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Revista bimestral do Lectorium Rosicrucianum DA LUZ PARA A LUZ A BUSCA DO EU VERDADEIRO O CAMINHO INDICADO POR HERMES O HOMEM QUE ESCUTAVA A PEDRA A UNIDADE DOS PEREGRINOS NA SENDA MANI, O DOM DA LUZ OS SONS SE PERDEM NO INFINITO VENCER O ENGANO PentagramA 2005 número 4

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Revista bimestral do

Lectorium Rosicrucianum

DA LUZ PARA A LUZ

A BUSCA DO EU VERDADEIRO

O CAMINHO INDICADO POR HERMES

O HOMEM QUE ESCUTAVA A PEDRA

A UNIDADE DOS PEREGRINOS NA SENDA

MANI, O DOM DA LUZ

OS SONS SE PERDEM NO INFINITO

VENCER O ENGANO

PentagramA2005 número 4

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PENTAGRAMA

ÍNDICE

2 DA LUZ PARA A LUZ

5 A BUSCA DO EU

VERDADEIRO

8 O CAMINHO INDICADO

POR HERMES

14 O HOMEM QUE ESCUTAVA

A PEDRA

18 O HOMEM NATURAL E

O HOMEM ESPIRITUAL

22 A UNIDADE DOS

PEREGRINOS NA SENDA

24 MANI, O DOM DA LUZ

32 OS SONS SE PERDEM

NO INFINITO

34 VENCER O ENGANO

ANO 27NÚMERO 4

M A N I , O D O M D A L U Z

“O ensinamento de Mani

corresponde perfeitamente à finalidade

e à essência do cristianismo ensinado

pelos rosacruzes através dos séculos.

Por conseguinte, Mani é uma de

suas principais fontes de inspiração.”

J. van Rijckenborgh

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jovem alma experimenta e apren-de mediante o tato, o paladar, a audi-ção, a visão, bem como pelo instinto,assim como o faz toda criatura da na-tureza. Ao mesmo tempo, o homemtrabalha a própria alma. Assim, ela éformada, com o passar do tempo, nãosomente pelas circunstâncias, mastambém pelo cinzel do “escultor” quedeixa suas marcas atrás de si. Simulta-neamente, à semelhança de uma sere-na e luminosa nuvem em nós e aonosso redor, vive algo totalmente di-ferente, algo intangível.

Na maioria das vezes, a vida segueo seu curso normal; as forças vitais seesgotam, a pessoa morre e a alma seextingue. Até lá, talvez após muitasexperiências, irrompe um desejo, umaaspiração por algo maior, por essealgo “intangível”.

Então, esse anseio indefinido encon-tra o que lhe é semelhante e se harmo-niza com ele; e atrai o que lhe corres-ponde. Do impulso informe nasce umafé ardente que se aproxima do intan-gível: a reminiscência de uma luz, deuma possível aurora. Então, desper-

A

Da luz para a luz

2

O homem é uma criatura tão maravilhosa que, partindo do mais baixo, ele podepenetrar até o mais elevado, desde a tenebrosa crosta terrestre até o coração ígneode nosso corpo solar, Vulcano, o Sol por trás do sol. Para essa viagem, o Pai detodas as coisas nos muniu de um organismo complexo, ancorado no mundo, quepode perceber através dos sentidos. É o instrumento adequado para que possa-mos experimentar tudo o que nos rodeia como que refletido num espelho.

Page 4: PentagramA · Livro de Mirdad: Este é o caminho que leva à libertação das preocupações e da dor: Pensai como se cada um de vossos pensamentos tivesse de ser gravado a fogo no

tam novos sentidos que podem obser-var algo dessa luz: faculdades chama-das “intuição”, “voz do silêncio”, “ins-piração”, “olhos do coração”, etc.

Atualmente existem pessoas quepartem em busca dessa luz, que ru-mam em direção a ela para dela viver,mas que ainda não o conseguem total-mente. Certamente a busca é real eprazerosa, mas também a ligação como destino pode ser opressiva, o que fazo poeta dizer: “Ah, duas almas coabi-tam em nosso imo”. Todos os nossosórgãos encontram-se ligados à nossaalma e dela são parte integrante. Porisso, esta alma deve ser chamada de al-ma natural.

Quando os órgãos sensoriais natu-rais se mostram insuficientes para pe-netrar a matéria densa e examinar oque é oculto, o homem inventa ins-trumentos para sondar sempre mais a

imensidão do Universo e as profun-dezas da matéria.

Poderemos algum dia encontrardesse modo respostas satisfatórias? Éum mero organismo singelo que pre-cisa do intelecto para responder e es-clarecer as indagações e especulações.O desejo insatisfeito permanece e asexperiências podem se tornar maisfortes e dolorosas se não conseguirmoschegar a conclusões positivas. Quem jánão passou por essa experiência?Quantas vezes nosso coração já nãofoi tocado pelas imagens, pelos sons,pelas fragrâncias? Quão inevitavel-mente reagimos a eles com nosso pen-sar, nossa psique e – através dos hor-mônios – com todo o nosso corpo.

Como o “outro”, apenas pressenti-do, pode ser tragado tão rapidamentepelas ondas de entusiasmo ou pelopeso do sangue!

Contudo, um desejo silenciosopersiste em nosso íntimo: uma grandenostalgia de uma vida pura e verda-deira. É possível aprender, desde a in-fância, a perceber com o sentido inte-rior que “provém da luz” e dele testi-ficar, dando-lhe mais valor do que àpercepção exterior. Por causa daeventual tensão, bem como da dor doantagonismo contínuo entre a nostal-gia da luz e os impulsos da alma natu-ral, é possível que já não suportemosessa situação. E já não a queiramos!

Então, uma crise interior assomaem nós, devido a nós mesmos e à luzem nós, porque ora colaboramos comum e ora colaboramos com outro. Acrise é o momento em que a escolhatem de ser feita e no qual podemosdizer “sim!”, com total convicção, noqual todas as reviravoltas vão desapa-recendo, até cessarem completamen-te. Se, do mesmo modo, surge um po-deroso “não!”, muitas vezes o interes-se pela atividade da luz é perdido. E

3

Mikhail Naimy escreve no Livro de Mirdad:

Este é o caminho que leva à libertação das preocupações e dador: Pensai como se cada um devossos pensamentos tivesse de sergravado a fogo no céu, para quetodos e tudo o vissem. E, verdadei-ramente, assim é. Falai como se omundo todo fosse um único ouvidoatento a escutar o que dizeis. E, verdadeiramente, assim é. Agicomo se todos os vossos atos tives-sem de recair sobre vossa cabeça.E, verdadeiramente, assim é. Desejai como se vós fosseis o desejo.E, verdadeiramente, o sois. Vivei como se vosso Deus, Ele próprio, tivesse necessidade devossa vida para viver a Dele. E, verdadeiramente, Ele necessita.

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Leões guardam

a entrada de

um santuário

em Delos.

Século VI a.C.

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não é pelo fato de agirmos bem comtudo (ou pensarmos que agimos bem)que estamos aptos a trilhar “a senda”.Isso é uma ilusão e um dos maioresequívocos que afetam milhares deesotéricos. A única coisa que conta éum “sim” franco e sincero, vindo docoração!

Nisso está estabelecida a base para atransmutação dos sentidos exterioresem um primeiro sentido interior. Naluz do autoconhecimento – a com-preensão pela situação descrita –nasce o insight, o entendimento.

Do insight surge um primeiro re-sultado: a gratidão. A gratidão preen-che o ser com o sutil brilho da alegria.Gratidão para a vida una da qual sabe-mos que somos, de qualquer modo,uma parte modesta, porém importan-te. Em suma, esses dois aspectos, vi-são interior e gratidão, iluminam,

como se fosse pela primeira vez, to-dos os espaços sombrios de nosso ser.À medida que o processo se desenvol-ve, nasce uma nova vontade, podero-sa e pura, que nos dá a oportunidadede cooperar com o trabalho da luztransfiguradora em nós. Não intervi-mos naquilo que se passa em nossointerior. Nosso papel consiste emtotal disponibilidade, onde for possí-vel, e de modo muito inteligente.

Assim, os resultados se tornamvisíveis. À medida que o alvo se tornamais claro, a concentração aumenta ese reforça. O peregrino experimentasempre mais concretamente a realida-de que, primeiramente, ele só pres-sentia como um nebuloso desejo; arealidade da nova vida que, na antigalinguagem dos mistérios cristãos, erachamada de a paz que não é destemundo. Isto é “caminhar na luz”.

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busca desse elevado objetivo, ocaminho, requer, contudo, uma gran-de perseverança; mas, apenas com ela,não estamos em condição de nos ali-nhar a esse objetivo. Nosso mental estásujeito a determinado impulso de vidabiológico que nos prende dentro doslimites do mundo material. Isso marcanossas experiências e nossa compre-ensão e determina nossos objetivos.

Nosso pensamento está sempreocupado, evidentemente, com as coi-sas transitórias. Seguidamente nossoânimo, nossos impulsos afetivos, écomo cavalos selvagens, impossíveisde controlar. Somos apanhados pelasaparências às quais nos ligamos.

A fim de controlar os cavalos, es-forçamo-nos por refinar nossos ins-tintos e adquirimos capacidades cadavez mais sutis que nos ajudam a nosmantermos no mundo material. O Euverdadeiro, como um germe de luz, es-tá em algum lugar entre as bagagensda carruagem e mantém-se intocadopor todas essas refinadas manifestaçõesde vida. Enquanto permanecermosvoltados para a matéria – e, portanto,também o nosso pensamento – osmovimentos do coração ficarão tam-bém restritos aos limites deste mundodos opostos, e os impulsos do germede luz não poderão chegar até nós.

Tentar aquietar-se para refletir

Não conseguimos evitar a rondasem fim de nossas alegrias e tristezasàs quais somos arrastados pelos nos-sos sentidos, e, principalmente, nãoreconhecemos aí nenhum objetivo,pois este não existe. Isso não nos faráalcançar algo determinado, porémnos levará a conscientizar-nos de quepertencemos a um outro campo devida. Daí um objetivo poderá nascer!Em semelhante estado de ânimo,experimentaremos que a coerênciasugerida pelos sentidos é mera ilusão.

O desejo, como um fogo-fátuo lan-çado de cá para lá, mantém a ilusão ejá traz em si o pesar seguinte. A ilusãoprovém de uma interpretação errôneadas leis que regem nossa vida.

