sarah. E comple-ta: “Mas foram perdendo força no cami-nho e o movimento sanitário acabouconseguindo trazer para o seu campoalguns conservadores”.

A subcomissão considerou odocumento da CNRS no momento daredação da seção sobre o SUS na Cons-tituição Federal. O relatório final foienviado à Comissão da Ordem Social e,de lá, foi para a Comissão de Siste-matização, que era responsável porelaborar o projeto final da Constituição.

Nessa etapa, o movimento sani-tário, representado por Sergio Arouca,apresentou ao Congresso uma Emen-da Popular, que agregava ao documentoanalisado anteriormente mais de 50 milassinaturas. “A Emenda Popular era umaforma de legitimar o documento quechegava à Comissão. E esse projetoacabou sendo aprovado quase na ínte-gra”, diz Sarah.

Para Arlindo, a Emenda Popularconsagrava o desejo da sociedade por mu-danças: “Mesmo antes de chegar à Co-missão de Sistematização, nosso relató-rio já tinha muita força. Lembro que, de-pois de fazermos a leitura, o relator dasubcomissão, Carlos Mosconi, disse acre-ditar que nosso projeto refletia o desejodo setor e da sociedade, e, por isso,provavelmente seria incorporado semalterações à Constituição.

A Emenda Popular basicamenteratificava toda a consolidação das nossasidéias desde a década de 70. O que te-mos hoje no texto constitucional é resul-tado dessa história toda”.Adaptação de matéria de mesma autoria publicada na Revista

RET-SUS nº 35.

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Saúde tem

seção

específica na

Constituição

CidadãConstrução do

texto do SUS teve

participação social

e muitos embates

A intenção do capítulo VII da Constituição Federal (CF) de 1988, ‘DaSeguridade Social’, era uma só: universalizar os direitos sociais. E, para que os objeti-vos do tripé Saúde, Assistência e Previdência ficassem claros, cada área ganhou umaseção específica no texto constitucional. O sanitarista Eleutério Rodriguez Neto, nolivro ‘Saúde: promessas e limites da Constituição’, explica que, a rigor, uma constitui-ção realmente democrática dispensaria uma parte especialmente dedicada à saúde:“Os seus objetivos, de natureza individual e coletiva, no contexto de uma organizaçãosocial democrática, já seriam as condições necessárias e suficientes para a busca doalcance e do gozo da Saúde. E a Saúde deixaria de ser algo ‘setorial’ para ser o próprioobjetivo da nação”.

Segundo ele, como isso é ‘quase utopia’, as constituições mais recentes opta-ram por deixar claro o papel da saúde. “Isto é, o entendimento por parte dos gover-nos, sejam socialistas ou capitalistas, de que a Saúde não se conquista de formaespontânea, pelo simples desenvolvimento social e econômico, sendo possível emum caso acelerar o seu processo e em outro retardar ou compensar os efeitos perver-sos da exploração capitalista, ambos por meio de estratégias racionalizadoras”, escre-ve, acrescentando que, no caso dos países capitalistas, a saúde aparece quase semprena constituição quando é necessário estabelecer limites da responsabilidade do Esta-do, as formas de financiamento e o papel do setor privado.

Construção da proposta

O texto da saúde na Constituição brasileira foi escrito pela Subcomissão deSaúde, Seguridade e Meio Ambiente, que teve como presidente o deputado EliasMurad (PTB-MG) e como relator o deputado Carlos Mosconi (PMDB-MG). Mas os21 parlamentares que participaram da subcomissão não escreveram a seção da saúdesozinhos: tiveram a ajuda dos movimentos sociais organizados e de toda a população,que participava das audiências públicas no Congresso Nacional e enviava propostasde textos. “Tínhamos audiência pública toda semana. E a participação do povo eramuito expressiva e interessante. Nessas audiências, as pessoas davam sugestões.Depois, nós da subcomissão nos reuníamos para redigir o texto”, lembra Mosconi,que hoje é deputado estadual de Minas Gerais.

Os participantes da Comissão Nacional da Reforma Sanitária (CNRS), queenviaram sua proposta de texto constitucional para os parlamentares em março de1987, foram uns dos que acompanharam de perto o trabalho da subcomissão. O movi-mento sanitário queria que as resoluções da 8ª Conferência Nacional de Saúde, siste-matizadas no documento da CNRS, fossem de fato garantidas pelo Estado. Segundoa especialista em direito sanitário Lenir Santos, o Movimento da Reforma Sanitáriaqueria garantir na Constituição os direitos conquistados no campo político e adminis-

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trativo ainda nos anos que antecederama Constituinte. “Dentre eles deve serdestacado o programa federal que foiimplantado naqueles anos (1987/88) eque estava sendo implementado na épo-ca dos debates da Assembléia NacionalConstituinte. Trata-se do Programa dosSistemas Unificados e Descentralizadosde Saúde (Suds), que permitia à Uniãodelegar a execução de serviços federaispara estados e municípios, por meio deconvênio. Essa foi a primeira revoluçãoda saúde ocorrida na prática: a unificaçãode ações e serviços de Saúde, com co-mando único do Estado, com a conju-gação de recursos financeiros e auniversalização do atendimento. Essasconquistas dos participantes da Refor-ma Sanitária não poderiam ser perdidas.Havia necessidade de consagrá-las notexto constitucional que estava sendodiscutido”, explica a advogada no livrocitado anteriormente.

Segundo Maria Luiza Jaeger, queparticipou da Comissão da Reforma Sa-nitária representando a Central Únicados Trabalhadores (CUT) e acompanhoude perto a Constituinte, houve uma or-ganização muito grande para pressionara subcomissão de saúde. “E não foi só oMovimento da Reforma Sanitária que fa-zia pressão. Houve um processo coletivo,que envolveu os movimentos sindicais,as organizações dos trabalhadores de saú-de, os gestores. Por causa de todo esseempenho é que o texto saiu como nósqueríamos. E ele é muito parecido com oque tínhamos feito na Comissão Nacio-nal da Reforma Sanitária. A maior partedos conceitos está lá. Uma das conquis-tas fundamentais é que saímos de umaconstituição anterior na qual a saúde erareduzida a assistência médica para umconceito absolutamente amplo de saúde,que não pensa só em atenção à saúdeprestada direta ou indiretamente pelosetor público, mas que pensa o papel doEstado brasileiro em relação a todo o sis-tema de saúde e toda e qualquer questãoque leve risco à saúde”, explica.

De acordo com Mosconi, a parti-cipação dos movimentos da saúde, quejá tinham uma proposta madura, foi mui-to positiva. “Fomos influenciados por vá-rios textos. O relatório final da 8ª. Con-ferência foi, sem dúvida, muito impor-tante. Mas o texto que saiu dasubcomissão era inédito, fruto de umadiscussão de qualidade, da qual partici-

pou o Brasil inteiro. Nós ouvíamos a po-pulação e todas as questões foram muitobem trabalhadas pelo grupo político quetínhamos na subcomissão. E também ti-vemos figuras muito importantes do mo-vimento da reforma sanitária acompa-nhando tudo, como o Eleutério, SergioArouca e Hésio Cordeiro”, diz.

Depois de aprovado pelaSubcomissão de Saúde, Seguridade eMeio Ambiente, o texto seguiu para aComissão de Sistematização, da qual par-ticipavam todos os relatores. “Eu apre-sentei o texto para ser discutido e apro-vado na Comissão. Houve uma resistên-cia muito grande de grupos contrários aele. Os principais opositores eram a Fe-deração dos Hospitais e os Sindicatos deHospitais Privados do Rio de Janeiro”,lembra o deputado. E esses grupos ti-nham representantes na AssembléiaConstituinte. Eram os parlamentares quenão concordavam com o Sistema Únicode Saúde e formavam o chamadoCentrão. “O Centrão foi formado pra ten-tar barrar nossa proposta no plenário.Eles eram contra muitos textos, mas ti-nham muita resistência ao da saúde, emespecial. Queriam acabar com o nossotexto e fazer outro. Eram contra a saúdeser direito de todos e dever do Estado”,conta Mosconi.

