« mãe não tem limite, é tempo sem hora, luz que não se ... · acha que não vamos ter que...

10

Click here to load reader

Upload: lamhanh

Post on 11-Feb-2019

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: « Mãe não tem limite, é tempo sem hora, luz que não se ... · Acha que não vamos ter que chegue para pagar isto tudo, é? ... cia: tem-se-me queixado muito de dores de barriga

«...Mãe não tem limite, é tempo sem hora, luz que não se apaga quando sopra o vento e chuva desaba...»

Carlos Drummond de Andrade

Page 2: « Mãe não tem limite, é tempo sem hora, luz que não se ... · Acha que não vamos ter que chegue para pagar isto tudo, é? ... cia: tem-se-me queixado muito de dores de barriga

Outra manhã de rebuliço no lar Nova Primavera. Os be-bés choramingavam num coro desafinado, reclamandoa primeira refeição do dia, enquanto as jovens mães se des-dobravam em gestos mais ou menos desajeitados, prepa-rando biberãos, mudando fraldas, procurando nas gavetasas roupinhas que haviam de vestir aos filhos, quase todasoferecidas por gente que ia deixando sacos no centro paro-quial ou ao cuidado de instituições humanitárias que, de-pois, as distribuíam por quem precisava.

Após a primeira tarefa do dia, as mães desciam à cozinha,onde as esperava a mesa do pequeno-almoço e a responsávelpelo lar, que escolhia aquela hora para dar instruções à cozi-nheira sobre as ementas do dia. E a Belmira, ajudada por umadas jovens residentes, lá ia servindo o café com leite, recla-mando do muito serviço que tinha pela frente e da neces-sidade de uma ajudante, que os ossos já lhe doíam e a idadenão lhe permitia tanto esforço como dantes. Na verdade,a Belmira trabalhava no lar desde a sua fundação, a pedidoda patroa, a dona Ilídia, que já a conhecia de longa data,muito antes de enviuvar e se entregar aos cuidados das ado-lescentes que, de um dia para o outro, se viam com um filho

11

1

Page 3: « Mãe não tem limite, é tempo sem hora, luz que não se ... · Acha que não vamos ter que chegue para pagar isto tudo, é? ... cia: tem-se-me queixado muito de dores de barriga

nos braços, sem saberem o que fazer, já que, na maioria doscasos, as famílias não podiam (ou não queriam) ajudá-las.

Naquela manhã, a Sílvia, uma jovem angolana de 16 anos,estava eufórica com a perspectiva de poder deixar o larNova Primavera e, finalmente, vir a ter um quarto para sie o filho de 6 meses, a quem dera o nome de André. Ani-mada, contava às outras residentes os planos que tinha parao futuro que se adivinhava próximo. As outras iam-na ou-vindo enquanto tomavam o café da manhã, procurandomostrar à Sílvia que estavam felizes por ela. Algumas logose puseram a sonhar (pela milésima vez) com o dia em quetambém elas poderiam ter uma esperança fundamentada,como parecia ser o caso da Sílvia.

Depois de arrumarem a cozinha, cada uma das jovensvoltou à sua tarefa principal — cuidar dos filhos —, que, jáimpacientes, reclamavam atenção com um alarido que en-chia a casa da porta ao telhado.

Antes de subir ao primeiro andar, a Sílvia foi à sala terdois dedos de conversa com a dona do lar.

— Conta-me lá isso melhor, rapariga — pedia Ilídia, fazen-do um gesto para que a Sílvia se sentasse ao seu lado no sofá.

— Pois é, dona Ilídia — começou a jovem —, aqueleprimo do meu pai de que lhe falei no outro dia sempre mevai arranjar o quarto, lá para Chelas.

— Hum... E quanto a trabalho? Como é que vai ser?— Ele diz que me arranja um emprego nas limpezas lá

na oficina onde ele trabalha.— E esse quarto? Quanto é que te vai custar? Olha que,

provavelmente, só te vão pagar o salário mínimo, e isto seconseguires emprego a tempo inteiro...