Quando renunciamos a nossasidéias e começamos a observar, tran-qüilamente, todas as coisas e situa-ções, aceitando-as tal como elas seapresentam, chegamos a um limite. Equando questionamos a coerênciaexterior que nos é sugerida, damos oprimeiro passo no caminho da liber-tação do pensamento, até então orien-tado para a matéria.

O núcleo de luz latente terá, assim,então despertado em nossas profun-dezas um sentimento até então desco-

A busca do eu verdadeiro

A

Nos Upanixades, a escritura sagrada hindu, aparece a seguinte alegoria: “O Eu,Atman, tomou lugar na carruagem que é o corpo; o entendimento, Budi, é ocondutor; o pensamento, Manas, é a rédea; os sentidos são os cavalos, e aquiloque os sentidos percebem representa o caminho que leva ao objetivo”. 1

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Shiva dança sua

dança quíntupla

da criação, do

ofuscamento e da

perpetuação, do

aniquilamento e da

libertação.Aos

seus pés está

Asura, o vencido

demônio da

ignorância. A dan-

ça de Shiva é o pri-

meiro movimento

do Universo,

que é eterno. Ela é

igualmente o ritmo

da vida e a libera-

ção do espírito

no coração do

discípulo, o aluno.

Escultura de

bronze, Índia.

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nhecido: um desejo indefinido, umanostalgia. Caso neguemos esse senti-mento, os sentidos e o intelecto nosconduzirão por inúmeros desvios.Mas, se o aceitamos, os impulsos dacentelha de luz trazem, desse modo, acompreensão à nossa vida interior, hámuito tempo esquecida. Essa novacompreensão, surgida do coração,eleva nosso pensar acima do planomaterial.

Os Upanixades ensinam que umcoração puro conduz a uma justacompreensão, graças à qual podemos,enfim, entender nossas experiências.À luz de nosso “fundamento”, perce-bemos que nossas experiências foramde fato necessárias, mas que tambémnos afastaram de nossa verdadeira

meta. Nosso passado é o solo nutri-dor do verdadeiro Eu esquecido, quepode agora eclodir como a flor delótus enraizada no lodo de um lago.

A morada de Vishnu

Aquele que alia a pureza interior àjusta compreensão e faz uso delas co-mo condutor da carruagem e utiliza opensamento objetivo como rédeasalcança o ponto mais elevado, a mora-da augusta de Vishnu 2, o deus dosdeuses, que ao lado de Lakshmi,deusa do lótus desabrochado, repou-sa sobre a serpente cósmica 3.

Lakshmi simboliza a radiação dasabedoria divina que nos eleva acimado plano dos fenômenos sensoriais e

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quer nos conduzir para fora do caosdas ilusões. O mito hindu mencionaque o deus dos deuses dorme e quetodas os acontecimentos da criação,da origem até o fim dos mundos, sãoapenas o encadeamento infinito deimagens de seu sonho. Vishnu e Laksh-mi formam uma unidade: juntos, elessão a primeira e única entidade cons-ciente do Universo. Em contraposi-ção, tudo neste mundo de aparênciasé multiforme, e os acontecimentosestão desligados da realidade4.

As antigas energias vitais podem,freqüentemente, através de seusimpulsos, nos levar à confusão. Elaspermanecem mesmo quando pode-mos compreender sem impedimentoso novo sentido da vida. Os velhospadrões existenciais que pensávamoster deixado para trás requerem conti-nuamente nossa atenção. Somentequando a tempestade de nossas rea-ções arraigadas for anulada pela puranova energia é que nosso estado de serpoderá mudar de padrão vibratório.A verdade encontrou uma morada emnós, porém não podemos abarcar essarealidade por meio de nossos sentidosexteriores.

Quando nosso desejo está orienta-do para o Eu verdadeiro, nossos sen-tidos exteriores podem fundir-se nosentido interior individual. Essa é averdadeira compreensão das coisas.Então, nossos sentidos outra coisanão podem fazer senão orientar-separa o objetivo da vida. A carruagemé aliviada de seu lastro. Finalmente ocondutor reconhece a sua própriaessência. Os cavalos dão meia-volta afim de seguir o caminho indicado pelaradiação da sabedoria divina. Dessehomem é dito:

Ele não vê, não sente nem saboreia;ele não fala nem escuta; não pensa nem reconhece,

pois nada existe que seja diferentedele...E, contudo, ele vê, pois a visão e ele são unos, ele ouve, pois o ouvir eele são unos...E ele sente, pois o sentir e ele sãounos, e ele discerne, pois odiscernimento e ele são unos.

Essa realidade é refletida pela per-sonalidade purificada que já não estásujeita à coerência sugerida pela vidaexterior. Disso surge uma projeçãopura da verdade eterna, uma radiaçãoque intervém em nosso campo deexistência com luz e amor.

Este é o segredo da existência: levar-vos a vós mesmos, comohomens-personalidades, a tal estado,conduzir-vos a tal atitude de vida,que a realidade, o Uno, se projeteatravés de vós...

Então, uma poderosa luz se derrama nas trevas desta existência,para a bênção de muitos.5

FONTES:1 Zimmer, H., Filosofias da Índias.

São Paulo: Palas Athena, 1986.2 Golowin, S., Eliade, M. e Campbell, J.,

De grote mythen van de wereld. Leuven: Davidsfonds, 1999.

3 Idem.4 Schult , A., Die Weisheit der Veden und

Upanishaden. Berlim: Lorber/Turm, 1986.5 Rijckenborgh, J. v., A Gnosis chinesa,

Jarinu: Rosacruz. (no prelo).

Escultura contem-

porânea represen-

tando a metáfora

da carruagem.

No interior,

sentado, encontra-se

(invisível) o eu,

Atman; Budi, o

condutor, é o

entendimento;

Manas, o pensador,

tem o controle das

rédeas; os cavalos

são os sentidos, e

aquilo que eles

vêem constitui o

caminho.

© Pentagrama 2005.

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Nos anos 50 do século passado, o fun-dador do Lectorium Rosicrucianum,J. van Rijckenborgh, comentou, nodecorrer de várias conferências, osdezesseis livros de Hermes que, com oTeleios Logos (O discurso perfeito oudiálogo entre Hermes e Asclépio), for-mam o Corpus Hermeticum.

sses livros, que são a base da tradi-ção hermética, eram, nessa época,totalmente desconhecidos do públicoem geral. É mérito de J. van Rijcken-borgh ter reconhecido o seu valorlibertador e dado a seus alunos expli-cações claras, sim, cristalinas. Os tex-tos que compõem o Corpus Hermeti-cum foram escritos no Egito no finaldo século III, ou melhor, foram trans-critos por autores desconhecidos.Eles eram parte de uma coleção muitomaior de textos atribuídos ao perso-nagem mítico conhecido como Her-mes Trismegisto, que teria vividoaproximadamente em 3000 a.C. Entreos gregos ele era chamado de Trisme-gisto; os egípcios o chamavam de otrês vezes grande Thot.

De fato, esses textos têm todos amesma origem religiosa e filosófica,da qual também surgiram o neoplato-

nismo, os diversos comentários dasabedoria de Jesus Cristo e os váriosensinamentos atribuídos ao “gnosti-cismo”. As múltiplas relações entre ostemas tratados e o que eles têm emcomum mostram que podemos consi-derar essa literatura como um todo.Cada escrito aborda as grandes ques-tões que preocupavam os buscadoresdaquela época e tenta dar-lhes umaresposta.

O caminho indicado por Hermes

J. van Rijckenborgh e o Corpus Hermeticum

E

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Os livros conhecidos sob o títuloCorpus Hermeticum foram reunidosna época bizantina (395-1453 d.C.).Após mil anos de esquecimento, em1460, uma cópia deles caiu nas mãosde negociantes a serviço de Lorenzode Médici. Marsílio Ficino, cuja forçapropulsora estava por detrás da fun-dação da Academia de Florença, pre-cisou, então, interromper sua tradu-ção das obras de Platão, a fim de co-meçar imediatamente a traduzir oCorpus Hermeticum para o latim. Es-sa tradução foi publicada em 1463 efoi reeditada pelo menos vinte e duasvezes no século seguinte e acolhidacomo um alento.

A obra compreende diferentes par-tes. O livro I, Pimandro, é a descriçãode uma revelação sobre as coisas essen-ciais que Hermes vivencia porquePimandro, a Alma-Espírito, expressãodo espírito universal, aparece-lhe inte-riormente. Os oito livros seguintes (livros II a IX), que podem ser classi-ficados sob o título Discurso perfeito,são diálogos curtos e textos que trans-mitem certos pontos fundamentais dafilosofia hermética. A seguir, o livro X,A chave, faz um breve apanhado dostextos do Discurso perfeito. Os quatrolivros seguintes (livros XI a XIV)adentram os aspectos mais místicos doensinamento de Hermes, O Espírito falaa Hermes, o Espírito que tudo penetra,o Discurso secreto sobre o monte, e aCarta de Hermes a Asclépio sobre aessência do Todo. O conjunto terminacom os Aforismos. Uma Epístola deAsclépio ao rei Amon, o livro XVI, éaparentemente composto de três frag-mentos de um escrito mais longo.

O discurso perfeito

O Discurso perfeito, ou Asclépio,que foi acrescentado a partir de 1505

ao Corpus Hermeticum, é de um tem-po mais antigo e chegou ao conheci-mento na Renascença por um cami-nho totalmente diferente. Mesmo naAntigüidade esse texto fora traduzidopara o Latim por Lucius ApuleiusMadaurensis (124-170 d.C., em Ma-dauros, na Numídia, África do Nor-te), cuja mais importante Obra, AsMetamorfoses (ou O Asno de Ouro),em seu décimo primeiro livro dá umadas melhores descrições ainda exis-tentes sobre o culto de Ísis no mundoromano.

Agostinho cita, em sua Cidade deDeus, a essência da antiga traduçãolatina de Asclépio. Durante a IdadeMédia, três exemplares continuaramcirculando até a Renascença. Infeliz-mente, o original grego se perdeu,apesar de ser citado em várias fontesantigas.

9

À esquerda:

Hermes Trismegisto

Acima: página de

rosto ou frontispício

da edição inglesa do

livro de Pimandro

(Corpus Hermeticum),

Londres, 1650.