O sanitarista Hésio Cordeiro, quefoi membro da CNRS e presidente doInstituto Nacional de Assistência Médi-ca da Previdência Social (Inamps) de1983 a 1987, também destaca o momen-to de impasse com a iniciativa privada. “Abriga foi grande. Os deputados ligadosaos serviços privados fizeram muita pres-são para inserir artigos no texto da saúde

que não envolvessem qualquer restriçãoà iniciativa privada. Mas, mesmo sendoum grupo hegemônico, o Centrão nãoconseguiu reverter as propostas do Sis-tema Único de Saúde. Acabou que os cons-tituintes encontraram soluções interme-diárias, conciliadoras. E o setor privadoganhou espaço no SUS, de forma com-plementar e regulado pelo poder públi-co”, diz ele, que hoje é diretor de gestãoda Agência Nacional de Saúde Suple-mentar (ANS).

Segundo Mosconi, a briga se es-tendeu até a plenária final. “O embateaconteceu até votarmos no plenário, aofim da Constituinte, o texto definitivoda saúde. Mas conseguimos. Convence-mos o Centrão de que o projeto só so-mava, era condizente com a situação dopaís e não era estatizante. E todas as pre-missas do SUS foram mantidas”, conta.

O texto constitucional

Logo no primeiro artigo da seçãoda Saúde, o de nº 196, são afirmadas auniversalidade, a saúde como dever doEstado e a garantia ao acesso universalaos serviços de saúde. “Havia uma dis-cussão sobre o que entraria na própriaConstituição e o que ficaria para a lei pos-terior, que a regulamentaria. Brigamospara que as diretrizes do SUS estives-sem no texto constitucional. Isso era ab-solutamente uma questão de honra. Ti-nha que entrar que era um sistema desaúde descentralizado, universal”, dizMaria Luiza.

Outra questão que fica clara noartigo 197 é que saúde é de relevânciapública, “cabendo ao Poder Público dis-por, nos termos da lei, sobre sua regula-mentação, fiscalização e controle”. Segun-do Eleutério, o termo ‘relevância pública’não tem nenhum significado jurídico es-pecial que desse o tom desejado pelosmilitantes do SUS. “O que se pleiteavaera a inscrição na Constituição da ‘natu-reza pública’ das ações de serviços deSaúde. Esse termo, sim, traz uma ine-quívoca conotação jurídica que implicariaabsoluta precedência do interesse públi-co e dos serviços públicos, na perspecti-va, então possível, da estatização a médioe longo prazo. Esse, no entanto, pareceter sido o limite crítico das negociações”,escreve.

Para a advogada Lenir Santos, otermo que consta da CF não prejudicou

O Centro Democrático, maisconhecido como Centrão, foi formadodurante a Assembléia Nacional Cons-tituinte (ANC) por deputados conser-vadores de partidos como PMDB, PFL,PTB, entre outros. Seu objetivo, se-gundo Eleutério Rodriguez Neto, eradefender os interesses patronais e dogoverno. Alegando manipulação daConstituinte por setores minoritários,o Centrão conseguiu aprovar um pro-jeto de resolução para mudar o regi-mento interno da ANC. Com isso, elespoderiam apresentar uma proposta deConstituição Federal diferente da apro-vada pela Comissão de Sistematização.

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seu significado. “Hoje, a expressão ‘relevância pública’ é carregada de significado,permeando, contaminando todas as ações e serviços de saúde, sejam públicos ouprivados, sujeitando-os ao total controle do Poder Público. O que vem ocorrendo éuma certa timidez do Poder Público, que não exerce o seu verdadeiro papel assumin-do total controle sobre essas ações e serviços”, explica.

Mas o mesmo artigo que fala em relevância pública, diz ainda que a execuçãodas ações e serviços de saúde pode, ainda, ser feita “por terceiros e, também, porpessoa física ou jurídica de direito privado”. Para Eleutério, a inclusão desse texto,demanda do Centrão, descartou a possibilidade implícita nos textos de base dosmovimentos em prol do SUS de uma estatização progressiva. “O que se instituiu foium Sistema Único público paralelo a um sistema privado, o qual poderá participar doprimeiro mediante contrato de direito público e submetido às suas normas e diretri-zes. No entanto, essa participação é complementar e não supletiva, o que significa umespaço garantido e próprio e não, como se queria, o exercício ‘em nome’ do setorpúblico”, diz.

O lugar do setor privado aparece novamente no parágrafo primeiro do artigo199, que diz respeito à participação complementar: “As instituições privadas poderãoparticipar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizesdeste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as enti-dades filantrópicas e as sem fins lucrativos”. Na opinião de Carlos Mosconi, acomplementaridade foi o melhor acordo que poderia ter sido feito com o Centrão.“Foi uma grande vitória política. Uma conquista que só foi conseguida pelo trabalhoárduo, que demorou meses”, diz.

Ainda nesse artigo, é estabelecido que os recursos públicos não podem auxi-liar instituições privadas com fins lucrativos e proibida a comercialização de órgãospara fins de transplante, pesquisa e tratamento, assim como da coleta, processamentoe transfusão de sangue. Cabe, então, ao SUS controlar e fiscalizar os procedimentose participar da produção de medicamentos, hemoderivados e outros insumos. “Apesarde o setor privado ter brigado muito pelos hemoderivados, eles acabaram ficandocomo papel do Estado brasileiro. Isso foi muito complicado, um processo de negoci-ação com o próprio governo na época. Houve muita pressão nos constituintes”, contaMaria Luiza.

Uma outra atribuição do SUS que ficou estabelecida no texto constitucional foia ordenação da formação de recursos humanos na área da saúde. “Desde a 4ª Confe-rência Nacional de Saúde, que aconteceu em 1967, se discutia o fato de a formaçãodos profissionais de saúde não atender às necessidades dos serviços. Na 7ª Confe-rência, foi pensada uma cooperação entre os sistemas de educação e saúde, no Siste-ma Nacional de Saúde, que implicaria a constituição do Sistema Nacional de RecursosHumanos para a Saúde. Por fim, na 8ª Conferência, foi decidido que o novo Sistemade Saúde deveria ordenar a formação de pessoal para a área. Então, em 1988, isso eraalgo claro, que tinha que constar da Constituição. Nós achávamos que era importanteque o Ministério da Saúde tivesse controle sobre a abertura dos cursos, que essa erauma discussão que tinha que passar pelo gestor e pelo Conselho Nacional de Saúdee não ser só uma atribuição do Ministério da Educação”, explica Maria Luiza.

O financiamento do SUS também foi pensado pelos deputados e pelosmilitantes da saúde. Mas, segundo Carlos Mosconi, a preocupação em garantir aaprovação do Sistema Único de Saúde era tanta, que a discussão sobre as fontes definanciamento não foi bem amadurecida. “A questão do financiamento foi a nossafalha. Nós gastamos grande parte da nossa energia, tempo e argumentação políticapara convencer o pessoal que era contra de que o Sistema era bom. Queríamos vinculá-lo às receitas orçamentárias dos três níveis de governo, mas os economistas constitu-intes brecaram. E nós não tivemos força política. O que conseguimos já foi um grandeavanço. Porém, em relação ao financiamento, deixamos para resolver na Comissão deSistematização e no plenário. Infelizmente não deu certo”, diz.

Mesmo assim, o parágrafo primeiro do artigo 198 diz que “o sistema único desaúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridadesocial, da União dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outrasfontes”. Apesar disso, não foi estabelecida a porcentagem mínima de repasse para oSUS. “Como os deputados ligados à área econômica eram contrários, só conseguimos

As disposições transitórias sãouma das partes constitucionais quetem como objetivo regulamentar operíodo de transição entre a Consti-tuição anterior e a nova. De caráterefêmero, elas devem “preparar o ter-reno” para o cumprimento da partedogmática da Constituição. Segundoo ex-ministro do Supremo TribunalFederal Sepúlveda Pertence, “o alcan-ce de normas constitucionais transi-tórias há de ser demarcado pela medi-da da estrita necessidade do períodode transição, que visem a reger, de talmodo a que, tão cedo quanto possí-vel, possa ter aplicação a disciplinaconstitucional permanente da maté-ria”. No caso relativo ao financiamen-to do SUS, foi aprovado no artigo 55das Disposições Transitórias: “Até queseja aprovada a lei de diretrizes orça-mentárias, trinta por cento, no míni-mo, do orçamento da seguridade so-cial, excluído o seguro-desemprego,serão destinados ao setor de saúde”.

incluir que 30% dos recursos daseguridade iriam para a saúde nas Dispo-sições Transitórias. Isso significava queesse montante de recursos ficaria valen-do até que se aprovasse a lei comple-mentar que regularia o SUS”, conta HésioCordeiro.