12

Page 4: « Mãe não tem limite, é tempo sem hora, luz que não se ... · Acha que não vamos ter que chegue para pagar isto tudo, é? ... cia: tem-se-me queixado muito de dores de barriga

— Bem, isso ainda não sei, mas eu vou ficar uns tempos,só uns tempos, a dividir o quarto com a mãe desse meu pri-mo, que já é reformada.

— E que idade é que ela tem?— Parece-me que oitenta, mas não tenho a certeza. De

qualquer forma, o meu primo diz que ela me pode ajudara tomar conta do André, enquanto eu estiver no serviço.

— Hum...— Não é lá grande coisa, mas é melhor do que nada...— Bom, primeiro, sabe-se lá se isso vai ser mesmo como

o teu primo disse. Pergunta quanto é que te vão pagar ao certoe quanto vais ter de dar pelo quarto. E também achava bemque fosses lá falar com a tal mãe do teu primo, para vero que ela pensa de tudo isto. Sabes, as pessoas de muitaidade, às vezes, têm dificuldade em se adaptarem a novassituações, percebes, Sílvia? Eu não estou a dizer que a talsenhora não queira ajudar-te, mas convinha que fosses atélá com o teu filho, para veres o que ela tem para te dizer.Pode ser que ela até goste de te dar uma mão, espero bemque sim! No entanto, é melhor ires ver tudo como deve ser.Não acho bem que saias daqui com o bebé sem teres algu-mas certezas. Se fosses só tu, ainda vá... Mas, com o André,sabes que é uma grande responsabilidade.

— Eu sei, dona Ilídia. Se sei... Mas tenho cá um palpitede que tudo há-de correr bem, se eu conseguir o tal empre-go, claro! Tenho muita vontade de trabalhar, fazer qualquercoisa para além de tomar conta do André... Sabe, às vezes,parece que já nem sei fazer mais nada...

No primeiro andar da casa, depois de mudar a fralda aoPedro, a Marta levou-o ao colo até à janela do quarto que

13

Page 5: « Mãe não tem limite, é tempo sem hora, luz que não se ... · Acha que não vamos ter que chegue para pagar isto tudo, é? ... cia: tem-se-me queixado muito de dores de barriga

partilhava com outra residente, a Bruna Mendes, que, talcomo ela, tinha 15 anos, mas já tinha uma filha de 2 anos,a Sara. A Bruna gozava da simpatia de todas as colegas,porque, para além de ter um ligeiro atraso mental, guardavano mais íntimo de si uma história cruel, que ela, no entanto,nunca comentava. De facto, um desconhecido sem escrú-pulos tinha-se aproveitado da sua ingenuidade e da imensaternura com que tratava toda a gente e deixara-lhe marcasque jamais passariam. Contudo, para a Bruna, tudo quantoimportava era que passara a ter alguém com quem brin-car — uma filha lindíssima que não mostrava sinais domenor atraso no seu desenvolvimento, sendo a mais taga-rela e alegre de todas as crianças que viviam no lar NovaPrimavera.

— A Sílvia teve sorte! — observou a Marta, ainda à ja-nela, com o filho ao colo. — Deus queira que não lhe te-nham feito promessas à toa...

— Eu cá, desde que a minha mãe morreu, prefiro ficarcom a dona Ilídia — confessou a Bruna, com o seu sorrisoinfantil, sentada no chão em frente da filha.

— Tu lembras-te da tua mãe, Bruna? — quis saber a Marta.— Mais ou menos... Eu só tinha oito anos quando ela

ficou muito doente. Foi uma tosse que lhe deu. Uma vizinhatrouxe um xarope e outras coisas assim, mas ela nunca maisparou de tossir. Eu acho que o xarope devia estar estragado,porque uma vez experimentei e sabia muito mal!

Impressionada com o relato, a Marta mudou o rumo daconversa, dirigindo-se ao filho:

— Um dia, também havemos de ter um quarto só paranós, sabias, Pedro? E depois uma casa, não muito grande,

14

Page 6: « Mãe não tem limite, é tempo sem hora, luz que não se ... · Acha que não vamos ter que chegue para pagar isto tudo, é? ... cia: tem-se-me queixado muito de dores de barriga

mas muito gira, com um jardim ou, pelo menos, com umavaranda grande para tu brincares ao sol, não é? E depoishavemos de convidar a Bruna e a Sara, claro! E vamosdivertir-nos muito, ’tá bem? — E fez-lhe cócegas atrás daorelha minúscula.