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O significado dos textos herméticos na cultura européia

A idéia filosófica do mundo e ossistemas escolásticos do final da IdadeMédia receberam o Corpus Hermeti-cum como uma bomba. Os pais daIgreja, que há muito citavam a litera-tura hermética para defender seu pró-prio ponto de vista, estavam persuadi-dos de que Hermes Trismegisto eraum sábio que vivera na época de Moi-sés. Acreditava-se, na Renascença, queo Corpus Hermeticum havia influen-ciado o pensamento judeu e grego.Surgiram três fragmentos dos textosherméticos de origem judaica e grega.Daí concluiu-se que o Corpus Her-meticum era a mais antiga sabedoriaconhecida. A filosofia hermética eraconsiderada a tradição original de sa-bedoria e era identificada com a sabe-doria egípcia, louvada no Êxodo e noTimeu de Platão. Assim, o ensinamen-to hermético constituiu um poderosoargumento para esses pensadores quetentavam romper a asfixia causada pe-lo pensamento aristotélico – a escolás-tica, que sufocava todo livre desen-volvimento da alma.

Por um lado, as autoridades espiri-tuais estabelecidas leram essas obrascom empenho, como o cardeal Pa-trizzi, que assegurou o financiamentoda publicação de uma edição comple-ta em Ferrara em 1593, declarando emalta voz que esperava ver esses ensina-mentos substituirem a teologia aristo-télica de Tomás de Aquino nas escolase monastérios; por outro lado, umhermetista como Giordano Bruno nãopôde escapar de uma acusação de he-resia e da morte na fogueira, em 1600.

O ensinamento de Hermes foi umimportante meio para a aceitação dopensamento mágico na Europa. Issoporque a Hermes também foi atribuí-

da uma importante coleção de textossobre astrologia, alquimia e magia.Ora, se Hermes tivesse sido um per-sonagem histórico, se os Pais da Igre-ja o tivessem citado livremente e, so-bretudo, se fosse provado que essesescritos estavam em concordânciacom as principais asserções do ensina-mento eclesiástico, ter-se-ia podidocomprovar que o ensinamento her-mético era fundamentado na verdadee, portanto, poderia ser reconhecidocomo autoridade.

As conseqüências são conhecidas:os tempos não estavam ainda madu-ros. Pode-se até mesmo adiantar que asensibilidade do homem dos séculosXV e XVI ao inexplicável bem comosua receptividade verdadeira aos ensi-namentos herméticos libertadorescausaram mais mal que bem. Então,pela redefinição radical do cristianis-mo durante a Reforma e a Contra-re-forma do século XVI e XVII, a huma-nidade foi induzida a encarar os doisséculos precedentes como a mais ele-vada forma de devoção.

A partir do século XVII, os escritosherméticos foram oficialmente postosde lado. Os racionalistas do Iluminismoe o rígido protestantismo deram umfim à questão tratando-os como “su-perstição”, e até meados do século pas-sado nenhum acadêmico queria quei-mar seus dedos ocupando-se dessesneoplatônicos ou imitações anticristãs.

Contudo, o hermetismo nunca de-sapareceu. Com a alquimia, a astrolo-gia e a magia, também desacreditadas,Hermes Trismegisto permaneceu, como passar do tempo, uma baliza no ca-minho que conduz à filosofia liberta-dora. Sua presença no universo de Ja-cob Boehme, nas tradições da Rosacruze da franco-maçonaria foi novamentetrazida à luz por personalidades comoH.P.Blavatsky e G.R.S. Mead.

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O ensinamento libertador de Hermes

Na realidade, os tratados herméti-cos somente podem ser compreendi-dos quando considerados como umtestemunho das experiências do mun-do do Espírito. Eles são relatos filosó-ficos que conduzem à compreensãoda dualidade da existência humana.Em quatro tomos, A arquignosis egípciade J. van Rijckenborgh1 revela o acessoa esse conhecimento.

J. van Rijckenborgh chama de “a ar-quignosis egípcia” o testemunho espi-ritual, a plenitude de vida e a verdadeque se expressam no Corpus Hermeti-cum e na Tabula Smaragdina. No iní-cio de nossa era, esses textos, transfor-mados em livro durante o Helenismo,nos levaram de volta à história do anti-go Egito. Desde aquela época, as expe-riências da verdade eterna eram inva-riavelmente registradas para quepudessem ser determinantes no modocomo o ser humano tenta se aproxi-mar do Espírito.

Como podemos, então, ver Her-mes Trismegisto? Ele é o representan-te do conhecimento da verdade divi-na, a compreensão ofertada pela Gno-sis. Como o mensageiro dos deuses ecomo Thot, deus da escrita e escribada verdade, ele era e é o protótipo dohomem que se abre ao conhecimentoda verdade universal dos dois mun-dos: o mundo da matéria e o mundo doEspírito. E ele a encontra em si mesmo,e traz esse conhecimento à humanida-de sob a forma de uma filosofia.

Esse tipo humano pode ser chamadode “três vezes grande” porque se apro-xima da verdade com o coração, a ca-beça e as mãos e, nesse sentido, se es-força por transmutá-la em uma religião,uma ciência e uma arte e, com basenelas, restabelecer nos homens o Espí-

rito, Pimandro. Semelhante tipo hu-mano tenta vencer a si mesmo na forçado Espírito original. Ele se transformaverdadeiramente em um “novo ho-mem”, que ensina a seus semelhantescomo seguir o mesmo caminho. Assim,Hermes Trismegisto era considerado,entre os alquimistas da Idade Média,como o exemplo de um autêntico al-quimista que transmuta o chumbo danatureza em ouro do Espírito.

A Tabula Smaragdina, o coraçãoda filosofia hermética, contém a chaveda antiga obra alquímica: “Assim co-mo é em cima, assim é embaixo”, oque pode ser interpretado como umaexigência feita ao homem de harmo-nizar aquilo que está embaixo – a na-tureza que segue os seus próprios ca-minhos – com aquilo que está emcima, o Espírito.

O mundo da natureza e o do homemestão desorganizados e já não são oreflexo da harmonia e da beleza doEspírito. Mediante um processo al-químico a antiga consciência naturalrecua, dando lugar a uma nova cons-ciência, centrada no Espírito. A Tabu-la Smaragdina descreve esse processocomo sendo o esforço de extrair o queé sutil daquilo que é grosseiro.

As grandes questões vitais

Os dezessete livros do Corpus Her-meticum vivificam o conhecimento daverdade, a Gnosis, por levantar gran-des questões filosóficas que desde aorigem preocupam o ser humano.Qual a relação existente entre espíritoe natureza, entre alma e matéria? Ohomem pode conhecer Deus? Ecomo isso é possível? O que é o bem,o que é o mal? Como são obtidas alibertação e a imortalidade?

Estas questões são abordadas sob aforma de diálogos, seja entre Piman-

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dro e Hermes, seja entre Hermes e Tatou Asclépio. Aqui não se trata de pes-soas, mas de forças espirituais e forçasda alma no ser humano. A alma hu-mana buscadora, Hermes, encontra oEspírito, Pimandro, e é por ele ilumi-nada. A alma liberta, Hermes, trans-mite sua sabedora a Tat e a Asclépio, avontade e o entendimento humanosreorientados.

A arquignosis egípcia

No primeiro tomo de A arquigno-sis egípcia, J. van Rijckenborgh expli-

ca, com base nos dois primeiros livrosdo Corpus Hermeticum, qual é a con-dição fundamental do homem: ele seencontra ligado ao que é temporário,enquanto a eternidade é seu verdadei-ro destino.

O segundo tomo esboça, com basenos livros III a IX, as condições docaminho de libertação e suas diferen-tes fases. É preciso ter uma visão clarado verdadeiro estado dos seres huma-nos, ou seja, sua ignorância de Deusem sua vida atual. Para se dar um fimà separação entre o homem e Deus, énecessária uma despedida, uma su-

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Templo de Hera

em Cabo Sunion.

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pressão da ligação com as forças danatureza em favor das forças do Espí-rito. É dessa maneira que a causa damorte, o “contra-movimento” ou o-posição aos impulsos do Espírito, éaniquilada e a imortalidade pela uniãocom a Verdade eterna é obtida.

O autor descreve os obstáculosque se apresentam nesse caminho noterceiro tomo, com base nos livros Xa XII: a confusão a respeito do bem edo mal, os efeitos da inteligência cen-trada nos interesses pessoais nosdomínios políticos, sociais, culturaise religiosos, a tendência a desviar as

forças recebidas do mundo do Espí-rito em proveito próprio, o que equi-vale à traição ao Espírito.

O quarto tomo contém comentá-rios aos livros XIII a XVII, onde sãodescritos os resultados do caminho delibertação. A verdade, o Espírito San-to, purifica o coração e a mente. Comessa purificação, as leis do carma per-dem sua influência coercitiva. Surgemum novo pensar e uma nova cons-ciência com os quais o homem apren-de a reconhecer a verdade. O homemjá não cria imagens da verdade, masvive em concordância com ela. Para

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Divindade do templo em ruínas! As cordas vibrantes da lira já não cantam o teu louvor e os sinos do entardecer já não proclamam a hora do teu culto.Ao teu redor, o ar está parado e silencioso. Na tua desolada moradia, vagueiaa brisa primaveril. Ela anuncia as flores, que já não são ofertadas em sacrifício.O teu devoto de outrora anda a esmo, anelante por uma graça sempre recusada.Ao entardecer, quando as luzes e as sombras se mesclam com aescuridão da matéria, ele volta ao templo em ruínas, trôpego e com fome no coração.Muitos dias de festa passam diante de ti em silêncio, divindade do templo em ruínas. Muitas noites de meditação se esvaem, sem que as lamparinassejam acesas. Muitas novas imagens criadas por experientes mestres da artesão levadas pelo rio do esquecimento quando chega a sua hora.Apenas adivindade do templo em ruínas permanece desonrada, em infindável abandono.

Rabindranath Tagore - Nossas canções

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suas explicações, J. van Rijckenborghusou elementos tirados do pensamen-to gnóstico, tais como as idéias deMani e do catarismo, e ligou-se estrei-tamente às idéias de Paracelso e deJacob Boehme.