Segundo Maria Luiza, naquelemomento, foi pensado que, mesmo nasDisposições Transitórias, a conquista dos30% seria garantida posteriormente, naLei Orgânica da Saúde. “Em 1989, con-seguimos receber esses recursos. E acha-mos que o governo não tiraria dinheirodepois de ter colocado. Mas mexemosno calcanhar de Aquiles deles”, diz.Hésio Cordeiro explica que foi no gover-no Itamar Franco (1992-1994) que a por-centagem aprovada pelos constituintesfoi desrespeitada. “O então ministro daPrevidência, Antônio Britto, simplesmen-te decidiu que cortaria os 30%. Ele disseque havia uma crise na Previdência Sociale que não havia recursos para financiar asaúde, previdência e assistência social.Falou que essa proposta da constituinteera utópica e que as esquerdas haviaminduzido os parlamentares a aprovar”,lembra. A perda do financiamento garan-tido no texto aprovado em 1988 era aprimeira medida que tentava impedir aimplementação do SUS.

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A Constituição de 1988 é um marco na tentativa de implantar no Brasil oEstado de bem-estar social. Um dos méritos do texto constitucional, nesse sentido,é estender a todos os cidadãos uma série de direitos como educação, saúde e assis-tência social. Mas a crise econômica no Brasil dos anos 90, em que o país se viaafogado em dívidas internas e externas, sem conseguir se desenvolver, mudou orumo dessas conquistas.

De acordo com Sonia Fleury, presidente do Centro Brasileiro de Estudos deSaúde (Cebes), as agências internacionais indicaram a solução: promover uma sériede reformas que incluíam a adoção de uma política de privatização de empresas e agradual retirada do Estado da economia. Assim, enquanto a Constituição defendia oEstado de bem-estar social, o país caminhava para a instauração de um Estado míni-mo, em que os direitos sociais são reduzidos ao assistencialismo. Essas reformasfazem parte do ideário neoliberal, que surgiu nos Estados Unidos e na Inglaterra noinício dos anos 80 e se desenvolveu rapidamente em países europeus. As novaspolíticas buscavam reestruturar a economia, já que desde os anos 60 o capitalismodava sinais de crise, com excesso de produção e diminuição das taxas de lucro.

De acordo com José Roberto Reis, professor de história na Escola Politécnicade Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), a relação desconexa entre a promulga-ção de uma Constituição preocupada com os direitos sociais no Brasil e o caminhoneoliberal que o resto do mundo tomava se explica quando analisamos o contextohistórico da época. “Vivíamos o fim de uma ditadura e tínhamos uma forte perspectivade fortalecimento do nacionalismo. Os anos 80 são, no Brasil, os anos da luta pelaredemocratização, e isso foi marcado pela existência de uma sociedade combativa,pela realização de greves, pelo engajamento das associações de moradores, pelasDiretas Já. A população começava a cobrar direitos do Estado e o texto constitucionalfoi resultado de todas essas lutas. Assim, embora o direcionamento mundial apontas-se para o enxugamento do Estado, a Constituição ainda conseguiu consagrar osdireitos sociais”, explica.

José Roberto lembra que o marco do avanço neoliberal no país é o governo deFernando Collor de Mello (1990-1992), com grande abertura da economia e diminui-ção da atuação do Estado. Foi justamente nessa época que começaram a ser feitas asleis que regulamentariam a Constituição. A lei nº 8.080 – Lei Orgânica da saúde,promulgada em setembro de 1990 – tinha essa função. Maria Luiza Jaeger, que foirepresentante da Central Única dos Trabalhadores (CUT) na Comissão Nacional daReforma Sanitária, ressalta que a lei foi aprovada pelo então presidente com vetos atrês importantes questões: “Foram vetados os critérios de repasse de recursos donível federal para estados e municípios, o funcionamento das instâncias de participa-ção social e o plano de carreiras, cargos e salários. A partir daí, houve uma grandepressão para que esses pontos voltassem ao texto. Por fim, a Câmara conseguiunegociar os vetos e foi aprovada, em dezembro do mesmo ano, a lei nº 8.142, em queestão presentes o controle social e o tópico do financiamento. A questão dos planosde carreira não conseguiu ser negociada”, conta.

A gestão de Collor foi marcada por denúncias de corrupção, o que levou aoimpeachment em 1992. De acordo com José Roberto, seu sucessor, Itamar Franco (1992-1994), deu continuidade ao processo de liberalização da economia. “Foi quandose fez, por exemplo, a privatização da Companhia Siderúrgica Nacional”, lembra.Mas o professor diz que foi a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso(1995-2003) que as políticas neoliberais ganharam força. “Houve uma série de refor-

mas na Constituição, com vistas a esvazi-ar o papel do Estado e diminuir os direi-tos sociais conquistados”, afirma.

O Sistema Único de Saúde, cria-do pela Constituição de 1988, começavaa tomar forma justamente no momentoem que o país resolvia fazer o ajuste desuas contas públicas. De acordo com oprofessor Paulo Mangeon Elias, da Fa-culdade de Medicina da Universidade deSão Paulo (USP), o importante para ogoverno da época era ter superávit. “Erapreciso fazer cortes. E a primeira área asofrer, em casos como esse, é sempre asocial”, explica, ressaltando que essa op-ção deve ser entendida do ponto de vis-ta dos administradores. “O governo en-tendia que não se podia deixar de inves-tir em infra-estrutura, porque isso era abase para a construção econômica e parao desenvolvimento nacional. Tambémnão era possível cortar o pagamento dosjuros das dívidas, pois o financiamentoexterno era necessário para fazer o de-senvolvimento. Então, os cortes foramfeitos nos gastos sociais. Era a precedên-cia do argumento econômico sobre o so-cial”, critica.

Diminuição do orçamento e SUS

Os cortes no orçamento das áreassociais atingiram em cheio o SUS, proje-to de universalização da saúde. “Quandoo SUS foi implantado, estimava-se queum terço dos brasileiros não tinha acessoao serviço de saúde. De repente, partiu-se para a universalização, o que deman-daria mais dinheiro. Só que, em vez dereceber mais recursos, a saúde recebeumenos. O orçamento do primeiro ano dogoverno Collor para o setor foi menor queo do último ano do governo Sarney”, ex-plica Paulo Elias.

Durante o governo Itamar Fran-co, o fim do repasse dos 30% dos recur-sos da Seguridade Social para a saúde foioutro golpe duro. “Com isso, o setor saú-

Os anos seguintes: a onda neoliberalEsvaziamento do papel do Estado dificulta consolidação do SUS

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expiatório, mas o problema real, no Bra-sil, é a relação que se estabeleceu entre opúblico e o privado: o público serve aoprivado e o privado não serve ao interes-se público geral. Existem vagas sobrandoem vários hospitais particulares, que po-deriam servir ao SUS de alguma manei-ra, mas não estamos acostumados a pen-sar assim. É preciso mudar de mentali-dade e pensar um serviço de saúde comoalguma coisa que tem que servir à socie-dade. Em países como Inglaterra e Ca-nadá, o setor privado atua, mascorresponde a no máximo 10% da pro-dução dos serviços”, diz.

Ele afirma que, hoje, para tentarreverter essa contradição, é preciso efe-tivar o SUS no cotidiano da cidadania.“Os hospitais governamentais que aten-dem ao sistema supletivo possuem omesmo equipamento e os mesmos mé-dicos para todos aqueles que são atendi-dos, mas a sala de espera e a marcação deexames é diferente. Isso porque a popu-lação de classe média não aceita sentarna mesma sala de espera que a popula-ção SUS”, diz.