E o Pedro ria-se — com aquele riso de bebé que aindanão é bem um riso e que, num momento, transformava avida de Marta num pequeno paraíso habitado por seresmágicos, todos munidos de varinhas de condão.

Depois do almoço, a Marta deixou o filho ao cuidado dasoutras residentes e, porque era o seu dia de ajudar nas com-pras, saiu com a dona do lar rumo ao supermercado. Custa-va-lhe sempre deixar o Pedro, mesmo por pouco tempo,parecendo-lhe que algo de terrível poderia acontecer-lhea qualquer momento, durante a sua ausência. Contudo, asnormas do lar eram para cumprir por todas e tinham lógica,já que a dona Ilídia e a Belmira não podiam tratar da casasozinhas. Por outro lado, era preciso que as raparigas apren-dessem a ser donas de casa, já que o futuro (que, para elas,começara mais cedo do que o previsto) exigia um saber deexperiências feito.

Chegadas ao supermercado, foram buscar dois carrinhos,que só os pacotes de fraldas ocupavam um espaço enorme.E lá seguiram ambas, por entre as prateleiras a abarrotarde coisas para as quais não havia verba que chegasse. Ana-lisando os preços, Ilídia lá repetia o rol de queixas contraa carestia de vida, lamentando a magreza do subsídio querecebia para gerir uma casa com oito crianças e respectivosbebés...

15

Page 7: « Mãe não tem limite, é tempo sem hora, luz que não se ... · Acha que não vamos ter que chegue para pagar isto tudo, é? ... cia: tem-se-me queixado muito de dores de barriga

E os carrinhos lá se foram enchendo de farinhas lácteas,iogurtes, pacotes de leite, fruta e, claro, inúmeros pacotõesde fraldas descartáveis.

Já na fila em frente da caixa registadora, a Marta quissaber o que tanto estava a preocupar a dona Ilídia:

— O que foi? Acha que não vamos ter que chegue parapagar isto tudo, é?

— Não, filha, não é isso. Sabes, ando ralada com a Már-cia: tem-se-me queixado muito de dores de barriga... Sei lá,pode ser do apêndice!

— Talvez não, dona Ilídia. Se calhar foi qualquer coisaque lhe caiu mal.

— Não. Vou levá-la ao pediatra, porque anda muito des-coradita e com pouco apetite.

Ilídia falava sempre das «suas meninas» com ternura, es-pecialmente da Márcia, a mais nova que actualmente resi-dia no lar, com apenas 13 anos. Desde que enviuvara, oitoanos antes, Ilídia decidira realizar um sonho antigo: já quenão tivera filhos, iria dedicar-se a cuidar de quem os tinhae não sabia como cuidar deles. Tinha agora 50 anos, masparecia um pouco mais, apesar da genica que todos lhe co-nheciam. Sabia que não era prudente afeiçoar-se dema-siado às raparigas que acolhia, já que, mais tarde ou maiscedo, acabariam por deixar o lar, rumo a uma vida diferente(às vezes, bem mais atribulada). Porém, enquanto pudesse,fazia questão de facilitar a vida daquelas mães tão novas,tão desorientadas, tão carentes de quase tudo. Gostava mui-to dos bebés, isso era certo, mas, no fundo, acabava por seenternecer ainda mais com as raparigas, que mais pareciamirmãs do que mães deles. E a Márcia, com apenas 13 anos,

16

Page 8: « Mãe não tem limite, é tempo sem hora, luz que não se ... · Acha que não vamos ter que chegue para pagar isto tudo, é? ... cia: tem-se-me queixado muito de dores de barriga

era um desses casos que lhe haviam aparecido e que logoa tinham deixado muito ansiosa, desejosa de dar uma ajuda,já que o resto do mundo parecia não se importar. Como se-ria possível que não se importassem?!, perguntava-se vezessem conta. Algumas das jovens até tinham pais! Mas eraassim mesmo, conforme ela bem sabia. Por experiência.