Hermes e a Gnosis

Não nos surpreende o fato de asobras herméticas terem sido encon-tradas entre os manuscritos gnósticosde Nag Hammadi. Estes dois sistemasexperimentaram seu maior floresci-mento no mesmo período, e a “gnosis”ou “nous” ocupa uma posição centralem ambos. A diferença entre eles en-contra-se em seu ponto central. Agnosis, por exemplo, no relato da Pis-tis Sophia, parte do ponto de vistahumano, onde a ênfase é dada ao obs-táculo representado pelo pensamentolimitado, em constante luta. Já o her-metismo se expressa como “gnosis” ou“nous” nas pessoas de Hermes e Pi-mandro.

Em Os discursos sobre a oitava e anona esfera de Nag Hammadi, essasduas esferas se encontram na sétimaesfera que o candidato atravessa na úl-tima fase da iniciação. As sete esferasplanetárias são, portanto, considera-das como um domínio restrito que ocandidato atravessa antes de tornar-seum Homem-Alma-Espírito na oitavaesfera.

Como conclusão, citaremos umtrecho do quarto tomo de A arquig-nosis egípcia:

“Por isso, a verdade também pode-rá alcançar-vos, e vos alcançará, porintermédio de cabeças, corações eações humanas, se estiverdes prepara-dos para isso! Assim como da hierar-quia da mentira emana uma radiação eum trabalho (para conduzir ao erro),assim também parte da hierarquia da

verdade uma radiação e uma obra.Todos os que se abrirem para essa

plenitude astral acolherão a verdade,pois esta não vem a vós somente pelapalavra e pela escrita. Não, a verdadejá é, há muito, um valor astral concen-trado por homens e por eles colocadoà disposição do gênero humano. Osséculos aí estão para confirmar isso. Ahistória nos conta acerca de muitoshomens reais-sacerdotais que nostrouxeram a verdade em palavra, açãoe força.

...Os séculos varreram suas mensa-gens à humanidade. O inimigo detur-pou seu conteúdo em muitos senti-dos... Contudo... inutilmente! Pois averdade vive. Ela é em todos os sécu-los e por todos os séculos... Compre-endeis agora por que a epopéia deHermes termina com o livro da ver-dade?”

1 Rijckenborgh, J.v., A arquignosis egípcia, t. IV, São Paulo: Lectorium Rosicrucianum,1991.

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“Ainda que Cristo nasça mil vezes emBelém e não em ti, estarás perdido”.Esta sentença foi tirada do Peregrinoquerubínico de Angelus Silesius, com-posto de seis livros de máximas, e é umchamado para o despertar interior.

ssas máximas descrevem a graça quecabe ao homem que se tornou cons-ciente do divino nele. Porém, a graçanão desce pura e simplesmente. É pre-ciso fazer por merecê-la. Quando agraça do nascimento interior se mani-festa, é porque ela foi longamente pre-parada por uma vida de anseio. Paramuitas pessoas essa preparação se de-senvolve sem grandes conflitos, por-que elas vivem num certo equilíbrio esempre dão o próximo passo necessário.

Para muitos outros, a vida é umcombate desesperado. Um exemplodisso foi a vida do poeta alemão Rai-

ner Maria Rilke, que reconheceu seupróprio processo na luta interior dopintor francês Paul Cézanne. A tarefade vida do pintor, incompreendida,pode resumir-se no seguinte: “Comoexpressar o que é a realidade da vidainterior?”, ou ainda: “Como dar for-ma à mutável experiência de vida?”Tais foram as perguntas que o levaramao desespero. Rilke descreve o modocomo Cézanne pintava, aparente-mente sem alegria, e como cada umade suas obras era para ele objeto deum intenso conflito. O que Cézannequeria mostrar, ele não conseguiaimortalizar na tela. Nenhuma de suastentativas satisfazia suas exigênciasinteriores. Ele desejava chegar a umarealização tal que o próprio objeto serevelasse com intensidade, deixandouma impressão inalterável, sim, indes-trutível. Rilke observava profunda-mente o modo como Cézanne apren-

O homem que escutava a pedra

E

Rainer Maria Rilke nasceu em Praga, em4 de dezembro de 1875. Sua poesia expressade modo maravilhoso sua concepção de vidae sua busca espiritual. Entre 1899 e 1900, elefez duas grandes viagens à Rússia onde,entre outros, encontrou Leon Tolstoi. A almamística da Rússia o faz conscientizar-se pelaprimeira vez da profunda essência de seu ser.Em 1920, ele escreveu: “Devo à Russia o fatode ela me ter revelado o que sou; ela é apátria interior de todos os meus instintos, deminha origem.” Os ecos poéticos dessas via-

gens nos são confiados em O livro das horase em Histórias do bom Deus. Embora maistarde ele negue suas criações da juventudepor não corresponderem ainda a seu estadointerior, nelas, contudo, encontram-se aspérolas de uma compreensão espiritual, comoo testifica a passagem reproduzida acima,extraída de Histórias do bom Deus.

Rilke consagrou o segundo período de suavida à descrição de sua visão apocalíptica dosnovos tempos com os quais ele é confrontado,durante o período em que foi secretário de

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dera a expressar o real com uma obje-tividade sempre maior, sem emitir jul-gamento de valores. “Observamosrepetidamente a necessidade de ultra-passar o amor próprio. É muito natu-ral gostar de cada coisa que fazemos.Mas quando gostamos das coisas,fazemo-las menos bem. Então, julga-mo-las. [...] Pintamos ‘gosto disto’ nolugar de pintar ‘aqui está’, quandocada um deve pintar o que vê, e não oque gosta. [...] Essa concepção de obraimpessoal na qual se revela um tãoalto grau de pureza, ninguém, semdúvida, expressa melhor que o velhoCézanne.”

O não julgamento das coisas elimi-na toda distinção entre o pintor e apintura. Tal foi o combate levado aefeito por Cézanne: “A paisagem sepinta através de mim, e eu sou suaconsciência”.

Auguste Rodin, em Paris, de 1906 a 1907.Daí surgiu a famosa frase: “A paciência tudovence”. Em 1911 ele faz uma longa viagematé o Egito. Em 1922, instala-se na Suíça aconvite de um mecenas após uma conferênciaque fez em Zurique, tendo por objetivo escapar do período convulso do pós-guerra.Ali, trabalha na redação de Elegias de Duíno.A seguir, depara-se com o difícil problema deencontrar um alojamento conveniente e aces-sível. Permanece algum tempo em Soglio, emLocarno e Berg am Irchel. É apenas no

verão de 1921 que encontra asilo definitivono Castelo de Muzot, próximo de Sierre, emValais, graças ao fato de seu mecenas WernerReinhart (1884-1951) ter adquirido o castelooferecendo-lhe hospedagem gratuita.

Começa então um período muito produti-vo; em poucas semanas ele termina a redaçãode Elegias de Duino. Em seguida, ele compõeos dois ciclos de Sonetos a Orfeu, considera-dos como a apoteose de seu gênio poético.

A partir de 1923, Rilke tem de enfrentargraves problemas de saúde que o obrigam a

Rondannini Pietá. Michelangelo (1475-1564)

trabalhou 10 anos nessa escultura, até seis dias antes

de sua morte, deixando-a inacabada. Ele se esforçou

para atingir a perfeição na forma a fim de expressar

os valores espirituais do Cristo em um bloco

de mármore branco.

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A busca do insólito através do tri-vial conduziu Rilke a um choque dereconhecimento, que provocou umamudança em suas próprias poesias.Ele reconheceu na pintura de Cézanneo que ela tem de revolucionário, con-firmando sua própria criação. Ele seconscientizou de que poderia ter umavisão diferente do mundo, engajando-a numa “renovação” fundamental dolirismo. Seus escritos da época dão tes-temunho dessa renovação criativa ede sua fé nos poderes transfiguradoresda poesia: eles estão reunidos na obraintitulada Novos poemas (1907-1908).Novos porque ele já não se deixavainspirar por sua fantasia subjetiva.

Semelhante desenvolvimento podeser comparado a um caminho de terraque é preciso aplainar e tornar transi-tável para que ele nos conduza aoobjetivo. É assim que Rilke conta ahistória do “homem que escutava apedra”. Esse homem era Michelange-lo, que, com suas mãos, desbastava apedra bruta liberando de sua ganga asublime imagem que nela se ocultava.Michelangelo também teria ouvido apedra sussurrar:

“Michelangelo”, disse Deus,“o que se encontra na pedra?”Michelangelo sobressaltou-se,suas mãos tremiam.E ele respondeu tão suavementequanto podia:“Tu, meu Deus. Quem mais poderia ser?Mas eu não posso chegar até ti.”Então, o Espírito experimentouque também estava na pedrae sentiu-se inquieto e sufocado.O céu inteiro era somente uma pedra,e Ele estava encerrado nela,e esperava pelas mãos de Michelangeloque o libertariam.E Ele as ouviu chegando,mas elas ainda estavam longe.”

Quando o escultor começou a“libertar Deus da pedra” ele ouviuuma voz lhe perguntar: “Michelange-lo, o que está em ti?” Michelangeloparou, descansou sua fronte sobre asmãos, e disse: “Tu, meu Deus, quemmais poderia ser?”

ficar por um bom tempo num sanatório. Suaslongas permanências em Paris eram já umatentativa de escapar da doença, mudando delugares e condições de vida. Nos últimos anos,de 1923 a 1926, ele compõe quatro coletâneasde poesia em francês, numa linguagem umtanto incerta e bem menos deleitosa.

As Elegias de Duino cantam um caminhoespiritual, em imagens bastante enigmáticas.A quê leva o encontro com os “anjos” querepresentam a grande lei do ser, tão assusta-dora para o pequeno eu? Em Sonetos a

Orfeu, Rilke faz ouvir as novas vozes queressoam em seu interior.

Sua vida inteira foi um combate paralibertar-se dos clichês e imagens convencionaisimpostos pelo eu presunçoso; ele esforçou-seigualmente para entregar-se a uma realidadesuperior. Está claro que nele estava ativauma centelha divina que queria corporificar-se em sua vida e em sua obra. Para Rilke foipossível “ouvir”, em seu interior, as conso-nâncias divinas e “glorificar” o elevado Sersem “expressar” suas próprias concepções.