E se não fosse a Constituição?Apesar das dificuldades que o país en-frenta no âmbito dos direitos sociais,Renato Lessa, professor de Teoria Políti-ca do Instituto Universitário de Pesqui-sas do Rio de Janeiro (Iuperj), acreditaque a Carta de 1988 impediu que o im-pacto das reformas econômicas da déca-da de 90 fosse mais forte. “As reformasque varreram o mundo atingiram o Bra-sil, mas esse processo aqui só não foi maisacentuado graças à Constituição. Ela foiuma barreira ao processo dedescaracterização do Estado enquantopromotor de bem-estar”, afirma. Para ele,a Constituição de 88 representou umasérie de avanços que não podem ser es-quecidos. “Ela é o coroamento de supe-ração do regime autoritário e da prepara-ção do caminho para uma sociedade maisaberta. Ela pode e vem sendo corrigidaao longo do tempo, e chega aos 20 anossem apresentar sinais de senilidade.Nosso maior desafio é cumprir essa Cons-tituição. Acredito que ela deva ser motivode muito orgulho para o país”, diz.

de perdeu, de uma hora para a outra, mais da metade dos seus recursos. A partir deentão, quem tinha que garantir esses recursos era o Tesouro Nacional. A saúde passoua ser vista como responsável pelos problemas financeiros do país. O Ministério daFazenda passou a alegar que não conseguia equilibrar os gastos públicos porque pre-cisava repassar dinheiro para a saúde”, diz ele.

No governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1999), o ministro da saúdeAdib Jatene, que também presidiu essa pasta no governo Collor, buscou uma novafonte de recursos: a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF),aprovada em 1994 para ser destinada exclusivamente à saúde. “Ele aprovou a CPMF,mas não levou o dinheiro por causa da mesma lógica: a de não aportar mais recursos nosetor saúde”, diz, referindo-se ao uso da Desvinculação de Recursos da União (DRU),que destinou parte da arrecadação a outras áreas.

Uma questão de cultura

Para Paulo Elias, existe uma diferença cultural entre o Brasil e os países docapitalismo central que influencia o resultado da adoção de políticas neoliberais aqui.“Em países da Europa, quando o neoliberalismo veio, já havia um Estado de bem-estar social estabelecido, com uma cultura de direitos sociais bastante consolidada.Aqui, tínhamos acabado de fazer uma Constituição que buscava isso, mas essa culturanunca existiu”, afirma. Segundo ele, a falta de dessa cultura afetou o modo como apopulação brasileira recebeu o cerceamento de seus direitos. “Quando o neoliberalismocomeçou a ser adotado na Inglaterra, por exemplo, não houve mudanças nos pilaresdo sistema nacional de saúde. Mudou-se a periferia, colocando competição gerenciada,fazendo transferência da administração para agentes privados, aumentando a autono-mia desses agentes. Mas ninguém conseguiu tirar recursos do sistema, porquejá havia uma cultura estabelecida, uma cidadania organizada. A pressão política nes-ses países é muito forte”, diz. E compara com o caso brasileiro: “Já no Brasil, semprehouve a idéia de que a classe média e o andar de cima têm uma coisa, enquanto oandar de baixo tem outra. Esse apartheid social está institucionalizado e naturalizadoaqui”, analisa.

Paulo Elias ressalta que, apesar de as políticas neoliberais pregarem o esvazia-mento do Estado, elas não são as únicas responsáveis pela dificuldade da consolida-ção de um sistema único de saúde. “Nossa legislação não é clara em muitos aspectos.O Estado brasileiro, na verdade, regula pouco. Algumas leis são contraditórias: dizemuma coisa, colocam a conjunção ‘mas’ e, em seguida, dizem o oposto. Isso acontececom o capítulo do SUS na Constituição: diz que haverá um sistema único de saúde,mas que a saúde é livre à iniciativa privada. Então, podemos dizer que a própriaConstituição não estabeleceu um sistema único. Não podemos afirmar que foi opensamento neoliberal que inviabilizou a construção disso. O problema já se apresen-tava desde o nascimento do SUS, no DNA”, diz. Para o professor, o próprio movimen-to sanitário tinha uma formulação técnica insuficiente na época em que o projeto doSUS foi feito. “O movimento tinha uma diretriz política brilhante, mas a experiênciatécnica não era proporcional à formulação política. O ‘quê’ era muito maior que o‘como’”, afirma ele que, na 8ª Conferência participou como representante da USP. Foipor isso que, segundo Paulo, o texto constitucional e, posteriormente, a lei orgânica,não foram revolucionários: “Há uma falsa idéia de que a lei era revolucionária, quandonunca foi. Ela cumpre um papel civilizador, mas consagra as relações e os princípiossociais já existentes. Quando se estuda a emergência dos sistemas de saúde no Brasil,entende-se o presente: eles nascem vinculados ao mundo do trabalho, como umseguro, mediante contribuição. Como é que, de uma hora para a outra, isso vai setornar um direito?”

O professor ainda chama a atenção para a importância de não culpar apenas osistema privado pelos problemas do SUS. “É fácil tomar o setor privado como bode

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GASTÃO WAGNER

SUS: 20 anos depoisCátia Guimarães

Gastão Wagner conhece o SUS por muitos ângulos.Viu o sistema nascer,

como militante da Reforma Sani-tária, na década de 80. Já nos anos2000, participou diretamente dagestão, sendo duas vezes secre-tário de saúde de Campinas e se-cretário executivo do Ministérioda Saúde, no início do governoLula. Antes, durante e depois, emtodos os intervalos do cargo degestor, atuou (e ainda atua) comoprofessor e pesquisador da Facul-dade de Ciências Médicas daUnicamp. Gastão fala sobre o SUSpor dentro — tanto do projetoquanto da sua implantação real.Nesse balanço, ele analisa os 20anos do sistema de saúde brasi-leiro a partir dos seus princípios,diretrizes e normatizações.E identifica um SUS multifa-cetado, com êxitos e contradi-ções. Trata-se, por exemplo, deuma iniciativa que nasceu comoproposta de radicalização demo-crática mas se afastou das basespopulares e não ‘ganhou’ a popu-lação. Um movimento que contoucom a participação ativa de inte-lectuais, hoje perde capacidadecrítica pela proximidade com osgovernos. Um projeto que foi con-tra a maré, e foi assolado por umaonda neoliberal. Por fim, um sis-tema que melhorou muito o aces-so da população à saúde e, sobre-tudo, mostra, ainda hoje, em al-guns espaços do país, que políti-ca publica estatal pode dar certo.

20 anos de SUS universal...Nós reduzimos a universalidade aoacesso, que é uma de suas expressões,mas não a única. Houve uma amplia-ção do acesso a diversos serviços com oSUS: vacina, tratamento de câncer,Saúde da Família. Mas o SUS é umareforma incompleta. O Brasil não con-seguiu, como o Canadá e Portugal, porexemplo, socializar a atenção à saúde.Porque não enfrentamos alguns con-flitos estruturais de um sistema esta-tal. O SUS é uma reforma sanitária ede política pública tardia. Quando omundo inteiro estava no auge doneoliberalismo, nós implantamos oSUS. Era o auge da crítica não só aosocialismo real, mas à intervenção doEstado e às políticas públicas. E essacrítica era muito ideológica, mas en-controu evidências numa dificuldadede funcionamento dos serviços esta-tais, tanto no socialismo real quantonas políticas públicas, de educação esaúde, dos países capitalistas. Eu achoque um desafio para o terceiro milê-nio é inventar modelos de gestão paragarantir o funcionamento desburo-cratizado, humanizado, com pouca

corrupção, dos serviços estatais de saú-de. No Brasil, o estatal sempre teveum controle privado muito grande: aelite corporativa-política-empresarial,os partidos políticos e o movimentosindical se reproduzem, inclusive eco-nomicamente, acumulam capital, seapropriando do Estado, do orçamentopúblico. O SUS parecia que ficaria foradessa tradição pela idéia de gestãoparticipativa, de tripartite, de critéri-os técnicos para repartir recursosepidemiológicos, populacionais. Emalguma medida isso aconteceu, maspouco. O SUS vendo sendo assaltadopor esse patrimonialismo.