— Este brinquedo para o Pedro sou eu que pago — lem-brou a Marta, colocando no tapete rolante o que estava noscarrinhos. — O meu pai mandou-me a «mesada»! Destavez, nem se atrasou muito!

— E da tua mãe, tiveste notícias?— Liguei ontem lá para casa, mas ninguém atendeu.

Depois, telefonei para o cabeleireiro onde ela trabalha, masdisseram-me que ela não estava...

Seguiu-se o ritual de meter as compras nos sacos, os sa-cos nos carrinhos e, finalmente, tudo no porta-bagagens dacarrinha de Ilídia.

Chovia quando regressaram ao lar. Em frente da gara-gem, Ilídia gritou para que a Belmira a ouvisse e fosse aju-dar a levar as compras para a cozinha.

Como habitualmente, o jantar foi interrompido várias ve-zes pelo choro dos bebés da casa — dentes a nascer, cólicasabdominais, rabujice de sono...

— Tu é que tens sorte, Marta — disse a Júlia, que já su-bira ao primeiro andar três vezes durante o jantar. — O teuputo é raro fazer-te levantar da mesa! Deve ter vocação parasanto...

— Susana e Ivete — chamou a dona Ilídia —, é o vossodia de arrumar a cozinha...

17

Page 9: « Mãe não tem limite, é tempo sem hora, luz que não se ... · Acha que não vamos ter que chegue para pagar isto tudo, é? ... cia: tem-se-me queixado muito de dores de barriga

E as duas raparigas, ambas de 14 anos, lá se levantaramda mesa para levarem a cabo a tarefa que, naquele dia, lhesestava destinada e que tanto desagradava a todas. Contudo,visto que a Belmira saía às 5 da tarde, apenas deixando ojantar pronto, só distribuindo as tarefas domésticas por to-das as residentes era possível manter a ordem no lar NovaPrimavera. As jovens não punham em questão as ordensda dona Ilídia, já que, no fundo, o que lhes era pedido faziasentido e era a única forma justa de conviver naquela casa,sempre com tanto para fazer.

Pouco passava das 9 da noite quando a Marta, apósmudar a fralda ao filho, lhe deu para as mãos o brin-quedo que comprara no supermercado — uma bola coloridade borracha, que, apesar de não lhe parecer digna do seuprincipezinho, estava a um preço que ela pôde pagar. Noentanto, o Pedrinho não ligou grande importância ao brin-quedo novo, preferindo entreter-se com o ursinho de pe-luche que fora da mãe. Era um boneco castanho, já muitousado, que, contudo, mantinha um ar patusco. A Martanunca se separara dele e, agora, era o filho quem comele brincava, sobretudo antes de adormecer, e era com eleque dormia, como a mãe fizera mesmo ultrapassada a in-fância.

Finalmente, o Pedro adormeceu. A Marta pôde então irlavar-se para se deitar. Na casa de banho, ao ver-se ao espe-lho, reparou que o cabelo já estava sem corte e precisavada mão de uma profissional. Quando ia ao cabeleireiroonde a mãe trabalhava, faziam-lhe um desconto simpático,mas era preciso combinar as coisas com a mãe e, na ver-dade, já não a via fazia três semanas.

18

Page 10: « Mãe não tem limite, é tempo sem hora, luz que não se ... · Acha que não vamos ter que chegue para pagar isto tudo, é? ... cia: tem-se-me queixado muito de dores de barriga

De pijama vestido, voltou ao quarto e foi dar um beijoao filho. Vendo que ele parecia ter pegado no sono, pensouem descer ao rés-do-chão para ir dar uma espreitadelaà televisão. Porém, ao afastar-se da caminha do filho, ou-viu-o choramingar e voltou para trás. Então, fazendo-lhefestas na cabeça, com a maior suavidade, cantou para ele,como costumava fazer. E a sua voz, subitamente transfor-mada por alguma força desconhecida, parecia a de um anjo:quente e doce, muito doce. Uma voz de açúcar em ponto.

19