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O homem natural e o homem espiritual

Segundo uma alocução de Z.W. Leene

Para compreender o que é a sabedoria, é bom refletirmos sobre a diferençaentre o homem natural e o homem espiritual. Não é fácil distinguir um dooutro. A maioria das pessoas pensa que o homem natural se ocupa com o que éterreno, enquanto o homem espiritual se ocupa com a natureza superior, supra-sensível. É possível que exista aí um erro de raciocínio. A lei de criação à qual oser humano terreno está submetido é a lei da autoconservação, e assim deve serpara que ele continue existindo.

conceito rosacruz do cosmo1 é mui-to claro em relação ao fundamento denossa autoconservação, que foi esta-belecido em eras pré-históricas, quan-do o impulso natural regia a vida. Ainocência, a perseverança livre de cul-pa da criatura natural, mostra ser, por-

tanto, a base para a construção da or-dem do mundo espiritual. Portanto, ohomem não pode ser recriminadopela persistência do instinto de con-servação, pois ele pertence à naturezae não possui qualquer conhecimentorelativo a um mundo espiritual.

O

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Polonnaruwa,

Sri Lanka, cerca

de 1150. Buda

em pé e deitado

(14,5 m de altura).

Mas quando, neste mundo, os ho-mens se tornam conscientes de um al-vo de vida superior, o instinto egocên-trico natural se torna um fardo quedeve ser removido. Esses homens são,então, chamados por sua verdadeiranatureza, a transformar todos os seusinstintos naturais egocêntricos emimpulso espiritual teocêntrico. E aíusamos uma palavra um tanto anti-quada: “conversão”, ou “reversão”.Aqui, vamos de encontro ao erro deraciocínio da maioria da humanidade,que não quer se apartar da autocon-servação, não deseja por princípioromper com ela. Então, vemo-la de-

senvolver uma exacerbação do instin-to de auto-conservação, que se torna,assim, mais intenso e se volta, então,para o mundo supra-sensível.

Verificamos freqüentemente que jánão se consegue fazer nenhuma dis-tinção entre o homem natural e ohomem espiritual. Quando o ser hu-mano se põe a viver conscientementesegundo seu impulso natural, ele sevolta, de fato, contra seu núcleo divi-no, e todo o seu saber se torna umamaldição. Desse modo, a porta da sa-bedoria fecha-se inexoravelmente. Es-sa é a característica dos tempos atuais.

Vemos, também, que a autêntica

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compreensão interior existe apenasem algumas pessoas. A maioria passaseu tempo numa luta desesperada paraser feliz, para alcançar uma felicidadeaparente. O homem da natureza diz:comamos, bebamos e alegremo-nos,pois amanhã morreremos! Porém,aquele que busca por outros alimentosque não os nobres e elevados, pode sealimentar por anos a fio sem se tornarcom isso uma pessoa espiritualmenteorientada. Ele permanece um homemda natureza, desprovido do mais ele-mentar entendimento interior. Os gri-tos festivos e a euforia do saber são aspremissas da decadência.

Como alcançamos a verdadeiracompreensão interior? Certamentenão mediante a prática de exercíciosocultistas, pois neste caso criamosuma imagem deformada daquilo queainda não possuímos e que, portanto,não compreendemos. Desse mododesenvolvemos uma perigosa disposi-ção para a magia negra. Tudo isso nadamais é que instinto de conservação, doqual a verdadeira sabedoria permane-ce muito distante. E se fôsseis sensiti-vo e clarividente, então poderíamosdizer que tendes acesso a um outromundo, do qual nada entendeis! Nãohá nenhuma satisfação na percepçãode um outro mundo quando essa per-cepção vos induz ao erro e continuaissendo um ser humano desta natureza.

Contudo, temos um intenso anseiopor uma compreensão nova e correta,afastada do intelecto. Não podemosalcançar algo mediante esforço contí-nuo, temos – para tudo – de com-preender as coisas que são. Não temosde agarrar as coisas que estão além denossa compreensão intelectual, por-

que ficaremos exauridos desviando-nos de nosso objetivo. Não importa sequeremos agarrar o conhecimentooculto ou a satisfação material – é omesmo alimento! Por isso continua-mos famintos, porque faltam-nos oreconhecimento da verdade e a verda-deira sabedoria.

Porém, para aqueles que compreen-deram, existe uma comunhão comDeus, que para os homens correspon-de ao céu. Essa comunhão tem inícioapós a reversão de nossa aspiração.Então, primeiramente aprendemos aconhecer o espírito de Deus como umsentimento de auto-recriminação. De-pois, sentimo-nos julgados a cada ins-tante ou a cada um de nossos atos epensamentos. Nesse ponto, todoconhecimento livresco e sonho místi-co cessam. Percebemos, então, nossoverdadeiro ser ligado à natureza.Desse modo, o espírito de Deus podese tornar um julgamento do homemnatural.

Existe uma grande diferença entre oaspirante que não quer omitir nenhu-ma letra e o verdadeiro homem espiri-tual. Reconhecer essa diferença é con-dição para obter a compreensão inte-rior. O homem espiritual não buscanenhum desenvolvimento supra-sen-sível. Ele é um homem inquieto quesabe que o natural não pode herdar oreino de Deus, muito embora a natu-reza esteja a serviço do espírito. Ocombatente espiritual sincero conheceo espiritual-divino e, para ele, o espiri-tual-pessoal é secundário. Não é aprópria vontade que o move, mas sima vontade absoluta. Por isso seu pen-samento se eleva acima das limitaçõesda existência material. Em outras pala-

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vras: um homem verdadeiramente es-piritual jamais permanece preso a umaopinião, que é uma gaiola, pois elecontemplou a verdade e a experimen-tou! É impossível que um impulsonatural seja considerado uma vontadedivino-espiritual, porque ele está sem-pre sujeito a uma opinião.

O verdadeiro homem espiritual,que eu chamaria de “homem conver-tido”, não começa pela observação deregras de uma instituição, organizaçãoou igreja, mas por aquilo que ressaltanos obstáculos que impedem a com-preensão interior. Ele não começa porsondar essa ou aquela questão espiri-tual, mas com a observação de seupróprio problema. Então ele se corri-ge. E quanto mais empecilhos ele des-cobre, mais ele os remove. Quantomais os limpa, mas se abre para oimpulso do espiritual-divino. Por issoele ansiará pela compreensão interiore a receberá, e essa corrente de sabedo-ria se tornará cada vez mais forte àmedida que ele corrigir a si mesmo.Essa corrente de sabedoria que ampliasua compreensão progride paralela-mente com o esforço consagrado àpurificação interior. Não se trata deuma luta em direção ao superior, masde uma sublimação do inferior.

Aquele que conhece esse caminhosabe que a compreensão interior setorna seu quinhão. Mas se ele aspirarpor mil anos e esquecer o caminhosimples desse desenvolvimento, entãoele pode continuar aspirando! Se man-tivermos o estado de homem natural,então a ele permaneceremos sujeitos.Porém, se mantivermos o aspectoespiritual no tempo, seremos entãomais que vitoriosos!

O caminho do homem espiritualleva infalivelmente a Cristo, que é ovitorioso e é chamado “Mestre dasabedoria”. Ele é a força-motriz quepode levar o homem espiritual aolongo do caminho da experiência.Ninguém pode satisfazer nosso dese-jo por sabedoria, pois ela já se encon-tra em nós. Porque há dois mil anosela foi novamente escrita, cantada,anunciada com força e com doçura, eseu único objetivo é apenas indicar afonte da qual devemos todos beber,desde o homem primitivo até o santo.

Saberemos tudo disso quando ti-vermos realizado em nós a compreen-são da sabedoria, e também seremosimpulsionados a partilhar com outrosa nossa alegria espiritual. Porém, nãonos esqueçamos de que também exis-te uma propensão natural, o impulsoda natureza, que é geralmente maisforte que o impulso “espiritual”.

Devemos descobrir se o espíritoque nos estimula é puro, divino!Devemos pesquisar se esse renasci-mento provém do espírito da verdade!Aquele que renasceu do Espírito érespeitoso e silencioso diante dosagrado que irrompeu em sua vida. Ohomem espiritual está munido de umentendimento claro, comovido emamorosa disposição e pelo sofrimentodo mundo. Todas as circunstâncias nanatureza, toda a sua vida, tornam-seum reflexo desse processo que – noespírito – nele se realiza. E as palavrasda verdade estarão em seus lábios,enquanto a alegria do coração irradia-rá de seu olhar.

1 Heindel, M., O conceito rosacruz do cosmos,

2. ed. São Paulo: Fraternidade Rosacruz, 1977.

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A unidade dos peregrinos na senda

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Leva por volta de uma hora e meiapara que mil pessoas passem, uma auma, pela porta estreita de Lombri-ves, nos Pirineus, a grande igreja doscátaros. Quando todos estão na imen-sa gruta, as luzes se apagam e todosficam, por um tempo, no silêncio e naescuridão. No interior dessa monta-nha, o silêncio e a escuridão são inten-sos. Os olhos e os ouvidos, sempre emmovimento, mesmo durante o sono,encontram ali uma maneira especialde descansar. O tempo parece suspen-so. O passado, o presente e o futurofundem-se no nível da alma, e, nessafusão, sentimos algo muito especial.

om efeito, experimentamos a sen-sação de unidade de todos os que per-correram, percorrem e percorrerão asenda da Gnosis. Semanas mais tarde,na vida cotidiana, basta cerrarmos osolhos e lembrar-nos disso para sentirnovamente a unidade de Lombrives, aunidade dos peregrinos que estão nasenda.

Essa unidade não existe apenas nosul da França, mas em toda parte, aci-ma de todos. Ela não está limitada aum lugar. Ela é como uma luz radian-te e uma profunda escuridão que osbuscadores não percebem com osolhos. Ela é silêncio e som. Porém, osbuscadores não a percebem com osouvidos, pois ela vibra através detodo o seu sistema. Essa unidadeexiste além do espaço e tempo, agorae sempre!

Extingue meus olhos:posso ver-te;cerra meus ouvidos:posso ouvir-te;e sem pés posso ir a ti,e mesmo sem boca posso implorar-te.Arranca meus braços, e eu te envolvereicom meu coração como que com amão;pára também meu coração e meucérebro baterá;acende teu fogo em meu cérebro,então te levarei em meu sangue.

Rainer Maria Rilke (1875-1926)

Ele, que nos conduz até o cimo

Sem cessar, por inumeráveis caminhos,voltei para ti meus sentidos.Acredito em tua imagem e suspeitoque seu desassossego é finalmentesorte.Sempre de novo buscamos o uno,que não afeta muitos: que ele apareça diante de nóse nos conduza para o cume.Um dia chegaremos lá,onde a terra se perde no sol...Então, poderá a forma – nós – se aniquilar,e nos tornaremos o que somos.