O Estado no Brasil mudou pou-co nesses 20 anos?Eu acho que agravou o controle priva-do, porque as classes sociais da elite,do empresariado e os setores de elitedos trabalhadores estão mais fortes. Eo Estado foi enfraquecido pela ondaneoliberal. Países como Portugal, Fran-ça e mesmo a Inglaterra conseguiraminventar formas de se proteger dessaprivatização, de conseguir eficácia,humanização, eficiência, baixar cus-tos... No Brasil, aceitamos o discursofalsamente ingênuo, idiota e social-mente irresponsável da privatização,como se fosse possível organizar a vidaem sociedade sem serviços estatais,sem políticas públicas. Segurança pú-blica, saúde, educação, ecologia: se oEstado não fizer isso, não sei quem vaifazer. E, para isso, precisa ter funcio-nário público, avaliação de desempe-nho, controle social: aqui nós desmon-tamos tudo, tentando coisas comoOS (Organização Social), ONG(Organização Não-governamental),

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várias formas, foi se tornando focal esecundário o setor estatal, público pro-priamente dito, da educação. É umaprivatização branca. Hoje nós estamosvendo isso acontecer com a saúde.Muitas pessoas entram em convêniosque oferecem uma cobertura baixa efazem uso misto: consulta no convê-nio, insulina no SUS.

A existência do setor suplemen-tar foi um empecilho para auniversalização do direitoà saúde?No começo, isso era mais ideológico-cultural do que real. Agora, em 2007,o financiamento da saúde suplemen-tar passou a ser maior do que o do pú-blico. Inverteu. Então é um empeci-lho real. E é um empecilho de desejo,

de luta, de mobilização: as pes-soas passaram a aspirar,na sua cesta básica devida, a uma caminhone-te e a um plano de saú-de. Isso é paradoxal porque acontece

no momento em que os Estados Uni-dos, que é o país que tem a maior saú-de suplementar do mundo, está reven-do esse modelo. Porque, por mais di-nheiro que você tenha, o plano não vaigarantir a atenção integral. Há um re-conhecimento de toda a Europa da ne-cessidade de ter um setor público so-cializado de atenção à saúde. Aqui, nóscriamos o SUS no auge da pressãoneoliberal, contra a maré, e agora ve-mos essa inversão. Governos, socieda-de e opinião pública não assumem quequerem construir um sistema univer-sal dominante em relação ao sistemasuplementar. Não está no nosso dis-curso, nem na nossa política.

20 anos de SUS com eqüidade...A idéia de eqüidade em política pú-blica está muito ligada à renda, que éo discurso pregado pelo Banco Mundi-al. Então, para que SUS para todos?Dizem que o SUS tem que ser para ospobres. Vários intelectuais entraram

terceirização, sem atinar para a gravidade do problema. Por decorrência disso,nós temos uma dificuldade de pessoal. O SUS não tem uma política de pessoalrazoável, nem de formação, nem de seleção, recrutamento, carreira... Quem seapropria do Estado brasileiro, não são só os setores empresariais, são também oscorporativos, de trabalhadores. Quanto mais os de elite: médico, químico... Elesdesenvolvem mecanismos de controle privado — é um privado mais coletivo,mas é privado. Nesse sentido, um dos problemas é a não-integração dos médicoscom os pacientes e com os outros profissionais. Na maior parte do Brasil, osmédicos não cumprem horário, não passam em visita diariamente nos hospitais.É antitudo: anticlínico, antimédico. E é impune. Outro aspecto da reformaincompleta é que nós não integramos os hospitais ao SUS. Apesar de falar emintegralidade, o SUS é organizado por redes verticais: de atenção primária, saú-de mental etc. Se você for à Inglaterra ou a Portugal, a organização é territorial.Não tem diretor de hospital, mas sim diretor regional.

20 anos de saúde descentralizada...Isso foi uma solução, porque permitiu mostrar que o SUS era viável e expandiresse acesso. Mas, para não fragmentar em mil feudos e departamentos, era pre-ciso ter regionalização. Quem deveria fazer isso eram as Secretarias Estaduais eo Ministério da Saúde. Mas não fizeram.

20 anos de SUS com participação social...A Reforma Sanitária brasileira teve um grau de participação importante nosanos 80 e 70, o suficiente para aprovar a lei, para a maioria dos partidos votar naaprovação do Sistema Único de Saúde. Então, não vou dizer que o SUS foi umareforma de cima para baixo. Com o tempo, houve uma institucionalização dessemovimento. A gestão participativa foi desaquecida muito pelo enfraquecimen-to dos movimentos sociais no Brasil. Na origem já havia um desaquecimento.Os sindicatos da elite, que compuseram o PT, como os metalúrgicos, nuncativeram entusiasmo pelo SUS. No Congresso, eles sempre lutaram pelos contra-tos coletivos, no concreto, no real, para ampliar a saúde suplementar. E esse éum setor popular forte no Brasil, que chegou a eleger presidente da República. Ogoverno Lula, por exemplo, não priorizou o SUS. A visão que o governo tem doSUS é de programas focais, como o Brasil Sorridente e o SAMU. A idéia sistêmicade socializar a saúde não ganhou os governantes, não ganhou o sindicato e nãoganhou o povo brasileiro. Pesquisas mostram que vários segmentos sociais doBrasil não sabem que o Brasil tem um sistema público socializado de saúdeuniversal. Sabem que existe o Saúde da Família, o de Saúde Mental... Tudo issoé SUS, mas nunca criamos tensão para socializar o direito à saúde, com prazopara se ter atenção primária, médico de família. Dados mostram que hoje boaparte da população, ao pensar no direito à saúde, pensa no direito à saúde suple-mentar. E isso vem aliado à crise de participação social contemporânea, nomundo inteiro e no Brasil: uma desvalorização da política como instrumento,não só dos partidos, mas também dos sindicatos e das associações de bairro.Acho que, no SUS, há uma institucionalização da participação. Mesmo os repre-sentantes dos usuários são sempre os mesmos, boa parte deles são corporações.Agora, é como a democracia: é melhor ter do que não ter. Não sou a favor defechar conselho nem acabar com as conferências, como muita gente está pro-pondo. Temos que aperfeiçoar: coibir reeleição, fazer rotatividade, estimular ossetores sociais a participarem e discutir o tamanho e a dimensão do SUS noBrasil. Eu acho que, ultimamente, a saúde está perdendo terreno para o privado,como aconteceu com a educação nos anos 90. Não privatizaram as universida-des federais, porque não foi preciso. Elas se prejudicaram pelo crescimento domercado, com o MEC autorizando curso privado e agora criando o ProUni. De

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nesse jogo, de usar a eqüidade para tra-var o SUS e o setor estatal. Só que, nasaúde, consideramos a dimensão soci-al e econômica, mas também a dimen-são do risco: alguém que tem Aids pre-cisa ter mais assistência do sistemapúblico do que quem não tem, seja daclasse A, B ou C. Se for da classe E, vaiprecisar ter muito mais, porque a tera-pia vai ser mais ampla, tem que terbolsa-família, bolsa-alimentação... OBanco Mundial tem ‘n’ estudos dizen-do que o tratamento de Aids no SUS éineqüitativo. Porque, antes de melho-rar a cobertura entre os pobres, distri-buímos remédios para quem estavadoente com Aids ou câncer.

20 anos de um conceito ampli-ado de saúde...No geral, eu acho que existe uma am-pliação positiva. Ainda há dominânciade uma visão organicista, biologicistaentre os trabalhadores, mas não é amesma coisa. Quando trocamos a saú-de coletiva pelo modelo canadense depromoção da saúde, houve uma mu-dança de ênfase. A promoção em saú-de mexe com estilo de vida. Quando émais coletiva, trabalha com umabiopolítica de controle social: sobre ocigarro, o álcool, a vida. Já a saúde co-letiva tinha um discurso deconscientização, que queria mudar alei também, mas com um discurso deempoderamento das pessoas. Então, sepor um lado temos resultados positi-vos, por outro isso é perigosíssimo por-que traz um fundamentalismo sani-tário cada vez maior, demagógico,fácil de ser feito, que se confunde commoralismo e religião. É controle, sóque do bem. Além disso, esse discursode ampliação do conceito de saúdeàs vezes é reacionário. Faz crer que,com promoção, pode-se dispensarhospital; que com promoção ninguémvai ter câncer. Mentira: vai ter sim,só que mais tarde. É um falso queinteressa ao desmonte. Como noBrasil os ministros têm sempre baixagovernabilidade sobre a atenção àsaúde, a linha de fuga acaba sendoa promoção.

20 anos depois, o que sobrou do projeto de sociedade da Refor-ma Sanitária?Os setores minoritários tinham como projeto que o SUS fosse um pedaço daconstrução do socialismo. A maioria queria que o SUS fosse a construção de umpaís democrático. Acho que o SUS sempre foi um movimento reformista, nobom sentido da palavra. A idéia era: vamos colocar limite na questão do meio-ambiente e da medicalização, vamos fazer uma atenção à saúde estatizada,vamos tirar do mercado... O SUS teve, no começo, essa visão muito radicalmen-te democrática da sociedade e do próprio SUS. Acho que isso se perdeu.

O que o SUS trouxe de mais inovador?O conceito de gestão participativa do Estado, gestão articulada, integrada, en-tre diferentes esferas de governo: estadual, municipal e federal; uma distribui-ção de orçamento público com critérios epidemiológicos, técnicos, populacionaise do direito à saúde. Isso significa, por exemplo, dizer que quem tiver câncer temdireito a ser tratado, com remédio, cirurgia, a viver decentemente, ter moradia,ter ambiente saudável. São elementos muito radicais de inovação que dão vita-lidade ao entorno do SUS. E, por último, uma coisa concreta: o efeito demons-tração. Pedaços do país em que o Saúde da Família tem eficácia, em que se criacidadania, se humaniza o parto, mostram que é possível. Isso é muito forte doSUS: trazer evidências que enfraquecem o discurso do mercado de saúde suple-mentar.

20 anos atrás: o movimento sanitário cometeu algum erro?Não ter valorizado a política de pessoal. Não ter feito uma aliança mais históri-ca com os trabalhadores, subestimando-os. E termos subestimado o grau deprivatização que já existia no Brasil e as forças concretas que estavam atuandonesse sentido.

O financiamento tem sido apontado como o maior problema doSUS, 20 anos depois. É mesmo?Não é o maior problema, mas é insuficiente. Os 20 anos do SUS estão coincidin-do com a pior avaliação do SUS. Pesquisa feita pelo Ibope em São Paulo mostrouque o principal problema para a população passou a ser atenção à saúde. Já foisegurança e emprego, agora, em 2008, passou a ser saúde. Não acho que o finan-ciamento seja o maior problema: se o SUS fosse querido, nós arranjaríamos di-nheiro. Se o SUS fosse um projeto social mais enraizado, o dinheiro viria.

20 anos depois: é possível retomar o projeto que inspirou o SUS?Tudo isso está na pauta. O que me preocupa é que houve uma cooptação do SUSpor gestores. Parte da intelectualidade crítica foi cooptada. Somos todos funci-onários públicos estatais, que dependemos de cargos, planos de carreira. Perde-mos a referência crítica, que tínhamos, no passado, quando éramos mais inde-pendentes e autônomos. O SUS, o chamado movimento sanitário intelectual, émuito grudado ao governo. A todos os governos. O povo avalia que estamos nopior momento da saúde e nós ficamos babando? A retomada está um poucodifícil porque os intelectuais não são tudo, mas são importantes para o futuro.Há um discurso único, dos comentaristas políticos, de que não precisamos denada estatal, não precisamos de SUS. E nós temos outro discurso, mas que estámuito descolado do povo, da vida real. O povo fala, ninguém entende. E seentende, discorda.

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O Sistema Único de Saúde – SUS completa duas décadas de inscrição na Constitui ção brasileira. Esse é o mote do livro ‘Es-

tado, Sociedade e Formação Profissional em Saúde:contradições e desafios em 20 anos de SUS’, comoproduto de um Seminário de Trabalho sobre o mes-mo tema. Organizados pela Escola Politécnica deSaúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz, o objetivo deambos é ‘co-memorar’, no sentido de ‘lembrar jun-to’, e fazer um balanço desse período.O livro busca atualizar as discussões sobre as rela-ções entre Estado, Políticas Sociais e Saúde, sobre opar Saúde e Sociedade — trazendo as questões queperpassam a temática da Democracia, da Participa-ção e da Gestão em Saúde no Brasil contemporâ-neo — e ainda, sobre o tema do Trabalho e do

Trabalho em Saúde, enfatizando as relações que se configuram entre o Trabalho e aEducação na Saúde, nesse mesmo período.

Reunindo textos de dez autores de trajetória conhecida nas áreas de saúde ede educação, as análises realizadas nos artigos são atravessadas pela noção de totali-dade, e é nessa perspectiva que os autores se debruçam sobre essas práticas sociais,analisando-as sob diversas dimensões: políticas, econômicas, sociais e culturais. Em-bora compartilhem essa vertente, o que caracteriza a coletânea é a pluralidade nasanálises. Sem fugir das polêmicas e sob orientações diferenciadas, os diversos autoreslançam um olhar sobre esses 20 anos apontando contradições e desafios que estãopostos para aqueles que lutam por um SUS universal e democrático e por uma educa-ção profissional em saúde de caráter emancipatório.

A partir da produção de um balanço do período 1988-2008, Emir Sader, SoniaFleury, Jairnilson Paim, Ligia Bahia, Sergio Lessa, Virginia Fontes, Nelson Rodriguesdos Santos, Ruben Mattos, Lúcia Neves e Isabel Brasil levantam e aprofundam ques-tões que estão imbricadas numa conjuntura, que, como os organizadores apontam, éperpassada por uma contradição central entre a dominância do projeto neoliberal e aorganização de um sistema de saúde baseado legalmente nos princípios de universa-lidade, eqüidade e integralidade, com uma clara direção de reforço do setor público enão do mercado. Dentre os importantes avanços, os autores situam o progressivoprocesso de municipalização dos serviços de saúde, o crescimento da capacidadeinstalada na esfera pública, o acesso da população a procedimentos complexos comoa hemodiálise e o tratamento da AIDS. A disputa de sentidos, concepções e práticasentre o projeto neoliberal e o projeto democrático e popular é subjacente às análises,tanto no âmbito da saúde como no da educação. Daí decorre, entre outros aspectos, adiscussão em torno das tensões existentes entre: democracia representativa e demo-cracia deliberativa; o impulso socializante dos movimentos populares nos anos 1980 ea reconfiguração da classe trabalhadora num processo progressivo de subalternizaçãonos anos 1990; universalidade e integralidade versus focalização e segmentação; a lutapela desprivatização do SUS e os novos arranjos que recompõem a relação público-privado; o avanço do controle social e a intensificação do corporativismo, alterando osentido da participação; a progressiva descentralização e os descompassos e interes-ses em jogo nesse processo; a formação integral e politécnica e a formação para aempregabilidade e polivalência.

Esses são alguns aspectos que tornam essa obra uma referência para educado-res, cientistas sociais, profissionais de saúde, formuladores de política e militantesque reconhecem a saúde e a educação como práticas sociais estratégicas na construçãode um país justo e soberano.

Angélica FAngélica FAngélica FAngélica FAngélica Fonseca e Monica Vonseca e Monica Vonseca e Monica Vonseca e Monica Vonseca e Monica VieiraieiraieiraieiraieiraProfessoras-pesquisadoras da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fiocruz

Estado, Sociedade e Formação

Profissional em Saúde

Saúde em Debate: fundamentos da

reforma sanitária, organizado porSonia Fleury, Ligia Bahia e Paulo

Amarante – Cebes

Saúde: promessas e limites da

Constituição, de EleutérioRodriguez Neto, organizado porJosé Gomes Temporão e Sarah

Escorel – Editora Fiocruz

20 Anos da Constituição Cidadã de

1988 - Efetivação ou Impasse

Institucional?, organizado porJosé Ribas - Editora Forense

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02/setembroComeçava, em Brasília, a 10ª Con-ferência Nacional de Saúde, que foiaté o dia 6 de setembro de 1996.Os participantes discutiram o tema‘SUS: construindo um novo mode-lo de atenção à saúde para a quali-dade de vida’.

06/setembroFoi instituída a Política Nacionalpara a Integração da Pessoa Porta-dora de Deficiência pelo Decretonº 914/1993.

19/setembroFoi promulgada a lei orgânica dasaúde (nº 8.080), em 1990.

01/outubroDia Nacional de Doação do LeiteHumano foi instituído em 2003 como objetivo de promover a prática daamamentação natural para o com-bate à desnutrição e à mortalidadeinfantil.

24/outubroInstituiu-se a Contribuição Provisó-ria sobre Movimentação Financeira(CPMF), em 1996, para custear osserviços de saúde.