Christian Morgenstern (1871-1914)

FONTES:Rilke, R. M., Das Buch von der Pilgerschaft, 1905Morgenster, C., Melancholie.

Vista da entrada

da gruta de

Lombrives. Fotos

© Pentagrama.

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Toma a tua cruz.Despoja-te do mundo.Liberta-te dos laços do sangue.Submete o velho homem.Erige o novo homem.Cumpre a sagrada lei.Dá espaço paraa pomba com níveas asas.Não coloques nenhumaserpente a seu lado [...]Alegrem-se, meus amados.

queles que pressentem a existên-cia de uma verdade profunda subja-cente em tudo que existe reconhecemem Mani um mensageiro e um pro-pagador da verdade divina. Em 1938,J. van Rijckenborgh, falando exten-samente sobre o ensinamento deMani, declarou o seguinte: “Esseensinamento corresponde perfeita-mente à finalidade e à essência docristianismo ensinado pelos rosacru-zes através dos séculos. Por conse-guinte, Mani é uma de suas princi-pais fontes de inspiração”.

As palavras de abertura foram tira-das de um simpósio anterior: “Vie-mos aqui para experimentar, paravivenciar algo autêntico, para inalar operfume da verdade vivente, queemana da única fonte original. Não setrata de um processo racional, de algoque pode ser ponderado, mas de algosempre novo, cintilante e inesperado.Desse perfume, Mani fala em seushinos:

Cheguei à porta do jardim dos vivos,o perfume das árvores espalhou-sesobre mim.E:Às margens do Eufratessentava-se um joveme tocava música,rodeado do perfume da vida.

Essa é a própria radiação da vidaautêntica.

Desde a juventude, por volta dosdoze anos, Mani sabia-se envolvidopor esse perfume. Seu companheirodivino, que ele designa como o Para-cleto, aparece-lhe:

“Quando meu corpo se desenvol-veu, surgiu diante de minha face, demodo totalmente inesperado, umreflexo esplêndido e magnífico demim mesmo. [...] Então o Paracletorevelou-me tudo o que era, tudo o queserá, tudo o que o olho vê, o que oouvido ouve, e tudo o que o pensa-mento pensa. Por meio dele eu apren-di tudo, eu vi o Todo, tornei-me um sócorpo e um só espírito.”

Essas são palavras que contêm umapromessa, uma visão de uma outravida, de uma vida mais elevada, umaconsolação para todos aqueles quesabem que há algo mais e que aspiramprofundamente. Essa nostalgia ecoaclaramente nas palavras de Mani.Mani significa “pérola de luz”, asemente divina no coração humano,ou como a denomina Mani: a sublimerosa do Pai.

Mani, o dom da luz

Simpósio sobre Mani, realizado em 7 de maio de 2005 em Renova, Bilthoven, Holanda.

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Os rosacruzes também falam darosa do coração que deve ser liberta-da de seu cativeiro para novamentedesabrochar em plenitude. “Acendeivossas lâmpadas”, diz Mani, “e desli-guemo-nos prontamente das cadeiasdo corpo, a fim de libertar o novohomem”.

O Evangelho de Mani

J. van Oort, co-autor da obra con-sagrada ao Codex Manichaicus Colo-niensis (o códice maniqueu de Colô-nia), fez a primeira alocução intituladaO Evangelho de Mani:

“Mani nasceu em 216, próximo daatual Bagdá. Não há nada de certosobre o nome de ‘Mani’. Segundo ocódice de Colônia, ele teria crescidoem um tipo de comunidade judaica,

comparável à dos essênios de Qum-ran, no mar Morto, que reconheciaJesus como o Messias, o Salvador(soter), portanto uma comunidadecristã-judaica. Eles sustentavam a idéiade que Deus é a causa de tudo, inclu-sive do mal, asserção contra a qual ojovem Mani se tornou cada vez maisresistente. Ele se libertou desse meioestrito de ritos exteriores, de purifica-ções e abluções, em que muitas puni-ções eram aplicadas.” Segundo vanOort, o códice nos deixa ver como agnosis maniquéia se desenvolveu apartir do chamado do ser divino dohomem Mani.

Mani fala de seu “gêmeo celeste”,sua “sizígia”, seu verdadeiro ser, doqual diz: “Eu o reconheci e compreen-di que ele era meu verdadeiro eu, doqual fui separado”. A filosofia gnósti-

Miniatura persa

representando o

símbolo universal:

o portador da Luz

vence o dragão.

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ca de Mani traça um caminho queconduz à compreensão do mistério dobem e do mal, compreensão que vaimuito além de um simples dualismo.A doutrina de Mani associa estreita-mente o conhecimento de si e oconhecimento de Deus. Nela desco-brimos paralelos surpreendentes entreo maniqueísmo e o islã, pelo menoscom o Corão. Nela encontramos umimportante elemento gnóstico, comoem tantas outras fontes, tais como ojudaísmo e o cristianismo. São eviden-tes as relações entre o “companheirodivino” ou “irmão gêmeo” de Mani(sizígia), o “Gabriel” de Maomé e o“Cristo” eterno.

“Meu filho, através de todos os pro-fetas eu esperei que tu viesses para queeu repousasse em ti. Porque tu és omeu lugar de repouso, tu és meu pri-mogênito, meu filho que reina até aeternidade.” Esse fragmento essenciale penetrante do Evangelho dosHebreus testifica de modo surpreen-dente que as correntes “heréticas” são

também testemunhas do cristianismojudaico original, assim como são tam-bém os evangelhos canônicos, e parti-cularmente o Evangelho de João.

Por ocasião de seu batismo no Jor-dão, Jesus tornou-se o filho de Deus:Ele se tornou consciente de seu cha-mado como o Cristo: “Tu és meufilho, hoje eu te gerei”. Este chamadointerior à evolução da consciência étambém encontrado no Evangelho deJudas, recentemente descoberto: “Eassim que eu (Jesus) fui batizado, eisque uma nuvem luminosa me rodeou[...] e saindo da nuvem ouvi uma vozressoar: Ó Alógenes (um ser diferentedos outros, um estrangeiro no mundotransitório, o homem espiritual, nestecaso, Jesus), Ó Alógenes/Jesus, a vozde tua prece foi ouvida e eu (o Cristoceleste) te fui enviado”.

Em seu batismo, Jesus se tornouconsciente de sua real vocação quandoo Cristo desceu sobre ele: sua imagemeterna, sua “sizígia” imperecível. OCristo eterno desceu sobre Adão,

26

Duas páginas

extraídas do

manuscrito maquineu

de Colônia, ampliadas

(o original mede

3,5 X 4,5 cm), em

caligrafia fina e letras

maiúsculas gregas.

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imagem original e arquetípica do ho-mem, segundo Mani. Ele é o mesmoque Seth, Enoque, Noé... Mas é a ple-nitude do Espírito Santo que se derra-ma sobre Jesus.

Essa era a concepção de Mani, quese intitulava “apóstolo de Jesus Cris-to”. No códice maniqueu de Colô-nia, ele declara: “Eu, Mani, apóstolode Jesus Cristo pela vontade de Deus,o Pai da Verdade, de quem nasci, quevive e mora na eternidade onde eleera antes de todas as coisas e conti-nuará a ser depois de todas as coisas.O que foi, e será, existe mediante seupoder. Dele eu nasci. Eu sou por suavontade. Por ele toda a sua verdademe foi revelada, e eu procedo de suaverdade. O que ele me revelou, eu vi:a verdade eterna [...] que Deus merevelou eu explico àqueles que aspi-ram à verdade”.

Mani caminha nas pegadas de Jesus.Seu evangelho deve ser realizado inte-riormente, pois se trata do encontrocom o Cristo interno, o verdadeiro eu,após o que chega-se à verdadeira com-preensão, ao “conhecimento” ou “gno-sis”. Ou, tal como Paulo, cujas pala-vras Mani repete: “E já não vive meu‘velho eu’, meu ego, mas Cristo viveem mim” (Gálatas 2,20).

O maniqueísmo se estendia dooceano Atlântico ao oceano Pacífico;ele foi uma igreja cristã gnóstica mun-dial com milhões de fiéis, uma eclésialigada ao campo de manifestação doCristo universal que atuava por meiodele. Assim, Maomé, em mais de umaspecto, foi a última testemunha dateologia cristã primitiva, tendo o islãoferecido dela uma perspectiva oti-mista e conservado a idéia do eternoretorno do verdadeiro profeta da tra-

dição cristã, na qual Jesus, entre todosos profetas, teria sido o mais impor-tante. Se a universalidade do Cristotivesse sido compreendida, muitasconcepções religiosas se uniriam e umgrande número de antagonismos reli-giosos seria transposto.

O códice maniqueu de Colônia eo Evangelho de Judas

Após essa alocução que trata dosfundamentos gnóstico-cristãos domaniqueísmo, o professor Quispeltomou a palavra para apresentar olivro escrito por ele e Van Oort, intitu-lado O códice maniqueu de Colônia.Esse manuscrito foi encontrado noEgito em 1969. O local exato da des-coberta não é certo. Adquirido emantiquários no Cairo, ele era dedimensões tais que não passava de 3,5por 4,5 centímetros. De fato, VanOort diz que se tratava de uma “massaconfusa” de pergaminho muito feiaadquirida pela universidade de Colô-nia, daí o nome Codex ManichaicusColoniensis. Esse livro minúsculo,cuja antigüidade não deixa nenhumadúvida, data do final do século IV econsta de aproximadamente 192 pági-nas escritas em maiúsculas gregas. Aspequenas folhas de pergaminho esta-vam coladas umas às outras. As letrasmediam menos de um milímetro!

Esse manuscrito relata a história davida de Mani que, no terceiro séculodepois de Cristo, colocou os funda-mentos de uma religião gnóstica mun-dial. A primeira frase da obra é: “Donascimento do seu corpo” que podeser interpretado como “o nascimentoe o desenvolvimento de um corpognóstico”, de uma eclésia maniquéia.

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Ele descreve o nascimento de Mani,seus anos de juventude e sua primeiraviagem missionária.