Voz ao povoDepois de 20 anos de ditadura (1964-1984), censura e silêncio,a voz do povo voltou a ser ouvida. Pela primeira vez na históriado Brasil, a população brasileira participou ativamente da ela-boração do texto constitucional, através das Emendas Popula-res, que eram enviadas ao Congresso diretamente ou por meiode entidades civis. Foram apresentadas 122 emendas à Comis-são de Constituição de Justiça de março de 1986 a julho de1987. Cada uma tinha, no mínimo, 30 mil assinaturas. A emen-da popular do capítulo do SUS na Constituição Federal de 1988,apresentada por Sergio Arouca, teve 50 mil assinaturas. Nãofoi à toa que Ulysses Guimarães, presidente da Assembléia Cons-tituinte, a chamou de Constituição Cidadã.

A alegria era tanta no dia da promulga-

ção da Constituição Federal de 1988,

que Ulysses Guimarães teve seu discur-

so de 33 minutos interrompido 59 vezes

por aplausos entusiasmados dos cons-

tituintes, governadores, convidados de

mais de 30 países e da população que

foi à cerimônia.

PRA LEMBRAR

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ACS: um trabalhador inventado pelo SUS

Profissional é fundamental para a Estratégia de Saúde da FamíliaMaíra Mathias

“Só no âmbito do SUS a profis-são de Agente Comunitário de Saúde fazsentido”. A frase é de Márcia ValériaMorosini, professora-pesquisadora doLaboratório de Educação Profissional emAtenção em Saúde da Escola Politécnicade Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), que aponta o ACS como um tra-balhador do SUS por excelência. Segun-do ela, outras experiências na utilizaçãode agentes de saúde na cobertura da aten-ção básica são possíveis, mas o trabalhodo ACS como existe hoje, só foi possívela partir da criação de um sistema que si-tuava a saúde como direito de todos oscidadãos. Mônica Nunes, professora daUniversidade Federal da Bahia, concordaque a ligação entre SUS e ACS é muitoestreita. “O ACS aparece como um pro-duto dessa proposta de inclusão socialde todos no acesso não só ao sistema desaúde, porque isso é insuficiente, mas àsaúde de uma forma mais ampliada”, afir-ma. E completa: “O ACS está organica-mente ligado ao SUS”.

Das visitadoras sanitárias aos ACS

A primeira vez que se ouviu falarem um trabalho semelhante ao do ACS,no Brasil, o SUS ainda não era nem pro-jeto. Seu antepassado mais remoto fo-ram as visitadoras sanitárias, ligadas aoServiço Especial de Saúde Púbica (Sesp),criado em 1942. O papel das visitadorasera realizar visitas domiciliares, ativida-des de promoção à saúde, prevenção dedoenças, monitoramento e acompanha-mento de grupos de risco, além de vigi-lância sanitária.

Essas atividades foram sendoampliadas para outras regiões até que,em 1960, foi criada a Fundação ServiçoEspecial de Saúde Pública. SegundoJoana Silva e Ana Dalmaso, no livro ‘Agen-te Comunitário de Saúde: O Ser, o Saber,o Fazer’, a Fundação Sesp foi pioneira nacriação de modelos para propostas deampliação da cobertura de saúde, que serefletem, hoje, no Pacs e no PSF, como a

oferta organizada de serviços, a aborda-gem integral da família, o trabalho com acomunidade, e, claro, a visita domiciliar.

Outro programa que ajudou a con-figurar o perfil dos ACS de hoje foi oPrograma de Interiorização das Ações deSaúde e Saneamento (Piass) Nordeste,que, de 1976 a 1979, privilegiou o recru-tamento de auxiliares que morassem nolocal beneficiado. A idéia de engajamentoda comunidade no programa, que marcao trabalho do ACS, também estava pre-sente aqui.

A partir de 1979, o Piass se trans-formou em uma política nacional. Em suafase de maior expressão, o projeto deExpansão de Serviços Básicos de Saúdee Saneamento em Área Rural – Vale doRibeira (Devale) contribuiu para a cons-trução do que viria a ser o ACS ao estabe-lecer que seus agentes, além de seremmoradores das comunidades, tambématuassem em postos de saúde e tives-sem atribuições tanto na área de açõescomunitárias quanto na de ações de aten-ção individual.

Em 1987, foram lançadas de umavez por todas as bases para a transforma-ção do trabalho dos agentes comunitári-os em política pública. Trata-se do Pro-grama de Agentes de Saúde do Cearáque, de proposta de socorro às popula-ções atingidas pela seca, se transformouem uma ampla ação de promoção à saú-de, utilizando o trabalho dos ACS em lar-ga escala. “O ACS, como está concebidohoje, no SUS, surgiu no Ceará”, afirmaMárcia Valéria. E é aqui que entra o SUS.Porque, segundo ela, um ano depois, coma aprovação da nova Constituição e doSistema Único de Saúde, o Brasil teria,pela primeira vez, uma política públicanacional que privilegiasse uma concep-ção ampliada de saúde. E deu certo: em1991, o Ministério da Saúde criou o Pro-grama Nacional de Agentes de Saúde(Pnacs), com o objetivo de unir as váriasações que existiam espalhadas pelo paíssob uma única orientação. Um ano de-pois, o Pnacs se transformou no Progra-

ma de Agentes de Saúde (Pacs). A me-lhora dos indicadores de saúde apresen-tados pelos municípios que adotaram oPacs favoreceu a criação do Programa deSaúde da Família (PSF), em 1994. Hoje,o PSF é entendido como uma estratégiaque altera o modelo assistencial de saú-de centrado na doença, no médico e nohospital para responder à demanda poratenção integral — como manda o SUS.Juntos, Pacs e PSF compõem a Estraté-gia de Saúde da Família (ESF).

Mais Saúde: 240 mil ACS até 2011

Os resultados positivos de pes-quisas sobre o impacto da atenção básicalevaram o atual governo a ampliar o nú-mero de equipes. A ESF vai contar, até2011, com 40 mil equipes – hoje são 28mil –, segundo as metas do Mais Saúde(PAC da Saúde), lançado em dezembrode 2007. Com essa ampliação, o númerode ACS também crescerá, passando dos221 mil atuais para 240 mil.

Os avanços conquistados pelosACS ao longo desses 20 anos de SUSmostram, por um lado, a capacidade deorganização dessa categoria e, por outro,a importância que eles adquiriram no sis-tema como um todo. Houve um tempo,por exemplo, em que bastava saber ler eescrever para estar apto a realizar o traba-lho dos agentes. Hoje, existe, propostopelos Ministérios da Saúde e da Educa-ção e formalizado pelo Conselho Nacio-nal de Educação, um curso técnico deACS. O que falta é financiamento parasua realização em boa parte dos estados.Outras conquistas importantes se deramna área de gestão do trabalho. Em 2002,eles conseguiram fazer a sua atividade virarprofissão, com a promulgação da lei10.507. Em 2006, outra lei, a de nº 11.350,criou o processo seletivo público espe-cificamente para ACS e agentesde endemias, num esforço de despre-carização das relações de trabalho dessesprofissionais.

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Ao ver o nome do verbete que dá origem a esta matéria, você deve estar pensando que se

trata de mais uma receita para aformação de trabalhadores multiface-tados, com diversas habilidades, quedominem diferentes técnicas e respon-dam a vários estímulos ao mesmo tem-po. Em resumo, aquele sujeito que omercado de trabalho atual diz que pre-cisa: flexível, empreendedor e com ca-pacidade de adaptação. Quer um con-selho para recomeçar a ler este texto?Esqueça toda essa conversa e volte ase situar no contexto do SUS — perso-nagem de todas as páginas desta revis-ta — com seus princípios, diretrizes eprojeto de sociedade.

É que a idéia de poli-tecnia complementa,pelo campo da educação,a defesa do direito uni-versal e da perspecti-va ampliada de saúdetrazida pelo SUS. “O projeto

de politecnia na criação da EscolaPolitécnica de Saúde Joaquim Venân-cio (EPSJV) traduzia a articula-ção entre o conceito ampliado de saú-de e o conceito de relação trabalho-educação, para além do capital”,explica Isabel Brasil, professora- pes-quisadora da EPSJV, citando uma ex-periência concreta de educação poli-técnica na saúde.

O objetivo do projeto de educa-

ção politécnica é superar a fragmenta-

ção do conhecimento e, com isso, bus-

car uma sociedade justa, digna e igua-

litária. A história é mais ou menos as-

sim: numa sociedade como a nossa, a

escola também serve de cenário para a

reprodução da desigualdade social. E

o principal caminho para essa ‘ajuda

involuntária’ que a educação presta é

a separação entre conhecimento geral

(teórico) e conhecimento aplicado

(prática). Isso quer dizer que, para as

classes populares, o acesso à escola,

quando não é negado, fica restrito à

formação instrumental para o traba-

lho. O conhecimento mais amplo e fun-

damentado, da ciência e da cultura,

tornou-se privilégio de pequenos gru-

pos, que precisam dele para continuar

como dirigentes. É essa dualidade que

a educação politécnica quer superar.

Mas atenção: o esforço não é de

substituir o treinamento prático dos

trabalhadores por uma formação teóri-

ca, e sim de integrar essas duas dimen-

sões do saber. No primeiro número da

Revista ‘Trabalho, Educação e Saúde’,

Dermeval Saviani, professor da Facul-

dade de Educação da Unicamp, expli-

ca assim o conceito: “A idéia de

politecnia envolve a articulação entre

trabalho intelectual e trabalho manu-

al, implicando uma formação que, a

partir do próprio trabalho social, de-

senvolva a compreensão das bases da

organização do trabalho na nossa soci-

edade e que, portanto, nos permita

compreender o seu funcionamento”.

No ‘Dicionário de Educação Profissio-

nal em Saúde’, editado pela EPSJV, o

professor e pesquisador da Universida-

de Federal Fluminense José Rodrigues

define assim as possibilidades de um

projeto de politecnia: “A construção de

uma concepção de educação poli-

técnica precisaria, necessariamente,

estar embasada em práticas pedagógi-

cas concretas que deveriam buscar

romper com a profissionalização es-

treita, por um lado, e com uma educa-

ção geral e propedêutica, livresca e

descolada do mundo do trabalho, por

outro”. Para Isabel Brasil, um exem-

plo dessa prática pedagógica necessá-

ria à formação politécnica é a adoção

do currículo integrado. “Mas quando

falo em currículo integrado e inter-

disciplinaridade, não estou me refe-

rindo a esse modelo, muito em moda,

de extinção das disciplinas. Falo de

um currículo que integre conteúdos

das Ciências Humanas e das cha-

madas ciências duras, entre si e com

a prática”, explica.

Para entender melhor esse es-

quema, é preciso ‘desnaturalizar’ pelo

menos duas idéias muito comuns nos

dias de hoje. A primeira é aquela se-

gundo a qual o objetivo da educação é

facilitar a entrada no mercado de tra-

balho. Marise Ramos, professora-pes-

quisadora da EPSJV e da Universida-

de do Estado do Rio de Janeiro, lem-

bra que a educação politécnica não

pode ser pensada de forma descolada

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do conceito de formação omnilateral.

E o que isso quer dizer? “Formação ple-

na, integral do ser humano. Uma for-

mação que desenvolva todas as

potencialidades do ser de satisfazersuas necessidades materiais e espiri-tuais e, assim, transitar entre a neces-sidade e a liberdade. Trata-se, então,da formação de um ser que é, ao mes-mo tempo, produtivo e criativo”, ex-plica. O horizonte da educação, diz,tem que ser a emancipação humana,nunca a adaptação.

O outro conceito que é precisoser repensado para que se entenda aidéia de politecnia é o de trabalho. Issoporque nos acostumamos a definir otrabalho a partir da realidade do siste-ma capitalista. Com isso, perdemos adimensão histórica, já que não foi sem-pre assim. O próprio Saviani, no mes-mo artigo, propõe que trabalho sejadefinido como aquilo que caracterizaa humanidade. Segundo ele, essa é a

diferença fundamental entre o homem e os animais. “Os animais têm sua exis-tência garantida pela natureza e, por conseqüência, se adaptam à natureza. Ohomem tem de fazer o contrário: ele se constitui no momento em que necessitaadaptar a natureza a si”, explica, e resume: “Trabalhar não é outra coisa senãoagir sobre a natureza e transformá-la”. Essas são definições importantes porque,pela perspectiva politécnica, a organização da educação — e, portanto, do currí-culo — se dá, necessariamente, pelo conceito e pela prática do trabalho. É o queos estudiosos desse campo chamam de ‘trabalho como princípio educativo’.

Politecnia e SUS

As primeiras publicações sobre politecnia são contemporâneas do Movi-mento da Reforma Sanitária, que deu origem ao SUS. Todas essas iniciativassão, segundo Isabel Brasil, frutos do pensamento crítico e da vontade política defortalecer a esfera pública voltada para a saúde da população. “Tratava-se deações voltadas para a universalização e democratização da saúde e a reafirmaçãode uma educação emancipadora dos trabalhadores de nível médio e fundamen-tal dessa área. Uma formação que considera que eles desenvolvem um trabalhohumano, e, portanto, reafirma a condição intrínseca de pensar e fazer”, diz.

Mas as coincidências não são apenas temporais — há semelhanças tam-bém no projeto de sociedade que esses conceitos e ações carregam. Marise Ramos

acha que os princípios do SUS são convergentes coma concepção de politecnia por várias razões. “Primeiro, porque a

atenção à saúde, a assistência e o cuidado, são processos que visam assegurar aprodução e a reprodução da vida humana”, diz. Por isso, a área da saúde podeservir de exemplo para aquele conceito de trabalho mais amplo — que vai alémda realidade capitalista — porque atua na relação entre homem e natureza, vidae homem. Sem essa concepção trazida pela Reforma Sanitária, segundo Marise,o trabalho em saúde seria entendido como mercadoria, portanto, como apenasmais um exemplo das relações sociais de exploração. “Sob os princípios daintegralidade e da universalidade, o trabalho em saúde pode se contrapor àalienação e se traduzir como processo de criação humana”, completa.

O conceito ampliado de saúde, que vai além da doença, também permi-te, na opinião de Marise, uma aproximação com a idéia de politecnia. Porque, aoentender que a saúde depende da qualidade de vida, faz com que se busquecompreender todas as dimensões da realidade social que determinam as condi-ções de vida das pessoas. “Por isso, a educação politécnica em saúde não podeficar restrita aos serviços: precisa ir ao SUS. Mas não pode se deter ao SUS, e simcompreendê-lo como universo específico no qual se produzem condições objeti-vas e subjetivas de manutenção da vida humana, que é determinada por relaçõeseconômicas, físico-ambientais, históricas, culturais, dentre outras”, explica. Econclui: “Se a plena formação humana e sua realização como espécie é umautopia em construção, assim também nos parece ser o pleno direito à saúde e aprodução social da vida em condições de igualdade e qualidade, questões tam-bém presentes no projeto do SUS. Por isso, a educação politécnica pode ser umamediação importante para a consolidação desse projeto. A educação fragmenta-da e o processo de trabalho dividido social e tecnicamente é, ao contrário, oimpedimento da consolidação desse projeto”.

"(Politecnia) refere-se a umconceito central do pensamento pe-dagógico que toma o trabalho comoprincípio educativo. Ele compreendeuma avaliação crítica da visão pragmáti-ca e instrumentalista das relações en-tre educação e trabalho e do dualismoentre ensino geral/acadêmico e ensinoprofissional, que seriam expressões dadivisão social do trabalho. Do conceitode politecnia, surgem propostas sobrea formação omnilateral (do latim ominis= tudo e latus = lado, significa desen-volvimento integral do homem) a par-tir da integração e prática, da culturageral e tecnológica e das diversas di-mensões do processo educativo (inte-lectual, tecnológico, físico, estético,ético, lúdico, etc.). Isso não significaensinar tudo, mas orientar o processode ensino/aprendizagem pelo princí-pio ontológico da totalidade."

*Fonte: Fernando Fidalgo e LucíliaMachado

- Verbete: Politecnia/Monotecnia do Dicio-

nário da Educação Profissional

Saiba maisSaiba maisSaiba maisSaiba maisSaiba mais

- Dicionário de Educação Profissional em Saúde – editado pela Escola Politécnicade Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz, em 2006.- Revista Trabalho, Educação e Saúde – editada pela Escola Politécnica de SaúdeJoaquim Venâncio/Fiocruz, nº 1, v. 1.