“O futuro, caros ouvintes, é gnosti-camente colorido.” Com esse gracejoo professor Quispel começou sua alo-cução, breve, porém concisa. Após terretido nossa atenção por algum temposobre o Evangelho de Tomé e sobre aedição de dois volumes de um Dicio-nário de gnosis e esoterismo ocidental,ele começou a falar sobre o mani-queísmo. Este não foi a religião de umpovo, como o judaísmo ou o hinduis-mo, disse ele, mas uma religião mun-dial, como o budismo. Nenhuma reli-gião é tão simples: o Espírito liberta aalma da matéria. Essa religião cristã,sem divisão, que durou mil anos, eragnóstica – a Gnosis é uma religiãomundial – tal como vemos no CodexManichaicus Coloniensis. Em todo serhumano vive uma centelha divina quedeve ser salva “a fim de que a ferida daqueda se feche e Deus cure novamen-te”. Para a Gnosis, para os gnósticos,Deus é o ser em movimento. Em se-guida, o professor Quispel traçou umarelação entre o manuscrito de Colôniae o Evangelho apócrifo de Judas, ondetambém é falado de Seth Alógenes(Seth, filho de Adão e arquétipo dohomem espiritual).

“Mas parece que aqui se trata deSeth Alógenes e da descrição de suaascensão enquanto ele é envolvido poruma nuvem luminosa. Da mesma for-ma, segundo a Bíblia, Moisés subiu oSinai até as ‘trevas’ onde Deus se en-contrava. Como iniciado e arquétipodo místico, Moisés se eleva acima dotempo e do espaço e, então, na noitedos sentidos e na noite da alma, ele vi-vencia Deus.”

Este foi o tema principal da místicacristã posterior: pelo nosso arrependi-mento, elevamo-nos acima do querere pensar para reunir-nos ao Uno. Ascomparações estabelecidas por Quis-pel são surpreendentes e oferecemuma boa compreensão das raízes pro-fundas e insuspeitas de nossa civiliza-ção cristã. Ele conclui: “Para nós,homens da pós-modernidade, não éalgo extraordinário o fato de o ateís-mo ser um gigantesco golpe de espadano ar e que o homem de barba já nãopossa convencer-nos. Mas não existi-ria, efetivamente, alguma coisa queseria a origem de tudo e que daria sen-tido à nossa existência?”

O milagre maniqueu

François Favre é o autor de umlivro sobre Mani, abundantementedocumentado, intitulado Mani, Cristodo Oriente, Buda do Ocidente. Suacontribuição para o simpósio foi tra-duzida para o holandês de forma pre-cisa pela senhora Y. de Vries, tendopor título: O milagre maniqueu.

É um vasto panorama que se abre,dramático e inspirador, trágico e lumi-noso. Por um lado, o aspecto interior,esotérico, do ensinamento de Mani,sua cosmologia onde luz e trevas, odivino e o mal, são radicalmente sepa-rados um do outro. Um mito como-vente que fala do homem materialsubmetido à ação dos poderes das tre-vas, da oferenda da luz e sua alquimiana matéria, da libertação da alma deluz, uma alquimia interior representa-da por símbolos, linguagem figurada epalavras.

Por outro lado, a disseminação domaniqueísmo por numerosos países e

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Irmãos maniqueus.

China, século X

d.C.

sua terrível perseguição. A grandevitalidade da igreja de Mani é sur-preendente, uma força que, a despeitodas ferozes oposições, repressões eopressões das várias ortodoxias (obloco dos sacerdotes cristãos, budis-tas, taoístas...) expandiu-se durantemil anos e soube trazer a inumeráveisalmas a alegria eterna da Luz do Cris-to universal. Passado grandioso que serevela ainda em nossos dias, porque aforça espiritual à qual a igreja mundialde Mani deu forma não se perdeu enão pode ser exterminada!

Para aquele que é receptível a elalevanta-se a cruz de luz: Mani, apósto-lo de Jesus, soter, salvador, alma deluz, alma do mundo.

A mistura da matéria e da luz

A última alocução desse dia inspira-dor iniciou-se com as seguintes pala-

vras: “Eu, Mani, apóstolo de JesusCristo, [...] esta verdade eu a reveleiaos meus peregrinos”. O orador, sr. R.Goud, enfatizou que todos os gnósti-cos bebem da mesma e única fonte.Contudo, o que se manifesta em sím-bolos depois do nascimento da alma,eles traduzem em palavras e em ima-gens compreensíveis para a época emque levam a cabo o seu trabalho. Osgnósticos possuem, por assim dizer,um fio condutor interior que lhes per-mite reconhecer e sentir a atualidadedo ensinamento de Mani.

O que é característico para o gnós-tico é o dualismo tanto do homemcomo da criação, bem como o signifi-cado dado a Cristo. No ensinamentode Mani, a criação é por sua vez luz ematéria, ou trevas, princípios absolu-tamente separados um do outro; é pre-ciso notar que a matéria (hylé) é cons-ciente e dispõe de uma inteligência.

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Na cosmologia de Mani, o reino daluz é representado pela árvore da vidae o reino das trevas pela árvore do mal.

Mani afirma que a luz e a matériaestão misturadas. Por que? O príncipedas trevas, não encontrando qualquersatisfação em si mesmo, enche-se deciúme do reino da luz, cuja fronteiraele tenta atravessar com seus compa-nheiros/demônios. Deus, que dominano reino da luz, o “Pai da Magnanimi-dade”, origem e fonte do amor, nãodeseja lutar, entretanto faz um sacrifí-cio. Ele engendra o primeiro homem,“seu filho pleno de força” que, equi-pado de cinco poderes, mergulha noreino das trevas. Esses cinco poderesconstituem a alma de luz ou veste-de-luz, imagem brilhantemente expressano Canto da Pérola. Essa alma viven-te – os cinco filhos – é devorada pelopríncipe das trevas e seus cinco filhos.Nos textos maniqueus é dito que oscinco filhos da luz arrastam-se paradentro das entranhas de hylé, a matéria,mas... não são por ela atacados! Desdeentão um elemento luminoso, salva-dor e libertador, introduziu-se nas tre-vas. Não por meio de um combate oupela força, mas sim, pela oferenda daluz, as trevas são atacadas.

A cosmologia de Mani traça emmuitas nuances a oferenda desses ele-mentos luminosos e sua definitiva li-bertação do reino das trevas. Esses ele-mentos de luz (centelhas divinas)estão aprisionados no homem natural,hílico. Mas o homem feito de matériatenebrosa não é capaz de libertar oselementos de luz por suas própriasforças, nem tampouco a alma de luzpode fazê-lo! Na verdade, esta última,vencida pela matéria tenebrosa, ignoratudo sobre sua origem divina!

Assim como o homem do princípiopossui uma alma quíntupla, o homemmaterial, hílico, tem igualmente umaalma quíntupla, porém formada dasforças das trevas. A alma de luz épotencialmente quíntupla, mas estámergulhada num “sono de morte”.Trata-se, portanto, de despertar a almade luz e reanimar, como diz Mani,seus cinco aspectos: perseverança, fé,perfeição, amor e sabedoria. Mas estasvirtudes não podem se desenvolver senão receberem as forças do reino daluz. Como, pois, despertar a alma deluz? Mani diz, então:

Senhor, que devo fazerpara verdadeiramente viver?Dá repouso à tua mão,reveste-te da pura verdade,dá à tua inteligência o amor,

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Modelo de

caligrafia persa.

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à tua razão oferece a fé,ao teu pensamento dá a perfeição,à tua resolução, perseverança,e à tua reflexão, sabedoria [...]Assim tu viverás, ó alma.”

O orador evocou uma nova ativida-de de Jesus, o próprio brilho do sol: aefusão do Paracleto, o Espírito Santodos mestres e fundadores de todas ascorrentes religiosas. Sua tarefa é des-pertar as almas de luz, confirmandodesse modo os seres humanos na ver-dade e na luz. Enquanto a alma per-manece na esfera material, ela é vulne-rável e é prejudicada pelas forças dastrevas. Mas quando totalmente livreda matéria, a alma de luz é admitida noeão luminoso – um espaço compreen-dido entre o mundo da dualidade e oreino da luz – e é libertada do mal. Naevolução seguinte, o eão luminosofunde-se no reino da luz. A alma deluz do primeiro homem participadisso; ele é um dos incontáveis seresde luz perfeitos.

O elemento luminoso de cada serhumano está ligado com a coletivida-de de elementos luminosos chamadade “a alma do mundo”. Como a ofe-renda do primeiro homem é o sacrifí-cio do filho do Pai da Magnanimida-de, a sofredora alma do mundo é com-parada a Jesus na cruz, a cruz de luz.

Para Mani, o Pai da Magnanimida-de é Deus. Mas Deus e amor são umsó. Os ensinamentos de Mani repou-sam na auto-oferenda de amor e naidéia de que os seres humanos devemconstituir uma longa cadeia de oferen-das no amor do Pai da Magnanimida-de, pois foi por amor que ele engen-drou o primeiro homem, Cristo. Tudoque veio em seguida, a salvação do pri-

meiro homem, a criação do mundo ede todos os reinos da natureza, podeser considerado como emanações, in-fluxos ou oferendas do Pai, e o homemsomente pode libertar-se pela auto-oferenda.

Eis o que diz Mani sobre sua vidade apóstolo da luz:

Nenhuma outra tristeza tenho,senão esta: essas almas às quais falta a esperança,e que não são fortalecidas interiormente na verdade.

Para evitar sua morte final,os apóstolos e os pais, os verdadeiros profetasque se manifestam por Deus,fizeram a oferenda de si mesmos com grandes esforços,na terrível necessidade de salvar essas almas da segunda morte.

Nem um só apóstolo quis recebersua recompensa nesta terra.Eles passaram todo o seu tempo em dores e sofrimentose aceitaram a crucificação de seus corpospara salvar essas almas da grande perdição,para que elas se elevassemà paz eterna no novo eão.

BIBLIOGRAFIA:

Oort, J. V., De Keulse Mani-Codex.

Amsterdã, 2005.

Favre, F., Mani, Christ d´Oriente, Bouddha

d´Occident. Tantonville: Ed. du Septénaire,

2002.

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audição é um sentido interno. Oque é dito penetra diretamente o serinterior. Esse sentido diferencia-se davisão, pois aquilo que vemos perma-nece fora de nós. Somos como que“agarrados” pela audição. Pelo tímpa-no, a onda sonora chega ao espaçointerno do ouvido, tocando os ossícu-los auditivos e depois a trompa. Oouvido interno é um caracol enroladoem espiral ao redor de um labirintomembranoso que compreende umconjunto de cavidades cheias de líqui-do. Os sons captados pelos ouvidosrepercutem através da espiral e so-frem uma aceleração em progressão

logarítmica, até desaparecer do mun-do material. Tudo quanto ouvimos seperde no infinito.

Os sons se formam em nós

Em nós, o audível e o inaudível sesucedem reciprocamente e agem damesma maneira. Em cada tom vibramtons dominantes, tons mais altos cujasfreqüências vibratórias são múltiplosda freqüência do tom fundamental.Os sons muito graves, ainda inaudí-veis, chegam da área perceptível, pas-sam, e em seguida desaparecem noinaudível. O ouvido surgiu para que o

Às vezes é dito que o ouvido humano tem a forma de um embrião de cabeçapara baixo e que o caracol, ou concha do ouvido interno, assemelha-se ao pavi-lhão auricular, que por sua vez reproduz a forma do embrião. O ouvido é oprimeiro órgão a se desenvolver. Alguns dias após a concepção, quando oembrião mede apenas 0,9 mm, já é visto o esboço dos ouvidos. Quatro meses emeio depois da fecundação, esses órgãos já estão formados e permanecem osmesmos por toda a vida. Podemos dizer que a importância dos sentidos é mos-trada desde nossos primeiros meses. O desenvolvimento da nossa consciênciacomeça com eles.

Os sons

se perdem no infinito

Um ouvido

que escuta. Foto

© Pentagrama.

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A

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homem pudesse sobreviver nas con-dições de vida primitivas. Com odecorrer do tempo, o ouvido trans-formou-se na faculdade de audição.Isto equivale a dizer que os sons nãodespertam senão em nós: não ouvi-mos apenas com os ouvidos, mas comtodo o nosso corpo, com cada célula.Cada célula é tocada pelas vibraçõesque chegam até nós, incluindo tam-bém aquelas que são inaudíveis. Eranesse sentido que Beethoven, o gran-de compositor, quando se tornousurdo, ouvia. Ele ouvia mais que ossons externamente audíveis.

Os dois condutos auditivos condu-zem para o centro da cabeça. Tudoque ouvimos ressoa no fluido da almaali presente. Isto é o que dá à cons-ciência o impulso para escutar certossons ou então deles se afastar. O ouvi-do é, em nosso corpo, um fator regu-lador do processo de audição. Ele faza ligação entre os aspectos da alma e omundo dos sons e rumores.

Quando escutamos uma outra pes-soa, nós vibramos com ela porque nosabrimos a ela. Assimilamos não ape-nas o que ela diz, mas também ascaracterísticas de suas vibrações quepenetram os próprios fluidos da almae são por eles absorvidos. Dessamaneira, ouvimos de forma objetiva,interiormente. Assim desperta em nósnão somente a compreensão, mastambém a compaixão no nível daalma. O discernimento aumenta e jánão há julgamento. Por outro lado,dá-se uma seleção, pois nem tudomerece ser ouvido! Esse saber ouvir étão intenso que em certos momentos

a separação entre o falar e o ouvirdesaparece, e uma troca de informa-ção sem palavras acontece.

Para aqueles que buscam, quequestionam, os sentidos têm umafunção receptora de sons, de impres-sões, de informações. No homem-alma, as funções sensoriais são de pre-ferência emissoras: os olhos refletem aforça divina nele ativa, e, como acaba-mos de descrever, o ouvir pode seruma verdadeira fonte de consolo e deforça auxiliadora.

Falar é a produção e a irradiação da força cria-dora, a força do homem nascido da naturezade que ele necessita para executar a única obrapara a qual é chamado. Por isso, quem procuraDeus falará somente quando for estritamentenecessário.O que é, então, escutar? É a recepção sensorialda mesma força que os outros vertem pela fala. Quando falais e outro ouve, o outro recebe emsi a força que vós desprendeis ao falar, e, via deregra, isso é extremamente grave neste mundo.Por isso, tanto a fala como a audição são umassunto muito delicado, para o qual todo alunodeve muito especialmente voltar sua atenção.No caso de um discipulado sério, tanto a falacomo a audição são submetidas a uma leimuito sagrada, lei que atua exclusivamente noplano do homem-alma liberto. Cada fala ouaudição abaixo de determinado nível prejudicao homem e liga-o à natureza inferior.

Rijckenborgh, J. v., A Arquignosis egípcia, t. 3. São Paulo: Lectorium Rosicrucianum, 1989.

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O homem pode, através do princípioespiritual que está em ligação com seucoração, forjar uma ponte para a sextaregião cósmica, que tem uma vibra-ção totalmente diferente. Por inter-médio desse princípio, a energia doLogos pode estimular nele uma novaforça-alma que pode levar ao desen-volvimento tudo o que é divino nopequeno mundo do homem.

o trabalhar com essa energia, o serhumano tem a possibilidade de for-mar sua compreensão. A compreen-são se forma quando o homem pes-quisa ativamente, quando trabalha eobserva, tentando integrar à sua vidavalores (de alma) elevados, colocan-do-os em prática. Se o homem permi-te, se ele aplica essas possibilidades, oque é desejável, desenvolverá umagrande inteligência. Ele aprende acompreender as situações em que seencontra, e, tanto em meio a dificul-dades como facilidades, mede toda a

importância de si mesmo. O entendi-mento que daí nasce torna-se umprincípio condutor para toda a vidafutura. Eis por que o primeiro passono caminho da liberação da luz nohomem consiste na “compreensão”.

Assim, enquanto a personalidadetrabalha no “homem, conhece a timesmo”, seu conhecimento se desen-volve em: “e conhecerás o Universo eDeus”. Na alegria do devotamento,ele se vê engajado num novo cresci-mento da alma, que será, num futuropróximo, essencial para toda a huma-nidade.

Do exterior para o interior

No livro Sidarta de Herman Hesse,o herói aprende a escutar as dez milvozes do rio nas quais ele ouve a vozdo “Outro”. O livro também relatacomo Govinda vê no rosto de Sidartaos “mil rostos do ser”. Jacob Boehmeentrou em contato com as profunde-zas de sua alma ao ver refletido umraio de sol num vaso de estanho. Obrilho, uma percepção interior, por-tanto, desperta nele a sensibilidade aoreflexo interior do espírito.

A vida exterior proporciona umainfinidade de experiências, tanto posi-tivas quanto negativas. A vida interiorsomente pode revelar-se quando atotalidade das experiências foi vivida ecompletada. Por isso, só podemos nosaproximar da vida interior por meioda vida exterior. As experiências davida terrestre nos conduzem às portas

Vencer o engano

Da autoconsciência para a oniconsciência

No livro A Gnosis chinesa, J. van Rijckenborgh e Catharose de Petri escreveram:

“O modo como vemos está em total harmonia com a força astral com que estamos envolvidos. Ouvimos em total conformidade com a força etérica atraídapela luz astral magnética”.

A

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do infinito. A vida exterior é a passa-gem obrigatória para a vida interior.A natureza, bem como nossos senti-dos e nossas percepções, que delafazem parte, são inestimáveis paranosso caminho de desenvolvimento.

É fácil reconhecer a importância dever com os olhos, pois podemosobservar conscientemente os símbo-los do crescimento da alma presentesem toda a natureza: as plantas quecrescem, as flores que desabrocham, aprimeira batida de asas de um passari-nho que se aparta do ninho, meiocaindo, pela primeira vez.

Envolvidos por sonoridades

Assim também se dá com o sentidoda audição: não é algo grandioso ofato de a música nos dar uma idéia daharmonia interior, da claridade mara-vilhosa e da amplitude libertadora dasensibilidade e do pensamento, queparadoxalmente nos lembra que odomínio do infinito é puro silêncio?Sobre este tema, um escritor se ex-pressou da forma seguinte:

“Estamos numa cidade, num paísestrangeiro, rodeados de sons, cores eodores desconhecidos. Músicas cheiasde vida soam em todo lugar. Os pri-meiros dias de primavera trazem algomais no ar. A música cessa. Eu perma-neço imóvel, um cosmos vibrante, res-soante. Será que vibramos com essesom? Essa idéia abre uma porta poronde se engolfa um profundo senti-mento de solidão, e meus pensamen-tos se calam. Sou uno com o silêncio.Então, um som onipenetrante meinvade. Cada uma de minhas célulascompletamente desperta escuta. Essesom indescritível, estranho, e tãofamiliar. As fronteiras são abolidas.

Há um espaço sem limite, o espaçoda alma que se estende para além de

todo rumor do mundo. É uma eleva-da vibração, é a essência vivente, oeterno ser-mãe. De que nos aproxi-mamos? O que ouvimos? É nossavida um eco desta vibração quechama? E nós escutamos, cheios deprofunda compreensão. Contudo,muito rápido, os antigos sons retor-nam. Vozes do passado, externas einternas. Porém agora, nesse tumulto,a alegria da compreensão permanece:sabemo-nos cingidos, nutridos, eestaremos novamente despertos.

Continuamos nosso caminho emmeio da multidão e seus mil ruídos. Aessência da vibração do outro reinoressoa além, após o eco da eternidadeter-se gravado em nós, imprimindo oseu selo. Somos caracterizados poresse eco. Somos como instrumentoscujas inumeráveis vozes falam disso.Porém, o som único ressoa em nósquando nos abrimos à sua vibração.É o som do silêncio, a nota contínuado infinito.”

É verdadeiramente extraordinário ofato de que os próprios sentidos dohomem possam lembrar-lhe do infini-to, do domínio da eternidade, que épuro silêncio. Através de semelhantesexperiências, a natureza nos reenviaincessantemente ao absoluto, que seencontra além de tudo. Isto é o quemetaforicamente denomina-se “ver” e“ouvir” com o coração. Na luz do es-pírito divino nenhum engano subsiste.

FONTES:Sarnia, P. P., Keuschliches und digitalisiertesBewusstsein; Das Uscendliche und die Greuze.Internet.Steiner, R., Crônica do Akasha. São Paulo:Antroposófica, 1994.Hesse, H., Sidarta. Rio de Janeiro: Record,1982.Boehme, J., Viver na simplicidade de Cristo;coletânea de trechos escolhidos.Petri, C. d., O Verbo vivente.

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É preciso ter uma visão clara do verdadeiro estado

dos seres humanos, ou seja, sua ignorância de Deus em sua

vida atual. Para se dar um fim à separação entre o homem e

Deus, é necessária uma despedida, uma supressão da ligação

com as forças da natureza em favor das forças do Espírito.

(O caminho de Hermes, página 12)